Esquerda LATINO-AMERICANA São Paulo,2011
GEOPOLÍTICA
O domínio Kirchner Por que o kirchnerismo se impôs na Argentina depois da crise e por que as pessoas, a oposição, a imprensa e o governo evitam falar do período de quase uma década atrás
P
raça de Maio, outubro de 2011. Ela acena para a multidão que grita o seu nome. Com o
costumeiro sorriso vago, caminha – não sem dificuldades – até o palanque, onde fará seu primeiro discurso após ser reeleita, sem esperar a finalização da contagem dos votos. Não precisou. Os números apurados até então já decretavam sua estadia na Casa Rosada por mais um mandato. Aqui, no Brasil, o sociólogo aposentado, Carlito Juan Santiago, de 73 anos, assistia – através da internet – indiferente. Argentino e socialista assumido desde
Reportagem complementar à matéria intitulada Esquerda Latino-americana proposta pelo prof. Rodolfo Chagas para disciplina de Geopolítica e globalização.
sempre, Carlito não se diz nem contra nem a favor de Cristina Kirchner. Admite ter voltado ao
Ilustrações do cartunista argentino “El Niño Rodríguez” Site do cartunista: http://www.elninorodriguez.com/
país de origem em 2003 só para votar em Néstor (marido de Cristina, falecido em 2010). “Eu me
Grupo de estudo formado por: Debora Vasconcelos, Israel Dias, Maria Gabriela Fernandes, Milena Alves e Paloma Nunes
senti na obrigação de exercer meu direito de escolha. Meu país estava atolado em sua maior crise e eu,
São Paulo, novembro de 2011 NIÑO
como cidadão, tinha de ajudá-lo de
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alguma forma”, explica ele. 01
Com “os bons
ara o aposentado, a crise de 2001 –
GEOPOLÍTICA
a qual se refere acima – só não fora
O domínio Kirchner
P
ventos da
pior que a Ditadura Militar, de 1976. O período lhe
economia”,
traz à memória recordações ruins, porque nele
Cristina
LATINO-AMERICANA
perdeu pessoas de que gostava: O irmão mais jovem e uma namorada de infância, ambos na
Kirchner
lista dos cerca de 30 mil desaparecidos na época.
permanece no
me implorou para fugir dali. Disse que pressentia
guarda muitas lembranças do passado. Fotos,
que seria eu o próximo. Obedeci.”
livros, discos e charutos cubanos são alguns dos
poder.
Esquerda
E
m seu dormitório modesto, num retiro
“Depois que Ruan (o irmão) desapareceu, papai
para idosos, localizado em São Paulo,
Carlito foi para Paris. Lá se casou, teve
objetos que saltam aos olhos assim que se passa
filhos. Em 1989, voltou a morar na Argentina,
pela porta estreita.A música inconfundível de Astor
após um conturbado divórcio. Dois, de seus três
Piazzolla, Adiós Nonino, emana serena da antiga
filhos (todos meninos), partiram com ele. Lá
vitrola sobre a cômoda. Uma pequenina Argentina
viveu, entre idas e vindas da Europa, até 2002,
em terras brasileiras.
quando resolveu se mudar para o Brasil. “Meu
“Desde 2003, não voto mais, por puro desgosto.
filho do meio, que é médico, recebeu uma
Confesso que minha inércia me assusta. Menino
proposta de trabalho no Brasil. Minhas
ainda era apaixonado por política. Lembro que no
economias tinham sido reduzidas a quase nada,
ano em que concluí meu mestrado, Allende tinha
por causa da maldita crise. Ele me chamou para
sido eleito no Chile. Saí como louco pelas ruas,
acompanhá-lo e eu pensei: Por que, não? Aceitei
gritando. Hoje, já não sou mais assim”, conta.
e aqui estou até hoje.” O desinteresse de Carlito, e de muitos outros argentinos, pela política, talvez possa ser
o percentual da população que vive abaixo da
ao lado dos filhos e de alguns netos, todos
explicada por Pablo Marchetti, 43, editor-
linha da pobreza – apesar dos programas de
com panelas em mãos. “Para que aconteça o
responsável da “Barcelona”, revista satírica
distribuição de renda – é estimado em 30%
mesmo que ocorreu neste dia, a revolta, eu
inconfundível
portenha, que disse recentemente à Folha de São
(percentual também negado pelo governo,
quero dizer, não precisa de muito.”
Paulo que a crise de 2001 deixou sequelas
de Astor
que diz ser apenas 10%) são outros dois
irreversíveis na Argentina. “As pessoas não querem falar de crise, há um medo de que tudo volte. O governo não fala, a oposição não fala, a imprensa não fala e até a gente se esqueceu de falar”, afirma Pablo.
argentina. Nada disso, porém, evitou sua
fotografia registra o dia em que
Piazzolla,
a população, ao som dos
Adiós Nonino,
panelaços, saiu às ruas da Argentina, gritando
permanência no poder.
“que se vayan todos”, em dezembro de 2001.
emana serena da antiga
Nem, tão pouco, o famoso
O aposentado disse que o terror era geral:
Com alta aprovação popular, vinda desde
protecionismo, característica do governo de
mercados saqueados, pessoas feridas, a
o mandato de Néstor (2003-07), e com um aumento
Cristina, que tem trazido dissabores a
classe média arruinada. “Fiquei arrasado,
considerável após o falecimento deste, bem como
empresas brasileiras na Argentina, abalou sua
precisava sair e gritar”, justificou-se ao
cômoda. Uma
com “os bons ventos da economia”, Cristina
relação com o Brasil de Dilma Rousseff, que
confessar que se uniu a todos os perplexos.
pequenina
Kirchner permanece no poder. A oposição se mostra enfraquecida, perdida, fragmentada; nem consegue dialogar entre si, e o resultado disso veio à superfície nas eleições primárias de agosto, em
mostrou apoiá-la, além de dar sinais de que
Se o futuro reserva à Argentina outra
também aderiu ao tal do protecionismo, no
revolta das panelas, não se sabe.
tocante dos automóveis.
brasileiras.
Carlito abre um sorriso largo quando
dizer que nos próximos anos a importância do
escuta a pergunta do que espera para o futuro
país para a América do Sul e América Latina
da Argentina. “Não espero nada. Não me
não será mais tão grande.
esde 2007, em seu primeiro
considero mais tão argentino quanto um dia já
mandato, Cristina enfrentou
fui. Só sei que a Cristina precisa mudar seu
problemas com os produtores rurais (por causa da
modo de governar nos próximos anos, caso
tentativa de aumento das taxas de exportação) e, especialmente, com a imprensa, que vê como uma inimiga do governo. O descontrole da inflação,
Enquanto isso, Cristina Kirchner saboreia o doce gosto da recente vitória na Casa Rosada e, talvez, ao ouvir tanta
não queira que o mesmo clamor populacional,
especulação sobre seu governo, berre aos
que a levou ao poder e a fez ficar nele, em
negada por ela, é estimada em absurdos 25% ao
nome de Néstor, tire-a de lá”. Apontou para
ano (índice oficial do governo admite meros 10%) e
uma foto peculiar na parede, em que aparecia
quatro ventos: “que se callara todo El mundo!”.
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Argentina em terras
consolidando-se no primeiro turno das eleições em
D
vitrola sobre a
Futurologistas econômicos apenas arriscam
que Cristina recebeu mais de 50% dos votos, outubro passado, quando foi reeleita.
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A
problemas combatidos pela presidente
A música