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Instituto Acaia - 2005


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INSTITUTO ACAIA 2006

Início do Ateliê em fins de 1998 Início do Instituto Acaia data de fundação: 3 de abril de 2001 Endereço / Sede do Instituto R. Dr. Avelino Chaves, 80 Vila Leopoldina • CEP 05318-040 • São Paulo-SP • Brasil Tel fax: 55 (11) 3832.5804 e-mail: acaia@acaia.org.br www.acaia.org.br Títulos CNPJ - 04.449.826/0001 - 93 inscrição estadual - isento CMDCA nº 987 / 2002 COMAS nº 507 / 2003 Registro CNAS - Resolução nº 43, de 07/05/04 Publicado no D.O.U. em 12/05/04 Registro CEAS/CNAS - Resolução nº 62, de 06/04/06 Publicado no D.O.U. em 13/04/06 Utilidade Pública Municipal Decreto nº 45.555/2004 Publicado no D.O.C. em 01/12/04 Utilidade Pública Federal Portaria nº 1801 - de 13/09/2005 Publicado no D.O.U. em 14/09/2005 Projeto selecionado Publicação 322 /CMDCA / SP - 2005 para financiamento de projetos pelo FUMCAD / SP / 2005: Projeto SABER CRESCER nº 297 - protocolo 324/05 - aprovado em reunião extraordinária do CMDCA/SP em 14/12/2005 e publicado no D.O.C. em 15/12/2005 – pág. 49 Imposto de Renda, Lei Federal nº 9249 de 26/12/1995 Em 2005 o Acaia teve aprovado pelo CMDCA, através do FUMCAD plano assistencial que o qualificou a receber donativos que contam como pagamento do imposto de renda. Espera ter igual êxito no corrente ano, o que o qualificará, assim, e também em 2006 receber doações com benefício fiscal para o doador.

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Diretoria 2005 - 2009 Presidente: Pedro Roxo Nobre Franciosi Diretora Administrativa-Financeira: Elisa Bracher Membros do Conselho Fiscal: Mario Luiz Amabile José Eduardo Frigo Ronaldo Amaral Orçamento 2005: R$ 1.032.000,00 ( hum milhão e trinta e dois mil reais) previsão para 2006: R$ 1.264.800,00 ( hum milhão, duzentos e sessenta e quatro mil e oitocentos reais) Nº de pessoas que freqüentam o Instituto: De 7 a 13 anos: 50 crianças - período matutino De 14 a 18 anos incompletos: 83 adolescentes - período vespertino Adultos: 62 - acompanhados de 20 crianças - período noturno • Os freqüentadores provem majoritariamente e duas favelas e do Cingapura • 43% moram nas favelas da Linha (viela Votoran) e Japiaçu (favela do 9) • 57% moram no Cingapura Madeirite Cursos oferecidos: Animação, artes, biblioteca, capoeira, costura e bordado, culinária, dança, design, marcenaria, música, oficina de texto, vídeo e xilogravura.

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ÍNDICE

1. Essas crianças e a sociedade 1.2 Pessoas divididas entre 2 mundos

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2. Começo do Acaia 2.1 Histórias do Noturno 2.2 História dos tempos

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3. Os dois momentos do Acaia 3.1 O acolhimento 3.2 Autonomia, escolha e habilidade 3.3 Acolhimento e autonomia coexistem

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4. As crianças do Acaia e as regras do mundo 4.1 A relação com a comunidade

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O ANO DE 2005

1. ESTAS CRIANÇAS E A SOCIEDADE

O tempo ensinando a medir o espaço.

Todas as crianças estão sujeitas a intempéries emocionais, não só advindas delas próprias, como do meio em que vivem: separação dos pais, morte de irmãos, dificuldades financeiras, dificuldades cognitivas, desacertos na escola, certo grau de dislexia, ausência de pai e mãe que vão trabalhar, etc. Para as crianças que fazem parte de um meio sociocultural mais ou menos estável, as intempéries são comumente compensadas por tios, avós, irmãos, madrinha, escola, cursos, entre outros. Muitas vezes as crianças recebem pequenos presentes, carinhos atenciosos e até mesmo viagens, ou seja, não desaba tudo ao mesmo tempo. O cotidiano não é radicalmente alterado pelas intempéries normais de todas as vidas. Ocorre que, no Brasil, país tido como pacífico, para uma parcela da população infantil as condições de vida são semelhantes às de nações em guerra. Meninos e meninas vivem em casas semidestruídas ou quase não construídas, sem rede de esgoto e com ligações elétricas caóticas, tão caóticas quanto as relações humanas. É isso: quem já viu o emaranhado de fios grossos e finos despencando pelas ruas depois de uma forte chuva, a água correndo no meio das canelas, meninos pendurados por mais de doze horas em beliches com pés corroídos, dificilmente

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pode imaginar que relações humanas se parecem a esta realidade. Mas é muito semelhante. As pessoas não conseguem se separar do caos. Elas são, em si mesmas, essa desordem. Meninos trancados em barracos úmidos, sem nenhum adulto por perto. Meninos e meninas de sete, oito, dez anos, trancados sozinhos, cuidando de outras crianças sem idade ainda para andar. Acontece destas crianças serem trancadas em casa por causa do toque de recolher imposto pelo tráfico ou por perseguições policiais dentro da comunidade. Filhos, por vezes, abandonados pelas mães, que passam longos períodos ausentes na prisão ou que optam por constituir outra família; filhos, por vezes, de mães trabalhadoras, ausentes de casa para conseguir o pão de cada dia. As mães, principalmente elas, saem para trabalhar com o coração apertado ao deixarem as crianças nessas condições. Quando voltam, ainda têm muito trabalho pela frente, pouco tempo e pouco espaço, e a aflição de manter os filhos do lado de cá da linha tênue e necessária que os separa da marginalidade. Dentro desse quadro, ao primeiro sinal de desobediência de seus filhos, elas estouram e as crianças apanham. Quem vai condenar? Não existe espaço para que as crianças criem problemas. A família não tem comida, não tem pai, parte está presa, outra parte ameaçada pelo tráfico. Os filhos, sujeitos a se transformarem em “aviõezinhos” (transportadores de drogas) ou prostitutas mirins. Na escola, estas crianças dormem. As mães são chamadas e recebem duras queixas sobre seus filhos. As reclamações são feitas de maneira violenta, carregadas de preconceito. Quem fala sobre estas crianças às suas mães ou responsáveis não sabe da vida e da turbulência dessas famílias, e acabam colaborando para a desintegração do pouco que resta da unidade familiar. Torna-se um ato não de atenção e cuidado com os alunos, mas irresponsável, gerador de uma corrente infinita de punições, que levam as crianças a se distanciarem cada vez mais de um universo saudável. Na verdade, as crianças respondem às expectativas dos professores. Esses esperam que as crianças vindas da favela sejam agressivas e desorganizadas. As crianças não os desapontam. A rua é perigosa. A casa, um refúgio precário, apertado e nem sempre seguro. A escola não se oferece como uma saída, sequer porta de entrada para um mundo de regras mais estáveis. As queixas dos professores a respeito das eventuais insubordinações das crianças reforçam os temores maternos da ausência de um futuro organizado para os filhos. Em nenhum momento as mães escutam qualquer comentário positivo sobre seus filhos, a escola os tem como intratáveis, sem jeito, sem capacidade de aprendizado.

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1.2 PESSOAS DIVIDIDAS ENTRE DOIS MUNDOS

No final do ano, a viagem para a praia é a comemoração das conquistas, de novos horizontes.

É difícil esperar que crianças freqüentadoras de presídios, que vivem a violência familiar, que são obrigadas a esmolar e que permanecem segregadas em um gueto tenham outra forma de expressão além da capacidade de imitar as rebeliões da Febem e presídios. Todas as crianças, de qualquer situação social, sabem muito bem o que devem e o que não devem preservar, distinguem claramente aqueles que os respeitam daqueles que querem dirigir seus passos, sem se importar com o que e com quem elas são. Esse tipo de criança precisa de um tempo muito maior e uma atenção mais cuidadosa do que meninos que vivem uma situação sociocultural organizada. É preciso capacitá-los para que possam compreender seus problemas, suas raivas, as injustiças às quais estão sujeitos, e reconhecer, por outro lado, a tremenda necessidade de se tornarem provedores financeiros. Na desordem emocional em que vivem, com a pressão social que sofrem, acaba sobrando apenas o caminho da violência. Nesses territórios existem leis e hierarquias próprias. Para eles, seus líderes são muito mais eficazes e justos do que a nossa polícia. O papel que lhes resta na ordem social, e no qual passam a se ver, é o de sujos, baianos (na acepção de migrante nordestino bronco), vagabundos e ignorantes. Perdem, então, o que têm de mais precioso:

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suas histórias, suas raízes. A escola não dá conta da desordem das crianças. As necessidades de cumprimento das metas escolares, o despreparo dos professores, a exaustão destes por se verem obrigados a muitas horas de aulas semanais para cobrir o orçamento doméstico impossibilitam a aproximação construtiva com crianças que vivem em situações desorganizadas. Os professores acabam passando por cima das precárias condições dessas crianças, abafando e mesmo aniquilando a curiosidade e o desejo de estar em um ambiente ordenado. A escola retira o único recurso que lhes sobra: a curiosidade pelo mundo, a vontade de mundo, o desejo de se aproximar de um tipo de conhecimento que lhes é tão distante. O aluno é sistematicamente recolocado em seu lugar: aquele em que o acesso ao conhecimento da leitura e da escrita, que poderia lhe abrir portas, lhe é negado. Crianças de boa situação sociocultural não têm chance de não se alfabetizarem. Bem ou mal, cedo ou tarde, estarão alfabetizadas. O simples contato com a linguagem escrita, o convívio com a família e amigos o tempo todo, abrem as portas para esse aspecto do conhecimento. Muitas das famílias de que estou tratando aqui têm seus adultos analfabetos e raramente convivem com signos da escrita. São pessoas que abandonaram suas culturas originais há uma ou mais gerações, em um movimento vital de construção de uma vida melhor, mas que foram empurradas a uma cultura urbana que sistematicamente os aprisiona em guetos. De qual mundo podem estes meninos fazer parte? A qualquer tentativa de saída, nós lhes fechamos a janela do carro, deixamos de vê-los como crianças e lhes damos o estatuto de ladrões. Nos parques, quando se aproximam de nossos filhos, corremos para separá-los e impedir o convívio. Quando chegamos em frente às novas casas e nos deparamos com esse tipo de criança, mesmo que acompanhada de adultos, nos enrijecemos; se temos segurança em casa, pedimos que tomem providências, se não, procuramos andar rápido e fazemos barreiras para que nossas crianças não tenham contato. Nós os ameaçamos, colocamos a Febem e a polícia em cima. São esses meninos que passam a viver em um triste, profundo e solitário silêncio. Em suas casas, não há nenhuma possibilidade da construção do indivíduo. São muitas pessoas vivendo debaixo de um mesmo teto. O cansaço e a tensão não deixam brecha. As crianças não conseguem se ver separadas daquela imensa confusão, é tudo uma coisa só. Na imensa desordem de suas casas não é possível distinguir

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entre o diálogo e o “quebra-pau”. Não aprendem a ouvir. Não sabem falar, não sabem de onde vêm. Só sabem onde estão, sem saber quem são. É para essas crianças que

Em busca de suas próprias paisagens.

a sociedade pede que, por volta dos quinze anos, tenham cumprido satisfatoriamente o currículo escolar e que sejam funcionários em empresas que exigem um comportamento adequado. Na situação dessas famílias, não existe espaço para ser criança, para brinquedos, para tristezas ou alegrias. São crianças condenadas ao silêncio, portanto não aprendem a falar, não aprendem a ouvir. Nenhuma mãe escolhe deixar seus filhos pequenos em casa, os mais velhos cuidando dos mais novos. Nenhuma mãe escolhe o analfabetismo. Os adultos simplesmente não conseguem ver ou querer outra situação. Não concretizam nenhuma alternativa além de levantar cedo e ir trabalhar, muitas vezes fazer um bico na hora da saída do trabalho até às dez, onze horas da noite, ou deixar de ir ao trabalho para limpar a fossa que transborda merda por toda a estreita viela que separa os barracos. São pessoas que a custo de muita humilhação perderam suas culturas e, em nenhum momento, encontraram possibilidade de construir ou se agregar a uma nova; acabaram prisioneiras de um território com suas próprias leis. Leis

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onde vigora a força bruta. Quem não se torna agressor, vira subjugado: não existe meio termo entre opressor e oprimido. A violência é sinal de saúde, de poder criar defesas sem se trancar em casa. O direito de sair à rua, de freqüentar os poucos espaços coletivos, é conquistado através de imposições, que se manifestam violentamente. As crianças mais saudáveis são aquelas que lidam com as violências sofridas de maneira ativa, são aquelas que reproduzem os comportamentos aos quais são sujeitas. Cabe ao educador mostrar a esta criança que é possível estar no mundo de maneira saudável, sem ser oprimido ou opressor. Esse educador tem que afetivamente receber as agressões dos meninos.

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2. O COMEÇO DA ACAIA

Verão no Acaia - banho de lata: culturas que vamos assimilando.

Acaia quer dizer útero, em tupi-guarani: lugar de passagem entre a concepção e o mundo. Lugar de união entre corpo e idéias, de crescer e se fortalecer, de estar protegido e quente e, então, poder vincular-se para construir e ocupar um lugar no mundo. Um dito africano: “Vêm-se ao mundo para ter um nome, se vieste e partiste sem um nome, vieste por nada, partiste por nada”. No começo do Acaia, alguns meninos se arriscavam a construir brinquedos, geralmente carrinhos. No fim de dois meses de trabalho, pedimos que levassem o que tinham produzido para casa, pois não tínhamos espaço suficiente para armazenar todos os trabalhos. As crianças levaram os armarinhos e as mesinhas que tinham feito. Os brinquedos ficaram para trás. Na fala de um menino: “Minha mãe não deixa eu levar o carrinho, não cabe em casa”. Aos poucos, o Acaia foi se construindo como um lugar onde eles podiam ser o que a idade pedia que fossem: crianças. Na comunidade em que vivem, a escolha não é uma ação presente. Nem para eles, nem para os adultos. Um marceneiro, recém-chegado ao Acaia, que veio para dividir a responsabilidade

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da coordenação da marcenaria com outro marceneiro mais antigo, ficou mal-impressionado com a maneira pela qual alguns meninos nos tratavam. Ele dizia: “Não posso admitir, fico revoltado ao ver os meninos xingando vocês. Como é que vocês não fazem nada quando eles chamam vocês pelo nome que chamam?”. Naquela época o cumprimento habitual de um menino era: “Velha fia da puta do caralho, enfia no cu”. Esse cumprimento era dirigido a uma senhora de 64 anos. No pátio era: “fia da puta, vou enfiá no seu cu, vagabunda”. Foi difícil explicar ao mestre marceneiro que o menino não tinha nada contra nenhum de nós em particular, ele não nos queria mal, apenas estava falando para o mundo como ele é injustiçado pela natureza do meio em que vive. De outro lado, testava-nos, para saber se agüentaríamos sua fúria. Alguns dias depois, presenciamos a cena do mestre marceneiro segurando um preguinho para o menino martelar uma madeira na outra. Se, de fato, o menino tivesse raiva ou mal-querer de qualquer espécie pelo marceneiro, ele teria partido em dois a mão que segurava o preguinho. O que vimos era um garoto delicado, tomando todo o cuidado para não machucar aquele em quem depositava uma enorme confiança. Confiança de ter encontrado alguém capaz de mostrar a ele, menino, o caminho para transformar todos os palavrões em construção humana, confiança em um homem que acreditava na capacidade afetiva oculta dentro do menino. Nos primeiros tempos do Acaia, nós e as crianças éramos muito parecidos. Acho que pelo fato de o ingresso à Marcenaria (como era e ainda é chamada pelas crianças) não ser condicionado a nenhum pré-requisito, apareceram muitos meninos e meninas que não tinham outro lugar para ir (não eram aceitos em lugar nenhum). Certa vez apareceu um grupo bastante problemático e desorganizado. Eram crianças sujas que pareciam ter dez braços e quinze pernas. Não falavam muito conosco, não se constituíam como grupo, desconheciam regras de qualquer jogo, até mesmo do futebol. Formavam um bolo compacto de meninos para lá e para cá. Em outros momentos, transformavam-se em crianças soltas, avulsas e acanhadas pelos cantos. Crianças que por suas próprias leis não podiam participar de atividades coletivas, como a refeição, por exemplo. Mais de uma vez tivemos que fazer um esforço imenso para introduzir na mesa de almoço alguma delas que, abandonada em um canto, era rejeitada ou se recusava por conta própria a participar da atividade coletiva. Nós nos parecíamos com elas. Em parte, por inexperiência e desconhecimento de quem estávamos recebendo, em parte porque estávamos nós mesmos constituindo uma equipe que não tinha ainda estabelecido os critérios estruturais de trabalho.

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Esses critérios foram se formando ao longo dos já agora oito anos, à medida que íamos entendendo as crianças e suas relações sociais e tentávamos, ao mesmo tempo, digerir e dar conta internamente das suas histórias, que muitas vezes nos tiravam o fôlego. Era um imenso esforço dar conta de todas as sensações que nos tomavam não só individualmente, mas como grupo. Recentemente, recebemos a visita de assistentes sociais do Cedeca (Centro de defesa da criança e do adolescente), que nos perguntaram a respeito de uma criança que está matriculada no Acaia. Eles receberam queixas graves contra esse garoto e, conversando com ele, perceberam que a única coisa que o animava era a possibilidade de freqüentar o Acaia. Havia na assistente social um temor de que não mais aceitássemos essa criança, pois outras instituições têm demonstrado dificuldade em estabelecer vínculos com ela. Esse menino não mantém freqüência nem se vincula a nenhuma das atividades. Nas tardes em que está conosco, vaga pelos cantos, olhar perdido, evitando qualquer contato. Cabe a nós propiciar a ele a oportunidade de aqui estar, respeitar sua momentânea incapacidade de cumprir horário e manter freqüência nas atividades, reconhecer seu esforço em busca do sadio, oferecer momentos de calmo acolhimento, deixando que, sem medo, ele observe e sinta-se capaz de escolher o caminho do fazer que o conduzirá a uma reestruturação. Não é tempo de estimulá-lo ou induzi-lo a tomar decisões, esse tempo virá, como já veio para a maioria dos meninos que estão no Acaia. Não receber esta criança bastante desestruturada invalidaria o nosso projeto.

Nas noites - a tranquilidade para construir novas referências.

2.1 HISTÓRIAS DO NOTURNO Quando os adultos vêm ao Acaia, três vezes por semana, à noite, sentem que podem conversar, se encantam, se alegram. São mães dos alunos, ou moças e homens conhecidos da comunidade, que procuram um espaço para estar, aprender e

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conversar em paz algumas noites por semana. Se tivéssemos medido a altura e a quantidade das conversas que existiam nos primeiros meses e as que existem hoje, a diferença seria de um para cem. Na fala de uma das mães: “É gozado, lá embaixo (referência ao lugar em que moram), nós não conversamos, nos esbarramos. Aqui é uma ‘conversaiada’, é divertido”. É comum, ainda hoje, as mães chegarem e ficarem por alguns meses sentadas, “sem fazer nada”. O fato do Acaia não obrigar à realização de uma atividade ou produção, e oferecer diferentes oficinas, leva as pessoas a ter que escolher por conta própria o que querem fazer. Elas precisam iniciar um movimento de querer, de achar isso melhor que aquilo, e assim recuperar um pouquinho de suas culturas, pois a escolha está ligada à identificação. As conversas são cada vez mais de histórias de suas vidas, do tempo fora de São Paulo. Informalmente, como quem não quer nada, a cultura perdida reaparece. Nessas noites animadas, surgem as vezes histórias tristes e, cada uma com sua vontade, vai recolocando o humano e a alma em plano privilegiado dentro delas mesmas. O Acaia não tem como meta ensinar a costurar, mas é na costura que as mães se encontram. No final de 2004, elas receberam uma encomenda. Como havia uma diferença muito grande entre as habilidades de cada mãe, ficou resolvido que faríamos quadradinhos para serem aplicados em toalhas. As mães que se encorajassem mais poderiam bordar direto na toalha. Combinamos com o grupo de mães que para cada quadradinho seria pago dez reais. Àquelas que não bordassem, por optarem ficar na cozinha ou cuidarem de seus filhos que as acompanhavam, seria pago 30% desse valor. Era uma maneira de resguardar o tempo e o direito de escolha, ainda tênues. A confiança que as mães vão aos poucos construindo em relação aos vínculos conosco é muitas vezes abalada por seus medos, pela posição social que ocupam no mundo. Sentem-se sempre vistas com desconfiança, têm muito medo de serem mal-tratadas, de que gritem com elas. Têm medo de incomodar, de dar risada. Parece que existe uma ordem externa a elas, que elas não são capazes de compreender e que determina as possibilidades que se abrem e que na maioria das vezes se fecham sem que entendam o porquê. Além disso, não estão acostumadas a ter uma relação prazerosa com o trabalho. Assim, uma mãe que temia receber o que não lhe era devido e ser confundida com uma ladra, segurava com força o envelope com o dinheiro e teve o seguinte diálogo comigo: - Moça, você precisa me explicar, por que eu estou recebendo isso? Por que você me deu esse dinheiro? - Ela estava nervosa, suas mãos tremiam com aquele envelopinho pardo entre os dedos.

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- Você trabalhou, não trabalhou? - Eu lhe perguntei. - Olha - disse eu, tentando reconstruir a história -, você lembra que combinamos que cada quadradinho valia dez reais e que quem não bordasse ficaria com 30% desse valor? - Lembro, e daí? Por que esse dinheiro? - Você bordou, não bordou? Então, você recebeu o dinheiro dos seus bordados. - É, mas eu fiz um curso de manicure e não era assim! - Mas aqui não é um curso, você já sabia bordar, não sabia? - Sabia. - Então, aqui ninguém te ensinou nada, você fez o que já sabia fazer e este dinheiro é pelo trabalho que você fez. - Ah! Então é meu... Vou comprar uma sandalinha para minha filha. Ela foi de chinelo esse mês todo para escola, é ruim, ela fica mal vista assim. Eu posso comprar uma sandalinha? - Claro que pode, o dinheiro é seu! De uma outra mãe na mesma noite, com lágrimas nos olhos e mostrando as próprias mãos: - Não acredito, foram essas mãos que fizeram esse dinheiro! Eu tô muito contente, o trabalho ficou lindo, nem precisava do dinheiro. - Claro que precisava, é dinheiro do seu trabalho. - É a primeira vez que recebo um dinheiro pelo meu trabalho! Eu trabalhei a vida inteira e nunca recebi dinheiro nenhum para mim. As mulheres, na maioria das vezes trabalham muito, mas poucas vezes têm autonomia em relação ao fruto de seu trabalho. O dinheiro fica para o homem da casa, em uma relação difícil de compreender. Em muitas famílias a força de trabalho é feminina, mas a dominação masculina se faz sentir de forma autoritária, retirando da mulher todo o direito sobre o fruto de seu trabalho. Essas mães começavam a descobrir que sabiam muitas coisas, começava a surgir a bagagem esquecida pela necessidade de atender às demandas imediatas da família. Elas inauguravam um tempo no qual suas histórias podiam despontar. Descobriram que o trabalho pode ser alegre, prazeroso, enriquecer humanamente e encher a alma. Hoje este grupo de mães já organizado participa de algumas feiras de artesanato e, por iniciativa própria, começou a fazer uma associação.

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2.3 HISTÓRIAS DOS TEMPOS

O corpo e o jogo - um só movimento.

O que queríamos nós? O que queria cada um? Quais eram nossas expectativas? Demoramos muito tempo para compreender que deveríamos deixar que as crianças, à maneira e ao tempo delas, respondessem às nossas perguntas. Por força das circunstâncias, entendemos que, no momento inicial, as crianças precisavam experimentar suas desorganizações e forças disparatadas em um lugar seguro. Era importante que, ao se manifestarem descontroladamente, encontrassem do outro lado algum tipo de compreensão. A desordem não cairia no vácuo e a resposta à ela era afetiva e de contenção cuidadosa. Aos poucos, as crianças iam criando uma separação muito clara entre elas e o todo desestruturado em que viviam. Umas iam para marcenaria e conseguiam, cada vez por mais tempo, trabalhar concentradas, outras, nas aulas de culinária, começavam a aprender que não se pode abrir um saco de farinha como se rasga um papel, porque a farinha voa para todos os lados. Fazer pão passou a ser mais divertido do que espalhar farinha pelo ar. Os movimentos motores das crianças foram, pouco a pouco, se adaptando às perspectivas que elas começavam a construir. Se, até então, deixar as ferramentas

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desordenadas era um hábito, mesmo porque nada de muito importante era construído com elas, nesse momento começaram a adequar os movimentos à ordem e ao tempo, aos desejos que começavam timidamente a surgir. Desejo era uma novidade. Não o desejo de possuir, mas o desejo de conhecer, de construir uma história que se parecesse com cada um. A única maneira de realizar esse desejo era construí-lo, e construir exigia ordenação e proximidade com as suas próprias histórias. Ordenação nas relações de trabalho e nas relações entre eles. As crianças precisavam escolher entre uma ou outra atividade. A necessidade da escolha acentuava o movimento de auto-reconhecimento. Era necessário construir vínculos afetivos com os coordenadores das oficinas. Começavam a surgir pequenos sinais, tais como: as crianças chegavam perto; falavam um pouco mais baixo; começavam a nos olhar nos olhos. Aos poucos, em suas casas conquistavam uma posição diferenciada. Na fala de uma menina: “Lá em casa, agora, no meu lugar, tem que ter garfo e faca.”. A mãe só come de colher. Demorou muito tempo para que as mães entendessem que a marcenaria não era um lugar só de brincar. Nos primeiros anos de Acaia, a relação da comunidade conosco era muito semelhante à relação que estabelecem ao pedir esmolas. Percebemos que ser pedinte é um hábito cultural. Hábito este que está arraigado há muitas gerações, construindo a idéia de que só recebem alguma coisa se não tiverem nada a oferecer. Uma de nossas primeiras decisões no Acaia foi: “Não damos nada!”. Éramos nós que tínhamos que dar conta de nossas angústias ao vê-los sem casaco no frio. Nós que nos afligíamos com os chinelos. Muitas e muitas vezes nos perguntávamos e continuamos nos perguntando: o que queremos com esses meninos? O que podemos oferecer a eles? Uma coisa é certa. Sem conhecê-los, sem sabermos intimamente quem são, de onde vêm, como é o meio em que vivem, não podemos fazer muita coisa. Cada um de nós da equipe de coordenação traz uma bagagem própria, tem histórias e expectativas próprias. Sem perdermos a individualidade, precisávamos de uma linguagem comum. Nada melhor do que ter como ponto de partida as necessidades de cada criança e, como ponto de chegada, a ampliação de seus limites. As atitudes das crianças inundavam-nos de dúvidas. Como juntar tudo: o comportamento, curso profissionalizante, limpeza, higiene, ordem, conhecimento de leitura e escrita e muito mais coisas que íamos descobrindo? Por sorte, não dava tempo. Eram crianças mais rápidas do que nós. Brotavam desejos por todos os lados, e os desejos eram tão disparatados como as próprias crianças. Capoeira foi um sucesso.

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O corpo dançava lindo e pleno um ritmo conhecido. A música ordenava o movimento. A marcenaria, como sempre carro-chefe, não parava de martelar e juntar pedacinhos de madeira. Um menino, que recentemente foi visitar o irmão na Febem, nos contou: “Lá é horrível, tudo cinza e fechado, as portas são grossas e, sabe...”, mostrando com os dedos, “lá não tem nenhum pedacinho de madeira para ele fazer nada”. Ou seja, lá não é possível criar indivíduo nenhum, está presente a “situação do bolo”. Onde não se identifica nada, não se individualiza nada. Os meninos foram se organizando, e nós também. Cada vez mais próximos da comunidade, cada vez mais conhecedores das dificuldades. Com a ajuda do professor de música, que chamava atenção para meninos da necessidade de mais concentração, meninos que tinham evoluído e poderiam evoluir mais se tivessem melhores condições de trabalho, nos convencemos de que era necessária uma ordem que desse conta de ajudar as crianças a perceber que já tinham andado um longo caminho. Éramos bombardeados por críticas dos professores que trabalham no Acaia uma ou duas vezes por semana. Eles nos diziam que nós não ajudávamos, que a ordem tinha que partir de nós, que tínhamos que ajudá-los a produzir e melhorar o que já realizavam. Como fazer isso sem endurecer demais? Como fazer isso sem impossibilitar a presença de meninos e meninas bastante desorganizados?

O canto escolhido na procura do ritmo próprio.

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3. OS DOIS MOMENTOS DA ACAIA No decorrer desses oito anos fomos construindo a idéia do que é o Acaia, seu funcionamento e suas regras. Chegamos a algumas conclusões. O Acaia é um lugar entre clínica e escola. É importante ressaltar aqui que nós não vemos essas crianças como doentes ou como crianças que tenham distúrbios. Seus desacertos são fruto de uma saúde excessiva, eles têm dez braços e quinze pernas, tem energia de sobra e, do lugar de onde vêm, não há espaço para tanta saúde. A grande maioria das crianças hoje freqüentadoras do Acaia escolheu vir para cá; elas vieram sozinhas bater à nossa porta, pedindo por conta própria para entrar na Marcenaria. Elas podem ter de sete a dezessete anos. Hoje em dia percebemos melhor a diferenca entre as duas equipes que trabalham no Acaia. A primeira é composta por profissionais que trabalham diariamente no Ateliê: a diretora, a coordenadora pedagógica, a psicóloga, coordenadores dos ateliês de arte e marcenaria, coordenadores de biblioteca, uma coordenadora de parcerias e projetos, quatro funcionários operacionais que cuidam da cozinha e manutenção, e equipe administrativa - uma coordenadora e uma auxiliar. Essa equipe faz a tarefa do acolhimento. A segunda equipe é formada por professores que vêm ao ateliê uma ou duas vezes por semana para dar aulas de habilidades específicas. São eles que permitem que ocorra a autonomia. No convívio diário, o acolhimento consolida o vínculo que, segundo a escolha da criança, pode ser construído com qualquer membro da primeira equipe, pertença ele ao pedagógico, administrativo ou operacional. Todos devem estar preparados para acolher com atenção uma criança que se aproxima e ouvir suas histórias, mesmo que o resultado desse acolhimento prejudique por um momento a tarefa para a qual está designado. A equipe fixa é quem escuta os relatos dos fatos ocorridos na escola, na família, na rua, quem ajuda no banho, quem faz as refeições junto com os alunos - aproveitando todos esses momentos para intervir positivamente na sociabilização. Até mesmo a atividade de acompanhar os meninos do período da manhã do Acaia até o portão da escola, que a princípio foi criada devido à reclamação dos comerciantes vizinhos, para conter os transtornos causados pelo grupo de pequenos que invadiam o comércio, xingavam, atiravam pedras e cometiam pequenos furtos, com o passar do tempo perdeu seu caráter original de contenção, adquirindo a posição de atividade afetiva, quando coordenadores passam a oferecer a proteção e o cuidado que toda criança necessita, transformando aqueles que antes ocupavam o papel de

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agressores em estudantes. Depende dessa equipe também preparar a criança para as aulas dos professores que vêm ao Acaia uma ou duas vezes por semana, possibilitando que as atividades se desenvolvam mesmo sem a presença desses professores, dado que é possível estudar música, cozinhar, jogar capoeira, etc., mesmo fora dos dias marcados para tais atividades. Os ateliês e salas estão à disposição daqueles que quiserem praticar o que foi aprendido na aula. A relação entre as duas equipes nem sempre é um mar de rosas. Muitas vezes os professores cobram da equipe fixa atitudes mais objetivas e ações mais concretas no sentido de possibilitar que o aprendizado específico ocorra da maneira mais plena. A equipe fixa se vê às voltas com todas as histórias e acontecimentos humanos que tem que dar conta, muitas vezes se atrapalha ao tentar conciliar a necessidade afetiva de acolher as crianças com os tempos que lhes são próprios e o interesse pontual de cada aluno em se desenvolver em determinada aula. Assim, a equipe fixa se vê constantemente pressionada por maior organização e, por seu lado, solicita aos professores uma postura mais familiarmente acolhedora com os alunos. Nesse balanço entre acolher e crescer vamos vencendo nossas dificuldades como equipe, e até hoje as crianças têm saído ganhando nessa queda-de-braço. Desse modo, o Acaia organiza seu trabalho em dois grandes momentos: acolhimento e autonomia.

Foram muitos anos para poderem encontrar com tranquilidade os livros.

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3.1 O ACOLHIMENTO O acolhimento acontece em dois tempos. Há o recebimento, onde nada é exigido da criança além da coerência entre o seu desejo de estar na marcenaria e a sua freqüência. É comum que esta criança vague, como vaga nas ruas, por dias ou meses. Nesse vagar, espia as atividades, põe o rosto na porta da biblioteca, da cozinha, passeia, vai aos poucos sentindo onde pode entrar, em que espaço sente-se melhor. Assim muitos deles chegam ao Acaia. Esse é um primeiro momento, o momento do fazer/fazer, em que, muitas vezes, o movimento físico das crianças não permite que as construções se realizem. Os braços vão para um lado, as pernas para outro, os olhos circulam por todos os cantos em busca de possibilidades. É um fazer caótico, de poder viver o caos num ambiente protegido, sem ser julgado. Nesse primeiro momento, o fazer é um organizador interno, estruturante. É na parte da manhã, período freqüentado pelas crianças menores(entre sete e doze anos), que está a maioria das crianças mais desorganizadas - não que no período da tarde não apareçam muitas crianças nessas condições, mas são mais velhas e possuem mais recursos para lidar com seus movimentos. No momento do recebimento, o Acaia funciona como uma grande família. As crianças chegam por volta das sete horas da manhã, embora o portão do Acaia só abra às oito. Nessa hora de espera, ficam sentados em um banco que pusemos na calçada. A coordenadora, quando chega antes das oito, espera do lado de fora para entrar com as crianças, sinal de que estão juntos, são companheiros de um mesmo grupo. As crianças entram, tomam o café da manhã e têm à disposição três espaços organizados para se envolverem em atividades. Assim é o recebimento: - Uma atividade acontece na biblioteca, com dois coordenadores que estão disponíveis para contar histórias, acompanhar no dever da escola e fazer jogos como: memória, jogos matemáticos, etc. Como são sempre os mesmos coordenadores que estão presentes, eles sabem muito de perto o que cada criança mais gosta ou precisa. As atividades ligadas à alfabetização tornaram-se um grande desafio para nós. Embora a maioria das 53 crianças matriculadas no Acaia em 2005 freqüentasse as escolas públicas do entorno, poucas apresentavam conhecimento compatível com as séries que cursavam. Para sermos mais exatos, apenas 2 crianças tinham domínio sobre a matéria ensinada na série que cursavam. Tínhamos, portanto, um grande contingente de analfabetos nas segundas, terceiras e quartas séries. Ao final de 2004, ficou decidido que não daríamos ajuda nas lições de casa, pois essas eram sempre cópias de texto ou a escrita por extenso de numerais que

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preenchiam 5 ou 6 folhas do caderno. Era preciso agir com urgência pois as oficinas oferecidas desenvolviam habilidades que esbarravam no analfabetismo, fazer marcenaria sem matemática, culinária sem português, por exemplo, limitava o potencial da criança. Os livros consultados de português e matemática eram sempre muito específicos, direcionados a uma sala de aula onde a atividade tem começo, meio e fim. Não era esse o nosso caso, nem queríamos fazer da biblioteca um arremedo de escola. Decidimos então comprar uma cartilha para cada aluno que poderia usá-la quando quisesse, desde que sob a orientação da coordenadora da biblioteca. O fato de cada criança poder ter seu livro etiquetado, com seu nome e à sua disposição na estante da biblioteca alvoroçou a moçada. Então, no período das 8h30 às 9h30, um bom número de meninos e meninas se reunia para fazer as atividades d cartilha, todas bastante simples. A cada acerto o grupo era exageradamente elogiado, fosse pela beleza da pintura, pela letra caprichada, enfim, tudo era usado com o objetivo de mostar à criança sua capacidade de aprender, pois todos traziam em si o estigma de fracassados. Essas quase “brincadeiras” envolvendo a escrita e a matemática foram, pouco a pouco, dando segurança aos alunos e transformando uma coisa temida em atividade estimulante. Da cartilha passamos para os livros de texto curto e para as contas e tabuadas. Era para eles tão prazeroso que, volta e meia punham-se a ler em jogral para as pessoas que visitavam o Acaia, ou a querer medi-las para saberem sua altura por conta do concurso do mais alto do Acaia. Ao final de 2005, a maioria dos meninos e meninas estava alfabetizada. Alguns já sabendo se utilizar do jornal. Contamos com o suporte do grupo de psicologia experimental da PUC, cujos estagiários, sob a supervisão da Dra. Nilza Micheletto, vêm ao Acaia duas vezes por semana trabalhar as dificuldades do aprendizado e nos direcionar nas atividades diárias da biblioteca, produzem apostilas com exercícios que, pouco a pouco, acompanham os progressos obtidos. - No pátio há um canto para jogos de grupo, como “tênis”, “vôlei”, “futebol”. Os coordenadores também são sempre os mesmos, assim obtêm intimidade e conhecimento suficiente para saber quais crianças têm mais ou menos dificuldade de interação, respeito às regras, capacidade de frustração, etc. O pátio do Acaia não é grande e a improvisação impera. Estende-se uma rede na área da entrada, constroem-se

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raquetes na marcenaria e pronto, temos nossa “quadra de tênis”, que pode ser também de futebol ou de brincadeiras de correr. - A terceira “atividade” é espalhada por vários espaços: na horta, no cantinho do terreno, que as crianças chamam de bosque, no tabuleiro de jogos ou pulando corda. Tudo no Acaia se transforma, e é assim que podemos dizer que temos “um lindo bosque”, de árvores bem cuidadas pela coordenadora do Ateliê de Artes, que é do Acre e tem um carinho especial pela área, não maior que 5 por 2 metros, mas que guarda tanta memória, carinho e esperança. Há troca de informação entre os coordenadores. Assim, eles, entre eles se ajudam e tentam encaminhar do pátio para a biblioteca alunos com dificuldade de leitura e escrita. Esse encaminhamento não é um dito: “vá lá na biblioteca aprender a ler”, mas uma busca íntima de aproximação. O coordenador da biblioteca, que também é o coordenador da marcenaria, aproxima-se de um garoto no pátio, fala de uma história, de um jogo que está na biblioteca ou mesmo que na biblioteca tem uma foto linda dele pendurada no mural, que no jornal tem uma notícia bacana sobre um assunto que o menino gosta. Assim, aos poucos - um aos poucos que às vezes são meses -, o menino vai ajustando o seu espaço interno ao espaço do Acaia. O outro, que não sabe se defender, é pouco a pouco levado ao pátio dos jogos coletivos, e assim cada criança vai sendo acompanhada de perto nos seus desejos e dificuldades. Às nove e meia é a hora da fruta, que é servida em uma bandeja grande, e cada criança se serve de melancia ou de laranja. Depois da fruta, começa o segundo momento do acolhimento, abrem-se as oficinas: marcenaria, artes, costura... Naturalmente as crianças se encaminham para a área na qual conseguiram se sentir mais à vontade. Esse sentir-se à vontade está intimamente ligado à pessoa com quem a criança conseguiu estabelecer um vínculo forte, nesta escolha inicia-se o processo de autonomia. Como a participação nesses espaços é livre, elas podem experimentar uma e outra atividade,. Em cada dia da semana há um tipo de aula específica: música, culinária, capoeira, xilo, dança, vídeo, animação. As crianças têm livre acesso às aulas, os grupos se formam de acordo com o desejo e a capacidade de sustentar um período de maior concentração. As aulas específicas exigem mais das crianças, requerem maior atenção, mais habilidade e a idéia de continuidade. Há um esforço da coordenadora de encaminhar cada criança para experimentar todas as aulas. Isso às vezes pode demorar anos, mas acaba acontecendo. Às onze horas começam a se encerrar as atividades da manhã e os ateliês e oficinas são arrumados. Chega então a hora do banho. A coordenadora da costura, das

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artes e os marceneiros se encarregam de acompanhar e orientar o banho. Esse é um momento precioso, é quando aparecem histórias muitas vezes contidas, quando a ansiedade dos grupos se apresenta mais fortemente. Conforme as crianças vão terminando o banho, um dos marceneiros está no pátio esperando para recebê-las. Enquanto aguardam a hora do almoço, ficam juntas no pátio, em geral em volta das mesas, com livros de histórias. É um momento lindo, onde uma roda de crianças se junta para ouvir histórias. Hoje em dia, os mais avançados na leitura já formam suas próprias rodas e com muito orgulho reúnem seus ouvintes. 3.2 A AUTONOMIA: ESCOLHA E HABILIDADE Para muitas crianças, é a escolha de uma atividade específica que inaugura o segundo momento, quando o menino, agora de bem consigo mesmo, tendo conquistado o controle dos movimentos tanto internos como externos, começa por conta própria um trabalho de construção de seu mundo e de seus valores. Inicia-se a autonomia. O que chamamos de momento da autonomia tem por objetivo o mais difícil dos movimentos, o de juntar coragem para ir ao mundo dito saudável. Nessa hora, o fazer é o único caminho para o mundo com todas as suas exigências. Entrar nessa outra sociedade, não como pedinte que já não é mais, mas como dono de sua pessoa e possuidor de desejos e de experiências a compartilhar.

Aula dada peloso meninos do Acaia em escola do bairro: a alegria de ter o que ensinar.

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No Acaia, o menino experimenta as diferentes possibilidades de trabalho. A escolha da oficina com a qual se identifica mais já foi feita. A continuidade, a segurança nos vínculos formados e a certeza de uma rotina são o porto seguro para que a criança comece a aprimorar suas habilidades com mais concentração e maior auto-exigência nos trabalhos a serem realizados. O processo que iniciou-se com a escolha das oficinas, permeará toda a vivência da criança no Acaia. É o tempo quando então o menino, dono de boa capacidade produtiva e com sua área de atuação já definida, vai se aperfeiçoar. É a ocasião de criar e disponibilizar no Acaia espaços diferenciados para o encaminhamento de trabalhos de maior grau de dificuldade, que necessitam de maior concentração e de locais adequados para sua execução. Aqui as crianças passam a exigir mais perfeição de seus trabalhos, esforçam-se por mais atenção e nós lhes ajudamos nesse caminho ao exigir o comportamento adequado para que consigam alcançar o desejo que já são capazes de ter. Quando os meninos e as meninas completam quatorze anos, eles podem aderir ao programa de estágios, que preferimos chamar de extensão de aprendizagem. Nós os encaminhamos para vivências profissionais em pequenos escritórios, oficinas mecânicas, buffets, ateliês diversos, etc. A freqüência é variável, iniciando, geralmente, com duas vezes por semana, por meio período, podendo se estender a meio período semanal. Mediante uma boa avaliação, tanto de quem recebe o aluno como nossa tendo como critérios: freqüência, sociabilidade, engajamento, entre outros -, os jovens passam a receber uma bolsa que varia entre 1/6 e 1/2 do salário mínimo. Promovemos também aulas individuais de música, dança, saídas para espetáculos ligados às diversas áreas com que trabalhamos no Acaia. Todas estas ações têm a função de ajudá-los a construir com o mundo uma possibilidade de inserção saudável no acesso à cultura e às experiências profissionais. Os programas de estágios (extensão de aprendizagem) e de cultura compartilhada têm por objetivo ajudar, muitas vezes inaugurar na criança o hábito de sair de sua comunidade, não como “pobre coitado”, mas como aluno ou aprendiz. Os estágios não visam, num primeiro momento, ao aperfeiçoamento do aluno na habilidade específica do lugar para o qual foi encaminhado, mas, aprender a pegar ônibus, a dar bom dia a pessoas que nunca viu, a se vestir adequadamente para uma situação de trabalho, a ter que se haver com o mundo pelo qual sempre se sentiu rejeitado e que portanto, reagia agressivamente. São muitas as etapas para que isso ocorra. São muitos medos que têm que ser superados, medos que também seus pais e seus avós ainda possuem. Os estágios são organizados iniciando-se com duas tardes por semana. Esse pode

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ser um tempo inadequado para o aprendizado dentro de uma pequena fábrica, buffet ou escritório, mas este é ainda um menino que está se fortalecendo emocionalmente e nesse momento ainda é importante que mantenha seus vínculos com o Acaia. A experiência nos mostrou que crianças que após o primeiro estágio já conseguiam empregar-se são menos desenvoltas do que aqueles que passaram por 3, 4 ou 5 estágios diferentes antes de serem empregados. Como nosso programa de estágio visa ao fortalecimento humano e à desenvoltura nos diversos relacionamentos e não à profissionalização, muitas vezes temos dificuldades com os estabelecimentos que recebem estes jovens, pois estes lugares estão acostumados a receber estagiários que desenvolvam e cumpram tecnicamente uma tarefa. Isto também é o objetivo do Acaia, mas certamente não o primeiro. As aulas de cultura compartilhada são aulas que pagamos para os alunos fora do Acaia. São 4 alunos que fazem aulas de música em uma escola particular, 3 em uma academia de dança, 3 no Museu Lasar Segall.Três outros meninos que são atendidos em consultórios particulares de psicanálise, estes tem o atendimento doado pelos profissionais que os recebem. Esse programa atende a crianças em duas situações diferentes. De um lado temos as crianças que realmente se desenvolveram muito, por exemplo na música, e precisam de uma atenção particular para continuarem evoluindo. De outro lado temos crianças que ainda não se desenvolveram tanto, mas não conseguem se estruturar dentro do Acaia. Assim, a saída para uma aula é um prêmio àquele que aparentemente não o merece. Esse menino exige que responsabilidades lhe sejam atribuídas para que tenha consciência do seu próprio crescimento. Sua saída o torna “menino-grande” e ele se vê obrigado a encontrar forças internas para se haver com uma atividade que aprecia muito. Nos dois casos a idéia é dar oportunidade ao menino de estar no mundo como qualquer outro menino, dividindo espaços e relacionando-se com crianças de outras classes socioculturais. Essas aulas individuais fora do Acaia e as saídas para espetáculos e exposições não estão atreladas à idade dos estágios, podendo acontecer antes dos quatorze anos. Quando acontecem, estão geralmente associadas à necessidade de algum aluno de se estruturar. Muitas vezes, para que isso aconteça é necessário que o menino tenha responsabilidades maiores sobre si mesmo. A oportunidade de freqüentar uma aula em uma escola distante do ateliê, envolver-se com crianças novas, diferentes daquelas com as quais está acostumado, ajudam-no a se organizar, a ganhar confiança e a retornar ao Acaia com o sentimento de ter conquistado mais um degrau

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no seu caminho por autonomia. E dessa maneira, vai modificando sua forma de estar em sua comunidade. Essas aulas e “estágios” acabam gerando apresentações de música e dança, exposições de xilogravura, que promovem a integração desses meninos e meninas no grupo social mais amplo, em universos socioculturais anteriormente impensáveis e inatingíveis. 3.3. ACOLHIMENTO E AUTONOMIA COEXISTEM

Meio bicicleta meio carro, todo o cuidado para poder andar por outros mundos.

Planejamos passeios com todas as crianças, independentemente do tempo que estão conosco. Cada uma delas é capaz de aproveitar essas saídas de acordo com o seu momento. Organizamos piqueniques nos parques e praças próximas ao Acaia, visitas à stação de ciências, museus, galerias, teatro, lojas, restaurantes, etc. O caminho para o mundo é construído ao longo de vários anos. É uma situação muito comum estarmos com garotos grandes no ponto de ônibus, no início de algum desses passeios, e alguém que está passando na rua nos perguntar: a senhora está sendo incomodada?, ou sermos delicadamente expulsos do parque porque o nosso grupo faz muito barulho, é saudável demais. A convivência desses

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jovens e crianças com a cidade é sempre pautada por muitos nãos. Tentamos construir a idéia de que, mesmo com tantas recusas, eles são capazes de sair dos guetos em que estão metidos, sair e ganhar mundo sem perder suas identidades e histórias tão ricas de experiências. Histórias e experiências que nós, os de fora do gueto, desconhecemos e que só podem nos enriquecer, enriquecer a cidade. Ajudá-los nessa passagem do gueto para a cidade é nosso constante trabalho. Há primeiro um trabalho interno, de conquistas e descobertas dentro do próprio Acaia, em que as crianças saem de casa e se apropriam de um novo mundo onde precisam descobrir seus desejos, fazer escolhas, para só então serem capazes de desenvolver suas competências e habilidades pessoais. Para que esse domínio possa acontecer de forma própria a cada criança, foi preciso organizar os espaços e os tempos no e do Acaia. Aprendemos a respeitar o tempo de cada um, tempo de zanga, de ócio, de indecisão, de solidão, de ser acolhido quieto, tempo de atividade solta e de oficinas organizadas. Espaços onde este tempo possa ter vazão e razão de ser. Nesse caminho de achar o que pode ser seu dentro de um mundo exterior à casa, mas ainda doméstico, existe a vontade de experimentar e o medo de errar. Por isso é comum que, uma vez encontrada a atividade em que o risco de errar parece ser menor, a criança deixe de desejar e de experimentar outras possibilidades de caminho. Nessas horas, a equipe tem que estar atenta para que a criança não se antecipe em uma especialização. Para nos contrapormos a esse movimento de encasular-se em busca de segurança, nós encaminhamos para a biblioteca meninos e meninas já hábeis na música, costura, marcenaria, mas sem condições de se apresentar verbalmente ou escrever minimamente um texto. Seguros no Acaia, é preciso que eles sintam-se capazes de sair para a cidade. É essa a função dos estágios, cursos externos, passeios, aulas de instrumentos musicais, de dança, etc Temos a esperança de que o tempo seja suficiente para que esses jovens possam dar o salto. Para alguns já não foi, o tráfico chegou primeiro e os aliciou. Vez ou outra retornam ao Acaia e, como alívio para seus medos, nos abraçam. Como devolutiva do amor recebido um dia, garantem que nada nos acontecerá de mal. Qualquer perigo é só mandar avisar e eles darão um jeito. Para se sentirem ainda queridos, pedem curativos. Além dos pequenos arranhões, aparece um tiro no braço, que um amigo sem querer deu. Olhar aquele moço de aparência estranha, sentir carinho, torcer pelo impossível, que ele recupere sua vida de jovem, não sentir medo algum de sua presença é enlouquecedor.

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Dias atrás, alguém perguntou se não tínhamos medo quando um bando de meninos se desorganiza e vem porta adentro como internos rebelados da Febem. Respondemos que não. Não mesmo. Sabem do respeito e da dedicação do nosso trabalho. Sabem que aqui é o único lugar em que podem dar vazão às suas revoltas: serem ouvidos, acalmados, sem ficarem estigmatizados. Então, como mágica, quinze minutos depois, estamos todos em atividade, lendo histórias, fazendo lição.

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4. AS CRIANÇAS, O ACAIA E AS REGRAS DO MUNDO

Entre ritmo e brincadeira se faz a ordenação social.

Formou-se na marcenaria um grupo de quatro meninos ultraconcentrados e trabalhadores, capazes de uma produção de tanta qualidade que receberam uma grande encomenda de uma peça para fisioterapia. Um desses meninos passou esse ano para a turma da tarde. Enquanto esteve na turma da manhã, era bastante desorganizado. Muitas e muitas vezes tivemos que abraçá-lo para contê-lo. O coordenador que o acolhia era sempre sujeito a mordidas, cuspidas e pontapés. Em um desses episódios, depois de duas horas abraçando o menino, o marceneiro recebeu uma mordida no braço. Sua resposta: “Oh! Garoto, carne assim é ruim, é melhor pôr sal”. Esse menino, ao passar para tarde, formou, junto com os outros três, a turma dos marceneiros. Absolutamente excepcional. Dia destes, no começo do período de uma tarde, a coordenadora é chamada à porta do Acaia. Chegando lá, encontra os três garotos de ouro e mais duas meninas acompanhadas de um segurança de um depósito de frutas aqui da rua. - Senhora, estes garotos estavam em cima do caminhão da minha companhia, roubando mangas. Nós pedimos para eles descerem, mas foi difícil contê-los, então eu os trouxe até aqui. Sentamos para conversar. Em um banco estavam os garotos que tinham sido trazidos pelo segurança. Em uma mesa estavam as mangas e o aparelho de fisioterapia que eles tinham feito. Com cada um em uma mão, eu dizia: - Qual é a diferença entre estas duas coisas?

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- Uma é de comer, a outra, não. - Uma é de madeira e a outra é uma fruta. - Mas tem uma diferença maior - eu disse -, uma é fruto do trabalho de ladrão, a outra é fruto de trabalho de meninos que aprenderam e estão aprendendo muitas coisas, trabalho de meninos que estão construindo um caminho diferente daquele que vocês conhecem. Hoje, vocês são capazes das duas coisas: de ser ladrões, bandidos, ou de continuar a aprender e se tornar hábeis como seus mestres da marcenaria. Cabe a vocês a escolha. Nós só podemos mostrar um caminho, que talvez seja novo para vocês e acolhê-los como meninos saudáveis, quando, lá fora, normalmente acontece o inverso, são acolhidos como bandidos. Vocês sabem perfeitamente o que teria acontecido se o segurança tivesse encaminhado vocês à polícia ou à Febem, sabem melhor do que nós o que é a Febem ou a polícia, então vocês têm que escolher. Na sala estavam presentes a professora de costura, muito querida e respeitada pelas meninas e os coordenadores da marcenaria, verdadeiros mestres. Falaram de suas decepções em relação a meninos tão capazes e bacanas, do medo de ver estes garotos perdidos, e da tristeza imensa de perceberem que toda a relação que construíam poderia virar coisa de bandido. Para o dia seguinte estava agendado um passeio ao Teatro Alfa do qual participariam os meninos e as meninas que estavam ali. Como punição, eles não iriam ao passeio. Os meninos saíram muito abatidos da reunião; a professora de dança, penalizada por vê-los tão abatidos, intercedeu, dizendo: “Não é tão grave assim, nossos filhos também roubam no mercado”. Só se deu conta da necessidade do castigo, quando observamos que para esses meninos as conseqüências são mais graves, a simples presença deles em uma loja do shopping é motivo para mobilizar todos os seguranças, gerando imediatamente uma situação de perigo. Pouco tempo depois fomos convocadas a uma reunião com as meninas. Elas diziam: “Nós não tivemos culpa, não roubamos nada, só estávamos perto. Eles deram mesmo umas mangas para nós, mas não fomos nós que roubamos”. Tentamos mostrar a elas que aquela não era a primeira vez que se metiam em confusão por estarem perto de quem faz a confusão. Chamamos a atenção para o fato de que se alguém está ao lado de uma pessoa que fuma maconha e a pessoa não está fumando, no momento em que a polícia chega, ela leva todo mundo sem perguntar quem é quem. Se alguém dá a outra pessoa um objeto roubado, quem recebe o objeto é cúmplice do roubo. Estávamos tentando dizer para se manterem afastadas de situações confusas e de risco. É difícil para elas distinguirem que situações são estas, uma vez que vivem em um meio no qual a ilegalidade impera. Pouco depois de terminada esta reunião, fomos chamadas a uma nova reunião,

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desta vez com os meninos: “Olha, nós queremos dizer que as meninas não tem nada com isso, é nossa culpa, queremos pedir que vocês deixem elas irem ao passeio amanhã”. Ressaltamos a beleza da atitude deles e repetimos a mesma conversa que tivemos com as meninas. Eram crianças tentando restabelecer posições sociais conquistadas dentro do Acaia, eram meninos testando nossa compreensão. Passaram o resto da tarde calmos e produtivos, rindo, jogando e brincando como meninos que são. No dia seguinte a professora de português foi a uma livraria e queria levar cinco meninos. A coordenadora escolheu os cinco punidos na tarde anterior. Ficava assim restabelecida a relação de confiança e, mais, era dada a eles uma condição que raramente essas crianças têm: a possibilidade de retratação de uma atitude mal pensada. 4.1 A RELAÇÃO COM A COMUNIDADE

A alegria de podermos conhecer este mundo.

Nos primeiros tempos, as mães nos viam como um espaço para brincar, e isso era uma complicação; intuíamos que o trabalho era de fortalecimento humano e não de adquirir habilidades técnicas, e este trabalho não só leva muito tempo para se consolidar como demora a aparecer Sistematicamente chegavam crianças que tinham apanhado muito por terem desobedecido a mãe ou por terem sido criticadas na escola. Chamávamos as mães, elas não apareciam. Demorou muito até que pudessem vir com tranqüilidade.

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Começou aparecendo uma ou outra mãe para justificar a falta do filho, que estava ausente do Acaia por ter recebido castigo da mãe, e a pena que lhe impunha era justamente não vir à “Marcenaria”. Nestas conversas tentávamos mostrar o quão importante para a criança era a “Marcenaria”, mas nossos resultados ainda eram tênues e, de fato, nossa relação com a comunidade, além das crianças, ainda não existia. Foi somente o tempo e um grande esforço que fizeram com que conseguíssemos nos aproximar das mães. Descemos ao Cingapura e às favelas onde moram, fizemos visitas às famílias, perguntamos pelos filhos ausentes, conversamos. Nos dias de hoje ficamos muito felizes quando uma senhora, que é tia de um menino de quem cuida, pois a mãe está na cadeia. Diz: “Puxa vida, só tenho alívio quando as moças da Marcenaria vêm aqui”. Nestas visitas tentamos enfatizar como as crianças têm melhorado, como estão mais calmas, como constroem coisas bonitas. Pouco a pouco fomos fazendo um bom vínculo ao respeitar os medos e as dificuldades, não julgar condições de abandono ou mesmo de violência familiar; procuramos sempre alertar para uma atitude que, pensamos, poderia ser encaminhada de outra maneira. No final de 2004 começamos a descer com mais freqüência, fizemos junto com as crianças várias lixeiras e dois bancos para a comunidade, era o começo de uma aproximação mais determinada. No começo de 2005, começamos a reforma de um barraco onde moravam duas senhoras sozinhas e debilitadas que não tinham ninguém que as ajudasse. Fizemos uma planta com a ajuda do Una - Escritório de Arquitetura. Os arquitetos foram conosco à favela, discutiram com as senhoras as suas necessidades, detalharam a planta e assim começamos o trabalho. Essa intervenção nos fez conhecer mais, sermos mais conhecidos e nos aproximarmos de uma realidade que é também parte fundamental do nosso trabalho. O que realmente rompeu as barreiras de desconfiança entre nós e a comunidade foi a forte chuva de maio de 2005, que resultou em uma imensa enchente nas favelas da Linha e da Japiaçu (mais conhecida como favela do 9, por causa do portão 9 do Ceasa). Logo cedo sabendo da situação de caos em que se encontravam as favelas, nós descemos (geograficamente, tanto para irmos ao Cingapura, como às favelas, descemos a rua do Acaia — Dr. Avelino Chaves — e atravessamos a Avenida do Ceagesp para chegarmos lá, o que fazemos em 5 minutos) e presenciamos uma situação desoladora e terrível. Estas foram as falas de muitos moradores: “Nossa! Vocês por aqui?”, “Como vocês chegaram, de helicóptero?”. Ninguém desceu, só o Acaia. Posto de saúde, vigilância civil, sub-prefeitura, escola, polícia, ninguém, apenas o Acaia. As mulheres pediam que entrássemos para ver a

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situação em que estavam, tudo destruído, água por todo lado. Alimentos, colchão, merda, ratos, cobertas, crianças, tudo misturado. Muitas pessoas se queixavam que não puderam ir trabalhar e que perderiam o emprego, barracos caindo. Andamos por toda a favela, andamos pelas duas favelas. Batemos de porta em porta anotando os prejuízos, conversamos, afagamos crianças. Não podíamos fazer muito, mas só de estarmos lá com os pés e canelas molhados, só de vermos a solidariedade de todos, o cuidado de uns com outros, já era o suficiente para estreitarmos os laços. Voltamos ao Acaia, juntamos os marceneiros e mais alguns meninos que desceram munidos de tábuas, pregos, martelo e etc. e, como numa operação de guerra, foram segurando, arrumando, sustentando, ajudando a limpar, enxugar. Eles foram também anunciando que à noite faríamos uma sopa e disponibilizaríamos os banheiros para um banho de desinfetante nas crianças. Fizemos contato com o Carrefour que nos doou grande quantidade de colchonetes, cobertas, roupas, cestas básicas. Alguns amigos também nos mandaram ajuda. À noite, entramos com o carro carregado de doações do Carrefour no pátio do Acaia, o que vimos foi uma barreira humana com rostos desesperados e aflitos, em uma passiva espera por ajuda. Existia um silêncio, uma ordem e um respeito imensos. Era a primeira vez que dávamos coisas, mas era uma situação extrema. Ficamos até tarde da noite com uma multidão à nossa porta pedindo, pedindo, pedindo. Nos dias que se seguiram, os esforços para reconstrução dos barracos redobraram. Era péssima a situação de algumas moradias. A enchente nos aproximou muito. Hoje, como prática, descemos toda semana, além dos marceneiros que ainda reconstroem barracos com a ajuda da comunidade. Nas descidas de hoje em dia, podemos escutar com satisfação: “Minha filha se alfabetizou no Acaia, não fosse o Acaia estaria ainda analfabeta”. A filha está na quarta série da escola pública. No começo do Acaia, quando ainda tínhamos apenas oito crianças, eu desci muitas vezes ao Cingapura para anunciar que estávamos com vagas e poderíamos oferecer alguma coisa às crianças. Eu ia à casa de uma senhora que tinham me dito ser líder comunitária. Fui umas dez vezes lá sem nenhum sucesso. Eu descia e ninguém subia, era assim. Um dia subiram quarenta: “queremos entrar agora e pronto”. Tivemos que dar um jeito. Anos mais tarde, estabelecemos um forte vínculo com os agentes de saúde, que aqui, vale dizer, são verdadeiros heróis desta situação toda. Fazem de tudo: visitam famílias, dão conselhos, marcam consultas, afagam, buscam ajuda de toda ordem e têm vidas muito duras como todos na comunidade. Uma agente de saúde, sentada no Acaia depois do almoço, vira-se para mim e diz:

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- Você não se lembra quando você ia lá em casa falar da Marcenaria? - Me lembro, e você não fazia nada! - É verdade, eu achava tão estranho aquela moça que ia tanto lá em casa, naquela época eu não tinha olho mágico na porta, se tivesse eu nem teria aberto. Você foi tantas vezes, que um dia eu resolvi ir ver do que você falava, mas demorou. - E por que você demorou tanto? - Olha, por que eu iria acreditar em você? Vai tanta gente lá prometendo tanta coisa, gente que nem quer saber quem somos. Foi a melhor fala dos últimos tempos. De fato, por que acreditar em mim? Quem era eu? Por que tomava essa liberdade? A liberdade foi conquistada, construída. Principalmente, estabelecemos ao longo destes oito anos uma relação de intimidade, respeito e admiração com a comunidade. Trabalhamos intimamente com o posto e com os agentes, que se tornaram companheiros na luta diária.Eles nos dão para notícias das visitas que fazemos, dos cuidados que precisamos tomar, de conversas, de desabafo. Grandes amigos.

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EQUIPE, COLABORADORES, DOADORES - 2006

Funcionários Equipe fixa Artes: Andresa Alves Ferreira Biblioteca e apoio pedagógico: Rosa Maria de Britto Suarez Marcenaria: Odimar José da Silva / Enio Alex Assunção Operacional: Rosângela dos Santos de Jesus, Edileuza Sena Silva / Nelson de Jesus Godoy Administração: Maria Inês Vieira A Camargo / Sheila Gonzaga Assumpção Coordenadoria de Parcerias e Projetos: Fernanda Caiuby Novaes Salata Coordenação geral: Olga Maria Aralhe / Ana Cristina Cintra Camargo Direção: Elisa Bracher Professores das aulas específicas: Animação: Laurent Cardon Artes noturno: Regina Sawaya Culinária noturno: Monica Vogt Capoeira: Geraldo S. Pinto Sobrinho Costura e Bordado: Bernadete de Oliveira Culinária: Nadia Pizzo Almeida Dança: Maria Beatriz Costilhes Padgorsky / Geni Collo Correa e Castro Design: Marina Grinover Música: Pedro Mourão Oficina de Texto: Maria Lucia Zoega Vídeo: Edgar Teodoro da Cunha / Ana Lucia Marques Ferraz Xilogravura: Fabrício de Jesus Barrio Lopez / Flavio Castellan

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Assessoria Jurídica: Sandra Alves Silva Assessoria Contábil / Financeira: Empresarial FS Auditoria: Price Waterhouse O Acaia sensibiliza importantes pessoas dentro da sociedade que emprestam seu tempo e trabalho: Supervisão institucional Psicológica: Prof. Dr. Tales Ab’Saber (a partir de 2003) Pedagógica: Prof. Dra.Nilza Micheletto (a partir de 2000) Grupo de alunos da Faculdade de Psicologia da PUC – Pós graduação em Psicologia Experimental - Programa de desenvolvimento de habilidades em leitura, escrita e matemática Assessoria de Desenvolvimento Cultural - Prof. Dr.Rodrigo Naves - Crítico e professor de História da Arte - Matias Mariani - Cineasta Ampliação de repertório: Thereza Dantas Bijuteria: Jacomo Pongeluppe Costura: Priscila Negrisoli Arquitetura: UNA arquitetos Advogada: Mary Livingston Saúde Cardiologia: Dr.Otávio Gebara Neurologia: Dr. Carlos Altieri Oftalmo: Dr. Ronaldo B. Barcellos Otorrino: Dr. André Duprat / Dra. Roberta Ribeiro de Almeida


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Odontologia: Dra. Adriana Paladino Dra. Renata Corrêa de Freitas Pediatria: Dr. José Brandão Psiquiatria: Dr. Fernando Ramos Asbahr Psicologia: Sonia Soicher Terepins Silvia Maia Bracco Solange Fecuri Cristina Parada Franch Arnaldo Bassoli

rojeto Parceiro: SARAGANA coordenação: Ana Amélia Inoue

Parceiros nos estágios Álvaro Wolmer Marcenaria Álvaro Rodrigues – Escola Técnica de Culinária Ateliê de Mosaico Sonia Lorenz Bita Encadernações, Caixas e Cerâmicas Bolachas Decoradas Fernanda Ribeiro Dali Molduras Dona Queja - Cozinha Industrial Editora 34 Espaço Coringa Ateliê de Xilogravura Fiesta – Produções Gastronômicas Fundação Padre Anchieta Radio E TV Cultura GBC Autoserviços - Oficina Mecânica

Idéias A Fio - Costura Mimi Soffer - Oficina de Pano OBB – Programa de Ação Social Outward Bound Brasil – viagens de campo Oregon Lanches Panacéia - Oficina De Costura Satiko & Yoko Roupas Tv Pingüim Via Blu - Pizzaria

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DOADORES CapitalGroup BrazilFoundation Nancy Englander Ric Torres Fundação Telefônica Amaury Pavani Ana Silvia Cintra Zürcher Alessandra Bresser Pereira Alberto Zürcher Beatriz Bracher Bureau 34 Candido Bracher Cecília Camargo Dr. José Brandão Editora 34 Fazenda Santana do Monte Alegre Fernão Carlos Botelho Bracher

Alegrense Francisco Manuel Ruas Pereira Geraldo Henrique Frei Grupo Ultra Heinz Gruber Henriaue Camargo José Irineu Manuel de Oliveira Saes Maria Alice Nobre Franciosi Mário Amábile Matias Mariani Sergio Villas-Bôas Sítio Rancho Alegre Sherrwin-Williams do Brasil Sonia Sawaya Botelho Bracher Terezinha Ralston Teresa Cristina Ralston Bracher

Agradecimento especial: Renina Katz - doação do instrumental pessoal de trabalho ao grupo de xilogravura do Acaia

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R. Dr. Avelino Chaves, 80 • Vila Leopoldina • CEP 05318-040 • São Paulo-SP • Brasil Tel fax: 55 (11) 3832.5804 • e-mail: acaia@acaia.org.br • www.acaia.org.br


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