A Cooperação para o Desenvolvimento no âmbito da Constituição Europeia_Algumas Questões de Ref

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GRUPO V

Cooperação para o Desenvolvimento A Cooperação para o Desenvolvimento no âmbito da Constituição Europeia: Algumas Questões de Reflexão FERNANDO JORGE CARDOSO E PATRÍCIA MAGALHÃES FERREIRA IEEI Introdução A política europeia de cooperação para o desenvolvimento tem registado alterações importantes nos últimos anos, destacando-se a assinatura do Acordo de Parceria UE-ACP e a aprovação de uma nova política de desenvolvimento em 2000, o alargamento, a aprovação do Tratado Constitucional europeu e a nomeação de um novo comissário para o desenvolvimento e ajuda humanitária, em 2004. Ao nível europeu, os principais debates respeitam ao posicionamento desta política face aos objectivos da política externa, às implicações do alargamento, ao futuro das relações UE-ACP, ou ainda à nova arquitectura institucional no seio da União. Subjacente a estas questões, estão vários debates em curso na comunidade de doadores ao nível global, como sejam o novo contexto de segurança, a ajuda aos Estados com fraco desempenho ou em conflito, o financiamento do desenvolvimento, a liberalização comercial, ou a obtenção de resultados positivos nos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio1. 1. O Tratado Constitucional Entre 28 de Fevereiro de 2002 e 13 de Junho de 2003, a Convenção para o Futuro da Europa debateu os mais diversos temas relacionados com os aspectos sociais, políticos e institucionais da União. No grupo de Trabalho relativo às relações externas foram debatidos os objectivos prioritários da acção externa da União consagrados agora na proposta de Tratado constitucional como sendo, entre outros, o desenvolvimento sustentável, o comércio livre e equitativo e a erradicação da pobreza (art, I-3º, III-292º e III-316º). No plano dos princípios, o texto constitucional consagra alguns aspectos importantes, como sejam: -

A complementaridade e partilha de competências entre os Estados membros e a UE em matéria de cooperação para o desenvolvimento e ajuda humanitária2,

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O princípio da coerência, através do qual os objectivos da cooperação deverão estar presentes na prossecução das políticas susceptíveis de afectar os países em vias de desenvolvimento3.

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A diferença entre Cooperação para o Desenvolvimento e Cooperação com países Terceiros, figurando os dois temas em secções separadas da assistência externa4,

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O estabelecimento pela primeira vez de uma base legal para a ajuda humanitária5, na qual se faz referência à criação de um corpo europeu de voluntários.

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Fixados em Setembro de 2000, na sequência da aprovação da Declaração do Milénio das Nações Unidas, os objectivos incluem uma lista de áreas nas quais a ajuda ao desenvolvimento se deve concentrar e estabelecem metas quantitativas a alcançar dentro de prazos fixados, entre as quais a redução dos índices globais de pobreza para metade até 2015. 2 Art. III-316º. 3 O Principio da Coerência, (consagrado nos artigos 178º T. Maastricht e III-318º do Tratado Constitucional), não deve ser confundido com o da Consistência , segundo o qual todas as políticas da UE devem ser consistentes com os objectivos da PESC (introduzido no Tratado de Amsterdão). 4 cooperação para o Desenvolvimento (artigos III-316º a III-318º) e Cooperação Económica, Financeira e Técnica com os países Terceiros (artigos III-319º e III-320º). 5 Art. III-321º.

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Assim, o tratado constitucional tem indubitavelmente o mérito de regulamentar e agregar alguns aspectos da ajuda humanitária e da cooperação para o desenvolvimento até então esquecidos ou dispersos legalmente. No entanto, existem aspectos omissos ou pouco claros no texto, que aliados às reformas institucionais em curso, conferem algum espaço de manobra para reformas ou práticas futuras que podem vir a pôr em causa a coerência, a operacionalidade e a importância relativa da política europeia de cooperação. 2. Subordinação da política de cooperação para o desenvolvimento às relações externas A Convenção propôs a criação da figura de um ministro dos Negócios Estrangeiros da União, com presença ora no Conselho ora na Comissão, responsável por todos os aspectos ligados às acções externas europeias. Deste modo, a política de desenvolvimento da União, pertencendo, de acordo com o Tratado de Maastricht, ao primeiro pilar e sob a responsabilidade da Comissão, passará a estar sujeita a uma crescente tomada de decisão intergovernamental. Para além disso, a restruturação no seio das Direcções-Gerais e a fusão em Junho de 2002 do Conselho de Desenvolvimento no Conselho de Assuntos Gerais e Relações Externas (GAERC), encarregue das várias políticas relativas às relações externas da UE, têm repercussões na visibilidade e no peso relativo da cooperação para o desenvolvimento. Se a isto aliarmos a diluição do Fundo Europeu de Desenvolvimento (FED) no orçamento comunitário e o facto de os artigos referentes às PESC, PCSD e cláusula de Solidariedade não limitarem os meios e instrumentos da UE passíveis de serem usados nessas matérias, deixa-se aberta a possibilidade de, por exemplo, recursos financeiros destinados à cooperação e ajuda humanitária serem utilizados noutras vertentes da política externa. Não estando expresso o princípio de não diminuição dos montantes afectos à ajuda ao desenvolvimento, nem qualquer abordagem estratégica de longo prazo baseada em critérios objectivos, a área da cooperação estará condicionada a uma negociação anual sujeita a interesses sectoriais e políticos. Existe, assim, um risco sério de que a política de desenvolvimento deixe de ser definida para cada país e actividade em função de indicadores sociais ou de pobreza, mas sim em resultado de outras prioridades tais como a agenda europeia de segurança. Será que podemos prever um cenário em que a decisão de uma acção humanitária está ligada ao envio de uma força de reacção rápida da UE num país em conflito? Ou a aprovação de pacotes de ajuda a países em desenvolvimento (PED) que alinhem com as posições europeias nos fora internacionais? Não é certamente novo, mas a perspectiva de ser uma realidade consagrada e em expansão não se coaduna com o papel de responsabilidade global que a UE parece pretender assumir no plano dos princípios. 3. Reflexos do Alargamento O tratado constitucional não equaciona devidamente os reflexos que o alargamento poderá ter na política de cooperação para o desenvolvimento da UE, uma vez que a entrada de Estados membros sem tradição de ajuda ao desenvolvimento ou relações históricas e culturais privilegiadas com o continente africano pode vir a originar uma diminuição do interesse pelos Países Menos Avançados (PMA) em geral, no contexto de uma política de desenvolvimento sujeita a uma crescente tomada de decisão intergovernamental. O alargamento levanta igualmente a problemática de uma nova configuração de equilíbrio Leste-Sul, derivada da entrada de novos Estados membros sem uma tradição de ajuda ao desenvolvimento ou relações culturais e históricas especiais com o continente africano e que terão voz activa na política europeia de desenvolvimento. Relativamente à fatia do PNB que os dez futuros membros da UE dedicam à Ajuda Pública ao Desenvolvimento, a Estónia ocupa o primeiro lugar, com apenas 0,1%, quando a média comunitária é de 0,33%. No que concerne ao conhecimento e prática de cooperação para o desenvolvimento, a República Checa e a Hungria são dos poucos que apresentam um passado de acções de cooperação com os países do Sul. No entanto, o contrário pode também acontecer, desde que a dinâmica social e institucional externa se reforce. 4. Complementaridade com os Estados-Membros? A complementaridade entre a cooperação multilateral e bilateral está consagrada no plano dos princípios, mas a prática da cooperação ilustra uma realidade muito diferente. Por um lado, existem muitas vezes divergências ou duplicação de esforços entre a ajuda concedida pelos Estados Membros bilateralmente e aquela que é gerida e implementada pela Comissão. Por outro lado, cerca de 80% da ajuda externa europeia é bilateral, obedecendo a critérios de definição estratégica, controlo político e Viver a Europa: Uma Constituição para os Europeus


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interesses próprios dos EM, o que torna difícil a coordenação. Neste contexto, parece difícil promover uma agenda unificada de cooperação para o desenvolvimento ou mecanismos que evitem o risco de “renacionalização” da visão europeia da cooperação Num outro plano, importa também salientar a não inclusão no texto constitucional dos princípios de apropriação (“ownership”), parceria e participação da sociedade civil nos artigos III-316º a 320º, o que seria importante se tivermos em conta que estes elementos estão incluídos no acordo de Cotonou (artigo 2- princípios fundamentais) e são amplamente reconhecidos em várias comunicações da Comissão ao Conselho como de fulcral importância na eficiência da definição e implementação das políticas de Desenvolvimento da UE6. 5. Coerência entre políticas comunitárias? O princípio da coerência estabelecido no Tratado constitucional é claramente pró-desenvolvimento, ou seja, são as outras políticas comunitárias que devem ser coerentes com os compromissos assumidos em matéria de política de cooperação para o desenvolvimento. No entanto, uma das maiores inconsistências da acção externa da UE reside exactamente nas numerosas contradições impostas pela política agrícola ou a política comercial. A primeira suscita desde há muito polémica devido ao proteccionismo dos produtos europeus face a produtos agrícolas dos países em desenvolvimento, permitindo a prática de subvenções e contendo elementos discriminatórios dos PED, o que contradiz o objectivo geral de luta contra a pobreza mundial. Enquanto o FMI estima que a abolição dos subsídios aos agricultores europeus7 significaria uma aumento de 0,6 no PIB anual dos países africanos, um acordo entre a França e a Alemanha assegura que esses subsídios irão continuar no nível actual de cerca de 50 mil milhões de dólares pelo menos até 2013, o que representa o claro favorecimento de uma minoria, dentro e fora da UE. Ao nível comercial, a UE tem progressivamente vindo a defender que o comércio é a melhor via para reduzir as desigualdades mundiais. No entanto, muitas opiniões vão no sentido contrário. Tomemos como exemplo o novo regime comercial actualmente em negociação entre a UE e os Estados ACP, no quadro do Acordo de Cotonou. Os Acordos de Parceria Económica (APE) representam um culminar do processo de erosão do regime comercial preferencial e não-recíproco existente durante décadas no quadro dos Acordos de Lomé, cujos resultados não foram considerados positivos, na medida em que os ACP continuaram a ter uma parcela de mercado muito reduzida na UE e economias assentes numa baixa diversificação das exportações. Para além disso, a necessidade de compatibilidade com as novas regras da OMC conduziu à procura de um novo regime comercial, o qual foi estabelecido no novo Acordo de Parceria UE-ACP (Cotonou). O novo sistema prevê o fim do regime preferencial para os não-PMA a partir de 2008; a negociação dos APE ou de outros Acordos bilaterais definidos conjuntamente; e ainda para os PMA a possibilidade de manutenção das preferências comerciais, estabelecendo um acesso melhorado ao mercado da UE – o chamado Lomé plus, ou “tout sauf les armes”. No entanto, o estabelecimento de APE tem gerado opiniões divergentes. Por um lado, são susceptíveis de criar mercados mais alargados (regionais) e atrair investimento directo estrangeiro. Por outro lado, podem englobar elementos negativos ou menos favoráveis para os países africanos, quer porque suscitam problemas de capacidade a todos os níveis (de negociação, de coordenação, de produção, de gestão, etc), quer porque prejudicam em muito o nível de receitas aduaneiras que constituem para muitos países africanos uma parte importante da economia; quer ainda porque originam uma aumento da complexidade em termos de integração regional destes países, introduzindo novos factores de diferenciação (por exemplo, os PMA e os não-PMA). Assim, um país que seja considerado PMA poderá ter um regime diferente de todos os países da sua região que possuirão, nesse caso, um APE com a UE. Actualmente, a política comercial da UE conta ainda com vários factores de distorção, como sejam a imposição de taxas de importação e outras restrições a produtos essenciais nos PED. A liberalização 6

Por exemplo, a Comunicação da Comissão emitida em 2000 e relativa à política de desenvolvimento, ou a de 2002, sobre os Actores não-estatais. 7 Actualmente cerca de 40% dos 100 mil milhões de euros do orçamento anual comunitário é despendido na Política Agrícola Comum. Os agricultores europeus recebem em média um subsídio de 1,6 euros/dia por bovino, sendo que cerca de 1,2 biliões da população mundial vive com menos de 1 dólar/dia.

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do acesso aos mercados só terá efeitos no desenvolvimento destes países se for complementada por outras políticas comunitárias que também o favoreçam e por um conjunto mais alargado de medidas como o aumento do investimento directo nesses países (incerto), uma redução efectiva da dívida, acesso à informação e às redes mundiais, medidas de promoção do emprego e do sector privado. 6. Países Menos Avançados (PMA) Não obstante a manutenção da erradicação da pobreza enquanto objectivo central do apoio a todos os países em desenvolvimento, desapareceu no texto constitucional a referência específica ao esforço que deveria ser feito nos chamados PMA. Com efeito, uma das críticas mais apontadas à cooperação europeia está no facto de a ajuda da União aos países em desenvolvimento estar muito concentrada nos países de rendimento médio, apesar dos apelos constantes de alguns Estados Membros (como a Holanda e o Reino Unido) e de ONG para uma reorientação da ajuda para os países mais pobres. Gastam-se actualmente 28 euros per capita na ajuda a países de desenvolvimento médio como nos Balcãs, enquanto África recebe apenas 3,17 euros e a Ásia 0,30. Se o objectivo central é a erradicação da pobreza, esta distribuição da ajuda parece conter uma contradição de base e servir outro tipo de interesses. 7. O Futuro Os desafios que se colocam à política europeia de cooperação para o desenvolvimento vão muito para além do texto constitucional. Os sinais dados pela nova Comissão Europeia são, na verdade, contraditórios. Por um lado, é inegável o papel fundamental da UE, enquanto o maior doador internacional no seu conjunto8 e mais importante parceiro comercial dos PED. A União desempenhou um papel activo na mobilização política que abriu caminho aos resultados da Conferência sobre o Financiamento do Desenvolvimento (2002, em Monterrey), ao colocar em cima da mesa os chamados “objectivos de Barcelona” para aumentar a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) até 0,39% do RNB colectivo europeu em 2006. Segundo a evolução actual, a UE no seu todo (25) vai ultrapassar esta meta e atingir 0,42% em 2006, muito como resultado daqueles que já contribuem com mais de 0,7% (caso da Dinamarca, Holanda, Luxemburgo, Suécia e Noruega) e do esforço dos novos membros em aumentar as contribuições9. O novo Comissário para o Desenvolvimento – Louis Michel10 – estabeleceu com um dos principais objectivos conseguir unir e mobilizar os cidadãos europeus em torno da política de cooperação para o desenvolvimento, sendo que actualmente cerca de dois terços diz acreditar que esta política contribui efectivamente para a redução global da pobreza. Por outro lado, perspectivam-se alterações importantes no financiamento da política de desenvolvimento. Até agora, a ajuda externa da União tem sido implementada por um vasto e complexo conjunto de instrumentos temáticos e regionais -como sejam os programas CARDS, TACIS ou MEDA-, que foram surgindo e alargando-se de forma ad-hoc ao longo dos anos. Estes instrumentos possuem regras distintas em termos de programação e implementação, o que dificulta a sua gestão e coordenação. A Comissão Europeia decidiu recentemente a reforma dos instrumentos de financiamento da ajuda externa da UE, no sentido de promover a simplificação e a eficácia, no quadro das perspectivas financeiras para 2007-201311. No entanto, enquanto é reforçado o orçamento na área da segurança, a cooperação para o desenvolvimento ou a ajuda humaniária não beneficiarão de qualquer investimento adicional. Isto apesar de, no plano dos princípios, se reconhecer que a política de desenvolvimento é um dos instrumentos mais poderosos no combate às causas dos conflitos e do terrorismo. Mais, não está previsto qualquer instrumento autónomo relativo à cooperação para o desenvolvimento, o que compromete a independência e manutenção dos níveis de financiamento desta área. As novas propostas prevêem a existência de seis instrumentos (quatro dos quais novos):

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Em 2003, a ajuda da UE ultrapassou os 30 mil milhões de USD, correspondendo a 55% da ajuda mundial. Destes, cerca de 1/5 são geridos pela Comissão Europeia; o restante provém de ajuda bilateral dos EM. 9 Estes forneceram 0,03% do RNB em 2002 e pretendem atingir o nível de 0,11% até 2006. 10 Ex-MNE da Bélgica, Louis Michel sucede na Comissão a Poul Nielson. 11 Para mais informações, ver a Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu sobre os Instrumentos da Ajuda Externa no Quadro da Perspectiva Financeira 2007-2013, Julho 2004.

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instrumento de ajuda pré-adesão, para países candidatos à adesão (Turquia e Croácia) e potenciais candidatos (alguns Estados dos Balcãs). instrumento de vizinhança e parceria, abrangendo países terceiros geograficamente próximos da UE que participem na chamada “política europeia de vizinhança” (sul e leste do Mediterrâneo, Ucrânia, Moldávia e Bielorússia, países do sul do Cáucaso). Servirá igualmente de apoio à parceria estratégica com a Rússia. instrumento de Cooperação Económica e Cooperação para o Desenvolvimento, integrando todos os países, territórios e regiões que não possam fazer parte dos dois instrumentos anteriores (é portanto ums substituição do FED e do programa ALA, entre outros) instrumento para a estabilidade, com o objectivo de responder a crises e instabilidade em países terceiros, bem como a questões transnacionais (incluindo a segurança e não proliferação nuclear, a luta contra o crime organizado e o terrorismo) instrumento de ajuda macro-económica e instrumento de ajuda humanitária (já existentes no quadro actual) A proposta da Comissão não descreve quaisquer mecanismos para assegurar a consistência entre os elementos constitutivos das relações externas, parecendo sugerir que a mistura de todas as políticas conduzirá naturalmente a essa interligação e coerência. Por exemplo, o instrumento sobre cooperação económica e cooperação para o desenvolvimento tem uma abrangência global, não contendo qualquer referência de aplicação específica aos PED (ao contrário do que acontece no tratado constitucional, onde figura uma disposição para países terceiros que não sejam países em desenvolvimento – art.III-319). Para além disso, a cooperação económica e a cooperação para o desenvolvimento são englobadas num mesmo instrumento, quando no Tratado são encaradas como vertentes distintas. Na sua forma actual, a permeabilidade da proposta confere um cheque em branco à Comissão para usar os recursos de erradicação da pobreza em qualquer área ou fim que ache relevante em determinada altura. Várias redes europeias da sociedade civil reagiram a estas reformas com cepticismo, quer por entrarem em contradição com várias disposições do Tratado constitucional (que separa claramente as várias políticas no seio das relações externas), quer por preconizarem uma erosão dos poderes do Parlamento Europeu (não lhe permitem participar na definição de prioridades), quer ainda por significarem o fim de uma política de desenvolvimento autónoma e identificável. Recentemente, a avaliação conduzida pela OCDE salientava a confusão reinante entre as políticas da UE, apelando a uma clarificação “das responsabilidades estruturais no seio da ‘família das relações externas’ para a afectação de recursos a todos os países em desenvolvimento”. Esta conjugação e confusão de instrumentos poderá vir a prejudicar, em ultima análise, os esforços de aumento de contribuição da UE para os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio.

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Novos Determinantes Estratégicos da Política de Cooperação Europeia ADRIANO TELLES DE MENEZES Centro de Estudos Africanos, ISCTE A política europeia de Cooperação para o Desenvolvimento encontra-se, desde 2000, em reformulação estratégica e organizacional, por força de novas formulações decorrentes das novas estratégias de apoio ao desenvolvimento em países com elevados índices de pobreza absoluta e de endividamento, e de novos factores geoestratégicos da segurança. Destacam-se dois novos determinantes estratégicos da política de cooperação europeia: Por um lado, o binómio pobreza/segurança; por outro lado, o incremento de influência da cidadania europeia da consciência global. 1. A Redução da Pobreza na política europeia de cooperação Após a iniciativa das Nações Unidas da “Década para a Erradicação da Pobreza, 1995-2005”, os BM/FMI, após anos de duras críticas, estabeleceram em 1999 a “Estratégia de Redução da Pobreza”12,13 direccionada para abranger progressivamente cerca de 50 países pobres e endividados, assumindo a liderança internacional na condução da luta contra a pobreza. Desta iniciativa “universalista” do BM/FMI, vários países da América Latina e África, iniciaram já os seus Planos Nacionais de Combate à Pobreza. Adivinha-se actualmente uma disputa internacional entre as NU (PNUD) e algumas iniciativas bilaterais 14 de apoio e a liderança do modelo estratégico estabelecido pelo BM/FMI. Os países europeus, em macro ambiente de arrefecimento económico, instabilidade internacional e aumento dos custos energéticos, são, cada vez mais, solicitados para aumentar as suas contribuições financeiras para um cada vez maior número de organismos e instituições internacionais e regionais que disputam entre si projectos e modelos de apoio ao desenvolvimento e combate à fome e pobreza. 2. A Segurança na política europeia de cooperação Com base no Capítulo VIII da Carta das Nações Unidas, a política de segurança deve assentar em 3 pilares: a dimensão político-militar, a dimensão económico-ambiental e a dimensão humana. Pressupõe a inclusão de parcerias dos países comunitários, pan-europeus (países da área geoestratégica circundante) e externos (p.e. EUA, Canadá). Até agora a Cooperação para a Segurança estava direccionada para a detecção preliminar e prevenção de conflitos, gestão de crises ou reabilitação pós-conflito (Balcãs e Cáucaso). Três novos aspectos estão a influenciar a cooperação europeia para o desenvolvimento: o combate ao tráfego humano (Balcãs e Europa de Leste), o terrorismo e a emigração ilegal (Europa de Leste e área Mediterrânica – países de origem e trânsito). Estes factores influenciam decisivamente as estratégias e prioridades das políticas de cooperação para o desenvolvimento15. 3. A Cidadania e Sociedade Civil na política europeia de cooperação a) Processo e consequências do Reforço da Cidadania 12

Poverty Reduction Strategy Paper – PRSP, com base numa versão actualizada e politicamente correcta do “one size fits all” dos velhos Programas de Ajustamento Estrutural (PAE).

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Veja-se o encontro promovido no mês passado em NY pelos presidentes do Brasil, França e Espanha com o apoio das Nações Unidas. 15 Ver o “policy paper” sobre Políticas de Segurança Europeia e de Cooperação para o Desenvolvimento da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, designado “OSCE – Economic and Environmental Dimension, Development of Second Pillar”, Viena, November 2002, Permanent Delegation of Portugal to the OSCE, Adriano T. Menezes.


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O processo de alargamento e aprofundamento da cidadania nos últimos 15 anos, particularmente no espaço europeu, tem vindo a produzir um aumento significativo de formas pan-europeias de organização da sociedade civil e a promover vastos movimentos de opinião. Lembremos a forma como diversas ONG e outras associações da sociedade civil actuaram em 1997, forçando os governantes (principalmente europeus) a procederem a vastos esforços de perdão e/ou reformulação das dívidas externas dos países pobres, quando da designada Iniciativa da Dívida, ou do actual processo de combate à pobreza de 1999 16. b) Cidadania Global O processo de desenvolvimento e aprofundamento da cidadania tem vindo a evoluir para o que designamos por “Cidadania de Consciência Global”, entendida como forma avançada do processo de aprofundamento da cidadania, que se traduz numa percepção assumida do todo universal, em particular nas suas vertentes humana, social e ambiental. Esta “Cidadania de Consciência Global”, em processo crescente no espaço europeu, resulta do aprofundamento do “sentido de cidadania” abrangendo a plenitude dos direitos humanos e ambientais17, aliado à “consciência do conhecimento global18” proporcionada pela evolução das TIs. Este processo tem levado a que a sociedade civil organizada venha a aumentar a sua influência na política de cooperação europeia a dois níveis: nos processos de formulação e decisão das estratégias e políticas a estabelecer pela UE, e na sua assumpção como parceiro de desenvolvimento, na gestão e realização de projectos de ajuda e cooperação nos países beneficiários. Questões para Debate: Como incentivar uma progressiva integração das políticas de cooperação bilateral na estratégia multilateral europeia? Como assegurar uma integração estratégica e operacional das múltiplas instituições e organismos europeus face ao estabelecimento de uma estratégia europeia única e integradora de cooperação? Quem envolver e como estabelecer uma estratégia de médio prazo de cooperação para a Europa? Racionalização das instituições multilaterais internacionais e da despesa e comparticipação exagerada dos países desenvolvidos face a resultados diminutos. Formas de organização alternativas (à política) que reflictam a crescente cidadania e formas participativas da sociedade civil. Que actores europeus para a cooperação? Por tipo de cooperação (financeira, segurança, política, técnica, etc.)? por tipologia dos actores (oficial, institucional, privado, associativo, etc.)? Que beneficiários? • • •

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Política geoestratégica europeia Política de solidariedade internacional …. (mecanismos: NU, BM, “Gs” – Grupos Selectivos de Países, etc.)

Iniciado em 1995 pelas Nações Unidas com a designada “Década para a Erradicação da Pobreza”. No seu sentido lato, envolvendo o económico, o social e o meio físico. Em que existe a percepção da interacção das relações Norte-Sul, desenvolvimento e pobreza, bem-estar e consumo face a elevada produção com exploração de baixo custo, ambiente limpo e poluição.

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A UE e a Cooperação para o Desenvolvimento ALEXANDRE BORREGO Universidade Moderna de Lisboa 1. Caracterização do Processo de Cooperação Origens A cooperação para o desenvolvimento, tal como a conhecemos, teve o seu início com o fim da 2ª Guerra Mundial e adquiriu nova expressão e relevo com a consagração na Carta das Nações Unidas do Direito à Autodeterminação dos Povos e com o processo de descolonização, que se lhe seguiu, nomeadamente, no continente africano. O período correspondente à última metade da década de 40 e à década de 50 do século passado conheceu, como é sabido, um aumento extraordinário do número de actores da cena internacional (Estados e Organizações). Justificação As razões que justificam a cooperação para o desenvolvimento são de vária ordem (económica, social, psicológica, filantrópica, etc.) e podem resumir-se do modo seguinte: • Atraso considerável de desenvolvimento da generalidade dos novos Estados sujeitos até então a uma lógica de exploração colonial; • Condições sociais sub-humanas da grande maioria das suas populações; • Consciência por parte dos dirigentes dos países ex-colonizadores da quota parte de responsabilidade pela situação em que deixaram os territórios colonizados; • Desejo dos governos dos países ditos desenvolvidos e da própria sociedade civil de contribuir, por motivos altruístas ou outros, para o desenvolvimento das países outrora sujeitos ao domínio colonial; • Vontade das organizações da sociedade internacional de dar, de igual modo, o seu contributo; • Preocupações de um grande número de economistas com a problemática do desenvolvimento e, em particular, do desenvolvimento sustentado (Teorias do Desenvolvimento). A.

Modalidades de Intervenção Nestas condições, a cooperação reveste várias modalidades e pode classificar-se em função de vários aspectos: Agentes promotores Natureza dos fundos Formas de intervenção

Âmbito de aplicação

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Bilateral Multilateral Mista Ajuda pública (Estados e Organizações Internacionais19) Ajuda privada (Fundações/ONG’s e Empresas) Transferências gratuitas (Donativos) Financiamentos - Investimento (DE, IE e outras formas) - Importações (BTC)

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Global – com planos de desenvolvimento / ajustamento estrutural Sectorial – Projectos para saúde, educação ... infraestruturas, etc

Do sistema das Nações Unidas (Agências Especializadas, BIRD, AID, SFI, AMGI, PNUD, etc.) de âmbito regional (OEA – BID, BCP; UA – BAfD, FafD; Ásia – BAsD, FAsD; OCDE – CAD; UE – BEI, FEI, FED, BERD, etc)


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Montantes Financeiros Envolvidos Os montantes financeiros afectos à cooperação para o desenvolvimento mantiveram-se praticamente estáveis nos últimos três anos e situam-se ao redor de 0,1% do PIB mundial, o que é manifestamente insuficiente face às necessidades de desenvolvimento, em especial, dos PMA. Por sua vez, o valor da APD situa-se abaixo dos 0,16% do PNB dos países doadores (0,23% no caso dos países do CAD/OCDE) muito longe, portanto, do montante proposto pelas Nações Unidas em 1970 (Conferência de Santiago do Chile) e, sistematicamente, reafirmado por aquela organização desde 1992 (Conferência do Rio). O quadro que segue construído com base nos valores médios do triénio (2000/2002) traduz a estrutura de repartição dos referidos montantes por tipos de cooperação e revela que os capitais privados ultrapassam 3/4 do valor total e que o valor da ajuda pública bilateral é mais que dupla da multilateral. Quanto ao financiamento do investimento importa dizer, por último, que ele não só está francamente aquém das exigências sentidas pelos PVD’s como está longe, muitas vezes, de corresponder às suas reais necessidades.

1. APD 1.1. Bilateral 1.2. Multilateral 2. Capitais privadas 3. ONG’s Total

% 22,0 15,0 7,0 76,0 2,0 100,0

% 100,0 68,0 32,0

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2. O Papel do CAD/OCDE e da ONU Princípios e Orientações para a Ajuda ao Desenvolvimento Desde o princípio dos anos 90 e em resultado da alteração do contexto internacional em matéria de desenvolvimento e do fim da Guerra Fria que o CAD em associação com outras entidades (BM, FMI, PNUD) tem vindo a intensificar os seus esforços no sentido de estabelecer e afinar princípios e orientações considerados indispensáveis para tornar a ajuda ao desenvolvimento eficiente e eficaz e encorajar tanto doadores como beneficiários a aplicá-los de modo efectivo e sistemático. De entre eles destacam-se: • • • • • •

Manual da Ajuda ao Desenvolvimento (1992) As orientações sobre o desenvolvimento participado e a gestão de negócios públicos (1993) As orientações relativas ao papel da cooperação para o desenvolvimento no apoio ao sector privado (1994) As orientações sobre o desenvolvimento das capacidades no domínio do ambiente (1995) Os princípios relativos às novas orientações da cooperação técnica Um método sistemático e completo de avaliação do nível de desenvolvimento dos países beneficiados

O Novo Paradigma de Desenvolvimento Justificação – inserção da cooperação para o desenvolvimento num contexto em rápida mutação, tanto do ponto de vista económico como político Objectivo geral – procura de um desenvolvimento sustentado que garanta a segurança da humanidade e o aumento do seu bem-estar Princípios do modelo : - Adopção de processos integrados de desenvolvimento - Parcerias de organizações doadoras e países beneficiários - Mecanismos dirigidos à melhoria da eficiência e da eficácia - Garantia de uma boa gestão dos negócios públicos


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Participação das populações e técnicos locais Aumento do investimento em recursos humanos Livre jogo das forças de mercado Alargamento do sector privado e reforço do seu dinamismo Preocupação com os problemas ambientais Tomada em consideração de diferenças sociais e culturais Análise de impacto dos programas de cooperação Avaliação sistemática de resultados

3. Cooperação Desenvolvida pela UE Princípios Muitos dos princípios estabelecidos pelo CAD e pela ONU a observar pelos países receptores da ajuda ao desenvolvimento foram também adoptados pela UE nas parcerias com países terceiros. De entre eles ressaltam-se alguns relativamente aos quais a UE coloca uma ênfase especial: -

Existência de regime democrático e de Estado de Direito Respeito pelos Direitos Humanos Respeito pelas minorias Luta contra a pobreza e a exclusão social Existência de Economia de Mercado Reforço e dinamização do sector privado e, em particular, as micro-empresas “Help, Self-help” Boa governação ”Good Governance” Participação das populações locais “Empowerment” e “self confidence” Reforço da capacidade dos técnicos e dirigentes “Competence building” Programas nacionais / regionais de desenvolvimento

Meios Financeiros O quadro que segue com a estrutura da cooperação por doadores revela que a UE tem assegurado, em termos de capitais totais, quase 40% contra quase 30% dos EUA . Na APD a UE tem um papel ainda mais relevante sendo o seu valor um pouco inferior a 2/3 da mesma, contra apenas 11% dos EUA que, no entanto, pontificam no que concerne aos capitais privados (40% contra 33% da UE). 1. Capitais totais EU EUA Outros 2. Ajuda pública EU EUA Outros 3. Capitais privados EU EUA Outros 4. ONG’s A. Tot

% 100,0 39,0 29,0 32,0 100,0 56,0 11,0 33,0 100,0 33,0 40,0 27,0 100,0

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Parcerias São inúmeras as parcerias estabelecidas pela UE com países terceiros com vista ao desenvolvimento dos mesmos, a tal ponto que é costume afirmar-se que a UE desenvolve acções de cooperação com, praticamente, todos os países e organizações do mundo. De entre elas destacam-se pelo seu significado e importância as seguintes: •

ACP/FED – acordo de Cotonou


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EURO-Americana – Programas AL-INVEST, AL-URB, ECIP EURO-Asiática– Programas ASIA-INVEST, ASIA-URB, ECIP EURO-Mediterrânica–PMR–METRA, MEDA,MED-INVEST,MED-URB,MED-CAMPUS, MED-MEDIA Europa Central e Oriental20 (PECO - PHARE) NEI’s - TACIS

Novas Iniciativas Em Março de 2001 a UE lançou a iniciativa “Tudo menos armas” que tem em vista melhorar o acesso dos PMA aos mercados de produtos agrícolas, industriais e de serviços evitando a sua marginalização pela globalização das trocas. O Tratado Constitucional Na Constituição Europeia estão previstos os princípios, objectivos e medidas necessários à definição e execução da política de cooperação para o desenvolvimento no Título V – Capítulos II e IV – Artºs III–218 a III–223. 4. Proposta de Pontos para Reflexão São 10 os pontos que se consideram de maior interesse para reflexão: Reforço da acção dos organismos internacionais (ajuda multilateral) Reforço da coordenação das ajudas e eficiência e eficácia de execução Aposta na qualidade e não na quantidade da ajuda Reforço dos meios financeiros e técnicos Plano Tobin (0,05 % Taxa sobre Transacções Internacionais) “aplicação dos dividendos da paz” Adequação e diversificação dos instrumentos face às necessidades Descentralização da ajuda ao desenvolvimento Dialogo / compromisso entre as forças nacionais e concentração no objectivo do desenvolvimento sustentado Comércio e desenvolvimento “Trade not aid” Agenda de Doha para a desenvolvimento (IV Conf. Ministerial da OMC)

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Abrangia os países recentemente integrados na UE


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A Cooperação para o Desenvolvimento no Novo Contexto Europeu ANA PAULA FERNANDES Instituto Marquês de Valle-Flôr A adesão de dez novos países à União Europeia, a caminhada para a concretização de nova Constituição e os novos cenários internacionais em que a segurança e a luta contra o terrorismo parecem dominar a agenda internacional, são apenas alguns dos elementos a ter em consideração na análise do futuro das políticas de desenvolvimento da União. Sabendo que cada Estado membro desenvolve a sua própria política de cooperação para o desenvolvimento, correspondendo esta a uma estratégia e visão nacionais, importa reflectir sobre o futuro da cooperação para o desenvolvimento, perspectivando constrangimentos e desafios. Principais Constrangimentos O alargamento a leste fez aumentar a necessidade de um trabalho interno de estruturação e consolidação. A União poderá vir a centrar-se nas questões internas e relativizar a sua acção na cooperação para o desenvolvimento. Existe igualmente o risco da cooperação para o desenvolvimento se tornar um mero instrumento da política externa e a Ajuda Humanitária um complemento das estratégias de segurança e defesa. As novas formas de reorganização das estruturas e serviços do desenvolvimento, nomeadamente a restruturação proposta para o financiamento ao desenvolvimento, podem ser potenciadoras de ineficácia e não garantem a alocação real do montante disponível no orçamento, caso este seja considerado prioritário para a realização e implementação de outras acções ou medidas. As propostas actuais, segundo a rede de ONG europeias – CONCORD - podem marginalizar a dinâmica do desenvolvimento perante as políticas comerciais e de segurança. Na verdade, os fundos afectos à cooperação no orçamento da UE estão inseridos na rubrica destinada às Acções Externas. As políticas de controlo da imigração têm prejudicado o desenvolvimento de programas em áreas fundamentais, como a saúde e a educação, em países em vias de desenvolvimento, sobretudo nos que não registam níveis elevados de emigração para o espaço europeu. Principais Prioridades e Desafios Na reorganização da política externa europeia, a Cooperação para o Desenvolvimento tem de saber manter as suas prioridades: a luta contra a pobreza, a sustentabilidade, o reforço e capacitação institucional das organizações da sociedade civil dos países em vias de desenvolvimento; o diálogo e as parcerias com diversos actores, a capacidade de avaliar impactos, procurando fomentar soluções adequadas; a interligação entre emergência e cooperação para o desenvolvimento, questões como ambiente, cidadania, direitos humanos (direitos cívicos, políticos, económicos e culturais) e gestão e prevenção de conflitos. As acções de desenvolvimento têm na sua fundamentação princípios frequentemente contrários àqueles aplicados numa perspectiva de segurança e defesa comum que marcará também a política externa da União. Por outro lado, as metodologias e instrumentos utilizados na cooperação para o desenvolvimento não se compadecem com a resposta imediata e imediatista de uma política externa preocupada fundamentalmente com a segurança.


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A Ajuda Humanitária, deve também garantir a sua neutralidade e imparcialidade, mantendo a ECHO a sua independência em termos de arquitectura institucional. Neste contexto, a coerência, complementaridade e coesão de políticas constituem um verdadeiro desafio. As políticas económicas, comerciais, agrícolas, de segurança e defesa e de política externa deveriam ser coerentes com a política de desenvolvimento. A União terá ainda que apostar no reforço da competitividade da economia europeia e aumentar a percentagem do PIB disponível para a ajuda pública ao desenvolvimento; reforçar a intervenção e participação da sociedade civil europeia, nomeadamente a dos 10 países do alargamento, no processo de construção da União, bem como facilitar o acesso da sociedade civil dos países em vias de desenvolvimento no processo de decisão das políticas de cooperação e desenvolvimento. Contudo, o principal desafio na implementação das políticas de desenvolvimento reside na capacidade da União Europeia em, ao reforçar as medidas de segurança, assegurar o legado democrático, a liberdade, o respeito pela diferença e a promoção da multiculturalidade no mundo. A Europa pode constituir-se como um poder de cariz civil e, portanto, um exemplo de referência para a paz mundial.


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Reflexões Breves sobre a Cooperação Portuguesa e Europeia CARLOS SANGREMAN Universidade de Aveiro 1. Para começar queria esclarecer qual a síntese das posições que penso Portugal devia adoptar como forma de responder à questão de como desenvolver os países que ainda não conseguem atingir as médias de bem estar das zonas mais ricas. 2. Repare-se que não é indiferente adoptar uma ou outra síntese; por exemplo se concordarmos que a versão do Banco Mundial chamada “washington consensus” é a correcta teremos uma cooperação sempre mais apoiada na promoção da economia privada e dos empresários, com o Estado com um papel regulador e prestador de serviços onde a iniciativa privada não existe. Se adoptarmos a visão da equipa do PNUD que elabora o Índice de Desenvolvimento Humano teremos uma cooperação apoiada nos sectores sociais e na correcção dos erros do mercado que originam maior pobreza, com um papel do Estado mais activo em todas as áreas económicas e sociais na orientação da afectação dos recursos. 3. O que nos parece que Portugal deve adoptar como síntese de orientação para definir a sua cooperação internacional em articulação com a União Europeia são as proposições seguintes: a. os erros do mercado na criação de desigualdades, pobreza e exclusão, violações de direitos humanos ou ambiente não são corrigidos pelo próprio mercado; b. os erros do Estado no mau funcionamento das instituições, de corrupção, de fixação artificial de preços, e no acesso a recursos por grupos sociais em seu próprio proveito podem permanecer em diferentes graus com o sistema democrático inspirado no modelo europeu; c. o indicador base de avaliação de qualquer processo de cooperação é a sua contribuição para o avanço ou recuo do bem – estar humano e sustentado da população em geral e não de elites mais ou menos alargadas. 4. Ao adoptar estas proposições como orientadoras da Cooperação Internacional, Portugal deverá organizar – se em programas e projectos com entidades estatais e organizações não governamentais, incluindo empresas privadas, tendo sempre por base de avaliação a evolução dos indicadores sociais a nível das famílias e não só nacionais. 5. A União Europeia alterou significativamente o seu principal instrumento de cooperação internacional em Cotonou, 2000; as grandes diferenças são fundamentalmente: a. a existência explicita de três pilares para a cooperação ACP-UE – a cooperação para o desenvolvimento, o comércio e as dimensões políticas; b. a afirmação da soberania dos Estados ACP para determinar as estratégias de desenvolvimento dos seus países, o que origina a cooperação sob a forma de financiamento directo a linhas do orçamento de cada país; c. o reconhecimento do papel complementar dos actores não estatais no processo de desenvolvimento, o que implica uma atitude mais aberta para as ONG e empresas que a UE e muitos Estados ACP tinham acordado nas Convenções anteriores; d. a previsão que, até 2007, as partes podem assinar novos acordos comerciais compatíveis com as regras da OMC suprimindo entraves ao comércio;


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e.

tomar como critério ao mesmo nível que a economia os aspectos políticos da democratização e governação dos países; f. flexibilizar as verbas de acordo com a avaliação do cumprimento dos acordos entre as partes, podendo ser acrescidas ou diminuídas. 6. Julgo que Portugal só tem a ganhar com estas mudanças. E penso assim a partir da especificidade do nosso país: .a identidade nacional portuguesa passa por elementos não só do passado histórico com os PALOP, o Brasil e Timor mas também por elementos actuais resultantes das noticias permanentes na rádio, jornais e televisão sobre África e Brasil, da actividade de africanos e brasileiros em Portugal e de portugueses nesses países (o que contrasta note-se com o “desaparecimento” de Macau); .a atitude portuguesa de desconfiança em relação ao Estado .a noção de bem-estar pessoal com procura de acesso ao maior número de recursos com o menor trabalho possível .a tentação de utilização das instituições para beneficio pessoal económico ou simbólico .a minimização da necessidade de organização a médio e longo prazo .a organização do exercício do poder, em diversos níveis, de forma “leve leve” .uma enorme tolerância aos erros de vários tipos desde a dimensão pessoal à responsabilidade institucional; .o facto de, em média, em cada 2-3 famílias existir ainda alguém vivo que ou esteve na guerra colonial ou viveu em África 7. Esta identidade portuguesa dar-se-á bem com uma cooperação que procura equilibrar os actores descentralizados com o Estado e com as empresas privadas, procurando chegar directamente às pessoas sem passar, se necessário, por instituições com responsáveis menos sérios. Também pode dar-se bem com a nova dimensão do critério político se definir como objectivo para a CPLP ter um mecanismo de “peer review” que construa cada vez mais prestigio internacional para os países que a integram incluindo algum poder militar – como Portugal ensaiou em 1998/99 na actuação da marinha na guerra que envolveu a Guiné-Bissau, o Senegal e a Guiné Conacry. E finalmente poderá dar-se bem com acordos comerciais país a país que defendam os interesses portugueses mas procurando que os empresários “de contentor” passem a investimento duradouro. 8. Os sucessivos governos portugueses têm tido momentos bons e outros maus na direcção e organização da Cooperação (sendo os dois melhores Secretários de Estado Durão Barroso – PSD- e Luís Amado –PS- e os piores Lourenço dos Santos – PSD – e José Lamego –PS). Mas em maioria os programas de governo e os respectivos Secretários de Estados dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação (SENEC) não foram capazes de formular um projecto global para a Cooperação Internacional de Portugal integrado na União Europeia. A situação nova do Acordo de Cotonou e a previsão plausível de que uma das consequências do 11 de Setembro é a necessidade de aumento da cooperação internacional, criam condições para todos os que se interessam pela área com diferentes credos religiosos, políticos e sociais participem num processo de identificação dos objectivos para a Cooperação Internacional Portuguesa que constitua um projecto a prosseguir para além dos ciclos políticos de alternância no poder do partido A ou B.


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E não penso que nos devemos centrar exclusivamente nos países da CPLP. Num período de 5 – 10 anos temos obrigação de ter uma cooperação de qualidade também com os países do Mediterrâneo e retomar aquilo que Luís Amado ensaiou de projectos com o Mali ou outros vizinhos dos nossos parceiros tradicionais, como a zona de Zinguinchor no Sul do Senegal, o Malawi, etc.. Mas para tal é necessário uma liderança conhecedora e sábia da parte do SENEC capaz de criar plataformas de entendimento entre actores sociais, políticos e da sociedade civil, e dirigir com firmeza o processo, ouvindo todos os intervenientes mas não se deixando desviar do rumo traçado e fazendo uma avaliação permanente e com consequências de tidas as actuações. 9. Temos tido sinais positivos do actual SENEC e da equipa que escolheu para dirigir o IPAD. Também nos parece positivo que o Dr. Luís Amado tenha voltado à área no PS. Esperemos que se consiga, até 2006 e no ciclo seguinte, as mudanças estruturais e a articulação com a União Europeia para cumprirmos esta fase da nossa história.


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Cooperação para o Desenvolvimento: Perdas, Ganhos e Estagnação nos Últimos Anos FÁTIMA PROENÇA Associação para a Cooperação entre os Povos (ACEP) Propostas de ideias para debater no grupo de trabalho: Perdas na Cooperação para o Desenvolvimento: -

diminuição do “estatuto” e autonomia em face de outras políticas – tanto a nível nacional como comunitário – e em particular a subordinação à PESC

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preponderância do pragmatismo face aos valores, no percurso da convenção de Lomé até ao acordo de Cotonou

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exorbitância da máquina de administração e gestão criada e na dominância da lógica de reprodução dessa máquina

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competição por fundos na Europa a 25, entre expectativas dos novos membros e as responsabilidades da política europeia de cooperação para o desenvolvimento

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hipocrisia nas motivações – a cooperação como instrumento da internacionalização da economia

Ganhos na Cooperação para o Desenvolvimento: -

reconhecimento do papel dos diferentes actores, em particular das organizações da sociedade civil, no desenvolvimento

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reconhecimento da necessidade de abordagem multidimensional dos direitos humanos (políticos, económicos e sociais) e do direito ao desenvolvimento

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inclusão de temas como os da participação das mulheres e da preservação do ambiente

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reconhecimento da necessidade de reforço das instituições (centrais, locais, governamentais, não-governamentais, etc) como garante da sustentabilidade futura

Estagnação: -

investimento de facto na investigação aplicada

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diálogo político Europa-África

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recursos disponíveis para a cooperação


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Cooperação para o Desenvolvimento e Ajuda Humanitária no Contexto da Constituição Europeia INÊS ROSA Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento A Conferência Intergovernamental, que teve início em Outubro de 2003, assumiu como base de trabalho o texto que foi trabalhado ao longo de meses na Convenção sobre “O Futuro da Europa”. Partindo de uma situação de base em que nem havia qualquer referência à cooperação para o desenvolvimento até à situação actual, foi possível conseguir melhorias significativas ao longo dos meses no âmbito das negociações da Convenção. Não será demais lembrar a importância da Cooperação para o Desenvolvimento enquanto elemento vital e distintivo das relações externas da UE e da oportunidade dada por esta discussão do novo Tratado Constitucional, que poderá representar o reforço do papel da UE neste domínio. A UE (entendida como a Comissão e os Estados-membros no seu conjunto) é um actor-chave nesta área, fonte de mais de metade da APD mundial (cerca de 55%) e principal parceiro comercial de muitos Países em Desenvolvimento (PED), tanto em termos de trocas comerciais como em no investimento directo. Os Estados-membros possuem também relações de longa data e laços históricos e políticos com muitos desses países. A UE apresenta um enorme potencial enquanto factor impulsionador do desenvolvimento global e, ao clarificar a sua abordagem relativamente ao desenvolvimento internacional, pode contribuir para atingir os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, estabelecidos em 2000 na Cimeira do Milénio e subscritos pelos Chefes de Estado e de Governo de todo o mundo. Numa perspectiva histórica, verificamos que a cooperação para o desenvolvimento, apesar de não existir formalmente nos Tratados iniciais da CE enquanto política autónoma, existia de facto ou na prática. O primeiro Fundo Europeu de Desenvolvimento(FED) surgiu logo com o Tratado de Roma em 1957, sendo posteriormente alterado com os Acordos de Yaoundé e com as sucessivas Convenções de Lomé. Existiam igualmente Declarações relativamente a esta matéria, que careciam de carácter jurídico vinculativo, e Comunicações da Comissão sobre a Cooperação para o Desenvolvimento. A consagração enquanto política autónoma e específica da UE só se verifica com o Tratado de Maastricht, o qual vai até um pouco além daquilo que existe na legislação interna de muitos Estado-membros. O capítulo sobre cooperação consagra diversos objectivos esta política, que englobam (i) o desenvolvimento económico e social dos PEDs, em particular dos mais carenciados ou mais pobres; (ii) a integração harmoniosa dos PEDs na economia mundial e (iii) a luta contra a pobreza. Estes artigos do Tratado referem igualmente a necessidade da política comunitária funcionar em complementaridade com a dos Estados-membros, embora reconhecendo a sua interdependência. Não só deve haver complementaridade, como coordenação e coerência, conforme o artº 130 U e seguintes. Estes artigos estabelecem ainda que a política da Comunidade deve consolidar a democracia e o Estado de Direito e promover o respeito pelos Direitos do Homem e das liberdades fundamentais nos países terceiros. Embora a Comunidade tenha competência para assinar acordos neste âmbito com países nãomembros, estes devem ser negociados segundo o artº 300, o que implica consulta da Comissão ao Conselho de Ministros. Não obstante todos os aspectos positivos trazidos por Maastricht, os artigos nem sempre tiveram uma interpretação clara e muitas disposições têm um carácter de programação em vez de obrigação legal. Existe também desde então alguma confusão na interligação com a PESC, agravada pela diferença entre pilares, uma vez que temos uma política inter-governamental e outra de natureza comunitária.


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Ao longo dos anos, a interpretação que foi dada à complementaridade inscrita no Tratado tem variado, em função do jogo de forças entre a Comissão e os Estados-membros a cada momento. Assim, logo após a negociação de Maastricht, os discursos e documentos da Comissão apontavam no sentido de esta assumir o protagonismo e de as cooperações bilaterais dos Estados-membros serem complementares à acção da Comissão. Esta leitura foi perdendo força à medida que a Comissão via os seus poderes diminuídos, conduzindo à interpretação completamente contrária, isto é, a de que a cooperação levada a cabo pela Comissão deveria complementar a dos Estados-membros. As limitações de poder e influência da Comissão são também evidenciadas na sua incapacidade para desempenhar o papel de coordenador que o Tratado lhe confere. Embora responsável pela gestão de um volume de recursos cada vez maior no campo externo, assume-se como o 16º doador, igual a qualquer outro Estado-membro. A partir do final da década de 90, registam-se profundas alterações: por um lado com a negociação do Acordo de Cotonou, que traz novas dimensões à cooperação com os países ACP e, por outro lado, com o esforço de reestruturação conduzido pela própria Comissão, incluindo um reforço dos meios humanos, o que lhe permitiu uma melhoiria do desempenho enquanto gestora da ajuda. O sucesso do novo organismo de implementação da ajuda - EuropeAid - parece ilustrar essa evolução positiva. O Tratado Constitucional e a adesão de dez novos Estados-membros representam uma nova fase de mudança, com uma série de incógnitas sobre o papel a desempenhar pelos Comissários europeus e pela estrutura da Comissão/Conselho. Em termos de posição negocial portuguesa na Convenção, podemos dizer que o resultado final está bastante próximo daquilo que foram as preocupações iniciais manifestadas pela delegação portuguesa. A destacar o facto de que a Cooperação para o Desenvolvimento deixar de ser uma política específica à parte, passando a constituír um dos capítulos integrantes da política externa da União. Esperemos que seja um elemento importante desta política e não só um instrumento daquela. Além disso, dever-se-á manter a indicação de uma acção diferenciada em relação aos PED. Esta estrutura destina-se a oferecer uma perspectiva mais coerente do modo como a UE pode actuar na cena internacional, assim como dos domínios em que o pode fazer, não alterando de forma alguma o facto de serem aplicadas modalidades diferentes em áreas políticas diferentes. Assim, dentro do capítulo B, referente à acção externa da UE, o capítulo 4 é dedicado à cooperação com os países terceiros e ajuda humanitária, o qual reúne diversos tipos de assistência e cooperação externa, agrupados em três secções separadas: cooperação para o desenvolvimento; cooperação económica, financeira e técnica; e ajuda humanitária. Na 1ª são referidos claramente os objectivos específicos da política da UE neste domínio, à semelhança de estabelecido por exemplo para a política comercial e para a ajuda humanitária, permanecendo a erradicação da pobreza como objectivo da política de desenvolvimento e elemento central da relação da UE com todos os PED. Igualmente importante é a referência à complementaridade e eficácia efectiva das acções da UE e dos Estados, a qual se pretende ver reforçada no âmbito do Tratado Constitucional, bem como a manutenção das disposições previamente estabelecidas no artº 178 do Tratado CEE, especificamente alertando para as implicações para os PED das políticas internas da UE. É de realçar o ênfase dado à verdadeira complementaridade e reforço mútuo entre os Estados-membros e a Comissão. A discussão estéril entre quem complementa quem e é mantido o papel de coordenação é ultrapassada, sendo a Comissão que o deve assumir como tal, em conjugação com a Presidência (tal como defendido pela posição portuguesa). É importante que em todos os fora a UE fale a uma só voz e isso só será possível através da Comissão e da Presidência, que deve actuar como intérprete da vontade dos Estadomembros junto das instâncias internacionais. De uma posição modesta enquanto doador entre os Estados-Membros, a Comissão tem de passar a ser o coordenador por excelência., uma vez que só assim será possível desenvolver uma política de cooperação coerente e consistente, que torne visível a situação de maior responsável pela APD mundial.


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A secção relativa à cooperação económica, financeira e técnica é herdada do Tratado de Nice. No entanto neste novo Tratado deverá ficar claro que se trata da base jurídica para desenvolver acções com outros países terceiros que não os PED. A secção relativa à ajuda humanitária é completamente nova. Os artigos propostos reconhecem o carácter de imparcialidade que a ajuda humanitária implica e salientam que é necessário um reforço mútuo entre as acções da UE. A questão mais problemática é a consagração de um voluntariado europeu para a ajuda humanitária, dado que nos parece demasiado arriscado enviar pessoas não qualificadas nem treinadas para terrenos tão difíceis e altamente instáveis. Para além disso, coloca-se igualmente a questão da independência da ajuda humanitária, já que, segundo a Constituição, o ECHO fica sob a alçada do MNE da UE, acarrentando o risco de aquele organismo poder vir a ser utilizado como instrumento da política externa. A realidade é que em todos os países a ajuda humanitária está integrada nos respectivos MNE, sendo difícil de contemplar outra solução. O importante é evitar, na medida do possível, a militarização da prestação da ajuda e a sua manipulação. Algumas propostas portuguesas não se encontram reflectidas no presente texto, nomeadamente as que dizem respeito à inclusão de uma referência particular e um ênfase forte na cooperação com os países mais carenciados, nos objectivos da acção externa da UE e nos objectivos específicos da cooperação. Não obstante a manutenção da erradicação da pobreza enquanto objectivo central do apoio a todos os PED, desapareceu a referência específica ao esforço que deveria ser feito nos países menos avançados, uma vez que nenhum Estado-membro para além de Portugal pretendeu manter esta referência. Para além disso, também não está consagrada, na ajuda humanitária, a ligação que deverá necessariamente existir entre operações de ajuda humanitária, reabilitação e desenvolvimento. Outra alteração importante é a que diz respeito ao desaparecimento da referência específica à cooperação com os países ACP, que era explicitamente uma cooperação inter-governamental através do instrumento financeiro FED. A questão da orçamentação do FED está actualmente na ordem do dia, uma vez que a Comissão propõe que a cooperação com os ACP passe a ser financiada pelo orçamento comunitário já para o período 2007-2013, enquanto alguns Estados (como Portugal) manifestam dúvidas quanto à bondade da proposta tal como nos foi apresentada. A questão de orçamentar as verbas do FED e isso poder vir automaticamente a originar uma melhoria da cooperação não é linear, uma vez que, se assim fosse, não existiriam há muito tempo quaisquer falhas na cooperação com os países da América latina e da Ásia. Por último, importa salientar que, apesar de as questões relativas à cooperação para o desenvolvimento e à ajuda humanitária estarem já definidas no texto, existem grandes debates institucionais que terão certamente reflexos nestas áreas.


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Reflexões sobre os condicionalismos políticos da ajuda ao desenvolvimento ISABEL PESTANA IEEI Contexto Vários países dependentes da ajuda externa adoptaram um regime democrático multi-partidário após o final da Guerra Fria. A ideologia baseada no partido único e na gestão centralizada da economia foi substituída pelo modelo político e económico liberal do ocidente, que passou a ser considerado como o único instrumento válido para o desenvolvimento, independentemente das características próprias do país receptor. Nas instituições financeiras internacionais, assim como noutros dadores, surgiu a percepção de que a aplicação das reformas profundas dos planos de ajustamento estrutural trariam, pelo menos num primeiro momento, consequências nefastas para várias camadas sociais dos Países em Desenvolvimento (PED). Tais danos seriam mais facilmente digeridos se as autoridades governamentais tivessem o apoio popular. Deste modo, a democracia servia o crescimento económico. Assim, nos anos 90, começaram a fazer parte dos processos de negociação (bargaining) entre dadores e receptores aspectos como: -

Os direitos humanos (com base na Declaração Universal dos Direitos do Homem, que se transformou num código universal de condutas morais básicas para guiar as relações das pessoas enquanto seres sociais);

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A democracia (promoção de eleições multi-partidárias, promulgação de constituições onde estivessem salvaguardados diversos direitos dos cidadãos, liberdade de associação, liberdade de expressão);

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A “good governance” (procedimentos essenciais para assegurar a honestidade e eficiência das políticas governamentais e do funcionamento da administração pública). A própria União Europeia, antes indiferente a estes aspectos, passou a relacionar desde então a sua ajuda a estes aspectos. Hoje, os condicionalismos políticos têm uma importância central na ajuda ao desenvolvimento, bem demonstrada nos objectivos do Acordo de Cotonou (artº 1º), dos quais são de sublinhar a promoção de um ambiente político estável e democrático e o apoio à emergência de uma socidade civil organizada. O último é tido como sendo essencial para a manutenção da democracia nos PED, pois serve de mecanismo de controlo aos abusos de poder cometidos pelos governantes21. É por esta razão que boa parte da ajuda passou a ser canalizada para organismos da sociedade civil. No entanto, estranhamente, o Tratado Constitucional não faz qualquer referência a este elemento na secção dedicada à cooperação para o desenvolvimento (artigos III – 316º a 320º). Problemas práticos Hoje, a negociação entre dadores e países receptores sobre desenvolvimento tem geralmente uma parte dedicada aos condicionalismos políticos. Mas a implementação de medidas de raiz ocidental nos PED, ou seja, num conjunto de países muito heterogéneo, com culturas políticas muito diferentes umas das outras, suscitou algumas questões problemáticas que merecem reflexão.

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Está aqui subjacente a ideia de “accountability”. Isto é, a noção de que uma sociedade civil consciente e organizada leva os governantes a responderem pelas suas acções.


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Primeiro, os dadores não podem intervir directamente na política doméstica dos receptores. Podem, contudo, pressioná-los. Por exemplo, em Novembro de 1994, a Noruega e a Suécia cortaram a ajuda concedida à Tanzânia, em protesto contra a corrupção praticada por este país. Depois, se por vezes os interesses dos dadores coincidem, possibilitando deste modo uma concertação do discurso sobre direitos humanos, democracia e good governance (logo, também, o exercício de maior pressão sobre os PED), nem sempre é assim. Há casos em que os interesses dos dadores não coincidem com este tipo de discurso. Isto acontece normalmente com antigas potências coloniais que têm interesses nas ex-colónias. Sendo o leque de interesses muito variado, dificilmente os países dadores conseguirão ter um discurso coerente sobre os condicionalismos políticos da ajuda. Os próprios Estados-Membros da União Europeia podem ter opiniões muito divergentes uns dos outros e também da Comissão. Assim, mesmo que haja esforços nesse sentido, dificilmente se chegará a um nível de complementaridade entre ajudas bilaterais e multilaterais. Por outro lado, os elevados índices de corrupção por parte das autoridades governamentais dos PED levam ao descrédito destas aos olhos da população. Outro problema é o fraco grau de participação da sociedade civil no processo de decisão, em parte fruto de uma fraca consciencialização dos direitos e deveres cívicos de cada um. De facto, a pobreza em que grande parte da população vive dificulta o processo de escolhas e reivindicações. Ora, a não-participação leva à perpetuação da pobreza. Especialistas apontam o acesso a informação independente e a capacidade da sociedade civil se organizar, de modo a suscitar o debate político e o fortalecimento da comunidade política, como condições essenciais para a participação na vida política das populações mais pobres. A falta de recursos internos dos PED dificulta o financiamento de organizações da sociedade civil. Estas têm quase que exclusivamente duas opções: serem financiadas pelo Estado e, logo, perderem a sua independência; serem financiadas por dadores externos e tornarem-se suspeitas aos olhos de parte da população, pois seriam tidas como agências locais de agentes estrangeiros. A ajuda ao desenvolvimento tem de ser analisada à luz dos interesses de uma e de outra parte – dadores e receptores – especialmente no que diz respeito aos condicionalismos políticos, dada a sua importância na luta contra a pobreza e na melhoria de vida das populações. Cabe a uns e a outros olhar para o caminho até aqui traçado e aprender com as dificuldades encontradas. O grande desafio que se lhes coloca reside na adaptação do modelo político e económico ocidental às necessidades e culturas locais dos PED, num espírito de aprendizagem mútua e de negociação contínua.


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Alguns Tópicos para Discussão sobre Cooperação para o Desenvolvimento JOÃO ESTÊVÃO Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) As perspectivas sobre a cooperação para o desenvolvimento têm evoluído significativamente desde o começo da década de 1960, quando a ajuda pública começou a constituir um importante instrumento de apoio ao desenvolvimento, em particular das jovens nações independentes. Nessa época, a visão dominante do processo de desenvolvimento era a da transição de sociedades predominantemente “tradicionais” para sociedades em que o processo de industrialização conduziria à emergência de estruturas “modernas”. Um dos principais bloqueios desse processo era a escassez de capital, que resultava da baixa capacidade de poupança dessas sociedades, pelo que era indispensável um afluxo considerável de financiamento para ajudar a compensar essa escassez. A partir do final da década de 1960, o fracasso da maior parte das experiências de desenvolvimento conduziu a modificações importantes na visão da cooperação. O aprofundamento da desigualdade económica e a incapacidade estrutural em garantir a satisfação das necessidades mais elementares de grande parte das populações, conduziram à emergência de uma visão do desenvolvimento muito orientada para a satisfação das necessidades básicas. Este novo enfoque e, consequentemente, a perspectiva de que a ajuda deveria ser canalizada prioritariamente para criar as condições mais adequadas à satisfação das necessidades básicas começaram a orientar a visão da ajuda para o objectivo da redução da pobreza. Na década de 1980, com o aprofundamento da crise no mundo em desenvolvimento e a irrupção do problema da dívida externa, assistiu-se a uma verdadeira “contra-revolução” na teoria do desenvolvimento económico (expressão utilizada num artigo de revista The Times, de 9 de Setembro de 1983) e a uma orientação do financiamento externo para o apoio aos programas de reforma estrutural. O objectivo principal era o de reconstruir as economias para garantir o funcionamento eficiente do mercado e, desse modo, esperar que a nova economia conduzida pelos “preços correctos” fosse capaz de sustentar o crescimento económico e criar um novo modelo de integração na economia mundial. Neste quadro, a cooperação e a ajuda desembolsada em moldes “tradicionais” foram fortemente criticadas, reforçando a tendência de “fadiga” revelada na evolução da ajuda ao desenvolvimento. No final dos anos de 1980 e durante a década de 1990 desenvolveram-se importantes visões críticas em relação à ideia de “mercado livre” que sustentava as propostas de reforma estrutural. Cresceu consideravelmente a preocupação com a dimensão institucional do funcionamento das economias em desenvolvimento. E esta leitura institucional do funcionamento das sociedades, e dos mercados em particular, acabou por ter um impacte significativo sobre a concepção da cooperação para o desenvolvimento. A este nível, são muito importantes as novas orientações para as políticas de cooperação para o desenvolvimento definidas tanto pela Comissão de Ajuda ao Desenvolvimento (CAD) da OCDE, como pela União Europeia. São orientações que, no essencial, apontam para a necessidade de se caminhar, através de parcerias eficazes, para a edificação de instituições sólidas, indispensáveis para a boa gestão pública, a redução da pobreza e a protecção do ambiente. É nesta perspectiva que podem ser colocados alguns tópicos para debate: 1. Um ambiente institucional devidamente estabelecido é indispensável para assegurar a estabilidade, a confiança e a disponibilidade para uma participação activa no processo de desenvolvimento: regras institucionais constitutivas, estruturas democráticas, sistemas de protecção dos direitos de propriedade e dos contratos, instituições jurídicas eficazes, instituições


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económicas e financeiras eficientes, etc. E esse ambiente é fundamental para garantir a eficácia da cooperação para o desenvolvimento. 2. A importância de programas de cooperação para o desenvolvimento globais, coerentes e definidos em parceria. Globais, porque devem articular os diferentes objectivos, níveis e metas da cooperação. Coerentes, porque as diferentes acções não devem ser desarticuladas, nem contraditórias entre si, e porque elas devem preocupar-se simultaneamente com o desenvolvimento interno e com uma maior integração na economia mundial dos receptores da cooperação. Os programas devem ser definidos em parceria, articular as acções dos agentes públicos, privados e não governamentais, e combinar os níveis nacional, sectorial e local. 3. A cooperação para o desenvolvimento deve dar uma atenção muito especial aos níveis de desenvolvimento dos países receptores, já que são diferentes as suas estruturas institucionais, produtivas, de comércio, etc., assim como são diferentes os níveis de realização das metas de desenvolvimento que vêm sendo definidas internacionalmente. A cooperação para o desenvolvimento deve apoiar o processo de desenvolvimento nos seus diferentes estádios de progresso, de forma que os países que progridem mais depressa não sejam “penalizados” pelo seu desempenho e que aqueles que avançam mais devagar sejam impulsionados a melhorar o ritmo. Estes são apenas alguns tópicos, cada um deles de grande amplitude, mas cujo debate me parece importante.


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A Cooperação Portuguesa face ao Enquadramento Multilateral JOÃO GOMES CRAVINHO Universidade de Coimbra 1.

2.

A convicção de partida é que não faz sentido estabelecer uma dicotomia entre cooperação bilateral e multilateral: a eficiência da cooperação bilateral depende, especialmente em países que têm uma forte presença internacional como Moçambique ou Timor, da eficiência do trabalho a nível multilateral. Um bom enraizamento nos mecanismos de cooperação e APD multilateral, é fundamental para: i)

O bom enquadramento da cooperação portuguesa num esforço global, e por conseguinte a eficiência das actividades bilaterais;

ii)

Desenvolver uma capacidade de alavancagem de recursos que é essencial para a influência de um país com fortes constrangimentos neste sector;

iii)

Valorizar a cooperação portuguesa aos olhos dos governos anfitriões que passam a ter não apenas um interlocutor para assuntos bilaterais mas – muito mais importante – um ponto de apoio para o diálogo multilateral.

Esta convicção é contrária à tendência na cooperação portuguesa de considerar que a cooperação multilateral é concorrente da cooperação bilateral. Podem identificar-se três razões para esta tendência: i)

Baixa qualidade da reflexão sobre a cooperação levando a que propostas aparentemente evidentes ou de senso comum passem sem qualquer aprofundamento;

ii)

Relativa autonomia ministerial leva a que os agentes da cooperação portuguesa tenham uma visão particular e não global da cooperação, e nessa óptica a cooperação multilateral pode efectivamente ser considerada uma rival;

iii)

O ocasional aparecimento de responsáveis políticos que pouco pensaram sobre o assunto pode consolidar a ideia de uma tensão entre o bilateral e o multilateral, sendo o caso de Manuela Franco o mais óbvio (e mais nocivo) dos últimos anos.

3.

O grande aumento de coordenação internacional que se regista na cooperação desde a segunda parte da década de 90 torna cada vez mais difícil e penalizante trabalhar de forma autista em relação à cooperação multilateral.

4.

A cooperação portuguesa dedica entre um terço e um quarto do volume total de APD à cooperação multilateral cada ano, por razões de obrigatoriedade, o que por si só sugere que vale a pena reflectir sobre a forma como esse dinheiro é gasto e se há uma relação clara entre objectivos, afectação de recursos, e aproveitamento. Além disso, Portugal pertence por inerência a diversos contextos multilaterais, alguns dos quais com grande importância para a agenda internacional do desenvolvimento, não havendo até ao momento qualquer estratégia para o envolvimento nacional nos grandes debates internacionais sobre desenvolvimento.

5.

Há efectivamente quatro grandes círculos de cooperação multilateral com participação (essencialmente de forma passiva ou sem consistência): União Europeia, OCDE, Banco Mundial e Nações Unidas. A dimensão e a relativa falta de preparação do país aconselham a que se faça uma selecção de campos de intervenção prioritários. Destes, em meu entender, merece destaque a UE, devido ao facto de termos nesse âmbito maior possibilidade de influência (e de gerar alianças ou participar nelas) do que em qualquer dos outros círculos. A forma de trabalhar em Washington (Banco Mundial) torna quase impossível uma maior influência portuguesa, mas isso não significa que se pode deixar de parte essa instituição. Pelo contrário, a cooperação portuguesa em Timor seria seguramente muito mais eficiente se


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soubesse estar atento ao que se passa no Banco Mundial e desenvolver sinergias nesse âmbito. No âmbito das agências das Nações Unidas deve haver opções muito claras no sentido de favorecer algumas instituições (como o PNUD) com quem se pode estabelecer um diálogo, deixando de parte outras menos relevantes para os nossos interesses. A OCDE não é, em minha opinião, um forum onde possamos ter muita influência, mas se nos tornarmos mais interventivos nos âmbitos multilaterais mencionados automaticamente ganhamos maior credibilidade também na OCDE.


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Mundo Árabe – Uma prioridade estratégica JOÃO QUELHAS Director de Relações Internacionais da Câmara de Comércio e Industria Árabe Portuguesa A anteriormente designada “ajuda ao desenvolvimento”, e agora “cooperação para o desenvolvimento” deverá constituir uma área de acção central da Política de Desenvolvimento da União Europeia. A cooperação para o desenvolvimento inclui as prestações da cooperação técnica, da cooperação financeira, e da cooperação para o desenvolvimento dos recursos humanos. Ela contribui para a melhoria sustentável das condições económicas, sociais, ecológicas e políticas e promove os direitos humanos, o princípio do estado de direito e da democracia, o combate à pobreza, assim como a prevenção de crises e conflitos. A política comunitária de cooperação para o desenvolvimento terá sempre que ser complementar às políticas dos Estados membros, motivadas pelos princípios da responsabilidade ética e da solidariedade internacional, mas também pela preocupação e pelo empenho de assegurar o próprio futuro. É neste quadro que a União Europeia (UE) tem levado a cabo inúmeras iniciativas, programas e acções, como o ED FUND, CARDS ou MEDA direccionadas a diferentes áreas geográficas do globo, desde a África, Caraíbas e Pacífico, Balcãs, ou Mediterrâneo e Médio Oriente. Na sua especificidade, Portugal tem concentrado os esforços da sua política de cooperação para o desenvolvimento, sobretudo para os países denominados de expressão oficial portuguesa. No entanto, é necessário alargar esse espectro dentro do quadro da UE. As políticas de Portugal nem sempre souberam valorizar a importância da ligação especial que o nosso país deve manter com o mundo árabe. Como afirmou o historiador Borges Coelho, analisar o trajecto de Portugal não é afinal possível sem se reconhecer a monumental influência do Islão. Esse reconhecimento faz-se ainda de forma ténue e pouco direccionada. Nem sempre nos lembramos de que Rabat é a capital mais próxima de Lisboa, e que Argel está mais perto de nós do que Paris. Depois, temos ainda que ter presente os países da bacia mediterrânica e do Médio Oriente e Golfo, procurando também aí incentivar contactos e parcerias, que no passado foram bem mais expressivas. Todos estes factores fazem com que as relações com o mundo árabe devam constituir uma prioridade estratégica e uma preocupação que Portugal tem que transportar para o contexto da União Europeia e das suas iniciativas de cooperação para o desenvolvimento. É do interesse de todos promover a segurança e a estabilidade do Magreb e da margem sul do Mediterrâneo. O Processo de Barcelona, iniciado em 1995, definiu uma agenda própria para uma parceria entre a União Europeia e os países da margem sul do Mediterrâneo, realçando não só os aspectos políticos e de segurança, mas sobretudo os diferentes ângulos económicos, sociais, culturais e humanos. Este projecto foi reforçado pela Estratégia Comum da UE para o Mediterrâneo, que consagra aquele Mar como a grande fronteira da União e, entre outros aspectos, encoraja o cumprimento de um objectivo específico alcançado em Barcelona – o estabelecimento de uma área de comércio livre em 2010, ligando os Estados membros da União aos doze parceiros mediterrâneos.


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Os instrumentos criados pela grande política, como o Programa MEDA, promotores do apoio a reformas no sector público e privado têm-se mostrado ineficientes e incapazes de dar uma cabal resposta. O futuro da UE, e daquilo que pretendemos que esta seja, passará sem dúvida pelas suas políticas de cooperação e, consequentemente, pela relação que formos capazes de construir com os países nossos vizinhos. A União sairá reforçada se for capaz de envolver aqueles que a circundam, apresentando-se ao Mundo como mais do que uma ilha de prosperidade.


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A Cooperação Europeia JOÃO MOSCA Instituto Superior de Educação Jean Piaget 1. Política externa europeia ou subalternidade ao Consenso de Washington Considerando que grande parte dos países africanos aplicam os Programas de Ajustamento Estrutural (PAE), como a Europa poderá (se o deseja) possuir uma política de cooperação independente dos EUA e do Consenso de Washington (CW)? É importante para a Europa e para as suas políticas de relações externas criar elementos de identidade e de diferenciação da cooperação? É possível? São conhecidas as influências das IBW e do Consenso de Washington sobre a economia internacional e sobre as políticas de cooperação dos países desenvolvidos. Por outro lado, são evidentes que os PAE e a cooperação não têm sido capazes de inverter a crise de grande parte dos países africanos. Eventuais políticas alternativas dependem de capacidades de financiamento que só a Europa e o Japão poderão suportar. Como compatibilizar os dilemas/conflitos da identidade da cooperação europeia com o “monopólio” do CW? Se a UE não encontra alternativas estará subalternizada na política internacional. É esta a política ou a estratégia que mais interessa à Europa? Aos países pobres não é certamente. 2. A cooperação internacional passa também por mudanças nas políticas internas dos países desenvolvidos Não existem dúvidas que a crise global das sociedades africanas derivam da combinação de factores internos e externos, económicos e não económicos. As possibilidades de inversão da crise dependem, em grande medida, das políticas internas nos países desenvolvidos e em desenvolvimento e de novas estratégias de cooperação e de relações internacionais. Neste ponto pretende-se destacar a importância de mudanças fundamentais das políticas económicas nos países desenvolvidos para a saída da crise africana. Destacam-se os seguintes aspectos: - Alteração dos mecanismos proteccionistas e dos subsídios internos aos produtos exportáveis (sobretudo alimentares) que distorcem o mercado internacional, dificultam a recuperação da produção alimentar, introduzem distorções institucionais e fomentam a corrupção nos países pobres. - Mudanças na organização e nos processos de decisão das organizações internacionais (Conselho de Segurança, FMI, BM, OMC, etc.). Como os países democráticos sustentam organizações não democráticas e as utilizam como instrumentos das políticas externas e de cooperação? - Grande parte da cooperação externa estabelece relações entre as elites dos países desenvolvidos e em desenvolvimento: nos primeiros, uma importante percentagem dos recursos da cooperação é suportada por fundos públicos (impostos dos cidadãos) e por outro são as elites receptoras as que mais se beneficiam. A pergunta é: existe cooperação entre estados ou entre elites que são as principais beneficiárias? Não é objectivo colocar as questões internas aos países em desenvolvimento. Apenas se refere que as mudanças internas deveriam respeitar a soberania dos povos. Naturalmente que esta questão é suficiente para um outro seminário. 3. Cooperação como instrumento das políticas externas Parece evidente e fundamentado afirmar que a cooperação é parte integrante e um instrumento (e por isso subalterna) das políticas e estratégias globais internacionais dos grandes interesses


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económicos e dos Estados desenvolvidos. É sobejamente conhecida a fundamentação e os factos que dão solidez à afirmação. Estes interesses passam por influenciar as políticas internas, impor “condicionalidades” para a ajuda, sustentar a corrupção e a ilegitimidade de alguns regimes, montar e reproduzir mecanismos de dependência a nível macro e das famílias, agredir a soberania dos Estados que não possuem alternativas e cujas elites se beneficiam através de obtenção de rendas de fontes e por vias duvidosas. A análise da política internacional passa pela compreensão dos regimes políticos e dos modelos económicos. Caso contrário é fácil acreditar nas políticas de superfície que introduzem hipóteses secundárias para amortecer e transmitir imagens humanitárias e de solidariedade quando, no essencial, a estratégias globais têm como objectivo reconfigurar a divisão internacional do trabalho com renovados mecanismos de dependência, reestruturar hierarquias entre nações e impor dominações políticas e económicas, mesmo que para o efeito seja necessário manipular e instrumentalizar à escala internacional e local elementos de conflito étnico, religioso e cultural.


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Ajuda e Comércio UE-ACP: Novos Desafios JOCHEN OPPENHEIMER Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) A leitura dos documentos do European Development Cooperation Project to 2010 da EADI22 (www.eadi.org/edc2010) e dos relatórios The Reality of Aid, elaborados pelas ONG da OCDE (www.realityofaid.org), assim como alguns resultados da literatura científica recente sobre o processo de desenvolvimento (Chang 2002 e 2003)23, permitem-nos situar alguns dos mais importantes desafios actuais e futuros com os quais a UE se vê confrontada na sua política de cooperação com os países do Sul, em geral, e com os ACP, em particular. Ajuda A UE fornece metade da Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) bilateral e multilateral da OCDE. Três quartos desta APD da UE são bilaterais e só um quarto é da responsabilidade multilateral da UE. A tendência tem ido no sentido do aumento da parte multilateral, o que é um sinal positivo, na medida em que permite reduzir a sobredeterminação da APD pelos interesses não confessados (comerciais, geo-estratégicos, de política cultural externa, etc.) dos países membros da UE. Esta tendência torna ainda mais importante o debate sobre o rumo da política de cooperação comum da UE. Senão vejamos: -

Muitas ONG manifestaram a sua preocupação face à crescente subordinação da política de desenvolvimento da UE à política externa e de segurança comum desta;

-

Os países ACP criticam a tendência para a orçamentação da ajuda uma vez que reduz a parte contratualizada, previsível e supervisionada pelos órgãos comuns UE/ACP, da assistência financeira da UE;

-

Ambos alertam para o crowding out dos países do Sul com o maior número de pobres, a favor da assistência financeira fornecida aos países da Europa de Leste e do Mediterrânico;

-

A decisão da UE de prosseguir os objectivos do milénio e de integrar a sua ajuda nos PRSP (Poverty Reduction Strategy Papers) dos países beneficiários é geralmente aplaudida, embora se torne também claro que, com o volume da ajuda actualmente prestado, não será possível atingir os objectivos do milénio no prazo previsto.

-

Por outro lado, por via da ligação do combate à pobreza ao condicionalismo dos PRSP, a UE corre o risco de submeter-se a uma nova variante da ortodoxia emanada do Washington consensus, continuando assim a trajectória já antes observada, e caracterizada pelo grande protagonismo da UE como co-financiador do esforço de desenvolvimento do países do Sul, deixando aos organismos de Bretton Woods o papel de "intelectual orgânico" deste grande projecto da humanidade.

22

European Association of Development Research and Training Institutes, veja-se também o sítio do Overseas Development Institute (ODI). 23 Chang, Ha-Joon, Kicking Away the Ladder. Development Strategy in Historical Perspective, Anthem Press, Londres, 2002; Chang, Ha-Joon ,(ed.), Rethinking Development Economics, Anthem Press, Londres, 2003


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Comércio “Instead of enhancing Africa’s integration into the world economy, the free trade agreements proposed by the US and EU will likely result in Africa´s further marginalization and the undermining of the already perilous state of regional economic integration in Africa.”24 Nos últimos 30 anos, o relacionamento comercial da UE com os países ACP tem sido baseado no acesso não recíproco dos ACP aos mercados da UE. No entanto, as exportações dos ACP para a UE-25 têm estagnado neste período, o que levou à redução da sua parte nas importações totais da UE-25, enquanto as importações provenientes dos "tigres asiáticos" e da China aumentaram substancialmente. A convenção de Cotonou (2000) veio substituir, ao longo de um período de transição de 2000 a 2008, o regime tarifário não recíproco por regimes compatíveis com as regras da OMC. Sendo assim, a convenção de Cotonou prevê a celebração, até 2007, de Acordos de Parceria Económica (APE), tendencialmente recíprocos, entre a UE e agrupamentos regionais de países ACP. Estes Acordos poderão incluir o comércio de serviços. Os desafios desta nova fase são de vária ordem (Gillson e Grimm, www.eadi.org/edc2010): -

Os países menos avançados (PMA) têm, no quadro do Acordo EBA (Everything But Arms), acesso livre de direitos e quotas aos mercados da UE para todos os seus produtos, armas excluídas, e até 2009 mesmo para bananas, arroz e açúcar. Por conseguinte, para estes países não existe incentivo para substituir os EBA pelos APE, uma vez que os EBA não contemplam a obrigação de desarmamento tarifário da parte dos PMA.

-

Torna-se difícil conceder tratamento diferente a países com graus de desenvolvimento diferente, fazendo parte do mesmo agrupamento regional.

-

Muitas vezes os países ACP fazem simultaneamente parte de vários agrupamentos regionais.

-

No quadro do Sistema Generalizado de Preferências (SGP), compatível com as regras da OMC, muitas das exportações agrícolas dos PVD são livres de direitos e quotas nas fronteiras da UE, existindo todavia salvaguardas quando os produtos em questão entram em contradição com a Política Agrícola Comum (PAC). Se bem que os acordos de Lomé e de Cotonou já tenham reduzido o número destas salvaguardas, o regime EBA ainda é mais vantajoso, uma vez que as elimina totalmente até 2009.

-

Em todos estes regimes de acesso aos mercados da UE existem regras de origem difíceis de verificar.

Face a estas difíceis e complexas questões técnicas que implicam negociações demoradas, nos próximos anos, entre os 77 países ACP e a UE, não devemos perder de vista algumas questões de fundo e os seus impactos a longo prazo: -

As negociações em questão desviam os escassos quadros técnicos qualificados dos Estados ACP de outras tarefas, que são tanto ou mais importantes, numa óptica de desenvolvimento sustentável. Estes custos de oportunidade não são avaliados.

-

Os países ACP perdem, antes do tempo, o instrumento de protecção tarifária e não tarifária dos seus mercados internos. Este instrumento constituiu, em conjunto com outros instrumentos voluntaristas de política de desenvolvimento, uma alavanca importante no processo histórico do catching-up da maior parte dos países hoje desenvolvidos (Chang, 2002, op. cit.).

24

Margaret C. Lee, The US and EU – Undermining regional economic integration in Africa, News from the Nordic African Institute, nº 3, October 2004, p. 8


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-

25

A liberalização dos mercados internos e a privatização dos serviços públicos (educação, saúde, abastecimento de água, energia, etc.), em conjunto com a sua abertura ao investimento estrangeiro pode, através do aumento dos seus preços que passam a reflectir por inteiro os custos de produção e lucro empresarial, entrar em contradição com o outro grande objectivo declarado da política de cooperação da UE, que é o combate à pobreza e à exclusão social.25

Veja-se o aceso debate em curso sobre o Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços – ACGS (GATS em inglês e ACGS em françês), assinado no quadro da OMC em 1994 e actualmente em fase de renegociação.


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Topics for Discussion on Official Development Assistance (ODA) JOSÉ MANUEL ROLO Instituto de Ciências Sociais

Topics borrowed from Stephen Browne`s ”The Rise and Fall of Development Aid” 26and others 1 It is fifty six years since foreign aid was born: more than half a century during which more than US$1 trillion has been staked by the richer countries on the development process in the poorer ones. 2 In a world in which the population has grown by three billion, the numbers of those living in destitution have increased substantially. 3 Although arguments about quality and targets remain relevant, the World is moving to a new concept of what should be about…the new philosophy involves changing the relationship between donor and recipient governments from charity and dependency to interdependence and shared contractual obligation. 4 Foreign aid to developing countries has had no net impact on either the recipients’ growth rate or the quality of their economic policies. 5 It is legitimate to ask how much worse off the victims of underdevelopment would have been without aid. But there are also uncomfortable answers to questions of whether aid may actually have worsened the plight of the poor and deprived in some countries. 6 If development assistance programs were run on the same principles as national welfare programs, they would be the subject of radical reform. 7 There is no conclusive evidence that official capital or food aid have contributed to gap-filling on a sustainable basis; in some cases, the opposite has been true. 8 The system of global economic governance has failed to mitigate the adverse conditions of the global economy for many developing countries and these conditions more than negate the resource flows from aid. 9 There are many essential institutional and contextual conditions necessary for development to proceed on a sustainable basis, which have little to do with economics and which have been left largely untouched by aid. 26

(http://www.wider.unu.edu/plec9706.htm)


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10 Development aid has perpetuated an unfortunate two-tier (or four tier) global hierarchy inimical to the widening of international cooperation. 11 There has been a steady convergence in the motivations of self-interest that drive bilateral aid and, increasingly, multilateral aid. 12 Recently, we have witnessed a sudden slackening of aid effort… and the peace dividend that might have been supposed to follow the steady reductions in military spending did not materialize. 13 Aid may not be dying, but the total aid effort and the different forms in which aid is expended by donors on recipients, are increasingly being questioned as legitimate vehicles for the promotion of the development process. 14 Less aid… End of ritual aid and aid targeting – we should doubt those that continue to urge for more of the same; the proponents of “aid at any price” are no longer credible. End of aid culture – after 56 years, aid and development have almost become mirror images of each other: no aid without development and no development without aid. This association is unfortunate because it has tended to encourage the idea that development can only proceed with the benefit of aid and that it cannot proceed without it. Paternalism in aid relationships has inculcated a culture of dependence in some program (recipient) countries, resulting in a feeling of helplessness and indignation when aid seems not to be sufficient. One of the most unfortunate manifestations of the aid culture is the tendency for major development conferences to become aligned into two artificial camps and preoccupied-almost to the exclusion of constructive debate-with sufficiency or insufficiency of aid resources. 15 …more development cooperation through… consistent debt forgiveness; market access; aid to end aid; contracting; global governance reform; information technology. 16 …framed by human rights; good governance; democracy


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O Papel da Europa na Ajuda aos Países em Desenvolvimento JOSÉ PEREIRA DA COSTA CERIS, Universidade Livre de Bruxelas

A Europa não deverá deixar de ser o principal pilar da ajuda mundial aos países em desenvolvimento, apesar do reforço necessário dos fundos de coesão (e de outras políticas) destinados aos países de leste que recentemente a integraram. Porque a Europa, representando mais de 50% do apoio prestado ao desenvolvimento, (31 mil milhões de euros num total de 60 mil milhões, em 2002) realiza por meios pacíficos uma acção importantíssima de solidariedade, mas também de contribuição para o estabelecimento de relações estáveis entre os povos e de uma ordem internacional mais justa. E precisamente porque destituída de objectivos de domínio territorial e hegemónicos, na ausência de um poderio de características militares, o papel da União Europeia como actor principal na Cooperação para o Desenvolvimento apresenta-se como um dos mais eficazes e credíveis no contexto actual. Com o seu Sistema de Preferências Generalizado, (GPS), há longos anos posto em prática nos acordos de Lomé com os países ACP (África, Caraíbas e Pacífico), a iniciativa EBA (Everything But Arms) e os acordos de Cotonou, do ano 2000, um quinto das exportações dos países em desenvolvimento é absorvido pela Europa e 40% das suas importações têm origem naqueles países. Mas, mais do que isso, os acordos de Cotonou, que substituíram e actualizaram os de Lomé, iniciados em 1975, introduziram importantes mudanças consubstanciadas na implementação de objectivos políticos. A sociedade civil nesses países - sindicatos, associações patronais, ONG, etc. passou também a participar na concepção e implementação das políticas desenvolvimentistas: ambiente, direitos do homem, políticas sociais, desenvolvimento sustentado, entre outras. A Europa, com o seu modelo integracionista e de partilha de soberanias, serve também de inspiração para a criação de entidades políticas similares noutros continentes. Organizações como a União Africana, (UA), criada em Julho de 2002, na cimeira de Durban, que substituiu a antiga Organização de Unidade Africana, (OUA), procuram seguir o exemplo da União Europeia no modo de funcionamento dos seus órgãos constitutivos, além de beneficiarem de importantes apoios financeiros. Institucionalizado na Cimeira do Cairo, em Abril de 2000, o Diálogo União Europeia-África é uma conferência que reúne periodicamente para tratar de temas como a prevenção de conflitos, a dívida externa, direitos humanos, democracia e boa governação, Sida, segurança alimentar, ambiente, integração regional e comércio. Depois de uma segunda reunião em Novembro de 2002 no Burkina Faso, o terceiro diálogo institucional, que se deveria realizar em Lisboa, em 2003, foi anulado devido a problemas relativos à participação da Líbia e Zimbabué. Finalmente, a quarta cimeira África-Europa foi concretizada em Dublin, em Abril de 2004. Com a sua Assembleia Parlamentar, Conselho Executivo e Comissão, e ainda um Tribunal dos Direitos Humanos, a União Africana pretende igualmente dinamizar a integração e coordenação das actividades das organizações económicas regionais, como a Comunidade Económica de Estados da África Central, (CEEAC), a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral, (SADC), a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental, (CEDEAO) e o Mercado Comum do Sudeste Africano (COMESA).


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Como não pode haver desenvolvimento sem paz, a UA introduziu no seu Acto Constitutivo a possibilidade de intervir na prevenção de conflitos em África, criando um Conselho para a Paz e Segurança, que organizou uma força militar de regulação de conflitos e um sistema de alerta precoce dos mesmos, sendo estas iniciativas financeira e institucionalmente apoiadas pela União Europeia. Também, com poderes mais reforçados que a antiga OUA, recebeu um mandato de competências no domínio económico muito mais alargado. No último ano de vigência da OUA, 2001, foi criado a New Partnership for Africa’s Development, (NEPAD), com vista a facilitar os contactos com os países e organizações internacionais doadores e preparar os projectos a implementar. A NEPAD, agora integrado na UA, tem por missão realizar acções, financiadas pela comunidade internacional, que vão no sentido da concretização dos Objectivos do Milénio, proclamados em 2000 nas Nações Unidas, na presença da maior parte dos Chefes de Estado dos países membros: erradicação da extrema pobreza, ensino primário universal para as crianças dos dois géneros, luta contras as epidemias, em especial a Sida, redução para metade do número de pessoas sem acesso a água potável e saneamento, sustentabilidade ambiental, criação de um partenariado mundial para o desenvolvimento, com vista à duplicação da ajuda dos países desenvolvidos, de modo a atingir 100 mil milhões de dólares anualmente. Com a sua acção integradora e inter-regionalista, de que falou Mário Telò no último Fórum Euro-Latino Americano, a União Europeia vai estendendo a sua influência política, económica e social a todo o mundo, através de uma teia de relações que se vão forjando em todas as regiões e países. Um novo poder civil capaz da resolução de problemas e conflitos, através da cooperação, vai-se fortalecendo, como contra-ponto ao poder global da única super-potência, baseado na força militar. Os próximos tempos dirão se nesta rede inter-regional mundial, onde se confrontam interesses muito diversos e diferentes civilizações, poderá haver um tratamento pacífico e eficaz dos principais problemas da humanidade, como o desenvolvimento dos países menos avançados, o uso mais eficaz da energia e dos recursos naturais, a regulação pacífica dos conflitos entre Estados. Se assim for, não será mais do que a concretização dos princípios da Carta das Nações Unidas, proclamados há 60 anos, onde se previa já, no seu Capítulo VIII, o funcionamento de acordos entre organismos regionais, capazes de regular conflitos relacionados com a paz e segurança internacionais.


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A ajuda dos Estados membros da União Europeia MANUELA AFONSO Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento A União Europeia (UE)27 é um actor particularmente influente na Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD), não apenas porque o volume de ajuda da UE constitui uma importante parcela da APD global mas também porque os seus Estados-Membros (EM) são colectivamente os maiores doadores, tendo contribuído com mais de metade (52%) de toda a ajuda em 2002, da qual a Comissão (CE) gere directamente cerca de 22%. Um pouco antes da Conferência de Monterrey, os EM da UE acordaram, no Conselho de Barcelona, alcançar colectivamente os 0.39% do RNB até 2006 e, à luz desse compromisso, cada EM deverá alcançar pelo menos 0.33% do RNB até à mesma data. Ainda no quadro de Barcelona, foi acordada a adopção de outras medidas, entre as quais se destacam: melhorar a eficácia da ajuda através de uma maior coordenação e harmonização; adoptar medidas para desligar a ajuda aos Países Menos Avançados (PMA); e, prosseguir os esforços para tornar sustentável a dívida dos PMA, no quadro da Iniciativa PPAE (Países Pobres Altamente Endividados – ou HIPC). É à luz destes princípios, dos compromissos assumidos e dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM) que deve ser analisado o esforço e as características da ajuda dos EM da Comunidade. Em termos de volume e generosidade da ajuda, apesar das dificuldades orçamentais de muitos EM, o conjunto dos países da UE aumentou a sua APD em 2002, em 5.8% em termos reais, quando comparada com 2001, e as estimativas do CAD para 2003 prevêem um novo aumento, de 2.2%, relativamente a 2002. A França foi aquele que registou o maior aumento, reflexo quer da vontade de honrar os compromissos que assumiu de atingir os 0.5% até 2007 e os 0.7% até 2012, quer dos esforços de alívio da dívida no quadro da Iniciativa PPAE. Se atendermos às estimativas para 2003, a tendência geral parece ir no sentido de honrar os compromissos, pese embora a existência de países com comportamento errático: 8 países registam diminuição na sua APD relativamente a 2002. As maiores diminuições na ajuda, em termos reais, registaram-se em Portugal (devido à diminuição das contribuições multilaterais e a cortes na cooperação técnica bilateral, reflexo dos constrangimentos orçamentais), na Áustria, Itália, Suécia, e Dinamarca. Espanha e Holanda registam novamente contracção na sua APD. Em 2002-3, os maiores doadores foram a França, Alemanha, Reino Unido, Holanda e Itália que, conjuntamente, foram responsáveis por cerca de 72% da ajuda dos EM da UE. B. Fluxos de ajuda, em milhões de dólares e em percentagem do RNB, em 2002 e 2003

Alemanha Áustria Bélgica Dinamarca Espanha Finlândia França Grécia Holanda Irlanda Itália Luxemburgo Portugal 27

APD (milhõesUSD) 5324 520 1072 1643 1712 462 5486 276 3338 398 2332 147 323

2002 APD/RNB % 0.27 0.26 0.43 0.96 0.26 0.35 0.38 0.21 0.81 0.40 0.20 0.77 0.27

Variação (%) APD 2001-2002 (milhõesUSD) -0.2 6694 -8.4 503 14.8 1887 -5.8 1747 -10.3 2030 11.5 556 22.1 7337 25.5 356 -3.3 4059 25.7 510 32.6 2393 0.2 189 9.2 298

2003 APD/RNB % 0.28 0.20 0.61 0.84 0.25 0.34 0.41 0.21 0.81 0.41 0.16 0.80 0.21

Variação (%) 2002-2003 3.9 -20.7 43.2 -12.8 -4.6 -0.2 9.9 4.0 -1.3 5.1 -16.7 5.6 -24.8

Incluímos nesta análise apenas os 15 EM, antes do alargamento de Maio de 2004, o qual vem trazer recursos adicionais para a ajuda ao desenvolvimento da UE, dado que alguns dos novos membros são já doadores com algum significado.


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Reino Unido 4924 0.31 0.0 6166 0.34 Suécia 1991 0.83 10.9 2100 0.70 Total EU-15 29949 0.35 5.8 36825 0.35 Total CAD 58274 0.23 7.2 68483 0.25 Fonte: www.oecd.org/dataoecd/42/61/31504039.pdf ; www.oecd.org/dataoecd/50/51/25656888.pdf

11.9 -14.1 2.2 3.9

Alguns dos EM mais pequenos são os doadores mais generosos. Dinamarca, Holanda, Luxemburgo e Suécia, pertencem ao pequeno grupo de países (do qual também faz parte a Noruega) que atingiram a meta dos 0.7% do RNB para a APD, fixada em 1970 pelas Nações Unidas. Quatro outros países indiciam forte vontade de atingir as metas que acordaram: Bélgica, França, Irlanda e Reino Unido. Compromisso de Monterrey

Em 2002, na Conferência Internacional sobre o Financiamento do Desenvolvimento, os países da União Europeia comprometeram-se a aumentar a ajuda para 0.39% do PNB até 2006 – cerca de 11 mil milhões de dólares a mais por ano. Entre os membros individuais: A Áustria, Alemanha, Grécia, Itália, Portugal e Espanha prometeram atingir 0.33% do RNB até 2006. A Bélgica prometeu atingir 0.7% do RNB até 2010. A Finlândia prometeu atingir 0.4% do RNB até 2007. A França prometeu atingir 0.5% do RNB até 2007. A Irlanda prometeu atingir 0.7% do RNB até 2007. O Luxemburgo e a Holanda prometeram atingir 1.0% do RNB até 2005. A Suécia prometeu atingir 1.0% do RNB até 2006. O Reino Unido prometeu atingir 0.4% do RNB até 2005-06. A Dinamarca abandonou o objectivo 1.0% do RNB, que chegou a ultrapassar, mas mantém o compromisso de continuar a respeitar os 0.7% do RNB. Apesar do crescimento, os níveis de ajuda estão ainda muito abaixo daquilo que é necessário para alcançar os ODM. O fosso entre ricos e pobres não pára de aumentar. Por isso, qualquer aumento no volume da ajuda deve ser analisado no quadro dessa realidade e da necessidade de aumentar igualmente a qualidade e eficácia da ajuda, ou seja, é preciso que ela contribua para a eliminação sustentável da pobreza absoluta. Interessa, assim, olhar para as características da ajuda. Em termos de estrutura, a ajuda bilateral excede a multilateral em quase todos os EM, facto que não ignorará a importância de outros objectivos e prioridades, para além da redução da pobreza. Embora esta seja uma tendência de longo prazo, o pós-11 de Setembro pode fazer crescer ainda mais a parcela bilateral. Há mesmo quem veja a possibilidade de uma nova potencial guerra-fria nesta matéria, fazendo diminuir a eficácia da ajuda (Rogerson, 2004). Relativamente à composição da ajuda bilateral dos EM, verificamos que a maior parte dos fluxos são donativos, predominantemente de cooperação técnica (CT), em actividades de apoio à formação/capacitação dos recursos humanos, frequentemente no país doador. Suécia, Irlanda, Dinamarca e Itália apresentam as percentagens mais baixas de CT. Portugal é o EM com o maior valor, quase 70%, reflexo do peso do apoio aos bolseiros (ensino superior) e dos tratamentos médicos. Em contrapartida, a ajuda de emergência assume maior peso relativo na Suécia, Dinamarca, Luxemburgo e Finlândia, com valores acima da média do CAD. A Irlanda é o doador europeu que maior percentagem de RNB afecta ao apoio às ONG: 0.10%, em 2001-2002 (OCDE, 2004). Na Holanda, muito do trabalho de desenvolvimento é actualmente executado pelas ONG, afectando 0.06% do RNB ao co-financiamento destas organizações. No lado oposto estão países como a França que, apesar de no discurso dar grande importância à colaboração com as ONG, prefere trabalhar mais directamente com os governos parceiros, facto que se reflecte no reduzido apoio a estas organizações – apenas 0.7% do total da ajuda francesa e 0.01% do RNB (em 2001-2002). Grécia, Itália e Portugal são os três membros em que a percentagem de RNB para as ONG é residual (0.00%, em 2001-2002).


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Uma análise mais aprofundada da forma como se distribuem os recursos da ajuda bilateral realça os desfasamentos entre o discurso e a prática e põe a descoberto a existência de agendas bilaterais próprias. Por exemplo, o sector da educação recebe a maior percentagem, mas a fatia da educação básica é muito modesta, o mesmo acontecendo como a saúde básica. A ajuda para os serviços sociais básicos (saúde e educação básicos, água, saneamento), críticos para atingir os ODM, continua a ser inferior a 15% das afectações bilaterais, ou seja, muitos países europeus continuam muito longe do objectivo 20:20 que colheu amplo apoio na Cimeira Social de Copenhaga, em 1995. Há, contudo, grandes diferenças entre doadores: a Áustria, Irlanda, Luxemburgo, Holanda e Reino Unido já atingiram os 20% da ajuda para as infra-estruturas e serviços sociais básicos (PNUD, 2003). Em termos de distribuição da ajuda, o discurso dos doadores realça o objectivo de afectar a ajuda aos PED mais pobres e a importância da selectividade da ajuda em função da apresentação de resultados pelos parceiros. Mas, a retórica da selectividade dos países ainda está longe da concentração da ajuda nos países que mais dela precisam e melhor a sabem utilizar. As considerações comerciais, políticas e de segurança continuam a exercer forte pressão na distribuição da ajuda (Radelet, 2004). Esta realidade é evidente quando se analisa a distribuição da ajuda por grupos de países em função do rendimento e por região geográfica. Com efeito, desde 1990 tem havido uma redução da ajuda em termos reais para os PMA e outros países de baixos rendimentos. Em percentagem do total, as transferências para os PMA passaram de 37% em meados dos anos 80 para 32% no final dos anos 90. A conclusão é que há outras considerações de peso na tomada de decisão sobre a distribuição da ajuda bilateral que não apenas o objectivo de redução da pobreza. Por exemplo, no caso da França, a ajuda pode ser entendida como parte da política externa do país, especialmente no que diz respeito às excolónias e DOM-TOM. Nos casos da Dinamarca e Reino Unido, especialmente desde os anos 90, um objectivo declarado foi criar coerência na relação entre a ajuda e a restante política externa (Degnbol-Martinussen, 2003). Em termos de distribuição da ajuda global por regiões, na última década as principais mudanças são a quebra da ajuda para o Leste Asiático e o crescimento para a Ásia Central e do Sul e África Subsahariana. Contudo, a distribuição geográfica da APD varia consideravelmente entre doadores. As ex-potências coloniais continuam a concentrar a sua ajuda nas ex-colónias enquanto que os doadores mais pequenos são mais abrangentes. A Espanha ilustra bem esta realidade, canalizando quase 44% da ajuda para a América Latina e Caraíbas. O mesmo acontece com Portugal, na sua preferência pelos PALOP e, mais recentemente, por Timor-Leste. A ajuda aos países da Europa Central e de Leste ganha significado em EM como a Grécia e a Áustria, pela proximidade geográfica e potencial ameaça de instabilidade. Os critérios para a escolha dos países parceiros não são uniformes baseando-se quer em critérios históricos (França, Portugal, Reino Unido), quer condições de pobreza, humanitarismo e governação (países nórdicos, Irlanda, Holanda), entre outros (proximidade geográfica – Grécia). O número de países parceiros também varia entre os EM bem como a existência (ou não) de critérios para os identificar. Há casos em que a APD se concentra num número mais ou menos reduzido de parceiros (a Irlanda tem 10 países alvo, Portugal tem 6) e outros em que a dispersão é a tónica dominante. Apesar dos progressos dos últimos anos, há ainda muito a fazer para alcançar os ODM. Os EM da UE comprometeram-se a aumentar o apoio aos PED que adoptem reformas e políticas “correctas”. Comprometeram-se também a aumentar a qualidade e eficácia da ajuda. O primeiro é mais facilmente atingível que o segundo, na medida em que há muitos factores que estão subjacentes à melhoria da eficácia da ajuda. Estudos recentes evidenciam que muitos EM têm ainda um longo caminho a percorrer para promover a qualidade da sua ajuda. Para incrementar a qualidade e eficácia da ajuda será necessário trabalhar não só ao nível nacional mas também entre doadores e com os parceiros de desenvolvimento. Tornar a ajuda mais eficaz implica, entre outras medidas: Harmonizar as práticas e procedimentos, simplificando os mecanismos de distribuição da ajuda;


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Tornar a ajuda mais previsível, flexível e sustentável, escolhendo os instrumentos e mecanismos de implementação que melhor se adaptem à realidade de cada parceiro; Orientar a ajuda fundamentalmente em função dos resultados e dos objectivos de redução da pobreza, centrando-a nos PMA e articulando-a com as estratégias nacionais de luta contra a pobreza, promovendo a sua apropriação; Desligar a ajuda; Aumentar a parcela multilateral, não só através dos programas da UE, mas também de outros canais como o Banco Mundial e as NU; Apoiar a actuação das ONG, pa rticularmente nos países com graves problemas de governação.


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O Envolvimento de Actores Não-Estatais na Cooperação Europeia com Países em Conflito SÉRGIO FERREIRA GUIMARÃES Investigador Associado, Instituto Português de Relações Internacionais e Segurança A União Europeia (UE) considera a sociedade civil como um pilar fundamental da sua política de desenvolvimento, em particular na cooperação com países afectados por conflitos. Num contexto caracterizado pela complexidade e instabilidade política, económica e social, a escolha dos parceiros locais assume um especial significado, dado que irá condicionar, em larga medida, a estratégia de acção e o seu impacto no terreno. A importância no seu envolvimento resulta enquanto meio da cooperação para o desenvolvimento fazer face ao conjunto de diferentes interesses e percepções dos actores em oposição, promover a participação dos grupos marginalizados e na diáspora e procurar garantir o seu envolvimento no processo de desenvolvimento. O apoio ao reforço da capacidade da sociedade em gerir as tensões e as disputas sem violência é considerado um elemento essencial do trabalho de desenvolvimento, no qual as agências doadoras pretendem desempenhar um papel catalítico para a inclusão alargada de grupos sociais nos processos de discussão e negociação da ajuda, procurando perceber e fazer uso efectivo do valor acrescentado de cada actor. Reconstruir pontes de entendimento e comunicação entre os grupos sociais e promover a sua participação na vida política, embora sejam apontados como elementos essenciais para a reconciliação social, colocam inúmeros problemas à comunidade doadora quando se trata de traduzir esses princípios no envolvimento efectivo de actores não estatais em países afectados por conflitos. Pela primeira vez, existe um compromisso legal para o seu envolvimento tanto na formulação da cooperação com os países da África, Caraíbas e Pacifico (ACP), bem como na avaliação dos seus resultados, tal como expresso no Acordo de Cotonou assinado em 2000 por um período de vinte anos. Os governos centrais continuarão responsáveis pela determinação das estratégias de desenvolvimento, mas os actores não estatais e as autoridades locais irão estar envolvidos no processo de consulta, na planificação das estratégias de desenvolvimento nacional e na implementação dos programas, com possibilidade de recurso a fontes de financiamento. Salienta-se que o Acordo de Cotonou não restringe a sociedade civil às ONG. Em vez disso, é adoptada uma abordagem abrangente do conceito, alargando o seu âmbito às mais diversas organizações, desde grupos de defesa dos direitos humanos, organizações de base, associações de mulheres, movimentos de defesa do meio ambiente, institutos de investigação, etc. Enquanto os governos locais não são considerados formalmente como sendo actores não estatais, o texto e o espírito do Acordo reconhecem estes como sendo novos actores na parceria, com um papel específico e com um valor acrescentado. Ao abrigo deste novo quadro de cooperação e no contexto da reforma em curso, a CE está confrontada com a questão de ter ou não capacidade para desenvolver uma correcta avaliação de todas as áreas possíveis e grupos a envolver e quais é que poderão contribuir melhor para os objectivos da União na pacificação e estabilização de um país, bem como assegurar a sustentabilidade das suas intervenções num contexto de estruturas administrativas formais enfraquecidas ou inexistentes, instabilidade política e ambiente volátil. Embora o novo Acordo ACP-UE preveja que estes actores participem no diálogo político, na definição das estratégias e políticas de desenvolvimento, no exercício da programação, na implementação e no acesso aos recursos financeiros, a UE ainda não fez saber como tal será efectuado, especialmente em países afectados por conflitos, onde esta questão assume maior relevância.


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Em Estados em que o espaço político é restrito, levanta-se a questão de saber o que significa envolver actores não estatais e quem serão eles. As delegações da CE poderão estar bem colocadas para dar estas respostas. Porém, isso exige o conhecimento de “quem é quem” no terreno por parte da delegação e, da parte dos actores não estatais, o conhecimento das provisões do Acordo de Cotonou e das oportunidades que este contém para a sua participação. As novas oportunidades criadas com Cotonou poderão impulsionar processos de agrupamento dos actores não estatais. Todavia, as actuais estratégias da cooperação tendem a atribuir a estes actores o papel de agentes de implementação e não de verdadeiros parceiros, com uma acção fundamental a desempenhar na prevenção e gestão de conflitos, contribuindo em ultima análise para a standartização das intervenções. Em muitos países ACP não existem mecanismos de diálogo estruturados, permanecendo por definir o papel que cada um dos actores deverá desempenhar. Não existe ainda um quadro de referência que determine a forma como se deverá organizar o diálogo entre os diferentes actores, nem a capacidade de gerir este processo. Existem um conjunto de questões para as quais não houve ainda resposta, nomeadamente: -

a quem competirá decidir que actores não estatais deverão ser envolvidos na futura cooperação ACP-UE;

-

que capacidades serão necessárias reforçar para fortalecer as organizações da sociedade civil (de forma a que estas se tornem legítimas e representativas);

-

como se poderá reforçar a capacidade dos organismos competentes nos ACP e na UE com vista ao aumento da cooperação com a sociedade civil. As novas modalidades de participação destes parceiros no âmbito da cooperação ACP-UE passarão necessariamente por um processo de aprendizagem progressiva, experimentação e inovação institucional.


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A Educação para o Desenvolvimento SÍLVIA ROQUE Plataforma Portuguesa das ONGD Em Novembro de 2001 o Conselho de Desenvolvimento da União Europeia aprovou uma resolução sobre a Educação para o Desenvolvimento em que afirma: “Considerando que, dada a interdependência global da nossa sociedade, a sensibilidade através da educação para o desenvolvimento e da informação contribui para reforçar o sentimento de solidariedade internacional e para criar um clima propício à emergência de uma sociedade intercultural na Europa; que essa mesma sensibilização contribui também para alterar os modos de vida, privilegiando um modelo de desenvolvimento sustentável para todos e, por último, para aumentar o apoio dos cidadãos à realização de esforços suplementares de financiamento público à cooperação para o desenvolvimento” (...). O eixo fundamental da Educação para o Desenvolvimento é a opinião pública, da qual todos fazemos parte. O objectivo é torná-la capaz de reflectir e de agir no sentido da alteração de situações que provocam desequilíbrios e injustiças a nível individual e colectivo. Dela - de sectores específicos que a compõem - pode surgir a perspectiva crítica, a capacidade de reivindicação e os meios (lobbying e advocacia) para enfrentar os poderes, a fim de se estabelecer um diálogo implicando a mudança de decisões ou a tomada de novas decisões, sempre que necessário. Tradicionalmente a Educação para o Desenvolvimento era vista como uma "sensibilização da opinião pública do Norte sobre os problemas dos países do Sul". Na actualidade, educar para o desenvolvimento é uma tarefa urgente em todas as sociedades, do Norte, como do Sul. Não há receitas de "como fazer" - o conhecimento das pessoas, das situações, dos desafios que se colocam em cada espaço e em cada momento, as opções quanto aos objectivos que se querem alcançar, constituem os pontos de partida essenciais. Não há uma, mas várias, definições de Educação para o Desenvolvimento, dependentes também das interpretações relativas aos conceitos básicos que a formam - Educação e Desenvolvimento e também dos vários contextos nacionais. No entanto, a 2ª Escola de Outono de Educação para o Desenvolvimento organizada pela Plataforma Portuguesa das ONGD em 2002 debruçou-se sobre a elaboração de uma definição consensual de ED, na base de um processo participativo. Na sequência desta sessão de trabalho foi proposta a seguinte definição: A Educação para o Desenvolvimento (ED) é um processo dinâmico, interactivo e participativo que visa: •

a formação integral das pessoas;

• a consciencialização e compreensão das causas dos problemas de desenvolvimento e das desigualdades locais e globais num contexto de interdependência; •

a vivência da interculturalidade;

o compromisso para a acção transformadora alicerçada na justiça, equidade e solidariedade;

• a promoção do direito e do dever de todas as pessoas, e de todos os povos, participarem e contribuírem para um desenvolvimento integral e sustentável. A Educação para o Desenvolvimento não pode nunca confundir-se com campanhas de angariação de fundos, com objectivos de visibilidade e marketing de organizações ou acções, nem com iniciativas de informação oficial sobre Ajuda ao Desenvolvimento. A Educação para o Desenvolvimento em Portugal está, a vários títulos, estreitamente vinculada à experiência histórica da ditadura e das relações externas progressivamente fechadas sob o


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domínio colonial. A censura, a repressão e o isolamento internacional impediram o normal desenvolvimento da sociedade civil, afastaram e destruíram muitos dos seus actores (individuais e colectivos) mais dinâmicos e reduziram o mundo a um conjunto de territórios sobre os quais o regime detinha o poder político e económico. Ainda hoje o amadurecimento da sociedade civil é marcado, nalguns sectores, por uma lentidão e uma compartimentação significativas, continuando a girar, no que diz respeito às relações com o mundo em desenvolvimento, em torno dos laços criados com as sociedades das antigas colónias (à semelhança, aliás, do que acontece com outros países que foram potências coloniais). A entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia (1986) abriu novas possibilidades de actuação, nomeadamente às Organizações Não-Governamentais de Desenvolvimento (ONGD), que se reuniram numa Plataforma Nacional em Março de 1985 (contando nesse momento com 13 membros) e que passaram a ter acesso a uma linha de financiamento especificamente dedicada a projectos de Cooperação para o Desenvolvimento e de Educação para o Desenvolvimento da responsabilidade de ONGD europeias. Para além do financiamento, a participação da Plataforma Nacional das ONGD no Comité de Ligação das ONGD Europeias, constituiu igualmente uma nova oportunidade, ao facilitar o conhecimento de um vasto leque de experiências e o contacto com outros actores, assim como a inserção portuguesa na discussão das políticas europeias e nas acções de lobbying e advocacia daí decorrentes. No entanto, este processo de troca, aprendizagem e participação tem sido lento, começando agora a dar os seus frutos. O final dos anos 80 e a década de 90 viram surgir temas mais globais (a luta pela paz em tempo de endurecimento da "guerra fria", mais recentemente as campanhas pelo cancelamento da Dívida Externa dos países mais pobres, pela luta contra o trabalho infantil, pela não proliferação de armas ligeiras, pelo papel da mulher na resolução de conflitos...), algumas tentativas interessantes, mas pontuais, de elaboração de materiais pedagógicos e de pesquisas sectoriais, e outros actores (em particular, professores e comunidades escolares, alguns grupos religiosos, incluindo nos últimos tempos paróquias, e associações juvenis, assim como a implicação mais directa de parceiros do Sul na definição e concretização das acções). A grande e peculiar experiência desta fase foi, sem dúvida, a da mobilização à escala nacional pelo apoio aos direitos do povo timorense, que marcou a sociedade portuguesa e modelou a política governamental nesta matéria. No início deste novo século, verifica-se na sociedade civil um interesse mais amplo pelos conteúdos tratados pela Educação para o Desenvolvimento, uma necessidade de aprofundar, sistematizar e partilhar conhecimentos e metodologias de intervenção e de aderir a outras temáticas. A Educação para o Desenvolvimento constitui uma das três áreas específicas de intervenção das Organizações Não-Governamentais de Desenvolvimento, a par da Cooperação para o Desenvolvimento e da Ajuda Humanitária e de Emergência (ver Lei nº 66/98 de 14 de Outubro que, contudo, não é suficientemente clara quanto ao conceito de ED). Embora todos os sectores da sociedade civil possam e devam promover a Educação para o Desenvolvimento, o facto de esta fazer parte da própria missão das ONGD confere-lhes especiais responsabilidades. Por outro lado, como foi sublinhado anteriormente, há uma interligação entre as experiências de Cooperação para o Desenvolvimento e a prática da Educação para o Desenvolvimento, o que apela, uma vez mais, ao papel reconhecido às ONGD neste âmbito. No entanto, um factor-chave para concretizar os objectivos da ED é o da aliança entre vários actores, através da participação em campanhas alargadas e da construção de parcerias. Os protagonistas e as suas relações variam em função de cada lugar e de cada momento, mas a necessidade de uma partilha de saberes e de papéis mantém-se sempre. Em Portugal, não chegam à dezena as ONGD que reconhecem intervir no domínio da Educação para o Desenvolvimento, procurando atingir públicos-alvo escolhidos e tentando aprofundar temáticas e metodologias. As razões mais específicas para esta debilidade radicam na falta de reconhecimento da Educação para o Desenvolvimento na sociedade portuguesa, no seio


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da qual persistem demasiados mitos e mal-entendidos quanto às relações do nosso país com o mundo (permanentemente actualizados pela comunicação social e frequentemente pela classe política) e onde as decisões são a maior parte das vezes tomadas sem qualquer sistematização de conhecimentos e reflexão ponderada. Acrescem a própria fraqueza do movimento associativo em geral, e as dificuldades de sustentação das ONGD, em particular, a par da inexistência de apoios dedicados à promoção da ED (quer financeiros, quer na área das referências como, por exemplo, centros de documentação e de recursos especializados) e da falta de tradição de trabalho em parceria. A iniciativa por parte de outros actores para além das ONGD é um factor muito positivo, que necessita de ser alimentado de forma sistemática e coerente. Mas, relativamente a outros países, nota-se a falta de uma participação activa neste domínio das organizações sindicais e dos centros académicos, neste último caso essencial ao desenvolvimento apropriado de temáticas que são cada vez mais complexas. A participação directa de parceiros do Sul, sobretudo na fase de concepção, mas também na de realização dos projectos, considerada hoje como um factor essencial para se conseguir alcançar os objectivos da ED, é ainda relativamente pouco frequente, seja pela inexistência desta visão, seja por razões de ordem financeira. São, justamente, os parceiros do Sul com mais experiência que têm vindo a solicitar as suas congéneres do Norte no sentido de um reforço das acções de sensibilização, lobbying e advocacia dirigidas para a defesa dos direitos dos povos do mundo em desenvolvimento, seja no âmbito multilateral (cancelamento da dívida, acesso ao mercado internacional nomeadamente, por exemplo, a medicamentos essenciais a baixo custo, apoio à democratização e à prevenção de conflitos, etc.), seja bilateral (por exemplo, volume, qualidade e prioridades da Cooperação, entre outros). No entanto, as organizações portuguesas demonstram ainda uma fraca capacidade neste domínio, inscrevendo-se sobretudo na lógica da participação (limitada) em campanhas internacionais cuja formulação de objectivos, recolha e tratamento da informação de suporte, disponibilização de materiais e sugestões de metodologias de actuação estão, desde logo, garantidas.


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Direitos Fundamentais e Cooperação para o Desenvolvimento VÍTOR RAMALHO Deputado à Assembleia da República Escrevi um dia que a mitologia nos dá da Europa o verdadeiro sentido da sedução. Com Zeus a ser atraído por ela. No preâmbulo do projecto do tratado que estabelece uma Constituição para a Europa, ao apelarse à sua “unidade na diversidade”, vemo-nos confrontados com novos desafios, que se projectam num espaço que deve ser de privilégio da esperança. Esta nova sedução pelo futuro ancora-se nas heranças recebidas, a todos os níveis, e sobretudo nos direitos inalienáveis da pessoa humana. É por essa razão que o tratado para uma Constituição europeia, ao introduzir uma fórmula inovadora no plano dos conceitos no direito internacional, se rege pelo princípio da subsidiariedade. Quer isto dizer que a delimitação das competências da União é resultado daquelas que voluntariamente os Estados-Membros lhe atribuírem. Mas ao assim procederem, o direito adoptado pela União sobrepõe-se ao das partes individualmente consideradas. Num mundo crescentemente globalizado, com grandes incertezas e assolado por contradições, próprias de uma realidade em gestação, é muito positivo que a Europa se aprofunde e o projecto do tratado é um avanço naquilo que é essencial. A outorga da cidadania da União a todos e quaisquer nacionais de um Estado-Membro com a concessão de importantes direitos de participação e de protecção, que desde logo se consignam na Parte I do tratado, estendem-se à Carta, constante da sua Parte II, sobre os direitos fundamentais que incorporam as tradições constitucionais e as obrigações internacionais comuns aos Estados-Membros. Esses direitos, ao fazerem parte do acervo de normas do projecto de tratado não só reforçam o conteúdo da cidadania europeia, como encorajam, no plano internacional, à luta por eles, como condição imanente a todo o ser humano. Tanto mais importante quanto é certo a Europa pretender caminhar e reforçar a Segurança e Defesa comuns. Esta via, tão necessária e que agora se reflecte também entre um dos seus grandes objectivos, não é, pelo contrário, incompatível com o aprofundamento das liberdades. É por isso que, - e bem – muitos dos seus artigos se referem à União como um espaço de liberdade, segurança e justiça. Esta concepção humanista, que para a União flui de encontros multisseculares de culturas, com vários povos e que também se enraíza nas relações havidas com povos de outros continentes, não poderia deixar de também incorporar a cooperação para o desenvolvimento e da ajuda humanitária, numa lógica partilhada, visando neste domínio a erradicação da pobreza. A associação e a chamada de atenção que intencionalmente faço à salvaguarda normativa dos direitos fundamentais de cidadania à cooperação para o desenvolvimento, em que se interligam as políticas de imigração e de emigração, têm a ver com o importante papel que Portugal pode dar à União, nestes domínios. É que a nossa concepção, universalista e tolerante também secularmente caldeada por múltiplos encontros e desencontros, carreou-nos uma forma particular de ser e de estar, que em larga medida é partilhada por milhões de seres humanos, de vários continentes, que se expressam numa fala comum. O contributo do povo português para a União nestes domínios não é, nem pode ser negligenciável, assim tenhamos a ousadia de interpretar a enorme dimensão que isso representa, sem complexos, e também sem estatuto de menoridade. O projecto do tratado, ao abrir as portas da União para o aprofundamento destes domínios, abre-nos uma oportunidade que não podemos nem devemos afrouxar nos propósitos. Os instrumentos da cooperação reforçada e outros, constantes do projecto de tratado são alavancas para esse sentido de marcha. O que é necessário, agora, é imaginação. É em particular sobre estas questões que de forma mais adequada tenciono abordar no Forum “Viver a Europa – uma Constituição para os Europeus”, que em boa hora o IEEI leva a efeito.


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