Cidade e ancestralidade
memória, resistência e continuidade na região da Praça do Campo Limpo
Centro Universitário Belas Artes de São Paulo Arquitetura e Urbanismo Igor Vicente Gomes da Silva
Cidade e ancestralidade: memória, resistência e continuidade na região da Praça do Campo Limpo
São Paulo 2020
Igor Vicente Gomes da Silva
Cidade e ancestralidade: memória, resistência e continuidade na região da Praça do Campo Limpo
Trabalho Final de Graduação apresentado ao curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo sob orientação do Prof. Dr. Marcos Virgílio da Silva.
São Paulo 2020
Agô!
Aos mais velhos, aos mais novos.
Agradeço a todas e todos que cuidam de nossas memórias. Aos meus pais, ao meu irmão. Ao Jota Vianna. A Cléia Varges e a Roberta Marangoni. Ao Guilherme Martins. A Simone Monteiro. Ao Maracatu Ouro do Congo. Ao Espaço Cultural CITA. A Beatriz Ruston. Ao Vitor Roma. A Isabella Nakano, ao Leonardo Galhardo e a Victória Novais. A Bárbara Catta, a Dara Lima, ao Diego Medeiros, a Fê França, ao Heitor Ferreira, a Maísa Dias, a Thamires Hivizi, a Vanessa Izidorio e a Vitória Moreno. Ao Otávio Marques. A Iyá Ana Rita Encarnação, ao Ogan Vitor da Trindade, ao Deco Morais e ao Alex Barcellos. Ao meu orientador Marcos Virgílio da Silva. Ao Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Agradeço, com todo meu afeto, a todas e todos que estiveram comigo nesses últimos anos, resistindo, ocupando e construindo espaços para a celebração de nossas narrativas.
Resumo Esta monografia apresenta um arcabouço teórico que aborda a relação de continuidade do quilombo no período pré abolição com a resistência do povo preto em espaços de cultura na periferia da Zona Sul de São Paulo. A partir de uma revisão bibliográfica evidencia-se neste trabalho pesquisadoras e pesquisadores pretos brasileiros que tratam sobre questões urbanas e questões raciais. Por meio de entrevistas com pessoas que estão envolvidas com o movimento negro e o movimento cultural na região da Praça do Campo Limpo entre os anos 1980 e 2020, evidencia-se nesta monografia a importância da oralidade no resgate de memórias e narrativas do povo preto e periférico.
Resumen Esta monografía presenta un marco teórico que aborda la relación de la continuidad del quilombo en el período de la pre-abolición con la resistencia de los negros en los espacios culturales de la periferia de la Zona Sur de São Paulo. Con base en una revisión bibliográfica, este trabajo evidencia investigadores brasileños negros que se ocupan de temas urbanos y raciales. A través de entrevistas con personas relacionadas con el movimiento negro y el movimiento cultural en la región de la Praça do Campo Limpo entre las décadas de 1980 y 2020, esta monografía destaca la importancia de la oralidad para rescatar las memorias y narrativas de las personas negras y periféricas.
Quilombo é aquele espaço geográfico onde o homem tem a sensação do oceano. (ORÍ, 1989)
Sumรกrio
Lista de fotografias
16
Introdução
18
capítulo 1. Memória
34
capítulo 1.1. Territórios de resistência do povo preto
44
capítulo 1.2. Memória é espaço de disputa
64
capítulo 2. Resistência
82
capítulo 2.1. Romper com símbolos opressores históricos
92
capítulo 2.2. As cidades dos colonizadores não nos cabem mais
116
capítulo 3. Continuidade
140
capítulo 3.1. Cultura e resistência preta na região da Praça do Campo Limpo
158
capítulo 3.2. Espaço Cultural CITA: antigamente quilombos, hoje periferia
194
Considerações finais
224
Referências bibliográficas
230
Lista de fotografias
Fotografias de atividades do Maracatu Ouro do Congo entre dezembro de 2019 e novembro de 2020 Imagens 1 a 5
Ensaio Projeto Deburu Espaço Cutural CITA
páginas 24 - 33
6 a 10
Ensaio Projeto Deburu - Exu Espaço Cutural CITA
36 - 43
11 a 15
Ensaio Projeto Deburu - Oyá Espaço Cutural CITA
54 - 63
16 a 19
Ensaio Projeto Deburu - Obaluaiê Espaço Cutural CITA
74 - 81
20 a 23
Ensaio Projeto Deburu Espaço Cutural CITA
83 - 91
24 a 28
Apresentação Centro Cultural Santo Amaro
106 - 115
29 a 30 31 a 34
Oficina Ensaio Projeto Deburu Espaço Cutural CITA
128 - 131 132 - 139
35 a 36 37 a 42
Ensaio Projeto Deburu Oficina Espaço Cutural CITA
142 - 145 146 - 157
43 a 53
Festival Percurso 2019 Espaço Cutural CITA
172 - 193
54 a 59 60
Baobá Maracatu Ouro do Congo e coletivo Quilombo Periférico Espaço Cutural CITA
210 - 222 223 - 224
61
Imagens de preto e preta velha Espaço Cultural CITA
228 - 229
Todas as imagens apresentadas neste trabalho são de autoria do fotógrafo Guilherme Martins. Obrigado Gui!
Introdução
Árvores de outras origens que não a minha Quando mais novo, com uns 15 anos de idade talvez, busquei a origem dos meus sobrenomes. Vicente Gomes da Silva. Tinha a expectativa de tirar um passaporte de nacionalidade europeia e quem sabe assim facilitar uma emigração pra onde se fala outra coisa que não brasileiro. Ainda nas primeiras pesquisas descobri que Gomes vinha de Portugal, e isso era ótimo considerando que algum português eu já falo. A parte mais complicada seria entender quem da minha família veio de lá e como eu provaria isso. Gomes vem do meu avô materno, que nasceu e cresceu numa cidade chamada Maraial, na Mata Sul de Pernambuco. Conversei com minha avó, minha mãe e minhas tias, mas nenhuma delas sabia de alguém que veio de Portugal, não havia nem histórias e nem documentos. Quem sabe, então, Vicente? Eu pensava que vinha de Portugal também, porém uma tia disse que poderia ser holandês. Eu, mais um admirador de Van Gogh, nem quis contestar. Fiz o mesmo percurso, desta vez pelos galhos da família do meu avô paterno. [Por que será que não subi nenhum dos galhos das minhas avós embora tenha ido até elas
18 - 19
buscar as informações? Até então, eu não conhecia seus sobrenomes. Gonçalves e Conceição. Nenhuma das filhas ou filhos recebeu esses nomes quando nasceu.] Minha avó disse que não sabia desses documentos europeus. Ela e meu avô também nasceram na mesma região do interior de Pernambuco que a outra parte da família, todos nasceram e cresceram em sítios ou fazendas ou pequenas cidades cercadas de bananeiras. Era comum um registro tardio ou mesmo um não registro. Os poucos que existiam se perderam junto ao tempo. Semana passada assisti a um filme chamado Raízes (2019) em que o protagonista viajou até outro estado buscando encontrar informações sobre seus avós. Ele e eu chegamos a galhos que foram interrompidos. É muito doído, nesse processo, chegar a galhos que há muito tempo foram cortados pela precariedade ou violência. Espécies de plantas nativas Só me faltou um nome. Aquele que a gente aprende a não buscar. Aquele que te relaciona a tantas outras pessoas que é até difícil dizer que é seu. Da Silva. Quem é Silva? E por que eu sou dele ou dela? Essa tem sido a parte mais difícil da busca por raízes. Às vezes eu penso que não fui atrás desse nome porque já entendia que era um galho interrompido. Também penso que esse é o único galho que ainda está conectado à alguma raíz. [Eu vou pular essa parte. Ficaria muito longo e nem sei se o que cabe aqui seria suficiente pra gente discutir sobre a violenta história de ser propriedade de alguém.] Nessas últimas semanas voltei a conversar com um tio da minha mãe e com minha avó paterna sobre suas histórias. Queria escutar deles sobre como era a vida nos sítios em que moraram. Essas terras abrigavam meus avós e seus mais velhos dentro de um acordo de troca com os donos da terra. “Vocês moram aqui nessa casa, plantam e colhem essa comida, ficam com uma parte e a gente com outra”. No sítio a vida era pobre, e quando passaram a morar na fazenda as coisas melhoraram um pouco. A próxima mudança de casa foi pra uma cidade ainda no interior, onde meus pais cresceram. Eu nunca conheci os sítios e nem as fazendas mas íamos visitar os meus avós anualmente, ou quase isso. Aquele protagonista do filme não conhecia a cidade dos avós. Eu pude conhecer. A gente tal-
vez não pense muito sobre isso, mas manter essa relação com o território-memória de nossos mais velhos também é um ato político contra o apagamento de nossas histórias. É importante que se entenda que eu não sou de ninguém, mas um dia fui. Fui porque alguém foi. Tô numa conversa com um amigo de outro estado que talvez nunca acabe. Alguém nos disse que éramos portugueses, italianos ou alemães, e não se importaram em nos dizer que somos pretos e indígenas antes de qualquer coisa. [Mesmo que eu tenha pulado uma parte, é bom acentuar que não nos disseram isso também por conta da dor e da violência que a memória pode causar.] Chegamos a galhos que acabam porque dói pensar nas raízes. Agora, te digo que eu não quero um passaporte europeu. Tô me registrando aqui só agora. Aguando a muda de uma árvore sagrada Hoje moramos na Grande São Paulo, entre a Zona Oeste e a Zona Sul. Meus pais, tios e tias migraram pra cá buscando o que toda cidade grande promete. [Acho que também posso pular essa parte. Pra mim fica repetitivo contar essas coisas e já tô cansado de explicar o que é óbvio.] Quando fiquei um pouco mais velho e comecei planejar possíveis futuros, entendi que teria que realizar trajetos mais longos dentro da cidade. [Essa parte me soa repetitiva mas mesmo assim vou escrever.] Nas periferias ainda estamos correndo atrás pra termos acesso ao mínimo do que as cidades devem proporcionar. Trabalho, educação, lazer. Se você quer o que quer que seja em melhor qualidade, precisa pegar um ônibus por uma hora e depois um tanto de estações do metrô. Eu queria estudar. Então pegava dois ônibus pra fazer o cursinho popular. Mais tarde pegava um ônibus e um metrô pra faculdade. E por fim pegava carona com meu pai pra ir trabalhar. O que quero elucidar aqui são esses longos trajetos que percorremos há gerações pra conseguir alguma coisa que chamam de básico. Sem saber onde eu ia chegar, me joguei num curso que falava sobre cidade. E aí percebi que era assim que eu encurtaria os trajetos das gerações futuras. Quem vai fazer a cidade sou eu. [Eu e você, evidente.] E foi nesse processo de encontrar raízes e encurtar trajetos que cheguei na Praça do Campo Limpo. Ela é quase minha vizinha, chego lá em vinte mi-
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nutos andando. O que torna ainda mais evidente o tanto que nos perdemos seguindo esse papo de raiz na gringa. Eu ia lá pra Sumaré e pro Ibirapuera achando que ia encontrar o que tava a vinte minutos de casa. Mas enfim. Cheguei na praça ouvindo o maracatu. Essa manifestação cultural tradicional que nasceu lá em Pernambuco e veio parar aqui, que nem minha família. Junto ao maracatu também estavam a capoeira, o teatro, a dança, o hip hop, o jongo e tantas outras coisas que a gente vai descobrindo aos poucos. Tudo isso numa casa chamada Espaço Cultural CITA, ali mesmo em frente à praça. Em pouco tempo por lá um amigo que tá ao meu lado já há várias discussões me disse: “Aqui havia uma senzala. Dona Raquel Trindade foi quem nos contou”. Eita. Daí pra frente não paramos mais. Vê bem: ali, naquela praça, tinha uma fazenda. Tinha uma senzala. [Talvez poucas pessoas contem essa história.] Uns cem anos depois, sei lá, a praça ainda preserva sua memória preta por meio da cultura, que bebe e alimenta todos nós. Ela guarda todas essas histórias que a gente não consegue encontrar documentadas em algum lugar. E foi por ela que eu cheguei, que chegamos. Foi por ela também que, dois anos atrás, recebemos das mãos do Mestre TC Silva uma muda de baobá. [Vou pular de novo, porque muitas dessas histórias ainda estamos escrevendo. Por enquanto, vou tentar amarrar esse texto todo nas próximas frases, e aí, continuamos num outro momento.] O baobá é ancestralidade preta. Antes de qualquer coisa, ele que é nossa raiz, e talvez seja ele que vá fazer crescer novos galhos perto daqueles que foram interrompidos. Nossa missão tem sido regar a muda da árvore sagrada pra que ela cresça bem e forte, dando continuidade aos galhos e raízes. Preservando e produzindo nossas memórias. Metodologia de pesquisa Esta monografia surge como um desdobramento de uma reflexão sobre o legado do povo preto no território do Campo Limpo, na Zona Sul da cidade de São Paulo. Pensar sobre a relação de continuidade entre as memórias vinculadas à oralidade e os espaços e manifestações culturais localizados na região da Praça do Campo Limpo nos provoca uma inquietação sobre o distanciamento que ainda há entre as nossas memórias
e as memórias de nossos ancestrais, evidenciando também uma falta de registros que abordam a ancestralidade preta presente nas cidades brasileiras. Dessa forma, este trabalho tem dois objetivos principais: o primeiro é fazer uma revisão bibliográfica gerando um arcabouço de informações que apresente autoras e autores negros brasileiros - principalmente - que traçam em suas pesquisas uma relação entre questões urbanas e questões raciais. Apresentamos no primeiro e segundo capítulo deste trabalho conceitos sobre quilombo e sobre memória de pesquisadoras e pesquisadores como Abdias Nascimento, Beatriz Nascimento, Gabriela de Matos, Joice Berth, Muniz Sodré, Petrônio Domingues e Tainá de Paula. E o segundo objetivo é apresentar, por meio de entrevistas com pessoas que fazem parte da história do Campo Limpo, como Alex Barcellos, Iyá Ana Rita Encarnação, Cléia Varges, Deco Morais e Ogan Vitor da Trindade, uma reflexão sobre a relação do território com a ancestralidade preta, partindo das memórias ligadas à oralidade. Assim, buscamos reunir conceitos e reflexões sobre como os modos e territórios de resistência do povo preto vêm se atualizando desde o período pré abolição, tendo como foco a relação de continuidade entre a memória do quilombo brasileiro e a atuação de espaços de cultura localizados em territórios periféricos da Zona Sul de São Paulo, como o Espaço Cultural CITA, na preservação e produção de memórias do povo preto na cidade.
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capítulo 1.
Memória
34 - 35
capítulo 1.1.
Territórios de resistência do povo preto
Evocar as geografias que habitamos mesmo as que não sabíamos, nos compromete a tecer em conjunto nossos territórios de liberdade. Porque libertar o corpo para viver a memória é emancipador! (PEREIRA, 2019)
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Após o sucinto texto assinado pela princesa Isabel dizendo declarar o fim da escravidão, nenhum direito foi garantido à pessoa preta. Não houve sequer uma frase que assegurasse o direito de viver e habitar naquelas terras saqueadas. O povo preto1 permanecia às margens da produção das cidades, não tendo sua participação social garantida ou mesmo considerada. “Não chega a ser exagero afirmar que entre 1888 e 1970, com raras exceções, o negro brasileiro não pôde expressar-se por sua voz na luta pelo reconhecimento de sua participação social” (NASCIMENTO, 1985, p. 47). O que poderia, então, assegurar que, de bichos, sequestrados, vendidos e torturados, as pessoas pretas passariam a ser reconhecidas e respeitadas pelos que continuavam embebidos de desejo por controle sobre um outro corpo? E mesmo que, a partir daquela data, tenha sido declarado o fim de um período de tortura de um povo, o que de fato possibilitaria a inserção da pessoa preta dentro de uma sociedade guiada por uma noção de superioridade? Nada.
17 - 18 Toma-se nota que, neste trabalho, assumimos o termo “povo preto” para tratar de todas as pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas. 1
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Ou talvez a possibilidade de continuar utilizando os corpos daquelas pessoas em função de uma ideia de progresso. E aproveitar da posição de poder fundada por séculos de tortura para seguir controlando onde e como os corpos pretos se encontrariam depois da abolição da escravatura. Sem quaisquer direitos básicos para que pudesse decentemente sobreviver, o povo preto continuou tendo sua inserção nos espaços reinados pelo branco europeu colonizador pela venda de seus serviços corporais. Se o preto não podia ser mantido acorrentado próximo à casa grande, ele a partir de então passaria a ser marginalizado em relação aos espaços da cidade, impossibilitando-o que, formalmente, fizesse parte das decisões relacionadas à construção de uma cidade no período pós abolição. “O lugar do negro ainda é o lugar da precariedade” (GONZALEZ, HASENBALG, 1982, p. 15), e se quisesse sobreviver, que seguisse vendendo o seu corpo para a construção de um lugar que recusa a sua permanência. Logo, mesmo se tornando a principal mão de obra da construção das cidades brasileiras, o povo preto continuou excluído, e agora marginalizado, durante o processo de produção do espaço urbano, sendo confinado a morros e periferias onde, somente ali, poderia ter alguma proximidade com a suposta liberdade que lhe foi dada (SODRÉ, 2019, p. 41). Mais de um século depois, as cidades em que vivemos continuam apresentando ideias de um período de violência contra um povo. Planejaram e construíram nossas noções de urbanidade em cima de uma cova entreaberta, e ainda ontem aplaudimos referências europeias em nossos discursos sobre o espaço urbano que mal consideram o contexto social, cultural e ambiental brasileiro ao serem implantadas aqui. Abdicamos de culturas ancestrais africanas e indígenas para seguir desenhando e preservando a estética de uma arquitetura portuguesa (SODRÉ, 2019, p. 32-35), e assim continuar consumindo e assumindo as ideias do colonizador. Essa é somente uma parte da história do negro no Brasil. Não podemos deixar de discutir o fato de que muitas de nossas memórias, incluindo as sobre as ocupações urbanas no país, foram construídas a partir dos registros do homem branco. A terra invadida foi ocupada pelo colonizador, que implantava à força sua noção europeia de cidade, e logo impregnaram o solo com uma ocupação urbana de cunho racista, desenhando na paisagem
seu lugar de poder sobre um outro povo. No entanto, mesmo que ameaçado e torturado para que abandonasse suas culturas, o povo preto trouxe para o território brasileiro outras maneiras de pensar que sobreviveram junto aos movimentos constantes de resistência, tornando possível a preservação de outros modos de viver por negros escravizados fugidos e organizados em núcleos fora dos territórios dominados pelos colonizadores. Durante o período colonial, os quilombos funcionaram como sistemas sociais alternativos, abrindo brechas no sistema escravista (NASCIMENTO, 1985, p. 44): A primeira referência a quilombo que surge em documento oficial português data de 1559, mas somente em 1740, em 2 de dezembro, assustadas frente ao recrudescimento dos núcleos de população negra livres do domínio colonial, depois das guerras do nordeste no século XVII, as autoridades portuguesas definem, ao seu modo, o que significa quilombo: “toda a habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte desprovida, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” (NASCIMENTO, 1985, p. 43).
Considerando que estes territórios existiam enquanto reação ao colonialismo, sendo também vistos posteriormente como perigo à estabilidade e integridade do Império (NASCIMENTO, 1985, p. 45), trazemos o quilombo como exemplo de território de resistência do povo preto ainda no período pré abolição, já que, historicamente, o quilombo aparece como “unidade de protesto e de experiência social, de resistência e reelaboração dos valores sociais e culturais do escravo em todas as partes em que a sociedade latifundiário-escravista se manifestou” (MOURA, 2001 apud BATISTA, 2019, p. 401). E, mesmo sendo destruído diversas vezes, ainda assim surgia novamente em outros lugares resistindo aos ataques constantes e criando novos sistemas de defesa (MOURA, 2001 apud BATISTA, 2019, p. 401). Caracterizado como “instituição” pela historiadora sergipana Beatriz Nascimento, o quilombo, ainda no período colonial, recupera organizações sociais de origem angolana do período pré diáspora (NASCIMENTO, 1985, p. 41 - 43) para o contexto brasileiro da época, tornando possível que o povo preto escravizado passasse a ter uma outra expectativa que não a morte, mas a possibilidade de resgatar e adaptar modos de viver em África dentro
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do território brasileiro. O quilombo atuou no resgate de memórias africanas e na produção de memórias afrodiaspóricas que fortaleciam o povo preto e enfraqueciam o sistema escravista: [...] tanto no século XVII quanto no século XIX, esta instituição procede como frinchas no sistema, muitas vezes convivendo pacificamente, que ao ser vista globalmente, ou seja, em todo o espaço territorial e em todo o tempo histórico, traduzia uma instabilidade inerente ao sistema escravagista. A oscilação das atividades econômicas, ora numa região, ora noutra, provocava muitas vezes o afrouxamento dos laços entre os escravos e senhores. A fuga passa a ser uma instituição decorrente desta fragilidade colonial e integrante da ordem do quilombo. O saque, as razzias, enfim o banditismo social, são a tônica que define a sobrevivência desses aglomerados (NASCIMENTO, 1985, p. 45).
Com o surgimento e consolidação de inúmeros quilombos no Brasil até o final do século XIX, esses territórios passaram de “instituição” para “instrumento ideológico contra as formas de opressão”, que alimenta “o sonho de liberdade de milhares de escravos das plantações em São Paulo”: Esta passagem de instituição em si para símbolo de resistência mais uma vez redefine o quilombo. O surgimento do quilombo do Jabaquara é o melhor exemplo. Os negros fugidos das fazendas paulistas migram para Santos em busca de um quilombo que era apregoado pelos seguidores de Antonio Bento, quilombo este que na verdade viria a ser uma grande favela, frustrando aquele ideal de território livre onde se podia dedicar às práticas culturais africanas e ao mesmo tempo uma reação militar ao regime escravocrata (NASCIMENTO, 1985, p. 46).
Assim, compreendemos que mesmo não tendo recebido qualquer direito à inclusão, permanência ou participação na sociedade brasileira após a abolição da escravatura, o povo preto já se organizava fora do sistema escravista com seus próprios modos de viver resgatados e adaptados desde África. O quilombo não é como a historiografia tem tentado traduzir, simplesmente um reduto de negros fugidos, simplesmente a
fuga pelo fato dos castigos corporais, pelo fato de os negros existirem a tentativa dentro de uma sociedade opressora, mas também a tentativa de independência de homens que procuram por si só estabelecer uma vida para si, uma organização social para si (NASCIMENTO, 1977 apud REIS, 2019, p. 17).
É importante que, durante esta reflexão sobre a condição do negro no processo de abolição, não esqueçamos que os territórios de resistência contribuíram muito mais para o fim da escravidão do que o mero ato da princesa, tornando cada vez mais fraco o sistema escravista e alimentando o povo preto com o “sonho de liberdade”. A falta de aprofundamento da Lei Áurea sobre qual seria a condição do negro dentro da sociedade a partir da abolição da escravatura contribui para que ele não seja inserido no suposto novo período histórico, mantendo sua exclusão e marginalização social. A ordem oficial, repressão, é que chamou isso de quilombo, que é um nome negro e que significa união. Então, no momento em que o negro se unifica, se agrega, ele está sempre formando um quilombo, está eternamente formando um quilombo, o nome em africano é união (NASCIMENTO, 1977 apud REIS, 2019, p. 10).
Seria possível dizer que a marginalização do povo preto após o período da abolição transformou os quilombos em favelas, mantendo negros distantes dos espaços de interesse econômico e sem direitos à cidade? Com tal questionamento podemos agora refletir sobre os vínculos de continuidade entre quilombo e favela, relacionando os territórios de resistência do passado com o presente. Além disso, podemos trazer para a discussão a importância da cultura nesses territórios e como ela os guiou nos caminhos para preservação e produção de novas memórias do povo preto, mesmo perante a recusa dos descendentes do europeu colonizador em compreender e inserir as culturas afrodiaspóricas na construção das cidades. Como antes tinha servido de manifestação reativa ao colonialismo de fato, em 70 o quilombo volta-se como código que reage ao colonialismo cultural, reafirma a herança africana e busca um modelo brasileiro capaz de reforçar a identidade étnica.
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Toda a literatura e a oralidade histórica sobre quilombos impulsionaram este movimento que tinha como finalidade a revisão de conceitos históricos estereotipados (NASCIMENTO, 1985, p. 47).
Beatriz Nascimento nos apresenta o conceito de quilombo urbano como continuidade histórica, como sociedade organizada para a população negra em que poderiam “viver de acordo com seu passado histórico africano-brasileiro” (O NEGRO DA SENZALA AO SOUL, 1977), afirmando e recuperando hábitos e costumes africanos e afrodiaspóricos. Os quilombos são territórios de resistência não somente por terem possibilitado às pessoas pretas viverem fora do sistema imposto pelo colonizador, mas também por preservar e produzir novas memórias que respeitem sua ancestralidade. Quilombo passou a ser sinônimo de povo negro, sinônimo de comportamento do negro e esperança para uma melhor sociedade. Passou a ser sede interior e exterior de todas as formas de resistência cultural. Tudo, de atitude à associação, seria quilombo, desde que buscasse maior valorização da herança negra (NASCIMENTO, 1985, p. 47).
A historiadora não somente caracteriza o conceito de quilombo como também “ressignifica o território/favela como espaço de continuidade de uma experiência histórica que sobrepõe a escravidão à marginalização social, segregação e resistência dos negros no Brasil” (CARNEIRO, 2006, p. 11), podendo assim compreender a utilização do termo em organizações sociais de sua contemporaneidade que “possam atuar no presente ao lado de várias outras manifestações de reforço à identidade cultural” (RATTS, 2006, p. 125). A produção historiográfica de Beatriz nos auxilia a compreender as relações entre os territórios de resistência do povo preto no passado e as novas organizações sociais no nosso presente, apontando a favela como continuidade histórica do quilombo. E é compreendendo a potência desses territórios de continuidade no presente que podemos nos projetar no futuro, visando ações e instrumentos de reparação histórica cada vez mais eficazes. Se o quilombo nos permitiu resistir e enfraquecer o sistema escravista, além de preservar nossas memórias africanas e
afrodiaspóricas, quanto poderíamos conquistar - ou recuperar com a conscientização e fortalecimento dos territórios de resistência hoje? É trazer a luz essa capacidade do negro empreender uma organização social, de empreender uma vida própria deles, como cultura própria, com relações próprias e mostrar que hoje em dia talvez eles ainda tenham esse tipo de organização própria, de relações próprias, e um dos grandes trabalhos que ele tem que fazer seja realmente de se conscientizar dessa sua posição que ainda persiste ao nível das relações entre si e dos grupos negros (NASCIMENTO, 1977 apud REIS, 2019, p. 18).
É possível dizer que há novos quilombos surgindo no Brasil mesmo após a abolição da escravatura porque o povo preto continua se “aquilombando” (BATISTA, 2019, p. 400). E isso podemos ver “na origem da ocupação dos morros e terrenos devolutos que deram origem às favelas, símbolo maior do abandono dos libertos pelo Estado” (MOURA, 2001 apud BATISTA, 2019, p. 400), ou mesmo atualmente, em qualquer outra união de pessoas pretas que resista a um sistema opressor que não respeita suas culturas e ancestralidade.
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capítulo 1.2.
Memória é espaço de disputa
A memória são conteúdos de um continente, da sua vida, da sua história, de seu passado. Como se o corpo fosse o documento. Não é à toa que a dança para o negro é um momento de libertação. O homem negro não pode estar liberto enquanto ele não esquecer o cativeiro. Não esquecer no gesto que ele não é mais um cativo. (ORÍ, 1989)
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Uma das principais questões que trazemos para este trabalho é sobre a importância da memória e da oralidade na preservação e produção de narrativas do povo preto. Já compreendemos pela produção da historiadora Beatriz Nascimento, que o quilombo surge da necessidade de resistir e confrontar os sistemas opressores sustentados no Brasil. O quilombo, fundamentado pelas estratégias angolanas adaptadas ao contexto histórico brasileiro, permitiu a consolidação de um território que possibilitou a preservação e continuidade de memórias africanas no nosso país. A memória do povo preto vem sendo agredida há mais de 500 anos. São séculos de constantes e incessantes ataques sustentados por uma estrutura social racista que distorce as memórias sobre nosso passado histórico (NASCIMENTO, 1980, p. 197). Mesmo após a abolição da escravatura não deixamos de estar sujeitos às ações da elite dominante que permaneceu se esforçando para “evitar ou impedir que o negro pudesse assumir suas raízes étnicas e culturais” (NASCIMENTO, 1980, p. 197). Hoje podemos entender como as terras ofertadas a um baixo custo aos imigrantes europeus e a falta de conteúdo sobre culturas africanas nas escolas foram outros modos de seguir des-
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gastando as relações do povo preto com memórias de um passado anterior à escravização de seus ancestrais. Enfatizando a “intenção e ação no sentido de arrancar da mente e do coração dos descendentes escravos a imagem da África como uma lembrança positiva de nação, de pátria, de terra nativa” (NASCIMENTO, 1980, p. 198). A memória do negro brasileiro é parte e partícipe nesse esforço de reconstrução de um passado ao qual todos os afro-brasileiros estão ligados. Ter um passado é ter uma conseqüente responsabilidade nos destinos e no futuro da nação negro-africana, mesmo enquanto preservando a nossa condição de edificadores deste país e de cidadãos genuínos do Brasil (NASCIMENTO, 1980, p. 198).
Enquanto o sistema escravista atuava em destruir as memórias africanas do povo preto, a presença dos quilombos como territórios de resistência tanto sustentou a preservação de memórias vindas de África como assegurou a produção de novas memórias no Brasil que abordam para além da violência do colonizador. “Os quilombos resultaram dessa exigência vital dos africanos escravizados, no esforço de resgatar sua liberdade e dignidade através da fuga ao cativeiro e da organização de uma sociedade livre” (NASCIMENTO, 1980, p. 202). A memória tornou possível a adaptação de organizações angolanas no Brasil resistindo e enfraquecendo o sistema escravista. Fortaleceu o povo preto e seus territórios de resistência, resgatando narrativas africanas e viabilizando a construção e continuidade de novas narrativas do povo preto. Com o enfraquecimento dos sistemas opressores racistas e o fortalecimento das organizações sociais pretas, as estratégias de preservação de memórias por meio dos territórios de resistência proporcionaram o surgimento de novos quilombos urbanos. Esses territórios, mantidos em sua maioria pelas manifestações culturais pretas, agem como espaços de proteção a conhecimentos e tecnologias ancestrais. E assim, por meio da oralidade e das estratégias de aquilombagem, o povo preto pôde manter seus territórios regados e adubados por nossas memórias ancestrais. Fortificando a cada geração esses territórios que afirmam a força emancipadora que a relação com nossas memórias africanas e afro diaspóricas tem, nos libertam de narrativas pejorativas forjadas e cravadas em nossa história pelo colonizador e seus leais descendentes.
Não importam as aparências e os objetivos declarados: fundamentalmente, todas elas preencheram uma importante função social para a comunidade negra, desempenhando um papel relevante na sustentação da comunidade africana. Objetivamente, essa rede de associações, irmandades, confrarias, clubes, grêmios, terreiros, centros, tendas, afochés, escolas de samba, gafieiras foram e são os quilombos legalizados pela sociedade dominante; do outro lado da lei se erguem os quilombos revelados que conhecemos. Porém tanto os permitidos quanto os “ilegais” foram uma unidade, uma única afirmação humana, étnica e cultural, a um tempo integrando uma prática de libertação e assumindo o comando da própria história. A este complexo de significações, a esta praxis afro brasileira, eu denomino de quilombismo (NASCIMENTO, 1980, p. 203).
O quilombo urbano surge como continuidade dos territórios de resistência que enfraqueceram o sistema escravista. Mesmo marginalizados após a abolição, o povo preto seguiu adaptando suas organizações e práticas sociais, culturais e religiosas em relação aos espaços urbanos ainda dominados pelo racismo. “[...] o quilombismo está em constante reatualização, atendendo exigências do tempo histórico e situações do meio geográfico” (NASCIMENTO, 1980, p. 204). Esses novos agrupamentos do povo preto garantiram a preservação das suas memórias já descarregadas da ignorância e violência sustentadas pelos sistemas opressores e racistas, reforçando a potência emancipatória que é a busca em reconectar e robustecer as relações com suas raízes ancestrais. O povo preto encontra no quilombo e nos demais territórios de resistência um espaço para o restabelecimento de sua “plenitude humana que lhe foi socialmente negada pela força, pela coerção econômica e extraeconômica, pela violência” (MOURA, 2001, p. 107) do sistema escravista. É nesses territórios que as raízes, cortadas à força, se conectam novamente às memórias do corpo preto, reconstituindo pela coletividade sua “integridade de ser total, em nosso tempo histórico, enriquecendo e aumentando nossa capacidade de luta” (NASCIMENTO, 1980, p. 204). Durante séculos temos carregado o peso dos crimes e dos erros do eurocentrismo “científico”, os seus dogmas impostos em nossa carne como marcas ígneas da verdade definitiva. Agora devolvemos ao obstinado segmento “branco” da sociedade brasileira as suas mentiras, a sua ideologia de suprema-
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cismo europeu, a lavagem cerebral que pretendia tirar a nossa humanidade, a nossa identidade, a nossa dignidade, a nossa liberdade. Proclamando a falência da colonização mental eurocentrista, celebramos o advento da libertação quilombista (NASCIMENTO, 1980, p. 206).
O resgate da relação com nossas raízes por meio da memória cultivada pelos territórios de resistência potencializa nossos caminhos por uma emancipação dos desgastes e distorções causados pelo sistema escravista. A presença desses territórios no contexto urbano, se relacionando com os espaços de interesse econômico e cultural da cidade, garante que a luta e a resistência do povo preto não será mais invisibilizada ou apagada. “Assegurar a condição humana do povo afro-brasileiro, há tantos séculos tratado e definido de forma humilhante e opressiva, é o fundamento ético do quilombismo” (NASCIMENTO, 1980, p. 206). A preservação desses territórios assegura a continuidade de nossos caminhos mirados em uma reparação histórica, nos desvinculando de ações opressoras racistas e garantindo ao povo preto que suas memórias não serão mais corrompidas. Quilombo é uma história. Essa palavra tem uma história. Também tem uma tipologia de acordo com a região e de acordo com a época, o tempo. Sua relação com o seu território. É importante ver que, hoje, o quilombo traz pra gente não mais o território geográfico, mas o território a nível (sic) duma simbologia. Nós somos homens. Nós temos direitos ao território, à terra. Várias e várias e várias partes da minha história contam que eu tenho o direito ao espaço que ocupo na nação. E é isso que Palmares vem revelando nesse momento. Eu tenho o direito ao espaço que ocupo dentro desse sistema, dentro dessa nação, dentro desse nicho geográfico, dessa serra de Pernambuco. A Terra é o meu quilombo. Meu espaço é meu quilombo. Onde eu estou, eu estou. Quando eu estou, eu sou (NASCIMENTO, 1989 apud RATTS, 2006, p. 59).
Temos nos territórios de resistência a afirmação de que o resgate e cuidado com as raízes do povo preto é fundamental para a reconstrução de nossas memórias brasileiras. “O quilombo é memória que não acontece só para os negros, acontece para a nação. Ele aparece, surge nos momentos de crise da nacionalidade. A nós
não nos cabe valorizar a história. A nós nos cabe ver o continuum dessa história.” (ORÍ, 1989). Encontramos nesses territórios as falas, histórias, memórias e acontecimentos que ainda temos dificuldade de acessar nos registros históricos sobre a formação de nossas cidades. Se faz necessário a escuta atenta das memórias ligadas a esses territórios para aprendermos pela oralidade sobre os espaços apagados da linha do tempo das cidades brasileiras. É também pelas memórias presentes na oralidade que encontramos caminhos de volta à nossa ancestralidade preta. Tanto a memória como a oralidade sustentam os territórios de resistência que surgem pelos encontros e organizações do povo preto. “O corpo negro plural constrói e qualifica outros espaços negros, de várias durações e extensões, nos quais seus integrantes se reconhecem.” (RATTS, 2006, p. 59). O encontro do povo preto é resistência que se espacializa em territórios firmados por nossas memórias ancestrais. Podemos entender o cuidado com esses territórios como um dos mais potentes instrumentos de emancipação das práticas racistas em relação às cidades herdadas do período colonial. Em 1980, o escritor paulista Abdias Nascimento apresenta uma proposta para uma semana de atividades que tratem dos “sucessos passados nos quais foram protagonistas aqueles 300 milhões de africanos retirados, sob violência, de suas terras e trazidos acorrentados para o continente americano”: Por meio de celebrações anuais, a comunidade negra não só honrará os antepassados, como reforçará a sua coesão e identidade. E transmitirá às novas gerações um exemplo de amor à história do nosso povo, auxiliando-as a ter uma visão mais clara e verdadeira do papel fundamental cumprido pelos escravos africanos na construção deste País. Isto só infundirá aos jovens de agora e do futuro um orgulho em lugar da vergonha que a sociedade dominante tem procurado infiltrar na consciência dos negros, como se fosse a única herança deixada por seus ancestrais (NASCIMENTO, 1980, p. 215).
Abdias propõe que a Semana da Memória aconteça nos dias anteriores ao 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares e Dia Nacional da Consciência Negra, idealizando-a como um exercício de emancipação por meio de uma constante pesquisa, crítica e reflexão sobre o passado e o presente das condições de
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vida do povo preto no Brasil (NASCIMENTO, 1980, p. 215). A Semana da Memória agiria entre o campo da ação e o campo da especulação, combinando as comemorações com a filosofia do quilombismo. “Estudar e lembrar os feitos dos antepassados deve constituir um acontecimento inspirador que estimule a ação transformadora do presente” (NASCIMENTO, 1980, p. 216). Os quilombolas dos séculos XV, XVI, XVII, XVIII e XIX nos legaram um patrimônio de prática quilombista. Cumpre aos negros atuais manter e ampliar a cultura afro-brasileira de resistência ao genocídio e de afirmação da sua verdade. Um método de análise, compreensão e definição de uma experiência concreta, o Quilombismo expressa a ciência do sangue escravo, do suor que este derramou enquanto pés e mãos edificadores da economia deste país. Um futuro de melhor qualidade para as massas afro-brasileiras só poderá ocorrer pelo esforço enérgico de organização e mobilização coletiva, tanto das massas negras como das inteligências e capacidades escolarizadas da raça para a enorme batalha no fronte da criação teórico-científica. Uma teoria científica inextricavelmente fundida à nossa prática histórica que efetivamente contribua à salvação do povo negro, o qual vem sendo inexoravelmente exterminado (NASCIMENTO, 1980 apud BATISTA, 2019, p. 408).
A proposta do escritor é uma estratégia de resgate à nossa ancestralidade, “resgatar nossa memória significa resgatarmos a nós mesmos do esquecimento, do nada e da negação, e reafirmarmos a nossa presença ativa na história pan-africana e na realidade universal dos seres humanos.” (NASCIMENTO, 1980 apud BATISTA, 2019, p. 408). Garantir que o povo preto tenha acesso às histórias e memórias de seus ancestrais de modo a não só preservá-las, mas também dar continuidade à uma produção de memórias vinculadas aos saberes e narrativas pretos, nos apoia na luta antirracista e emancipatória. Refletir hoje sobre a proposta de Abdias, publicada em 1980, nos elucida sobre como ainda necessitamos intensificar e atiçar estratégias e práticas antirracistas que fortaleçam nossas relações com nossa ancestralidade preta, incentive a produção de conhecimento pelo povo preto e promova acesso e debate nos territórios pretos sobre nossa história e direitos. [...] a História do negro (a) brasileiro (a) ainda precisa ser escrita, nossos problemas não são do passado, o racismo é um
problema do presente. Então precisamos partir das questões de nossa atualidade, e aí sim buscar a relação com o passado, e para isso nós negros (as) precisamos falar… (REIS, 2019, p. 20).
O quilombo foi nosso primeiro território de resistência no Brasil e, pela força da ancestralidade, o povo preto soube defender suas memórias, culturas e territórios. “O negro (a) no século XXI, toda vez que consegue se unir e falar por si próprio está na condição social de Quilombo.” (REIS, 2019, p. 20). O encontro é um estratégico meio de preservação de saberes. Enquanto nos reunirmos, falarmos e defendermos os nossos territórios, a memória do povo preto permanecerá viva.
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capítulo 2.
Resistência
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capítulo 2.1.
Romper com símbolos opressores históricos
[...] Na minh’alma ficou o samba o batuque o bamboleio e o desejo de libertação. (TRINDADE, 2007, p. 162)
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Devido à pandemia do COVID-19, o medo e o cuidado nos posicionaram em um lugar de insegurança quanto à vida de nossos mais velhos e mais velhas, nos distanciando dos momentos de encontro. Estamos há meses tendo que nos isolar para preservar as vidas de quem cuidou de tantas de nossas memórias. O isolamento social nos levou a estarmos distantes de nossos habituais encontros, dos espaços urbanos públicos, das celebrações coletivas e dos espaços onde cultivamos o afeto. O distanciamento, como alguém que se afasta de algo para ter uma outra perspectiva sobre a situação em que se encontra, tanto nos trouxe desconforto, lamento e paciência, como nos posicionou em um momento mundial de adaptação de nossas rotinas, nos incitando a refletir sobre direitos básicos, sobre o valor do preservar e a importância da continuidade. A necessidade de estarmos atentos às notícias que nos conduziriam à volta ou não para a vida na rua, possivelmente possibilitou que tantas discussões sobre questões históricas entrassem em espaços onde antes ainda eram ignoradas ou recusadas. Os incessantes casos de racismo no Brasil e em outros países, diariamente televisionados e ampliados para as redes sociais, expan-
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diram o alcance das discussões sobre questões raciais, colocando em pauta nacional a relação das nossas cidades e seus sistemas opressores com a população negra, sua história de resistência e memória ancestral. Ainda há por todo o país territórios em situação de abandono político semelhante ao do período pós abolição da escravatura, não tendo direitos ditos básicos, seja à moradia, à saúde, à segurança ou à água. Para a maioria dos corpos periféricos não pudemos nos isolar ou cumprir minimamente as recomendações da Organização Mundial da Saúde em relação à prevenção do COVID-19. Tendo que seguir em resistência mesmo em meio ao caos mundial, nos reencontramos na rua para lutar contra a violência ao povo preto, que se apresenta explicitamente em rede nacional nas notícias sobre qual segue sendo o corpo que cai diante da falta do Estado (GUIMARÃES, 2020). A relação que os corpos pretos e periféricos têm com a morte levou as periferias a um novo estado de atenção, tendo dois possíveis caminhos dentro do atual sistema social e período histórico: isolar e não ter renda para sobreviver ou se expor a mais uma ameaça de morte. Nos territórios marginalizados o isolamento é quase inexistente. Para a maioria das famílias periféricas não houve home office, distanciamento, máscara ou álcool em gel. Os territórios pretos das cidades, excluídos das políticas públicas, lidaram com a morte na pandemia do COVID-19 com tamanha resistência como a que lidam com a violência do Estado. O corpo periférico, que há séculos é violentamente obrigado a percorrer longos trajetos, permaneceu tendo que se expor durante a pandemia. O trabalho presencial não parou, as linhas de ônibus e metrô seguiram cheias, o acesso público à saúde continuou precário e quem precisou estar na rua à trabalho nem ao menos teve o direito à máscara e álcool para prevenção ao vírus. O risco à morte e a propagação do vírus sem uma expectativa de apoio à vida esteve presente nos territórios periféricos durante todo o período de isolamento, evidenciando a negligência do Estado quanto a um planejamento de reparação histórica tratando sobre a valorização das condições de vida do povo preto e periférico. É importante para nossa continuidade compreendermos as táticas de resistência que se atualizam e se fortalecem há tantas gerações quando fazemos uma leitura territorial racializada. E, como defendido pelo geógrafo baiano Milton Santos, “é necessário buscar analisar a condição do negro dentro da formação social
brasileira” (SANTOS, 1995), considerando as relações entre sociedade e território no Brasil como essenciais para compreensão das condições de vida do negro no país durante toda nossa história. Porque a política não se faz no mundo, não é o mundo que dita as regras da política que se faz em cada país. E não é outro continente. Não é o olhar para a África que vai ajudar na produção de uma política brasileira para o negro, nem o olhar para os Estados Unidos [...] que vai permitir essa produção de uma política. É o estudo do negro dentro da sociedade brasileira. Evidente que esse estudo passa por aquela categoria que se chama formação socioeconômica, a qual eu modifiquei propondo a categoria de formação socioespacial. Porque eu creio que o território tem um papel muito grande na compreensão do que é uma nação (SANTOS, 1995).
As estratégias de resistência são herdadas e transmitidas pela vivência e oralidade, nos dando acesso à filosofias e tecnologias ancestrais. Durante os primeiros meses após a confirmação da pandemia do novo corona vírus, o povo, em sua maioria preto, foi às ruas em resistência antirracista contra a hereditariedade colonial preservada no país e evidenciada durante o atual momento histórico global. Foram explicitados em diversas manifestações públicas presenciais e virtuais, distintos símbolos opressores históricos presentes nos modos de viver urbano e na paisagem dos espaços públicos, onde discussões levantadas por movimentos sociais se encontram e se amplificam. As cidades seguem territorialmente fragmentadas e a população preta permanece nas áreas urbanas estruturalmente frágeis e distantes dos espaços de poder, ainda tendo que se relacionar com ideias e práticas de cunho racista que tentam distanciar o povo preto das memórias de seus ancestrais. Tais práticas de distorção das memórias pretas e dissociação de nossa ancestralidade, amparadas por uma necropolítica (MBEMBE, 2016) instaurada no país, como publicado pela Agência Mural de Jornalismo das Periferias (2020), dá margem à atualização de estratégias coloniais que investem no apagamento do legado preto, insistindo na invisibilização de tecnologias e saberes ancestrais preservados e produzidos nos nossos territórios de resistência. Como apontado pelo historiador pernambucano Petrônio
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Domingues, ainda há no Brasil uma escassez de registros sobre as histórias de vida do povo preto nos espaços urbanos, invisibilizando o legado de nossos ancestrais. O autor nos traz como as cidades brasileiras não nos contam sobre as histórias pretas que produziram rotinas, paisagens e espaços nas cidades desde o período pré abolição. Domingues afirma que ao evidenciar o legado preto construído por nossos ancestrais criamos possibilidades para novos olhares em relação ao passado. Falar sobre a memória no espaço urbano abre caminhos para “reparação moral, reforço da autoestima e ressignificação identitária”: Assim, a estratégia de dar visibilidade ao legado negro no estado não somente consolida novas formas de rememoração para públicos que desconhecem ou se recusam a falar desse passado, mas também abre caminhos para o reconhecimento de quem sofre o peso do estigma de ser descendente dos antigos escravizados (DOMINGUES, 2019, p. 119).
É árdua a tarefa de resgatar memórias brutalmente distorcidas nos espaços onde vivemos, mas se faz necessário essa busca para compreendermos como tal perda compromete nossos modos de perceber o mundo. Afastados de nossos ancestrais nos deparamos com a falta de uma conexão entre a memória de um passado, sua continuidade no presente e projeção no futuro. Compreender que a população descendente de povos africanos, sequestrados e trazidos para o Brasil, permanece sendo marginalizada desde o período pós abolição é também compreender o ácido trajeto que os sistemas opressores racistas percorreram durante os últimos séculos, se atualizando em novas formas de opressão até os dias atuais. Como comentado anteriormente no primeiro capítulo, devemos estar sempre conscientes de que as nossas memórias foram distorcidas pelo colonizador e pelos sistemas opressores racistas, e logo, o povo preto não descende de pessoas escravizadas e sim de diversos grupos étnicos africanos, entre eles rainhas e reis do Congo, recriados no Brasil em lideranças de povos iorubá e banto desde 1674 em cerimônias de coroação pelo povo preto (LOPES, 2011, p. 175), que trouxeram pela memória e oralidade a complexidade de suas culturas e modos de perceber o mundo.
E quando se quer falar em “rei negro”, nas manifestações bantas recriadas em terra brasileira, fala-se principalmente em Rei do Congo, projeção simbólica dos grandes Muene Kongo, os Manicongos com quem os portugueses trocaram credenciais diplomáticas e presentes, de igual para igual, em suas primeiras expedições à África Negra. Assim é que um sem-número de manifestações da arte afro-brasileira conserva a lembrança das grandezas passadas do Antigo Congo e de seus reis (LOPES, 2011, p. 174-175).
Nota-se aqui, a partir do trecho apresentado pelo escritor carioca Nei Lopes, a relação das manifestações culturais de origem africana com a preservação de memórias do povo preto que tratam sobre o Ser negro a partir de histórias contadas pelo seu próprio povo, e assim garantindo uma proximidade honesta entre nós e nossos ancestrais e nos apontando sobre a continuidade histórica de nossos modos e territórios de resistência. Ainda sobre os reis e rainhas negros também é válido refletir sobre a relação dessas figuras de liderança com os seus territórios, podendo fazer uma leitura de tais organizações sociais também como uma herança encontrada nos modos como nos organizamos e elegemos lideranças nos territórios de resistência da contemporaneidade que preservam e cultivam manifestações culturais tradicionais negras. Durante a época escravista, em todas as Américas, as diversas comunidades negras tiveram por costume escolher líderes para as representar simbolicamente em festas e folguedos ou, efetivamente, na solução de disputas internas ou com outros grupos. Atuando à frente de quilombos, grupos de trabalho, religiosos etc., a presença dessas lideranças, embora em nível alegórico, sobreviveu até os dias atuais, como por exemplo nas figuras dos reis e rainhas do maracatu pernambucano e das voodoo queens no Sul dos Estados Unidos. Relegada hoje a uma dimensão meramente simbólica, essa realeza teve, entretanto, existência real também: a história da escravidão registra a existência de líderes africanos, chefes de aldeias e de cidades no continente de origem que, nas Américas, continuaram a exercer sua liderança, à frente de comunidades insurgentes ou de grupos de trabalhadores, e receberam, por seu efetivo poder, obediência e reverencia da parte de seus liderados (LOPES, 2004, p. 565).
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Pensando sobre o resgate de nossas memórias desvinculadas de discursos racistas, citamos aqui outra vez o historiador Petrônio Domingues, que nos apresenta como a memória é “uma reflexão sobre o passado, um debruçar-se sobre esses vestígios para selecioná-los, negociá-los e atribuir-lhes sentido” (DOMINGUES, 2019, p. 116). É pelo resgate de nossas memórias que podemos restaurar as conexões com nossas raízes tão desgastadas pelo planejamento genocida de quem esteve no poder. Domingues aponta como atualmente pesquisadoras e pesquisadores buscam resgatar e divulgar sobre a memória do povo preto no período pós abolição, mas até pouco tempo atrás isso não era tão publicamente discutido nos espaços de poder, nos levando a ter poucas publicações e monumentos públicos que abordam o legado preto no espaço urbano (DOMINGUES, 2019, p. 119). Assim, trazemos o questionamento sobre o porquê de não haver registrado em documentos oficiais das cidades a participação da população preta em sua produção social e urbanística, já que é do nosso conhecimento a importância que se teve a presença do povo preto no processo de construção das cidades brasileiras. Encontramos nas histórias orais vivenciadas e preservadas em nossas casas, ruas, bairros e comunidades, as inúmeras memórias sobre os fluxos, trajetos e permanências do povo preto nos espaços urbanos. O passado é uma das dimensões mais importantes da singularidade. Materializado na paisagem, preservado em “instituições de memória”, ou ainda vivo na cultura e no cotidiano dos lugares, não é de se estranhar, então, que seja ele que vem dando suporte mais sólido à essa procura de diferença. A busca de identidade dos lugares, tão alardeada nos dias de hoje, tem sido fundamentalmente uma busca de raízes, uma busca de passado (ABREU, 1998, p. 77).
Na cidade de São Paulo, como exemplo de estratégia de atualização de um sistema opressor racista, bairros como o Bixiga e a Liberdade, com seus fundamentos nas trajetórias do povo preto, sofrem processos de distorção e apagamento de suas memórias e paisagens, como publicado pelo Programa Educação e Território (2017), dando espaço a qualquer outra imagem que não seja preta. O povo preto resiste há mais de cinco séculos aos ataques constantes contra a vitalidade de seus corpos e memórias, lutando para
se reunir, se aquilombar, preservar suas culturas e produzir novas memórias a cada dia mais distantes do cativeiro2. Encontramos nos territórios de encontro do povo preto e periférico os símbolos de resistência e ancestralidade que mantêm nossas memórias vivas e em constante produção. A resistência do povo preto se faz presente nesses territórios ocupados e cultivados, combatendo os ataques racistas que insistem em renovar suas táticas de distorção e apagamento. Na história da população negra, o território, gradualmente, foi conquistando lugares e compreendendo a vitória (parcial) diante da segregação de base racial, através de importantes ganhos materiais e simbólicos. É o território o ator principal diante das inúmeras cenas da violência e da segregação, que em momentos decisivos impede o extermínio e a violência exacerbada daqueles que foram separados e expostos aos últimos lugares da cidade (OLIVEIRA, 2013, p. 67).
A trajetória de nossos ancestrais nos espaços urbanos é preservada por pessoas, coletivos e comunidades que se dedicam em manter viva a cultura da oralidade, promovendo encontros onde são transmitidos histórias e saberes que se mostram importantes para os caminhos pessoais e coletivos de reconhecimento histórico, valorização da autoestima e construção de narrativas. Os territórios de resistência se mantêm também como territórios de liberdade, abrindo espaço para encontros, trocas e diálogos que fortalecem a cada geração nossas tecnologias de aquilombagem. Há nesses territórios uma filosofia política afroperspectivista “que está enraizada sobre a fortaleza de valores que não coadunam com a lógica necropolítica ocidental”, e essa filosofia política está pautada na “valorização/exercício da memória e da energia vital (força) que constitui tudo que há no universo”, tendo um fazer político relacionado à territorialidade e entendendo os territórios Como presente em cantos tradicionais de religiões de matriz africana que saúdam e cultuam a força de nossos ancestrais que viveram durante o período escravocrata, o povo preto segue construindo territórios que valorizam sua memória e história de força vital e resistência desassociadas de narrativas distorcidas por sistemas sociais opressores racistas: “Vovó não quer casca de coco no terreiro / Para não lembrar dos tempos de cativeiro”.
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de liberdade como uma referência desassociada do individualismo, da propriedade, do amor pela mercadoria e da lógica ocidental de “roubar, matar e destruir” (OLIVEIRA, 2020). Sendo assim, podemos afirmar que esse fazer político é também um saber fazer a liberdade, dado que esse fazer advém da maior referência de produção de liberdade e solidariedade que o povo negro possui: os quilombos e sua práxis quilombolista. Por este fato, a política que emerge desses corpos/ territórios é uma política que, necessariamente, segue outras referências, conexões e percepções de mundo, por sua vez, seguem outros valores (OLIVEIRA, 2020).
Os modos de viver experienciados nos territórios de resistência, como uma herança ancestral, contribuem para o nosso comprometimento e proximidade com cosmovisões afrodiaspóricas que se fazem presentes em nossas raízes e são transmitidas a cada geração. Herdamos uma sensibilidade que nos abre caminho para compreender e apreender o mundo de maneira desassociada ao que é autoritariamente imposto por sistemas e símbolos opressores históricos, que segue afiados pela distorção e desestruturação de nossos corpos, memórias e territórios em diáspora. Essas perspectivas relacionadas aos territórios de resistência (e liberdade) trilham uma filosofia política que respeita a construção do Ser humano e do fazer e se relacionar com os outros/comunidade” (OLIVEIRA, 2020), abordando elementos fundamentais para nossa formação como Ser. [...] comunidade, corporeidade, oralidade, cooperativismo, ludicidade, circularidade, musicalidade, religiosidade, ancestralidade, energia vital e memória são alguns dos elementos fundantes do Ser, para essa filosofia política e, consequentemente, são categorias fundamentais para o fazer e ser política (OLIVEIRA, 2020).
A continuidade histórica desses territórios preservou modos de viver que valorizam uma sensibilidade que se apresenta também como uma tática contracolonial3 e antirracista, nos afasTermo utilizado pelo escritor quilombola piauiense Antônio Bispo Santos (2018).
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tando de práticas e teorias que perpetuam ideais opressores racistas nos modos como percebemos o mundo. Logo, a política desde esses corpos-territórios pode ser compreendida como uma política feita com respeito à totalidade do Ser. Uma política que é alimentada/nutrida por valores civilizatórios apreendidos com a ancestralidade africana e os donos da terra, os povos pindorâmicos, que reafirmam, sopram em nossos ouvidos, diuturnamente, que a vida, a natureza/território que nos gera e nutri e o Ser só são em comunidade e não estão à venda (OLIVEIRA, 2020).
A presença desses territórios que preservam heranças ancestrais em nossas cidades é uma das inteligentes tecnologias desenvolvidas pelo povo preto desde o surgimento dos quilombos no Brasil, e continuadas por nossas mais velhas e mais velhos, atualizando a cada geração os nossos modos de resistir e enfraquecer os sistemas opressores racistas. Herdamos dos quilombos a força de suas organizações, nos impulsionando a fazer novas leituras sobre os espaços que ocupamos e cultivamos a partir de modos de perceber o mundo que respeitam valores que tratam sobre a comunidade. Portanto, quando nossas e nossos ancestrais quilombistas nos dizem que nos mantemos vivas e vivos por sabermos fazer e ser política, compreendo que querem nos dizer que nós, comunidade negra, por termos como ponto de partida outras perspectivas de relações e modos de vínculo com o mundo e tudo que o habita – que não parte da desconexão, usurpação, individualismo ou violência – entendemos, na busca pela liberdade, que uma boa sociedade/comunidade está atrelada a como os seus membros compreendem o todo. Portanto, uma pessoa só será passível de morte se a concepção de mundo que orienta suas ações compreender o corpo apenas como moeda, máquina, mercadoria (OLIVEIRA, 2020).
Se os sistemas opressores tornaram o negro em coisa e mercadoria, na “cripta viva do capital” (MBEMBE, 2014, p. 19), como dito pelo filósofo camaronês Achille Mbembe em consideração à maneira que o sistema capitalista atua, os quilombos e seus territórios de continuidade histórica tratam por restabelecer os valores do “Ser negro”, alinhando os corpos pretos do tempo presente com
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as memórias e tecnologias produzidas e preservadas pela ancestralidade preta. O território, de resistência e de liberdade, regado por saberes ancestrais nos leva por um caminho filosófico, social, político e espiritual que percorre como um retorno transatlântico. E, considerando que o espaço, como apresentado pela obra de Milton Santos, abriga os modos como nos relacionamos dentro de uma sociedade, o estudo da paisagem pode ser assimilado a uma escavação arqueológica (SANTOS, 2014, p. 74), compreendendo a preservação desses territórios também como um registro histórico das relações de nossas memórias em diáspora. Além de dar vazão à leituras simbólicas sobre a nossa história, como o contato entre a Calunga Grande - o mar - e a complexidade sensorial de nossos territórios de aquilombagem, que se estreitam construindo percepções fundamentadas em nossas memórias do passado africano e presente afrodiaspórico, o retorno histórico nos cobre com um pano branco que nos guia e protege ao encontro com raízes de extensões oceânicas, acessando suas espessuras, texturas, ramificações e vitalidade.
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capĂtulo 2.2.
As cidades dos colonizadores nĂŁo nos cabem mais
[...] Ainda sou poeta meu poema levanta os meus irmãos. Minhas amadas se preparam para a luta, os tambores não são mais pacíficos, até as palmeiras têm amor à liberdade… [...] (TRINDADE, 2007, p. 140)
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Durante o ano de 2020 fomos confrontados por uma pandemia global que tornou ainda mais evidente as inúmeras situações de desigualdade e vulnerabilidade social que ocorrem no país. Cientes de que ainda não temos programas bem estruturados de incentivo a pesquisas e projetos que tratem sobre políticas públicas urbanas que considerem as questões raciais, enxergamos a falta que ainda se tem da participação de pesquisadoras e pesquisadores pretos e periféricos nos espaços de decisão sobre o planejamento de nossas cidades. Tornando assim ainda mais difícil as discussões e projetos que coloquem em execução estratégias interseccionais que de fato considerem a valorização das condições de vida do povo preto e nos guiem para o desenvolvimento de cidades antirracistas e contracoloniais. “Para negros e negras, a vida no contexto urbano é marcada pela estigmatização e marginalização do território negro” (OLIVEIRA, 2013, p. 58) e, considerando que as territorialidades negras se apresentam historicamente ou por essa exclusão por parte do Estado ou pela força dos movimentos sociais, políticos, culturais e religiosos (ROLNIK, 1989 apud OLIVEIRA, 2013, p. 58), precisamos entender que a estruturação e inserção desses territórios de resistência nas decisões de
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políticas públicas no país é também uma estratégia para preservação de nossas memórias e ancestralidade. É importante que nos campos que a arquitetura e o urbanismo envolvem, tenhamos em discussão a necessidade de haver profissionais que pensem as relações entre questões urbanas e raciais. Garantindo sempre que perspectivas sobre raça sejam consideradas nas decisões sobre projetos para as cidades. Para além de termos arquitetos e arquitetas inseridos nos espaços de decisões políticas, devemos garantir a presença e permanência de profissionais pretos e periféricos que representam distintas realidades sociais, compreendendo a questão racial como fundamental nas análises territoriais do país, principalmente nas discussões sobre as situações de desigualdades (BERTH in POLÍTICAS…, 2020). É necessário estarmos nesses espaços, pensando e decidindo sobre políticas públicas em uma relação multidisciplinar a partir da consideração quanto às condições de vida do povo preto, para que possamos atuar sobre a emancipação desses territórios negligenciados desde o pós abolição que somente surgem nas pautas nacionais em situações extremas como o da atual pandemia do COVID-19 (BERTH in POLÍTICAS…, 2020). É importantíssimo que a arquitetura e o urbanismo tenham uma frente consolidada de trabalho político, não só de análise, de diagnóstico, mas principalmente, que a gente possa propor de fato políticas públicas na área de planejamento urbano, [...] que a gente possa atuar em conjunto com outros atores da política nacional, estadual, municipal, para conseguir trazer questões que são muito importantes e que em momentos como esse se mostram catastróficas a partir da negligência que sempre teve (BERTH in POLÍTICAS…, 2020).
A arquiteta mineira e vice presidente do Departamento de São Paulo do Instituto de Arquitetos do Brasil Gabriela de Matos, ressalta que há muito tempo a arquitetura abdica de pensar a questão racial como uma questão transversal à todos os problemas existentes nas cidades, e em uma exposição como a pandemia em que estamos vivendo, entendemos como o genocídio da população negra e indígena está estruturado também pela falta de políticas públicas que olhe para estas pessoas (DE MATOS in POLÍTICAS..., 2020):
Esse cenário em que a população negra não se adequa não é por acaso, ele é construído politicamente para ser assim. E quando chegamos em um momento de pandemia como esse, a gente precisa enxergar que esse projeto político é um projeto de genocídio da população indígena e negra do Brasil. E acho muito importante para a gente enquanto arquiteta e urbanista fazer essa leitura porque a gente precisa olhar a partir desse viés para tudo que estamos pensando na cidade. Todas as políticas urbanas, todas as políticas públicas, a gente precisa pensar por essa perspectiva porque se não a gente nunca vai conseguir atingir a população que está mais em vulnerabilidade (DE MATOS in POLÍTICAS..., 2020).
Como apontado pela urbanista e escritora paulista Joice Berth, para discutirmos sobre reforma urbana e diminuição de desigualdades e exclusões nos espaços rurais ou urbanos, precisamos pensar a partir do pós abolição. Compreendendo que por meio da negligência de quem detinha poder, buscou-se estabelecer novas formas de exclusão da população negra a partir de políticas higienistas e instrumentos de genocídio que seguem se atualizando, como a própria pandemia do COVID-19, que mesmo sendo uma questão global, se torna mais um desses instrumentos ao ser amparado pelo contexto político brasileiro, dando continuidade à políticas de morte (BERTH in POLÍTICAS…, 2020). Todo arquiteto e urbanista deve pensar as cidades a partir do questionamento sobre o que aconteceu com a negritude depois da abolição da escravatura, para onde foram e em que condições têm se desenvolvido. Ainda não nos emancipamos dos símbolos e sistemas opressores racistas presentes nas cidades brasileiras, levando em consideração que elas surgiram no período da escravidão e até hoje nos confrontamos com seus fantasmas e consequências (BERTH in POLÍTICAS…, 2020). Parece que o problema da cidade [no campo de atuação da arquitetura] fica muito voltado para uma falha de planejamento urbano no sentido de projetos. E a questão não é só essa, o problema é muito mais profundo. A gente precisa analisar a questão das periferias, das favelas, das aglomerações, da moradia insalubre a partir da escravidão, entendendo qual caminho foi permitido que a população negra seguisse (DE MATOS in POLÍTICAS…, 2020).
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Devemos entender que a arquitetura precisa caminhar por todas as encruzilhadas resultantes das questões que se fazem importante para a sociedade, principalmente àquelas que tratam sobre a diminuição de desigualdades e valorização das condições de vida do povo preto. Discutir sobre a participação de profissionais que tratam sobre as questões urbanas na construção de políticas públicas que respeitam essas vidas, é também evidenciar a falta de pessoas que representem as diversas realidades sociais existentes no Brasil nos espaços de poder. Continuamos presos em um modelo de cidade escravocrata que impacta no comportamento da sociedade, pensando bons projetos urbanos e políticas públicas somente para determinados territórios de maior interesse econômico e marginalizando e excluindo a população preta e periférica do acesso a uma boa qualidade de vida dentro da cidade. A arquitetura ainda está distante de pensar a sociedade e a eliminação de desigualdades, precisamos trabalhar em parceria aos interesses públicos para compreender as demandas de territórios que ainda sofrem com as estratégias mantidas pelos sistemas opressores racistas (DE PAULA in POLÍTICAS…, 2020). O ano de 2020 condensou diversos dos problemas sociais presentes no país, e ao evidenciar a negligência do estado quanto às vidas pretas e periféricas também levou muitos questionamentos que tratavam sobre o racismo estrutural em nossa sociedade. Fomos diariamente noticiados em rede nacional sobre mortes de crianças, jovens e adultos pretos e periféricos e, consequentemente, sobre manifestações contra o atual sistema opressor e racista que ocorreram em espaços públicos por todo o país, colocando em pauta a necessidade de termos pessoas pretas e periféricas ocupando espaço de poder político, defendendo causas sociais, raciais e de gênero. Neste ano, à parte de todo o desgoverno em que o país se encontra, conseguimos reunir milhares de pessoas em cada região do Brasil para impulsionarmos o movimento de ocupação dos espaços de poder por pessoas pretas e periféricas. No penúltimo mês do ano, elegemos vereadoras cis, trans e travestis, pretas e periféricas, que dão um passo importante para a inclusão do pensamento interseccional nas decisões políticas do país, levando questões de gênero, raça e classe para os espaços de poder político. Assim como afirmou Tainá de Paula, arquiteta e vereadora recém eleita na cidade do Rio de Janeiro: “É preciso entender que as cidades
dos colonizadores não nos cabem, não nos representa, e é preciso construir a nova pólis, a nova democracia, com todos os setores que são afro latino americano indígenas” (DE PAULA in POLÍTICAS…, 2020). É preciso um novo marco civilizatório que arranque e acabe com o pacto de subalternidade de nossas cidades e obviamente da nossa falsa democracia. É preciso emancipar o Brasil e é preciso estabelecer um ciclo de decolonização profundo que arranque as amarras que ainda temos com o norte. Que nós miremos nos exemplos locais que já estão dados nas cidades brasileiras [...] e que precisamos concretamente e profundamente garantir formas de participação das comunidades e dos territórios que ainda estão invisibilizados e incapazes de inserir e se incidir de fato nesse palco de transformação que a gente vai precisar fazer (DE PAULA in POLÍTICAS…, 2020).
A arquiteta complementa os pensamentos apresentados anteriormente ao tratar sobre a necessidade de um novo marco civilizatório no país que reconstrua nossas relações sociais e políticas ainda corrompidas pelo racismo estrutural. Tainá nos aponta a urgência em compreendermos, em nossos exemplos locais, como podemos seguir com uma nova estratégia de desenvolvimento das cidades e desassociação de nossos modos de viver e perceber o mundo das amarras do colonialismo. “É preciso entender que a gente deve ser muito mais Lélia Gonzalez e muito mais Ailton Krenak” (DE PAULA in POLÍTICAS…, 2020). É importante que possamos aqui resgatar as discussões já abordadas neste trabalho e reconhecer a sincronicidade da fala da Tainá de Paula com a pesquisa de pesquisadoras como Beatriz Nascimento, evidenciando a potência política existente nos territórios de resistência do povo preto e os modos como as lideranças locais nas periferias do país atuam diariamente para a eliminação de desigualdades e fortalecimento da auto estima, contribuindo com a emancipação de nossos corpos e estruturação de nossos territórios. As pessoas estão falando [que a pandemia] está escancarando as desigualdades mas não está mostrando nenhuma novidade, nada que já não esteja sendo falado e analisado há muito tempo. O saldo positivo nesse momento é saber que tem pessoas
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negras que atuam nos territórios, líderes comunitários, que já entenderam a importância de se pensar políticas públicas urbanas a partir dos territórios e estão nesse momento falando [...], fazendo lives, reuniões virtuais, e trazendo as questões diretamente das suas comunidades e territórios (BERTH in POLÍTICAS…, 2020).
Os territórios de resistência, suas comunidades e líderes comunitários, diante da falta do Estado, já atuam sobre o desenvolvimento urbano dos locais onde vivem. Os espaços de cultura e educação nas periferias brasileiras contribuem diretamente para a formação de crianças, jovens e adultos, construindo espaços de escuta e de troca, tanto entre as pessoas da comunidade como entre os próprios espaços e agentes do território. Encontramos na periferia a continuidade histórica de territórios e organizações pretas que resistem e se atualizam em função da melhoria da condição de vida do negro e da qualidade de seus espaços públicos. Como afirmado pelas arquitetas e urbanistas Joice Berth e Tainá de Paula, a periferia já vem construindo estratégias políticas em seus territórios. A força e resistência é herança ancestral, e nos territórios de resistência do povo preto se cultiva e desenvolve tecnologias que garantem ao povo periférico direitos básicos, espaços comunitários e momentos de escuta e troca, atualizando e construindo modos de pensar e fazer política a partir de uma análise territorial que realmente considere as realidades e questões sociais da comunidade nas decisões políticas. Existe uma fragmentação política explícita dos territórios da cidade que segue excluindo a população preta e periférica dos espaços de poder, tendo que, enquanto presas no sistema capitalista e racista, se locomover muitas horas por dia para fazer parte da cidade ainda como mão de obra. Não somente as cidades excluem essa população e seus modos de perceber o mundo como impossibilitam que as políticas necessárias para as periferias dialoguem com os territórios onde está voltada a atenção política do Estado. Ao reconhecer as potencialidades políticas na periferia e a necessidade de haver uma participação efetiva do povo preto e periférico nas tomadas de decisões políticas, devemos identificar e romper com a presença e influência dos símbolos e sistemas opressores racistas nas cidades, e reavaliar nossos modos de viver no meio urbano a partir de nossos exemplos locais. Se as cidades
são política e territorialmente fragmentadas e o Estado insiste em preservar e atualizar sistemas opressores racistas, planejando somente as regiões de interesse econômico das cidades onde estão concentrados os espaços de poder, é necessário que lutemos por estruturar os territórios periféricos, tendo como um de nossos objetivos um caminho de retorno histórico para o povo preto e periférico dentro de seus trajetos no meio urbano, reconhecendo as potencialidades econômicas, sociais, artísticas e culturais desses territórios. Se você passa a semana inteira fazendo um trajeto de duas, três, quatro horas para chegar até o seu trabalho, no fim de semana você vai pensar em acessar um equipamento cultural, e pegar de novo essas duas, três horas para chegar lá e ver alguma coisa? Temos que fazer esse caminho de retorno, as pessoas que estão no centro [...]. Não dá para você pensar a cidade desconectado do pensamento social, a gente precisa juntamente com uma reforma urbana ter uma reforma do pensamento da sociedade como um todo. Porque se uma pessoa da periferia pode se deslocar até o centro para trabalhar ou para fazer alguma coisa, uma pessoa do centro também pode se deslocar até a periferia para consumir aquilo que está lá [...] (BERTH in POLÍTICAS…, 2020).
Diante da necessidade de reconstruir as conexões dos territórios fragmentados da cidade, Joice Berth aponta a mobilidade como uma das preocupações que as políticas públicas precisam abordar, entendendo os trajetos percorridos como fundamentais para a compreensão da exclusão da população negra em relação aos espaços de poder. [A mobilidade ativa] é uma alternativa que a gente tem que insistir até achar um modelo que possa atender principalmente aqueles que não tem muitos recursos. [Em São Paulo] se tem todas as oportunidades de emprego concentradas na área central, e aí tem um deslocamento de duas ou três horas da periferia até esses locais para poder trabalhar. Esses deslocamentos impactam na vida das pessoas [...], então a mobilidade ativa precisa funcionar também com uma política que pense na descentralização dos serviços e ofertas (BERTH in POLÍTICAS…, 2020).
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A urbanista apresenta como analisar os nossos deslocamentos dentro da cidade pode nos auxiliar em uma reforma urbana vinculada a uma reforma do pensamento da sociedade, nos guiando por um caminho de retorno, um caminho que faz girar as possibilidades de trajetos a traçarmos, de modo a emancipar nossos corpos e memórias de uma cidade planejada para garantir a continuidade dos privilégios brancos. A população que mora nos territórios valorizados pelas políticas públicas no Brasil deve passar a se deslocar para as bordas da cidade, se relacionando com as distintas realidades existentes no meio urbano e reconhecendo a potência urbanística dos territórios periféricos (BERTH in POLÍTICAS…, 2020). Para que assim contribua com os caminhos de retorno do povo preto e periférico, aumentando a atenção do Estado para a estruturação e manutenção dos espaços públicos e equipamentos culturais e de saúde das periferias, pensando a interseccionalidade como ferramenta para se construir políticas públicas que de fato atuem pela melhoria da condição de vida do povo preto nas cidades.
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capĂtulo 3.
Continuidade
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capítulo 3.1.
Cultura e resistência preta na região da Praça do Campo Limpo
Sou preto sou velho, sou raiz nagô Eu sou preto velho! A ye yê mãe Oxum, Atotô Omolu, Kaô pai Xangô Sonhei liberdade, sofri sim senhor Hoje eu canto alegria, trazendo energia, tocando tambor No cachimbo a força, a folha da guiné Eu sou Ouro do Congo, com a minha família levo meu axé (MARACATU OURO DO CONGO, 2013)
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Buscando sobre a história do bairro do Campo Limpo nos registros e publicações feitas por órgãos públicos, pouco se encontra além de um texto curto que se repete a cada documento e plataforma digital acessados. Nomeado Campo Limpo devido aos campos abertos onde se vinha cavalgar com os cavalos do Jockey Club de São Paulo, o bairro inicia sua ocupação devido à expansão urbana de Santo Amaro (CAMPO LIMPO, 2020), levando aos trabalhadores e suas famílias a buscarem por moradia nessas terras distantes do centro urbano e dos espaços de poder da cidade. Como já bem ouvido em cada canto do Brasil, grande parte das ocupações pós abolição foram realizadas por povos e descendentes de japoneses e italianos que tomavam conta das terras brasileiras a convite de um sistema que impunha o embranquecimento de nosso povo. No Campo Limpo não foi diferente. Ainda hoje temos registrados pelo bairro e seu entorno, os nomes das famílias vindas de longe para cercarem nossas terras e cultivarem seus alimentos, um exemplo bem conhecido na região é a Estrada Kizaemon Takeuti, passando pelo Campo Limpo e alguns bairros de Taboão da Serra, município vizinho. A estrada leva o nome da família que habitou a região e, por meio de plantações de batata,
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gerou riquezas e símbolos urbanos, como nomes de ruas e praças, que se sustentam até hoje (ALEX BARCELLOS, 01-12-2020). Para além dessas informações, pouco se encontra publicamente disponível sobre a história do bairro. A falta de registros oficiais, assegurados pela prefeitura, se apresenta como um dos inúmeros resultados da presença do racismo na nossa sociedade. E trazemos essa afirmação ao compreendermos que a história do Campo Limpo é, antes de tudo, preta. A presença do povo preto na região não está desassociada ao fato de hoje o bairro ser considerado um importante território cultural na cidade de São Paulo. E, embora invisibilizado e apagado pelo Estado, o legado preto do bairro resiste nas memórias da população que vive e frequenta a região. A oralidade, como tecnologia ancestral de resistência do povo preto, preserva as histórias de quem construiu as nossas cidades, suas paisagens e relações humanas. Como levantado algumas vezes neste trabalho, devemos ter cautela ao pensarmos sobre nossas histórias, e com sensibilidade percebermos os modos como nosso povo vem atualizando seus meios de resistência. Ainda que não haja escrita, há voz. E é na oralidade que encontramos uma das mais potentes maneiras de caminharmos com ações e pensamentos que atuem como uma reparação histórica, resgatando as memórias e vivências de nossos mais velhos e mais velhas, e nos enxergando vivos e contínuos por meio de nossa ancestralidade. Ainda pelos arquivos da Subprefeitura Campo Limpo, encontramos alguns escritos sobre a existência de uma fazenda chamada Pombinhos por volta de 1937, pertencente à família Reis Soares (CAMPO LIMPO, 2020). E, embora tenhamos essa informação repetida em algumas outras plataformas digitais, não se sabe a origem dessa família e nem o que aconteceu com ela. Dos poucos registros sobre o surgimento do distrito do Campo Limpo, as únicas informações disponíveis para a população, mais uma vez, é a história do branco. Tem-se o nome da família e até o nome da fazenda, mas não se tem sequer um registro sobre a população preta que ocupou e construiu o lugar. Há inscrito em ruas, estradas e praças as trajetórias de quem herdou as terras saqueadas pelo homem branco. E as histórias “de quem fazia a produção desse sistema agrícola, quem colhia, quem era espancado, quem tinha um trabalho escravizado que rendia lucro para os proprietários”? (ALEX BARCELLOS, 01-12-
2020). A nossa história segue sendo ameaçada pelas atualizações de um sistema que planeja e aplica políticas de apagamento e sustenta políticas de genocídio do povo preto. Assim, assume-se aqui a importância da oralidade como ferramenta de resgate histórico de nossas memórias pretas nos espaços das cidades brasileiras, compreendendo a escuta como prática essencial enquanto realizamos uma “escavação arqueológica” (SANTOS, 2014, p. 74) em nossos territórios para construirmos espaços que possibilitem o resgate de nossas memórias e reconstrução de nossas narrativas. Por meio de entrevistas com pessoas que fazem parte da história do Campo Limpo junto ao crescimento e fortalecimento dos espaços de cultura e resistência na região, pudemos resgatar algumas das tantas memórias pretas que existem no bairro, e traçar uma reflexão sobre as intersecções entre as histórias contadas por essas pessoas e a pesquisa das autoras e autores anteriormente apresentados neste trabalho. “Quem organizava os eventos e ações culturais no Campo Limpo era o Movimento Negro”, afirma a Iyá Ana Rita Encarnação (ANA RITA ENCARNAÇÃO, 27-11-2020), Yalasé do Ilê Asé Ketu Egbé Oni, localizado no município de Embu das Artes, que faz divisa com o Campo Limpo. A Iyá Ana Rita nasceu em Salvador, na Bahia, e veio para São Paulo com 17 anos, chegando na Zona Sul da cidade no ano de 1977. Diz que quando chegou no Campo Limpo havia poucas edificações, ainda existia por ali muitas fazendas e chácaras. A Iyá foi militante no Movimento Negro de Campo Limpo, um dos primeiros e mais fortes do país, que deu origem a muitos outros como o Soweto Organização Negra e o Geledés. Ela nos conta que o movimento foi criado no fim dos anos 1970, desenvolvendo uma atuação bem forte no bairro, sendo a principal organização que atuava pela programação cultural da região (ANA RITA ENCARNAÇÃO, 27-11-2020). O Movimento Negro de Campo Limpo fazia as movimentações necessárias para garantir muitos direitos à população local, principalmente ao acesso à cultura, tendo conectado diversos espaços, grupos e pessoas do bairro, organizando eventos em espaços públicos como a Praça do Campo Limpo. Muitos dos locais que o Movimento ocupava, seja com as suas reuniões internas ou com os eventos culturais para a comunidade, estavam localizados na região da Praça, entre eles o Projeto Arrastão e o Centro de Convivência Nathalia Rosemburg, que após alguns trâmites políticos
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deixou o espaço para se tornar a atual Casa de Cultura Municipal do Campo Limpo (ANA RITA ENCARNAÇÃO, 27-11-2020). Todo dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares e Dia Nacional da Consciência Negra, o Movimento organizava na Praça um grande evento que trazia a população do bairro para participar como público das apresentações culturais promovidas e também como vendedores de seus produtos e marcas locais: Todo 20 de novembro, desde os anos 1980, o Movimento Negro reunia a população do Campo Limpo na região da Praça. As pessoas traziam as suas barracas, a gente fazia shows. Fazíamos o Dia da Mulher, levando um discurso das mulheres negras. Se você procurar vai encontrar que essa praça já balançou gente. E o pessoal ocupava a praça de verdade. (ANA RITA ENCARNAÇÃO, 27-11-2020).
A partir do relato da Iyá compreende-se que o povo preto tem construído as trocas sociais e culturais da comunidade a partir de um movimento organizado desde, pelo menos, o final dos anos 1970, contribuindo para o fortalecimento dos espaços de cultura da região da Praça do Campo Limpo, e consequentemente, nos deixando um legado fundado na união e resistência do povo nos espaços e equipamentos culturais públicos. “Naquela época do movimento negro, nós, principalmente as mulheres pretas, éramos muito unidas. O do lado não poderia estar sozinho” (ANA RITA ENCARNAÇÃO, 27-11-2020). A Yalasé do Ilê Asé Ketu Egbé Oni nos firma a necessidade do povo preto se unir para que possamos garantir a continuidade de nossos territórios. E que mesmo frente às ameaças, historicamente o nosso povo carrega a sabedoria em atualizar nossas estratégias de resistência. “Desde o começo lá na senzala tentaram nos separar mas não conseguiram. Um exemplo está na religião, que já na senzala os povos se uniram. Eu sou de Ketu, mas um Ketu feito aqui no Brasil. Quando eu faço Oxum eu sou de Ketu, mas quando faço Oxumarê já estou em Benin, em Angola. A gente se uniu.” (ANA RITA ENCARNAÇÃO, 27-11-2020). Ainda sobre os espaços e coletivos que contribuíam com a programação cultural no bairro, a Iyá também nos conta sobre a criação do Bloco Ori Omode, que surgiu no Centro de Convivência e saia às ruas nos dias de carnaval. Ela também ressalta sobre a Es-
cola de Samba Unidos do Campo Limpo, e como é importante que façamos presente nas ruas os movimentos que celebram a nossa história e o nosso povo: “Quando a gente traz uma escola de samba e as pessoas vão pra rua ver, é uma história, é resistência. Eles olham e sentem orgulho daquilo. [O Movimento] teve esse levante de trazer pra região o que trouxe orgulho ao povo negro.” (ANA RITA ENCARNAÇÃO, 27-11-2020). Em diálogo com o ogan Vitor da Trindade, Omoloie do Ilê Asé Jagun, localizado no Parque Pinheiros em Taboão da Serra, músico e herdeiro do legado da família Solano Trindade, o ogan nos provoca sobre quais são os territórios de resistência do povo preto nas cidades brasileiras: A pergunta é: qual território não é de resistência do povo preto? Todos os territórios são. Aqui no Embu, o Jardim Sílvia, a favela do Acari, o Morro da Rocinha. Onde tem preto é um território de resistência. Nós tivemos todo tempo que viver em resistência. Em manutenção cultural, manutenção dos nossos legados, manutenção estratégica, porque a gente precisa se alimentar, se desenvolver. O funk é um lugar de estrutura cultural, o samba, o candomblé. O Campo Limpo é um território de resistência, assim como todos são. (VITOR DA TRINDADE, 30-11-2020).
O músico hoje está à frente do Teatro Popular Solano Trindade, que foi fundado como Teatro Popular Brasileiro pelo seu avô Francisco Solano Trindade, sua avó Maria Margarida da Trindade e o sociólogo Edson Carneiro no Rio de Janeiro, e depois transformado no atual nome após seu avô falecer e sua mãe, dona Raquel Trindade, assumir a liderança. Em 2018, dona Raquel fez sua passagem, e o ogan assume os cuidados do Teatro junto de sua família. Garantindo a continuidade do legado de seus ancestrais no reconhecido município de Embu das Artes, onde seus avós foram de grande importância para o surgimento do movimento artístico da região. “Sou herdeiro da família Solano Trindade, em todas as possibilidades da palavra, mas principalmente porque é um legado cultural. Não recebi terras, não recebi dinheiro, mas recebi uma história que se tornou o meu trabalho” (VITOR DA TRINDADE, 3011-2020). Embora more no Embu das Artes, Vitor tem uma relação com o Campo Limpo de mais de 30 anos, já que transitava pelo
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bairro para chegar ao seu ilê. Depois, essa relação foi se estreitando quando passou a se aproximar mais da Agência Solano Trindade, localizada no bairro Vila Pirajussara próximo à Praça do Campo Limpo. A Agência, que homenageia a história de Solano Trindade, abrigou um dos projetos musicais mais recentes de Vitor, chamado Ossé, realizando parte de sua produção e também de seu lançamento para a comunidade. O Campo Limpo sempre foi muito próximo de mim. Mas eu me aproximei de verdade agora com a Agência Solano Trindade, quando pedi ajuda pra divulgar um show. Eu iniciei esse diálogo para gravar o disco Ossé, e a partir daí eu conheci o CITA, o entorno cultural do Campo Limpo. O Campo Limpo não é só o Campo Limpo, ele é o entorno cultural que a gente chama de Zona Sul. [...] Ele tá na música do Racionais, nas falas do Sérgio Vaz, na boca do povo do Sarau do Binho, na Tula Pilar, no Clariô, no Geraldo Magela. Ele tá em um monte de gente que representa o Campo Limpo. (VITOR DA TRINDADE, 30-11-2020).
Vitor nos apresenta o território cultural do Campo Limpo como na verdade o território cultural de toda a Zona Sul da cidade de São Paulo, onde as relações, trajetos e histórias se conectam desde o Capão Redondo até o Taboão da Serra e mais: A minha vivência no Campo Limpo me fez entender essa rede, essas introvisões culturais, esses entrelaçamentos culturais que formam essa rede e você vê que o Campo Limpo vai até o nordeste, vai até a europa, vai até o Rio Grande do Sul, até os Estados Unidos, vai em todos os lugares. Essa rede fez crescer o Campo Limpo. A sociedade tinha medo da região e a partir dessa rede o lugar se descriminalizou. (VITOR DA TRINDADE, 30-11-2020).
O ogan compreende o território assim como a Iyá Ana Rita, quando conta sobre a presença da Casa de Cultura M’boi Mirim ainda no período em que ela militava pelo Movimento Negro. Passamos a observar aqui que o território cultural da Zona Sul está estruturado pelas periferias existentes em todo o distrito e seu entorno, e que as relações foram se fortalecendo a partir das movimentações que esses espaços, coletivos e pessoas realizam já há décadas na região. Alex Barcellos, articulador cultural da Agência Solano Trin-
dade, conta que do ano de 2002 pra cá é que aconteceu um aumento de espaços públicos e culturais nas periferias, quando houve um fortalecimento de espaços como as casas de cultura, as bibliotecas públicas e os CEUs. “A gente vê um avanço na administração desses espaços culturais muito pela luta política dos movimentos que conseguiram passar a gestão desses espaços para a Secretaria de Cultura e indicou pessoas ligadas ao território para assumir essa gestão” (ALEX BARCELLOS, 01-12-2020). Alex nos apresenta uma fala que se relaciona com o que o ogan Vitor trás, e se mostra importante para refletirmos sobre a importância da cultura nos territórios periféricos e como ela une os espaços que o sistema tenta fragmentar: De uns 15 anos pra cá, o movimento cultural vem se tornando protagonista de toda essa luta. Vem se falando, conectando, trabalhando em rede, trocando tecnologia, ocupando os espaços institucionais das escolas, das bibliotecas. Vem dialogando e formando a juventude. A poesia, o sarau, os slams, as batalhas de MCs, as danças de passinho são críticas ao sistema. Se eles impedem a sociologia nas escolas, a gente através das ruas cria a socialização do Ser político. [...] O movimento cultural tem sido um dos mais provocadores contra a atual conjuntura social e política que a gente vem vivenciando no país. (ALEX BARCELLOS, 01-12-2020).
O movimento cultural periférico fortalece os territórios marginalizados e excluídos por um sistema social opressor que preza pela atualização dos modos de desumanizar o povo negro. É pela cultura que encontramos meios de manter nossa ancestralidade viva, que resiste nos territórios periféricos das cidades que se apresentam como uma herança das primeiras organizações sociais negras no Brasil. O Solano Trindade desde 1930 fala sobre a nossa ocupação dos espaços. Negros nos espaços de ordem e disputa do imaginário mas também no institucional. Fala sobre como é importante ocupar esses espaços. E o movimento desde lá sempre foi organizado, desde os movimentos de moradia que fazem crescer dentro das periferias os mutirões ou através de mulheres nos clubes de mães. Toda essa base organizada do movimento que consolida as grandes periferias, seja na construção de escolas, casas, fazendo greve, manifestações na rua, melhorias
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na saúde, na urbanização, na moradia, na canalização de córregos. (ALEX BARCELLOS, 01-12-2020).
O movimento negro e o movimento cultural trataram por estruturar na Zona Sul de São Paulo o que viria a se tornar o potente território cultural que hoje é a região do distrito de Campo Limpo e seu entorno. E essa organização é ancestral. A resistência do povo preto se apresenta de distintas maneiras a cada geração, a cada período histórico. Onde há preto, há resistência. Tem um movimento super importante que sempre foi organizado e que nunca se perdeu dessa organização. Talvez possa ter parado, ter se estressado um pouco, ter tentado descansar, mas sempre consolidou as suas construções dentro do território diariamente. E isso vai passando de geração em geração. Então você tem diversos espaços que surgem inspirados em algumas pessoas e outros que surgem mesmo da organicidade do território e das necessidades da nossa população. (ALEX BARCELLOS, 01-12-2020).
Vemos a continuidade desses movimentos que surgiram no final dos anos 1970 se apresentando pelas raízes que emergem no território. “Muitos saraus surgiram depois do Sarau da Cooperifa e do Sarau do Binho, assim como muitos espaços de cultura surgiram depois da criação do CITA e de tantos outros espaços, como o Quilombaque” (ALEX BARCELLOS, 01-12-2020). O Campo Limpo e todos os bairros adjacentes cultivam uma das mais fortes resistências do povo preto na cidade de São Paulo, tendo se reconstruído a cada geração perante a violência do sistema, que permitiu o crescimento de uma zona urbana sem estrutura e sem apoio do Estado, distante de boas condições de moradia ou de trabalho, e assim consolidando um território que foi - e por alguns ainda segue sendo - interpretado como um dos mais perigosos de São Paulo. O movimento negro e o movimento cultural possibilitaram que a população da Zona Sul de São Paulo entendesse a força cultural que existe nesse território, e aos poucos têm compreendido que essa força também está ligada à nossa ancestralidade. Encontramos nos territórios periféricos a valorização da tradição oral, do aprender pela escuta e pela fala, encontramos nesses territórios a cultura de nossos ancestrais vivos, e mantemos nas nossas relações sociais costumes que vêm de longe e to-
mam conta de nossos laços, nossos territórios. Cléia Varges, arte educadora, atriz e membro da atual gestão do Espaço Cultural CITA traz para essa reflexão o modo como fortalecemos nossas parcerias nos territórios culturais periféricos e como as pessoas se encontram e se colocam em desafios para ocuparem os espaços e desenvolverem projetos, ações e parcerias que a comunidade necessita no momento: “Se não fossem os coletivos locais que ocupam e insistem em permanecer na Casa de Cultura M’boi Mirim, talvez hoje o espaço não teria a potência que tem agora” (CLÉIA VARGES, 29-11-2020). A educadora conta que chegou na Praça do Campo Limpo dançando. Foi para lá com um grupo de mulheres da dança em um evento que comemorava o aniversário do bairro. “Depois voltei em 2011 para participar de um grupo de estudos da Trupe Artemanha, que acabava de ocupar o galpão onde hoje é o CITA”. O grupo de teatro que antes ocupava o Centro de Convivência foi quem abriu aquele espaço que hoje se tornou um dos mais importantes pontos de cultura da Zona Sul de São Paulo. O CITA é atualmente sede de nove coletivos culturais residentes e consolidou muitas parcerias com outros espaços e pessoas da região, resgatando cada vez mais o direito à cultura para a comunidade. Cléia conta como as relações entre as pessoas era o que de fato construía as parcerias que permanecem até hoje, e como essas relações deram início à uma rede cultural na região que se apoia frente às ameaças de um desgoverno brasileiro. O Tony Marlon trouxe a Escola de Notícias para o Projeto Arrastão e para o CITA, ali começa a estabelecer uma relação com agentes culturais, trazendo jovens. O Centro de Convivência se torna Casa de Cultura, os jovens da região passam a ser contratados como agentes culturais por meio de editais. A Dora Nascimento assume a coordenação do espaço, reconstrói e ressignificar aquele lugar, mostrando a magnitude da força e resistência das pontes que essas pessoas foram construindo. (CLÉIA VARGES, 29-11-2020).
Necessitamos fortalecer as nossas relações e ocupar os espaços da cidade. Ocupar os espaços de poder. Cléia traz em seu relato a importância que é termos à frente de nossos movimentos pessoas que nos representam, pessoas que fazem parte do nosso território e de nossas realidades. Como pontuou Vitor da Trindade
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em entrevista: A gente tem que se preocupar agora em ter gente no poder. Colocar mais Erica Malunguinho, mais Boulos, mais Lula, mais Sérgio Vaz, Binho, Alex. A gente precisa mudar os que estão, e aí a forma de pensar muda também. [...] São 500 anos de má educação, de falta da comunidade conseguir colocar os nossos heróis na política, nos livros, nos currículos escolares. (VITOR DA TRINDADE, 30-11-2020).
Resgatando aqui uma citação da urbanista Joice Berth já apresentada anteriormente, devemos nos voltar para os nossos territórios e enxergar os nossos exemplos políticos nas lideranças locais (BERTH in POLÍTICAS…, 2020). As periferias estão em constante movimento, construindo e se adaptando para, cada dia mais, enfraquecer o sistema. É nos territórios periféricos que podemos encontrar as nossas referências de atuação política, porque ali, as lideranças já estão atuando a partir de uma leitura do território local, identificando fragilidades e potencialidades, e agindo a partir da comunidade. “Historicamente a gente sempre esteve aqui sobrevivendo, se mantendo e criando tecnologias de sobrevivência que depois são multiplicadas para políticas públicas e nunca reparam na nossa população” (ALEX BARCELLOS, 01-12-2020) e, talvez, hoje estamos vendo alguns dos resultados que inúmeras lutas travadas por diversos movimentos sociais e culturais estão alcançando. Vemos isso quando, no Rio de Janeiro, a urbanista Tainá de Paula é eleita. Vemos isso quando, em São Paulo, o coletivo Quilombo Periférico, o qual Alex Barcellos faz parte, é eleito. Estamos dando passos importantes para que o nosso povo, preto e periférico, ocupe os espaços que vão tratar das nossas condições de vida. Quando você consegue ter um respiro na área legislativa, quando você consegue ter um coletivo que consiga representar você dentro dos espaços de decisão, isso mostra mais um processo histórico do Quilombo Periférico conseguir assumir o legislativo. Vem muito desse caminhar anterior de quem construiu todos esses espaços até hoje. (ALEX BARCELLOS, 01-12-2020).
A luta e a resistência do povo preto são constantes. Como
afirmou o ogan Vitor: para nós, todos os territórios são de resistência. E devemos honrar a luta de nossos ancestrais, coroando nossos reis e rainhas do Congo, elegendo nossas lideranças pretas e periféricas, e assumindo os espaços de poder que nos foram tomados à força. O resgate de nossas memórias pretas se trata de encontrarmos nossas raízes e dar a elas a continuidade que os sistemas opressores racistas se organizam para impedir. Esse resgate significa reconhecer e reverenciar a nossa ancestralidade.
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capĂtulo 3.2.
Espaço Cultural CITA: antigamente quilombos, hoje periferia
Ouro do Congo é vovó, esse baque que vem de lá Ouro do Congo é vovó, a fumaça que vem de lá Preta velha batia o tambor, herança de negra rainha nagô Preto velho batia o tambor, herança de negro do rei nagô Nosso ouro não é só metal precioso da mamãe Oxum É força, é sabedoria Palavra de negro que sofreu um dia (MARACATU OURO DO CONGO, 2017)
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Em um dos projetos do coletivo de teatro Bando Trapos, chamado Caldos e Causos, o grupo traz para o protagonismo de suas cenas histórias contadas pela comunidade do Campo Limpo, criando espaços para que a oralidade desenhe as narrativas do lugar. Cléia traz um momento que carrega na memória de quando um senhor residente do Jardim Paris, no Campo Limpo, contou em um dos encontros do projeto sobre quando ele chegou na região: “o Campo Limpo era barro, mato e escuridão” (CLÉIA VARGES, 29-11-2020). O relato do senhor, que trata da paisagem do bairro assim como a Iyá Ana Rita nos contou, resgata a memória de um território bem diferente do que se tornou o distrito. “Parece que quando cheguei aqui não tinha tantas pessoas, tantos carros. Eu vejo a Estrada do Campo Limpo e penso “que loucura é essa?”. É um trânsito maluco”, conta Deco Morais, integrante do Bando Trapos e também membro da atual gestão do Espaço Cultural CITA. A mudança na paisagem urbana indica que o Campo Limpo continua crescendo, por expansão territorial e principalmente pelo crescimento da densidade demográfica, resultando em um aumento dos fluxos de pessoas e veículos, que diariamente percorrem trajetos intermunicipais para cumprirem uma rotina de
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trabalho ordinária nas periferias. Com a implantação da estação do metrô e do terminal de ônibus no Campo Limpo, os fluxos aumentaram ainda mais, chamando a atenção dos empreendimentos e das construtoras. Aquela região sempre foi cobiçada. Na época da Copa do Mundo no Brasil a praça foi reformada e queriam construir um polo artístico-cultural ali onde é o CITA, como se o espaço já não tivesse essa função. Temos uma disputa [por espaço] com a Secretaria da Saúde, mas nada me tira da cabeça que pode ser só um pretexto para venderem o terreno e construirem algo como um condomínio de frente pra praça. Quanto que não ia valer? (DECO MORAIS, 30-11-2020).
Grande parte do entorno da Praça do Campo Limpo se encontra em uma Zona Eixo de Estruturação da Transformação Urbana Previsto (ZEUP-u) no Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo (GESTÃO URBANA, 2014), indicando uma proposta de adensamento da região devido ao planejamento do Corredor de Ônibus Municipal e da Linha Monotrilho, como apresentado pelo Caderno de Propostas dos Planos Regionais das Subprefeituras (2016). A região da Praça é ameaçada de ter sua paisagem distorcida e suas memórias apagadas, e tal propósito é assegurado pelo planejamento do próprio município, criando possibilidades para o mercado imobiliário implantar o seu plano de atuação perverso já bem conhecido: adensar a área com suas grandes construções e afastar a população pobre e periférica dos espaços de interesse econômico e cultural. A falta de planejamento da região visando pela preservação de sua paisagem torna explícito uma das formas opressoras e racistas que o sistema trata o povo preto e periférico. Ao invés de termos o entorno da Praça assegurado pelo Plano Diretor com uma das Zonas Especiais de Preservação Cultural (ZEPEC) previstas, garantindo a preservação, valorização e salvaguarda da região como patrimônio cultural do município, a Prefeitura de São Paulo opta por manter as estratégias de apagamento e genocídio do povo preto, que se atualizam a cada gestão municipal, estadual e federal. As narrativas do povo preto devem ser reconhecidas e preservadas nos registros oficiais do país como patrimônio cultural, e não mais como estatística criminal: Os melhores documentos sobre a gente infelizmente estão nas
delegacias. Ali você encontra acusações sobre os candomblés, as favelas, as comunidades. Qualquer um que procure saber sobre as pessoas negras e descubra que as documentações nossas de mais referência estão na cadeia vão perceber como funciona o racismo no Brasil. (VITOR DA TRINDADE, 30-112020).
A luta política do movimento negro e do movimento cultural se apresenta principalmente na ocupação do povo preto e periférico dos espaços de poder que planejam nossas cidades e podem impulsionar as movimentações necessárias para uma real reparação histórica a partir de uma política que pensa desde e para a periferia. Com a implementação da lei no município, com o ensinamento dentro das escolas municipais, com a colocação de ruas, praças e estátuas do nosso povo, eu acho que a gente começa a reescrever a permanência viva dessa história, dessa cultura, dessa raiz para enfrentar esse Estado racista. Para além da parte institucional, manter espaço, redes, pessoas, artistas, movimentos, ainda vivos pós pandemia e depois, economicamente, também é uma outra ideia, é uma outra permanência e resistência de histórias de luta dos movimentos organizados. A todo momento a gente precisa estar atento ao que surge. [...] Os coletivos são uma das revoluções mais novas e mais necessárias que a gente poderia ter dentro da periferia. (ALEX BARCELLOS, 01-12-2020).
Faz parte da nossa luta coroar nossos reis e rainhas e, ao mesmo tempo, mudarmos as nossas cidades. Precisamos inserir nas nossas paisagens as memórias de nossos ancestrais. Deixar registrado nos espaços públicos as figuras e narrativas pretas que construíram tudo o que a gente vê e toca, honrando essas histórias e nos reconhecendo como parte delas, entendendo a nossa atuação como um corpo que dá continuidade à luta por resistência e liberdade de nossos ancestrais. As memórias pretas precisam ser homenageadas dentro dos espaços, e não somente em monumentos, estátuas. Se a gente cria um festival com o nome de uma grande potência feminina preta que representa o Campo Limpo... a Iyá Ana Rita, por exemplo. Se a gente faz um festival que carrega o nome dela.
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Ações nesse sentido, dentro do CITA, da Casa de Cultura, pela Rede Praça. [...] quando você envolve as pessoas, num festival, num ciclo de formação, o que seja, e esse evento carrega o nome de uma figura preta importante, você consegue fazer com que as pessoas pesquisem, vivenciem, conheçam outras pessoas. Você cria trocas, espaço de troca, de fruição. Que tem movimento, que não fique estático. Com certeza precisa existir monumentos, ações, políticas públicas que carreguem o nome dessas pessoas e que essas ações sejam voltadas para essa luta. (CLÉIA VARGES, 29-11-2020).
Resgataremos a ancestralidade preta presente nas nossas cidades evidenciando os nomes de nossos heróis e heroínas. Resgataremos a ancestralidade preta presente nas nossas cidades quando deixarmos de homenagear homens brancos assassinos, e gritarmos os nomes de quem lutou e segue lutando pela presença e permanência do povo preto e periférico nos espaços de poder. A gente precisa colocar o nome das pessoas que moraram no local. O povo negro que fez esses locais existirem. Tirar os nomes dos brancos e por o nome do povo negro. Quem era Oliveira Viana? Quem é Kennedy? Por que a Estrada do Campo Limpo não põe o nome de uma personalidade negra da região? Marisa Dandara, que fez o movimento negro do Campo Limpo. Dona Dirce da Escola de Samba que tanto lutou, tirava do bolso dela para colocar a escola na avenida. Eu daria o nome dessas pessoas e contaria a história delas [...]. (ANA RITA ENCARNAÇÃO, 27-11-2020).
Faz parte da missão que herdamos lutar pelo reconhecimento das lutas do nosso povo, ocuparmos os espaços que têm o poder de enfraquecer e derrubar o sistema e reconhecermos em nossas trajetórias a herança ancestral presente nas nossas organizações, relações e territórios. Pelo legado herdado das lutas do movimento negro e do movimento cultural, devemos reconhecer os nossos territórios como continuidade das trajetórias de nossos ancestrais e honrarmos as suas memórias, garantindo e reverenciando a presença da nossa ancestralidade nas nossas cidades. “Antigamente quilombos, hoje periferias” (Z’ÁFRICA BRASIL, 2002). Eu moro em um quilombo, o candomblé é um quilombo. Quilombo pra mim é união, onde as pessoas comungam a mesma
fé nas pessoas, onde a gente resiste e defende o espaço. Eu considero aqui [o Ilê Asé Ketu Egbé Oni] um quilombo urbano [...] onde você vive, comunga, divide tudo o que tem ali. Para mim, isso é um quilombo. (ANA RITA ENCARNAÇÃO, 2711-2020).
A Iyá Ana Rita nos diz sobre como durante os últimos anos os espaços verdes da região da Praça foram diminuindo. As árvores foram sendo podadas ou cortadas e, mesmo na Praça já não há tantas como havia antes. E o CITA, onde ela conta que havia um viveiro de pássaros, foi um dos poucos lugares que preservou e segue tentando manter a diversidade de espécies vegetais que existe ali. “Pra gente do candomblé a árvore é Iroko, é um orixá vivo. Pra gente, todas as árvores são divindades, é no pé de árvore que nasce a religião.” (ANA RITA ENCARNAÇÃO, 27-11-2020). A Iyá é dona de um estabelecimento chamado O jò Bahiano, e ali vende comidas afro bahianas e africanas, tendo o acarajé como carro chefe do lugar. Ela conta que o acarajé é ancestralidade. “Ancestralidade é quando eu alimento a mim e ao outro com a comida do meu ancestral. Quando eu mantenho um espaço que o povo negro vem e diz que o espaço também é dele. [...] Se você não tem raiz você não fica em pé. Se eu não tiver o atrás eu não posso andar pra frente” (ANA RITA ENCARNAÇÃO, 27-11-2020). Contando sobre algumas discussões que ela já teve a partir de reflexões sobre história do povo preto nos espaços em que hoje ocupamos, ela nos afirma que tudo o que nossos ancestrais passaram e o que herdamos não é só dor. Eles nos deixaram amor, se não a gente não teria sobrevivido. “Ancestralidade é você não deixar o do seu lado morrer. Em todos os sentidos... do corpo, de rir, de comer, de chorar. Eu seria dez vezes negra. [Porque] onde meus ancestrais estiverem eu quero saber que eu estou aqui continuando o que eles começaram.” (ANA RITA ENCARNAÇÃO, 27-11-2020). Hoje é o CITA que trata sobre a ancestralidade ali na região. Quando eu vejo pessoas que eram da minha época de militância. Quando eu encontro o Aderbal Ashogun, filho da Mãe Beata de Iemanjá, que vem durante o Festival Percurso e ali me volta, volta ela, minha ancestral. (ANA RITA ENCARNAÇÃO, 27-11-2020).
A Iyá conta que conheceu o Espaço Cultural CITA há uns
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oito ou nove anos, pouco tempo depois que ele nasceu. Algumas das filhas do Ilê Asé Ketu Egbé Oni moravam na região e começaram a frequentar o espaço. “Íamos lá pra ter aulas de violão, pandeiro, canto, dança. Eu participava de um jongo no Embu4 e quando soube que tinha um lá no CITA eu fui também” (ANA RITA ENCARNAÇÃO, 27-11-2020). Às vezes eu passo aos sábados na praça e vejo o pessoal do CITA fazendo teatro ali com as crianças. O CITA é como se fosse uma luz pra praça quando ele vem e mostra que está ali. [...] Pra mim isso é um quilombo. Mas as pessoas precisam saber que aquele espaço existe para poderem se aquilombar. As pessoas precisam saber que o CITA existe. Quando tem o Festival Percurso, onde se reúne as pessoas da religião? Onde fazem as falas? Onde se faz a comida para esse povo? O CITA é essa resistência, as pessoas precisam saber que elas podem se aquilombar ali dentro. (ANA RITA ENCARNAÇÃO, 27-11-2020).
Em complemento, a Yalasé Ana Rita diz que para ela quilombo é união: “Eu moro em um quilombo, o candomblé é um quilombo. Quilombo pra mim é união, é onde as pessoas comungam a mesma fé nas pessoas, onde a gente resiste e defende o espaço.” (ANA RITA ENCARNAÇÃO, 27-11-2020). Atualmente, um dos mais importantes momentos da programação cultural do Campo Limpo é o Festival Percurso, idealizado pela Agência Solano Trindade. O festival acontece na Praça do Campo Limpo e nos espaços de cultura em seu entorno, reunindo mestras, mestres, comunidades e coletivos negros de todo o país: O Percurso surge do trabalho de redes que a gente fazia, onde a gente dava assessoria para empreendimentos mas faltava acesso ao mercado. [...] O festival é pensado nesse sentido de potencializar a economia da cultura, que é a economia solidária que a gente fala dentro dos territórios. [...] A gente entende que é necessário pro território da zona sul inteira ter uma feira da economia solidária junto do festival, que agregasse todas as linguagens e atendesse todos os segmentos de público. [...] A partir de 2017 a gente pensa em como utilizar, em parceria,
17 - 18 Neste momento da entrevista a Iyá cantou uma das letras do Jongo do Embu: “Nosso jongo é do Embu / Foi nosso avô que ensinou tocar tambú”.
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a gestão do Espaço CITA dentro do Festival Percurso, que é o maior terreiro do mundo. A gente pensa a Tenda dos Povos dentro CITA, resgatando toda essa ancestralidade e ressignificando esse espaço que já foi uma senzala um dia. (ALEX BARCELLOS, 01-12-2020).
O Espaço Cultural CITA recebe a cada edição do festival a Tenda dos Povos, onde se reúnem grandes figuras de liderança do movimento negro e de religiões de matriz africana no país, promovendo encontros de trocas entre mais velhos e mais novos, e contribuindo com o compartilhamento de narrativas tradicionais e com a preservação e produção de memórias do povo preto. O Festival Percurso é um projeto de grande potência na luta pela valorização das culturas e tradições de matriz africana, atuando diretamente sobre uma reparação histórica no território. A relação de troca afetiva entre o CITA, o território e a comunidade cultiva as memórias ancestrais que estão presentes ali, e como dito pela Iyá Ana Rita, permite com que possamos nos aquilombar: Durante o Festival Percurso eu fui ao CITA porque havia pessoas da religião vindas de outras partes do Brasil que eu conhecia, e ali eu senti que estava em um espaço meu. De quilombo. Onde todo mundo conversa, senta em roda, ninguém senta atrás do outro. Quando você senta atrás do outro quer dizer que o da frente é melhor. Quando a gente senta em roda, que no candomblé a gente chama de xirê, que um olha pro outro de igual, aí eu me sinto em um quilombo. (ANA RITA ENCARNAÇÃO, 27-11-2020).
Deco Morais compartilha conosco uma história de quando trabalhou dirigindo um carreto de mudança para um senhor conhecido como Seu Pedro que morava no Campo Limpo. Durante o trajeto, o senhor contou sobre ter ido uma vez a um casarão antigo no bairro, onde viu na parte de baixo da casa algumas correntes chumbadas na parede, e que o dono da edificação disse ser resquícios de quando aquele lugar era uma senzala. A história contada por Seu Pedro fortalece algumas narrativas presentes na oralidade da região da Praça do Campo Limpo, em que algumas outras pessoas também comentam sobre ter existido senzalas naquela região. O ator conta que em 2011, quando frequentava um terrei-
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ro de umbanda no município de Francisco Morato, em São Paulo, recebeu um recado de um preto velho, que o avisou que ele estava sendo preparado para ir a um lugar aonde as pessoas iriam para tomar conta, um barracão de madeira. No mesmo ano, a Trupe Artemanha estava iniciando a ocupação cultural no galpão onde era a Prefeitura Regional do Campo Limpo, e onde foi construído e consolidado o atual Espaço Cultural CITA. Deco conta que três anos depois, em 2014, quando ele estava morando no CITA, incorporou um caboclo que disse que as pessoas daquele lugar tinham que ouvir as histórias do território, e que conseguiriam lidar melhor com aquele espaço se soubessem mais sobre aquelas memórias. Ainda em 2014, Deco, em diálogo com Cléia, que na época também fazia parte da Trupe Artemanha, decidiu ir conversar com a Dona Raquel Trindade, uma das mais importantes figuras pretas do país, tendo dedicado a sua vida para a preservação e produção de memórias que cuidassem da continuidade do legado cultural que sua família construiu. Dona Raquel foi uma das pessoas que implantou e construiu o movimento cultural no município de Embu das Artes, onde ela morava. Durante a visita, ela abriu o jogo de búzios para os dois, contando sobre os orixás que regem suas cabeças. Durante o jogo, a Kambinda, como Dona Raquel assinava suas pinturas, contou aos artistas que na região da Praça do Campo Limpo havia senzalas, e que eles estavam ocupando um território que precisava ser cuidado. “Vocês são os meninos daquele lugar, não é? Eu admiro muito, vocês têm força, têm garra”, ela começou a conversar com a gente sobre o território em que o CITA está. “Vocês precisam cuidar daquele lugar e também cuidar de vocês espiritualmente. Aquele lugar precisa de uma limpeza espiritual, vocês precisam bater folha. É um lugar que entra e sai muita gente, e as pessoas chegam com as suas energias, positivas ou negativas, e deixam ali, porque é um lugar que acolhe”. Ela nos contou que quando as energias que ficam não são muito boas, vai tendo uma sobrecarga, e a gente precisava limpar aquele lugar, e também precisava se cuidar. “Ali já foi uma senzala. Aquilo tudo já foi uma senzala. A energia não é só de agora, vocês precisam limpar porque existe uma coisa anterior ao espaço, anterior às pessoas que entram lá.” (CLÉIA VARGES, 29-11-2020).
A memória de Dona Raquel Trindade, viva nas pessoas que
tiveram a honra de escutá-la, nos traz narrativas sobre a região da Praça do Campo Limpo que os registros oficiais não contam. Torna-se explícito nesses relatos a perversidade que o sistema opressor racista possui em seu plano genocida que busca pela invisibilização e apagamento das memórias e narrativas do povo preto na cidade. Há muitas coisas que a gente precisa falar. A gente precisa falar sobre a primeira moeda do mundo que foi o búzio. Se a gente não tiver o entendimento do que é o passado, não compreendemos o presente e não vamos conseguir prever o que pode ser o futuro. Ancestralidade é a gente preservar as conquistas históricas dos povos de matriz africana, dos povos originários. (ALEX BARCELLOS, 01-12-2020).
Enfrentando as estratégias racistas presentes na sociedade, presente nos espaços de poder, encontramos a atuação dos espaços de cultura nas periferias como territórios ligados ao resgate da ancestralidade preta presente nos espaços onde o povo preto e periférico é constantemente ameaçado. Alguns espaços de cultura, hoje quilombos urbanos, abrem os nossos caminhos e guerreiam pela construção de uma sociedade com menos desigualdades, estabelecendo e evidenciando as potencialidades sociais, culturais e políticas existentes em nossos territórios. Garantir a permanência e continuidade desses espaços, desses quilombos, é garantir uma reparação histórica para o povo preto. O quilombo é uma aglomeração de pessoas que estão em busca da sua própria liberdade. Jardim Sílvia, Campo Limpo, Clarianas, Capulanas, Noite dos Tambores. Cada uma dessas localidades representa essa agência quilombo. O quilombo é esse local onde as pessoas lutam para se sentirem livres. Lutam pela liberdade, pelo espaço, pela cultura, pela economia, pela preservação de seus costumes. O quilombo é um espaço de luta por liberdade, independente das suas várias formas de ser quilombo. (VITOR DA TRINDADE, 30-11-2020).
Ali em frente à Praça do Campo Limpo, no Espaço Cultural CITA, vive a força de nossos ancestrais. Vive a oralidade, vive as manifestações culturais do povo preto, vive a nossa terra preta. Temos naquele lugar uma fonte de força vital que tem seu fun-
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damento preservado pela oralidade presente na comunidade e é transmitida, entre os mais novos e os mais velhos, pelo próprio território. Vive ali naquele território a memória, a resistência e a continuidade da nossa ancestralidade. Vive ali um baobá. “É preciso preservar aquele espaço porque é de resistência. Porque tem um orixá vivo que é o baobá. Tem quem dança nossa ancestralidade.” (ANA RITA ENCARNAÇÃO, 27-11-2020). Em 2018, durante o Festival Percurso, o Espaço Cultural CITA recebeu uma muda de baobá das mãos do Mestre TC Silva, responsável pela Casa de Cultura Tainã em Campinas, e criador da Rota dos Baobás no Brasil. O Mestre trouxe para o Campo Limpo essa árvore sagrada que é um importante símbolo da memória e resistência afrodiaspórica. O plantio do baobá ocorreu dentro da programação da Tenda dos Povos e estiveram presentes na cerimônia importantes lideranças pretas de diferentes regiões do país, como Mestre Aderbal Ashogun, Mestre Lumumba, Iyá Nadya Sant’Anna, Mestre Tião Carvalho, Ogan Luiz Bangbala, Ogan Vitor da Trindade, Mãe Denisia, entre outros. A escolha do CITA para o plantio do baobá afirma a importância daquele território para a memória e para o fortalecimento da cultura preta e periférica na Zona Sul de São Paulo. O plantio do baobá reconhece a luta por liberdade daquele espaço, que resiste aos ataques de um desgoverno racista que investe no apagamento das narrativas do povo preto e periférico. “A gente nasce a partir do baobá. Quando um baobá é plantado não pode ser arrancado. É um orixá vivo e se for arrancando ele vai pedir o espaço dele de volta.” (ANA RITA ENCARNAÇÃO, 27-11-2020). Um baobá você não compra, você tem que ser presenteado. E dentro da relação junto ao Maracatu Ouro do Congo, pela relação de afinidade e afeto que temos, a Agência Solano Trindade recebe o Mestre TC, que nos presenteia com um baobá, para que ele seja a ferramenta de transformação e permanência desse espaço, dessa população, dessa narrativa, e que ele continue crescendo (ALEX BARCELOS, 01-12-2020).
Em 2020, o Espaço Cultural CITA recebe um auto de interdição enviado pela Subprefeitura Campo Limpo, pedindo pela desocupação do lugar, alegando que a edificação apresentava grave risco para a comunidade. O CITA, que há anos é ameaçado pela Secretaria da Saúde do município de São Paulo, que se interessa
em demolir o edifício e construir mais um de seus equipamentos, segue lutando pela sua permanência. Em pouco tempo recebeu o apoio de muitas pessoas, coletivos e espaços de cultura que defenderam a importância da atuação do CITA para a comunidade e toda a Zona Sul da cidade, e se manifestaram a favor da permanência e continuidade do espaço no território que ocupa desde 2011. A pressão popular movimentou muitas redes, trazendo a atenção dos coletivos, agentes e instituições culturais para a defesa do lugar contra mais uma ameaça sustentada por um sistema opressor racista. No fim do ano de 2020, em atrito com a Secretaria da Cultura, que apoia e reconhece a atuação do espaço, a Subprefeitura Campo Limpo retira o auto de interdição e inicia o processo de transferência do terreno da Secretaria da Saúde para a Secretaria da Cultura, que passará a ter uma gestão compartilhada junto ao Instituto CITA, representante legal do espaço. Em meio a uma pandemia mundial, o povo preto e periférico segue sendo ameaçado pela herança deixada pelos sistemas sociais opressores e racistas que seguem se atualizando e agindo pela distorção e destruição de nossas memórias e de nossos territórios. A conquista do Espaço Cultural CITA pela sua permanência no território é uma conquista histórica. A conquista do povo preto e periférico pela inserção do baobá que cresce naquele território nos registros do patrimônio cultural do município de São Paulo é uma conquista histórica. As relações iniciadas pelo Movimento Negro de Campo Limpo e continuadas pelo movimento cultural da Zona Sul da cidade alimenta nossos corpos que resistem e se atualizam a cada geração, cuidando para que nossos territórios permaneçam vivos e dinâmicos. Vivemos em um país construído e sustentado pela resistência do povo preto, e encontraremos no resgate das narrativas de nossos ancestrais a energia necessária para enfraquecer um sistema que insiste em nos colonizar. Construiremos uma nova cidade, uma nova política. Reverenciamos a nossa ancestralidade preta e indígena, e bateremos nossos tambores comunicando a vitória do nosso povo. Que cresça forte o baobá do Campo Limpo. Axé.
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Consideraçþes finais
Talvez a única consideração final que de fato expresse a força, resistência e grandiosidade da ancestralidade preta na luta por reparação histórica seja realmente fogo nos racistas. Um fogo atiçado pelo movimento constante dos corpos pretos em atrito com uma cidade embranquecida. Fogo que derruba monumentos e placas com o nome dos assassinos do povo preto, que derruba os descendentes do homem branco colonizador fiéis a continuidade de sistemas opressores e racistas, que derruba a prática violenta do apagamento de nossas histórias nos documentos das prefeituras, dos estados e de todo o país. Fogo que destrincha, escancara e rompe com a hereditariedade maliciosa dos espaços de poder ocupados por genocidas. Fogo que queima e que nos dá vida. Durante o período de isolamento social em que estamos vivendo, a luta pela resistência, permanência e continuidade dos coletivos e territórios culturais nas periferias não cessou. Pouco antes de sabermos que a Secretaria da Cultura deu início ao diálogo com a Subprefeitura Campo Limpo e com a Secretaria da Saúde, abrindo um processo de transferência do terreno e garantindo a permanência do espaço no território, recebemos a notícia de uma grande conquista para o povo preto: o Espaço Cultural CITA, a par-
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tir de alguns proponentes integrantes do Maracatu Ouro do Congo, passa a fazer parte do mapeamento municipal de territórios e memórias relacionados ao patrimônio cultural da cidade de São Paulo. Por meio do concurso Placas da Memória Paulistana, realizado pelo Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura de São Paulo e que tem como objetivo a identificação de narrativas que componham referências culturais da cidade, a história e celebração do plantio do baobá no bosque do Espaço Cultural CITA passa a integrar o Inventário Memória Paulistana, regulamentado pela resolução 13/ Conpresp/2019. A inserção do baobá no mapeamento do Departamento do Patrimônio Histórico assegura a presença de memórias que tratam da força do povo preto em resistir, resgatar e construir a continuidade de narrativas sobre a nossa ancestralidade cultivada e preservada em nossos territórios. Do fogo abrimos caminhos para o resgate de memórias que tentam distorcer e apagar, e pela força da juventude preta, armada e protegida pelas trajetórias de nossos mais velhos e de nossos ancestrais, retomamos a história do nosso povo e nos coroamos para assumir os espaços de poder das cidades. Que sigamos nos aquilombando e construindo espaços e relações que nos permitam crescer raízes e celebrar conquistas históricas.
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