Arquitectura, Urbanismo e Artes Decorativas issn 1646-1762
Séculos XVII e XVIII N.º 9
2012
fac u l da d e d e c i ê n c i a s s o c i a i s e h u m a n a s – u n l
Arquitectura, Urbanismo e Artes Decorativas Séculos XVII e XVIII N.º 9 2012 Instituto de História da Arte Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa
Edição Instituto de História da Arte
abreviaturas AHU Arquivo Histórico Ultramarino ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo APESP Arquivo Público do Estado de São Paulo ARSI Archivum Romanum Societatis Iesu BnF Bibliotèque nationale de France BNP Biblioteca Nacional de Portugal BPMP Biblioteca Pública Municipal do Porto DGPC/ADF Direção-Geral do Património Cultural / Arquivo de Documentação Fotográfica FCT Fundação para a Ciência e Tecnologia FL/UL Faculdade de Letras / Universidade de Lisboa IGESPAR, I.P. Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico, Instituto Público IMC/MC Instituto dos Museus e da Conservação / Ministério da Cultura IHRU – SIPA Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana – Serviço de Inventário do Património Arquitectónico MNAA Museu Nacional de Arte Antiga MNAz Museu Nacional do Azulejo UALG Universidade do Algarve UE Universidade de Évora ULL Universidad de La Laguna
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Entrevista com Antonio Bonet Correa
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conduzida por Carlos Moura
A igreja do colégio de Santo Antão‑o‑Novo Estudo de um paradigma desaparecido
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Ricardo Lucas Branco
O programa edificado da vila de Mourão e a persistência de formas do modo clássico na época barroca (ca. 1681‑1750)
39
Manuel F. S. Patrocínio
Dos preceitos da beleza e da beleza dos preceitos
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Renata Araujo
Encomenda, uso e coleccionismo de ourivesaria no século xviii: a Mantearia da Casa de Aveiro em 1752
69
Nuno Vassallo e Silva
Mistérios... um revestimento azulejar do século xviii para uma igreja desconhecida
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Alexandre Pais
O azulejo barroco – o estudo e a investigação em Portugal
107
Maria Alexandra Trindade Gago da Câmara
RECENSÕES
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La reciente historiografía española y su relación con la arquitectura de los siglos xvi, xvii y xviii: A propósito de Arquitecturas Pintadas
128
David Martín López
Leonardo Turriano: Ingeniero del Rey – Alicia Cámara, Rafael Moreira, Marino Viganò. S.l.: Fundación Juanelo Turriano, 2010
137
Miguel Soromenho
Algarve em Património – José Eduardo Horta Correia. Olhão: Gente Singular, Editora, 2010 Cátia Teles e Marques
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Índice
Editorial
VARIA
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A Sé Gótica de Silves. Os diferentes momentos construtivos
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José Custódio Vieira da Silva, Joana Ramôa
Na torre dos sinos do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra: Um tesouro de moedas medievais e dois desenhos quinhentistas
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Cátia Teles e Marques
A exaltação da virtude moral no púlpito da igreja de Santa Cruz de Coimbra
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Alexandra Rossi Gouveia (1941‑1999)
A arte têxtil bordada na China: panorâmica de uma tradição milenar
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Maria João Pacheco Ferreira
Alguns aspectos da arte no período Ming aquando da chegada dos portugueses a Macau
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Carla Alferes Pinto
NOTÍCIAS
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Editorial A
Revista de História da Arte n.º 9 é consagrada à temática da Arquitectura, Urbanismo e Artes Decorativas. Séculos XVII e XVIII, reunindo uma série de artigos que reflectem aspectos particulares e inéditos do mosaico complexo que constitui a arte portuguesa das centúrias de Seiscentos e Setecentos. Não seria, pois, rigoroso enquadrar o tema sob a égide de um estilo ou de uma periodização determinada, que caracterizaria mal uma realidade artística e cultural multifacetada, dominada por persistências e longas durações, de resto espelhadas nos estudos de caso aqui dedicados à arquitectura e urbanismo. Ricardo Lucas Branco, numa análise bem fundamentada, esclarece o processo de edificação da desaparecida igreja do colégio jesuíta de Santo Antão-o-Novo, trazendo novidades a respeito da tão discutida autoria, da feição do seu interior (que o autor reconstitui em corte) e do domínio da linguagem clássica da arquitectura no decurso de Seiscentos. A persistência do modo clássico e o uso das ordens são igualmente tratados por Manuel do Patrocínio no estudo que apresenta sobre o programa de edificação da Vila de Mourão (1681 e 1750), contextualizado na tradição da escola portuguesa de arquitectura e engenharia militar. Neste domínio, e na linha historiográfica de Eduardo Horta Correia, o conceito de “arquitectura de programa” é objecto de reflexão de Renata Araújo no exame das cartas régias de fundação de vilas no Brasil e outra documentação oficial, propondo uma nova leitura destas fontes, à luz das preocupações estéticas e formais no planeamento urbano e na ordenação do espaço público no século xviii. No campo das artes decorativas, como exemplo de excepção do gosto e encomenda artística da nobreza portuguesa, a aquisição de ourivesaria aos principais
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centros de produção europeus e a importância da sumptuária e do coleccionismo são estudadas de forma concludente por Nuno Vassallo e Silva a partir do inventário inédito da Mantearia da Casa de Aveiro (aqui publicado na totalidade). Um invulgar ciclo de azulejos do período “Grande Produção” é dado a conhecer por Alexandre Pais, que problematiza a sua origem, reconstituição iconográfica e leitura iconológica, revelando que o corpus da azulejaria portuguesa é ainda passível de novidades. Sobretudo, em face do interesse que o tema tem merecido nas últimas décadas pela historiografia portuguesa, gerando um número assinalável de estudos, conforme demonstra Maria Alexandra Gago da Câmara no último artigo do dossiê. Na Varia as opções de conteúdos abriram-se a cronologias e temáticas diversas. Uma reflexão actualizada sobre a antiga Sé de Silves é proposta por José Custódio Vieira da Silva e Joana Ramôa. Reúnem-se dois estudos sobre o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, um dedicado à iconologia e erudição iconográfica do púlpito (Alexandra Rossi Gouveia) e outro à emblemática torre dos sinos, enquadrada num contexto singular revelado por dados inéditos (Cátia Teles e Marques). Os artigos sobre Arte Chinesa, apresentados por Maria João Pacheco Ferreira e Carla Alferes Pinto e resultantes das palestras proferidas no curso-livre “A Arte e Cultura da China” (org. Instituto de História da Arte, 2009), constituem um reflexo muito positivo sobre o desenvolvimento dos estudos da arte oriental. Interessa ainda salientar a entrevista ao Prof. Antonio Bonet Correa, actualmente Director da Real Academia de Belas Artes de San Fernando de Madrid, que aborda o seu percurso académico e questões relacionadas com o Barroco peninsular. Na secção Recensões, assinala-se a revisão bibliográfica da recente produção historiográfica espanhola no campo da História da Arquitectura, a propósito do catálogo da exposição Arquitecturas Pintadas (David Martín López); a leitura da colecção de ensaios sobre o engenheiro militar Leonardo Turriano proposta por Miguel Soromenho; e a apresentação da colectânea de estudos sobre o Algarve de Eduardo Horta Correia (Cátia Teles e Marques). No final deste volume, publica-se a lista, que se pretende completa, das dissertações de Mestrado e teses de Doutoramento defendidas e em preparação no campo da História da Arte Moderna, ao longo de três décadas na FCSH/UNL. Por fim, gostaríamos de salientar a participação, neste número, de um conjunto de autores com percursos profissionais e académicos de relevância, genuinamente empenhados no estudo aprofundado de temáticas estimulantes e perspectivas originais. Neste particular, queremos agradecer a todos os investigadores, que aceitaram o convite para participar na Revista, admitindo a submissão dos seus artigos à arbitragem científica, como também aos membros do Conselho Científico Externo que tão prontamente concordaram colaborar neste processo e cumpriram as revisões com rigoroso critério. Estes procedimentos em muito contribuem para o reconhecimento da Revista, elevando o nível e prestígio junto dos pares, e adoptando uma prática internacionalmente partilhada e consensualmente aceite. Com esta implementação do sistema de arbitragem algumas regras de submis-
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são de artigos foram necessariamente revistas e actualizadas, como consta das páginas finais. Para a concretização deste número foi decisivo o incentivo da Direcção do Instituto de História da Arte, pelo que aqui registamos o nosso agradecimento. Estendemos o cumprimento à Imprensa Nacional-Casa da Moeda, cuja parceria com o IHA no âmbito editorial promete bons resultados, e ao designer José Domingues pelo empenho com que se lançou no projecto da Revista. Uma última palavra de profundo reconhecimento pelos apoios recebidos da Fundação para a Ciência e Tecnologia e pela generosidade do mecenato da Fundação Millennium BCP, os quais têm permitido consolidar a Revista de História da Arte no universo das publicações universitárias de referência. Carlos Moura
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ANTONIO BONET CORREA
R
eputado especialista do Barroco e catedrático emérito de História da Arte da Universidade Complutense, o Professor Antonio Bonet Correa é o actual director da Real Academia de Belas Artes de San Fernando de Madrid. Autor de uma obra bastante vasta, é uma das principais referências da historiografia deste período, sobretudo em Espanha e no mundo hispano-americano. Livros como La arquitectura en Galicia durante el siglo xvii (resultante da sua tese de Doutoramento), a Andalucía Barroca. Arquitectura y urbanismo, Morfología y ciudad. Urbanismo y arquitectura durante el Antiguo Regímen en España ou Monasterios Iberoamericanos assinalam todo um percurso que inclui ainda o Atlas Mundial do Barroco, patrocinado pela UNESCO. A que se acrescentam os volumes sobre Monasterios Reales del Património Nacional, ou Fiesta, poder y arquitectura. Aproximaciones al Barroco Español e, mais recentemente, La Plaza del Obradoiro. Comissário, também, de numerosas exposições, nelas se projectaram as suas ideias
e perspectivas de historiador. Designadamente a dedicada a Filippo Juvarra e l’architettura europea, na que teve por tema a época de Fernando VI e Bárbara de Bragança, intitulada Un reinado bajo el signo dela Paz, ou ainda, no âmbito mais restrito da pintura, na que se ocupou de Zurbarán. Como se depreende desta enumeração, os problemas da arquitectura e do urbanismo têm merecido um lugar de destaque na sua actividade. O pequeno volume de 1989, Las claves del urbanismo, resume aliás os seus pontos de vista sobre a matéria, a que regressa com El urbanismo en España e Hispanoamérica e, fora já do âmbito da Barroco, com o estudo sobre Ildefonso Cerda. Da mesma maneira que a tratadística, sobre a qual reuniu uma colectânea de artigos em Figuras, modelos e imágenes en los tratadistas españoles, e a cartografia, reflectida na Cartografia militar en plazas fuertes y ciudades españolas de los siglos xvii y xviii. Tendo trabalhado também sobre a época medieval e o século xx, dirigiu obras colectivas sobre a Arte del Franquismo,
Picasso en España e El Surrealismo, revelando uma vocação de contemporanista inerente à sua atitude como historiador. Daí o ter desempenhado os cargos de presidente da Associação Espanhola de Crítica de Arte e da ARCO, não sendo, por isso, de estranhar, a publicação em 1980 de um ensaio da sua autoria sobre a pintura de Maria Helena Vieira da Silva. Antigo director do Museu de Belas Artes de Sevilha e, anos mais tarde, do Museu da Real Academia a que agora preside, é académico correspondente da Academia de Belas Artes de Portugal, tendo sido colaborador da revista Colóquio-Artes da Fundação Calouste Gulbenkian. Tendo participado no júri de provas académicas, em colóquios e proferido conferências no nosso país, a sua bibliografia, ainda que não incidindo directamente na história portuguesa, é bem conhecida entre nós como uma das bases indispensáveis à formulação e discurso dos problemas do Barroco peninsular. CARLOS MOURA
Entrevista
com antonio
bonet correa CONDUZIDA POR CARLOS MOURA
Quais eram os seus interesses nos anos de estudante em Lugo e Santiago de Compostela, como nasceu o gosto pela História da Arte? Que aspectos marcaram, nesse momento, a sua geração na Galiza e noreste da Espanha? Durante mis años de estudio en la Universidad de Santiago de Compostela se acrecentó mi interés por la Cultura gallega del pasado. Yo procedía de una familia de marcada tendencia vanguardista en lo literario y lo artístico, pero que quería encontrar las raíces de lo universal en lo genuinamente galaico o “enxebre”; es decir, lo peculiar de un territorio peninsular que desde la romanización, pasando por el periodo del Camino de Santiago, había pertenecido a una Europa que ahondaba en el espíritu occidental.
A Santiago seguiu-se Paris, de novo o principal centro artístico da Europa, com o seu cosmopolitismo e o prestígio intelectual da Sorbonne. Que memória conserva da atmosfera desse período, que meios frequentava? Como acompanhava a actividade artística, as tendências e os debates críticos da vangarda? En París encontré el mundo intelectual al que mi familia ya estaba vinculada. También el ámbito de libertad que faltaba en la España franquista. Mis contactos con los profesores franceses y los artistas españoles que residían en Francia y el com-
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pañerismo con los artistas de mi edad, me sirvió para entrar en el debate ideológico de una nueva vanguardia europea.
Dos seus mestres de então, costuma destacar Élie Lambert. Mas também Pierre Lavedan e Georges Gaillard. De que modo cada um deles influiu na sua maneira de entender a História da Arte como disciplina no plano teórico e no da prática metodológica? Que outras personalidades conheceu e gostaria de recordar aqui? Foi nesta ocasião que travou conhecimento com José-Augusto França? Mi relación y amistad con Lambert, Lavedan y Gaillard fue muy fructífera. De cada uno de ellos aprendí mucho: método y contenido. Aunque no fui a las clases de França siempre tuve mucho respeto y admiración por sus ideas y forma de enfocar la historia del arte. Mi amistad con José‑Augusto França comenzó entonces y se acrecentó en los años posteriores cuando yo ya había regresado a España e iba de viaje a Portugal.
Seria La Arquitectura en Galicia durante el siglo xvii que viria a constituir o primeiro grande marco da sua carreira. Abordando um arco temporal compreendido entre cerca de 1590 e cerca de 1710, acompanha o desenvolvimento do Classicismo seiscentista, que perdura mesmo depois do surto inicial do primeiro Barroco, nos anos de 1660. Ora, isto vai ao encontro do problema de fundo de o Barroco e Classicismo de Victor Tapié. Parece-lhe possível conjugar os termos da História da Arquitectura Galega deste período com a visão à escala europeia de Tapié? Interessante também, do ponto de vista português, é a consideração das ligações com o nosso país, em que avulta a figura de Mateus Lopes, representante de uma família de artistas activos no Norte de Portugal e da Galiza em sucessivas gerações Que significado atribui a estas relações artísticas nos séculos xvii e xviii? Mi tesis doctoral sobre “La arquitectura en Galicia en el siglo xvii”, me llevó a estudiar y conocer mejor el mundo artístico lusitano. Hay que decir que en el orbe literario mi formación desde la infancia incluía el conocimiento de todo lo portugués, vinculado al espíritu atlántico. A Tapíé, hombre elegante e intelectual puro, lo conocí de cerca y lo admiré por su gran capacidad de síntesis. Era un personaje como de otra época tanto por sus ideas como por su forma de vestir, sus gestos y cortesía propia de un caballero del siglo de Luis XIV. Indudablemente tanto el Barroco en Galicia como en Portugal, se integran perfectamente al contexto de la visión europea de Tapié. Las fronteras entre Galicia y Portugal se borran cuando se estudian figuras como las de Mateus Lopes. La simbiosis de las dos culturas es natural y nada extraña. Hay una comunidad que estaba por encima de las diferencias políticas de la época.
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Recordando os estudos que desenvolveu sobre a Andaluzia, pensa ser esta região um caso exemplar dos particularismos, digamos, da «civilização do Barroco», em que o regional não é antagónico do universal? Como relaciona esta questão com a recepção dos modelos andaluzes no continente americano? El caso de Andalucía es muy especial. Andalucía fue un territorio que asimiló toda la cultura de los pueblos que la invadieron desde la Antigüedad hasta finales de la Edad Media. Lo curioso es que siendo tan suyo, aparte del resto desde el aspecto formal, haya digerido todas las aportaciones de Oriente y Occidente, hasta convertirlas en algo peculiar y andaluz.
Em Abril de 1973 participou em Braga no Congresso sobre a Arte em Portugal no século xviii, que homenageava a figura do arquitecto e entalhador setecentista André Ribeiro Soares. Presumo que terá conhecido de perto alguns historiadores que se ocupavam das coisas portuguesas. Robert Smith e Flávio Gonçalves são citados por si. Que ideia retém sobre o ponto da situação dos estudos sobre o Barroco nesse momento? El Congreso en Braga de 1973 fue importantísimo para el estudio del Barroco en la península ibérica, tanto el portugués como el español. La muerte de Picasso coincidió con el Congreso y supuso una conmoción para todos los que allí estábamos reunidos. Tanto Robert Smith como Flavio Gonçalves eran historiadores del arte muy cumplidos e importantes. Gracias a ellos se renovó el interés por el Barroco portugués y aportaron puntos de vista nuevos que profundizaron en la categoría estética de uno de los espacios barrocos más peculiares de la época.
O urbanismo tem sido outro dos seus campos de estudo, que não é independente da arquitectura, pois, como explica numa das páginas de Morfología y ciudad, o conhecimento do traçado das cidades espanholas pode contribuir para a resposta de problemas colocados pelos historiadores da arquitectura. Sobretudo o urbanismo da época barroca, já que, como diz ainda, o centro histórico de grande parte destas cidades chegou ao século xx. A sua chave reside na Plaza Mayor, nascida em Valladolid e maturada em Madrid. Sendo este morfologicamente o sinal identitário da cidade espanhola, como é que ele se individualiza no âmbito da noção mais geral de praça barroca? No hay posibilidad de entender la arquitectura barroca a fondo si no es desde el urbanismo. Las ciudades son el resultado de la forma material y espiritual de
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un pueblo. Dentro de los lineamientos propios de cada siglo se van formando las ciudades con sus propias peculiaridades sociales y culturales. De ahí la diversidad de cada área urbana, ya portuguesa o castellana. Las plazas mayores son características de una determinada área española. En América las plazas mayores tienen otras formas.
No prólogo do mesmo Morfología y ciudad, de 1978, observava não terem estes temas merecido grande atenção dos historiadores anteriores, congratulando-se, por isso, encontrar nas gerações mais jovens uma atitude completamente diferente, bastante prometedora para a renovação dos estudos. Em Portugal, depois de Lisboa Pombalina de José-Augusto França (uma tese defendida em Paris), tivemos Vila Real de Santo António, urbanismo e poder na política pombalina, de José Eduardo Horta Correia, tese de Doutoramento de que o Prof. Bonet Correa foi o seu arguente principal. Gostaria de comentar a evolução dos estudos de Urbanismo? José-Augusto França y Jose Eduardo Horta Correia han publicado obras fundamentales para el conocimiento del urbanismo portugués a nivel universal. Gracias a ellos se ha podido ver con nuevos ojos y entendimiento no sólo el urbanismo en Portugal, sino también el urbanismo en el Brasil.
A tratadística é outra das linhas de força da sua actividade de historiador. Figuras, modelos e imágenes em los tratadistas españoles, permite-nos ficar a saber mais sobre personalidades da envergadura de Juan de Arfe e Villafañe ou de Juan Caramuel, cujas obras foram conhecidas também entre nós. Caramuel é, para mim, talvez a figura mais interessante, que encontrei mencionado no catálogo da biblioteca do Mosteiro de Alcobaça. Como situa esta personagem, com todo o seu cosmopolitismo, na cultura barroca da Europa do seu tempo? En la tratadística europea de arquitectura la figura de Caramuel es esencial. Su influencia fue extraordinaria en lo teórico. Hombre cosmopolita encarna un tipo de intelectual que enlaza la Edad Media con la modernidad del Barroco en la que culminan las ideas más extravagantes cuando se intentan racionalizar desde las normativas neoclásicas.
A relação da arte com o poder, ou melhor, a relação da arte com as práticas dos poderes é outro dos pólos da sua actividade de historiador. O Prof. Bonet Correa estudou, por exemplo, alguns dos aspectos da festa e da arquitectura efémera na arte do franquismo, com os seus desfiles patrióticos, militares e de trabalhadores, análogos às festas e procissões do Siglo de Oro. Por vezes, ao ler os seus trabalhos, fica um
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pouco a ideia que existe em tudo isto, ou na arte barroca promovida pela Coroa, um desígnio de ocultação do declínio cada vez mais evidente da monarquia espanhola. Poderia esclarecer melhor o seu ponto de vista? La fiesta es un capítulo capital para el conocimiento de cualquier momento histórico. Es lo excepcional dentro de un orden establecido y que para mantenerse necesita la válvula de escape de lo irracional y el mundo al revés. Las épocas de crisis y de decadencia han sido siempre las más dadas a lo festivo.
A arte efémera é apenas uma das áreas que passou a fazer parte da História da Arte. Com efeito, a nossa disciplina tem alargado bastante as suas fronteiras e objecto de estudo. Novas disciplinas, como os «Visual Studies» têm vindo a ganhar terreno. Ao que parece, segundo dizia James Elkins, do Art Institute de Chicago, em entrevista no número anterior desta revista, os jovens estudantes americanos estão mais interessados nas imagens da publicidade do que em Miguel Ângelo. Ora, quem diz Miguel Ângelo pode dizer Bernini, ou toda magnífica arte, também ela publicitária, do Barroco. Como observa, nesta época de crise e transformações profundas, o que se passa na História da Arte? Como encara os desenvolvimentos futuros dos estudos sobre o Barroco, que orientações preconiza com maior urgência neste domínio? El arte efímero roza siempre la irrealidad de lo virtual. Nuestra época tiene paralelismos con el Barroco. Sin duda alguna nuestros jóvenes colegas historiadores del Arte están más capacitados para entender el legado y la significación actual de lo que fue el Barroco.
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Resumo O colégio jesuíta de S.to Antão‑o‑Novo foi um dos maiores empreendimentos arquitectónicos da centúria de Seiscentos, tendo o seu risco conhecido várias alterações no período filipino, no sentido de um classicismo monumental italianizante, próximo do modelo de S. Vicente de Fora. Com o patrocínio de D. Filipa de Sá, a igreja foi erguida entre 1612 e 1658, embora partes do exterior ficassem por terminar até ao século xviii. Este artigo procura atestar a autoria projectual de Baltazar Álvares e esclarecer a direcção da obra que ficou a cargo de um dos seus discípulos, Diogo Marques Lucas. As questões associadas ao estatuto profissional dos arquitectos, a par do domínio das regras clássicas da arquitectura do tempo, são aspectos que transparecem da documentação inédita encontrada sobre a fase final da construção da igreja no século xvii, quando os contactos informados com centros artísticos externos eram já menos frequentes.
palavras‑chave colégio jesuíta de s.to antão‑o‑novo baltazar álvares diogo marques lucas estatuto do arquitecto classicismo
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Abstract The jesuit college of Santo Antão-o-Novo was one of the largest architectural projects of the 17th century. Its design was the object of several amendments during the Philippine period (1580-1640), bringing it closer to the kind of Italian monumental classicism exemplified by the monastery of São Vicente de Fora. Under the patronage of D. Filipa de Sá, the church was built between 1612 and 1658, though parts of the exterior were only concluded in the 18th century. This paper aims to assert Baltazar Álvares’ authorship of the project, while shedding some light on the building works supervision entrusted to one of his disciples, Diogo Marques Lucas. The paper will also consider the professional status of architects and their knowledge of the standards of classical architecture at the time. This analysis will be based on recently uncovered documentation about the final phase of the church’s building works, in the 17th century, at a time when informed contacts with foreign artistic centres had become less frequent.
key‑words jesuit college baltazar álvares diogo marques lucas the role of the architect early modern architecture
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Arbitragem Científica Peer Review
Data de Submissão Date of Submission
José Alberto Gomes Machado Prof. Catedrático, Diretor da Escola de Ciências Sociais / Universidade de Évora Centro de História da Arte e Investigação Artística, UE
Data de Aceitação Date of Approval
Jun. 2011
Set. 2011
a igreja do colégio de santo antão‑ o‑ novo estudo de um paradigma desaparecido rica rdo lu c a s b r a n co Instituto de História da Arte, FCSH/UNL Bolseiro de Doutoramento da FCT (SFRH/BD/64622/2009)
Enquadramento 1
Rodrigues 1938, t. II, v. I 165.
À ameaça da crise sucessória somava‑se o problema financeiro do pesado resgate dos cativos, na ressaca do desastre militar de Alcácer‑Quibir. 2
3
Telles 1647, v. II 20‑21.
O seu estágio transalpino (1575‑78) é comprovado na resposta de Filipe II a uma carta enviada de Lisboa pelo duque de Alba em Outubro de 1580. Nessa carta, D. Fernando Alvares de Toledo refere‑se a Baltazar como “grandísimo arquitecto y trazador, que el rey D. Sebastian le envió á Itália, donde estuvo algunos años deprendiendo estas artes”. Salvá et al. 1885, v. XXXIII 122. A revelação deste dado deve‑se a Rafael Moreira. Moreira 1986, v. 7 150. 4
5
Telles 1647, v. II 21.
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ARSI, Lus. 68, fl. 53. Martins 1994, v. 1 339.
Fundado em 1542 como o primeiro estabelecimento da Companhia de Jesus em Portugal e com aulas públicas a funcionar desde 1553, o velho colégio de S.to Antão cedo esgotaria a sua capacidade face ao crescente número de alunos, que em 1566 se cifrava já em cerca de 1.1001. Em resposta às precárias condições das escolas e dificuldades inerentes à sua manutenção, é o cardeal D. Henrique que, em 1573, chama a si a iniciativa da fundação de um novo edifício, disponibilizando de imediato 3.000 cruzados para o arranque das obras e ordenando que se escolhesse e medisse o local mais apropriado para o novo colégio. No entanto, a compra das propriedades arrastar‑se‑ia até 1578 e a partir dessa altura a sua história confunde‑se com o processo atribulado da própria construção. O principal problema, além da conjuntura desfavorável do tempo2, prendia‑se com a enorme dimensão do colégio que o Cardeal (agora rei) queria ver construído. Não obstante, em Janeiro de 1579 encarregou o “seu arquitecto Baltazar Alvares” – que sucedera ao seu tio Afonso na qualidade de arquitecto régio – “de desenhar e coordenar o edifício” 3 e aprovado o plano, talvez executado no final de 1578, depois do regresso de Baltazar de Itália4, “em 11 de Mayo de 1579 lhe mandou sua Alteza lançar a primeira pedra”5 ordenando “que se hiziesse la obra por cierta traça que el avia hecho”6.
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Fig. 1 – Colégio de S. to Antão‑o‑Novo, Lisboa. Planta do piso térreo. Caetano Tomás de Sousa (século xviii). A vermelho o existente pós‑Terramoto, a amarelo as áreas projectadas para a conversão no Hospital de S. José. (© BNP – D. 29 R.)
Considerado pelos Jesuítas demasiado ambicioso e de custo excessivo, o projecto, que incluía sete pátios, alguns deles com três ordens de colunas, viria a ser alterado para uma versão mais simplificada após a morte do cardeal‑rei. Essas alterações, como veremos, procuraram reduzir apenas as dependências colegiais – por onde as obras começaram7 – e não a igreja, que só se iniciaria em 1612 8 com um importante donativo da condessa de Linhares e cuja escala reflecte o projecto primitivo. Dado como perdido e recentemente identificado por Rui Lobo9, nele podemos ver, no entanto, como Baltazar Álvares abandonaria a configuração inicial do templo que aí desenhara – do tipo Espírito Santo/S. Roque – de nave muito larga e cobertura leve, pelo definitivo, de morfologia itálica, com fachada de cinco corpos inferiores (e não três), abóbada de caixotões e cúpula no cruzeiro (Fig. 1). Tal inflexão é explicável pela data tardia do começo da igreja em relação às restantes dependências, tendo‑se verificado exactamente o mesmo com o colégio de Jesus de Coimbra onde, como em S.to Antão, o modelo eclesial autóctone do plano primitivo10 , deu lugar ao do maneirismo italiano inspirado na novíssima fábrica de S. Vicente de Fora. Danificada (mas não destruída) com o Terramoto de 1755, que lhe derrubou apenas o transepto e o zimbório, a igreja de S.to Antão acabaria por ser demolida no final do século xix e início do xx 11, restando apenas a monumental sacristia, hoje capela
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Martins 1994, v. I 344. O edifício do colégio acabaria por ser inaugurado em 1593, apenas com uma terça parte concluída, que incluía uma igreja provisória de três naves, adaptada de um dormitório de corredor central abobadado sobre arcadas e duas alas colaterais. História dos Mosteiros 1707, t. I 406. 7
E não em 1613, como antes se pensava. “Aos 8 dias do mês de Outubro de 1612 deu‑se princípio a se fazer a Igreja nova do Colégio de S. Antão de Lisboa”. ANTT, Cart.º Jesuítico, maço 11, doc. n.º 92, fl. 1. 8
Lobo 2008. Planta do piso térreo, com dois níveis inferiores apensos (cota Hd‑4d, 182) e do primeiro andar (Hd‑4d, 183), ambos na Biblioteca Nacional de França (BnF). Vallery‑Radot 1960, 115‑116. 9
Também na BNF (Hd‑4a,141). Lobo 1999, 30 ‑31 37. Datado de 1568‑69, integrava uma igreja do tipo Espírito Santo/S. Roque, mas com a capela‑mor da mesma largura e altura da nave. 10
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“O saírem os padres [da Companhia] não era motivo de deixar destruir um templo de tanto valor (...) em um ano derrubava‑se a cimalha, em outro um bocado da abobada, em outro cobiçava‑lhe algum a pedra (...) em 1807 apeou‑se a torre da esquerda; em 1836 a segunda”. Pereira 1927, 159‑160. 11
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do Hospital de S. José. Conhecida a sua planta e fachada através de um número limitado de representações, não se tinha até hoje, devido à escassez de elementos, uma ideia suficientemente clara do seu aspecto interior. Foi essa lacuna, que se procurou colmatar com a necessária reconstituição e estudo, permitindo alargar as possibilidades de análise de um monumento capital na história da arquitectura religiosa portuguesa do período moderno12.
Branco 2008, v. I 79‑94.
Caetano Tomás de Sousa foi um dos mestres activos no convento de Mafra. São da sua autoria o desenho da fachada (D.129A) e a série de seis plantas (D.29R‑D.34R) – na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) – executadas em 1764 para o novo Hospital Real de S. José, projecto de reconstrução do colégio de S.to Antão‑o‑Novo, que previa alas simétricas rematadas por torreões e o aproveitamento da igreja, que ficaria no eixo. Viterbo 1988 [1899], v. III 108; Carvalho 1977, 92 e 106‑107. A fachada da igreja foi também desenhada por Haupt em 1886. Haupt 1986 [1895], 61. 13
Na Academia Nacional de Belas Artes (ANBA). Da autoria do engenheiro e sargento‑mor José Monteiro de Carvalho, terá sido levantada quando este – que em 1760 substituiu Eugénio dos Santos no cargo de arquitecto do Conselho da Fazenda – foi encarregue pelo marquês de Pombal, em 1769, de adaptar o Colégio de S.to Antão ao futuro Hospital Real de S. José. Viterbo 1988 [1899], v. III 388; Santos 1950, 59. 14
Haupt 1986 [1895], 65. Mesmo sem contar com o retro‑coro (que a igreja dos Agostinhos possui), S.to Antão não era, de facto, um templo tão vasto como S. Vicente. O comprimento das duas igrejas até ao arco triunfal da capela ‑mor era de 36,5m e 50m, respectivamente. Comparem‑se as duas plantas em Kubler 1988, 87 e 84. 15
A nave da igreja – discussão, metodologia e crítica sobre a sua reconstituição O primeiro problema a resolver prendia‑se com as verdadeiras dimensões do edifício a reconstituir e, desde logo, com a precisão dos desenhos elaborados por Caetano Tomás de Sousa e Albrecht Haupt (plantas e fachada, respectivamente)13, e José Monteiro de Carvalho (planta)14. Este último constituía o levantamento planimétrico mais fidedigno conhecido, pois o que se deve a Caetano Tomás, apesar de útil no geral (mostrando os vários pisos do complexo construtivo), no que concerne à igreja não é tão detalhado nos pormenores (Fig. 2). Verificando in situ as respectivas escalas do que ainda hoje subsiste das dependências da antiga igreja – ou seja a sacristia – foi possível concluir que as dimensões que Haupt atribuíra ao edifício (julgando‑o mais vasto que S. Vicente)15 não estavam certas. Por outro lado, comprovou‑se a fidelidade da planta levantada por Monteiro de Carvalho, tendo sido esta a que doravante se adoptou como padrão. De seguida, o passo mais importante foi fazer a articulação entre o desenho da fachada e dos seus elementos estruturantes, com o do alçado interno a reconstituir. Os únicos dados disponíveis eram os fornecidos pelas plantas (dimensões e disposição gerais, largura das arcadas, constituição dos pilares) e, salvo estas, a
Fig. 2 – S. to Antão‑o‑Novo, Lisboa, 1612 ‑58 – planta da igreja. José Monteiro de Carvalho, 1769 (in Santos 1950, 59).
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altura da cimalha real – linha de encontro entre o alçado interno e o arranque da abóbada – que, no exterior, correspondia à primeira cornija do frontispício (Fig. 3). Tudo o resto, se desconhecia, nomeadamente – e este constituía o maior problema a ultrapassar – a altura das arcadas das capelas laterais, bem como tudo aquilo que se lhes sobrepunha, até ao entablamento. O desenho deste, bem como o dos caixotões da abóbada de pedra, seria resolvido por uma outra gravura antiga, esta do Archivo Pittoresco16 (com o interior da igreja em ruínas), documento visual único que constituiria uma ajuda preciosa também para a reconstituição da capela‑mor, como adiante se verá. Quanto às arcadas tornava‑se evidente que a sua altura pouco comum num alçado composto (com tribunas), se devia à enorme dimensão dos pedestais que seguramente mantinham a cota dos usados na base da frontaria onde tinham grande expressão17 (Fig. 4). Era sobre estes pedestais, com cerca de 1,5m de altura, que assentavam as grandes pilastras interiores, enquadrando os arcos de acesso às capelas laterais. A sua disposição poderia também levantar algumas dúvidas, pois na História dos Mosteiros é referida a existência de dez pilastras por cada lado da nave, ao contrário das oito que se esperaria encontrar num alçado com três capelas flanqueadas por
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Fig. 3 – S. to Antão, Lisboa. Fachada da igreja e projecto para as alas laterais (pormenor). Caetano Tomás (século xviii). (© BNP – D. 129 A)
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Barbosa 1862, t. V 369.
Esta particularidade da igreja de S. to Antão está relacionada com a pendente do terreno, de sentido descendente da cabeceira para a fachada. Os pedestais, que na capela‑mor têm uma dimensão ainda pouco expressiva, atingem uma altura muito maior na nave, depois de vencidos os dois degraus do arco triunfal e transepto. 17
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Fig. 4 – S. to Antão, Lisboa – fachada da igreja em ruínas (© Haupt 1986 [1895], 61). O desenho possui algumas incorrecções, nomeadamente a dimensão do segundo nível – demasiado baixa – e os nichos superiores do primeiro – que eram janelas. Os três vãos centrais acima das portas correspondem a uma alteração do século xix.
O que no sistema clássico se chama “terminação por acentuação”. Ver n. 73. 18
Ao retomarem os princípios geométricos euclidianos, os arquitectos do Renascimento tinham à disposição métodos simples para obterem rectângulos de relações proporcionais harmónicas. Segundo Serlio, as mais usadas eram as de 1:2 (quadrado duplo), 1:√2 (diagonal do quadrado), 3:2 (sesquilátera), 4:3 (sesquitércia), 5:3 (quadrado + 2/3), 5:4 (sesquiquarta) e 7:4 (quadrado + 3/4). Serlio 1996, lv. I [1545] 30 [fl. 21r]. 19
As arcadas da nave de S.to Antão, como S. Vicente, são proporcionadas na razão de 1:2 (quadrado duplo). A diferença é que as da igreja jesuíta incluíam pedestais, mas mesmo sem estes, as arcadas mantinham uma proporção canónica de 5:3. 20
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História dos Mosteiros 1707, t. I 419.
dupla pilastra. Ora, numa observação mais atenta das plantas, é possível comprovar a existência de dois ressaltos no princípio e no fim da nave, correspondendo às duas pilastras extra que, através do recurso à sobreposição, marcavam assim os extremos daquele espaço, o mesmo sucedendo, aliás, nos topos do transepto18. Estando definida a disposição das pilastras e dimensão dos pedestais, restava determinar a altura dos arcos. A solução adoptada, neste caso, foi a de calcular – segundo as regras proporcionais clássicas19 – a relação canónica da altura de um arco em função da sua largura (que era conhecida) e averiguar depois se haveria alguma correspondência lógica com algum elemento estruturante da fachada. Utilizando o rácio do duplo quadrado20, verificou‑se que a altura dos capitéis das arcadas da nave correspondia correctamente aos do entablamento do pórtico da frontaria, batendo certo, inclusive, com o piso da galeria das tribunas (visível na segunda planta de Caetano Tomás), situado logo acima do fecho dos arcos das capelas, como se observa na gravura do interior do templo do Archivo. Deste modo, ficavam apenas por desenhar as janelas das tribunas – a igreja possuía, como a do Mosteiro do Desterro, alçado composto – e os pormenores do entablamento interno. Como aquelas quase tocavam o fecho dos arcos, a sua disposição no pano de parede abaixo do entablamento não oferecia muitas dúvidas: “sobre os arcos das capelas se segue sua cimalha, ficando a meio do arco uma formosa tribuna em que assentam sobre um cepo de mármore vermelho seis balaústres de pedra branca, servindo‑lhe de frechal outro mármore vermelho” 21. Não devendo as janelas ultrapassar a linha definida pelo limite inferior dos capitéis das grandes pilastras, tornou‑se claro que o espaço assim encontrado se ajustava perfeitamente ao desenho de um vão‑tipo do período (na proporção da diagonal do quadrado) com remate em lintel de ressalto, conforme é sugerido pelo texto e pela gravura do Archivo.
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De acordo com esse documento visual e com a descrição da História dos Mosteiros, foi desenhado o entablamento, decorado com um friso contínuo de mísulas triglifadas, muito juntas, fazendo lembrar as do claustro grande do Convento de Cristo ou as da nave de S. Roque, onde Baltazar Álvares trabalhou com o tio e com Filipe Terzi. A sua génese deve ter provindo daí, muito embora nesses exemplos, as mísulas não tenham ainda os tríglifos à maneira de Peruzzi, que apareceriam depois em S. Vicente de Fora. Depois de resolvido o alçado axial da nave, e excluindo o zimbório22, o desenho do topo do transepto ficou de certo modo facilitado. O elemento de incerteza residia na altura exacta a atribuir aos arcos das capelas abertas a meio que, como se vê em planta, são mais amplos do que os da nave, visto não terem tribuna sobreposta. O autor da referida descrição deixa, contudo, uma pista importante, ao referir que entre cada par de pilastras “segu[ia] sua cimalha sobre a qual [tinha] lugar um nicho com a imagem de um Apóstolo” 23. Esta cimalha, continuação da que na nave marcava o andar das tribunas, interromper‑se‑ia forçosamente no topo do transepto, devido à maior altura do vão da capela. Ora, não existindo nessa parede outro elemento antes do entablamento a não ser esse vão, a interrupção da cimalha teria que coincidir com os capitéis onde assentava o arco do mesmo (Fig. 5). Achada a altura das capelas dos topos do transepto, faltavam as janelas que rematavam esses dois alçados. A História dos Mosteiros é explícita quanto ao seu número (três), embora quanto ao formato e disposição não haja qualquer referência. É lógico admitir, contudo, que os três vãos se situassem todos no prolongamento do espaço definido entre as pilastras interiores do alçado, ajustando‑se em cima à curvatura da abóbada com uma janela termal à romana, disposição semelhante à usada em S. Vicente, que se repetiria depois noutras igrejas.
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Não se reconstituiu o zimbório devido à subjectividade que acarretava a sua representação sem a ajuda de elementos visuais. A descrição da História dos Mosteiros aponta para uma configuração idêntica ao de S. Vicente, com oito janelas em arco separadas por pares de pilastras. Previsto no plano original, mas executado tardiamente, talvez nunca tenha sido terminado, pois em 1707 faltava‑lhe ainda a calote e o lanternim. 22
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História dos Mosteiros 1707, t. I 433.
Fig. 5 – S. to Antão‑o‑Novo, Lisboa. Corte longitudinal da igreja. Reconstituição do autor (© Branco 2008).
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Para a documentação integral veja-se Martins 1994, v. II 85-88 e 92-94. 24
Os seus bens incluíam engenhos de açúcar no Brasil (com grandes rendas), casais em Torres Vedras e Vila Verde, escravos, jóias e a soma em dinheiro de 12.250 cruzados. Por uma relação publicada por Vítor Ribeiro, sabemos que os engenhos de Sergipe e de Santana dos Ilhéus rendiam, anualmente, 3.200 mil reis, a que somava um juro de 40 mil reis pago pela Casa de Bragança, mais umas casas junto ao muro da cerca do colégio que satisfaziam mais 61 mil reis anuais. Relação dos bens pertencentes às obras da igreja do Collegio de Santo Antão, pelo testamento e instituição da Condessa de Linhares. Ribeiro 1911, 49‑50. O legado do engenho de Sergipe tinha sido deixado por Mem de Sá a Francisco de Sá seu filho, que em morte, por sua vez, o legou a D. Filipa. Porém, uma cláusula do testamento inicial previa que no caso de não se chegar a instituir morgado por morte de seus filhos, e de estes não terem descendentes, os rendimentos seriam repartidos igualmente entre a Companhia de Jesus, a Misericórdia da Baía, e os pobres desta cidade. Viterbo 1895‑96, v. II 8‑9. Esta cláusula acabou por suscitar uma contenda entre a Misericórdia e o Colégio da Baía, por um lado, e o Colégio de S.to Antão, herdeiro do engenho por legado de D. Filipa, por outro. Iniciada em 1622, só se chegaria a acordo em 1659, sendo, a nosso ver, certamente uma das principais causas pelo arrastamento da construção da igreja do colégio da metrópole dedicada a S.to Inácio de Loyola. Sobre o testamento de Mem de Sá e o processo de engenho de Sergipe, veja‑se Wetzel 1972, 237‑254.
A capela‑mor/panteão da Condessa de Linhares
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Grande parte das receitas para a obra da igreja do Colégio de S.to Antão‑o‑Novo deveram‑se ao mecenato de D. Filipa de Sá, cuja memória do nome e linhagem, que se extinguiam consigo, associou a um dos principais edifícios religiosos em Portugal. Ao tempo da escritura com os Jesuítas (1612)24, a quem deixou a sua enorme fortuna, D. Filipa era uma das figuras mais ricas de Lisboa, filha do 3.º Governador do Brasil, Mem de Sá, sua herdeira universal e viúva do conde de Linhares, D. Fernando de Noronha25. Foi na capela‑mor da igreja de S.to Antão, que D. Filipa decidiu instituir o panteão da sua família, dotando‑a de uma capelania privada com aula de canto e sacristia particulares, condições que, apesar de discordantes com os princípios da Companhia, foram, não obstante, aceites pelos padres. Pelas implicações que levanta para o estudo da arquitectura do período, a capela ‑mor/panteão da condessa, iniciada em 1612, representa também uma das grandes surpresas reveladas pela gravura do Archivo Pittoresco, atrás mencionada. A sua observação inicial deixa a ideia de que a cimalha da capela‑mor, no primeiro plano, se situa no prolongamento da cimalha real da nave e, portanto, que ambos os alçados se encontram à mesma altura. Na verdade, trata‑se de mera ilusão perspéctica do desenho, visto a capela‑mor, por ser mais estreita (como se vê em planta), nem sequer estar no mesmo alinhamento, o que significa que teria de ser mais baixa (Fig. 6). O aspecto nunca evidenciado é que essa maior estreiteza da capela‑mor determinaria, através da respectiva relação proporcional, uma redução de altura de
Fig. 6 – S. to Antão, Lisboa – interior em ruínas com a capela‑mor no primeiro plano (in Barbosa 1862, t. V 369).
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tal modo considerável, ao ponto da sua abóbada se fechar abaixo da cimalha real da igreja. Quer isto dizer que esta, como confirma a História dos Mosteiros26 , passaria sem interrupção acima do arco triunfal da capela‑mor27, deixando superiormente uma parede em semicírculo totalmente livre, num arranjo semelhante ao da igreja do Espírito Santo de Évora que não ficaria inédito 28 (Fig. 7). Passemos então àquilo que é possível interpretar da leitura da sua planimetria e altimetria. A partir da planta, podemos ver que a capela‑mor de S.to Antão, além de profunda para uma igreja jesuíta (por deter também funções de panteão) apresenta um perfil algo recortado o que, aliado ao retábulo barroco (hoje na paroquial de S. José) poderia transmitir a ideia de uma obra terminada tardiamente. O autor da História dos Mosteiros desfaz, contudo, qualquer equívoco quando diz que “a majestosa fábrica da capela‑mor (…) deixou a condessa fundadora, ao tempo da sua morte, em grande altura e na maior perfeição [acabamento]” 29. Trata‑se, assim, de uma obra construída durante a segunda década do século xvii, mas projectada talvez na primeira30, em duas ordens (jónica e coríntia) de três módulos cada, num perfeito classicismo. As reentrâncias que vemos em planta eram, afinal, os arcossólios abertos centralmente de cada lado destinados aos mausoléus do panteão da fundadora 31 e os nichos que os ladeavam. O retábulo‑mor cujo transporte das quatro colunas em brecha da Arrábida, causou espanto ao tempo32, só seria colocado em 1692 substituindo talvez outro anterior. Como demonstrou George Kubler33, o camarim elevado ladeado por duas caixas de escadas que vemos atrás dele, é uma alteração construtiva do final do século xvii, que terá ocupado o espaço de um primitivo retro‑coro. Andou perto o historiador norte‑americano, quando viu nesse esquema inicial da cabeceira de S.to Antão um paralelismo com S. Vicente. Sabemos agora que nessa parte do templo o modelo não foi esse, mas sim o da igreja da Luz 34 , pois, como aí, foi necessário dotar a capela‑mor/panteão da condessa de um pequeno retro‑coro privado, assegurado por uma capelania própria, visto os estatutos da Companhia não admitirem coro nem canto. É este o dado mais importante que a gravura do Archivo vem revelar. Ou seja, o facto do alçado da capela‑mor nela visível, repetir integralmente na forma, proporções e programa, o modelo de capela‑mor/panteão que a infanta D. Maria tinha encomendado para si, na Luz, 38 anos antes. A diferença é que nesta, a distribuição dos vãos (com excepção do arco central em baixo) não é simétrica, abrindo‑se os nichos de um lado e as janelas do outro, enquanto em S.to Antão, nos dois alçados, os nichos ocupam os extremos do registo inferior (flanqueando os arcossólios) e o módulo central do superior (entre as janelas). Mas as analogias não se esgotam na composição do muro. Pela gravura do Archivo podemos ver como se repetem, em ambas as capelas, o tratamento com almofadados coloridos nos embasamentos do primeiro e segundo níveis; o desenho dos vãos (excepto os arcossólios), sempre rectangulares e de verga direita; o concheado do nicho central do segundo nível em “marmore vermelho” 35; ou mesmo a utilização de caneluras nas pilastras jónicas e coríntias (Figs. 6 e 8).
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“Sobre os pilares do cruzeiro, na mesma forma que se vê nos pilares do corpo da igreja, se segue a mesma obra de arquitrave, friso e cornija, sustentada de cachorros lavrados com meias canas, que assim como correm por toda a igreja se seguem do mesmo modo por todo o cruzeiro”. História dos Mosteiros 1707, t. I 433. 26
Acima do qual figurava um grande brasão com as armas da condessa de Linhares decorado “com as suas cores próprias (...) em pintura e ouro”. Idem, ibidem. 27
A disposição da capela‑mor abaixo da cimalha real é idêntica à da igreja do convento de Jesus, em Lisboa, embora aqui o tímpano seja vazado numa janela termal. Tendo Diogo Marques dirigido esta obra em 1625 – Serrão 1977, 43 – é natural que tenha repetido o modelo de S.to Antão onde trabalhara antes. Ver n. 44. 28
História dos Mosteiros 1707, t. I 436. A abóbada, contudo, só se iniciaria em 1625. Martins 1994, v. I 389. 29
O último testamento de D. Filipa data de 31 de Agosto de 1618 (dois dias antes da sua morte), mas o projecto é seguramente anterior a 1612, data da escritura da condessa com a Companhia. A prova é o facto de neste documento se referir estar a pedraria da capela‑mor já completamente lavrada. Martins 1994, v. I 372. 30
A lápide remanescente do mausoléu de D. Filipa encontra‑se hoje na actual sacristia (a dos padres, não a da capelania) ocupando um dos recessos destinados aos amitários, já desaparecidos. 31
25 juntas de bois por cada coluna. ANTT, Cart.º Jesuítico, maço 67, doc. n.º 57. 32
Estes camarins, destinados à exposição de uma imagem sacra e ao acervo das suas vestes, eram desconhecidos na Europa antes dos meados do século xvii. O de S.to Antão reflecte possivelmente experiências espanholas, como N.ª Senhora dos Desamparados em Valência ou a igreja da Vitória em Málaga. Kubler 1988, 89. 33
Toda a arquitectura da capela‑mor de S.to Antão aponta para uma mimetização do modelo da Luz. As duas apresentam retro‑coros mais 34
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baixos que o cruzeiro, ao contrário da versão mais monumental de S. Vicente, o que traduz uma apropriação nacional dessa solução. Mesmo na igreja da Luz o retro‑coro, a avaliar pela documentação, é posterior ao de S. Vicente pois em 1614, apesar de anunciado para breve, não tinha sido ainda começado. ANTT, Ordem de Cristo, liv. 47, fl. 25. Kubler 1988, 67, n. 28; Almeida 1997, v. II 122. Este facto levanta, todavia, o problema de saber se essa ligação com a capela‑mor estaria ou não prevista desde início. História dos Mosteiros 1707, t. I 437. Tipo de nicho que encontramos também na actual capela‑mor da igreja da Conceição Velha, atribuída a Jerónimo de Ruão. 35
ANTT, Cart.º Jesuítico, caixa 16, maço 9, doc. n.º 141. Martins 1994, v. I 380. 36
Fig. 7 – N.ª Senhora de Jesus, Lisboa. A configuração da cabeceira repete o modelo usado em S. to Antão (© Ricardo Branco). Fig. 8 – N.ª Senhora da Luz, Lisboa, 1575 – alçado da capela‑mor da igreja (© Ricardo Branco).
Quais terão sido, então, as razões que justificaram tão directa influência entre as duas obras? É sabido que D. Filipa de Sá possuía uma quinta em Telheiras, sendo por isso natural que frequentasse a igreja de N.ª Senhora da Luz. Todavia, mais do que conhecer, a condessa de Linhares mostra‑se perfeitamente entendida na sua arquitectura quando, em carta dirigida ao P.e da Companhia Estevão de Castro, a cita especificamente a propósito do andamento da cornija da sua capela, que queria de proporções menos esguias: “o principal é se será boa obra ou não, visto haver ‑se de acrescentar muito a altura da capela, mais que a de Nossa Senhora da Luz que é tachada de alta” 36. Uma imposição específica do encomendante, facto cada vez mais frequente ao longo do século xvii, ao qual, dada a génese áulica do modelo, o arquitecto teve de se adaptar? É seguramente um cenário provável. Sobretudo se considerarmos que a partir de 1601 (data que coincide com a morte de Jerónimo de Ruão) Baltazar Álvares passa a arquitecto responsável pelo Hospital da Luz, obra também da iniciativa da infanta D. Maria e situado junto da sua igreja, que tudo indica ter sido também ele a terminar. A explicação para a semelhança entre as duas capelas‑mor ultrapassa, de facto, a mera influência construtiva ou questão de gosto. Esse paralelo é, acima de tudo, reflexo de uma mesma intenção programática, quer na forma quer no simbolismo que encerra. Ou seja, a adopção em S.to Antão de um modelo específico de capela/panteão – o da Luz – que a condessa de Linhares, significativamente, quis emular seguindo o exemplo da infanta filha de D. Manuel, figura ilustre do nosso Quinhentismo, cuja acção humanista e mecenática constituía evidente referencial de prestígio.
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Considerações sobre a arquitectura da igreja Como já se disse, o primitivo projecto de Baltazar Álvares não contou inicialmente com o favor dos padres jesuítas. Todavia, as críticas apontadas, expostas em carta ao Geral da Companhia em Roma a 30 de Junho de 1579, não tiveram que ver (como nunca tinham) 37 com questões formais ou de linguagem, mas sim com as dimensões excessivas da parte colegial. Ainda antes da morte do cardeal‑rei, é na alteração dessa parte do projecto (por onde começaram as obras) que se concentram os esforços, sendo provavelmente nesse âmbito que se enquadra a vinda a Portugal do arquitecto jesuíta italiano Giuseppe Valeriano. Da sua estadia não resultariam, porém, quaisquer frutos, em virtude do precário estado de saúde em que chegara em Abril de 1579 e o obrigou a regressar a Roma, volvidos pouco mais de quatro meses. É a partir deste momento que surge, como alternativa, a figura do P.e Silvestre Jorge. Mestre‑pedreiro da Companhia, já tinha exercido funções de “prefeito das obras” (fiscal de obra) em S. Roque e nos Colégios de Coimbra, Porto e Évora. Aliás, é nessa qualidade que, após a morte do Cardeal em 1580, é solicitada a sua intervenção em S.to Antão. Ou seja, não para substituir os planos gerais do Colégio – que numa obra de patrocínio régio não podia fazer38 – mas para os adaptar às necessidades da Comunidade e às condições práticas que o estaleiro impunha, executando algumas “traças”, que terão de ser entendidas hoje como “desenhos de alteração ou de pormenor”. Aliás, prova da sua subalternização é o facto das alterações que fez terem sido, em 1586, elas próprias alvo de correcção por parte de outro arquitecto e engenheiro‑mor do reino – Filipe Terzi – que terá visto necessidade de “emendarle algunas cosas de importancia en su traça del colegio nuevo” 39. Se relativamente ao que foi construído no sector do colégio a questão da autoria permanecerá sempre por resolver em virtude das constantes modificações, já em relação à igreja a situação é outra... É certo que uma carta do Provincial ao Geral da Companhia, datada de 1587, refere especificamente que o P.e Silvestre Jorge trabalhava em alterações à sua traça. Porém, é o próprio documento, através de um dado evidente, mas ainda não notado, que nos comprova que aquelas nunca ocorreram: “la traça de la iglesia que se embio a Roma tenia en largo 108 palmos. La que ahora haze el Padre Silvestre Jorge acrecienta mas 26 palmos”40. Isto é, a do mestre jesuíta aumentava o comprimento da nave para 134 palmos facto que, contudo, a planta de S.to Antão não confirma, mas sim os primitivos 108... Em suma, poderíamos dizer que, apesar da escala da igreja de S.to Antão reflectir o projecto geral aprovado em 1579, a configuração do templo, entretanto alterada, só pode ter sido idealizada, em pormenor, depois de Baltazar Álvares ter começado a trabalhar em S. Vicente de Fora, e não antes. Há várias razões que concorrem para esta asserção.
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A segunda congregação geral, celebrada em 1565, estipulou a obrigação de submeter à aprovação do Geral da Companhia em Roma, os planos de toda a obra nova. No entanto, o conselheiro do Geral – um arquitecto ou professor de matemática do colégio romano – devolvia‑os com ligeiros retoques visando aspectos práticos, mas nunca questões de estilo, respeitando‑se as opções tomadas em cada lugar. Ceballos 1980, v. III.2 646. 37
De facto, de acordo com a hierarquia da profissão, seria completamente impensável que um mestre‑pedreiro pudesse assinar projectos de arquitectura em obras de patrocínio real que, por inerência, seriam sempre afectas a um dos cargos oficiais de primeira ordem: o de arquitecto das ordens militares ou de arquitecto régio a quem, forçosamente, qualquer plano teria que se submeter. 38
ARSI, Lus. 69, fl. 265v. Martins 1994, v. I 354. Certamente que terá sido essa nova traça a enviada a Roma para aprovação em 1586. 39
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ARSI, Lus. 70, fl. 215. Idem 356.
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Fig. 9 – S. Vicente de Fora, Lisboa, 1582‑1629 – planta da igreja. (in Kubler 1988, 84).
Silva 1986, 167‑169; Kubler 1988, 90; Correia 1986, v. 7 123. 41
Mesmo considerando toda a Península Ibérica. Bustamante; Marías 1987, 300. Um dos primeiros casos em Espanha é o da igreja do Sagrário em Sevilha, iniciada por Miguel de Zumárraga em 1615. 42
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Branco 2008, v. I 120‑122.
Correia 1986, v. 7 123; Soromenho 1993, v. II 385 – aliás, as obras pararam em 1624, ano em que faleceu. A fachada da igreja do colégio portuense, que partilha idêntico esquema formal, tem sido explicada dentro da mesma conjuntura artística, embora tal perspectiva deva ser vista com reservas, dado o seu arranque tardio (1690). O risco essencial deriva do modelo de Coimbra, mas a expressão barroca, bem como algumas das soluções utilizadas, sobretudo nas torres, contradizem a lógica da estrutura conceptual primitiva. Procuraremos retomar esta questão noutra ocasião, explicitando as razões que estão na base do problema. 44
Se observarmos as plantas das duas igrejas a filiação entre ambas é óbvia, quer ao nível das proporções e estrutura, como da concepção espacial cripto‑colateral, de origem itálica, facto aliás, já suficientemente salientado por Pais da Silva, George Kubler e Horta Correia 41 (Figs. 2 e 9). Se quanto ao plano a concordância de S.to Antão com a fábrica vicentina é directa, ao nível do interior ela mistura outros elementos que nos remetem sempre para obras associadas a Baltazar Álvares. O alçado da nave, por exemplo, integra certas características de S. Roque e por conseguinte é mais português no seu tratamento – subdividindo‑o com tribunas sobre as arcadas – do que o modelo de S. Vicente, mais italiano, embora retenha deste o emprego da dupla pilastra na separação das capelas, e o transepto e cúpula de matriz transalpina. Também o uso particular da ordem arquitectónica parece constituir uma verdadeira marca do estilo do arquitecto, o primeiro a utilizar pares de pilastras gigantes na divisão dos alçados internos das igrejas 42 até estas reaparecerem, muito mais tarde, na Basílica de Mafra onde, aliás, a memória quer de S. Vicente, quer de S.to Antão, não terá sido despicienda. O mesmo vale para o tipo de capitéis utilizados na nave da igreja jesuíta. O seu desenho, com ábaco curvo, equino de óvulos e gola canelada, é em tudo idêntico ao utilizado em S. Vicente (aqui com as setas do mártir sobrepostas), na capela do Hospital da Luz – onde está bem documentada a intervenção de Baltazar – mas também na igreja do mosteiro do Desterro, cuja autoria lhe pertence como já comprovámos 43. Quanto à fachada de S.to Antão, depois repetida no colégio do Porto, é por demais evidente a sua estreita relação com a da igreja jesuíta de Coimbra, iniciada em 1598 e consensualmente atribuída a Baltazar Álvares 44. Por conseguinte, tudo indica que terá ocorrido, no colégio de Lisboa, uma situação análoga ao da cidade mondeguina. Isto é, uma diluição ou mesmo dissipação da autoria de Baltazar na construção das dependências colegiais, deixadas à execução de mestres “coadjutores”, mais próximos das necessidades práticas da Companhia e uma intervenção mais pessoal do arquitecto na concepção das respectivas igrejas. Face ao exposto, é esta a explicação que faz sentido e não outras difíceis de entender, como a atribuição da autoria da igreja de S.to Antão a um mestre Silvestre Jorge, que na igreja de Coimbra nem se coloca e os documentos não sustentam, como se os próprios edifícios já não o fizessem.
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Alguns autores, por outro lado, têm insistido na autoria de Diogo Marques Lucas 45. Se parece evidente que a versão definitiva dos planos da igreja de S.to Antão‑o ‑Novo teria de existir antes do arranque das obras da capela-mor em 1612, como se infere da proposta inicial da condessa de Linhares 46, mesmo nessa altura Diogo Marques não integrara, sequer, nenhum dos cargos oficiais da profissão e sabemos como isso era decisivo em obras de iniciativa régia. Como a sua ascensão a um dos lugares de arquitecto da Coroa só viria a suceder em 1616, ano em que é nomeado mestre das Obras do Convento de Cristo, a paternidade do segundo projecto da igreja não pode ser sua. Isto não quer dizer, porém, que não tenha orientado o estaleiro (como aliás os documentos confirmam e não apenas na igreja de S.to Antão), dadas as várias solicitações de Baltazar Álvares como principal arquitecto do reino, após a morte de Filipe Terzi em 1597. Deste modo, a presença em 1614 de Diogo Marques em S.to Antão 47 numa junta de arquitectos e mestres, com o objectivo de avaliar, na presença dos P.es Provincial e Reitor do Colégio, as fundações da igreja, não significa ser ele o autor do traçado, mas sim quem o dirigia. O responsável pelo projecto não foi chamado a pronunciar‑se visto que, a questão em causa não era o plano, mas sim a sua concretização. Esse responsável só podia ser Baltazar Álvares, que acumulava, nessa altura, os principais cargos oficiais da profissão 48 , tendo já trabalhado para os Jesuítas em S. Roque, com seu tio, riscado os planos iniciais para o colégio da Companhia em Lisboa, certamente as traças da actual igreja do colégio de Coimbra e ainda as do noviciado da Cotovia, onde se encontrava a dirigir as obras em 160749. A Diogo Marques estaria, contudo, reservada a importante tarefa de executar a obra. Situação análoga, aliás, tinha já sucedido no colégio de S. Bento e no das Ordens Militares em Coimbra, ambos da responsabilidade de Álvares, sinal que era homem da confiança deste e que dele dependia, antes de ser nomeado para um dos cargos de arquitecto régio. Com efeito, podemos hoje com segurança afirmar que a construção da igreja de S.to Antão‑o‑Novo decorreu sob a direcção de Diogo Marques Lucas e não de Silvestre Jorge. Quatro documentos existem que o comprovam: os dois primeiros (não datados) referem‑se às empreitadas do cruzeiro e da abóbada da nave para as quais fez orçamentos detalhados 50, o terceiro diz respeito à citada junta ocorrida em 1614, e o último, talvez o mais relevante, apesar de posterior, é um extenso relatório elaborado pelos padres jesuítas sobre o acabamento do remate da fachada, onde o nome de Diogo Marques aparece como responsável pelo desenho desta última. Dividido em duas partes, este notável texto, ao que tudo indica inédito51, constitui a resposta da Companhia ao conhecido parecer de 1672 pedido pelo mestre pedreiro que conduzia a obra aos mais importantes especialistas de então, entre os quais os arquitectos Mateus do Couto (sobrinho), Francisco da Silva Tinoco, Diogo Tinoco da Silva, João Nunes Tinoco e o engenheiro‑mor Luís Serrão Pimentel52.
Carvalho 1964, 22 ‑23; Martins 1994, v. I 378; Gomes 1998, 115. Ruão 2006, v. I 397-99 e segs. 45
“Em cinco de Fev. de 614 se fez neste Colégio de S.to Antão uma junta dos principais oficiais desta cidade de Lx.ª presente o Arquitecto Diogo Marques, em presença dos P.es Provincial e Reitor do mesmo Colégio, (...) e depois de verem o sítio da Igreja, fundamentos, larguras e grossuras das paredes e pilares, julgaram (...) que o sítio e fundamento não parece poder ser melhor, por ser sobre pedra. (...) Viram também os papéis e traça de toda a fábrica, e julgaram que estava tudo mui bem entendido, perfeito, ordenado, e acertado assim o que toca à capela mor, como ao cruzeiro, corpo e capelas da igreja. (…) E porque nisto concordaram todos, e assim lhes parecer segundo a ciência e experiência que têm das obras de seus ofícios, se assinaram todos”. ANTT, Cart.º Jesuítico, maço 67, doc. n.º 35, fl. 1‑1v. (transcrição nossa). Ref. documental em Carvalho 1964, 23. 46
Arquitecto Régio (1575); Arquitecto da Província do Alentejo e Arquitecto dos Paços de Almeirim, Salvaterra e do Mosteiro da Batalha (1581); Arquitecto das Obras de S. Vicente de Fora (1582); Arquitecto das Ordens Militares (1597). 47
Quanto à fábrica da igreja se viva for, eu a fabricarei assim de ornamento, (...) e de tudo o mais que for necessário; enquanto a igreja se fizer, para que acabada, fique logo ornada”. ANTT, Cart.º Jesuítico, caixa 16, maço 5, doc. n.º 42. Martins 1994, v. II 85-86. 48
49
“Orçamento da obra do cruzeiro da igreja dos Padres da Companhia de Jesus do colégio de S. Antão desta cidade de Lx.ª” e “Orçamento da abóbada do corpo da igreja dos padres da companhia do colégio de S. Antão”, ambos assinados por “Dyº Marques Lucas”, sem data. ANTT, Cart.º Jesuítico, maço 67, docs. n.º 90 e 91 (transcrição nossa). Ref. documental em Carvalho 1964, 23. 50
ANTT, Cart.º Jesuítico, maço 67, docs. n.º 93 e 94 (inéditos). 51
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Franco 1719, t. I 11.
ANTT, Idem, doc. n.º 37.
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Assunto que futuramente procuraremos abordar. 53
ANTT, Cart.º Jesuítico, maço 67, doc. n.º 37, fl. 2v. Carvalho 1964, 23; Martins 1994, v. I 411; Gomes 1998, 114‑116. 54
ANTT, Cart.º Jesuítico, maço 67, doc. n.º 37, fl. 1. 55
56
Expressão de Mateus do Couto. ANTT, Idem,
fl. 2. 57
ANTT, Idem, doc. n.º 94, fl. 1.
ANTT, Idem, doc. n.º 93, fl.2 e doc. n.º 94, fl. 1v. 58
O próprio testamento da condessa parece sugeri-lo. Depois de uma série de prescrições para “o ornato e formosura do templo”, refere: “deixo frontispício e torres, cómodo de sinos e o zimbório e tecto da igreja, adições sem as quais se não pode dizer o templo de todo acabado e de todo aperfeiçoado”. ARSI, Lus. 78, fl. 141. Martins 1994, v. II 88. 59
As torres, porém, estavam previstas de início, como provam as escadas de acesso em planta. 60
O seu conteúdo é tanto mais importante, porquanto revelador não só da intervenção de Diogo Marques na execução de traças para a fachada do segundo projecto da igreja, que atribuímos a Baltazar, mas também de outro importante tema: o do empobrecimento estético atingido pela arquitectura portuguesa no terceiro quartel do século xvii e a falência do seu sistema de progressão profissional53, que permitiu um simples mestre pedreiro dirigir uma obra de patrocínio real sem coordenação superior de um arquitecto da Coroa. Sublinhe‑se que, tanto a primeira parte da resposta (especialmente dirigida aos arquitectos) bem como a parte final do relatório em causa, só aparentemente, e ao contrário do que já foi sugerido a propósito do parecer de 1672, se relacionam com uma mera discussão estética. Mostram, sobretudo, a progressiva periferização do classicismo na arquitectura portuguesa do pós‑Restauração, a perda da influência dos arquitectos e o consequente abastardamento da norma clássica. Com efeito, o assunto não se reporta a uma mutação para um gosto barroquizante, neste caso, se a segunda cornija da fachada devia manter as mísulas ou “cachorros” por ficar mais volumosa (“mais crespa e relevante”)54, mas sim a uma contenda sobre o cumprimento do cânone clássico na execução do remate. De um lado os arquitectos e mestres consultados contra a demolição da cornija, considerando‑a “conforme a arte sem imperfeição” 55 e “como mandam nossos mestres que escreveram sobre Arquitectura” 56 e do outro, os padres e mestres da Companhia que a pretendiam derrubar apelidando‑a de defeituosa 57 e “disforme” 58. Efectivamente, todo o processo é demonstrativo da incompreensão do projecto de arquitectura antes realizado e das regras do sistema clássico que o enformou, senão vejamos: A igreja de S.to Antão tem início em 1612 com a capela/panteão de D. Filipa, mas o seu segundo projecto certamente já estaria delineado, pois em tudo se assemelha, sobretudo na fachada, à igreja do colégio de Jesus de Coimbra, começada em 159859. Com efeito, apesar da conclusão tardia do frontão e sineiras de S.to Antão (século xviii) 60 todos os elementos, bem como a estrutura, eram equivalentes: alçado dividido em cinco panos por pilastras dóricas gigantes no primeiro nível, e os três centrais do segundo por pilastras jónicas, com aletas nos extremos. Mesmo em relação às torres da igreja lisboeta, que ao contrário das de Coimbra não eram recuadas, a solução adoptada foi similar, pois é notória a intenção de as desligar do plano da fachada, não em distância, mas na expressão nua do seu embasamento (em silharia fendida) ao qual se sobrepunham as aletas. Com este artifício – bem maneirista, diga‑se – as torres passam para um plano posterior, deixando de pertencer ao desenho principal da fachada por não terem qualquer relação formal e estrutural com o registo inferior da mesma (Figs. 10 e 11). Só no coroamento as duas igrejas diferiam, visto na de Coimbra dividir‑se em três frontões escalonados e na de Lisboa, como demonstraremos, este terminar num único frontão. E foi aí que nasceu o problema. Em 1670, dado o arrastamento das obras por razões financeiras, só se achava concluída a cimalha do segundo nível, faltando as sineiras e o remate do corpo central. Esta cimalha tinha a sua cornija
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Figs. 10 e 11 – Colégio de S. to Antão, Lisboa, Gonzaga Pereira (1833) e de Jesus, Coimbra. Fachadas das igrejas.
assente sobre um friso de mísulas (“cachorros”), semelhantes às usadas quer na nave da igreja quer na de S. Roque 61. A grande questão é que os padres não a queriam e por isso a difamaram. Ofuscados pela fachada de S. Vicente, pretendiam desmanchar toda essa “cachorrada” por inviabilizar a balaustrada ou “grade” que lhe queriam colocar em cima, à semelhança da igreja dos Agostinhos – decisão errónea e conceptualmente descabida como veremos (Fig. 12). Recorrendo a uma retórica agressiva e frequentemente demagógica, começaram por desacreditar o parecer dos arquitectos reais pedido por António Fernandes, mestre pedreiro da obra, na referida carta que lhes foi especialmente dirigida. A sua intenção é logo revelada na resposta a Mateus do Couto ao dizerem que “ressalteada sobre os pilares” e “descomedida na sacada dos cachorros” a cornija “não dá lugar para correrem as grades direitas”62. Como argumento, citam nada menos que Filipe Terzi, “insigne Mestre de Arquitectos”: “sempre que as cornijas eram de cachorrada (…), mas que debaixo a obra viesse ressalteada, lançava sobre os capitéis dos pilares um arquitrave direito, e sobre ele lançava um tiro direito de cachorros (…) assim o fez no Forte del Rei [torreão do Paço da Ribeira], e na cornija que está por fora da Igreja do Loreto e por dentro da Igreja de S. Roque, e assim se imitou depois na Igreja de S.to Antão”63. Sobre a opinião de Francisco da Silva Tinoco ousam mesmo alvitrar que “os Arquitectos não devem ser tão ciosos de sua arte, que imaginem que do Mester tem o estanque dela” e que “quando as deformidades são claras não são necessárias consultas de Arquitectos para as emendar”. Como prova, logo partem para a inata-
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Embora de perfil mais próximo das do Torreão do Paço da Ribeira. Ainda completa na gravura do Universo Pittoresco (1868), a cimalha tinha já desaparecido quase toda quando Haupt desenhou a fachada em 1886 (Kubler 1988, 259). Na fotografia de Rocchini (1881) (Leone 1990) ainda com o segundo nível intacto, é possível vê ‑la encimando o embasamento da sineira direita já demolida. 61
ANTT, Cart.º Jesuítico, maço 67, doc. n.º 93, fl. 2v. 62
63
Idem, ibidem.
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ANTT, Cart.º Jesuítico, maço 67, doc. n.º 93, fl. 2v. 64
65
Idem, fl. 3.
ANTT, Cart.º Jesuítico, maço 67, doc. n.º 94, fl. 1. 66
67
Idem, fl. 1v.
68
Idem, fl. 2.
69
Idem, fl. 1.
Expressão que fará escola na nossa historiografia, mas não no sentido depreciativo como aqui usada. 70
cável razão divina: “há uns arquitectos por ofício, outros por benefício de Deus aos quais este Senhor foi servido de dar o estudo, com a mesma facilidade, com que dá habilidade a muitos animais brutos para fazerem o que não aprenderam, assim a têm as abelhinhas para fazerem o seu mel, e as aranhas para urdirem as suas teias, sem terem outro mestre, mais que o Autor da natureza”64. Nesta censura aos peritos “de fora” nem o reputadíssimo engenheiro‑mor Filipe Pimentel escapa, pois segundo os padres, a consulta para que foi chamado à igreja “foi feita por arbítrio de quem não tem poder algum” dado que “o P.e Provincial e o P.e Reitor deste Colégio” a ela deviam ter assistido para “levarem consigo ou todos ou alguns dos seus consultores, (…) que pudessem opor suas razões, para que (…) nada ficasse suspeitosa”65. Em suma, toda a polémica se resume, sublinhamos, a uma questão técnica da traça, que anda à volta de três aspectos designados como “defeitos” no relatório que acompanha a resposta aos arquitectos: o facto de a cornija “ser demasiadamente sacada”66 em virtude da expressão volumétrica da cachorrada; o “ser maior que a cornija de baixo” e portanto “contra o primor da arte”67; e os “dois ressaltos”68 que esta possuía, determinados pelo perfil em planta do segundo nível da fachada. Tomando como paradigma o modelo da “fachada de S. Vicente”, tida como “a mais regular que tem Lisboa”, contrapõem que a sua “cornija superior é muito mais moderada na sacada que a inferior”, sentenciando que “se disto se der algum exemplo em contrário será em alguma fachada tosca, e chã, e por isso irregular”69. Ora, no classicismo tardio isso estava longe de constituir regra. O facto de a segunda cornija da fachada de S.to Antão ser maior não a qualificaria como irregular ou “chã” 70. Não faltam no Maneirismo italiano do final do século xvi exemplos semelhantes (Alessi, Tibaldi, Vignola, etc.), até como oposição aos modelos clássicos anteriores.
Fig. 12 – Colégio de S. to Antão, Lisboa. Francesco Rocchini, 1881. As mísulas da segunda cornija são ainda visíveis no remate do embasamento da sineira direita, já demolida. (in Leone 1990)
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Os Jesuítas dizem que “no papel original que fez o arquitecto Diogo Marques, estava delineada uma cornija mais comedida” e que “se tirou a cousa do seu primeiro risco, e lhe meteram cachorrada, que a cornija original não tinha” 71. Não sabemos se foi assim, mas de qualquer modo a comparação com S. Vicente de Fora não colhe, porque no segundo registo da sua fachada não existe um verdadeiro entablamento, em virtude do uso licencioso da ordem das pilastras (sem capitéis) que Baltazar Álvares usou, inspirando‑se em Serlio72. O grande problema é que, justamente, o modelo da fachada de S.to Antão não era esse, mas sim o que Vignola celebrizara no Gesù em Roma73, com o segundo registo ladeado de aletas ou volutas e remate em frontão. Modelo, aliás, antes formulado por Serlio no seu tratado74 (por sinal também com frontão sobre mísulas) e do qual Baltazar Álvares seria o nosso maior intérprete (Fig. 13; Fig. 14). Este tipo de frontispício, como defenderam os arquitectos, não foi concebido para levar “grades” (balaustradas), como queriam os Jesuítas e daí o problema dos “ressaltos” da cornija, designadamente do corpo central, mais saliente, que as impediam de correrem direitas: “ficará mais disforme com tais ressaltos porque (…) os dois que dividem o frontispício das torres, como têm perto de nove palmos de sacada, indo as grades direitas, é força que comam [tapem] todas quantas por ali correrem” 75. O que os padres não alcançaram foi o facto do remate do alçado estar já determinado no nível térreo de acordo com um recurso canónico inerente à linguagem clássica, chamado “terminação por acentuação” 76.
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ANTT, Cart.º Jesuítico, maço 67, doc. n.º 94, fl. 1. 71
Soromenho 1994, 210, 216‑217; Gomes 2007, 90; Branco 2008, 106, 108. 72
Começada em 1572 a fachada, construída já por Giacomo Della Porta, baseou‑se no desenho original de Vignola de 1570. Ackerman 1972, 25 ‑26. 73
74
Serlio 1996, lv. IV [1545] 351 [fl. 175v].
ANTT, Cart.º Jesuítico, maço 67, doc. n.º 94, fl. 1v‑2. 75
De facto, um dos principais aspectos da linguagem clássica emerge da relação entre métrica e taxonomia. Na fase inicial de concepção, é esta última que permite determinar o desenvolvimento de um edifício através de uma grelha, passando este a ter os seus limites coincidentes com pontos pré‑determinados. Ora, para manifestar a ideia de termo, o cânone clássico estabelece que os 76
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Fig. 15 – S. to Antão, Lisboa. Projecto de remate da fachada em balaustrada. Anónimo jesuíta, 1672 (© ANTT – Cartório dos Jesuítas, Mç. 67, doc. 94, fl. 2v).
Fig. 13 – Vignola, Gesù, Roma, 1570 – projecto inicial da fachada (in Heydenreich; Lotz 1974, il. 285). Fig. 14 – Serlio Liv. IV, Veneza, 1537 – igreja (© Serlio 1996, lv. IV [1545] 351 [fl. 175v]).
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Observando este princípio, a igreja de S.to Antão possuía, no primeiro nível da fachada (dividido em cinco panos), dois tipos de terminação por acentuação: o par em dupla pilastra e meia que delimitava as extremas do edifício e o par em pilastra e meia que distinguia o corpo central tripartido correspondente à nave. Ora, como apenas estas últimas se prolongam no segundo nível e são as que assinalam por acentuação o princípio e o fim deste corpo – as duas do meio são pilastras simples – isso reduz a escolha do remate da fachada para um só elemento, coincidente com os seus termos: um frontão único. Aliás, foi isso que acabou por ser feito em meados do século xviii por Caetano Tomás, que nunca tendo passado de um mestre pedreiro habilidoso – apesar do aprendizado em Mafra – até aí conseguiu chegar, mau grado a incorrecção do desenho do frontão, cujas águas deveriam ser denteadas, no alinhamento dos ressaltos da cornija. No entanto, não foi isso que os Jesuítas, em 1672, tentaram impor aos arquitectos... De acordo com o desenho (inédito) que acompanha o relatório e que aqui mostramos, os padres insistiram na alteração da cornija para lhe colocarem a balaustrada que tanto queriam, revelando na sua teimosia também muito do conservadorismo e da falta de actualização estética que caracterizariam a arquitectura (não militar) em Portugal durante todo o terceiro quartel do século xvii (Fig. 15). A falta de contacto com o exterior, bem como o desaparecimento de quem lhe fazia a ponte e uma guerra de permeio com gastos enormes, foram sem dúvida factores inibidores das condições necessárias à renovação do legado clássico. Lembramos que a arquitectura, como as restantes artes visuais, depende da observação directa do que antes fizeram outros – sobretudo em centros artísticos mais avançados – e não apenas da leitura dos tratados, no caso português mais ainda em virtude da escassez destes últimos. A morte de Diogo Marques Lucas em 1640 é, por conseguinte, a nosso ver, a certidão de óbito do classicismo de matriz italiana, iniciado cerca de setenta anos antes pela geração de Jerónimo de Ruão, Filipe Terzi e Baltazar Álvares, finalmente suplantado pela austeridade do “estilo chão”, que teve a seu favor o escrúpulo contra‑reformista e as difíceis condições económicas – e logo, artísticas – do pós ‑Restauração. O seu ressurgimento, aliado ao regresso das ordens de arquitectura, só se dará no Barroco do final do século pela mão de João Antunes: em S.ta Engrácia e, por sinal, também na sacristia de S.to Antão‑o‑Novo, que notavelmente concebeu e onde a lição dos antigos mestres se descobre.
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elementos de remate da grelha‑padrão tenham que ser sublinhados, combinando, por exemplo, a coluna da extrema com uma ou meia pilastra, substituindo uma coluna por um pilar, duplicando o elemento final, etc.. No Barroco, em especial depois do tratado de Andrea Pozzo, a multiplicação do último elemento pode associar‑se de forma complexa a outros modos de terminação. Tzonis; Lefaivre 1986, 129, 140‑143, 150. Contudo, a duplicação ou mesmo a sobreposição com meias pilastras é já muito frequente no Maneirismo, nomeadamente em Serlio e Vignola e pode ser vista nas fachadas dos colégios de Jesus e de S.to Antão, no interior desta igreja, bem como na de N.ª Senhora do Desterro desenhada por Albrecht Haupt – Haupt 1986 [1895], 65 –, todos eles exemplos associados à actividade de Baltazar Álvares.
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Bibliografia Fontes Arquivo Nacional da Torre do Tombo ANTT, Cart.º Jesuítico, maço 11, doc. n.º 92. ANTT, Cart.º Jesuítico, maço 67, doc. n.º 35. ANTT, Cart.º Jesuítico, maço 67, doc. n.º 37. ANTT, Cart.º Jesuítico, maço 67, doc. n.º 57. ANTT, Cart.º Jesuítico, maço 67, doc. n.º 93. ANTT, Cart.º Jesuítico, maço 67, doc. n.º 94.
Fontes Impressas BARBOSA, Inácio de Vilhena. 1862. “Fragmentos de um roteiro de Lisboa”. Archivo Pittoresco. Tomo V. Lisboa: editores proprietários Castro Irmão & Ca. FRANCO, P.e António. 1719. Imagem da virtude em o noviciado da Companhia no Real Collegio de Jesus de Coimbra em Portugal. Évora: Officinas da Universidade. História dos mosteiros. 1950 (1707). História dos mosteiros conventos e casas religiosas de Lisboa, na qual se dá notícia da fundação e fundadores das instituições religiosas, igrejas, capelas e irmandades desta cidade. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa. Tomo I. PEREIRA, Luís Gonzaga. 1927. Monumentos Sacros de Lisboa em 1833. Lisboa: Oficinas Gráficas da Biblioteca Nacional. RODRIGUES, Francisco. 1938. História da Companhia de Jesus na assistência de Portugal. Porto: Liv. Apostolado da Imprensa. Tomo II, vol. I. SALVÁ, D. Miguel et al. 1885. Colección de documentos inéditos para la Historia de España. Madrid: Imprenta de la Viuda de Calero. Vol. XXXIII. SERLIO, Sebastiano. 1996 (1545). On Architecture: Books I‑V of “Tutte l’Opere d’Architettura et Prospetiva”. Hart, Vaughan; Hicks, Peter (trad.). New Haven & London: Yale University Press. Vol. 1. TELLES, P. e M. Balthazar. 1647. Chronica da Companhia de Jesu, na Provincia de Portugal. Lisboa: Officina de Paulo Craesbeek. Vol. II. VITERBO, Francisco Marques de Sousa. 1895‑96. Estudos sobre Sá de Miranda. Coimbra: Imprensa da Universidade. Vol. II.
Estudos ACKERMAN, James. 1972. “The Gesù in the Light of Contemporary Church Design”. Baroque Art: The Jesuit Contribution. Wittkower, Rudolf; Jaffe, Irma (dir.). New York: Fordham University Press. 15‑28.
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Resumo No período moderno, tornando‑se a edificação em arte e ciência, alguns dos seus distintos aspectos desenvolveram‑se segundo necessidades sobretudo funcionais, que definiram ciclos identificáveis na arquitectura portuguesa através de formas e concepções sóbrias. Considerando‑se a génese do Classicismo desde meados do século XVI e a influência do fomento de programas de fortificação militar do século XVII na redefinição urbana, apresenta‑se o caso da edificação da Vila de Mourão (Alentejo), como exemplo de arranjo a partir da nova fortificação sobre o aglomerado medieval entretanto arrasado, que veio a conservar elementos de classicismo depurado, num contexto que é, porém, de viragem para a afirmação do Barroco, mas introduzindo sinais tendentes à concepção que transforma os focos urbanos em cenários de expressão social, a que concorrem traçados de fachadas, ruas e praças.
palavras‑chave classicismo moderno restauração formas arquitectónicas e urbanas vila de mourão
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Abstract In the Modern Age, when constructive practice became both an art and a science, some of its distinctive features were developed as a response to clearly functional concerns. These came to define identifiable cycles in the Portuguese architecture of the 16th and 18th centuries through the use of sober forms and designs. This paper focuses on the reconstruction of the town of Mourão (Alentejo) from a double point of view: the consolidation of Modern Classicism in the arts from the mid-16 th century, and the influence on urban planning of the fortressing programmes promoted after the 17th century Portuguese Restoration. Mourão serves as an example of an urban plan based on a new fortress, in this case built before 1700 over the demolished medieval town. At a time when Baroque cultural values were beginning to assert themselves, the new plan retained elements of refined classicism while introducing features that turned urban elements such as façades, streets and squares, into a stage for social expression.
key‑words modern classicism portuguese restoration architectural and urban forms town of mourão
•
Arbitragem Científica Peer Review Carlos Castro Brunetto Professor titular, Departamento de Historia del Arte, Universidad de La Laguna (Espanha) Director de la Sección de Artes Plásticas del Instituto de Estudios Canarios (Espanha)
Data de Submissão Date of Submission Jul. 2011
Data de Aceitação Date of Approval Set. 2011
o programa edificado da vila de mourão e a persistência de formas do modo clássico na época barroca (ca. 1681‑ 1750) ma nu el f. s. pat ro c í n i o Departamento de História, Universidade de Évora Centro de História da Arte e Investigação Artística, UE
«A questão (…) na formação de um entendimento da arquitectura portu‑ guesa, focalizou‑se na importação de uma atitude intelectual, de autor, para a concepção global das formas sob a linguagem recuperada da antiguidade greco‑romana (…). A primeira qualidade do arquitecto é saber desenhar para que, por esse meio, possa mostrar o seu ‘conceito’»1. 1
Tavares 2007, 12‑13.
Quando consideramos os programas edificados portugueses desde a definitiva adopção dos modernos modelos italianos em períodos posteriores a 1521, e que, até finais desse século, se configuraram em consolidadas correntes, torna‑se notório o traço erudito, baseado nos tratados, quanto a obras que se realizaram sobre princípios conducentes a uma eficaz organização formal e funcional, e cujos acabamentos, sejam quais os seus desenvolvimentos, exibem um sentido próprio do Clássico. A partir de 1560‑70, e em programas sobretudo destinados à missão religiosa, dinamizando‑se sob iniciativa do Cardeal D. Henrique, então com responsabilidades em Évora, consagrou‑se um desenho moderno que veio revelar um distinto sentido de progressiva redução a aspectos lineares e de volumes compactos, exemplo das fachadas em esquadria, que tornaram a edificação assim resultante em expressão sobretudo dirigida à estrita funcionalidade das
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obras, e em que se pretendia um eficaz recurso às formas clássicas na concretização arquitectónica, de intervenção no espaço, de recriação de espaços e montagem de fachadas. Iniciava‑se um ciclo que, como se tem demonstrado e se procurará aqui voltar a confirmar, se prolongará até obras da viragem de 1700 2. O modo clássico corresponde, assim, à exibição de formas e modelos visuais numa definida concepção de desenho e sentido moderno de ordem, mesmo em contextos de firme austeridade e afirmação formal, como é o caso de certos aspectos dos mencionados programas portugueses decorrentes da iniciativa henriquina onde se destaca a constante aplicação de pilares robustos ou cunhais sólidos que reproduzem elementos formais clássicos, desenvolvendo modelos dóricos ou toscanos em convencional funcionalidade 3. Mas estavam igualmente dotados de uma simbologia que é expressão cultural de época, conforme a própria definição crítica que tratou o tema para a arquitectura na Europa. Assim o recapitulou Eric Forssman, indicando o uso das ordens de origem vitruviana mas recuperadas pelos tratadistas; mesmo pensando somente na função utilitária de certos edifícios, ainda assim, se pretendia um assinalado decoro. No estudo do dórico, nomeadamente, realçava‑se a sua mensagem de «aspecto viril, heróico e defensivo» (Forssman 1990, 67); alargando ‑se de resto a extensão dos significados à própria correlação com o que os grupos sociais desejavam exprimir quanto ao modo como promoviam os seus edifícios, no caso das realizações religiosas, o dórico, sobretudo, salientava por sua vez o sentido do sacrifício e da abnegação dos mártires 4. Remonta aos inícios do século xvi o início da aplicação das ordens clássicas ainda em momentos de emergência do Renascimento português, caso da Igreja de S. João da Foz, celebremente promovida pelo futuro Bispo de Viseu, D. Miguel da Silva, e o seu precoce uso do dórico, que «pela sua solidez (…), afigurava‑se o género mais propício para resistir à severidade do tempo, sem prejuízo da grandiloquência pretendida» (Queirós 2009, 14). O que, precisamente e no fundamental, permanecerá como subjacente ao uso das ordens nos períodos portugueses modernos, é a correlação com uma cultura religiosa e eclesiástica, com marca desde uma promoção fundadora quanto ao valor da memória e referência à atitude dos santos e em que se revia a sociedade, permanecendo o dórico na associação a obras mais nobres e o toscano quanto às intervenções ‘funcionais’, mas às vezes combinando‑se, ou outras confundindo‑se nas mesmas realizações. O toscano prolongava os sentidos culturais do dórico, mas referindo‑se sobretudo a âmbitos de funcionalidade, ou acometendo‑se à utilidade, reforçava uma correlação sociológica essencial para se compreender, critica e historiograficamente, o significado cultural de factos, como a exemplar primeira adopção das ordens antigas nas obras italianas do século xv 5. O uso será tanto ‘pedagógico’, quanto mais será exemplar e intencionalmente aplicado a obras de missão, com efeito, pedagógica, caso do Colégio do Espírito Santo de Évora, enquanto Universidade 6. O facto é que continuamos a reconhecer os traços estilísticos correlativos com esta definição programática, em notáveis focos regionais com base classicizante, nas obras que são, porém já, de anos que anunciam instauração do Barroco. Caso do
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Cf. Horta Correia 1991; Moreira 1995; Craveiro 2009; Patrocínio 2009. 2
3
Cf. Patrocínio 2010, 241‑253.
4
Forssman 1990, 19‑21.
5
Cf. Onians 1988.
6
Patrocínio 2009, 313‑334.
o programa edificado da vila de mourão
Fig. 1 – Vila de Mourão. Igreja Matriz de N.ª Sr.ª das Candeias. Perspectiva da fachada e galilé reentrante. © Manuel F. S. Patrocínio Fig. 2 – Vila de Mourão. Rua de Santa Margarida, com vista para o Castelo e Igreja Matriz. © Manuel F. S. Patrocínio
sóbrio edifício da Igreja Matriz de N.ª Sr.ª da Purificação das Candeias, dominando visualmente a Vila de Mourão, e onde predomina a matriz dórico‑toscana, quanto a uma prevalência técnica que traçou altos pilares a unificar os níveis de alçado da fachada. Em finais do século xvii e em período subsequente ao término das Guerras da Restauração (1668), a necessidade de reconstrução desta igreja terá desencadeado o processo reconstrutivo que trouxe novos contornos e fachadas a um aglomerado urbano cujas origens remontavam a períodos medievais, de época leonesa. A nova obra seiscentista foi significativa e funcionalmente inserida entre torreões do velho castelo que, ainda em inícios do século xiii, fora doado à Ordem de S. João do Hospital (ou de Malta), estando diante da outra fortificação a norte, desta feita dos Templários, do Castelo e Vila de Monsaraz. Tratava‑se, na verdade, de uma nova edificação para um antigo culto a que sempre se associou uma tradição imemorial, quanto à fixação de comunidades cristãs numa faixa de território confinante com a linha de fronteira apenas integrada no Reino à época de D. Afonso III (Figs. 1‑2). O culto local de Mourão sempre se distinguira como base das relações culturais da comunidade; de facto, quanto às origens da Vila, esta terá crescido fisicamente em torno da primeira igreja que existia já desde o século xiii, sendo que, muito embora tivesse outra dedicação, albergava a imagem da Virgem, também conhecida como Senhora do Tojal, em alusão ao seu aparecimento, vindo a ficar como tutelar de
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crenças e ligações sociais. A imagem da Virgem teria assim «aparecido entre uns montes de tojo», e «a sua Festa se fez sempre a 2 de Fevereiro», conforme a notícia que, no século xviii, Frei Agostinho de Santa Maria deixou no seu Santuário Mariano (1718)7. Evidenciava‑se a vivência colectiva ligada à Natureza através de práticas de gestos e ritos que, conforme o Culto das Candeias, era indispensável às atitudes culturais dos grupos já rastreadas para épocas medievais 8. Da mesma igreja medieval, já então propositadamente edificada para este culto centrado na imagem da Virgem e ao que exprimia da própria história da comunidade, sabe‑se que foi cenário a episódios no reinado de D. Dinis, do foral de 1297 ao documento que consagrava a doação, para o Bispado de Évora, da terça parte dos rendimentos locais, e que terá sido lavrado «ante a porta» da velha igreja 9. De qualquer modo, escasseiam documentos conhecidos que se relacionem com estes períodos, embora, enquanto objecto de intervenção régia, haja registo nas Visitações de 1534, já do reinado de D. João III, da necessidade de obras na anterior igreja – e que terão sido efectuadas a seguir. Certo é, que também foram desenvolvidos melhoramentos, nomeadamente no reforço do aparato do Castelo, introduzindo‑se a torre sineira com remate em cúpula prismática, ladeada de pináculos, enquanto elemento igualmente dominante no perfil da fortificação, e como forma característica dos programas desenvolvidos pelos Mestres Arrudas, de que se conhecem evidentes paralelos em diversas outras realizações alentejanas10. Se, da leitura dos textos sobreviventes e até um determinado momento histórico, o que parecia importar da referência às obras era sobretudo o significado político e régio, nos textos assinaláveis para os séculos xvii‑xviii, seria, pois, o acento religioso e de celebração o que especialmente se vinha salientar. A velha igreja de Mourão, até certo momento implantada em plena malha de arrabalde que rodeava as muralhas, foi derrubada em 1664, na ocasião do alargamento da fortificação, que se indica como iniciada em 1657 e ainda segundo os planos de do engenheiro Nicolau de Langres, antecedendo modelos depois instituídos pelo Marquês Vauban, e erroneamente tomando o seu nome, pelo qual se introduziram baluartes sobre a área do arrabalde fundacional da Vila. Demoraria duas décadas, até depois de 1681, para que pudesse haver um novo templo condigno às celebrações e à própria expressão de um culto, desde sempre identitário, e que acabou por ser implantado entre torreões da anterior cerca. Cumpre‑se, portanto, o que parece ser evidente nos ciclos correspondentes à afirmação dos aspectos formais da arquitectura portuguesa entre meados do século xvi e o dealbar do século xviii, a que a historiografia concedeu o epíteto de estilo‑chão mas sendo também coincidente com o que se enquadra na conceptualização formal do que igualmente se designa como arquitectura‑programa, trazendo especificidades visuais distintas quanto à adopção atrás referida de elementos clássicos e quanto à redução ao sentido de volume compacto do resultado construído, nos exemplos que se prolongam por Seiscentos e em diversidade local ou regional, conforme a encomenda. Os edifícios, oscilando entre desenvolvido maneirismo, sobretudo filipino, ou então acometendo‑se a uma simplicidade de modelos, tamanho
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Guerreiro 1964, 23‑24.
A Festa das Candeias, comemorando‑se a 2 de Fevereiro, indica a veneração do sentido de renascimento ou de recomeço de ciclos no calendário que regia o quotidiano das aglomerações aldeãs e vilãs das terras interiores, decorre na ocasião do ano em que «os dias começam lentamente a crescer, anunciando a renovação do ciclo vegetativo e renasce também a esperança de ver aparecer a Primavera». No Dia da Sr.ª das Candeias, «prepara‑se também a reorganização da comunidade, mudando os alcaldes e aportelados do concelho (…). Os novos magistrados iniciarão as suas funções com vigor novo, mas os chefes de família devem vigiá‑los atentamente durante os dias de Inverno que ainda continuam, para não perturbarem a vida da comunidade com inovações excessivas» (Mattoso 1985, 437). 8
Biblioteca Pública de Évora, Códice CXXII, fls. 187‑189 (in Guerreiro 1964, 19). 9
10
Guerreiro 1964, 20‑ss.; Espanca 1978, 173‑ss.
Fig. 3 – Vila de Mourão. Rua de S. Bento (lado poente). Janela emoldurada de casa nobre. © Manuel F. S. Patrocínio Fig. 4 – Vila de Mourão. Rua de S. Bento (lado poente). Pano esgrafitado de casa nobre. © Manuel F. S. Patrocínio
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Cf. Horta Correia 1991, Soromenho 1995, Craveiro 2009. 11
Soromenho 2000, 19‑ss.; Soromenho 2005, 42. 12
13
Soromenho 2005, 42‑ss.
14
Soromenho 2005, ibid.
15
Soromenho 2005, 48 – nota.
16
Valla 2009, 223.
e escala, guardam de qualquer modo uma intenção de imponência, reconhecível no seu respectivo desenho de concepção11. Num caso, a imponência está na disposição de elementos como galerias projectadas, arcarias de nível térreo em sentido de cenário com desdobramento de perspectiva, ordens clássicas a que subjaz o parâmetro da harmonia. Noutro caso, não deixa de se manter o primado uniformizador da linha e fachadas encerradas no seu próprio paramento mas subsistindo, do normativo, a eventual medida proporcional e o resquício técnico da projecção formal do capitel em pilares e cunhais. A partir de 1642, com a nomeação de Charles Lassart para Engenheiro‑Mor do Reino, traz‑se um primeiro modelo para as fortificações que, ao longo de sucessivas fases, antes e depois da Paz de 1661, se vão edificar sobretudo nas povoações fronteiriças. Para outros lugares, a investigação tem trazido esclarecimentos quanto às actividades construtivas entre finais do século xvii e inícios do século xviii, nomeadamente quanto a um processo que terá chegado a transformar os próprios espaços urbanos com pontuais projectos de reedificação, sejam ou não correlativos com o programa dos amuralhamentos necessários à Restauração. Precisamente o caso de Viana do Castelo, onde a renovação fortificadora, das mais importantes do sistema defensivo português, decorreu do destacamento de Miguel de Lescole, em finais da década de 1650 e inícios de 1660 para a organização da obra, que volvidos porém trinta anos teve necessidade de rearranjo, e a que correspondeu um projecto de 1683, somente trabalhado a partir de 1691, pontuando‑se aqui a intervenção do engenheiro Manuel Pinto Vilalobos, que concluiu a realização em 171312. Foi nesta mesma data que se sabe ser o momento em que a Igreja Matriz da mesma localidade foi objecto de um pedido de licença, enviado pelo Reverendo António de Araújo, para «reformar a capela‑mor», em que, de novo, houve actuação de Vilalobos13. Interessante é o facto da remodelação da Igreja Matriz de Viana do Castelo ter igualmente desencadeado um arranjo urbano, porque confinava com a muralha medieval e, à época, houve que solicitar igualmente autorização para a respectiva demolição e subsequente necessidade de planeamento construtivo e legislação adequada14. Tais factos indicam o processo progressivamente conducente à transformação urbana que, em directa correlação com as obras dos engenheiros e arquitectos da Restauração, mas também não menos devidas a dinâmicas sociais. Com efeito, ainda em 1665, embora no Porto, Lescole teria proposto que se demolissem «templos e três arrabaldes», por decurso de obras de que era também responsável nessa cidade15. No Alentejo, por sua vez, sabe‑se também que a edificação dos baluartes obrigou também à demolição de casas do arrabalde gótico quando sucedeu a ocasião das obras para a nova fortificação da Vila de Juromenha, cujo perímetro «englobava a estrutura medieval», e sendo que o projecto, sujeito a concurso e com data de 1646, coube a Nicolau de Langres, tendo também participado no programa o malogrado Cosmander,16. O arrabalde de Juromenha correspondia, «como noutras vilas medievais», à «densidade do espaço urbano», que «obrigou a construir casas anexadas aos troços das muralhas» (Valla 2009, 212); no período seiscentista, ao alargar‑se
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o sistema de implementação de baluartes e demais estruturas, como a projecção em hornevaque (ou seja uma estrutura de duplo baluarte) que caracterizou a nova fortificação de Juromenha, desaparecia parte considerável do foco edificado medieval, ainda que os novos volumes fortificados tivesse por função defender o que restava dos velhos focos urbanos17. Na compreensão fundamental deste decurso de transformações que incidiram directamente no rearranjo urbano seiscentista da Vila de Juromenha (que, de resto, havia recebido foral, também de D. Dinis, em 1312), «a definição do perímetro da linha de fortificação era sempre a primeira preocupação do engenheiro militar»; a nova cintura determinava, assim, um «novo limite urbano (…), [e] a localização dos baluartes (…), que se projectavam para fora dessa linha»; a «área militar aumentava em torno da cintura (…), por obras exteriores e pela esplanada, que constituía a área livre ao alcance do mosquete» (Valla 2009, 220). Esta mesma descrição poderia aplicar‑se, na verdade, ao que se pode observar quanto aos resultados da intervenção que veio também a decorrer na Vila de Mourão a partir de 1681, e onde a marca dos baluartes, trincheiras e áreas de espalda que se edificaram depois dessa data tiveram como consequência a destruição do arrabalde envolvente, o qual, de qualquer forma, se conhece pela reprodução que ficou do mesmo no Livro das Fortalezas de Duarte D’Armas, de inícios do século xvi,
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Acrescenta‑se que «o novo sistema de fortificação era ainda composto por um fosso largo, caminho coberto e esplanada que constituiu um terreno inclinado liberto de construções envolvente à cintura» (Valla 2009, 223). 17
De qualquer modo, até data bem avançada, os registos paroquiais de Mourão continuam a manter como lugar da realização de baptizados o templo consagrado a Santa Margarida, sempre indicando‑se «que serve de Matriz». Cf. Arquivo Distrital de Évora, Livro de Baptizados 18
da Paróquia de Mourão (1691‑1702), vvs. fls.
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19
Viterbo 1988, 231‑232.
20
Viterbo 1988, 232.
21
In Viterbo 1988, ibid.
22
Espanca 1978, 173.
Fig. 5 – Vila de Mourão. Praça da República. Igreja de S. Francisco. Detalhe de frontão com cronograma. © Manuel F. S. Patrocínio Fig. 6 – Vila de Mourão. Rua de Benquerer. Ermida dos Remédios. © Manuel F. S. Patrocínio
e onde mesmo se distingue o contorno da presumível primeira igreja matriz, então consagrada a Santa Margarida, de que se conservou o topónimo, e que guardava a citada imagem da Virgem do Tojal18. Foi o engenheiro D. Diogo do Pardo Osório, formado pela cultura construtiva e arquitectónica da Restauração, que se assumiu como responsável pela aplicação de um programa de obras, as quais, chegando à viragem de 1700, definiram o novo contorno urbano da Vila, simultaneamente anunciando outras resoluções estéticas, tanto quanto mantendo elementos da tradição persistente por cem anos. Discípulo e colaborador de Luís Serrão Pimentel, Pardo Osório participou na defesa de Évora, sendo que remontam a 1662‑1663 as informações documentais, compiladas por Sousa Viterbo, que o colocam ao serviço do Governador das Armas do Alentejo, e a 1676 a tença que D. Pedro II, então regente, lhe concedeu pelos serviços prestados, enquanto militar, na recuperação praça eborense19. Anteriormente, de acordo com mais notícias da Chancelaria de D. Afonso VI, a partir de 1659, terá trabalhado nas fortificações de S. Filipe e do Outão (Setúbal), do Porto da Arrábida, do Forte de Sesimbra e de N.ª Sr.ª do Cabo, após o que seguiu para o Alentejo20. Em 1681, mais uma vez assinando‑se como Príncipe, remete D. Pedro II a instrução que envia o engenheiro Pardo Osório para Mourão, em respeito pelo que haviam já reclamado os moradores para que se reedificasse a sua igreja, em indicações que colocam o militar como efectivo autor da traça do novo templo, que as obras da nova fortaleza tinham destruído 21. Citando‑se a referida passagem, «por haver dezassete anos que se derrubou a Igreja Matriz da Vila de Mourão, por assim convir à fortificação e defesa daquela Praça, e a esse respeito padecerem os moradores grandes desconsolações e apertos na administração dos sacramentos e culto divino, tenho ordenado que se reedificasse (…). O Vedor‑Geral, acompanhado do Engenheiro D. Diogo Pardo, hão‑de ir à mesma vila, a fazer o desenho para a Igreja» (Viterbo 1988, 232; Guerreiro 1964, 22). Após 1657, em que, no contexto das Guerras da Restauração, a Vila tinha sido recuperada ao domínio espanhol, na mesma ocasião que Olivença, tinha‑se dado início à reconstrução da fortaleza. Os modelos de baluarte terão seguido a planta riscada por Nicolau de Langres, a quem teria cabido igualmente a respectiva autoria de outros planos de fortificações congéneres. Ocuparam, sobre uma topografia caracterizada pela sua elevação em monte e boa posição estratégica sobre o território, uma distribuição equilibrada e simétrica em torno ao Castelo medieval, o qual se manteve praticamente intacto, mesmo salientando‑se que a obra da nova matriz se veio implementar entre dois dos seus torreões22. Facto é que, em 1664, na sequência deste arranjo, o derrube da igreja, então a escassos metros do perímetro acastelado, referiu‑se evidentemente à própria destruição do arrabalde implantado a sul, tendo‑se criado a nova zona setentrional de esplanada, ou de espalda livre, e que se reconhece ainda até ao actual Largo Governador Furtado de Mendonça e actual Rua de S. José. Abaixo desta linha do desaparecido arrabalde, partem algumas ruas, que, embora assegurem uma dinâmica de projecção que vinha do primeiro foco urbano, têm um recorte muito rectilíneo,
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o qual é sobretudo visível em planta, sendo que, quanto ao terreno, há um declive natural a condicionar diferenciações e o alinhamento dos prédios urbanos acaba por ser algo irregular; caso do que se pode observar dos perfis da R. de S. Bento e R. de Santa Margarida (Fig. 2). Ambas se dirigem, em sentido descendente, seguindo a topografia, para a Praça, mas que também se define em sentido reticular e enquanto foco centralizador, e que veio a ser rodeada de casas nobres, bem como de duas outras igrejas, da Misericórdia e S. Francisco. Além da Matriz e destas igrejas, acrescenta‑se, no centro da Vila de Mourão, a Ermida dos Remédios, já da época de D. João V, ao fundo da Rua de Benquerer, paralela à linha da Praça (Fig. 6). Todas estão construídas segundo modelos setecentistas embora guardando aparência despojada. Algumas podem relacionar‑se com anteriores fundações, que estivessem ou não no lugar actual das referidas igrejas. Assim, em primeiros tempos, o Castelo dos Hospitalários teria tido a sua própria capela, enquanto a primeira paroquial se manteria para a população, inserida no arranjo do primitivo arrabalde 23. Certo é que, no período moderno, surgiriam novas edificações de culto, salientando‑se a contiguidade actual entre as Igrejas de S. Francisco (ou da Capela da Venerável Ordem Terceira de S. Francisco) e Misericórdia. Poderá haver eventualmente correlação com a informação registada no Santuário Mariano, segundo o qual «também existem hoje duas ermidas, que eram da devoção do mesmo antigo povo, e ficam perto uma da outra », sem outra especificação mais precisa24. De qualquer modo, as referidas igrejas são edificações comprovadamente posteriores à data desta notícia (1718)25. A Igreja da Misericórdia, existindo desde 1548, foi dos edifícios que, entre 1704‑1706, na sequência da Guerra de Sucessão de Espanha, que voltou a desencadear escaramuças nas povoações de fronteira, tiveram de ser reconstruídos também depois desta ocasião, ostentando S. Francisco o cronograma de 1740 no seu frontão de portal (Fig. 5)26. Tendo em atenção o legado edificado presente, é que, quanto a uma Vila fundada em períodos medievais e com intervenções de inícios de Quinhentos, verifica‑se terem desaparecido, salvo o Castelo, todos sinais correspondentes a anteriores arquitecturas. É evidente que, desde finais da década de 1650 e sobretudo a partir da reedificação da Matriz (1681), decorreu um processo de reconstrução, decorrente da obra da fortificação moderna e que se reflectiu depois no encargo do templo atribuído a Pardo Osório, prolongando‑se nas fachadas das próprias casas nobres do centro urbano, definindo‑se igualmente a projecção das ruas, acompanhadas de um programa de distribuição de emblemáticos altares públicos, para a celebração da Paixão de Cristo, bem como o desenho da nova Praça. Um elemento distintivo do toscano, cultural e socialmente afim do dórico, privilegiado na edificação moderna portuguesa mas identificando, muito embora, uma intenção de acentuada funcionalidade, é, assim, a moldura de remate em duplo lintel, que vemos surgir nas aberturas das casas nobres que, em torno a 1700, terão sido construídas em torno à Praça mouranense (Figs. 3, 9). O modelo remonta, de qualquer modo, às obras eborenses de finais do século xvi, começando nas que o Mestre Afonso Álvares executou na época do Cardeal D. Henrique: a Igreja de
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Fig. 7 – Vila de Mourão. Rua de Benquerer. Altar das Estações dos Passos do Senhor. © Manuel F. S. Patrocínio
23
Guerreiro 1964, 10‑11.
24
In Guerreiro 1964, 7.
25
Espanca 1978, 178‑ss.
Guerreiro 1964, 32‑ss. Outras capelas e ermidas, além da de N.ª Sr.ª dos Remédios, correspondem a fundações mais distanciadas do centro urbano, caso da Ermida de S. Bento, a sul mas ainda no aro da Vila; Ermidas de S. Sebastião e S. Pedro dos Olivais, a norte e conservando portais trecentistas de arco quebrado e lavra chanfrada; ou o demolido Convento de N.ª Sr.ª do Alcance, a poente. 26
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Fig. 8 – Vila de Mourão. Rua Joaquim José Vasconcelos Gusmão. Altar das Estações dos Passos do Senhor. Detalhe de frontão. © Manuel F. S. Patrocínio
27
Cf. Espanca 1966.
Santo Antão (1577); ou a Igreja do Convento do Calvário (1578), destacando‑se as aberturas com duplo adintelado27. Ou, depois de 1681, rematando pilares de fachada, sendo que é reconhecível, na fachada da Matriz de Mourão, algo de uma esquadria firme que terá sido estabelecida no próprio desenho de Santo Antão de Évora, demarcando‑se pela axialidade dos pilares que unificam as fachadas. Além destes aspectos, assegurou‑se igualmente a colocação de molduras com remate em frontão triangular sobre três das Estações pascais, distribuídas na qualidade de marcos urbanos e directamente recolhidos do tratado serliano pelo novo arranjo de ruas da Vila de Mourão (Figs. 7‑8). Conforme se tratassem de edifícios religiosos ou particulares, assim se definiam alguns elementos de mensagem traduzidos através das formas arquitectónicas, que, antes do mais, apenas realçavam o primado de uma execução técnica, em que idênticos sinais visuais, aplicados porém em prédios de tipologia diferenciada, transmitiam simbologias distintas. As molduras no edifício religioso da Matriz são mais simples embora também mais imponentes; de qualquer modo, na fachada, talvez ainda obra do risco de Pardo Osório, inseriu‑se um nártex reentrante que conduz ao portal, desdobrando, em efeito cénico de arco triunfante exterior, e já num desenho que apelava à estética do Barroca; idêntico recurso, por exemplo o portal da Igreja de Santo Antão de Évora, revelava ao invés a compactação num único plano. Mas também em Évora, com efeito, o arco redondo envolvia, a modo
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serliano, o frontão triangular encimando o portal principal da igreja; manteve‑se, na Matriz de Mourão, o mesmo desenho de arco mas recuando o portal do mesmo templo, sendo que a composição cénica se concebeu pelo desdobramento dos planos, criando o espaço livre que se reservou para o nártex, como também se vê na Matriz de Elvas. Sugestiva é, assim, a permanência do mesmo modelo, contendo igualmente o frontão de modelo triangular, interrompido na empena em que se colocou a imagem, esculpida em pedra, da padroeira com o Menino, quanto a formas de portal cuja primeira aplicação local remontará aos meados da década de 1570, e que ressurge em finais de Seiscentos. Nas casas urbanas, difundiu‑se, por sua vez, a colocação de aberturas com sacada, e encimadas segundo o já referido modelo de remate em duplo adintelado, diversificando‑se, contudo, consoantes os prédios, as formas de consola com papel de apoio. O gosto porém já setecentista fez com que as cornijas se viessem a multiplicar em sucessivos ressaltos, tal como começava a ser habitual para o período, o que, mesmo assim, não contrariava, antes reafirmando, o sentido e o aparato em geral sóbrio da edilícia. Desde logo, o que se representava era a memória da própria função arquitectónica, como modo de evocar princípios, uns referindo‑se ao protagonismo religioso, outros ao social, reflectindo, enfim, a própria organização da sociedade, entre os pilares da fé e da lei, assim convergindo com a cultura da época, entre a Restauração e o Joanino. Elementos urbanos, como as Estações, ou as outras igrejas mouranenses, estavam entregues à gestão e vivência expressiva das confrarias locais. O progresso construtivo está assinalado por elementos cronografados, repartindo por exemplos arquitectónicos, quase todos em redor da actual Praça da República. A saber, a data de «1693», gravada no tímpano do frontão da Estação dos Passos da Rua Machado Santos (antiga Rua Torta); «1712» numa casa nobre da Praça (Fig. 9); «1740», no frontão trabalhado e ornamentado no portal da Igreja de S. Francisco; «1743», no frontão de portal da Igreja da Misericórdia; «1747», num esgrafito sobre a frente de chaminé de outra casa particular da Rua de S. Bento (Fig. 4). Quanto ao que se reconhece, nos elementos formais que completam os exemplos referenciados, e citando‑se John Summerson, estamos perante um modo, em que «não é somente na forma das ordens em si que reside o carácter da arquitectura clássica»; ou seja, será um aspecto que, «na verdade (…), reside muito mais no modo pelo qual as ordens são desenvolvidas»28. O que se designará como modo clássico recorre ao mesmo princípio de ordem e sua implícita conceptualização, a que vem corresponder as formas reconhecíveis de composição exterior do edifício, mesmo que não se aplique ou surja a coluna enquanto elemento estrutural de imponência exterior, salvo em exemplos de arranjo específico. Portanto, o sentido de adorno exprime uma estética urbana, que, mesmo em períodos modernos, se inspirava no modo como as antigas colunas indicavam as ordens arquitectónicas. No clássico moderno, e no que interessa à tradição portuguesa, são os emolduramentos e ombreiras que tomam o papel visual exterior que, outrora, em tempos antigos,
Fig. 9 – Vila de Mourão. Praça da República (lado poente). Janela emoldurada de casa nobre, com cronograma. © Manuel F. S. Patrocínio
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Summerson 1994, 8‑9.
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Fig. 10 – Vila de Mourão. Perfil simplificado da fachada de casa urbana. © Luís Pedro Miranda Rodrigues
cabia à coluna, prevalecendo, pelo menos nas obras alentejanas, a preferência pelo toscano e até períodos avançados. Em confronto com outros exemplos, e considerando ainda a evolução e aplicação das formas arquitectónicas, entre a tradição mais austera de um anterior desenho português e a posterior exuberância dos programas mais avançados, persiste o gosto pelo clássico, diferenciando‑se porém o respectivo modo como tal se veio revelar. Reconhece‑se na Vila de Mourão, o mesmo que se apontou para o resultado da intervenção de Manuel Vilalobos em Viana do Castelo, onde, nomeadamente, no arranjo de fachadas, proliferaram idênticos modelos de janelas com apoio em sacada e desdobramento de duplo adintelado com ressalto das golas de cornija; com efeito, num processo de renovação de linguagens, tanto quanto de transformação urbana em que permaneceu o uso formal e estético do classicismo, referiu‑se Miguel Soromenho a um «sentido de monumentalidade afirmativa» e «dignidade recuperada» (Soromenho 2005, 48). Deste modo, considerando os referidos momentos de transformação, o decurso e efeito das obras de renovação das fortificações seiscentistas traziam arranjos urbanos e um esboço de re‑instauração de modelos, enquanto processo reconstrutivo prenunciando talvez a programática fundacional do século seguinte. Assim o sugerem as marcas edificadas, como as que se observam na Vila de Mourão ou nos exemplos comparáveis, que, por circunstâncias de época, traziam outros cenários para a exibição de formas modernas ainda apoiadas nos mesmos modelos eruditos que vinham da obediência à norma e ao tratado, como ainda na génese vigente no século xvi, persistindo em formas e depuramento técnico até um identificável contexto Proto–Barroco.
Conclusões Em síntese, na sequência da arte da Restauração, os sinais formais indicados para a Vila de Mourão e quanto ao seu arranjo edificado em torno a 1700 enquadram ‑se num âmbito de fomentos urbanos e arranjos que, de acordo com possíveis paralelismos, retomam‑se como objecto de uma intenção de desenho e de uma arte que, distinguindo‑se sobretudo pelo seu carácter funcional ou de utilidade, na recuperação fundamental do conceito vitruviano de utilitas (Vitr. 1.3.2.), acaba por manter em uso a aplicação de formas inspiradas em modelos clássicos e eventualmente ainda participante da almejada recondução à ordem, em que o acabamento arquitectónico proporciona, mesmo que convencionalmente, uma certa imagem talvez correlativa com a afirmação de grupos sociais envolvidos no governo local e na fiscalidade e também com eventuais interesses mercantes ou agrários, e que demarca a cultura de finais de Seiscentos, sendo que ordem é, neste momento histórico, a ordem política da organização do Estado restaurado em que a Coroa continua a assegurar protagonismo.
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Já obras anteriores combinavam a dupla conotação da designação da arte de construir como fortificação, fosse como actividade militar, fosse como civil, e também no século xvii os Mestres que se ocupavam das fortificações militares vieram a ser também responsáveis por outras obras, civis e religiosas, ou então enquadram‑se no seu cruzamento; na viragem para 1700, o caso da intervenção na Vila de Mourão por Pardo Osório (que esteve na Aula de Fortificação estabelecida em 1641), e de Manuel Vilalobos em Viana do Castelo comprovam tal interligação. O que se prologa para as próprias obras civis, no acento do seu aspecto visual, é, pois, alguma da base de rusticidade própria das realizações militares, que tanto mais distingue a época, ocupada que foi com os propósitos defensivos resultantes na renovação das fortificações, em definição de um desenho simples, que demarca volumes e define perfis que não transgridem a conciliação com uma envolvência paisagística, de certo modo evocando directamente o vernáculo (Fig. 10). Tal parece ser, enfim, o que resulta como visualidade característica de uma escola portuguesa de Arquitectura, alicerçada quer na Aula do Paço, quer na Aula de Fortificação seiscentista, resultando em volumes compactos, de desenho que acentua a imponência da linearidade e em cujos acabamentos, sobre esquinas, emolduramentos de aberturas e cymatia, ressurge o recurso a formas do léxico clássico, conducente a um sóbrio mas erudito embelezamento29. A nova Igreja Matriz da Vila de Mourão, tendo‑se iniciado depois de 1681, seria inaugurada com pompa em Agosto de 1692, de acordo com um registo documental contido nos assentos paroquiais 30. Conforme atrás assinalado, e proporcionando dados para uma periodização e a que eventualmente corresponderá a composição do programa edificado local da Vila de Mourão, diversas outras datas ficaram gravadas nos próprios monumentos, sendo de 1693 o cronograma do já referido altar da Estação dos Passos da Rua Machado Santos, e seguindo‑se vários outros anos nas fachadas dos prédios urbanos, também atrás indicados, desta feita ao longo do século xviii. Realçando‑se o carácter excepcional detido por esta concentração de datações inscritas, facto raro noutros centros urbanos, e presumivelmente marcando o término de sucessivas fases construtivas, evidencia‑se uma homogeneidade formal a assinalar para um ciclo local edificações que se prolonga até ca. 1750, destacando‑se o papel dos emolduramentos com tipologia inspirada em aspectos de ordem arquitectónica, aqui fabricados em xisto.
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Vila de Mourão. Perfis simplificados. (edificações da Praça da República, lado sul). © Luís Pedro Miranda Rodrigues
29
Cf. Moreira 1987 e Moreira 1989. Destacando
o papel metodológico da arte do desenho como expressão de ideias conceptuais, e referindo‑se à célebre Aula do Paço da Ribeira, do século xvi, cujos moldes ressurgiriam posteriormente Aula seiscentista fomentada por D. João IV, numa e outra fermentando‑se o saber fortificador do Reino, salientou Eduardo Côrte‑Real, que este ensino, conferindo algum «ainda que provavelmente não formasse verdadeiros arquitectos, introduzia uma consciência estética na elite do poder» (Côrte‑Real 2001, 89). Arquivo Distrital de Évora, Livro de Casados da Paróquia de Mourão (1662‑1739), fl. 44. As celebrações (matrimónios e baptismos) passariam a realizar‑se na nova igreja. 30
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Vila de Mourão. Planta da área urbana envolvente à Praça da República. © Câmara Municipal de Mourão
De qualquer modo, de pleno século xviii, são, noutros lugares, não menos idênticas as soluções de aplicação de emolduramentos de janelas em casas nobres, comportando uma tipologia de semelhantes aberturas com sacada, ladeadas de ombreiras lisas e remate superior com duplo adintelado e ressaltos reentrantes em posição de supercilium, ou como cymatium doricum a que se referia Vitrúvio (Vitr. 4.3.6.). Surge esta tipologia em programas urbanos de Viana do Castelo ou Estremoz (com fabrico em mármore), e também no centro histórico de Moura, também aqui com elementos fabricados em xisto, como se pode observar, nomeadamente, ao longo da Rua Primeiro de Dezembro, ou antiga Rua dos Açougues, definindo, em exemplos que vieram a ser notavelmente conservados, um fácies patrimonial, como cultural e estético, referente às realizações construtivas e em que se reconhece algo dos pressupostos compositivos da tratadística. De uma forma geral, assistia‑se à transferência de modelos, em que as formas concebidas para obras de outro estatuto, como o caso dos templos, eram adaptadas a programas civis, assim distinguindo a localidade. No contexto do anúncio do Barroco, cujos primeiros projectos portugueses se centram igualmente em torno a 1680, as formas presentes nos programas da Vila de Mourão, e que comportam paralelismos em lugares próximos ou com semelhante estatuto territorial, assinalam a coexistência e permanência de aspectos de um outro estilo de desenho, com evidente apelo a repertórios sóbrios e acometidos, mas de assinalável presença local, com sinais de persistência de modo, apontando
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ainda para um modelo de casa urbana que não ultrapassasse a vigência de medidas com que se construía a própria cidade que a envolvia. A coexistência e contraste estabeleciam‑se com a programática de outros propósitos de exuberância, arrojo de escala e de decoração sobrecarregada, que se viria a exprimir em obras régias ou aristocráticas, por sua vez distintivas de outras intervenções.
•
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Resumo Ultrapassado o paradigma do suposto informalismo do urbanismo colonial português, importa estudar as suas fontes metodológicas: as práticas – os procedimentos tradicionais da criação urbana; e as teóricas – os discursos sobre o urbano que, desde sempre, acompanharam as acções sobre o espaço da cidade. Na rica conjuntura do século xviii, quando muitas novas vilas foram criadas no Brasil, a diversidade e mescla destas fontes é evidente. São sobretudo significativas, nesta época, as cartas régias de fundação de vilas cuja fórmula textual se expressa sinteticamente no famoso parágrafo que determina que se deveria conservar sempre a “formosura da vila”. A intenção do artigo vai no sentido de questionar os conceitos e valores urbanos expressos nestas cartas e, muito especialmente, a dita “formosura” implícita e explícita no texto e, consequentemente, nas próprias vilas.
palavras‑chave cartas régias de fundação de vilas brasil século xviii estética urbana
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Abstract Beyond the established concept of a supposedly informal Portuguese colonial urban planning, attention must be drawn to its methodological sources. These are both practical – traditional processes of urban growth – and theoretical – discourses on urban issues that have always accompanied city interventions. The diversity and mixed use of these sources becomes particularly evident against the rich backdrop of the 18th century, when many of these new towns were founded in Brazil. Of particular significance, for this period, are the royal charters issued to establish new towns. Their textual formulation can be synthesized in the well-known paragraph that makes it imperative to always maintain the “beauty of the town”. The purpose of this article is to explore the urban concepts and values expressed in these charters with particular emphasis on the aforementioned concept of “beauty”, implicit and explicit in the text and, consequently, in the towns themselves.
key‑words royal charters for the foundation of towns brazil 18th century urban aesthetics
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Arbitragem Científica Peer Review Carlos Castro Brunetto Professor titular, Departamento de Historia del Arte, Universidad de La Laguna (Espanha) Director de la Sección de Artes Plásticas del Instituto de Estudios Canarios (Espanha)
Data de Submissão Date of Submission Jun. 2011
Data de Aceitação Date of Approval Set. 2011
dos preceitos da beleza e da beleza dos preceitos renata a rau j o Departamento de Artes e Humanidades, UALG Centro de História de Além‑Mar, FCSH/UNL
“Agora, como prometemos fazer, passo aos aspectos de que constam todos os géneros de beleza e de ornamentos, ou melhor dizendo, que dimanam do princípio universal da beleza. É sem dúvida uma pesquisa difícil.” Alberti 2011, 593 1
Vide Barreto 1938; Ferreira 1959; Reis Filho
1968; Santos 1968; Correia 1995; Delson 1997. 2
Entre as linhas de pesquisa a serem desenvol-
vidas interessava‑nos retornar ao texto das cartas para rever as indicações processuais e para questionar as relações possíveis entre o que é dito e o que não é dito no texto e entre o que se mandou fazer e o que se fez, nos casos em que tal ocorreu. Para além de ler o texto explícito e o texto implícito, a intenção era comparar as funções da carta como documento instituidor do núcleo em termos políticos, e/ou como metodologia de criação formal do próprio núcleo. Mas, ainda antes disso, interessava‑nos saber onde e como se produziu o próprio texto padronizado das cartas, quem esteve eventualmente na sua génese e em que circunstâncias foi feito e reutilizado e, sobretudo, de que fontes teóricas terá feito uso. Todos estes aspectos têm sido tratados e se têm revelado promissores.
Seguindo as palavras de Alberti, não é tarefa fácil definir a beleza, nem é esta, de maneira nenhuma, a pretensão deste artigo. Mas, a epígrafe serve‑nos de consolo porque, de certo modo, o mote deste ensaio é procurar entender uma formulação específica de beleza. Aquela que é apresentada nas cartas régias de fundação de vilas no Brasil, em cujo texto se diz que se devia manter em todo o tempo a “formosura da vila”. De que se tratava, esta formosura? O que, concretamente, a definia? As cartas régias de fundação de vilas no Brasil vêm sendo citadas e discutidas por vários autores fundamentais da História do Urbanismo da Expansão Portuguesa1. São documentos cruciais, pode dizer‑se que já razoavelmente conhecidos, mas que não foram ainda suficientemente escalpelizados. Há uma série de perguntas acerca das cartas que continuam em aberto. Porque eu própria me venho fazendo estas perguntas, iniciei há dois anos, com uma equipe de colegas, um projecto de investigação intitulado Mandar fazer cidades: génese ideológica das cartas régias de fundação de novas vilas no Brasil, séculos xvi‑xviii2. Tendo como base a pesquisa em andamento e na impossibilidade de fazer aqui o balanço geral da investigação, trago para este artigo apenas algumas considerações sobre as variações dos textos das cartas e sobre o desenho explícito e implícito
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nos textos. A intenção é, como se disse, questionar o ideal de “formosura da vila” que aparece reincidentemente nos textos e que é, no fundo, a base conceptual sobre a qual se sustenta o discurso das cartas. Importa saber quais os valores que se devia ter em conta para manter a beleza urbana, mas cabe sobretudo perguntar, ainda antes disso, por quê, num texto tão sucinto, foi precisamente o critério da formosura o eleito para definir a síntese do que, acima de tudo, se desejava para as novas vilas que se mandavam fundar.
Tema e Variações São conhecidos os exemplos das cartas de fundação de Vila Boa de Goiás e Icó no Ceará, ambas de 1736; em 1746, as cartas confirmando o processo de elevação à cidade de Mariana e a carta determinando a criação de uma nova vila no Mato Grosso e, em 1747, a carta para a criação da vila de Aracati, no Ceará, que é enviada como modelo para a criação de uma nova vila no Rio Grande de São Pedro. Depois deste conjunto de cartas emitidas entre os anos 30 e 40, conhecemos uma segunda leva que faz uso da mesma fórmula padrão que é retomada na carta régia passada em 1755 para a criação das vilas de São José do Javari e de Borba. Esta carta passou a ser citada, juntamente como o Directório dos Índios, em todas as elevações a vilas que se fizeram na Amazónia, entre 1757 e 1758. E a seguir, quando se determinou que o directório e a elevação dos aldeamentos missionários a vilas fosse aplicado em todas as capitanias do Brasil, a carta emitida para criação das vilas de São José e de Borba era referida (e anexada cópia) em praticamente toda a correspondência que foi enviada aos governadores das capitanias e/ou aos ouvidores gerais 3. Há ainda o conjunto de cartas feitas em 1761 elevando a vila de Mocha à cidade de Oeiras e criando oito vilas no Piauí, referidas por Paulo Tedim Barreto (Barreto 1938). Estes são os exemplos conhecidos e publicados mas há seguramente outros, alguns dos quais já levantados na pesquisa. Importa, antes de tudo, dizer que as cartas são similares, mas não iguais. Cabe ler não apenas os dados que se repetem, mas também as diferenças que em alguns casos são meras variantes de expressões e verbos para dizer o mesmo, mas noutros casos não, e correspondem quer a dados específicos de cada uma das circunstâncias em que se mandou criar a vila, quer a eventuais adaptações da própria metodologia implícita no texto das cartas. Comecemos pelas duas primeiras, do mesmo ano de 1736. A primeira diferença é que uma vai dirigida a um governador (para ele próprio lá ir) e outra vai dirigida a um ouvidor. Na que vai dirigida ao governador de São Paulo diz‑se que deve determinar o sítio mais a propósito para uma vila, mas determina que seja perto de um arraial que já se ache estabelecido (para onde a população deveria mudar‑se). Na que vai dirigia ao ouvidor do Ceará a indicação é mais precisa, diz que se deve fazer a vila em Icó (uma povoação já existente) junto onde se acha a igreja matriz.
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Na Bahia receberam instruções neste sentido não apenas o vice‑rei, em Salvador, assim como os ouvidores das antigas capitanias de Porto Seguro e Ilhéus, que foram transformadas em ouvidorias e incorporadas à capitania da Bahia, onde se fizeram uma série de elevações a vilas e novas fundações, em especial na década de 1760 (Flexor 2006, 161‑212). No Ceará, as elevações e criações urbanas da década de 60, igualmente inseridas na conjuntura da transformação dos aldeamentos missionários, retomam a sequência das cartas anteriormente emitidas para a capitania nos anos 30‑40. Veja‑se para tal o exemplo do auto de fundação da Vila de Montemor (1764), feita na antiga aldeia de Nossa Senhora da Palma do Baturité, também já publicado (Santos, 2001, 54‑57). 3
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Em ambas as cartas diz‑se que o sítio eleito deve ser o que parecer o mais saudável e com provimento de boa água, e no de Goiás acrescenta‑se também a lenha. A seguir, em ambas diz‑se que se devia demarcar o lugar da praça no meio da qual se levante o pelourinho. No caso da vila em Goiás, diz‑se que se devia assinalar área para o edifício da igreja tendo em conta o crescimento dos habitantes. Na vila em Icó, onde a igreja já existia, tal não é referido. Passa‑se, então, à determinação para desenhar as ruas por linhas rectas, com os lotes com quintais. No caso da vila em Icó o texto é mais prolixo, diz que “em primeiro lugar se delineiem e demarquem as ruas em linhas rectas com bastante largura deixando sítio para se edificarem as casas nas mesmas direituras e igualdade com seus quintais competentes de sorte que em todo o tempo se conserve a mesma Largura das Ruas sem que em nenhum caso e como nenhum respeito se possam dar licença para se ocupar nenhuma parte delas” (Ferreira 1959, 382‑384), enquanto na carta de Goiás apenas se diz “façais delinear por linhas rectas a área para as casas com seus quintais” (Ferreira 1959, 362‑363). Quanto à construção das casas de Câmara e das audiências e cadeia, a recomendação é sintética em ambos os casos, dizendo apenas que se devia determinar o sítio para a sua construção na mesma área das casas. Mas há pequenas diferenças logo a seguir: o texto de Icó diz que os moradores deviam edificar as suas casas conforme parecesse a cada um conquanto “fiquem a face das ruas” (Ferreira 1959, 382‑384), desta vez é o de Goiás que é mais prolixo e esclarece que “as casas dos moradores as quais pelo exterior sejam todas no mesmo perfil no exterior; ainda que no interior as fará cada morador a sua eleição; de sorte que em todo o tempo se conserve a mesma formosura da terra, e a mesma Largura das Ruas” (Ferreira 1959, 362‑363). As cartas de 1746 e de 1755, respectivamente para criação de uma vila no Mato Grosso e para a vila de São José do Rio Negro, são bastante similares. Mas, também cabe ver as diferenças. Desde já, o preâmbulo das duas é diverso, referindo em cada caso às condições regionais. Para a vila no Mato Grosso emulam‑se os privilégios da câmara de São Paulo e para os da vila de São José os da câmara de Belém. Quanto às determinações de ordem processual e formal para o desenho da vila, também há pequenas variações. No Mato Grosso, diz‑se que o governador deveria convocar os habitantes e pedir que, entre si, elegessem cinco pessoas capazes para determinarem o sítio da vila. No caso da capitania do Rio Negro, tal não era preciso pois já se indicara antes que a vila deveria ser feita no aldeamento de São José do Javari. As indicações mais formais em ambos os casos dizem que se deveria estabelecer o lugar da praça no meio da qual se levantaria o pelourinho, depois referem à área para a igreja, e a seguir referem às oficinas públicas e às ruas em linha recta onde as casas deveriam ter o mesmo perfil exterior ou a mesma figura uniforme repetindo mais o menos a fórmula de “sorte se conserve a mesma formosura na vila, e nas ruas dela a mesma largura, que se lhes assinar na fundação” (Ferreira 1959, 372‑373).
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O texto da carta enviada ao ouvidor do Piauí, em 1761, segue de perto o da carta de 1755 usando praticamente as mesmas palavras, adaptando apenas os plurais, dado que ali se mandavam fazer várias vilas. Em síntese, o que se pode concluir desta breve comparação? Em primeiro lugar, creio que, embora os textos das cartas possam e devam ser lidos como um formulário razoavelmente padronizado, não são efectivamente um corpo de lei que se repete literalmente. Há um claro sentido de adequação que se adapta quer aos propósitos, quer às condições implícitas em cada caso. Quando há igreja não se a manda fazer, quando já se sabe o lugar da vila não se manda escolher. Mas, apesar dessa maleabilidade implícita há algo que cabe chamar a atenção que é o núcleo duro de considerações que são efectivamente recomendadas nos textos e que parecem concentrar‑se nos seguintes aspectos: O sítio da vila devia ser saudável e ter boa água (e lenha); Devia‑se delinear uma praça e no meio dela levantar‑se um pelourinho; Devia‑se eleger o local para a igreja e para as oficinas públicas (casa de câmara e audiências e cadeia); As ruas deviam ser rectas e a sua largura devia ser mantida no crescimento da vila; As casas deviam ficar à face das ruas e ter os seus respectivos quintais; As casas deviam ter a mesa figura exterior para manter a formosura da vila; Devia‑se deixar logradouro à volta da vila para que ela pudesse crescer; A Câmara devia ter quatro léguas em quadra para seu património; Até seis léguas à volta da vila não se podiam conceder sesmarias maiores que meia légua em quadra para que todos os moradores pudessem ter terrenos de cultivo nas proximidades. Tendo em conta os aspectos indicados, importa ver o que eles representam. A intenção aqui é procurar, nestas considerações sobre o modo de fazer vilas, o que elas de facto dizem, e não dizem, e quais são, eventualmente, as suas bases conceptuais, ideológicas e formais.
Dito e não dito Voltemos às duas primeiras cartas e às suas recomendações iniciais. Tínhamos visto que numa se dizia que vila devia ser feita junto à igreja já existente de Icó, e noutra junto a um arraial em Goiás (mas não no próprio arraial). Apesar destas diferenças, em qualquer dos casos, a indicação a seguir é para se determinar o sítio da praça no meio da qual se deveria levantar o pelourinho. Não há qualquer indicação da forma da praça, nem da sua dimensão. Apenas se sabe que num caso deveria ficar junto à igreja e noutro junto ao arraial. O que, pelo menos no primeiro caso, leva a ponderar que a dita praça em causa não era a da igreja. E no caso da vila de Goiás, que se determina que “se assignale área para o edifício da igreja” (Ferreira 1959, 362‑363), também não diz onde devia ser esta igreja, nem se indica expressamente que seja na praça.
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Segue‑se a determinação de se delinearem por linhas rectas as ruas, ou melhor, na carta de Icó diz‑se que se devia delinear por linhas rectas “a área para as casas com seus quintais” (Ferreira 1959, 382‑384) que é similar ao da carta do Mato Grosso, que se completa com a frase “deixando ruas largas e direitas” (Santos 2001, 65‑68). Esta formulação é interessante, porque afirma quase a proposição de uma forma urbis rectangular, ou pelo menos regular, que se desenharia a priori e dentro dela as ruas. Mas, no caso da carta da vila no Rio Negro, a ordem dos factores e do desenho parece inversa pois se diz “fazendo delinear as casas dos moradores por linha recta, de sorte que fiquem largas e direitas as ruas” (Ferreira 1959, 372‑373). A indicação seguinte nos textos é que se devia designar o lugar para as casas de Câmara e cadeia. Na carta de Goiás diz‑se que todas as oficinas públicas deviam ficar “na área determinada para as casas dos moradores” (Ferreira 1959, 362‑363). Na carta de Icó, diz‑se que depois das ruas demarcadas dever‑se‑ia assinalar o lugar das oficinas públicas para que “na mais área se possam edificar as casas dos moradores” (Ferreira 1959, 382‑384). Na do Mato Grosso, diz‑se que “em primeiro Lugar se determine nesta área das casas, as que se devem fazer para a Câmara, Cadeia, e Casa das Audiências, e mais oficinas públicas”, e só depois, “os oficiais da Câmara, depois de eleitos darão os sítios que se lhe pedirem para casas e quintais nos lugares delineados” (Santos 2001, 65‑68). O que parece prioritário nas recomendações é que o lugar destes edifícios seja seleccionado antes dos outros. Não se diz, em nenhum momento, em qualquer das cartas, onde, precisamente, deviam ser construídos os edifícios públicos, nem se indica a praça como lugar para tal, apenas se diz que deveriam ficar na mesma área das casas dos moradores. Também não se menciona que forma deviam ter. É igualmente omisso se estas oficinas públicas deviam ter, ou não, o mesmo perfil exterior previsto para as outras casas. A referência ao mesmo perfil exterior das casas aparece em todas as cartas menos na de Icó, que apenas declara que cada um podia fazê‑las como quisesse, conquanto as casas ficassem na face da rua. É interessante este aspecto e, a meu ver, indica que, antes mesmo da “igualdade” ou “simetria” na composição das fachadas, o critério básico da estética urbana é o alinhamento das ruas, parecendo verdadeiramente disforme a falta de “cordeamento” das frentes de rua que, a bem da formosura, deveriam manter efectivamente sempre a mesma largura. De todos os modos, não há qualquer indicação formal directa no texto de qual é o tal perfil exterior das casas que se fala. Foi no texto de uma carta régia inédita e ainda não conhecida onde encontramos as referências mais explícitas às considerações formais. Trata‑se da carta régia emitida pelo Conselho Ultramarino, em 30 de Maio de 1753, em resposta ao pedido feito pelos moradores do rio Itapicuru, no Maranhão, para ali se estabelecer uma vila (Araujo 2011). Nesta carta, o rei determinava que o desembargador ouvidor geral do Maranhão se deveria deslocar ao local onde os moradores pretendiam estabelecer a povoa-
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ção e ali: “ordenareis que elejam entre si cinco pessoas da maior capacidade que possam conferir convosco esta matéria e determineis o terreno em que se há de fundar e nele façais demarcar área em quadra bastante para a praça pública em que fiquem os edifícios públicos, como casa de câmara, cadeia e mais oficinas destinadas para o serviço da terra e a porta principal da igreja, podendo ser, (...) e para a formação das ruas se lancem linhas rectas que deverão sair dos lados da praça, com advertência de que as ruas sejam ao menos de quarenta palmos de largura ficando para trás das casas terreno para os quintais delas, deixando disposto que todas as casas na face da rua conservem uniformidade na rectidão das paredes, com o mesmo perfil e as beiras dos telhados no mesmo nível, de sorte que em todo o tempo se conserve a mesma formosura do aspecto e decoro da terra, ainda que a largura da frontaria e profundidade das casas poderão os que as fabricarem fazer como lhes parecer conveniente a cada um” (ANTT 1755). (Fig. 1)
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Fig. 1 – Vila de Itapicuru. Note‑se que o desenho da praça não corresponde ao texto da carta régia. Onde nós tendencialmente imaginaríamos um espaço quadrado, circundado pelos principais edifícios, aqui fez‑se um rectângulo cujo edifício central é a igreja. Tal redunda de certo modo em dois espaços, que são referidos na legenda como praças ou rocios, que é uma indicação condizente com a ambiguidade de ambos, embora se pudesse dizer que o da frente da igreja com a câmara é a praça e outro no fundo da igreja com o curral é o rocio. (ANTT. 1755. Ministério do Reino, maço 601, caixa 704)
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Importa lembrar que Vila Bela da Santíssima Trindade foi fundada em 1752 por D. António Rolim de Moura, o primeiro governador da capitania do Mato Grosso, cumprindo a determinação precisamente da carta régia que determinava a fundação de uma nova vila no Mato Grosso emitida em 1746. (Araujo, 2001b) 4
Note‑se que são especialmente ricas as indicações formais neste documento: a área da praça devia ser em quadra, o que embora pareça implícito, nem sempre está expresso nas cartas; indica‑se neste caso muito claramente que as oficinas públicas deviam ser construídas na praça, assim como a porta principal da igreja deveria estar para ali voltada, se pudesse ser (é significativo este condicional e a ele já voltaremos); as ruas deviam ser rectas, sair da praça e ter no mínimo quarenta palmos, o que também não é normalmente referido e, sobretudo, a indicação preciosa de que os beirais dos telhados deviam ficar todos no mesmo nível, o que é aludido como um imperativo estético, que garantiria o ideal de formosura e decoro da terra. Este aspecto é especialmente interessante. Não só porque acrescenta cada vez mais dados para a compreensão de um ideal estético de arquitectura de programa, que, creio, está na base da concepção urbanística da cultura portuguesa da Idade Moderna. Mas, também porque esta ideia de cidade parece querer fazer‑se de uma única casa, ou pelo menos de grandes casas que corresponderiam a cada um dos quarteirões, anulando, na continuidade das fachadas, as unidades singulares de cada uma das casas privadas, o que se veio a revelar evidente na opção tomada para a reconstrução da baixa em Lisboa. Importa, no entanto, notar que a imagem do urbano da vila do Itapicuru faz‑se a partir de um perfil arquitectónico que implica uma volumetria padronizada com casas de rés‑do‑chão, que naturalmente não é o caso de Lisboa, mas que se podia comparar com as casas térreas de Vila Real de Santo António que seguem expressamente a tipologia dos quartéis (Correia 2001; Araujo 2001a). Mais, há ainda outra informação invulgar no processo de estabelecimento desta vila de Itapicuru. Numa carta posterior enviada ao Marquês de Pombal, o ouvidor diz que na ocasião em que fizera a visita à vila não tinha concluído a tarefa por causa das chuvas, mas que ali voltando uma segunda vez tinha advertido os moradores para logo começarem a construção das suas casas, lembrando‑lhes que não poderiam “ofender a regularidade das linhas”. E acrescenta a sugestão de que se desse preferência aos “mais ricos para as paragens mais públicas para que desta sorte pudesse aformosear‑se a dita povoação em menos tempo e com mais comodidade”(ANTT 1755). Uma vez mais, é a imagem da vila que está em causa. Tendo em conta que se determinava que todas as casas deviam ser iguais, a recomendação para que os mais ricos construíssem nos locais mais centrais é feita para garantir efectivamente que estas áreas se elevassem logo, dotando o conjunto de visibilidade urbana. Fazendo ver‑se a cidade. Numa formulação que não é muito diferente desta, cabe citar o artigo 8.º das posturas da câmara de Vila Bela da Santíssima Trindade, elaboradas em 1753 4, que dizem literalmente: “No que mais devemos cuidar os moradores destas Minas, podendo, deve ser em fabricarem casas sumptuosas na Vila, porque estas não só servem de adorno a seu dono, mas de aumento e formosura à República; além de que são bens de raiz que conservando‑se, se podem conservar, e não o luxo dos vestidos que o tempo consome; pelo que: Acordaram que esta Câmara em tempo nenhum
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desse licença, nem chãos para casas de menor frente que de sessenta palmos, seja a pessoa que for e dali para cima toda a mais que quiserem, porque assim se fará mais extensa e formosa esta Vila” (Rosa et al. 2003, 200). Note‑se que, neste caso, para além da formosura associar‑se directamente à sumptuosidade que se pretende para as casas, esta também se liga à dimensão dos lotes e a extensão da própria vila. Estes dois aspectos permitem fazer algumas considerações. Por um lado, remetem à mesma questão da visibilidade urbana, ainda mais pertinente em Vila Bela do que na vila do Itapicuru, uma vez que se tratava da capital do Mato Grosso e que, situando‑se na fronteira, convinha ser efectivamente visível para comprovar a posse portuguesa da região. Por outro lado, cabe chamar a atenção para a pista que surge neste documento no que diz respeito às dimensões dos lotes e ao processo, que também se infere dos textos e das práticas, de que o século xviii viu crescerem as dimensões padrões dos lotes urbanos 5. Tendo em conta as considerações que vimos fazendo, penso que cabe discutir um pouco não tanto o que é dito, mas sobretudo o que não é dito nas cartas. A sua redacção é de tal modo sintética que se tende a ler o seu conteúdo assumindo implicitamente o que não está lá expressamente dito. Não se fala da forma da praça, mas tendencialmente se a vê quadrada, ou pelo menos quadrangular. Não se fala da forma das casas, mas lá colocamos o perfil mental da casa/quartel térrea com janela, porta, janela. Não se fala da forma dos quintais, mas nós sabemos como os desenhar mentalmente. Parece‑me que todos temos lido as cartas, e inclusive os seus próprios destinatários iniciais, preenchendo os eventuais vazios do texto. No fundo, o próprio texto parece ter sido escrito contando com este procedimento e neste sentido mais se assemelha a um “memorando” no sentido literal da palavra, como apontamento de memória, do que verdadeiramente um texto regulador, ou mesmo metodológico. Diz‑se pouco porque se espera que já se saiba, ou melhor, diz‑se para quem já sabe, para quem é suposto saber, como dado básico da própria formação e competência, ou ainda mais elementar, como dado essencial de uma cultura urbana. Poder‑se‑ia dizer que esta economia de palavras ou de recomendações é uma característica da cultura portuguesa da Idade Moderna que parece meio avessa às prolixidades dos tratados preferindo antes contar com a presunção de conhecimento dos agentes, ou, como diria Luís Serrão Pimentel, que “o engenheiro experto, & de juízo (neste caso os governadores, ouvidores e outros agentes para quem foi dirigida a carta) poderá acomodar as mais particularidades com bom discurso, & consideração. Não trago figura com as disposições das ruas praças e sítios das casas em planta por me parecer se pode escusar, e que sem ella se entende tudo o sobredito” (Pimentel 1680, 325). Mas, mesmo considerando este aspecto, ou precisamente considerando este aspecto, cabe questionar a partir de onde se podia presumir este conhecimento de certo modo generalizado, ou pelo menos esta ideia aparentemente partilhada do que era a formosura que se desejava para as vilas a serem fundadas.
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É ainda necessário desenvolver mais estudos sobre este assunto que pode trazer dados significativos para a compreensão dos processos metodológicos da urbanização do Brasil. Ao que parece, nos séculos iniciais da colonização o lote urbano terá variado entre os 20 e 30 palmos de frente tendo estabilizado de certo modo nesta última medida. No século xviii, embora o lote de 30 palmos pareça ser o mais recorrente, surgem casos em que se utilizam maioritariamente os lotes duplos (60 palmos) e até maiores, como é o caso de Macapá, cujo lote tem 100 palmos de frente. 5
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Um dos aspectos mais interessantes do texto é a viagem pelos vocábulos, a começar pela platea que é usada durante a Idade Média, mas cujo significado inicial é claramente o de uma rua larga e ampla. A autora indica que, na Baixa Idade Média, as palavras fórum, fori, foro, mercatorum e sobretudo azougue, assougue são usadas, mas parece evidente que o que elas denominam é a função de mercado, de trocas comerciais e não o espaço em si ou qualquer tipo de desenho determinado para estes espaços. O termo fórum vai desaparecendo da documentação e o açouge permanece, mas, cada vez mais claramente, associado ao edifício ou área coberta (arcadas ou galerias alpendres) onde se faz a venda da carne e versas, área esta a que se vai associar às casas de câmara, que tinha, via de regra, responsabilidades sobre a venda da carne. 6
A Formosura das vilas Importa dizer que a expressão “formosura da vila” aparece também em vários outros documentos trocados pelos governadores, ouvidores e outros agentes que actuaram na urbanização do Brasil. A par da formosura, outras palavras também se lhe podem associar como nobreza da vila. Em vários casos, os autores são um pouco mais explícitos e esclarecem o que associam a esta nobreza, como é o caso do Morgado de Mateus, governador de São Paulo, que em carta ao juiz de fora de Santos afirma que “uma das coisas que a nações mais cultas costumam ter grande cuidado no tempo presente é a simetria e harmonia dos edifícios que de novo se levantam nas povoações das cidades e vilas, para que da sua disposição não só resulte a comodidade pública, mas também o agrado, com que se fazem mais apetecíveis e hábeis as povoações, conhecendo‑se da boa ordem com que estão dispostas, a policia e cultura dos seus habitantes” (APESP 1766). O texto do Morgado de Mateus faz eco do directório dos índios, que, no parágrafo 74, incita os directores a estabelecer nas respectivas povoações as casas de Câmara e cadeias públicas assim como casas decentes para os índios “sendo evidentemente certo, que para o aumento das povoações, concorre muito a nobreza dos edifícios” (Directório 1758, 32), que por sua vez invoca Alberti. Mas, se a beleza em si dos edifícios é um dado naturalmente desejado, a ênfase dos discursos tende a ser a da valorização da harmonia e simetria do conjunto e, sobretudo, a sua manifestação mais evidente no espaço público. E o espaço privilegiado desta leitura estética é a praça, como liminarmente define o Morgado Mateus “não há terra culta que não tenha uma boa praça” (APESP 1772). A praça enquanto forma desenhada per se e pela arquitectura é um dado moderno na cultura urbana da Península Ibérica. Não o é na Itália, onde o processo é mais precoce, nem em determinadas áreas da França, mas é na Península Ibérica. Na sua tese de doutoramento, Luísa Trindade chama a atenção para o percurso de certo modo singular do conceito de praça que na língua portuguesa procede primeiro da função e só depois é que redundará na leitura e indicação da própria forma6. A partir de quatrocentos, o termo, que sempre designa a função (em vários documentos aparece a expressão “a rua da praça”), vai sendo também utilizado para o espaço em si. O processo é gradual e, por vezes, não é fácil identificar a que refere o termo, mas o que muda significativamente é a nova atitude para com o espaço em si, pedindo o investimento na sua “nobreza”. Este espaço (de mercado, estável, fixo) que pede para ser melhor tratado, traz consigo um poder de atracção fazendo convergir ali uma série de outras funções públicas (a casa da câmara, que passa a ser necessária como edifício (o segredo e a elitização do governo da cidade), assim como os paços dos tabeliães, e a seguir o hospital (misericórdia)). Ainda segundo a autora, “(...) quando no século xii se recorre a platea, quer‑se significar rua larga e não uma praça e quando no século xiv se utiliza praça tal define e caracteriza um espaço de mercado mas não um tipo urbanístico” (Trindade 2009, 716).
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A mudança da praça‑função para a praça‑espaço foi progressiva e não meramente funcional mas também conceptual. A praça moderna como conceito é, essencialmente, simbólica, mas não perde o sentido da valorização intrínseca do lugar de comércio como cerne da urbanidade, onde a gestão da cidade se fez associar, por inerência, com a casa de Câmara, fazendo ali o centro cívico e trazendo a sua função e representação jurídica. É especialmente interessante observarmos que o espaço que é referido nas cartas de fundação aparece completamente eivado da função comercial e totalmente investido da função simbólica (o que reforça a sua modernidade). A única alusão directa que se faz ao espaço da praça é para o pelourinho que deve ser colocado no seu centro. Ela, a praça, o seu vazio, é o espaço por excelência da representação do poder e o pelourinho é a “imagem” desta representação que emerge no meio dela. É por isso que, implicitamente, se vêem os edifícios de representação também associados à praça, embora o texto não seja literal. No caso do edifício da Casa de Câmara e Cadeia, a sua associação directa ao espaço da praça é legítima e de facto esta situação é, como vimos, em vários casos explícita no texto das cartas. Quanto à localização da igreja, é talvez um exagero de idealização imaginá‑las na mesma praça, posto que na prática as estatísticas não nos autorizam a pensar assim, mas, ao contrário, na maior parte dos casos há praças para Câmaras e praças para igrejas e estas, muitas vezes, estão soltas no
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Fig. 2 – Vila Bela da Santíssima Trindade. A legenda do desenho refere à “praça maior” (o que não é muito comum) e nela juntam‑se os edifícios do palácio do governador, a Casa de Câmara, os quartéis e a(s) igreja(s), uma interina e outra que deveria ser a definitiva. Nenhuma das duas foi concluída. (Plano da Capital de Villa Bella do Mato groço situada em 14º 55’ de latitude Meridional e em 318º 33’ de longitude Cont. os da Ilha do Ferro; cujo plano se levantou no anno de 1777 por direcção do Gov. or e Cap. am General daquella Cap. A mais ocidental do Brasil, Luís de Albuqu. d Mello Pr.ª e Cácçeres. Manuscrito. Biblioteca Pública Municipal do Porto pasta 24 (26))
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Fig. 3 – Vila Boa de Goiás. Também em Goiás não se cumpriu estritamente o texto da carta régia de fundação, mas é interessante observar nesta planta da vila a indicação que a praça principal era a do palácio, do qual se mostra a fachada, assim como a das casas que lhe ficavam diante, e que deveriam servir de modelo para regular as mais ruas. (Guimarães, Manuel Ribeiro. Planta de Vila Boa Capital da Capitania geral de Goyas : levantada no ano de 1782, pelo Illmo. e Exmo Snr. Luis da Cunha Menezes, Governador, e Capitão General da mesma Capta. ... / Manoel Ribeiro Guim[ara]es. fes – Escala [ca. 1:5.000]. – [ca.1782]. AHU, Cartografia Manuscrita, Goiás – D. 0877)
meio das ditas “suas” praças. E, muitas vezes, a convivência destes edifícios numa mesma praça gerava conflitos. As posturas de Vila Bela da Santíssima Trindade trazem alguns dados muito interessantes para esta questão, uma vez que abordam quer o ideal de formosura que estamos discutindo, quer os próprios significados das palavras que definem os espaços urbanos e as suas transformações. Ali se diz que: “Por evitar o abuso de muitas terras do Brasil, que estando regularmente a Igreja Matriz na Praça Principal, do Adro dela e grande parte da praça fazem cemitério com disformidade nos altos e baixos com que ficam as covas, que a mesma entrada da Igreja serve de insuportável defeito. Acordaram que a Câmara não consentisse em tempo algum, este erro na formosa praça desta Vila (...)” determinando para tal que os enterros se fizessem em “claustros ou pátios no corpo de toda a obra, aos lados e por detrás” da igreja, mas não na frente, na praça (Rosa et al. 2003, 195). (Fig. 2) Parece evidente que o conflito já se tinha instalado, mas na postura seguinte os oficiais garantem “Que não era a intenção da Câmara tirar à Igreja Matriz o Adro
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que pela constituição e cânones lhe é devido”, mas achavam todavia prudente que quando se terminasse a obra da igreja se demarcasse o Adro e se fizesse um auto da demarcação que ficaria guardado no arquivo da Câmara posto que “há tal reverendo vigário que nenhum escrúpulo faz em fazer toda uma praça Adro da Matriz” (Rosa et al. 2003, 196). É importante notar esta diferença, porque ambas as funções e significados urbanos não se podiam confundir. Se os adros das igrejas se podiam sentir eventualmente como “praças” (e em muitos casos o são), às praças não podiam caber as funções dos adros. As praças não são o espaço que antecede à igreja, nem mesmo à casa de Câmara. As praças são autonomamente um espaço: o espaço de representação da própria urbanidade. Ou pelo menos, aquelas das cartas régias pretendiam ser e, neste sentido, pretendiam também dar a ver o seu ideal de formosura. Ideal, naturalmente, porque na prática, toda uma série de circunstâncias fez com que, em poucas ocasiões, o que é dito nos textos das cartas tenha sido, de facto, feito no terreno. Mas isto é já uma outra questão. (Fig. 3)
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Fontes citadas ANTT. 1755. Ministério do Reino, maço 601, caixa 704. Carta do Desembargador Ouvidor do Maranhão Manuel Sarmento a Sebastião José de Carvalho e Melo, datada de 8 de Agosto de 1755. Em anexo várias cópias de várias cartas e autos relativos às vilas nos rios Itapicuru, Guajaú e Mearim. APESP. 1766. “Outra portaria (Do governador da Capitania de São Paulo D. Luis Antonio de Sousa Botelho Mourão) que levou o mesmo para se não desmancharem as ruas da vila de Santos”. São Paulo, 15 Setembro de 1766. Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo. Volume 65. São Paulo: Departamento de Arquivo do Estado, 1940, 106. APESP. 1772. “Carta do governador da Capitania de São Paulo D. Luis Antonio de Sousa Botelho Mourão para a Câmar da vila de Parnaíba”. São Paulo, 28 Abril de 1772. Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo. Volume 64. São Paulo: Departamento de Arquivo do Estado, 1939, 18‑19.
Referências Bibliográficas ALBERTI, L. Batista. 2011. Da Arte Edificatória, Livro IX, cap. V. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. ARAUJO, Renata M.. 2001a. “Casal Vasco: a cidade, a fronteira e a floresta”. Actas do V Colóquio Luso‑Brasileiro de História da Arte. Faro: UALG‑FCHS.
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ARAUJO, Renata M.. 2001b. A Urbanização do Mato Grosso: Discurso e Método. Diss. Doutoramento. Lisboa: UNL‑FCSH. ARAUJO, Renata M.. 2011. “Ficam portugueses da mesma forma que todos os mais”. VIII Colóquio Luso‑Brasileiro de História da Arte. Belém (comunicação inédita). BARRETO, Paulo T.. 1938. “O Piauí e a sua arquitetura”. Rev. do SPHAN, n.º 02. Rio de Janeiro. CORREIA, J. E. Horta. 1995. “Pragmatismo e Utopismo na criação urbanística de raiz portuguesa no século xviii”. Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas 8: 103‑112. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa. CORREIA, J. E. Horta. 2001. “A Importância da Arquitectura de Programa na História do Urbanismo Português”. Actas do V Colóquio Luso‑Brasileiro de História da Arte. Faro: UALG‑FCHS. DELSON, Roberta Marx. 1997. Novas Vilas para o Brasil‑Colônia: Planejamento Espacial e Social no Século XVIII. Brasília: Edições Alva CIORD. DERNTL, Maria Fernanda. 2010. Método e Arte: criação urbana e organização territorial na capitania de São Paulo, 1765‑1811. Diss. Doutoramento. São Paulo : FAU‑USP. Directório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará, e Maranhão em quanto Sua Majestade não mandar o contrario. 1758. Lisboa: Oficina de Miguel Rodrigues. FERREIRA, M. Rodrigues et al.. 1959. O Urbanismo no Brasil Província. História da Civilização Brasileira 1500‑1822. São Paulo: Biblios. FLEXOR, M. H. Ochi. 2006. “A rede urbana brasileira: meados do século xviii”. Revista da Cátedra Jaime Cortesão 1: 161‑211. São Paulo: Universidade de São Paulo. PIMENTEL, Luís Serrão. 1680. Methodo Lusitanico de Desenhar as Fortificações das Praças Regulares & Irregulares. Lisboa: Antonio Craesbeeck de Mello. REIS FILHO, Nestor Goulart. 1968. Evolução Urbana no Brasil (1500‑1720). São Paulo: Pioneira. REIS FILHO, Nestor Goulart. 2000. Evolução Urbana no Brasil (1500‑1720). 2.º ed. rev. e ampl.. São Paulo : Pini. REIS FILHO, Nestor Goulart. 2001. Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado. ROSA, C. Alberto et al.. 2003. A Terra da Conquista: História de Mato Grosso Colonial. Cuiabá: Editora Adriana. SANTOS, Paulo F.. 1968. “Formação de Cidades no Brasil Colonial”. V Colóquio Internacional de Estudos Luso‑Brasileiros, Actas. Coimbra: Universidade de Coimbra. Vol. V: 7‑116. SANTOS, Paulo F.. 2001. Formação de Cidades no Brasil Colonial, 2.º ed.. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. TRINDADE, Luísa. 2009. Urbanismo na composição de Portugal. Dissertação de Doutoramento. Coimbra: Universidade de Coimbra.
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Resumo Neste artigo procuramos analisar a Mantearia da Casa de Aveiro em 1752. Através do inventário mandado realizar pelo 8.º Duque de Aveiro, logo no seu primeiro ano à frente da casa, permite‑se reflectir sobre a importação de obras de luxo dos grandes centros produtores da Europa para Portugal, ao longo do século xviii: Augsburgo, Roma, Londres e Paris. As obras em prata pertencentes ao Museu Nacional de Arte Antiga, tomadas pela Casa Real na sequência do “processo dos Távoras” em 1759, apenas foram encomendadas após a realização deste inventário. Todavia podemos aferir a grande importância da Mantearia dos Duques de Aveiro, pela importância das obras de aparato, de que destacamos o conjunto de centros de mesa, e pelo coleccionismo de ourivesaria antiga, nomeadamente do período da renascença, que gozou de grande prestígio no Portugal de setecentos.
palavras‑chave mantearia casa de aveiro ourivesaria coleccionismo século xviii frança
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Abstract This paper focuses on the Mantearia (collection of table silverworks) of the House of Aveiro in 1752. The inventory ordered by the 8 th Duque of Aveiro, in his first year as head of the house, gives an insight into the imports by Portugal of luxury goods from Europe’s main production centres – Augsburg, Rome, London and Paris – throughout the 18th century. The 1752 inventory, however, does not include the silverworks currently belonging to the Museu Nacional de Arte Antiga, in Lisbon. Commissioned at a later date, these were subsequently seized by the Royal House as a result of the “Tavoras process” in 1759. The significance of the Mantearia of the Dukes of Aveiro becomes evident in the quality of its pieces d’apparat – including a remarkable set of centrepieces – and in its antique silver collection, particularly of the Renaissance period, which was highly appreciated in 18th century Portugal.
key‑words mantearia house of aveiro silverwoks collecting 18th century france
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Arbitragem Científica Peer Review
Data de Submissão Date of Submission
Teresa Leonor Vale Investigadora, Instituto de História da Arte, Faculdade de Letras / Universidade de Lisboa
Data de Aceitação Date of Approval
Jul. 2011
Jul. 2011
encomenda, uso e coleccionismo de ourivesaria no século xviii: a mantearia da casa de aveiro em 1752 nu n o va ssa l lo e si lva Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa
Para a elaboração deste artigo contei com o generoso apoio de Fátima Vasconcelos, Francisco Amorim e Maria do Rosário Jardim.
Biblioteca da Ajuda 54‑VIII‑53 (209). Citado por Jardim 2002, 139 n.º 82. 1
Um dos conjuntos de obras em prata mais importantes e sumptuosos conhecidos no Portugal do século xviii pertenceu à Casa de Aveiro. Foi completamente disperso em 1759 quando do “processo dos Távoras”, altura em que a Coroa ficou com as suas melhores peças. É hoje conhecido sobretudo pela documentação existente e pelos dois conjuntos excepcionais que se podem admirar no Museu Nacional de Arte Antiga. Neste artigo procuramos divulgar e analisar um documento, ao que cremos nunca publicado: o inventário da Mantearia da Casa de Aveiro, datado de Outubro 17521. Rol que goza de uma particularidade que o torna único e de grande interesse o seu autor, o Mantieiro Joaquim José de Cáceres e Lima, procura sempre que possível identificar a origem das peças, se nacionais ou estrangeiras, se executadas em Lisboa ou em Inglaterra ou na Alemanha. Documenta assim os principais centros de produção internacionais de que as grandes casas senhoriais portuguesas se socorriam para aquisição de obras de luxo. É nossa proposta contribuir para um aprofundar do conhecimento do papel das encomendas portuguesas nas indústrias de luxo de Setecentos estimulando simultaneamente futuros estudos. A importância das obras que se conservam nas colecções nacionais e fundos documentais que se guardam
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nos nossos arquivos asseguram inúmeras pesquisas futuras, numa área que obriga a permanente reflexão entre a produção artística nacional e o contexto europeu. As excepcionais condições económicas do século xviii permitiram à Coroa e principais casas senhoriais adquirir obras de luxo além fronteiras, nos principais mercados europeus. O inventário da Mantearia do Duque de Aveiro é de tal um testemunho ímpar. Para além de referir a origem das peças, revela um conjunto de obras e tipologias que atestam o acompanhamento da grande produção de luxo no século xviii em Portugal, numa crescente complexidade do cerimonial da mesa. A realização deste inventário encontra‑se nas primeiras medidas tomadas pelo novo duque de Aveiro, D. José de Mascarenhas, sete anos depois da morte do 7.º duque, D. Gabriel de Lencastre Ponce de Leon Manrique de Lara Cardenas Giron y Aragon, ocorrida em 1745, que não deixou descendência directa. A disputa surgida entre o marquês de Gouveia, D. José de Mascarenhas, descendente directo do 3.º duque de Aveiro e o sobrinho de D. Gabriel, D. António de Lencastre Ponce de Leon, veio a ser concluída em 1752 com a confirmação, pela Relação de Lisboa, da sucessão de D. José de Mascarenhas. Nesta perspectiva, o rol torna‑se um importante testemunho das pratas utilizadas na Mantearia do seu antecessor. As grandes encomendas francesas que se conhecem hoje são sobretudo obra de D. José de Mascarenhas, mas a importância atribuída à ourivesaria estrangeira no Ducado de D. Gabriel bem o manifesta. Por sua acção terá a Casa de Aveiro realizado as primeiras encomendas significativas aos ourives parisienses, acompanhando neste campo a própria Casa Real.
2
Sousa 1951.
3
Guerra 1952.
4
Sousa 2004, 128‑129.
Fig. 1 – Thomas Germain e François ‑Thomas Germain, centro de mesa, Paris, 1729‑30 e 1757, prata. Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa. (© José Pessoa / DGPC / ADF)
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Fig. 2 – Heinrich Mannelich, cofre ‑relicário de S. João de Brito, Augsburgo, 1694‑98, prata. Museu de São Roque, Lisboa. (© Júlio Marques / Santa Casa da Misericórdia de Lisboa/ Museu de São Roque)
Para o conhecimento das obras de ourivesaria e sumptuária de que os Duques de Aveiro se serviam no século xviii, a fonte mais importante tem sido o inventário do sequestro dos bens, de 1759, conservado no Arquivo do Tribunal de Contas. J. M. Cordeiro de Sousa utilizou‑o para identificar a proveniência do grande centro de mesa executado por François e Thomas Germain, ourives parisienses, pai e filho, que trabalharam para D. João V e D. José, respectivamente2. A edição da transcrição integral do sequestro por Luís Bivar Guerra, permitiu a sua ampla divulgação3. Tão importante trabalho serviu para que, recentemente, Gonçalo Vasconcelos e Sousa, realizasse uma interpretação tipológica do conjunto para o estudo da ourivesaria em Portugal no século xviii. Justificou o autor a riqueza do conjunto devido às “funções de representação e ostentação” das grandes casas nobres do tempo 4.
1. Os grandes centros de produção: Roma, Augsburgo, Londres e Paris
5
Vassallo e Silva 1996, 56‑65.
6
Rau e Nunes 1969, 41.
As encomendas portuguesas de obras de ourivesaria no estrangeiro dirigiram‑se aos centros mais importantes da Europa, onde as oficinas dos ourives atingiram maior celebridade e onde Portugal mantinha regulares relações diplomáticas e comerciais. Até meados do século xviiii contaram‑se sobretudo: Augsburgo, Roma, Londres e Paris.
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A cidade alemã foi indiscutivelmente a mais importante. Não é de estranhar a notável organização da sua corporação de ourives e das redes de distribuição para além fronteiras. Foi nesta cidade que D. Pedro II encomendou, entre 1694 e 1698, à oficina de Heinrich Mannelich um cofre relicário para proteger uma relíquia de S. João de Brito – a primeira obra com a iconografia do futuro santo – que seu filho, D. João V, legou aos jesuítas de S. Roque 5. A importância atribuída à origem da peça é tal, que se encontra expressamente referida no testamento do monarca para além do seu preço astronómico para a altura “hum conto, e sete mil, seiscentos e quarenta reis”6. Este ourives é, igualmente, o autor de uma bela salva oval que se guarda no tesouro da Sé de Lisboa, atestando o enorme prestígio dos prateiros de Augsburgo junto das elites nacionais. Não será de estranhar tratar‑se de uma oferta régia. A documentação elucida‑nos da chegada de outras obras provenientes da Alemanha para a aristocracia portuguesa. Quando do casamento, em 1728, da Condessa de Castelo Melhor, no dote atribuído por seus pais, os Condes de Vila Verde, contava ‑se um toucador constituído por variadas peças em prata, cuja avaliação foi feita pelo ourives lisboeta Tomás Correia7. As oficinas de Roma, centro do Cristianismo, serviram desde muito cedo para fornecer prelados e diplomatas portugueses. Isto bem antes das encomendas maciças de D. João V, que iriam alterar profundamente a produção nacional. Das oficinas de Pietro Paolo Pieri provém um conjunto de pratos para mesa, de perfil quadrangular, com as armas de Fr. João da Cruz, 2.º arcebispo de Miranda. Foram executados em Roma, em 1709 8. Ainda de 1735, data um serviço em prata com mais de 277 libras de peso para o Conde das Galveias, o que contrasta com a ideia corrente de que a Roma apenas se adquiririam alfaias litúrgicas9. Já D. Luís de Sousa, igualmente cliente das oficinas de Augsburgo, quando residiu em Roma não deixou de aí encomendar diversas obras algumas das quais chegando aos nossos dias10. Já após a chegada da baixela francesa por D. João V, na recepção
Biblioteca Nacional de Portugal – Reservados, cx. 31. n.º 10, fl. 2. 7
O conjunto encontra‑se dividido entre o Museu Nacional de Arte Antiga, Museu Nacional Soares dos Reis e o Museu Abade de Baçal. 8
9
Biblioteca da Ajuda, 54‑XIII‑14 (67)
Como é o caso do notável relicário do Santo Lenho em prata e bronze dourado. Conf. Uma família de colecionadores: Poder e cultura, 2001, cat. 48; Soromenho 2001, 15‑41. 10
Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, MNE. 148 11
Oman 1968; Exposição de Arte Decorativa Inglesa 1958, Lisboa: Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, 1958; Hartop 2009. 12
Fig. 3 – Thomas Germain e François ‑Thomas Germain, pormenor do centro de mesa, Paris, 1729‑30 e 1757, prata. Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa. (© José Pessoa / DGPC / ADF)
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13
Oman 1968, cat 49; Hartop 2009, 20‑21.
14
Hartop 2009, 16.
O Portugal de D. João V visto por três forasteiros 1983, 267‑268. 15
The Weekly Journal, London, 23 July 1724 cit. Delaforce 1997, 39. 16
17
Vassallo e Silva 2009, 305‑320.
Fig. 4 – Ambroise‑Nicolas Cossinet, par de estatuetas, Paris, 1757‑58, prata. Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa. (© José Pessoa / DGPC / ADF)
em 1755 ao embaixador de França, o Conde de Bachi, destacava‑se no Bufete “dous exelentes vazos com as suas cubertas de obras de Roma com os fundos dourados e os altos a figura de meyo relevo delicadissimamente levantado”11. Esta descrição sugere que as obras executadas pelos ourives romanos seriam celebradas pelo seu carácter escultórico. A produção inglesa é curiosamente das menos conhecidas com a sua relação a Portugal, mesmo que tenha originado de tempos a tempos algum interesse12. Bem antes da assinatura do tratado de Methuen e a crescente influência da colónia britânica no Norte de Portugal que as obras de ourives londrinos chegavam ao nosso país. No sentido oposto, obras nacionais chegavam a Inglaterra já no século xvi com as “Portygale cups”, porventura as obras ornamentadas com os frutos do medronheiro de que se conhecem, pelo menos, quatro taças cobertas com brasões de armas ingleses13. É datável do século xvii, um conjunto excepcional de gomil e lavanda pertencente ao Tesouro da Sé de Lisboa, provavelmente uma oferta diplomática do Rei James I, tal como foi recentemente identificado14. Para a primeira metade do século xviii, a obra mais célebre de proveniência inglesa será a banheira que D. João V mandou executar ao célebre ourives londrino de origem huguenote, Paul Crespin. Segundo o testemunho de César de Saussure que visitou Portugal em 1730, a caminho de Constantinopla, tratava‑se de uma banheira em prata branca com o interior dourado, pesando 3 580 onças. Apresentava um complexo desenho sendo sustentada por três golfinhos que serviam de pés. Adornavam‑na baixos relevos como os grupos de Diana e Actéon e de Perseu e Andrómeda. Na parte mais larga da banheira elevava‑se Neptuno com o tridente, o que recorda as montagens em prata dos nautilos do Renascimento, com o deus dos oceanos dominando a composição. Dentro da banheira surgiam ainda três sereias, certamente em meio relevo, que se debruçavam sobre o rebordo. Quando a obra foi concluída, e antes de despachada para Lisboa, a oficina de Crespin recebeu a visita de diversos membros da corte que foram admirar esta extravagante oferta de um monarca para uma religiosa portuguesa15. Crespin apresentou ‑a “wich can scarcely be match’d in all Europe” ao próprio monarca britânico no Palácio de Kensington16. Já a produção francesa é a mais recentemente admirada entre nós. Quando na década de 1720 a primeira encomenda de uma nova baixela para D. João V, ainda se hesitava entre Augsburgo ou Paris. Contra o conselho do Conde de Tarouca Francisco Mendes de Góis, o agente da Casa Real em Paris, confia a obra ao ourives de Luís XV, Thomas Germain e marca doravante as relações artísticas entre Portugal e a França. Possuímos hoje um quadro bastante credível das encomendas da Casa Real portuguesa ao estrangeiro, sobretudo Paris, no século xviii, nomeadamente no caso de obras de ourivesaria, jóias e gravuras. Contudo, trata‑se apenas de uma parcela de um universo bem maior em que os têxteis foram sem dúvida os mais importantes17.
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Relativamente às casas senhoriais o quadro não seria muito diferente. Torna‑se, todavia, fundamental aprofundar a questão relativa aos agentes que faziam a ligação entre os encomendadores e os executantes, a circulação de modelos, e as vias de desenvolvimento do gosto. A encomenda de uma obra é, antes de mais, a manifestação de uma determinada opção estética. Algo muito mais profundo do que pode parecer à primeira vista como se se tratasse de um simples enriquecimento ornamental de uma casa. Todavia, o processo não seria muito diferente do da Casa Real, tendo os fidalgos portugueses, com grande probabilidade, os mesmos agentes. Quando Francisco Mendes de Gois negoceia em Paris as encomendas de D. João V, um universo que vai desde os livros, tecidos, mobiliário, jóias e naturalmente a famosa baixela em prata, igualmente atende os pedidos da aristocracia ou dos altos funcionários18. Para um caso espectacular, referiremos a encomenda e execução de duas berlindas encomendadas pela Condessa da Calheta, em 173919. O 8.º Duque de Aveiro tinha em Paris um agente para as suas encomendas. O Senhor de Lima, que se encarregou da execução de diversas obras, nomeadamente as dezasseis figuras em prata de Cossinet que hoje se expõem no Museu Nacional de Arte Antiga. Segundo um documento pertencente aos Arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Paris, e divulgado por Germain Bapst, o ourives Godin escrevia em 1757 ao embaixador D. António de Saldanha dando conta das execução das peças e solicitando o seu apoio na obtenção da liquidação total da encomenda. Para além das figuras de mesa a encomenda consistia ainda em seis pares de candelabros e seis pares de castiçais de cinco lumes cada20. Esta carta é bem esclarecedora do processo da encomenda. O ourives Edme ‑François Godin apresentou ao agente do Duque em Paris os modelos em cera para duas figuras, do conjunto final “représentant huit nations différentes par hommes et femmes” para além de uma girandola. Estas, peças ainda em cera, seguiram os modelos previamente acordados. Tendo a aprovação do cliente, foi apresentado o peso, modo e tempo de execução das obras. Tudo seria pago de uma só vez contra a entrega das peças, o que não veio a acontecer e que originou o pedido junto do diplomata português. Embora a encomenda tivesse sido confiada a Godin não foi este que executou as obras, servindo como intermediário. Como habitualmente, foi uma tarefa distribuída em diversas oficinas. As figuras couberam a um dos mais conceituados ourives da época, Ambroise‑Nicolas Cossinet, cujo nome nunca é referido na missiva. Já os castiçais poderão corresponder, tal como sugeriu Luís Keil, ao conjunto de candelabros por Guillaume‑Alexis Jacob e as serpentinas a Simon Levêquê ourives que trabalharam com Coussinet, sendo Levêquê seu cunhado21. Estes candelabros e serpentinas, as únicas que nas colecções nacionais não provêm da oficina do ourives François‑Thomas Germain, encontram‑se divididas entre o Palácio Nacional da Ajuda e o Museu Nacional de Arte Antiga 22.
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Nomeadamente o Secretário de D. João V, Alexandre de Gusmão. 18
19
ANTT– MNE, Cx 1, M1.
20
Bapst 1892, 19‑21.
Exposição de Arte Francesa: especialmente do século xviii, 1934, 79‑80. 21
22
Orey 1991, 195 e 211.
Fig. 5 – Simon Levêquê e Guillaume ‑Alexis Jacob, castiçal com serpentina de cinco lumes, Paris, 1757‑58, prata. Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa. (© Luís Pavão / DGPC / ADF)
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Mira 2009, 173‑177.
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Bapst 1889, 25‑26.
25
Guerra 1952, 44.
2. O inventário da Casa de Aveiro É longínqua a associação da Casa de Aveiro às oficinas de joalheiros e ourives portugueses e estrangeiros. Para não recuarmos demasiado, de tal testemunham as jóias que ofereceram ao santuário de Nossa Senhora de Guadalupe. A 6.ª duquesa de Aveiro, D. Maria Guadalupe de Lancastre, foi especialmente generosa em oferecer riquíssimas jóias e dinheiro para o santuário de que era especialmente devota. Nos cuidados registos conservados em Guadalupe destaca‑se a descrição acompanhada do desenho de um ceptro em ouro esmaltado, ofertado para a imagem da Virgem, com pedras preciosas e a presença das armas de Portugal. Trata‑se, sem dúvida, de uma confusão do inventariante em Guadalupe com as armas Ducais, a dos Lencastre, e as do reino. Já antes, no decorrer da peregrinação ao Santuário, em 1661, o 4.º duque de Aveiro, D. Raimundo de Lencastre, e sua mulher D. Ana Manrique de Lara ofereceram um “cifra” com as letras esmaltadas debaixo da coroa real, executada em ouro e 163 diamantes 23. Trata‑se significativamente do ano em que os Duques passaram a viver em Castela, pelo que a oferta desta jóia poderá estar associada ao pedido de protecção da Virgem de Guadalupe. Nas obras mais antigas pertencentes aos Duques de Aveiro que terão chegado aos nossos dias, encontramos um par de jardineiras que figuraram na colecção do Marquês da Foz, segundo o catálogo da autoria de Germain Bapst, editado em 188924. Trata‑se, na realidade, de duas terrinas com prato, mas de cujas tampas se perdeu o rasto. O brasão de armas dos duques de Aveiro apresenta‑se em relevo no bojo das terrinas e ainda gravadas ao centro dos pratos. Segundo a leitura de Germain Bapst, possuem marcas do ourives parisiense Pierre‑Étienne Buron e foram executadas em 1745, ano da morte do duque D. Gabriel. Infelizmente, desconhece‑se o paradeiro actual destas obras que, pela representação fotográfica, atestam um notável desenho, sobretudo nos pratos. São descritas no inventário que agora publicamos com o número 15 e no inventário do sequestro com os números 106 e 107: “N.º 106 – E assim mais hüa Terrina com a caixa n.º I ovada de coatro pés e azas fixas tem nas fassies alem das amas assima ditas de que uzava o secrestado vários molhos de espigas de trigo e dentro da sua tigella a tampa tem em sima hua flor hum ramo de Aypo e outro de Ervilhas e hum molho de espargos e duas lagostinhas sobre gomos de Rebacho e foscos e seu prato angriado Lavrado de Roda emoldurado e por dentro de gomos como a tampa e armas ditas no meyo sua colher de Comxa de marisco e cabo todo de filetes por forma de hum Tronco furado no meyo com folhagens peza tudo sincoenta e outo Marcos hua onça e hua outava” 25. O inventário, com 11 fólios, consiste em 117 entradas correspondendo a 916 peças. Na sua maioria em prata, sendo algumas poucas em metal prateado ou mesmo igualmente em bronze. Inicia‑se com obras em prata branca (itens 1 a 94) : luminária, sobretudo castiçais, seguindo‑se terrinas, pratos de servir, pratos de mesa, peças diversas de forma, bules e açucareiros, mostardeiras, saleiros, talheres, cafeteiras e centros de mesa.
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Fig. 6 – Pierre‑Étienne Buron, par de terrinas, Paris, 1745, prata. Localização desconhecida. (Reprodução de Germain Bapst, Catalogue raisonné des pièces d’orfèverie française composant la collection du Marquis da Foz)
Fig. 7 – Pierre‑Étienne Buron, bandeja para terrina, Paris, 1745, prata. Localização desconhecida. (Reprodução Germain Bapst, Catalogue raisonné des pièces d’orfèverie française composant la collection du Marquis da Foz)
Em prata dourada (itens 95 a 114) encontramos centros de mesa, pratos de servir e comer, saladeiras, faqueiros e ainda um paliteiro que “parece feyto fora de Reyno”. São ainda descritos pratos e correspondentes tesouras de espevitar, além de bacias da barba e conjuntos de jarro e lavanda. No final do documento, duas entradas referem obras em metal prateado: serpentinas com seis e quatro lumes e um centro de mesa. Um dos factores mais interessantes, imediatamente apreendido no documento, é o facto de cerca de metade das obras terem sido executadas fora do Reino. Isto é, a Casa de Aveiro encontrara nas oficinas de ourives estrangeiros os seus principais fornecedores. Porventura, a produção nacional, sobretudo numa época de grandes alterações do gosto, não lhe despertaria grande interesse. Os Duques não se reveriam nas obras dos ourives portugueses, que não corresponderiam ao grau de novidade que procuravam. Mas não só. Para o caso da ourivesaria francesa, esta atingiu no século xviii, no período rocaille através de inovações tecnológicas, uma qualidade de execução nunca antes vista, onde se recorreu à técnica da cera perdida possibilitando a realização de formas complexas como que ultrapassando a própria superfície do metal. Já bem dentro do século, em 1739, Alexandre de Gusmão escrevia de Lisboa para Francisco Mendes de Gois as suas dificuldades em encontrar boas peças de ourivesaria, comparando com o que sucedia na capital francesa: “E suposto quem busca o preciso não atende á delicadeza dos feitios, contudo não me acomodo muito aos dos nossos obreiros […] é caso raro achar aqui cousa capaz, o que em Paris é mui comum”26. Dada a possibilidade de publicar todo o inventário em anexo torna‑se escusada uma análise completa das obras, pelo que nos debruçaremos naquelas que, no nosso entender, são as mais representativas. Um elemento que se impõe no inventário é o considerável número de centros de mesa, cinco no total. Estes em prata, prata dourada, bronze dourado e metal prateado, correspondem à importância das refeições em que eram utilizados27.
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Gusmão 1981, 87.
Para a evolução dos centros de mesa, em França no século xvii, conf. Mabille 1980, 62‑73. 27
Fig. 8 – Jean‑Baptiste Oudry, gravura das fábulas de La Fontaine: O rato do campo e o rato da cidade, Paris, 1755.
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Para a distribuição dos diversos elementos de um conjunto sobre a mesa conf. Monteiro 2002, 38‑91. 28
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Guerra 1952, 41
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Guerra 1952, 41 n.º 3.
Nomeadamente no Museu Nacional de Estocolmo. Ilus in Gruber 1982, 215 ilus. 162. 31
Hoje no Getty Museum, Los Angeles, inv. 82.DG.12. 32
33
Perrin 1993, 97‑98.
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Guerra 1952, 44, n.º 106.
Conf. Royal French Silver: The property of George Ortiz, Sotheby’s, New York, Novembre 13, 1996, cat. 3. 35
O mais importante, n.º 90 do inventário, corresponde a um “sobretudo de meyo de meza” constituído por cinquenta peças, incluindo os galheteiros em cristal, com montagens em prata sendo ornamentado com pequenas esculturas, máscaras, e suportado por quatro leões. Fora realizado no estrangeiro, “prata de fora do Reino” provavelmente França como veremos. Era guardado na sua caixa de origem. Já “outro sobretudo rico”, o segundo em importância, com o n. 91 do rol, era constituído por catorze peças decorado com carrancas, tendo na tampa duas figuras de corpo inteiro. Apresentava ainda dois saleiros com os interiores em vidro como habitual, dado que o sal corrói a prata. Tal como o anterior foi executado no estrangeiro. A descrição do inventário do sequestro de 1759 permite‑nos conhecer melhor a importância destas obras, sobretudo da primeira. A peça principal era uma terrina com os pés em forma de cabeça de leão e os extremos com cabeças de javali. A tampa era ornamentada com figuras de leões, dentro do gosto escultórico da época. Possuía, ainda, açucareiro de idêntica ornamentação, para além do pimenteiro e do saleiro. A montagem em prata das galhetas em cristal era formada por serpentes. Já os quatro castiçais que formavam o conjunto, apresentavam “Arvorados nas coartellas”. Possuía ainda pratos que se dispunham de modo mais ou menos geométrico sobre a mesa28. Nas suas obras mais pequenas para além de duas pequenas colheres para mostarda, possuía ainda uma colher para geleia29. Na venda de 1759 foi adquirido pelo cônsul holandês Daniel Gildemeester e, desde então, o seu paradeiro encontra‑se desconhecido30. A descrição das peças, com o seu carácter escultórico e as cabeças de javali nos extremos, remete‑nos para a produção francesa da época, sobretudo das oficinas de Thomas Germain. A utilização do motivo de cabeças de javali foi comum na obra do ourives de D. João V, tendo mesmo sido representado em diversas pinturas de François Desportes, que utilizou a produção de Germain como modelo em várias composições e estudos 31. Das obras que chegaram aos nossos dias saliente‑se, dada a sua ligação com Portugal, o par de terrinas com as armas dos Melo e Castro, executadas na oficina de Thomas Germain, em 1726‑28 32. O embaixador português em Paris adquiriu‑as em 1764, tendo Germain substituído as armas do seu primeiro proprietário, como comum na época. Infelizmente, perderam ‑se as tampas que sabemos terem sido verdadeiras naturezas‑mortas formadas por pássaros, crustáceos e camarões. A pega da tampa era constituída por uma alcachofra numa das terrinas e por uma couve‑flor na outra 33. Também desaparecidas se encontram as tampas das duas terrinas da antiga colecção Foz, provenientes da Casa de Aveiro e anteriormente referidas. Segundo o inventário de 1759, seriam decoradas ao gosto naturalista da época com uma couve flor, um ramo de aipos e outro de ervilhas para além de dois lagostins 34. Este universo ornamental aproxima‑se muito do das tampas da terrina executada por Thomas Germain em 1733‑34 e mais tarde integrada no serviço Penthièvre‑Orléans 35. Teria sido este centro de mesa das primeiras encomendas da Casa de Aveiro, neste caso pelo 7.º duque D. Gabriel, a Thomas Germain? Para além destas peças, existia um outro centro de dezasseis peças em prata dourada “todo lavrado feyto em Alemanha”. O facto de ser referida explicitamente a
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origem da peça sugere que se tratou de uma encomenda recente, do conhecimento do vedor da Casa de Aveiro. Aliás, o mesmo podemos dizer de todas as obras cuja origem é claramente discriminada. Significativamente, todas as obras descritas como mais elaboradas são atribuídas a oficinas estrangeiras. O conjunto de luminárias, sobretudo castiçais, revela tanto a importância da iluminação dos interiores como a das mesas. Cinquenta e cinco castiçais eram em prata, enquanto catorze em bronze dourado estes com “suas arandellas soltas, que lhe servem de aparadores da cera”. Esta discriminação também pode sugerir uma novidade em Portugal, no uso das arandelas. As necessidades da mesa justificam o conjunto de maiores dimensões, o dos pratos. Contabilizam‑se duzentos e quarenta e cinco em prata branca e prata dourada. Contam‑se desde os pratos “de guardanapo” que marcavam cada conviva e acompanhavam grande parte da refeição, aos pratos grandes de servir e saladeiras. Vinte e nove pratos de pé, as salvas, são igualmente registadas entre os n.os 30 a 42 do inventário. Serviam sobretudo para apresentar as bebidas. Destaca‑se, todavia, um conjunto de cinco de vários tamanhos, com o elemento comum de ser “tudo lavrado de figuras chamada prata de Bastiões feyta no Reino”. Esta designação, em desuso, sugere a referência a obras góticas ou renascentistas, integradas em salvas com pés e rebordos setecentistas. De tal, é notável exemplo o conjunto pertencente ao Palácio Nacional da Ajuda, proveniente de uma mesma colecção do século xviii, já que todas as montagens associadas às salvas antigas apresentam a punção do ourives de D. João V, António Martins de Almeida e as armas dos Sás. Tal sugestão de nos encontrarmos perante um conjunto que integra obras mais recuadas confirma‑se nas descrições do sequestro de 1759, nomeadamente nos items 226 a 231. Tudo salvas lavradas de “bastioens” surgindo motivos como “feguras a cavalo”, “h˜ua tarja com hum letreiro” ou “figuras levantadas no meio”36. O conjunto de salvas “de Bastioens” da Casa de Aveiro foi arrematado por um único comprador Francisco Joseph Brandão, pelo que não foi dispersado na ocasião da hasta pública. Refira‑se que o século xviii regista um especial apreço pelo coleccionismo de obras de ourivesaria portuguesa antiga, nomadamente salvas de aparato historiadas, pelo que a Casa de Aveiro não foi excepção. Nas colecções do Palácio Nacional da Ajuda podemos cotejar o brasão de armas de outros proprietários como o da Casa Real Portuguesa, o dos Sás, utilizada mais tarde pelos marqueses de Fontes e Abrantes, o dos condes do Prado e Marqueses de Minas, o da Casa Cadaval, ou o de prelados como D. Gaspar de Bragança, um dos “Meninos da Palhavã” 37. Muitas destas peças foram conservadas pelos descendentes dos seus proprietários originais, porventura como sinal da sua antiguidade. Um exemplo mais remoto é o da salva com gomil executados no período manuelino e que possuem as armas, colocadas posteriormente, de D. Frei Álvaro de São Boaventura, bispo‑conde de Coimbra entre 1672‑1683. Hoje no Museu Nacional Machado de Castro38. Ainda no inventário dos bens do Conde de Vila Nova, D. Luís de Lencastre, de 1704 encontramos um considerável grupo de salvas com pé alto lavradas de bastiães 39.
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Guerra 1952, 62.
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Tesouros reais 1992, cat. n.º 327‑340.
Museu Nacional Machado de Castro, inv. 6092 e 6092A. 38
Sousa, 1956, pp. 24‑26. Refira‑se ser muito significativo neste inventário registar a ausência de identificação de obras executadas no estrangeiro. Com excepção de “obra do Norte” (p. 24) ou “obra da índia” (p. 29). 39
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3. Conclusão Fig. 9 – Centro de Mesa, Paris, c. 1690, bronze dourado. Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa.
A divulgação do inventário da Mantearia dos Duques de Aveiro, em 1752, permite conhecer um conjunto de obras em prata, na sua maioria com objectivos sumptuários, antecedendo as grandes encomendas realizadas em Paris pelo 8.º Duque, D. José de Mascarenhas. Obras que reverteriam para a Casa Real após o processo em que foi supliciado e todos os seus bens sequestrados. Este inventário revela uma importância decisiva de obras executadas em oficinas estrangeiras o que nos demonstra uma grande internacionalização dos fornecedores por parte das principais casas senhoriais, em meados do século xviii. Facto que revela a existência de redes de agentes muito activas e uma preocupação de actualização por parte das elites portuguesas. Por outro lado, para além do óbvio testemunho da divulgação do consumo de bebidas exóticas, como o café e o chá, patenteia a preocupação da conservação de obras de antigas oficinas de ourives, protegidas em obras mais modernas.
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Fontes Manuscritas Arquivo Nacional da Torre do Tombo, MNE Cx 1, M1. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, MNE L.º 148 Biblioteca da Ajuda, 54‑VIII‑53 (209). Biblioteca Nacional de Portugal, Reservados, cx. 31, n.º 10, fl. 2
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Apêndice documental A Mantearia do Duque de Aveiro em 1752 Vedor de minha Caza numere e rubrique este Livro, que ha de servir para nelle se lançar, por hum official de minha secretaria todas as pessas de prata, e mais couzas, pertencentes à Mantearia, por Inventario, que hade asignar o Mantieyro: Lisboa 30 de Outubro de 1752 a) Duque de Aveiro (fl1) Rellação da prata do Serviço da casa e Mantearia do Illustrissimo e Exmo Senhor Marques Mordomo Mor Dom José Mascarenhas e Lencastre, meu Senhor, e do Estado, e caza de Aveyro, de que se acha entregue Joaquim Jozé de Cacerez e Lima, Mantieyro do Mesmo Senhor. 1 Quatro castiçaes redondos gomados com suas serpentinas de trez lumes com suas arandelas, e canos redondos, e gomados, feytas nesta Cidade de Lisboa, e ao parecer ser pratta da ley do Reyno. 2 Quatro castiçaes de Bojo, gomados grossos com suas serpentinas de dous lumes com suas figuras, que pegão nas quartellas das dittaz serpentinas. Parece feytas nesta Cidade, e prata da Ley.
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3 Dez castiçaes todos lavrados de figura triangular com suas serpentinas de quatro lumes com quartellas, arandelas, e canos tudo lavrado - feytas nesta cidade, e pratta da Ley (fl 1v) 4 Seis castiçais de figura quadrada lavrados com suas serpentinas de quatro lumes com suas arandelas, e canos tudo lavrado e polido feytas em Inglaterra pratta de onze dinheyros. 5 Quatro castiçais de figura redondo com suas angras ou clausteado com suas serpentinas de trez lumes: as arandellas com seu lavor, feytas de Bronze dourado, e os pez polla parte de dentro prateado. 6 Quatro castiçaes com pez outavados; de coluna triangular com suas serpentinas de trez lumes com arandellas e canos todo laurado feytas de Bronze Dourado. 7 Quatro castiçaes feytos de chapa pez quadrados com seus festões; a coluna tambem quadrada com suas orgonaduraz de alto a baxo com suas dirandellas tambem de figura quadrada, soltaz dos castiçaes que lhe servem de aparador da cera, e parece prata da Ley. (fl. 2) 8 Seis castiçaes pequenos de figura sextavada com suas palmetas; as colunas da mesma figura; os canudos redondos lizos com suas arandellaz despeçadas que lhe servem de aparadores da Cera, pratta polida feita fóra do Reyno, e parece de onze dinheyros. 9 Dous castiçaes com os pez triangulos com suas figuras que servem de colunas aos mesmos castiçaes, e suas arandellas soltas que servem de aparadores da cera. 10 Dez castiçaes de pez outavados gomadoz pella borda: as colunas quadradas com suas palmettaz nas faces os canos redondos gomados no Bojo - pratta da Ley. 11 Dous castiçaes de pez outavados angriados. Coluna do mesmo modo, e os canos redondos todos elles cercadinhos de bayxo relevego, e parece feytos no Reyno, e pratta da Ley. 12 Trez castiçaes pequenos todos lizos, pez outavados, e as colunas redondas e pratta da ley. (fl. 2v) 13 Dez Castiçaes outavados todos lizos com suas arandellas soltas, que lhe servem de aparadores da cera, feytos de Bronze dourado.
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14 Dous prattos angriados com suas asas lizas, ovados com duas terrinas, também sangriadas ovadas com suas mascaras nas cabeçeyras, em que pegão duas azas, e com suas tambas, e tudo lizo, e com duas colheres feyto tudo no Reyno, e parece prata de onze dinheyros. 15 Dous prattos com suas angras ovados sobre o redondo com quatro tarjas lavradas nas quatro angraz, seu cercadinho pellas aba de raminhos com suas terrinas tambem sobre o ovado com angras, e quatro tarjas, que lhe servem de pez com duas azas cada huma com seu forro por dentro levadiço com sua tampa do mesmo feytio com huns remates grandes de folhagem com duas colheres. Feytos fora do Reyno, e parece pratta de onze dinheiros. 16 Dous prattos ovados sobre o comprido; bordaduras de cordinhas com fittas enroladas; aba por dentro toda lavrada de bayxo relevo com suas terrinas todas lavradas: a bordadura como a dos prattos ovados levantadas das cabeceyras e anaceladas para o meyo com seus forros levadiços com suas tampas tambem lavradas com seus remates de folhagens e botões, ou sementes, e com suas colheres lavradas, que servem nas mesmas terrinas, e tudo feyto fora do Reyno; e parece pratta de onze dinheiros. 17 Outto prattos grandes angriados molduras lizas, Bojo redondo com duas azas cada hum feytos no Reyno, pratta de onze dinheyros. 18 Doze pratos de meya cozinha angriados; molduras lizas, e o bojo redondo, feytos no Reino pratta de onze dinheyros. 19 Vinte e quatro Flamengas, em que entrão duas covas angriadas todas de moldura liza, e bojo redondo feytas no Reyno, e parece pratta de onze dinheiros. 20 Settenta e hum prattos de guardanapo angriados, moldura liza de Bojo redondo do feytio dos assima e feytos no Reyno que parece prata de onze dinheiros. 21 Quatro prattos de meya cozinha angriados com sinco cantos, molduras lizas e bojo redondo feytos fora do Reyno e parece pratta de onze dinheyros. 22 Quatro Flamengas irmãs pello que respeyta ao feytio dos prattos assima, e da mesma qualidade de pratta. 23 Quarenta e dous prattos de guardanapos irmãos do feytio assima referido, e da mesma qualidade de pratta.
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24 Quatro prattos ovados de faces direytas, e as molduras lizas, e os Bojos ovados, feytos no Reyno, e parece pratta da Ley. 25 Quatro pratos ovados covos, molduras angriadas, e lizas, e parece serem feytos fora do Reyno, e prata de onze dinheiros. 26 Hum prato tambem angriado ovado moldura liza com aba, e o Bojo ovado feyto fora e parece pratta de onze dinheyros. 27 Dous pratos dittos mais pequeninos do mesmo feytio que o assima, e da mesma qualidade de pratta. 28 Dous prattos dittos mais pequeninos do mesmo feytio, que os referidos, e da mesma qualidade de prata. 29 Quatro selladeyras Irmãs gomadas por forma de Bandeja, lizas feytas fora do Reyno, e parece pratta de onze dinheiros. 30 Huma salva grande liza de dez faces, pê baixo redondo, e gomado feyto no Reyno e parece pratta de onze dinheyros 31 Huma salva grande de seis cantos toda liza pê redondo bayxo, e gomado, e parece feyta no Reyno, e pratta da Lley. 32 Outra salva redonda, liza de gomos, e meyas canas a roda, pê redondo bayxo com os mesmos gomos, e solistra grande no aveço da salva, e parece feyta no Reyno, e pratta de Ley. 33 Quatro salvas redondas mais pequenas que as sobreditas lizas gomadas na borda pez redondos bayxos e gomados e parece feytas no Reyno e pratta da ley. 34 Huma salva angriada, moldura alta liza com seu pé do mesmo feytio, e a aza redonda liza feyta no Reyno e parece prata de ley. 35 Outra salva mais pequena do mesmo feytio e qualidade 36 Huma salvinha de feytio do feytio de folha de figueyra com seus cercadinhos fingindo as veyas da mesma folha com seu pê lizo, e aza, parece feyta no Reyno, e pratta da ley
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37 Duas salvinhas tambem sobre o comprido, ponta aguda todas lavradas de bayxo relevado com suas azas, e trez pez cada huma feytas fora, e parece pratta de onze dinheyros. 38 Duas salvinhas de molduras altaz com seis conxas, cada huma com trez pez, e todas lizas, feytas fora, e pratta de onze dinheyros. 39 Huma salva angriaa, moldura altas, toda liza, e trez pez bayxos, feytas fora e prata de onze dinheyros 40 Trez salvinhas mais pequenas feytio das refferidas retro de trez cada huma, parece feytas no Reyno e pratta da Ley. 41 Duas dittas pequeninas molduras altaz angriadas, os meyos lavrados de bayxo relevado feytas fóra, e pratta de onze dinheiros. 42 Huma salva de pê alto com sua moldura de ovadinhos com fitta enrolada com hum cercadinho por dentro da moldura, e pê do mesmo feytio, feyta no Reyno, e pratta da Ley. 43 Duas quartas grandes lizas com suas tampas gonzadas na aza que levarão mais de potte cada huma, feytas no Reyno, e prata da Ley. 44 Duas catimploras grandes com seus bocais altos, e suas tampas, feytas no Reino e pratta de Ley. 45 Dous Frascos altos feytos de chapa de outto faces com suas tampas de tarraxa com suas azas da mesma tampa e seus cercadilhos lavrados junto a moldura do pê tambem donde faz cabeça junto a tampa 46 Seis Frascos de quatro faces grandes e quatro faces com seus prefilados abertos ao boril, com suas tampas de tarraxas, e huma peça despeçada que serve na boca para segurança da agoa; e parece feytos no Reino, e pratta de onze dinheyros. 47 Hum Fruteyro grande redondo todo lavrado de florões com duas figuras no meyo parece feyto no Reyno, e pratta da Ley. 48 Hum pratto de sangria ovado angriado moldura liza; a aba com seu lavradinho de bayxo relevado, e bojo lizo com duas tegellas redondaz tambem com seu lavrado assim na tampa
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como no corpo com duas azas cada huma e seu pê redondo lizo, e parece feyto fora do Reyno e pratta de onze dinheyros. 49 Huma caldeyra com sua aza, e bico redonda lavrada de bayxo relevado com sua trempe com trez pez, que serve de ter espirito para dar calor ao que se deytar na dita Caldeyra, e parece feyta fora do Reino, e pratta de onze dinheyros. 50 Outra caldeyra como a ditta assima cercadinha tambem com sua tampa com trez pez, e tambem serve de ter espirito, e parece feyta fora, e pratta de onze dinheyros. 51 Outra caldeyra mais ordinaria liza com cercadinhos junto a tampa com sua aza e bico; o meyo da aza por onde se pega de pao amarello, e o rematte da tampa do mesmo com sua trempe de 3 pez que serve para o espirito, feyta fora, e parece pratta de onze dinheyros. 52 Huma cafeteyra lavrada pequena com cabo de Evano, feyta fóra, e parece pratta de onze dinheiros. 53 Outra cafeteyra mais pequena redonda, cercadinha com bico, e aza de pao de Evano, feyta fóra, e parece pratta de onze dinheyros. 54 Hum Bulle pequeno redondo lavrado de bayxo relevado com bico, e aza de Evano, feyto fóra, e pratta de onze dinheyros. 55 Hum assucareyro com doze colheres, escumadora e atenaz, e com sua figura por remate, e o dito assucareyro com suas organadutas, feyto no Reyno e parece pratta da Ley. 56 Hum assucareyro sem tampa redondo lavrada pelo pê da borda, de bayxo relevado feyto fóra, e prata de onze dinheyros. 57 Outro assucareyro mais pequeno com sua tampa, lavradinho, feyto fora, e pratta de onze dinheyros. 58 Huma cafeteyra grande redonda liza com seu rematte despeçado com bico, e aza de pao de Evano, feyta fora, e pratta de onze dinheyros. 59 Hum Bulle pequeno redondo lizo com seu bico, aza e, rematte de páo feyta fora, e prata de onze dinheyros.
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60 Huma Barquinha lavradinha de bayxo relevado com seis colherinhas tambem lavradinhas com sua tanaz, e escumadeira feyto fora, e pratta que parece de onze dinheyros. 61 Treze bilhinhas de Leyte, huma dellas mayor, lavradas de bayxo relevado as duas mais pequenas com trez per cada huma e a mayor com hum so pe redondo, e todas com azas, feytas fora, e pratta de onze dinheyros. 62 Duas mostardeyras com seus bicos e azas com seus pez redondos, gomados, feytos no Reyno e parece pratta da Ley. 63 Duas mostardeyras melhores lavradas de bayxo relevado com trez pez cada huma, sua aza, e gominhos à roda, feyta fora, e pratta de onze dinheyros. 64 Quatro mostardeyras de feytio de quartos, com molduras, fingindo arcos com suas azas tampas, e colheres, feytas no Reyno e pratta da Ley. 65 Quatro mostardeyras ricas lavradaz de varios feytios com suas colherinhas, e tampas metidas em suas caxas, feytas fora, e parece pratta de onze dinheyros. 66 Seis saleyrinhos lizos, redondos com trez pez cada hum dourados por dentro, feytos fora, e parece pratta de onze dinheyros. 67 Dous saleyros lavrados com trez pez cada hum e o forro por dentro de vidro, feytos fora e pratta de onze dinheyros. 68 Trez colheres de Pedreyro de pratta com cabos de páo, feytas duas no Reyno e huma fora. 69 Duas colheres de sopa Irmãs com seus filettes nos cabos, feytas fora, e parece pratta de onze dinheyros. 70 Doze colheres de sopa pequenas com filletes nos cabos, feytas fora, e prata de onze dinheyros. 71 Trez colheres redondas covas para caldo com seus cabos de filetes, e conxinhas, feytas fora, e pratta de onze dinheyros.
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72 Huma peça para tomar caldo, chamada Apito com seu lavrado pella borda de bayxo relevado com sua aza feyta no Reyno, e pratta de onze dinheyros. 73 Quatro colheres angriadas para sorveja lizas com seus cabos de pao, feytas fora, e pratta de onze dinheyros. 74 Hum talher de azeyte e vinagre com sinco peças de vidro com tampas de pratta transfuradas com sua aza, e quatro por feyto fóra, e pratta de onze dinheyros. 75 Huma confeteyra com trez peças que entrão humas nas outras, e sua tampa gonzada com duas argolla na cebeceyra e feytas no Reyno, e parece pratta da Ley. 76 Huma Escarradeyra redonda liza com sua aza e tampo levadiça, e feyta no Reyno, e parece pratta de onze dinheyros. 77 Dous pratinhos gomados com seus tremes para chicaras, feytos no Reino e pratta de Ley. 78 Hum pratto, e tezoura com sua moldura liza, e seus acazos lavradinhos com com sua aza, e quatro pez, feyto fora, e pratta de onze dinheyros. 80 Hum candieyro de leque de duas luzes com suas arandelas, e canos, pê redondo, e tudo lizo, e parece feyto no Reyno e pratta de Ley. 81 Huma Bacia de barba com seu jarro, tudo angriado, a moldura da borda guarnecida de bazias por dentro hum cordão com fita enrolada feyta, no Reino e pratta de Ley. 82 Hum pratto com hum jarro grande de agoa as mãos angriado, a moldura da borda lavrada de folhages, por dentro hum cordão de ovadinhos, feytos no Reino; parece pratta de ley. 83 Outro pratto mays pequeno sem jarro do mesmo feytio, e lavor, e a mesma qualidade de pratta. 84 Huma Bacia de barba liza sobre ovado com seu jarro por forma de Buzio dourado em partes, parece feyto no Reino; e pratta de Ley. 85 Hum faqueyro com vinte, e quatro facas, cabos, e cortes tudo de pratta, feytas no Reino, e parece pratta de Ley.
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86 Hum Faqueyro com doze colheres, doze garfos, e doze facas, feytas no Reino, e parece pratta de Ley - e nos cabos com suas palmettas lizas. 87 Outro Faqueyro com doze aviamentos de facas, colheres, e garfos, em que faltão trez garfos, e duas colheres, e pello que respeyta ao feytio hum irmão do sobredito, e feyto no Reyno, e pratta da Ley. 88 Hum taboleyro grande ovado, molduras altaz lizas e a chapa do fundo cravada feyto no Reino e pratta de onze dinheyros. 89 Hum taboleyro grande com sua moldura alta, toda lavrada transparente com variaz figuras: o meyo todo lizo polido, feyto fóra do Reino, e parece pratta de onze dinheyros. 90 Hum sobretudo de meyo da Meza todo guarnecido de figuras, e mascaras, e quatro leões, que lhe servem de pez e se compõem de sincoenta peças, com que entrão quatro galhetas de vidro, guarnecidas de pratta, tudo metido com huma caxa vermelha, e se declara ser pratta de fora do Reino, e parece pratta de onze dinheyros. 91 Outro sobretudo rico, composto de quatrorze peças, todo lavrado com varias carrancas, duas figuras de corpos inteyros na tampa, com arandellas, e suas sementes, e doze salleyros com tampa transparentes, suas trempes, em que se metem galhetas de vidro tudo de pratta, feyta fóra do Reino e parece pratta de onze dinheyros. 92 Duas Bacias de sangrar, quazi irmãz feytas no Reino, e parece pratta de ley. 93 Duas escarradeyras antigas com as bocas afuniladas, o pescoço delgado com suas azas e parece pratta da ley. 94 Humas cangalhas com hum cabo de chapa comprido com dous pimenteyros com tampas transparentes, feytas no Reino; e pratta de Ley. 95 Hum sobretudo de bronze dourado com seus acazos de pratta correspondentes huns a outros com outto quartellas com seus canos do dito Bronze, dous pimenteyros tambem de Bronze e dourados com vinte e duas peças de pratta, de que se compoem o dito sobretu, e nelle servem. 96 Outro sobretudo de prata dourada que se compoem de dezasseis peças, todo lavrado feyto em Alemanha.
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97 Duas tegellas de prata douradas redondas lavrados com pê redondo gomados: as tampas do mesmo com suas azas feytas fora do Reino, e pratta de onze dinheyros. 98 Dez prattos ovados angriados: os bojos do mesmo feytio, em que entrão dous mayores, e quatro pequenos de pratta. 99 Seis prattos redondos dourados huns mayores; e outros mais pequenos de pratta. 100 Vinte e quatro prattos dourados de guardanapo redondos com suas moldurinhas pella borda de ovadinhos, pratta feyta fora do Reino para parece de onze dinheyros. 101 Quatro prattos de pratta dourados com suas molduras de ovadinhos parece feytos no Reino e pratta de Ley. 102 Dous prattos de pratta dourada, hum mayor, e outro mais pequeno; pratta chamada de Bastões, lavrada de figuraz, feytos no Reino, e pratta de onze dinheyros. 103 Dezassete selladeyras de varios tamanhos de pratta dourada, e gomados, parece feytas no Reino; e pratta de ley. 104 Hum pratto ovado grande, todo dourado lavrado com figuraz, humas levantadas de chapa, e outras sobrepostas com seu jarro grande de figuras tambem dourado com varios festões, que lhe servem de ornato, e parece feyto fora do Reino, e pratta de onze dinheyros. 105 Sinco salvas de pratta dourada de varios tamanhos tudo lavrado de figuras chamada pratta Bastiões feyta no Reino; e de onze dinheyros. 106 Huma salva redonda de pratta dourada gomada pella borda, pê bayxo, tambem gomado, feyta fora do Reyno, e parece pratta de onze dinheyros. 107 Duas salvas angriadas douradas molduras guarnecidas de gomos, pez bayxos tambem gomados. 108 Trez Faqueyros de Lixa, que cada hum delles se compoem de doze facas, doze colheres e doze garfos de pratta dourada, feyto fora do Reyno, e prata de onze dinheyros.
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109 Dous Faqueyros Irmãos de caxa vermelha com vinte e duas facas; vinte e quatro colheres, e vinte e quatro garfos dourados, e parece Bronze dourado. 110 Outro Faqueyro pequeno so com seis facas, seis colheres; e seis garfos dourados, e parecem do mesmo metal dos dous assima. 111 Outro Faqueyro pequenino com doze colheres tambem do mesmo metal que fica ditto. 112 Dous estojos, que se compõem cada hum de três colheres de sopa, huma escumadeyra, faca, e garfo de trinchar dourados, e do metal refferido. 113 Quatro prattos com suas tezouras de Espevitar; dous lavrados e douz lizos com seus pez, e azas, em hum delles falta a Tezoura, e são feytos do mesmo metal, e dourados. 114 Hum cavallo de pratta dourada que serve de Palleteyro, sobre sua peenha tambem de pratta dourada e parece feyto fora do Reyno, e de onze dinheiros. 115 Quatro serpentinas de metal; duas brancas; e duas douradaz. As brancas se compoêm de seis lumes; e as douradas de quatro com suas quartellas, dirandellas, e canos, e tudo mais guarnecido de Pendulas de christal. 116 Hum sobretum de metal prateado que se compõem de onze peças, em que entrão suas quartellas, e serpentinas, que servem para Luzes. 117 Huma Escrivanhinha quadrada com quatro pez, e outto conxas, e com seu tinteyro, e tampa deste, seu areeyro, e huma campainha, tudo de pratta de onze dinheyros - E com dous castiçaes da mesma qualidade que pertence à dita escrivaninha. Biblioteca da Ajuda: 54/VIII/53 (209)
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Resumo A progressiva descoberta de um vasto número de painéis com aspectos iconográficos similares, nas reservas do Museu Nacional do Azulejo, permitia supor estarmos perante um conjunto coerente para revestimento de um espaço religioso. O conjunto, pintado a azul de cobalto sobre branco, possui a invulgar particularidade de integrar grandes flores com pétalas coloridas a violeta de manganês e apoiadas em pés verdes, obtidos pela mistura de amarelo de antimónio com a dominante azul. O estudo do conjunto já conhecido, a que se associam novos elementos recentemente descobertos ao abrigo do projecto “Devolver ao olhar”, permitiu compreender a articulação de todos os elementos e revelar um notável e original programa iconográfico, único nas intenções e representações que encerra.
palavras‑chave azulejo século xviii inventariação iconologia
•
Abstract The gradual discovery of a large number of tiled panels with similar iconography, in the storage rooms of the Museu Nacional do Azulejo, led researchers to conclude they were dealing with a coherent set intended to clad a religious space. The set, painted in cobalt blue over white, is unusual in that it includes large flowers with manganese purple petals on stems coloured green by mixing antimonium yellow with the dominant blue. The joint study of the known panels and the newly added elements – discovered as part of the “Devolver ao Olhar” (Bringing back to view) project – revealed how the different parts fit together, bringing to light an original and remarkable iconographic programme which is unique in its intentions and representations.
key‑words azulejo tiles 18th century inventorying iconology
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Arbitragem Científica Peer Review
Data de Submissão Date of Submission
José Alberto Gomes Machado Prof. Catedrático, Diretor da Escola de Ciências Sociais da Universidade de Évora Centro de História da Arte e Investigação Artística, UE
Data de Aceitação Date of Approval
Jul. 2011
Set. 2011
mistérios... um revestimento azulejar do século xviii para uma igreja desconhecida a l exa n dre pa i s Museu Nacional do Azulejo, Lisboa Centro de História de Além-Mar, FSCH/UNL
O processo foi iniciado por João Miguel dos Santos Simões, nos anos 60 do século passado e prosseguido por Rafael Calado, primeiro Director do MNAz, até cerca de 1983. No entanto, só com João Castel‑Branco Pereira, seu sucessor, este processo conheceu uma abordagem que cumpria os pressupostos museológicos, atribuindo n.º de inventário e identificando de forma sistemática o acervo que se ia conhecendo. Para mais informações, consultar Pais, Alexandre Nobre; Esteves, Lurdes. «Devolver ao Olhar». Actas do congresso A herança de Santos Simões. Novas perspectivas para o estudo da azulejaria e da cerâmica. (no prelo). 1
A actual Direcção do MNAz definiu como uma das suas prioridades da sua acção, iniciada em 2
Na vasta colecção que integra o acervo do Museu Nacional do Azulejo (MNAz) destaca‑se, pela sua invulgaridade e complexo propósito iconológico, um conjunto de painéis do 2.º quartel do século xviii, o chamado período da “Grande Produção”, de origem desconhecida. Este encontra‑se associado ao chamado “Fundo Antigo”, designação que remete para azulejos e painéis cuja incorporação não é conhecida, e que poderá ter ocorrido quer com a extinção das Ordens religiosas (através das incorporações e depósitos que para este local foram trazidos por intervenção de José Maria Nepomuceno e Liberato Teles, no último quartel do século xix), quer ao longo do século xx, nomeadamente pela acção desenvolvida por João Miguel dos Santos Simões. Trata‑se de um vasto acervo que tem vindo, paulatinamente, a ser revelado1, e subsequentemente restaurado, por acção de um projecto financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), através de uma parceria com a Rede Temática em Estudos de Azulejaria e Cerâmica João Miguel dos Santos Simões (RTEACJMSS) – denominado “Devolver ao Olhar” – e pela integração de um vasto corpo de voluntários que lhe imprimiu uma nova dinâmica2.
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Imaculada
Anunciação
Santa mística
Via Sacra
Ressurreição de Lázaro
Visitação
Madalena dissoluta
Presépio
Crucifixão
Noli me tangere
Ressurreição
Partida
Aparição
Esquema 1
Partindo da codificação que se encontra no tardoz dos azulejos 3 sabemos que o conjunto de que nos ocupamos, cuja totalidade de cenas ainda não foi recuperada4, é composto por duas séries sequenciais, cada uma com cerca de 17 metros, indiciando que estariam colocados a par e em face (Esquema 1). Estamos, pois, perante um revestimento de grandes dimensões, provavelmente destinado ao corpo de uma igreja ou capela. No corte dos azulejos é perceptível que, apesar de contínuas, cada série teria separações impostas pela arquitectura a que se destinava (portas ou janelas, eventualmente elementos em talha que aí se encontravam justapostos, como um púlpito, por exemplo). Com oito azulejos de altura, desconhece‑se como seria o seu emolduramento, mas este deveria ser constituido por uma cercadura ou barra. A numeração dos azulejos, invulgarmente, não considera os que fariam a sua moldura5. Esse aspecto, tendo em conta a cronologia proposta, é incomum já que então os emolduramentos integravam‑se no espaço compositivo, acentuando uma certa dose de teatralidade às cenas, numa feição próxima de boca de cena. A primeira surpresa quando observamos este revestimento pintado a azul sobre branco, como era então usual, é a presença de grandes flores a verde e violeta, que intercalam com muitas e variadas composições iconográficas de soluções estéticas diversificadas (Fig. 1). O belo tom esmeralda do tronco e folhagem verde, conseguido pela mistura do azul de cobalto e, provavelmente, do amarelo de antimónio,
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2009, a identificação do vasto acervo que ainda se desconhece e que integra o chamado “Fundo Antigo”. Desejamos agradecer, assim, à Dr.ª Maria Antónia Pinto de Matos o ter‑nos permitido estudar este conjunto. Quando eram executados painéis de azulejos ornamentais ou figurativos era pintada no tardoz, ou verso de cada um dos elementos, uma indicação alfa‑numérica que permitia ao azulejador conhecer a colocação da peça na parede. As letras correspondiam à posição nos eixos verticais e os números aos horizontais (exemp. B3 corresponde à posição 2 na vertical, a partir do pavimento, e é o terceiro azulejo na horizontal, a contar da esquerda). Para além destas indicações, caso o espaço integrasse vários painéis, associava‑se‑lhes ainda uma segunda letra, número ou elemento gráfico que garantia ao azulejador determinar a qual dos painéis pertencia cada azulejo. No caso dos dois conjuntos em apreço, as indicações são: uma das séries apresenta somente o habitual código alfa‑numérico 3
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Cristo em Getsêmani
Fons Vitae
Pentecostes
Pregação
de colocação e a outra, para além deste, tem no topo um risco vertical. Uma parte significativa do conjunto já havia sido identificada ao tempo que era Director do MNAz João Castel‑Branco Pereira, no entanto a articulação entre os vários componentes só recentemente foi realizada. 4
Madalena lava pés
Cristo na coluna
Maria e Marta
Anjos alimentando Madalena
Anjo guarda
Morte Madalena
Senhor da cana verde
Santo Agostinho
Coroação da Virgem
contrasta com a tonalidade violeta rósea do manganês na corola das flores, em cujo interior se observam passagens dos chamados “Mistérios do rosário”. Estamos pois perante uma representação original, e tanto quanto sabemos única na azulejaria, da devoção do rosário 6, em que este assume pictoricamente o seu carácter etimológico que é o de “jardim de rosas”. Deste modo, a função mnemónica do objecto rosário é alterada seguindo os fiéis, sem recurso às habituais contas ou ao processo mental de recitar a ladainha, cada um dos passos do “mistério”, mas aqui acompanhando‑os
Normalmente, a fila que se encontra na base dos painéis figurativos considera sempre a moldura, mesmo quando esta não interferia com a composição. O que seria aqui expectável era que a fila inferior tivesse as letras B ou C, indiciadoras de uma cercadura (composta por uma fiada de azulejos horizontais, a fila A) ou de uma barra (as filas A e B). No caso em apreço, a indicação tem início da fila A. 5
Esta devoção foi oficialmente establecida em 1569 pelo Papa Pio V, através da Bula Consueverunt Romani Pontifices . 6
Pormenor da Fig. 1.
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Fig. 1 – “3.º Mistério Doloroso” ou “Senhor da cana verde”
visualmente, numa representação que, surpreendentemente para a época, surge em policromia, contrastando com as restantes pintura em azul sobre branco. Intercalam este jardim outras cenas devocionais, com processos estéticos diversos consoante a parede a que pertenciam, mas ambas dedicadas à hagiografia de Santa Maria Madalena. Também esta iconografia é invulgar, pois é, aparentemente, a maior série conhecida, em azulejo, dedicada à figura da discípula de Cristo, a primeira a quem Ele surgiu aquando da sua aparição inicial. Considerando terem integrado, originalmente, duas paredes, naquela que ficaria colocada do lado do Evangelho surgem passagens da narrativa de Madalena associadas ao Novo Testamento. Nestas, o enquadramento simula palcos que se abrem sobre a paisagem pontuada de flores, cenários de tipo palaciano onde podemos observar a vida luxuosa da Santa, esta a limpar os pés de Cristo com os cabelos, e Maria e Marta, a primeira lendo e a segunda cozinhando, no contraste iconológico entre a vida contemplativa e a activa (Fig. 2). As flores do rosário que alternam com estas cenas enquadram: o “Mistério da Encarnação” 7 ou Anunciação; o “Mistério da visitação de Nossa Senhora”8; o “Mistério do Nascimento do Filho de Deus” ou a Natividade; o “Mistério de como o Senhor suou gotas de sangue” ou Cristo no Jardim de Getsêmani; o “Mistério de como foi açoitado” ou Cristo amarrado à coluna; e o “Mistério da coroação de espinhos” ou o Senhor da cana verde9.
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Fig. 2 – “Madalena e Marta”
As referências a cada uma das cenas segue os títulos empregues no Livro do Rosário de Nossa Senhora, de 1582. Ainda que não deva ter existido relação directa entre esta publicação e o conjunto azulejar, optou‑se por seguir um texto que seria conhecido à data da feitura dos painéis. Cf. Diaz, Nicolao. 1582. Livro do Rosário de Nossa 7
Senhora, feyto por o P. Frey Nicolao Diaz, Mestre em Sancta Theologia, da Ordem de S. Domingos: de novo emendado, & acrecentado, com sua Taboada. E as lições pera a festa do Rosario. Coimbra: Casa de António de Mariz. Painel que se encontra, presentemente, a ser restaurado pela voluntária Maria de Lucena. 8
O conjunto não está ainda totalmente descoberto, pelo que faltam, eventualmente, três das cenas teatralizadas e uma das flores do rosário. A primeira cena intercala as flores da “Anunciação” e “Visitação”; as duas restantes (talvez uma delas seja uma fonte como a que se encontrava 9
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Fig. 3 – “Ressurreição de Lázaro” e “5.º Mistério Doloroso” ou “Crucifixão”
no painel em face) e o rosário em falta estão enquadrados pelas rosas com o “Presépio” e “Cristo no jardim de Getsêmani”. Já foram descobertas parte de duas destas cenas, uma das quais parece ser “Cristo em casa de Maria e Marta” e no outro Madalena surge ajoelhada, num genuflexório, olhando para o alto, talvez o seu “Arrependimento”... Faltam ao conjunto já descoberto duas flores. Uma entre a cena do Pentecostes e a que aqui se comenta (provavelmente a “Assumpção da Virgem”), e a outra, que se segue a esta, cujo tema não conseguimos identificar. 10
No conjunto em face a este, a narrativa da vida de Madalena surge com outro tipo de enquadramento, em molduras de concheados, como se de uma série de tableaux vivants se tratasse, pontuando a paisagem alternadamente com as rosas (Fig. 3), aqui com as cenas: do “Mistério de como levou a Cruz às costas”; do “Mistério como foi crucificado”; do “Mistério da Ressurreição”, do “Mistério da Ascenção”; do “Mistério da vinda do Spirito Sancto” ou Pentecostes. Inesperadamente, a última flor10 apresenta um tema que não se relaciona com os “mistérios do rosário”, e que é, aparentemente, “Tobias e o anjo” ou, talvez mais acertadamente, uma figuração do conceito de “anjo da guarda” (Fig. 5). Estes dois motivos não se encontram distantes, tendo a narrativa da história de Tobias, do Velho Testamento, servido de modelo para o tema do guardião angélico que acompanha os homens. Curiosamente, a criança que dá a mão ao anjo, que lhe indica o caminho a seguir, segura um rosário. A hagiografia de Maria Madalena segue a Legenda Aurea de Jacobus de Voragine (c. 1230‑1298) e nela são narrados uma série de acontecimentos subsequentes à Ressurreição de Cristo, onde se conhece o destino desta Santa. Se as duas primeiras cenas reportam a passagens do Novo Testamento, ainda que afloradas na Legenda Aurea: a “Ressurreição de Lázaro” e a “Aparição de Cristo no horto”, as seguintes seguem a narrativa de Voragine. Assim, observam‑se, como se de quadros na paisagem se tratasse, “a expulsão numa barca dos Santos Madalena, Marta, Lázaro,
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Fig. 4 – “Madalena alimentada por anjos enquanto o Arcanjo São Miguel combate o Demónio”
Maximino e Cedónio”; “a prédica de Madalena em Marselha”; “Madalena alimentada por anjos enquanto o Arcanjo São Miguel combate o demónio” (Fig. 4); “a morte de Madalena e a sua ascenção”. De posse destes elementos, seríamos tentados a ver neste conjunto o revestimento para um local cuja invocação seria a figura de Maria Madalena, eventualmente associado a um espaço dominicano, pois esta Ordem é a que primordialmente se encontra associada à invocação do rosário. No entanto, existem ainda quatro outras cenas que se localizam nos eixos de cada um destes conjuntos e que complexificam substancialmente as hipóteses de atribuição, tanto hagiográfica, como da ordem religiosa a que este conjunto poderia pertencer. No grande “jardim” onde se representam as cenas teatralizadas da narrativa evangélica de Maria Madalena e das rosas dos “mistérios gozosos” e de três dos “dolorosos”11, observam‑se, no início, uma “Exaltação da Virgem” e, no topo ou remate, no painel que estaria mais próximo do altar‑mor, uma surpreendente “Glorificação de Santo Agostinho” (Fig. 6). Cada uma destas cenas merece, por si só, uma atenção particular. Na representação da “Exaltação da Virgem”, esta surge sobre um globo, no qual uma cartela circunscreve a legenda “Tota pulchra es Maria”, retirada do “Cântico dos Cânticos” e uma das antífonas dos salmos para a celebração da Imaculada Conceição. Rodeiam‑na, ajoelhadas, quatro Santas, três das quais integram o chamado hagiológio romano
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Fig. 5 – “Anjo da guarda”
Segundo a liturgia, os “mistérios” do rosário são divididos em três grupos de cinco temas. Os cinco primeiros, que abarcam os temas da Encarnação, Visitação; Natividade; Apresentação no Templo e o Menino entre os Doutores são designados os “mistérios gozozos”. Os seguintes: Cristo no jardim de Getsêmani; Cristo amarrado à coluna; a Coroação de espinhos; o Transporte da cruz e a Crucifixão são os chamados “mistérios dolorosos”. Por fim, os denominados “mistérios gloriosos” são: a Ressurreição; Ascenção; Pentecostes; Assumpção da Virgem e a Coroação da Virgem. 11
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Fig. 6 – “Glorificação de Santo Agostinho”
Esta figura só surge mencionada no século xvi através do Cardeal César Barónio (1538‑1607), na sua revisão do Martirológio Romano, publicado em 1589 sob o título Martyrologium Romanum, cum Notationibus Caesaris Baronii, no qual se transcreveu erradamente o local de martírio desta Santa. Ao invés de Niceia, colocou ‑se Ceia, pelo que Jorge Cardoso, no Agiológio Lusitano, descreve o suposto martírio na lagoa da Serra da Estrela, apoiando‑se numa pesquisa levada a cabo pelo infante D. Luís (1506‑1555), filho de D. Manuel (1469‑1521), que terá testemunhado a existência de um sarcófago de madeira no fundo desse lago. Cf. Cardoso, Jorge. 1657. Agiologio Lusitano dos Sanctos, e varoens illustres em virtude do Reino de Portugal, e suas conquistas. Consagrado aos gloriosos S. Vicente, e S. Antonio... Lisboa: Officina de Henrique Va12
lente d’Oliveira. Tomo II: 2. Desejamos agradecer a Alexandra Curvelo a referência a estas duas datas e a leitura e sugestões que nos permitiram o enriquecimento deste texto. 13
Fig. 7 – “Exaltação da Virgem”
(Catarina, Bárbara e Lúcia ou Luzia), sendo a última, aparentemente, Santa Teresa de Jesus ou de Ávila, em hábito de religiosa com um escapulário, no peito, com a heráldica dos carmelitas. Ao contrário das suas duas companheiras que transportam os atributos clássicos das respectivas iconografias (a torre para Santa Bárbara e a roda para Santa Catarina), Santa Luzia surge com um elemento que não é o que normalmente mais se lhe associa, um prato com os seus olhos, antes tem aos pés uma espada. Seguramente por isso o pintor decidiu colocar uma legenda que permitisse ao observador identificar a figura aqui representada. Para além destes elementos, na base da composição, junto à figura de Santa Luzia, a legenda “s. antonina a 12 de junho” (Fig. 7). Esta legenda que poderia ser um importante auxiliar para identificar o local de onde esta surpreendente série foi retirada, coloca, de imediato, uma série de questões. Por um lado, poderia remeter para a celebração do dia de Santo António, a 13 de Junho, cuja vigília se iniciava na véspera da solenidade. Importa referir, no entanto, que o Agiológio Lusitano, de Jorge Cardoso, refere uma obscura e polémica Santa Antonina12, celebrada hoje a 4 de Maio, mas que também o foi a 1 de Março e a 12 de Junho13. Estas datas devem‑se a alguma ambiguidade nas referências a esta figura que, durante algum tempo, se acreditou seriam três pessoas diferentes. Quando, em momento que não conseguimos precisar, ficou estabelecida a sua hagiografia a data que o martirológio cristão lhe atribuiu foi o 4 de Maio, dia que se acreditava teria sucumbido14. Independentemen-
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te destes aspectos, parece estranha a menção à festa de uma figura tão obscura, quando esta não é representada em nenhuma parte do painel, nem tem presença destacada no culto nacional. No painel de topo deste conjunto o tema é, como se referiu, uma “Glorificação de Santo Agostinho”, onde este surge envolto em nuvens, acompanhado de um anjo, tendo abaixo, ajoelhados, um grupo de Santos. Destes identificam‑se: a clarissa Santa Clara, a brigetina Santa Brígida da Suécia, o franciscano Santo António, o agostiniano eremita São Nicolau de Tolentino, o pregador São Domingos, o trinitário São João da Mata e, aparentemente, o mercedário São Pedro Nolasco15. Esta curiosa “Glorificação” evoca, ainda que de forma muito sucinta e com uma diversidade muitíssimo superior de Ordens religiosas, a impressionate gravura de Oliviero Gatti (1579‑1648), Mysticæ Augustininensis Eremi Sacrum Gloriæ Decoris Q. Theatrum, composta por 12 elementos, publicados em 1614. Diversas legendas pontuam a cena, mas a que se encontra na base desta composição parece clarificar o que aqui se representa: s. augus. fundat. et legisl. ord. can. e tuar. ordin. Ou seja, os Santos que aqui se encontram, de certa forma, personificam Ordens cujos estatutos tiveram como base a Regra de Santo Agostinho, estando portanto em causa, nesta imagem, uma exaltação da figura deste importante legislador da Igreja católica. Se os temas presentes não auxiliam, antes complexificam, o sentido subjacente a este conjunto, um dos que surge representado no painel que se encontrava em face a este vem dar‑lhe uma nota ainda mais desconcertante. No painel que, outrora, estaria colocada no lado da Epístola de uma ignorada igreja, podem observar‑se dois temas que estariam em face aos anteriormente mencionados. O que se situaria no início do percurso é uma tríplice representação das “Visões de uma mística”, sendo o de topo uma magnífica “Coroação da Virgem”, que se articularia com a “Glorificação de Santo Agostinho”, junto ao altar‑mor. As “Visões de uma mística” são a sobreposição de três momentos em que uma Santa não identificada, trajando o hábito cisterciense característico da Ordem portuguesa, com o respectivo e invulgar toucado, surge associada a idêntico número de momentos da narrativa mariana e cristológica (Fig. 8). Cada uma destas cenas integra uma legenda que, em principio, deveria auxiliar a interpretação da composição e assegurar a identificação da Santa. Uma das cenas parece relacionar‑se com a “Apresentação da Virgem no Templo”, surgindo nesta a legenda castitas perpetua, momento observado pela protagonista, ajoelhada, estando escrito no espelho do degrau evangelium consitia vota religionis. Na cena seginte, a mesma figura surge, de novo ajoelhada e também orante, observando S. Francisco de Assis a receber o Menino, junto ao Presépio. Aqui a legenda é paupertas voluntaria. A rematar o conjunto, num morro que culmina num rochedo com a legenda obediencia perfecta, iluminado pelo Espírito da Trindade, podemos vê‑la a transportar uma cruz. Na sua frente, a par, seguem dois santos (talvez São Bento e São Bernardo de Claraval) e outros dois, em fila, mais acima, seguindo Cristo, junto ao rochedo. Tal como ela, cada um transporta a sua cruz.
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Para além de ter sido também festejada a 12 de Junho, tal como aparece na legenda, um dos martírios que a Santa terá suportado foi o de ter sido morta com uma espada. Este aspecto acrescenta alguma ambiguidade à representação de uma destas armas no painel, aos pés de Santa Lúcia e sobre a legenda “S.ANTONINA”, pois ambas terão sido mortas com uma espada. Cf. http://www.santiebeati.it/ 14
Não foi possível identificar os dois santos restantes. 15
Pormenor da Fig. 2.
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Fig. 8 – “Visões de uma mística”
Poderíamos pensar estar na presença da representação da mística Santa Brígida da Suécia, mas esta já figura na “Glorificação” agostinha e é perceptível que o pintor não duplicou nenhum dos Santos que se encontram no conjunto destes quatro remates. Outra hipótese poderia ser a de Santa Escolástica ou mesmo a de Santa Gertrudes Magna, esta uma das mais celebradas místicas da hagiografia católica. No entanto, não foi possível relacionar o conjunto destas três imagens com as respectivas visões de qualquer uma destas influentes mulheres. Um aspecto curioso é a presença de São Francisco na cena da “Natividade”, o que poderia levar‑nos a acreditar estarmos perante Santa Clara. No entanto, o hábito não está correcto, e esta também já surge associada à representação da “Exaltação” agostinha. Ainda que por identificar, o sentido do painel prende‑se com a Via contemplativa e a exaltação do misticismo, levando o observador a identificar‑se com passagens da narrativa evangélica, do mesmo modo que se pretendia, actuassem as contas do rosário. A cena que remata a vasta composição deste painel, onde se podem observar passagens da narrativa madaleniana, a partir da Legenda Aurea de Jacobus de Voragine, e as rosas que circunscrevem os dois restantes “mistérios dolorosos”, três dos “gloriosos” e a representação do “anjo da guarda”, conclui‑se com a “Coroação da Virgem” (Fig. 9). Este é, precisamente, o último dos “mistérios gloriosos” e o
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Fig. 9 – “Coroação da Virgem”
facto de ser representado em toda a sua plenitude, numa composição destacada, ao invés de circunscrito no interior de uma rosa, como os restantes, indicia a sua importância no contexto do discurso iconológico do espaço. Também este, tal como os painéis de remate anteriores, possui legendas alusivas à representação. É uma densa composição onde o pintor se esmerou em particularizar cada um dos intervenientes, de modo a que o observador conseguisse identificar grande parte dos Santos nele representados. Num cenário celestial, Maria surge coroada por Cristo, à esquerda, e pelo Padre Eterno, sobre os quais pontifica a pomba do Espírito Santo. Um pouco abaixo, dois conjuntos de figuras agrupam‑se observando a cena. À esquerda, do lado de Cristo, os Apóstolos (onde se destacam os Santos Pedro, Paulo e João), acompanhados por São João Baptista e pelo Arcanjo Gabriel. À direita, infelizmente ainda truncado16, um grupo de virgens mártires, onde se podem distinguir as Santas Ágata, Inês e Cecília. Abaixo destes conjuntos, ladeando São Joaquim e Sant’Ana, que dão as mãos sob o olhar de um padre (?), colocado no eixo da “Coroação” que decorre no plano superior, um grande número de Santos observa a cena. Da esquerda para a direita podem distinguir‑se, entre outros, os Santos Jorge, Roque, Marçal, Sebastião, Brás; os Santos diáconos Lourenço, Estevão, Vicente; três Santos peregrinos; os Santos de Ordens religiosas Francisco de Paula, Francisco de Borja, Inácio de Loyola, Francisco Xavier e Filipe Neri, para além de três Santos bispos.
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A composição está parcialmente truncada, do lado direito, ainda não se tendo descoberto uma série de elementos em falta. 16
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Fig. 10 – “1.º Mistério Glorioso” ou”Ressurreição”, Fons Vitae e “2.º Mistério Glorioso” ou “Pentecostes”.
Simões, J. M. Santos. 1979. Azulejaria em Portugal no século xviii. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 252‑253. 17
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Simões 1979, 252.
Com uma cenografia desta complexidade é perceptível por que motivo se optou por retirar a cena da “Coroação da Virgem” do conjunto de rosas que preenchem este jardim, pois seria inviável a sua figuração no espaço da corola de uma destas flores. Paralelamente, a conclusão do conjunto termina numa apoteose que equilibra o tema que se encontrava em face, a “Exaltação de Santo Agostinho”. Ainda que clarificada, a opção de substituir esta pela representação do “Anjo da guarda” não é clara, sendo, se possível, ainda mais enigmática, a última flor que se encontrava nesta série, a qual ainda não foi encontrada e para a qual não conseguimos avançar o tema que circunscrevia. Seria de esperar que um conjunto tão surpreendente tivesse deixado testemunhos e, de facto, lendo a obra de João Miguel dos Santos Simões, Azulejaria do século xviii, são nela referidos alguns dos painéis. De acordo com o autor, ele viu‑os no edifício do Estado Maior do Exército, no Largo do Museu de Artilharia, a Santa Apolónia, descrevendo‑se algumas destas composições colocadas na “Sala de Reuniões‑Biblioteca”17. Refere Santos Simões “(...) Pertenceram estes azulejos a um silhar de igreja ou claustro, de algum desaparecido Convento – o mesmo de onde foram levados azulejos para a Madre de Deus. (...)”18. Com esta afirmação é perceptível que, à época que os conheceu o ceramógrafo, o conjunto se encontrava truncado, estando já parte no então embrionário Museu do Azulejo. O que podia então ser observado, e do qual se conhecem duas imagens,
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é o conjunto que englobava a “Exaltação da Virgem” e a “Glorificação de Santo Agostinho”. Não são feitas, por Santos Simões, menções às cenas que integram o segundo conjunto, sendo talvez esse o que ele refere estar então na Madre de Deus. Aparentemente, através desta pista poderia ser possível chegar a uma origem anterior dos painéis, pois o autor reconhece tratar‑se de uma localização descontextualizada. No entanto, os contactos estabelecidos não permitiram comprovar terem estes painéis estado integrados no edifício do Estado Maior do Exército. De facto, ninguém se lembra da presença de azulejos no local da “Sala de reuniões ‑Biblioteca”, cujo mobiliário não permitiria esta colocação. Poderá tratar‑se de um lapso de localização, pois são conhecidos outros devido ao facto desta obra de Santos Simões ter sido publicada após o seu falecimento e com base em manuscritos deixados pelo próprio. Não é de excluir, no entanto, ter‑se perdido essa memória e terem, de facto, existido alguns painéis desta série nesse local. A ser assim, e visto não estarem na sua localização original, o reaproveitamento poderia indicar estarmos perante peças provenientes de um local afecto ao Exército ou próximo desse edifício. As hipóteses poderiam ser variadas e, no momento em que se encontra a investigação, pouco consistentes. Se quisermos ver possibilidades e tomando a localização imediata, poderíamos avançar com três propostas, nenhuma das quais é possível ainda definir, por falta de descrições dos respectivos revestimentos azulejares. Um desses edifícios poderia ser a própria igreja de Santa Apolónia, demolida em 1852 para construção da linha férrea, da qual não conseguimos encontrar referência a ter tido revestimentos cerâmicos e, em caso afirmativo, para onde estes foram direccionados. Uma outra possibilidade seria a da igreja do chamado Conventinho do Desagravo, aí próximo, que refere Norberto de Araújo “(...) cujos belos azulejos foram arrancados em 1932 – o que lhe restava – e levados para uma igreja da província (...)” 19. Uma terceira hipótese e aquela que poderia parecer a mais promissora pela invocação associada, mas da qual também não foi possível encontrar uma memória descritiva antiga, é a profana ermida de Nossa Senhora do Rosário, hoje semi‑oculta pela Calçada do Museu de Artilharia. Como se pode constatar as possibilidades poderiam ser inúmeras e, de qualquer modo, nada garante que a proveniência dos azulejos (a acreditar que alguns deles incorporaram, de facto, o edifício do Estado Maior do Exército) seria próxima deste local. Relativamente à autoria deste conjunto ela parece evidente. As figuras seguem os traços característicos da pintura de Bartolomeu Antunes (1688‑1753), como podem ser observados, entre outras, na capela de Santa Rita, na igreja de São João Novo, no Porto, assinados e datados de 174420. No entanto, os painéis que agora damos notícia divergem da obra identificada deste Mestre em dois pontos: na presença acentuada dos apontamentos em policromia21, nas rosas que pontuam este jardim místico; e a ausência de enquadramentos cenográficos, habituais à época, os quais tendem a integrar a composição figurativa acentuando o seu carácter de teatralidade. Desconhecendo praticamente tudo o que a eles respeita (origem, datação), o que é evidente é estarmos perante um conjunto de carácter excepcional, com um pro-
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Araújo, Norberto. 1992. Peregrinações em Lisboa, Lisboa: Veja. VIII: 84. 19
Relativamente à figura e obras de Bartolomeu Antunes, cf. Meco, José. 1986. O azulejo em Portugal. Lisboa: Publicações Alfa. 232‑233; e Mangucci, Celso. 2003. “A estratégia de Bartolomeu Antunes, mestre azulejador do Paço (1688‑1753)”. Al‑madam 12: 135‑148. Almada: Centro de Arqueologia de Almada. Curiosamente, também através do trabalho desenvolvido no âmbito do projecto “Devolver ao Olhar”, têm vindo a ser encontrados grande número de painéis, inventariados e catalogados por dois voluntários (Alda e Carlos Avelino, de Mafra), similares aos que Celso Mangucci utiliza para ilustrar o seu texto e que são da parceria de Bartolomeu Antunes com Nicolau de Freitas, para a encomenda realizada para o Palácio e Convento das Necessidades, em Lisboa, c. 1747. 20
Em obras atribuídas a este autor, nomeadamente nas figuras de convite do Palácio de Santo Antão do Tojal e nas molduras da escada do Palácio da Mitra, encontram‑se apontamentos em policromia, nomeadamente a amarelo, acentuando um caráter em trompe l’oeil que as aproxima, respectivamente dos bordados a ouro, nas indumentárias e da talha dourada nas arquitecturas. 21
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pósito iconológico complexo e cuja intenção não é, de todo, ainda evidente (para o que concorre faltarem ainda alguns elementos do conjunto). É perceptível o carácter místico que se pretendeu imprimir na composição, dando ao rosário a sua figuração etimológica e transformando a cenografia cerâmica num grande jardim, ao centro do qual uma fonte (a Fons Vitae) acentua o centro do espaço (Fig. 10). As passagens da hagiografia de Maria Madalena prosseguem o discurso das Vias que se oferecem aos homens para conhecer Deus, a activa e a contemplativa, e, paralelamente, dão testemunho do poder da redenção. Os quatro painéis nos eixos destas composições, no entanto, imprimem uma tónica algo desconcertante e particularmente complexa ao conjunto. Se a “Exaltação da Imaculada” e a “Coroação da Virgem” poderão ser óbvias e se as “Visões de uma mística” integram o discurso mais vasto do conjunto, a “Glorificação agostiniana” parece algo dissonante, por não estarmos na posse do conhecimento do local a que estes azulejos se destinavam. Permanecem por responder as questões: da substituição dos temas de duas das rosas, pelo do “anjo da guarda” e por outro ainda desconhecido; a ênfase dada à presença de figuras de todas as Ordens religiosas, acentuando um carácter plural do espaço a que este conjunto se destinava; a identidade da mística representada num dos eixos dos painéis e a estranha legenda “s.antonina a 12 de junho”. Se o estudo deste acervo é muito parcelar, decorrendo ainda a procura dos restantes elementos que integram os dois painéis, a identificação da sua proveniência e consequente significado, é inegável que o conjunto reproduz, de forma sensível e profundamente original, os “Mistérios do Rosário”. Se, pela Fé, estes podem ser conhecidos, muitos outros mistérios envolvem este núcleo, acrescentando, se possível, ainda mais fascínio aquele que é, seguramente, um dos mais extraordinários revestimentos azulejares do chamado período da “Grande Produção”.
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Pormenor da Fig. 5.
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Resumo O azulejo é um elemento notavelmente caracterizador da arquitectura portuguesa atravessando uma parte importante da nossa produção arquitectónica e estando naturalmente contaminado pela produção artística de cada época. É o século xviii o período em que se veicula o azulejo em Portugal e onde nos surgem os principais repositórios de imaginários. Suporte privilegiado de pintura e arte decorativa total, apresentou‑se sempre como uma resposta simultaneamente estética e pratica às necessidades de cada tempo. Uma das questões indiscutíveis é a atmosfera que o azulejo barroco impõe, reinventando e recriando um espaço, por vezes difícil de entrever hoje, aos nossos olhos. São actualmente inúmeras as questões que se colocam ao estudo e respectiva análise de interpretação da azulejaria tanto neste período como em outros. Procurámos traçar neste texto – numa visão panorâmica e alargada – a historiografia mais recente do azulejo barroco, incluindo os estudos, e os novos contributos que têm feito da Azulejaria Portuguesa deste período um lugar de inquietações e objecto de investigação.
palavras‑chave azulejo barroco historiografia inventário salvaguarda preservação
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Abstract Azulejo tiling is a deep-rooted feature of Portuguese architecture, eminently present in our architectural production, and naturally influenced by the artistic production of each period. The 18th century is commonly considered to be the period which best represents azulejo tiling in Portugal, offering its broadest imagetic repertories. Particularly apt as a painted medium to create comprehensive decorative programmes, azulejo tiling offered a solution to both the aesthetic and practical needs of its time. Baroque azulejo tiling had an undeniable capability to create a unique atmosphere, to transform and reinvent spaces that we sometimes now have difficulty envisioning. There are presently many questions surrounding azulejo tile making and its interpretation both for the referred period and for other times. On this basis, this article aims to offer a wide-ranging review of the most recent historiography of baroque tiles, including studies, approaches and new contributions which make Portuguese azulejo tiling of the 18th century an ever-developing research field.
key‑words
Arbitragem Científica Peer Review
Data de Submissão Date of Submission
Nuno Saldanha Professor Auxiliar, Escola Superior de Design / IADE – Creative University Unidade de Investigação em Design e Comunicação, IADE
Data de Aceitação Date of Approval
baroque azulejo tiling historiography inventorying conservation
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Jul. 2011
Ago. 2011
o azulejo barroco o estudo e a investigação em portugal ma ria a l ex a n d r a t r i n da d e g ag o da c â ma ra Universidade Aberta Centro de História de Arte e Investigação Artística, UE agagodacamara@sapo.pt
“Faleceu em Fevereiro o historiador J.M dos Santos Simões, o especialista de azulejaria de renome…” O rigor dos seus critérios de classificação, a sua memória prodigiosa, a vastidão das suas curiosidades, a capacidade de relacionação cultural definiram esta sólida personalidade da história da arte em Portugal, cuja perda é irreparável – não só no domínio em que se celebrizou (e no qual as próprias estruturas técnicas de trabalho de investigação entre nós não lhe permitiram criar discípulos) como também numa larga e responsável criação historiográfica” José Augusto França – “João Miguel dos Santos Simões”. in Colóquio Artes, n.º 7 (Abril 1972), p. 66
Antecedentes No contexto de outras expressões artísticas, a historiografia do azulejo barroco português apresenta‑se hoje vasta e emergente, procurando encontrar um espaço autónomo no panorama das designadas Artes Decorativas em particular e, da arte Barroca no geral. Nas últimas duas décadas, uma aproximação e abordagem ao estudo do azulejo reconfigurou‑se no âmbito alargado da investigação nacional. No entanto, apesar de grandes e significativos esforços, alguns estudos mais antigos possuem um interesse histórico apenas residual e contam com uma enorme
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dispersão. Uma larga percentagem de trabalhos encontra‑se esgotada, de difícil consulta e acesso, desconhecendo‑se um número razoável de catálogos mais informativos. O registo escrito e documental do azulejo remonta a fontes recuadas, onde vários autores comentam desde os séculos xvii e xviii a presença física de peças cerâmicas e azulejares em Portugal. Recordem‑se os trabalhos de Frei Nicolau de Oliveira, Livro das Grandezas de Lisboa, 1620 e Agostinho de Santa Maria, Santuário Mariano [….], 1707‑1723. Foi sobretudo nos meados do século xix – enquanto especificidade da arte portuguesa – que o azulejo se inscreveu na historiografia artística com maior incidência conquistando legitimidade e consciência da sua verdadeira dimensão territorial. A este propósito tomemos como exemplo a sintomática frase redigida, em 1846, pelo diplomata do rei da Prússia em Portugal, conde Athanasius Raczynski (1788 ‑1874) 1, “Les azulejos constituent en partie la physionomie du Portugal”, comentário que iniciará uma abordagem histórica desta arte. Sensivelmente uns anos depois, por volta de 1883, Joaquim de Vasconcelos (1849 ‑1936) atribuirá uma base científica – no contexto da História da Arte Portuguesa – aos capítulos específicos sobre cerâmica e azulejo, assumindo uma consciência cultural destas artes. A produção azulejar foi então uma das formas de arte que mais o fascinou. O seu espírito sistemático obrigou‑o a tratar o azulejo segundo várias perspectivas que se entrecruzaram: cronologia e periodização, inventariação, a sua musealização, e a aplicação e desenvolvimento na contemporaneidade 2. Entendeu e apercebeu‑se da capacidade do azulejo quando integrado nas arquitecturas: “o mais bello pano de raz, com todos os caracteres de grande mural”3; compreendendo este objecto artístico no seu contexto e particularmente no seu devir histórico. Podemos ainda citar de memória outros nomes e obras centradas nas particularidades do azulejo e numa preocupação inventariante crescente durante este período: a José Queirós 4 (1856‑1920) (Fig. 1) foi atribuída, em 1916, a organização da primeira inventariação dos azulejos existentes em Por tugal, trabalho que não teve consequências devido à sua morte, no entanto os seus importantes contributos dirigiram‑se para a cerâmica logo no início do século – “Faiança de Massarelos” na Revista Serões (1905) e Cerâmica Portuguesa (1907), obra reeditada e actualizada em 1987. Vejam‑se ainda Olarias do Monte Sinay (1913), do mesmo ano “Azulejos da Portaria de S. Vicente” publicado no Bolletino del Museo Internazionale del Ceramiche e, de 1916, o artigo “Louça e azulejos de Torres Vedras” na Terra Portugueza. Vergílio Correia (1888‑1944), entre os anos 10 e 20, vem a estampa com “A Família Oliveira Bernardes, uma grande escola de pintura de azulejos (1.ª metade do século xviii)” na Revista Águia, 1917, seguindo‑se, em 1918 e 1919, “Oleiros e pintores de azulejo: olarias de Santa Catarina e Santos” e “Oleiros Quinhentistas de Lisboa”.
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Les Arts en Portugal. Lettres Adressés a la Societé Artistique et Scientifique de Berlin, et Accompagnées de Documentes. Paris, 1846 e Dictionnaire Historico‑Artistique du Portugal (...). Paris : 1846. Vd. Rodrigues, Paulo Simões. 2011. «O conde Athanasius Raczynski e a Historiografia de Arte em Portugal”. Revista de História da Arte n.º 8: 264‑276. Lisboa: Instituto de História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. 1
2
Câmara 2008c, 217‑228.
Vasconcelos, Joaquim de. 1909. “A Arte Decorativa Portuguesa”. Notas sobre Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional. V. II: 200‑201 3
Atenda‑se ao percurso “entrelaçado” entre Joaquim de Vasconcelos e José Queirós: Leandro, Sandra. 2010. “Vasos Comunicantes: Joaquim de Vas4
Fig. 1 – Retrato de José Queirós, Pintura de Columbano Bordalo Pinheiro, 1885, Museu do Chiado – Museu Nacional de Arte Contemporânea, Lisboa, inv, n.º 1461. (© José Pessoa / DGPC / ADF)
o azulejo barroco
concelos (1849‑1936) e José Queirós (1856‑1920)”. A Cerâmica Portuguesa da Monarquia à Republica. Lisboa: Museu Nacional do Azulejo. 15‑26. Telles, Francisco Liberato. 1986. Duas Palavras sobre Pavimentos; Temas de Lisboa na Iluminura e no Azulejo, Catálogo da exposição da C.M.L (Palácio Galveias, Lisboa). 5
Robert C.Smith (1912‑1975) e a investigação na História de Arte. 2000. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 6
Fig. 2 – Frontispício da obra O Azulejo em Portugal de Reynaldo dos Santos, 1957‑58.
Outro autor, Francisco Sousa Viterbo (1845‑1910) lançou, em 1922 pela Associação dos Arqueólogos de Lisboa, Cerâmica Lisbonense nos princípios do século xvii, e “A Quinta dos Azulejos” em O Instituto (datado de 1909 mas com edição posterior). Paralelamente à produção escrita, a vertente museológica não foi descurada. Citem‑se as principiantes intenções museológicas, em finais do século xix, de José Maria Nepomuceno (1836‑1895) e Francisco Liberato Teles (1843‑1902) 5 em reunir variados azulejos provenientes de conventos extintos e outros edifícios públicos no Convento da Madre de Deus. Em 1939, foi importante a Exposição de Cerâmica Ulissiponense, organizada por Augusto Cardoso Pinto no Palácio Galveias, embrião do efémero Museu de Azulejo e Faianças de Lisboa, que mais tarde deu origem ao Museu da Cidade. Os anos 40 foram essencialmente impulsionados por uma vontade de rastreio e cadastro de obras do património nacional. Em 1943, a Academia de Belas‑Artes de Lisboa inicia a publicação monumental do Inventário Artístico de Portugal de que resultaram a edição de sete distritos agrupados em XIII tomos e onde o azulejo se destaca com a sua intenção e função verdadeiramente decorativa. Durante os anos 50 surgirá Reinaldo dos Santos (1880‑1970), nomeadamente com a primeira perspectiva de conjunto sobre O Azulejo em Portugal de 1957‑58 (Fig. 2), obra reunida no volume III de Oito Séculos de Arte Portuguesa e, numa visão “de fora” da arte portuguesa, o olhar atento de Robert Chester Smith (1912 ‑1975) que avançará com atribuições de obras, registando e fotografando os seus objectos de estudo, constituindo uma vasta colecção de imagens, particularmente no campo da talha, das artes decorativas e da arquitectura do Norte de Portugal nos séculos xvii e xviii 6 . A partir deste momento o estudo e interesse pela arte do azulejo vem desenhando e conquistando demoradamente as suas fronteiras, faltando ainda em meados dos anos 60 e 70 uma obra geral e de perspectiva mais ampla sobre e evolução do azulejo em Portugal, e mais especificamente sobre o seu papel e a sua relação com a arte barroca portuguesa. Numa escala mais global, outros desafios se começam a colocar ao estudo do azulejo barroco, tais como a tentativa de identificar “escolas”, correntes artísticas, estilos e autorias.
João Miguel Santos Simões (1907‑1972) As bases mais sólidas de uma historiografia da especialidade pertenceram ao Engenheiro João Miguel Santos Simões (Fig. 3) que fez da azulejaria portuguesa um lugar de inquietações e objecto de investigação pessoal. Um dos seus principais desígnios foi, desde sempre, fazer progredir a investigação no campo da azulejaria, à qual dedicou a sua vida.
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Fig. 3 – Fotografia de João Miguel Santos Simões, Museu Nacional do Azulejo. Espólio João Miguel dos Santos Simões.
Fig. 4 – Azulejos – 6.ª Exposição Temporária de Azulejos do Museu Nacional de Arte Antiga, Museu Nacional de Arte Antiga, 1947.
É como Conservador‑Ajudante do Museu Nacional de Arte Antiga que organizou em 1947 uma exposição – Azulejos, a 6.ª exposição temporária deste museu (Fig. 4), um verdadeiro embrião do futuro Museu Nacional do Azulejo, na distribuição da colecção pelas salas de exposição, as divisões cronológicas e temáticas da azulejaria, questões que definiram igualmente a futura organização do Corpus de Azulejaria Portuguesa, um projecto pioneiro e – depois aliado à Brigada de Estudos de Azulejaria – que só nos anos 60 começará a ganhar forma 7. A tentativa de realização de um inventário sistemático e abrangente em termos geográficos da azulejaria com diferentes cronologias e tipologias irá constituir o propósito da carta que João Miguel Santos Simões apresentará, no dia 25 de Janeiro
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Câmara 2007a, 145‑155; Câmara 2008b, 419 ‑422. 7
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Fig. 5 – Reedições Corpus da Azulejaria Portuguesa. Azulejaria em Portugal no século xvii, 1997, Azulejaria em Portugal no século xviii, 2010.
Fundação Calouste Gulbenkian, Biblioteca de Arte, Arquivo Santos Simões, Espólio, Dossier n.º 2. 8
de 1957, ao então presidente do Conselho de Administração da Fundação Calouste Gulbenkian, o Doutor Azeredo Perdigão: “O trabalho que proponho oferecer à Fundação Calouste Gulbenkian é a realização de uma obra total sobre azulejaria… Trabalho que não é apenas de síntese ou vulgarização, pretende ser acima de tudo útil e completo… Assim será na verdade, o primeiro livro que abarca este tão importante capítulo das Artes Decorativas num âmbito internacional, dando a conhecer insuspeitadas riquezas e esclarecendo não poucos pontos que, por falta de unidade sistemática, têm ou passado despercebidos ou lamentavelmente interpretados. Mais do que um “livro de arte” pretende ser um livro “para a arte” e para os estudiosos, reunindo num “corpus” homogéneo o muito que se encontra desconexo e disperso…”8 , projecto que se materializará, anos mais tarde, num empreendimento de esforço e mérito conjunto, com a intenção desta Instituição em patrocinar aquilo que ficou conhecido como o Corpus da Azulejaria Portuguesa, cujo propósito era realizar a sistematização dos exemplares que ilustravam a evolução da arte do azulejo em Portugal. Depois de percorridos alguns trilhos e de vários planos de publicação, a obra resultou em cinco volumes: Azulejaria Portuguesa nos Açores e Madeira (1963); Azulejaria Portuguesa no Brasil (1500‑1822) (1965); Azulejaria em Portugal nos séculos xv e xvi (1969), Azulejaria em Portugal no século xvii (1971), as duas últimas com reedições recentes (1990; 1997), e Azulejaria em Portugal no século xviii, edição póstuma (1979) – esgotada há vários anos, recentemente reeditada e actualizada –, e algumas monografias complementares, na sua maioria inéditas (Fig. 5). João Miguel Santos Simões acreditava que os azulejos constituíam um caso exemplar entre os materiais cerâmicos culturais. Consciente da amplitude do seu trabalho ensaiou uma metodologia de inventariação que se revelou eficaz na sua planificação, compondo‑se assim de diversas fases. Numa primeira fase, era efectuada a localização dos núcleos. Este processo era realizado através do envio de inquéritos às Câmaras Municipais e Paróquias bem como pela publicação de pequenos artigos, em jornais locais, que solicitavam a colaboração da população nesta tarefa de descobrir novos azulejos. Numa segunda fase, procedia ao trabalho de campo propriamente dito, que consistia na verificação dos dados recolhidos e no levantamento das informações que anotava em livros de campo e que registava fotograficamente. Por fim, num último momento todo o material era compilado e organizado, este já um trabalho de gabinete, em que eram elaboradas fichas de texto para cada edifício inventariado e relacionado com um ficheiro geral de índices, constituído por fichas temáticas (Fig. 6) com várias entradas (azulejos datados, ornamentais, iconográficos, legendados, mitológicos, religiosos, entre muitos outros). Concebeu e arquitectou, deste modo, um projecto, que foi meticulosamente cumprido ao longo de quase três décadas, deixando uma obra vastíssima como historiador e teórico do azulejo e, um importantíssimo testemunho: uma nova forma de pensar, modelar, conhecer e entender a arte do azulejo.
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Fig. 7 – Catálogo da Exposição João Miguel Santos Simões. 1907‑19722, MNAz, 2007.
Fig. 6 – Ficha de Inventário. Espólio de João Miguel Santos Simões, Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian.
Foi precisamente em 2007, para assinalar o centenário do seu nascimento, que o Museu Nacional do Azulejo lhe dedicou uma homenagem realizando uma exposição e um catálogo João Miguel Santos Simões 1907‑1972 (Fig. 7), onde a sua obra foi revista, ficando bem patente a extraordinária actividade desenvolvida por este estudioso, assim como o modo como a exerceu, com grande empenho pessoal, rigor científico e responsabilidade cívica. Mais recentemente, em Novembro de 2010 no Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras de Lisboa, a Rede Temática em Estudos de Azulejaria e Cerâmica João Miguel Santos Simões organizou um Colóquio Internacional 9 sobre a Herança de Santos Simões – Novas Perspectivas para o Estudo da Azulejaria e da Cerâmica, reunindo um conjunto de investigadores que procuraram reflectir e apresentar novos contributos em torno de estudos de Azulejaria e de Cerâmica, não esquecendo a Salvaguarda e Preservação deste Património, assunto ao qual regressaremos.
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Data de 1971 o 1.º Simpósio Internacional s obre Azulejaria organizado por J. M. Santos Simões. Vd. Mântua, Ana Anjos. 2007. “O I Simpósio Internacional de Azulejaria, Lisboa 1971”. João Miguel dos Santos Simões. 1907‑1972. Investigador, Museólogo, Historiador do Azulejo e da Cerâmica. Lisboa: Ministério da Cultura – Instituto Português dos Museus e da Conservação – Museu Nacional do Azulejo: 129‑141. Outros Encontros sobre Azulejaria foram promovidos pela Fundação das Casas de Fronteira e Alorna em Lisboa durante os anos 90. 9
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Estudos nas décadas de 80 e 90
Fig. 8 – Catálogo da Exposição Azulejos de Lisboa, Museu da Cidade, Lisboa, 1984.
Decreto‑Lei 404/80 de 26 de Setembro. Carvalho 2007a, 107‑117. 10
A recepção e herança da figura incontornável de João Miguel Santos Simões levou muitos historiadores a reflectirem sobre um conhecimento mais directo da sua “lição”. As principais linhas de trabalho, assim como os seus interesses vocacionais geraram um campo de investigação profícuo, anteriormente virgem e pouco conhecido. Os anos que se seguiram ao seu desaparecimento, e a inoperância da Brigada de Azulejaria reduzida a um Arquivo, foram caracterizados por alguma indecisão, confusão e dificuldades, gerando um vazio no estudo da azulejaria portuguesa. Na década de 80 reactivam‑se as colecções nacionais mais importantes da azulejaria. Precisamente em 1980 10 , com base em legislação oficial, a estrutura instalada no antigo convento da Madre de Deus é assumida como Museu. Rafael Calado (1937‑2006) irá comissariar, uns anos depois, a exposição itinerante Azulejos – Cinco Séculos do Azulejo em Portugal, sendo igualmente montada a exposição do Museu da Cidade Azulejos de Lisboa (Fig. 8), cujo catálogo constitui a primeira síntese actualizada sobre azulejaria portuguesa após a de Reinaldo dos Santos (1880‑1970), preferencialmente no contexto de Lisboa. A partir daqui, muitos trabalhos avançam concretamente na recuperação e tentativa de definição de um ciclo barroco na Azulejaria Portuguesa. Surgirão estudos monográficos e parcelares, desviando‑se a ideia de uma abordagem mais global e alargada. São eles os trabalhos de Flávio Gonçalves – As obras setecentistas da Igreja de Nossa Senhora da Piedade e o seu enquadramento da Arte Portuguesa da primeira metade do século xviii (1984), Carlos Moura e José Meco, respectivamente nas Publicações Alfa (1989). O primeiro com a definição dos primórdios do Barroco, Sombra, luz e cromatismo: a pintura e o azulejo. As artes decorativas, e o segundo com uma proposta de síntese O Azulejo em Portugal. Ainda nos finais dos anos 80, o Dicionário do Barroco (...), privilegia a azulejaria com algumas das seguintes entradas: “Azulejo”, “Figuras de convite”, “S. Lourenço de Almansil”, “Quinta dos Azulejos”, “Palácio do Correio‑Mor”, “Loios de Évora”, “Loios de Arraiolos”, “Valentim de Almeida”, “Policarpo de Oliveira Bernardes” e “António de Oliveira Bernardes”. Pela mesma altura, a revista sobre estudos barrocos – Claro/Escuro (1989‑90) – aparece com importantes trabalhos de Luísa Arruda ao nível da encomenda, do retrato cerâmico e da caracterização de um género artístico correcta e cientificamente delimitado em relação às outras criações azulejares portuguesas do tempo: as figuras de convite – O retrato de D. João V na Portaria de S. Vicente de Fora e o Palácio de Xabregas. Do Legado de Tristão da Cunha às grandes obras do século xviii; intenções que irão desembocar mais tarde num projecto mais alargado e inovador – Azulejaria Barroca Portuguesa – Figuras de convite (1993). Respectivamente em relação ao rococó e ao período pós‑terramoto, as lacunas existentes eram maiores. Inicia‑se, ainda nos anos 80, uma reformulação cronológica deste período em fases individualizadas. Concretamente no que respeita à produção ligada à Fábrica do Rato intuída por José Meco: Azulejaria no Concelho
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de Oeiras. O Palácio Pombal e a Casa da Pesca (1982) e Louças do Rato e azulejos pombalinos, artigo que acompanha o Catálogo da Exposição patente no Museu da Cidade em 1982 e, ainda, o estudo sobre o retrato cerâmico de José Sarmento de Matos a propósito do programa decorativo da Galeria dos Reis no Palácio Fronteira publicado na revista Italiana F.M.R. (Milão, 1985). Os anos 90 constituem um período de expansão em edições relacionadas com a temática da azulejaria setecentista e a sua presença no Brasil. Assim, assistimos ao aparecimento de duas obras sequenciais sobre os azulejos em Portugal e no Brasil: Azulejos na cultura luso‑brasileira (dir. de Dora Alcântara, 1997) e Azulejos – Portugal e Brasil (revista Oceanos, 1998/1999). O ano de 1991 ficou assinalado com o aparecimento da revista Azulejo (n.º 1, 1991; n.º 2, 1992; n.º 3/7, 1995‑1999) um projecto editorial ligado ao Museu Nacional do Azulejo: a história do azulejo, iconografia, monografias sobre conjuntos de azulejo in situ, fontes iconográficas do azulejo são áreas do conhecimento que aqui encontram espaço de publicação e actualização. Também os importantes estudos de Luís Moura Sobral sobre um sentido da narração plástica muito têm contribuído para uma leitura direccionada do programa azulejar, tais como Pulchra Est Amica Mea: Simbolismo e narração num programa imaculista de António de Oliveira Bernardes (1999), entre outros. Destaque‑se ainda, um conjunto de trabalhos muito importantes relacionados com a azulejaria de Lisboa: Azulejos. Painéis do século xvi ao século xx (Santa Casa da Misericórdia, 1994), História e Azulejo. Hospitais Civis de Lisboa (1996); Guia do Azulejo (Guias do Caminho a Oriente 1998) e Azulejos. Arte e História (1998) importantes colaborações num entendimento da articulação dos azulejos com o espaço e com as arquitecturas. Também de acrescentar a panóplia de estudos e publicações de José Meco, que desde 1979 tem trabalhado e reflectido sobre uma análise interpretativa da azulejaria barroca, e os trabalhos de Vítor Serrão na perspectiva do estudo e da leitura integrada da obra de arte 11. A completar, uma atenção às colecções e ao alargamento ao espaço da cerâmica portuguesa, foram apresentadas no Catálogo da Exposição do Museu Nacional do Azulejo: Cerâmica Neoclássica em Portugal (1997), um estudo contextualizado das colecções e ao mesmo tempo um levantamento criterioso do património público e privado.
Novas abordagens Com significativos contributos nos últimos anos, uma identidade da azulejaria – designada amplamente por barroca –, que abrange e se estende a todo o século xviii, continua a apresentar‑se como uma grande área de investigação e de trabalho onde se impõem grandes ciclos de produção, alguns ainda por precisar, esclarecer
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Ambos os autores apresentaram sínteses sobre o tema. Serrão 2003 e Meco 2002 11
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Mangucci, António Celso. 1996. “Olarias de Louça e Azulejos da Freguesia de Santos‑o ‑Velho dos Meados do Século XVI aos meados do século xviii”. Al‑madan II série, 5. Almada: Centro de Arqueologia de Almada; e Mangucci 2003a. 12
e delimitar. Uma parcela desta azulejaria é anónima, desconhecendo‑se em parte quem a produziu e quem a encomendou. Novos agenciamentos estéticos se colocam hoje à caracterização da azulejaria portuguesa deste período, procurando encontrar um entendimento e padrão comum entre esta arte e outros objectos artísticos assente em três variantes principais: o enquadramento histórico, a análise artística, e a leitura iconográfica. Podemos incluir um conjunto de motivações e de novas abordagens e actuações que têm contribuído para a certificação e legitimidade artística e social deste suporte artístico. Cumpre, neste texto, enunciá‑los como suportes de trabalho para uma sólida prática historiográfica e cultural que se deseja cada vez mais intensa. Uma das primeiras questões tem‑se centrado na reflexão sobre a metodologia e normalização, aferindo critérios de identificação de peças existentes em colecções tanto privadas como públicas e ainda a apresentação de soluções para o desenvolvimento e prática do trabalho de inventariação in situ partindo de levantamentos totais ou parciais. Tornou‑se cada vez mais urgente recensear e preservar os conjuntos azulejares in situ, fomentando paralelamente uma política eficaz de restauro. Esta última questão tem sido felizmente e, com sucesso, seguida no Museu Nacional do Azulejo, para a qual a atenção se tem focalizado nos últimos anos. É, especificamente, em relação à tentativa de estabelecer critérios estilísticos, definição de autorias e ciclos de produção que muitos trabalhos de investigação procuram dar actualmente resposta. Merece aqui realçar a pesquisa arquivística aplicada aos estudos sobre cerâmica e azulejaria produzida ao longo dos séculos xvii e xviii, que embora se afastando do exame directo dos objectos, traz informações fundamentais para o conhecimento da sua história: o estudo topográfico e a localização de fábricas e oficinais, o seu funcionamento, a distinção entre os diversos ofícios (oleiros, ladrilhadores e pintores de loiça e azulejo), assim como todo o processo de encomenda, produção e difusão do azulejo. Estas recentes perspectivas de investigação contam com importantes trabalhos de Celso Mangucci12. Outra das mais destacadas e importantes abordagens do estudo da azulejaria barroca recai sobre a análise da sua iconografia e a leitura dos espaços e dos programas decorativos. As potencialidades narrativas do azulejo fazem parte da sua complexidade. Importantes estudos sobre o sentido da narração plástica muito têm contribuído para uma leitura direccionada do programa azulejar barroco (Sobral 1999; Correia 2001, Carvalho 2003, 2007b, 2008). A questão das fontes de inspiração do azulejo e o papel importantíssimo da gravura e da imagem impressa, manuseada, manipulada, pensada como um instrumento do conhecimento, tem suscitado muito interesse na forma e no modo como os pintores de azulejo procuraram utilizar essas gravuras, levando‑nos a percepcionar o fenómeno de cópia no sistema da produção pictórica. A força destas imagens, constituiu ela própria um referente cultural, partilhando a ideia de que é preci-
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so ir um pouco mais longe e encontrar as funções dos próprios modelos sobre o processo artístico. Recentemente, alguns trabalhos de âmbito universitário (dissertações de Mestrado e Doutoramento) procuraram estudar a relação entre a estampa e o azulejo, como um item importantíssimo para a compreensão da originalidade do imaginário português registado na pintura azulejar (Almeida 2004; Correia 2005; Rosário 2007b; Verão 2009; Campelo 2010; Eusébio 2010) Num registo um pouco diferente de interpretação do azulejo deste período, seguindo o enfoque numa contextualização social e cultural do azulejo civil e integrando a azulejaria deste período nos quadros da vida social e cultural que a produziram, procurou‑se encontrar e cruzar as relações e significações entre o discurso da iconografia azulejar com um terreno mais vasto da arte e da cultura portuguesas deste período, destacando a função social do azulejo em contexto exclusivamente civil (Tércio 1999; Câmara 2001). A utilização das novas tecnologias em parceria com laboratórios e institutos tecnológicos e o desenvolvimento de projectos científicos acreditados e financiados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) nos últimos anos, tais como: o estudo interdisciplinar sobre o grande painel da Vista de Lisboa (Fig. 9) perten-
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Fig. 9 – Pormenor do Grande panorama de Lisboa,Paço da Ribeira, Lisboa c. 1700, Faiança a azul sobre branco, 115 3 2247 cm, Proveniente do antigo Palácio dos Condes de Tentúgal, Lisboa, MNAz. (© IMC / Carlos Monteiro)
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Um sistema de gestão do património desenvolvido pela empresa Sistemas de Futuros com a qual a Rede Temática de Estudos em Azulejaria e Cerâmica JMSS mantém uma estreita colaboração. Este sistema relaciona diversas bases de dados que, integradas, cumprem os objectivos definidos para o inventário da azulejaria: 1) inventário do património azulejar in situ (módulo de inventário de património integrado); 2) dicionário de pintores de azulejo, autores, azulejadores e fábricas; 3) thesauri de iconografia e de termos cerâmicos; 4) conservação e restauro e análises laboratoriais; 5) bibliografia sobre azulejaria e cerâmica. Vd. http://redeazulejo.fl.ul.pt/ 13
cente ao Museu Nacional do Azulejo; a busca e indexação de bases de dados de imagens artísticas, a procura de técnicas não destrutivas para a visualização, caracterização, diagnóstico e conservação dos azulejos, e a caracterização química e física dos azulejos históricos com o objectivo de se conhecer melhor as causas da sua deterioração física, pretendem proporcionar um estreitamento das relações entre as áreas das Ciências, incluindo a computação gráfica e a História da Arte. Por fim, os inventários, procuram dar a conhecer a realidade patrimonial do país. São exemplos de boas práticas: Inventário do Património em Azulejo do Século XVIII em Território Continental, um projecto ambicioso financiado pelo FCT entre 2005 e 2008, que procurou levar a cabo a revisão e actualização da Brigada de Santos Simões através de um trabalho de campo e posterior registo informático, que se iniciou no Museu Nacional do Azulejo, tendo agora continuidade através do sistema de gestão de património in patrimonium13 (Fig. 10) desenvolvido e
em curso na Rede Temática de Estudos de Azulejaria e Cerâmica João Miguel Santos Simões; o Inventário do património azulejar do Centro Hospitalar de Lisboa Central realizado ao abrigo do protocolo celebrado entre o Instituto de História de Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e Centro Hospitalar de Lisboa Central, com o objectivo de inventariar o património azulejar dos hospitais
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Fig. 10 – Ficha do in patrimonium. Rede Temática de Estudos em Azulejaria e Cerâmica João Miguel Santos Simões.
que integram este Centro entre os quais se destacam, pelo seu original valor artístico e patrimonial, o Hospital de Santa Marta, o Hospital de São José e o Hospital de Santo António dos Capuchos. Citem‑se, ainda, outros projectos em curso como o PrintArt – Busca e indexação em bases de dados de imagens artísticas, e Radiart – um projecto interdisciplinar centrado no uso de técnicas não invasivas, ambos projectos I&D financiados pela FCT e envolvendo instituições parceiras na áreas das tecnologias como o Instituto Superior Técnico e o Instituto Tecnológico Nuclear.
Instituições e Redes Temos vindo a constatar, ao longo deste texto, o grande impulso que a investigação em História do Azulejo barroco tem sofrido nos últimos anos contando com trabalhos marcantes divulgados em exposições, catálogos, monografias, estudos específicos, dissertações, projectos de investigação entre outros, que têm posto em evidência importantes e relevantes conjuntos inéditos e contribuído cada vez mais para a conquista e afirmação da azulejaria enquanto disciplina emergente e objecto de estudo no contexto tanto das Artes Decorativas em particular, como da História da Arte em geral. Como sabemos o património em azulejo ganhou, com o recente conceito de património integrado14 , unidade e um estatuto de um bem cultural “espacializado”, assim classificado por estar fixo na arquitectura e ser parte essencial das funcionalidades prática, estética e simbólica do edifício que integra, com frequência estruturando o próprio espaço e carregando‑o de significados.
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A designação “património integrado” foi literalmente inventada quando da redacção da Lei Orgânica do IPPAR na sua versão de 1997 (Decreto‑Lei 120/97 de 16 de Maio). A ideia inicial foi a de distinguir claramente aquilo que vinha quase sempre referido como património “móvel”. Paralelamente avança‑se com a criação de um Departamento dedicado em exclusivo ao património integrado (art.º 18). Vd. Património. Estudos. Conservação e Restauro de Património Móvel e Integrado. 4 (2003). Lisboa: Instituto Português do Património Arquitectónico. 14
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Fig 11 – Atena, painel Mitológico, Faiança azul sobre branco, Lisboa, século xviii, MNAz, inv. 6116. (© IMC / Luísa Oliveira)
Neste sentido, tem sido da maior importância o destaque e a atenção que as principais instituições responsáveis pelo património português têm concedido ao estudo, preservação e divulgação do azulejo. Atentos a esta visão e perspectiva integral do monumento, um conjunto de instituições do Estado, a destacar o antigo Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico (IGESPAR/ então na tutela do Ministério da Cultura), tem mantido um esforço de investimento na conservação e restauro do património integrado, contando para tal com um Programa específico – “Programa de Valorização e Defesa dos Valores Culturais Móveis” e com o “Programa Operacional da Cultura” (POC). O universo de imóveis classificados no âmbito do património integrado revela‑se, actualmente, numa lista considerável de intervenções diversificadas recentemente concluídas, em curso ou em preparação apresentadas por tipologias, em que a conservação e o restauro de património integrado e particularmente o azulejo adqui-
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riu maior expressão, sendo o caso por exemplo de conjuntos monásticos, palácios nacionais, ou em apoio a outras entidades. As acções de conservação e restauro efectuadas por este organismo incidem sobre um universo extenso e diversificado obrigando, por isso, a critérios selectivos de intervenção e à articulação com programas mais vastos de salvaguarda e recuperação dos imóveis de que fazem parte. Outras instituições como a ex‑Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), actual Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), e as Direcções Regionais de Cultura (Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve) têm‑se mantido atentas e intrinsecamente vocacionados para a área da reabilitação urbana e, consequentemente, da salvaguarda e valorização patrimonial assegurando a memória e vivência do edificado. A Igreja tem igualmente contribuído com um papel activo no estudo e investigação desta área, promovendo colóquios, cursos, itinerários culturais e publicações. Referimo‑nos ao Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja (SNBC) e a sua recente publicação semestral Invenire – Revista dos Bens Culturais da Igreja (já no seu 3.º número) numa aposta da difusão de projectos de salvaguarda do património cultural e artístico da Igreja Católica em Portugal em articulação com a difusão de estudos e trabalhos científicos inéditos e, ainda, o importante papel desempenhado pelo Departamento do Património Artístico da Diocese de Beja. Os museus são instituições que têm desempenhado uma função de extrema importância na divulgação das suas colecções e no alargamento ao espaço da cerâmica portuguesa. Uma atenção particular recai no museu da especialidade – o Museu Nacional do Azulejo – que, desde sempre, tem procurado agilizar meios e saberes que possam ser adequados à inventariação do azulejo in situ, cabendo‑lhe a tarefa de uma reflexão sobre a metodologia e inventariação do património em azulejo, quer assumido como peça museológica, quer como conjunto integrado nas arquitecturas, não descurando a inventariação e estudo do seu espólio, como é exemplo o projecto de investigação centrado sobre as reservas do Museu intitulado Devolver ao Olhar. Devemos ainda salientar os encontros científicos e os cursos livres promovidos e centrados neste espaço, tais como Curso de História do Azulejo. Cinco séculos de Presença em Portugal em 2009 e Um Gosto Português. O uso do Azulejo no século xvii em 2010, e a decorrer a partir de Fevereiro de 2012 – D’aquem e d’além-mar. O azulejo e as artes decorativas no contexto de expansão portuguesa, entre muitos outros. Os últimos anos trouxeram, em particular às autarquias, mudanças significativas na forma de olhar este património in situ, expressando e emitindo pareceres sobre a salvaguarda e protecção deste património envolvendo muitas vezes a comunidade local através de campanhas de sensibilização para as questões patrimoniais15 . No caso específico de Lisboa, a Câmara Municipal, através da Direcção Municipal de Cultura e Departamento de Património Cultural, tem no seu horizonte um Programa
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Fig 12 – Figura de Convite, Faiança a azul sobre branco, Lisboa, século xviii, MNAz, inv. 6115. (© IMC / Luísa Oliveira)
Alguns municípios do país sensibilizados para a salvaguarda do património azulejar partilham bons exemplos e profícuas experiências. Vejam ‑se os casos de Ovar, Aveiro e Montijo entre outros. Câmara 2008a. 15
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A Rede passou a integrar o Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em Julho de 2009, por indicação da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e à luz de um protocolo firmado entre o Instituto dos Museus e da Conservação (IMC) e a Faculdade de Letras. http://www.redeazulejo.fl.ul.pt/ 16
Santos Simões colocará ao serviço da criação do Museu do Azulejo o seu vasto conhecimento em azulejaria e a sua experiência em museologia. Em muitos dos seus trabalhos ressalta uma das suas prioridades, a vertente didáctica e a utilidade social do museu. Na sua obra intitulada “Museu do Azulejo: Proposta para a sua Criação (1959)” sugere o aparecimento de um Centro de Estudos de Azulejaria, ponte entre a actividade científica e a divulgadora do Museu. Vd. Henriques, Paulo. 2010. “Investigação no Museu Nacional do Azulejo: do projecto de um Centro de Estudos a uma Rede Temática”. Comunicação apresentada no Congresso Internacional A Herança de Santos Simões. Novas Perspectivas para o Estudo da Azulejaria e da Cerâmica (Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa/Rede Temática em Estudos de Azulejaria e Cerâmica João Miguel dos Santos Simões). 17
de Investigação e Salvaguarda do Azulejo de Lisboa (PISAL) um instrumento que permitirá à Autarquia definir uma visão estratégica das intervenções necessárias ao estudo e salvaguarda do património azulejar – já promovendo o 1.º Encontro de Património Azulejar subordinado ao tema Lisboa: o Azulejo e a Cidade em Novembro de 2011 – aprofundando o conhecimento sobre a conservação do património azulejar da cidade e hierarquizando as prioridades de intervenção, com articulação à escala de cada freguesia, de forma a criar maior operacionalização, cruzando assim diversas acções de diferentes actores locais, tais como o incentivo e encorajamento do “SOS Azulejo” (Museu de Polícia Judiciária), propondo um conjunto de conselhos e boas práticas na ajuda da prevenção criminal e conservação preventiva deste património. Não podemos também esquecer e descurar neste caminho a função que a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT / actual Ministério da Educação, Ciência, Tecnologia e Ensino Superior) tem procurado desempenhar tanto na atribuição de bolsas de Doutoramento e Pós‑Doutoramento, como no lançamento de candidaturas anuais para projectos de investigação contemplando áreas como a História, História da Arte e Estudos Artísticos, tornando‑se o principal agente de financiamento de Unidades e Centros de Investigação, sediados nas Universidades e que promovem de Norte a Sul do país investigação científica de qualidade. Para finalizar, em 2006 foi criada inicialmente no Museu Nacional do Azulejo 16 , a Rede Temática em Estudos de Azulejaria e Cerâmica João Miguel dos Santos Simões (RTEACJMSS), um núcleo de especialização científica com o objectivo e a missão de promover a pesquisa sobre o azulejo e a cerâmica e o incremento dos estudos artísticos desenvolvidos pela obra do seu mentor e preponente Engenheiro João Miguel dos Santos Simões17. A Rede Temática conta actualmente com número razoável de bolseiros/investigadores, centrando a sua força no seio da comunidade científica no rigor da investigação e na valorização deste imenso património artístico.
Que futuro? O estudo e a investigação na área do azulejo (séculos xvii e xviii) sofreu, como vimos, mudanças significativas nos últimos tempos. Os estudos sobre a encomenda, os programas iconográficos, a relação entre o azulejo e a arquitectura, os seus usos e as suas funções, as referências ao desenvolvimento das olarias, a evolução estilística, as questões de autoria e a análise química de pastas, vidrados e pigmentos, são frentes e linhas de trabalho em curso e franco desenvolvimento que podem revelar um crescente conhecimento e complexidade desta área de trabalho. Tratando‑se de uma presença material que marcou originalmente uma parte significativa da geografia cultural de Portugal ultrapassando as fronteiras continentais, torna‑se, cada vez mais, premente definir e conhecer com profundidade este universo rico de significações e dele fazer uma leitura artística alargada e integrada.
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Acreditamos que uma inventariação exaustiva acompanhada de estudos científicos e desenvolvimentos parcelares do património em azulejo (não apenas das centúrias em análise, mas incluindo todas as épocas), uma real atenção às existências actuais e estado de conservação, o acesso deste sistema, quer às autarquias, quer às Universidades e outras instituições no sentido de permitir a integração de mais informação; nos permitirá alargar a “banda”, tornando‑se, cada vez mais, um campo de trabalho para futuras e sucessivas gerações de historiadores de arte e outros estudiosos trabalharem. A produção recente de importantes teses de Mestrado e Doutoramento, a juntar os projectos de investigação que têm como centro ou ponto de partida o Azulejo em Portugal, põe em evidência a necessidade absoluta de um inventário sistemático e actualizado deste património como essencial instrumento de trabalho académico. Só assim se poderá entender e conceptualizar que o estudo e aprofundamento da investigação e reflexão teórica no campo da azulejaria barroca possa crescer e avançar cada vez mais, percebendo dinâmicas e pontos de encontro entre o estudo, o seu levantamento e inventariação e a salvaguarda e protecção deste património integrado.
Bibliografia
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Optámos por elaborar um elenco de referências bibliográficas recentes, mas que por razões impostas pela edição não pôde exceder as 40 referências. Incluem‑se os estudos mais específicos que nos últimos 10 anos representaram os principais contributos publicados sobre azulejaria barroca. 18
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Recensões La reciente historiografía española y su relación con la arquitectura de los siglos xvi, xvii y xviii: A propósito de Arquitecturas Pintadas David Martín López
Leonardo Turriano: Ingeniero del Rey – Alicia Cámara, Rafael Moreira, Marino Viganò. S.l.: Fundación Juanelo Turriano, 2010 Miguel Soromenho
Algarve em Património – José Eduardo Horta Correia. Olhão: Gente Singular, Editora, 2010. Cátia Teles e Marques
la reciente historiografía española y su relación con la arquitectura de los siglos xvi, xvii y xviii:
a propósito de arquitecturas pintadas dav id ma rtín ló pe z
Departamento de Historia del Arte, Universidad de Granada (Espanha)
“Arquitectura es edificación, recinto, instalación, espacio. Pero es también refugio, casa, estructura, lenguaje. Es interior o exterior; es permanente o efímera; artística o técnica; razón o expresión; urbana u objetual”1. El profesor y arquitecto Ignasi de Solá‑Morales definía así, con lucidez y sencillez, el concepto arquitectura. No sólo pensaba en la contemporánea cuando reflexiona de este modo; en verdad, la arquitectura siempre tiene ese carácter dual no excluyente: edificación y/o espacio, interior y/o exterior, permanente y/o efímera. Aldo Rossi ya había señalado a la arquitectura como un sistema “parlante” que dialoga con el receptor en espacio, tiempo y forma, trasmitiendo una serie de ideas e ideologías, de símbolos y códigos que hacen posible su estudio científico. Mucho tiempo ha transcurrido desde que en el siglo iii d. C. Plotino categorizara las artes en cinco grupos y, más aún, de cuando el médico Galeno de Pérgamo, siglo ii d. C., excluyera a las artes plásticas y a la arquitectura de las artes principales – trivium y quadrivium –, denominándolas “artes vulgares”. Sin embargo, lo cierto es que ambas han formado parte de múltiples divisiones y clasificaciones divergentes a lo largo de la historia, que condicionan además la manera de historiarla en nuestros días. Se podría decir que existe incluso en su análisis una tensión historiográfica desde el siglo de las Luces que no permite, en múltiples ocasiones el diálogo y entendimiento entre historia del arte e historia de la arquitectura. Por primera vez, con De Re Aedificatoria de León Batista Alberti, escrito entre 1443 y 1452, las reflexiones sobre arquitectura convergen en un nuevo espacio teórico2. A partir de entonces, la tratadística arquitectónica del Renacimiento va aumentando in crescendo temáticas, análisis y juicios estéticos, a la par que supliendo la
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Cf. Ignasi de Solá‑Morales, 2002. Territorios. Barcelona: Gustavo Gili. 1
Mar Llorente. 2000. El saber de la arquitectura y las artes: la formación de un ámbito de conocimiento desde la Antigüedad hasta el siglo xvii. Barcelona: Universidad Politécnica de Catalunya. 207. 2
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Este interesante proyecto de la Universidad de La Rioja – registro bibliográfico indexado de 56 bibliotecas universitarias –, exclusivo en el ámbito español, funciona como buscador, y puntualmente repositorio, de los artículos, monografías, catálogos existentes en las diferentes bibliotecas universitarias asociadas al sistema. Cf. http:// dialnet.unirioja.es. 3
Se ha empleado para este análisis la base oficial de datos de la Biblioteca Nacional Española, única base documental que recoge todas las publicaciones no periódicas efectuadas en este año 2011. 4
En este sentido, de forma anecdótica señalar que en 2011 se han realizado más de 35 publicaciones –científicas y divulgativas– en España que abordan con carácter monográfico la figura de Gaudí, la Sagrada Familia o su obra arquitectónica, que engrosan el amplio corpus bibliográfico que sobre el autor y sus monumentos se escribe anualmente en el país. 5
Página oficial del Programa Teseo del Ministerio de Educación de España. Cf. https://www. educacion.gob.es/teseo/irGestionarConsulta.do. 6
carencia de ilustraciones en el antiguo texto de Vitruvio y en el moderno de Alberti; cuestión prioritaria para los maestros arquitectos, quienes precisaban de la imagen y del modelo a la hora de concebir nuevos espacios. En cierto sentido, el desarrollo de la especificidad técnica y el análisis de la historia de la arquitectura en el Humanismo provocó que el estudio estético del patrimonio arquitectónico, su contexto cultural e histórico, fueran abordados por disciplinas aparentemente antitéticas, unas técnicas y otras histórico‑artísticas. Y esta circunstancia fruto de la especialización y naturaleza técnica de la arquitectura, conduce a la falta de multidisciplinariedad en la producción bibliográfica actual. Esta sucinta reflexión pretende esbozar las diferentes y principales publicaciones que a modo de libro o catálogo sobre arquitectura de los siglos xvi, xvii y xviii se han realizado en España a lo largo del año 2011, y que puedan tener una utilidad en otros contextos académicos, portugueses y europeos. Por tanto, quedan excluidos los artículos científicos en revistas departamentales universitarias y misceláneas; si bien, a través de recursos electrónicos como el buscador de la Fundación Dialnet de la Universidad de La Rioja 3, se verifica la existencia de múltiples ejemplos de excelente calidad, firmados por especialistas en la arquitectura de este período, principalmente centrados en el patrimonio eclesiástico, la arquitectura palaciega, el jardín, el urbanismo y la ciudad moderna. No obstante, de manera sorpresiva, sucede todo lo contrario cuando nos referimos a los libros editados en España sobre esta temática en 2011, cuestión que permite afirmar durante este año la carente labor monográfica sobre el estudio y el análisis de la arquitectura moderna española4, a favor de otros periodos – desde los tiempos romanos, el pasado medieval y sobre todo los siglos xix y xx 5. Este hecho puede carecer de una explicación objetiva, que no se justifica sólo por la situación de crisis editorial y financiera, pero demuestra que, pese a la importancia patrimonial de la arquitectura española de la época tantas veces valorada por la UNESCO, son las artes plásticas del Siglo de Oro aquéllas que normalmente seducen y conquistan hábilmente al historiador del arte moderno a la hora de elaborar una publicación. Más significativo aún es que, dentro del programa Teseo del Ministerio de Educación, que cataloga y reúne las tesis doctorales defendidas en el ámbito español, una simple búsqueda avanzada en su índice permite percibir la carencia notoria de tesis doctorales, de carácter individual o adscritas a líneas de investigación y proyectos que aborden justamente el patrimonio desde una perspectiva global, científica e internacional 6. Curiosamente, las escasas referencias doctorales en 2011 al patrimonio arquitectónico y urbano de este período, son las efectuadas por alumnos de Hispanoamérica que bajo convenios académicos en sus programas de doctorado han defendido en las universidades españolas sus tesis sobre historia de la arquitectura y conservación del patrimonio americano. Las tendencias temáticas en la historiografía del arte, cambiantes en Universidades y Fundaciones culturales, muchas veces han olvidado el patrimonio arquitectónico – incluso contemporáneo –, su estudio y contextualización a través de tesis, catálogos, monografías y exposiciones. Esbozado este panorama aparentemente
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desolador, se encuentran también grandes trabajos, e importantes resultados multidisciplinares que ahondan el discurso arquitectónico del mundo moderno desde nuevas perspectivas. Así, de forma tangencial, y más debido a determinados aspectos de recuperación y preservación patrimonial, la arquitectura, la trama urbana de época moderna – principalmente siglos xvi y xviii – despierta paulatinamente el interés académico en España. Raras excepciones pueden trascender ese ámbito local, para convertirse no sólo en manual municipal de conservación, sino en estudios teóricos, metodológicos y precisos como el caso de la obra de Francisco Sánz Fernández. 2011. El color de la arquitectura en Trujillo. Pintura de fachadas, esgrafiados y pintura mural durante en el Renacimiento. Universidad de Extremadura. ISBN 9788477239215. El autor analiza el interesante caso de Trujillo, ciudad patrimonial extremeña que posee múltiples esgrafiados y pinturas murales aplicadas a fachadas de edificios singulares renacentistas y barrocos. En este sentido, y relacionado directamente con la arquitectura y las artes decorativas encontramos proyectos conclusos sobre azulejería en la Comunidad Autónoma de Valencia, como el libro de Inocencio Pérez Guillén. 2011. Las azulejerías de la Casa del Obispo en la Sierra Engarcera (Castellón). Institut de Promoció Ceràmica. ISBN: 9788493145347. A pesar de ser una cuestión específica sobre el patrimonio levantino, el autor realiza una útil introducción al azulejo doméstico en las cocinas españolas desde el siglo xvii hasta el siglo xix. La historia urbana también ha atraído en el territorio español a investigadores en historia moderna y contemporánea, que a su vez han planteado cuestiones primordiales para el entendimiento de la arquitectura en su imbricación cultural y social con la ciudad. Desde las actas de las reuniones científicas de la Fundación Española de Historia Moderna7, que con carácter bienal se reúne en diferentes ciudades españolas, muchos historiadores modernistas han valorado el paisaje urbano y la ciudad, redactando amplios capítulos que sirven de contexto para todo aquel interesado en el espacio arquitectónico y en el devenir histórico‑artístico de un determinado lugar. Un buen ejemplo de estudio multidisciplinar de historia urbana es el quinto volumen correspondiente a la colección Historia de la Europa urbana, dirigida por el profesor Jean‑Luc Pinol: Historia de la Europa urbana (V): La ciudad europea de ultramar, obra de Odile Goerg y Xavier Huetz de Lemps. 2011. Valencia: Universitat de Valencia. ISBN: 9788437081885. En este caso, aborda la temática de las ciudades extraeuropeas desde la perspectiva comparada con los modelos europeos, haciendo hincapié en los procesos de fundación urbana y su posterior desarrollo. En la misma línea editorial sobre la historia urbana, llevada a cabo por la Universidad de Valencia nos encontramos la obra de Gilles Pinson. 2011. Urbanismo y gobernanza de las ciudades europeas: Gobernar la ciudad, un proyecto. Universitat de Valencia. ISBN: 9788437080994. Algunos estudios más concretos también se acercan al análisis de los espacios urbanos, desde la perspectiva de la religiosidad popular en el mundo moderno. Un reciente trabajo de la Institución Fernando El Católico hace hincapié en los hitos
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Para mayor información, consultar la página oficial de la Fundación Española de Historia Moderna. Cf. http://www.moderna1.ih.csic.es/ fehm/. 7
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Olivuccio di Ciccarello, Obras de misericordia: Dar de beber al sediento, c. 1400-1410. (Publ. in Arquitecturas Pintadas 2011, 126). François de Nomé, Arquitecturas fantásticas y ruinas, (Publ. in Arquitecturas Pintadas 2011, 221).
escultóricos que dialogan en el espacio rural, examinando y catalogando las manifestaciones votivas de pilares en la comarca de Borja (Aragón): Manuel Gracia Rivas y Pedro Domínguez Barrios. 2011. Pilares votivos. Zaragoza: Institución Fernando el Católico. ISBN: 9788499111247. Coordinado por Amadeo Serra Desfilis. 2011. Arquitectura en construcción en Europa en época medieval y moderna (Quaderns 2). Valencia: Universitat de Valencia, 2011. ISBN: 9788437079578. Es el segundo volumen de Quaderns de la universidad valenciana permite al lector encontrar variados capítulos como “Vitrubio visto por Cervantes. Arquitectos y oficiales en el siglo del Renacimiento”, y sobre todo, notables aquéllos concernientes a la construcción de las catedrales en época moderna, la catedral de Sevilla (1433‑1537), la catedral de Mallorca (1400‑1460) o la madera de Castilla en las construcciones valencianas del periodo. Dentro de esta misma línea, se encuentra un pequeño libro del profesor Antonio Luis Ampliato Briones. 2011. La Giralda renacentista. Sevilla: Excmo. Ayuntamiento de Sevilla. ISBN: 9788497441056. Diserta el sincretismo estilístico, técnico y constructivo, de un conjunto renacentista sobre el cuerpo de campanas, añadido al antiguo alminar almohade, para convertirlo en torre‑campanario de la Catedral de Sevilla, obra de Hernán Ruiz, el Joven, quien también trabajó en la Capilla de la Asunción de la Catedral de Córdoba (1555). En relación al siglo xviii, y como iniciativa del Ministerio de Defensa, se ha publicado con criterios multidisciplinares, un volumen que agrupa varios ensayos sobre el destacado papel de los ingenieros militares en la arquitectura de la Ilustración, coordinada por Antonio de Lizaur y Utrilla. 2011. La Ilustración en Cataluña: La
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obra de los ingenieros militares. Centro de Publicaciones del Ministerio de Defensa. ISBN: 9788497816144. En ella se analizan cuestiones como la metodología y composición geométrica en las iglesias proyectadas por los ingenieros militares en Cataluña o la relación de los ingenieros con la Real Academia de Bellas Artes de San Fernando de Madrid. Aunque la intención de esta reflexión historiográfica sobre la bibliografía reciente en España tiene como marco cronológico los siglos xvi, xvii y xviii, no podemos dejar de subrayar publicaciones interesantes en nuevas perspectivas, cuyos límites temporales llegan hasta el Romanticismo. Este es el caso de un análisis pertinente, del ejercicio, vida y repercusión artística de los arquitectos españoles pensionados en Roma desde la Ilustración hasta el siglo xix, que analiza la búsqueda de la Antigüedad y el posicionamiento estético de los numerosos arquitectos becados en la ciudad italiana: José Sánchez García. 2011. Los arquitectos españoles frente a la Antigüedad. Historia de las Pensiones de Arquitectura en Roma, siglos xviii‑xix. Guadalajara: Bornova. ISBN: 9788493819972.
De arquitecturas pintadas Si en una sociedad aparentemente glocalizada 8 – y no globalizada – como la contemporánea, las palabras sincretismo cultural y trasnculturalismo permiten algunas licencias para el análisis del arte del mundo moderno, el arte universal de la Italia del Renacimiento al Grand Tour, de la pintura y las relaciones holísticas con la arquitectura desde el siglo xvi hasta el siglo xviii, es un buen ejemplo. Los planteamientos para una magna exposición sobre Arquitecturas pintadas de Delfín Rodríguez, catedrático de Historia del Arte de la Universidad Complutense, y Mar Borobia, Jefe del Área de Pintura Antigua del Museo Thyssen‑Bornemisza, han dado frutos en el marco de la Fundación Thyssen y la Fundación Caja Madrid. Arquitecturas pintadas. Del Renacimiento al Siglo XVIII, se exhibe desde el 18 de octubre de 2011 hasta el 22 de enero de 2012 en las dos instituciones madrileñas, siguiendo la tradición de las grandes exposiciones realizadas en conjunto, que amplían siempre el itinerario cultural del Paseo del Prado hasta la Casa de las Alhajas (1870), un proyecto de los arquitectos Arbós y Aguilar, en la céntrica Plaza de San Martín, en una especie de recorrido iniciático que envuelve a la ciudad en un tema monográfico como éste. Más de 140 obras de arte, de 85 prestadores diferentes públicos y privados, la mayoría de las cuales no habían nunca sido expuestas, ni estudiadas con los criterios científicos que han adoptado en su publicación. Un gran catálogo de 436 páginas, de una cuidada edición, y una extraordinaria exposición, mayoritariamente inédita, ambiciosa y precisa: Arquitecturas pintadas. Del Renacimiento al siglo xviii. 2011. Madrid: Fundación Thyssen‑Bornemisza y Fundación Caja Madrid. ISBN: 9788415113140. Era necesario un revulsivo planteamiento global que renueve la historiografía más allá de localismos varios y estudios
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Concepto establecido por Ronald Robertson, y seguido por Andreas Huyssen para transmitir una oposición conceptual al término globalización, puesto que la glocalización permite entender las situaciones y circunstancias que hacen posible la transmisión cultural global y la existencia de parámetros así como entidades netamente locales. 8
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Giovanni Antonio Canal, llamado “Il Canaletto”, Capricho con el puente de Rialto y la iglesia de San Giorgio Maggiore, c. 1750, (Publ. in Arquitecturas Pintadas 2011, 367).
generales sobre el patrimonio español. Puede parecer que con la monografía editada como un vasto catálogo y ensayos enriquecedores, nuevas interpretaciones y valoraciones estéticas a raíz del mismo no sean efectuadas. Todo lo contrario, su lectura y disfrute abre un cajón de sastre, en el que el análisis pormenorizado del ávido lector, permitirá más de un nuevo estudio, recomponer y elaborar nuevas tesis en función de lo aquí sugerido y perfectamente delineado en criterios expositivos, dibujar otros manifiestos. El catálogo, con la magnífica portada de Bellotto, Santa María d’Aracoeli y el Capitolio de Roma (c. 1743), se compone de cinco notables ensayos en torno a la arquitectura pintada y el paisaje urbano de la ciudad en la pintura moderna europea. Delfín Rodríguez con su “I. De arquitectura y ciudades pintadas. Metáforas del tiempo, del espacio y del viaje”, va más allá de una introducción expositiva y temática para deleitarnos en más de 30 páginas con el valor simbólico de la arquitectura en la pintura. Jörg Garms – Universidad de Viena – en “II. Vistas de Roma” aborda el poder atrayente de Roma como meca ilustrada de la cultura y las artes, del viaje prerromántico del Grand Tour y del estudio académico; la necesidad imperiosa de pintar la ciudad, como “documento” o “capricho”, el comercio y los intereses de los grabadores de vistas, de sus comitentes y el público demandante. El tercer capítulo, el profesor Yves Pauwles – Université François Rabelais de Tours –, lleva por título “III. La cultura arquitectónica y los decorados en la pintura en los siglos xvi y xvii”, en el que resalta el valor de los tratados arquitectónicos de Serlio, Palladio y Vignola en la pintura arquitectónica europea. Marcello Fagiollo – Universidad de Roma‑Sapienza – y Maria Luisa Madonna – Università degli Studi di Siena – escriben conjuntamente “IV. El Mundo de las Maravillas: Arquetipos clásicos entre el Renacimiento y la Ilustración” las arquitecturas legendarias que recrearon desde la Torre de Babel, el Templo de Salomón o las Maravillas del Mundo. El capítulo final, un poco breve considerando sus antecesores, “V. Piranesi, Venecia y el tiempo de las ruinas”, firmado por Francesco Dal Co – Universidad I.U.A.V. de Venecia – se interesa en la obra del artista italiano desde una perspectiva novedosa. En este libro se añade una amplia bibliografía de todas las obras de arte analizadas, de las exposiciones previas y catálogos donde se han expuesto, contando con las referencias históricas de su análisis. Lo más destacado de este volumen es también el propio catálogo – 305 páginas de fichas e imágenes –, puesto que induce al lector en una evolución cronológica y temática a través de 13 apartados, algunos de los cuales en ocasiones pueden tener aspectos comunes, pero que en líneas generales sugieren la múltiple variedad temática que la pintura de la arquitectura puede dar de sí en este amplio periodo de la historia del arte europeo. El equipo de redacción catalográfica, cuenta con los propios comisarios Delfín Rodríguez y Mar Borobia, y con Dolores Delgado – comisaria técnica de la exposición – y Carmen García‑Frías Checa – conservadora de Pintura de Patrimonio Nacional –. El primero de los apartados presenta “I. La arquitectura como escenario”, comenzando en la Italia del siglo xiv, con una tabla de Duccio di Buoninsegna, Cristo y la Samaritana (1310‑1311), y evoluciona la centuria con paisajes del Nuevo Testamento
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William Marlow, Capricho con la Catedral de San Pablo en el Canal de Venecia, c. 1759‑1797, (Publ. in Arquitecturas Pintadas 2011, 371).
y escenas apócrifas insertas en la tradición pictórica del Trecentto, con obras de Jaquerio o Sano di Pietro no traspasando los límites del siglo xv. “II. Perspectiva y espacio”, sorprende por el discurso espacial de los siglos xv y xvi en Italia que se aprecia en obras como El rapto de Dina (c.1535) de Buigardini. “III. La ciudad histórica: memorias y ruinas” está dedicado exclusivamente a los pintores flamencos y centroeuropeos, a excepción de una Virgen con el Niño de Verrocchio (c.1470). La relación de estos artistas con la ruina romana desde el siglo xvi se patenta en obras interesantes como el Autorretrato con el Coliseo de Roma de Maerten van Heemskerck (1553). “IV. La ciudad ideal” presenta, aunque tal vez con ciertas carencias hermenéuticas, el foco de la producción italiana de los siglos xv y xvi, especialmente florentina, donde la ciudad cobra una racionalidad compositiva como en las taraceas de Ambrogio y Nicolao Pucci (1523‑1532) o realismo como las Calle de Florencia (1540 ‑1555). “V. Arquitectura y ciudades legendarias” se abre al lector como el espacio donde reencontrarse con Semiramis ante la ciudad de Babiliona, la torre de Babel (1595), o las Maravillas del Mundo (1617) de Louis de Caulery: El Mausoleo de Halicarnaso, El Faro de Alejandría y El Coloso de Rodas. En el apartado “VI. Arquitecturas imaginarias y fantásticas”, además de las imposibles arquitecturas de Vredeman de Vries, Una ciudad ideal (1607), esta exposición analiza de forma sugerente varios lienzos de François de Nome: entre otros, Daniel en el foso de los leones (1624) y Arquitectura fantásticas y ruinas, donde parece que cierta preconización conceptual del neogótico se hiciera presente.
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Paul Vredeman de Vries y Jan Brueghel I, Arquitecturas y jardín, c. 1615, (Publ. in Arquitecturas Pintadas 2011, 217).
“VII. La Antigüedad como paisaje” permite no sólo admirar clásicas composiciones de Claudio de Lorena y Poussin sino a Carracci y un extraordinario Codazzi con el Capricho con el obelisco de Caracalla (c. 1645), donde la Antigüedad puede ser el paisaje arquitectónico campestre y mitológico y los vestigios de la urbe romana en contemporaneidad. Un apartado importante es también “VIII. La ciudad moderna como metáfora del poder”, donde la representación planimétrica de la ciudad a vista de pájaro, las vistas de Nápoles o Roma, San Pedro del Vaticano o el Castillo de Sant’Angelo en festividades o en su actividad diaria, exteriorizan simbólicamente el poder político, comercial y religioso del mundo moderno. “IX Las ciudades del Grand Tour”, con los paradigmáticos Bellotto, Canaletto, Guardi y Pietro Fabris, Giovanni Paolo Panini y otros autores extranjeros importantes y menos reivindicados como Thomas Jones, Van Wittel, Jan Frans van Bloemen o Carlevarijs que quedaron fascinados por el encanto de Venecia, Florencia, Nápoles o la campiña romana. “X. La imagen de la ciudad y la arquitectura en Europa” permite adentrarse en los ambientes palaciegos –en ocasiones imaginarios–, donde el coleccionismo pictórico y de antigüedades como en la Galería del cardenal Silvio Valenti Gonzaga (1761) de Panini, genera numerosas lecturas transversales y en vistas ajenas a Italia, en ocasiones no suficientemente valoradas por la historia del arte, como la Universidad e iglesia de los Jesuitas en Viena (c. 1760) de Bellotto. En “XI. Caprichos arquitectónicos”, a diferencia de las vedute del Grand Tour se pueden
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Jean Lemaire, Aquiles descubierto entre las hijas de Licomedes, c. 1640-1645, (Publ. in Arquitecturas Pintadas 2011, 237).
contemplar paisajes imaginados caprichosos, en sentido estético, como Ruinas romanas con estatua ecuestre de Marco Aurelio de Panini (1745‑1750). Paisajes inventados que con tintes reales insertan palacios inexistentes en centros urbanos conocidos, como la propia Catedral de San Pablo de Londres en medio del Gran Canal de Venecia, obra singular de William Marlow (c. 1795‑1797). “XII. La Poética de las ruinas” aborda al paradigmático Hubert Robert, pero también otros menos convencionales como Joli, Ricci, Clérisseau o Vernet. Finalmente el catálogo se cierra con “XIII. La ruina y la memoria como proyectos (en torno a Piranesi)”. Este apartado es sin lugar a dudas el que tiene un carácter monográfico sobre Piranesi, aunque imaginado siempre por sus Carceri (1761) es uno de los principales artistas donde la arquitectura pintada cobra esencia, desde un estudio pormenorizado y real de San Pedro del Vaticano o la ciudad de Roma, Vedutta della Piazza del Popolo (1750), pasando por el escenario imaginado, Antichità Romane (1756), la ruina anhelada y romántica, Piramide de Cestio (c. 1755), hasta la arquitectura visionaria que recrea el campo de Marte de la antigua Roma (1762). Tal vez forzado al final de este catálogo y dentro de su apartado XIII se muestra un interesante proyecto clasicista, de corte neopaladiano, obra de Sir John Soane para la nueva Casa de los Lores (1794). Sin embargo, es una forma simbólica de justificar la cronología y percibir cómo las “arquitecturas pintadas”, llegan hasta finales del siglo xviii como una práctica habitual incluso en los arquitectos, para expresar las ideas que concretizarán y las emociones a visionar.
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leonardo turriano: ingeniero del rey, – alicia cámara, rafael moreira, marino viganò. s.l.: fundación juanelo turriano, 2010 m i gue l s orome n ho Departamento de Inventário, Estudos e Divulgação/IGESPAR, I.P.
A Fundação Juanelo Turriano, fundada em 1987, é uma das mais prestigiadas instituições docentes espanholas dedicadas ao estudo da história da ciência e da técnica, com uma regular actividade editorial e formativa, assessoria técnica, organização de conferências e de exposições. Evocando a memória do famoso relojoeiro, mecânico e engenheiro de Carlos V e de seu filho Filipe, II de Espanha e I de Portugal, a Fundação tem vindo, na verdade, a prestar um inestimável serviço ao conhecimento sistemático da cultura científica do período Moderno, embora com incursões aos mundos Antigo e Medieval, através do patrocínio à publicação ensaística e à divulgação de fontes. Coube agora em sorte à celebrada figura do engenheiro Leonardo Turriano (ca. 1558‑1628) ser exumada dos circuitos restritos dos especialistas, numa magnífica colectânea de estudos publicados pela Fundação que, até ver, constituirá uma abordagem quase definitiva à obra do italiano. Quanto mais não fosse pela qualidade dos textos e excelência gráfica da edição, profusamente ilustrada, a ligação profunda de Turriano a Portugal seria sempre um motivo acrescido de interesse para os leitores nacionais; e, a inclusão de um texto notável de Rafael Moreira, com a sua teia de hipóteses ousadas mas altamente estimulantes, a justa cereja em cima do bolo. Trata‑se, sem dúvida, do nosso mais importante historiador da arte do Renascimento (o que apenas a cegueira de uma Academia fechada sobre os seus próprios preconceitos e regras bafientas não quis ou não pôde compreender), o único, mesmo, a entender a inscrição da “arte renascentista” numa produção cultural mais complexa, fermentada pelos cruzamentos disciplinares com a engenharia, a matemática e a geometria, a astronomia, a literatura, a poesia… todos estes temas aflorando também na visão da obra polifacetada de Leonardo Turriano. Completam este livro os textos de Alicia Cámara Muñoz sobre o percurso de Turriano ao serviço da Coroa de Castela, o de Marino Viganò com
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a revelação de notícias biográficas inéditas, recolhidas num criterioso trabalho de arquivo, e a transcrição em anexo do manuscrito do engenheiro referente às praças norte‑africanas de Orão e Mazalquivir, com aprofundado aparato crítico devido a Daniel Crespo Delgado, por acaso, ou nem por isso, conservado na biblioteca da Academia Portuguesa de Ciências. Embora supostamente breve, não terá sido a estada na corte de Rodolfo II, ainda em Viena, um dos menos importantes estímulos formativos de Turriano, a par com a influência do pai, o capitão de Cremona, Bernardino Turriano – e não Juanelo, como durante muito tempo se quis – e uma presumível passagem por Urbino, onde se pôde familiarizar com a arquitectura de Francesco di Giorgio Martini. Entrado ao serviço de Filipe II, mercê das boas relações entre as cortes imperiais, começou e acabou a sua carreira hispânica, curiosamente, em Lisboa, onde é visita fugaz, pela primeira vez, em 1582 ou 1583, acompanhando talvez o rei, e onde vem a morrer em 1628. Enviado às Canárias em 1586 – aonde regressaria no ano seguinte – ali produziu a sua famosa Descrição, na qual se anuncia já um amplo feixe de interesses, onde cabiam os dotes fortificatórios, o gosto pelo registo de territórios e paisagens, a geografia e a corografia, a astronomia e, até, uma curiosidade etnográfica à época invulgar; mas foi a partir da suas subsequentes visitas a Lisboa que Turriano construiu a base de uma carreira baseada tanto na fidelidade política à Coroa como na sua capacidade técnica para responder ao complexo programa de ordenamento defensivo peninsular, sobretudo na sua orla atlântica. Percorrendo toda a costa portuguesa e galega, desenhou e supervisionou a construção de inúmeras fortalezas antes de se fixar em Lisboa, cruzando‑se aqui com outras “águias” da engenharia militar imperial: Filippo Terzi, Tiburcio Spannocchi, o capitão Fratino ou Giovanni Battista Antonelli, entre alguns outros. Nomeado, em 1598, Engenheiro‑Mor do Reino, foi obrigado então a enfrentar os grandes problemas da defesa de Lisboa e do assoreamento da barra do Tejo, a que dedicou a maior parte de uma intensa actividade profissional, sem deixar de aprofundar insuspeitos gostos literários: sabe‑se que estabeleceu em Portugal uma extensa rede de contactos cujos contornos levaram Rafael Moreira, acertadamente, a salientar essa outra faceta de Turriano, cultor também das Humanidades, leitor atento dos Antigos, poeta amador e admirador de Camões. Engenheiro e arquitecto – traçou pelo menos o convento carmelita de Cascais – tratadista informado, na linha das especulações dos grandes mecânicos toscanos – o que comprova o magnífico álbum ilustrado sobre a limpeza da barra tagana – credita‑se ainda a Turriano o importante projecto de fomento industrial da fábrica de pólvora de Barcarena, para a qual concebeu um conjunto de artificiosos engenhos vertidos em desenhos técnicos que ainda se conservam, além de inúmeras abordagens a questões de hidráulica, com destaque para aquelas que atormentavam a difícil construção do forte de São Lourenço da Cabeça Seca, o Bugio, à entrada de Lisboa.
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Uma incursão curiosa aos pormenores mais prosaicos do seu quotidiano – os dois casamentos, a família extensa, de nove filhos, as quintas de ambição aristocrática em Azeitão e Estoril – continua a revelar o imbricamento da biografia do homem de ciência e do ser social: identificando a casa lisboeta de Leonardo Turriano, à calçada do Combro, com o actual palacete da família Mendia, Rafael Moreira quis ver no terraço ainda ali existente a memória de um espaço arranjado pelo engenheiro para as suas observações astronómicas. Apesar de difícil comprovação documental, é caso para dizer que se non é vero é ben trovato: nada como uma hipótese de risco para estimular o conhecimento sobre uma personagem tão rica, resgatando‑a de uma vulgaridade a que a condenaria, com certeza, uma narrativa convencional e ordeira, ao gosto disciplinado, mas sem imaginação, de boa parte da Universidade portuguesa.
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algarve em património
– josé eduardo horta correia. olhão: gente singular, editora, 2010 cátia tel es e m a rqu e s Instituto de História da Arte, FCSH/UNL Bolseira de Doutoramento da FCT (SFRH/BD/45995/2008)
Reunindo um conjunto de vinte e quatro estudos, Algarve em Património organiza ‑se com base em comunicações proferidas em jornadas e congressos, lições académicas, ou artigos publicados em revistas. Ordenado por ordem cronológica, de 1982 a 2008, abarcando a sua formação de Doutoramento em História da Arte pela Universidade Nova até à sua Última Lição na Universidade do Algarve, este livro constitui o ponto de chegada do percurso de uma vida e carreira académica, em grande medida, dedicado ao estudo e valorização do património artístico do Algarve. Da leitura da obra, ressaltam três grandes temas: a cidade de Vila Real de Santo António, a arquitectura e urbanismo algarvios dos séculos xvi e xviii, e a caracterização e defesa do património da região; enquadrados por uma perspectiva eminentemente cultural que pauta a linha de pensamento e trabalho de José Eduardo Horta Correia. 1. Os textos dedicados a Vila Real de Santo António permitem aceder de uma forma mais directa às principais conclusões da tese de Doutoramento deste historiador. Aberto o campo de estudo por Lisboa Pombalina de José‑Augusto França, Horta Correia investigou de forma exemplar a história da fundação de Vila Real, nos seus aspectos políticos, económicos, construtivos, formais e simbólicos. Nas suas palavras, Vila Real de Santo António representa o ponto de chegada de uma prática portuguesa alicerçada numa sólida cultura matemática que remonta ao século xvi, como um caso‑limite de rigor e coerência formais expressos pela constância das mesmas relações proporcionais e pela expressividade de uma verdadeira iconologia do poder (274). Edificada no ano de 1774 em apenas cinco meses, segundo plano ideado na Casa do Risco e inovadores sistemas de pré‑fabrico e estandardização, o tempo recorde foi um tempo político extremamente importante como imagem de poder de um estado iluminista face à Espanha e face aos súbditos (123). Esta proposta de leitura iconológica da cidade é reforçada pela análise do plano que, embora
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HORTA, João Manuel Gomes. 2006. Vila Real de Santo António, forma limite no urbanismo histórico português [policopiado]. Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve. 1
com características formais próximas da Baixa de Lisboa (sujeição da arquitectura ao urbanismo, por exemplo), se distancia do projecto da capital pelo pendor eminentemente político do seu planeamento, particularmente emblemático na disposição da “fachada da cidade” para o rio Guadiana. Para a análise do aparato iconológico de um urbanismo de poder (298), Horta Correia serve‑se então do conceito de arquitectura de programa, enraizado na tradição urbanística portuguesa nascida e consolidada pelas realizações da Expansão. À escola portuguesa de arquitectura e urbanismo coube o planeamento e fundação de cidades ex novo, tendo como directriz os formulários régios, que determinavam os princípios essenciais do urbanismo da época moderna: a linearidade, a uniformidade e o programa (128). Vila Real de Santo António, “cidade ideal” do Iluminismo […] pensada como um todo (124), permanece, por isso, um estudo de caso exemplar para a reflexão mais alargada da história da arquitectura e urbanismo portugueses dos séculos xvi ao xviii, tendo sido há poucos anos sido objecto de estudo nova tese de Doutoramento1. 2. Mas a investigação do autor sobre o Algarve não se esgotou em Vila Real, interessando‑se por outras realizações do Período Moderno. Destaca‑se, em particular, a cidade de Tavira, na qual teve o mérito de individualizar uma escola renascentista representada por André Pilarte e de identificar a actividade do mestre pedreiro Diogo Tavares e Ataíde na época Barroca. Caso raro, não sendo sede episcopal, Tavira foi, não obstante, elevada a cidade pelo rei D. Manuel antes de morrer. A casa urbana passa a caracterizar‑se, em Quinhentos, pelo alargamento dos lotes e espaçamento dos vãos, pelas janelas de sacada em duplo quadrado com cornija saliente e a substituição do telhado de duas águas pelo telhado de tesouro, ‘imagem de marca’ que define Tavira na sua especificidade cultural (140). Graças ao trabalho de Horta Correia, é hoje possível associar ao Renascimento tavirense a figura de André Pilarte, mestre pedreiro local formado no estaleiro dos Jerónimos, autor das igrejas da Misericórdia e da Luz de Tavira, bem como da igreja matriz de Alcoutim e da igreja da Senhora da Graça de Moncarapacho. As encomendas a André Pilarte enquadram‑se, segundo o autor, dentro de um gosto já assimilado, uma clara consciência estética que servira de afirmação de poder da mais importante confraria da cidade (102), do qual o pedreiro se soube distinguir pela criatividade decorativa e soluções espaciais que adoptou, inclusivamente formando escola, cuja influência extravasou as fronteiras de Tavira, alcançando Ayamonte e Mértola. Após a estagnação vivida em Seiscentos, Tavira conhece novo período de crescimento em meados do século xviii, onde o mestre pedreiro e canteiro Diogo Tavares e Ataíde assumiu um importante papel. Dentre o catálogo de obras que Horta Correia lhe atribui, fundamentado em documentação e na análise formal dos edifícios, destacam‑se a Casa das Hortas de Baixo e Casa da Galeria, a torre da Hora dos Cães, o claustro do convento da Graça e o hospital do Espírito Santo de Tavira. Em contexto de encomenda religiosa ou civil, Diogo Tavares fez uso, nos seus diversos projectos em Tavira e noutras partes do Algarve, da planta centralizada e da planta de ângulos cortados, cara à arquitectura barroca portuguesa. O autor conclui que com Diogo Tavares estamos perante um dos muitos “arquitectos” do
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nosso barroco provincial, inserido em estruturas sociais das artes mecânicas, mas que parece revelar alguma formação tratadística, cujos valores assume em jeito de continuidade ou de inovação, integrando‑os pacificamente na tradição chã da arquitectura meridional (234). Dos estudos do século xviii, destacamos ainda «O significado do mecenato do Bispo do Algarve D. Francisco Gomes do Avelar», que constituiu a “Lição de Síntese” proferida em 1995 na Universidade Nova de Lisboa, no âmbito das provas de Agregação em História da Arte. Neste estudo, situa a formação e cultura científica e artística de D. Francisco Gomes na categoria operativa do “Iluminismo Católico”, explicando a sua intervenção na “Restauração do Algarve”. A estadia em Roma de D. Francisco (1786‑88) é bem analisada, fundamentando a vinda para Portugal de Francisco Xavier Fabri. O arquitecto bolonhês, partilhando da cultura neoclássica da época, ocupou‑se no Algarve da construção e reconstrução de igrejas, baseando ‑se em dois princípios fundamentais: respeito pelas preexistências e aceitação de valores vernaculares, destacando‑se a igreja de Santa Maria de Tavira a mais paladiana igreja portuguesa e das melhores obras do arquitecto, que D. Francisco Gomes elegerá para pano de fundo do seu retrato oficial. Fazendo uso da pintura como instrumento de pedagogia da fé, D. Francisco encomendará ainda diferentes obras aos artistas italianos Liborio Guerini, Marcelo Leopardi, Tommaso Conca e aos pintores portugueses, bolseiros em Roma, Domingos António de Sequeira e Vieira Portuense. Coube a Horta Correia a identificação de temas e de autorias, entendidas numa brilhante análise histórico‑cultural da acção mecenática do bispo, que merecia publicação monográfica devidamente ilustrada. Este estudo teve reflexos em textos de divulgação internacional2, bem como na análise do caso particular da «Reconstrução neoclássica de Santa Maria de Tavira», também incluída na presente colectânea. 3. Por último, as considerações críticas do autor sobre a questão da conservação do património algarvio resultam da militância que de há muito vem desenvolvendo pelo seu reconhecimento e valorização. Considerando a arquitectura como uma das manifestações que mais fielmente traduzem a identidade algarvia (237), caracteriza‑a nos seguintes termos: a tendência para uma escala humana, utilização de materiais frágeis, a limpidez estrutural, a nitidez na definição do espaço, a abertura a valores eruditos, a aceitação de novidades depois transformadas localmente, a preocupação pela decoração dos vãos, a prefeita integração na geografia e a sua natural plasticidade. Valores que, ao longo das últimas décadas, não mereceram a atenção necessária que evitasse a descaracterização a que foi votado o Algarve pelas políticas da dita monocultura do turismo. Na linha do pensamento de Françoise Choay, José Eduardo Horta Correia defende, por isso, a necessidade de uma política de Património por parte do poder central, o que implica o entendimento do Património com sentido de Estado, sem sobreposição de funções e implementada por vários departamentos em convergência de serviço público, em que se articule o Ambiente, o Ordenamento e o Património Construído. (…) Ora, competência técnica e a coragem política não custam dinheiro. E não é necessário nem honesto transfe-
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Ver entradas «Gomes do Avelar, Bishop of Faro» e «Francisco Saverio Fabri» do The Dictionary of Art, ed. Jane Turner. 1996. New York: Grove. 2
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«Vila Real de Santo António: uma única e grande casa». Entrevista a José Eduardo Horta Correia conduzida por Raquel Henriques da Silva. Monumentos. N.º 30 (2009): 147. Lisboa: IHRU. 3
rir competências para entidades autárquicas quando de antemão se sabe que elas ainda não têm meios técnicos e humanos ou sequer vocação para as assumir (242). Proposta, diríamos, válida de uma maneira geral para todo o País. A visão cultural de Horta Correia sobre o património do Algarve deriva, em última análise, de uma história da arte assente sobre o Formalismo e a História das Ideias, valorizando expressões eruditas ou vernaculares, a relação do edificado com a paisagem, persistências e rupturas, ou cruzando as manifestações artísticas da região com o contexto nacional, a vizinha Espanha ou as realizações ultramarinas do Brasil e Goa. Em entrevista recente, teve mesmo ocasião de explicar como integrou nas suas perspectivas a visão sociológica da História da Arte de José‑Augusto França, a História das Ideias e da Cultura de Silva Dias e o Formalismo de George Kubler, cujas influências foram lapidares na superação do conceito de estilo pelo de sequência formal, invariante e entendido como sedimentação de fontes plurais3 . Por último, importa dizer que os textos de boa estrutura e dimensão tornam esta obra acessível também ao público interessado pelo Algarve e pelas questões do património. No entanto, dada a opção pela organização cronológica, a inclusão de um índice remissivo facilitaria a sua consulta. A edição peca ainda, infelizmente, pela ausência de imagens e de mapas, recursos visuais fundamentais para o entendimento dos valores artísticos em presença. Não desmerecendo a importância de O Algarve em Património no quadro da bibliografia mais recente sobre a região, ficam aqui registadas estas observações, esperando que possam ser levadas em conta numa futura 2.ª edição.
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José Custódio Vieira da Silva, Joana Ramôa
Na torre dos sinos do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra: Um tesouro de moedas medievais e dois desenhos quinhentistas Cátia Teles e Marques
A exaltação da virtude moral no púlpito da igreja de Santa Cruz de Coimbra Alexandra Rossi Gouveia (1941‑1999)
A arte têxtil bordada na China: panorâmica de uma tradição milenar Maria João Pacheco Ferreira
Alguns aspectos da arte no período Ming aquando da chegada dos portugueses a Macau Carla Alferes Pinto
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A portrait by Vieira Portuense in Germany Foteini Vlachou
Cuerpos de Dolor: A imagem do sagrado na escultura espanhola (1500‑1750) Teresa Leonor M. Vale
Pintura de los Reinos. Identidades compartidas en el mundo hispánico (exposição). Museu do Prado, Outubro 2010 – Janeiro 2011 Nuno Senos
A Perspectiva das Coisas: A Natureza‑Morta na Europa Leonor de Oliveira
A capela de São João Baptista como obra de arte total Teresa Freitas Morna
Instituto de História da Arte (FCSH|UNL) integra RIHA – International Association of Research Institutes in the History of Art Joana Cunha Leal
Congresso Internacional sobre Arquitectura e Cultura do Século XVIII “Books With A View”– 23 a 25 de Novembro de 2011 Ana Celeste Glória
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A Sé Gótica de Silves. Os diferentes momentos construtivos
a sé gótica de silves os diferentes momentos construtivos j o s é cu stó d io v i e i r a da si lva Instituto de História da Arte, FCSH/UNL
j oa n a ra môa Instituto de História da Arte, FCSH/UNL Bolseira de Doutoramento da FCT (SFRH/BD/40252/2007)
O conhecimento dos diferentes momentos construtivos da Sé de Silves, desde a sua fundação até às últimas intervenções do período gótico, continua envolto em grandes dúvidas e hesitações, ocasionadas, fundamentalmente, pela inexistência de qualquer documentação escrita que se lhe refira explicitamente. Um exemplo concreto e muito recente destas dificuldades é o número 23 da Revista Monumentos, publicado em 2005: inteiramente dedicado à cidade de Silves, com contribuições de diverso teor que realçam novidades em várias áreas científicas – da arqueologia ao urbanismo, passando pelo estudo atento das inscrições funerárias da Sé, da sua talha dourada e dos trabalhos da manutenção, conservação e restauro do edifício –, o artigo dedicado aos problemas arquitectónicos da Sé de Silves limitou‑se à transcrição de uma passagem da obra bem conhecida de Mário Tavares Chicó, A Arquitectura Gótica em Portugal (Chicó 1954, 171‑180), em que a Sé de Silves vem referenciada. Mesmo que esta opção tenha sido justificada – e muito justamente, convém afirmá ‑lo – como uma homenagem a este importante historiador da arte português, pela passagem do centenário do seu nascimento, tal não consegue disfarçar, de qualquer modo, a ausência de uma análise inovadora e mais recente sobre a Sé de Silves. Aliás, o próprio Mário Tavares Chicó, no texto assinalado, também só valoriza o momento construtivo do século xv, integrando‑o no contexto da arte desse período que reflecte, segundo palavras suas, «a arte requintada de Mestre Huguet» no Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na Batalha. Se é verdade que esta fase quatrocentista é a de maior evidência e, de certo modo, aquela que melhor representa a própria imagem desta sé algarvia, não deixa de ser uma forma de omissão a grande discrição de Mário Tavares Chicó relativa à fundação e à fase inicial deste edifício. Justifica‑se, por isso, o avançar de algumas reflexões que, sob a forma de propostas de entendimento ou como meras hipóteses de discussão, pretendem apenas contribuir para aprofundar o conhecimento dos diversos momentos da construção desta igreja algarvia. Tal será feito, de forma cuidadosa, quer sob o ponto de vista
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Esta dependência de Sevilha foi alterada, com alguma celeridade, em 1393, quando a diocese de Silves passou a ficar sufragânea de Lisboa. Em 1540, houve nova alteração, tendo passado nesta altura a ficar dependente da diocese de Évora. 1
da inserção na realidade histórica da conquista do Algarve e da elevação de Silves a sede de bispado desse novo território, quer sob o ponto de vista formal e estético (o da linguagem específica da História da Arte). * A tomada da cidade de Silves aos mouros em 1248 e, logo de seguida, a conquista definitiva de todo o Algarve em 1249, são, desde logo, duas balizas cronológicas fundamentais para a definição da nossa problemática. Com efeito, a importância política, económica e social da cidade moura, localizada sensivelmente ao centro de todo o novo território recém‑incorporado na coroa portuguesa, fazia dela herdeira natural, agora sob domínio cristão, de toda essa importância estratégica. É perfeitamente compreensível, por consequência, a sua escolha para sede de um bispado que, sob o ponto de vista religioso, centralizasse a organização de todo o Algarve, na continuidade, aliás, do que sucedera aquando da primeira conquista da cidade pelo rei D. Sancho I, em 1189. Nessa altura, o monarca português nomeara, como bispo, D. Nicolau (1189‑1191), um clérigo flamengo. A prova da manutenção dessa importância estratégica revela‑se no conflito mantido pelo rei D. Afonso III de Portugal com o rei Afonso X de Castela, que se antecipou ao monarca português ao nomear, em 1253, um bispo dominicano para Silves, chamado D. Roberto (1253‑1256), ficando a nova diocese assim criada sufragânea de Sevilha1. O protesto de D. Afonso III obrigou a que, antes de se tratar da respectiva administração eclesiástica, se procedesse à resolução da questão do direito de posse sobre o Algarve, tendo este ficado em 1263 pertença definitiva do rei de Portugal, por acordo então firmado (Magalhães 2000).
Silves ‑ vista do Castelo e da Sé. © Foto José Custódio Vieira da Silva
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Antes dessa data, e dado o alcance do conflito diplomático entre os reis de Portugal e de Castela, não é muito provável que se tenham iniciado quaisquer obras destinadas à erecção do templo destinado a sede episcopal. O mais provável é ter‑se usado, para o desempenho dessas funções, a mesquita principal da cidade moura, adaptada ao novo culto, logo após a sua conquista. Tal procedimento fora já adoptado aquando da tomada de Lisboa, em 1147, conforme o relato preciso do cruzado inglês que presenciou os factos: «Tomada a cidade após dezassete semanas de cerco (…) Foi nomeado para bispo de Lisboa um dos nossos, Gilberto de Hastings, dando o seu consentimento o rei, o arcebispo, os bispos, os clérigos e todos os leigos. No dia em que se celebra a festa de Todos‑os‑Santos, em louvor e honra do nome de Cristo e do da sua Santíssima Mãe, foi purificado o templo pelo arcebispo e quatro bispos e instala‑se aí a sede do bispado» (Alves 1989, 78‑79) 2. Esta atitude, que deveria ser prática recorrente, representava um dos corolários fundamentais da conquista cristã peninsular, já que, com a purificação da principal mesquita muçulmana, se assinalava também a vitória religiosa e se testemunhava, com essa sacralização, a posse definitiva da cidade e do respectivo território. Tratava‑se, afinal, de uma atitude que tinha tanto de pragmático quanto de simbólico. Esta hipótese, que se nos afigura muito verosímil para o caso de Silves, atendendo inclusivamente a uma tradição que aponta para uma atitude idêntica aquando da primeira conquista da cidade, em 1189 3 , encontra igualmente algum suporte naquilo que o trabalho recente dos arqueólogos tem vindo a clarificar e com o qual terão resolvido algumas das polémicas que se vinham mantendo sobre a implantação quer da Sé de Lisboa quer da Sé de Silves. Em ambos os casos, defendia alguma historiografia que estes edifícios cristãos haviam sido erguidos sobre as mesquitas principais das respectivas cidades muçulmanas aquando da sua conquista, fazendo‑as desaparecer por completo. Tal situação, de acordo com os referidos trabalhos arqueológicos, não se verifica nem num caso nem noutro. Concretamente em relação a Silves, Rosa Varela Gomes afirma com toda a clareza que «a estrutura urbana islâmica foi alterada, com a instalação da Sé e da necrópole, no centro da cidade, a partir da segunda metade do século xiii, destruindo bairro ali existente» (Gomes 2005, 28). Esta demonstração arqueológica ajusta‑se perfeitamente à data da resolução definitiva do conflito sobre a posse do Algarve entre os reis de Portugal e de Castela, ocorrida, como se disse, em 1263. Com efeito, somente a partir deste ano se terão reunido, segundo cremos, as condições necessárias para se pensar no levantamento de um edifício adequado à sede episcopal da região mais a sul do país (Magalhães 2000) 4 . Esta hipótese parece confirmar‑se com a descoberta de uma lápide funerária com o nome de Domingos Joanes, dado como mestre da Sé de Silves em 1279 (Ramos 1996, 82) 5 , e com um privilégio concedido por D. Dinis ao bispo de Silves em 1320 para que gastasse mil libras nas obras da sua igreja 6 – um e outro documento apontando para obras a decorrer entre os fins do século xiii e os inícios do século xiv, em coerência com todos os argumentos até agora aduzidos.
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A situação inversa é igualmente verdadeira, ou seja, também os conquistadores islâmicos aproveitavam as igrejas cristãs para nelas instalarem as suas mesquitas. É o que, muito recentemente, sondagens arqueológicas realizadas na igreja matriz de Mértola – o único espaço de uma anterior mesquita islâmica conservado em Portugal – revelaram, encontrando‑se vestígios arqueológicos que permitiram concluir estar a antiga mesquita assente sobre um monumental embasamento de uma igreja do período paleo‑cristão datado dos séculos vi a viii (Jornal Público, 16 de Janeiro de 2008, Secção «Local», p. 24). 2
Esta tradição vem referida no artigo introdutório sobre a Sé de Silves constante do Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (Sé Catedral de Silves 1955) 3
Joaquim Romero de Magalhães indica o final do século xiv para início da construção da Sé de Silves: «Iniciada possivelmente em finais do século xiv, foi reconstruída por volta de 1458» (Magalhães 2000). Pensamos que esta indicação cronológica é muito ambígua, parecendo afirmar que toda a igreja é de 1458, quando há elementos mais primitivos desta sé algarvia que apontam decididamente para uma construção dos fins do século xiii, inícios do século xiv. Aliás, a opinião deste autor sobre a Sé de Silves é bastante descontextualizada, quando afirma, em continuação, que «mostra uma notável unidade estilística, um tanto arcaica, com um peso e uma rusticidade românicas que as ogivas góticas não disfarçam nem aligeiram». 4
Esta lápide, reproduzida em gesso no Museu de Lagos, foi encontrada quando se procedia à demolição da antiga sacristia, de acordo com a notícia do Boletim da Direcção Geral dos Edifícios Nacionais, 80, ob. cit. p. 23. 5
ANTT, Chancelaria de D. Dinis, Liv. 3, fl. 132v. (citado em Ramos 1996). Antes de D. Dinis, também seu pai, o rei D. Afonso III, deixara, por testamento de 1271, um legado de mil libras à Sé de Silves, assim como às demais catedrais do reino. 6
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Silves – Sé vista da cabeceira. © Foto José Custódio Vieira da Silva
* Um dos casos mais notórios do abandono das alcáçovas é o de Santarém, onde «os paços da alcáçova moura foram, em tempo de D. Afonso III, substituídos por novos paços chamados, em contraste com os antigos, da Alcáçova Nova. Esta mudança, sinal do desajustamento que o núcleo mais primitivo da alcáçova apresentava perante a consolidação e o avanço da Reconquista, tem uma curiosa correspondência no abandono idêntico que a nobreza fez das casas de morada que aí também possuía. (…) Em 1341 já a alcáçova velha estava despovoada desses nobres, atendendo a uma carta de D. Afonso IV que, precisamente por essa razão, concedia privilégios aos moradores que aí se quisessem fixar, a fim de evitar o despovoamento completo.» (Silva 1995, 86‑87). 7
O local escolhido para a implantação da Sé de Silves, a meio da colina, voltada ao sul, que desce para o rio Arade e ocupando o centro da povoação, manifesta uma das evidências mais consistentes do mundo gótico. Na verdade, a catedral, sede do poder religioso, eleva‑se fora das muralhas da alcáçova, a sede do poder civil, subtraindo‑se, desta forma, aos poderes administrativo e militar do alcaide do castelo. Dispondo‑se no meio das casas do burgo, a imagem da sé concorre visual e simbolicamente com o amuralhado poderoso da alcáçova, jogando ‑se entre ambas uma competição subtil de domínio. Ocupando, de acordo com os testemunhos arqueológicos, um bairro pré‑existente, que arrasou para sobre ele se implantar, a Sé de Silves impõe‑se, também pelas suas dimensões, definitivamente à cidade, estruturando um novo centro urbanístico, tanto físico quanto simbólico. * Nesses tempos medievais, a definição dos rumos do futuro pendeu, sem sombra de dúvidas, para a sede episcopal, cuja vida quase sempre correu em paralelo e de forma continuada com a vida da própria cidade. Enquanto a alcáçova teve tendência a estiolar – porque os muros, que faziam a sua força, se transformaram, ao impedir o crescimento urbano, na sua própria fraqueza 7 –, a catedral abriu‑se ao burgo, estimulou o seu crescimento, impôs‑lhe mesmo, por vezes, definições urbanísticas com alguma planificação, recebeu reuniões de vereadores camarários, transformou ‑se em palco de cerimónias festivas de grande aparato, tanto religiosas como civis, acolheu, em cemitério, na sua vizinhança e no seu próprio interior, os corpos dos cristãos que a ela se confiaram na crença da ressurreição.
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No que diz respeito à Sé de Silves, a sua localização no espaço urbano repete, de forma sintomática, implantação idêntica das Sés românicas de Lisboa e de Coimbra – também elas fora do circuito defensivo das muralhas da alcáçova, também elas a meio das encostas viradas aos rios Tejo e Mondego, respectivamente, também elas disputando, com a imposição da sua arquitectura monumental, uma das referências urbanísticas por excelência da cidade. Noutros dois casos portugueses bem conhecidos, em que o senhorio das cidades era pertença dos respectivos bispos – Braga e Porto –, as soluções adoptadas para a localização das respectivas sedes episcopais, sendo radicalmente diferentes das de Lisboa, Coimbra e Silves, concorrem, porém, no essencial, para a dinâmica urbana que a sua construção originou. Em termos de afirmação de poder, pode mesmo dizer‑se que as duas catedrais, de Braga e do Porto, o assumem até às últimas consequências, uma vez que, dada a inexistência de qualquer castelo ou alcáçova no seu recinto, não possuem qualquer rival. O caso de Braga é o mais complexo e original, uma vez que a cidade medieva, ao deslocalizar‑se da cidade romana pré‑existente para uma área mais plana, se organizou em torno da sua Sé, que passou a ser verdadeiramente um axis mundi, o centro físico e simbólico de toda a urbe. Só tardiamente a cidade foi detentora de um castelo que, mesmo assim, não logrou nunca impor‑se à catedral. No caso da cidade do Porto, a localização da Sé, ao cimo da imponente acrópole rochosa que domina o rio Douro, sublinha a sua força e proclama, simbolicamente, o poder religioso e civil do bispo a quem a cidade pertencia. É uma afirmação plena de retórica, sem paralelo em qualquer outra cidade medieval portuguesa, até porque, ao contrário da cidade de Braga, nunca existiu um castelo ou qualquer outra semelhante afirmação do poder civil e militar no Porto. As catedrais de que vimos falando – Braga, Lisboa, Coimbra, Porto – constituem a primeira vaga de sés medievais construídas em Portugal, com isso denunciando, quer as prioridades decorrentes do processo da tomada do território aos mouros, quer a importância política e económica que essas cidades ganhavam (ou mantinham) na vida emergente do novo estado. Coincidentemente, são edifícios em que as formas românicas modelam o essencial da sua imagem, atingindo mesmo, sobretudo nas Sés de Lisboa e de Coimbra, momentos altos de afirmação artística no contexto da própria arte peninsular. A catedral de Silves, em conjunto com as de Évora, Viseu, Lamego, inscreve‑se numa segunda vaga de construção de sés. Se nestas duas últimas (hoje com o discurso arquitectónico inicial bastante alterado) terão ainda prevalecido soluções românicas, a Sé de Évora adopta, mesmo que de forma ainda tímida (porque pioneira), algumas propostas da arquitectura gótica, que aqui inicia o seu discurso estético. O mesmo sucede em relação à Sé de Silves; pensamos, aliás, que as opções iniciais desta sé algarvia seguiriam de perto, embora em escala mais reduzida, as que na cidade de Évora começavam a modelar a sua catedral. Com efeito, a cabeceira primitiva da Sé de Évora, iniciada pelo bispo D. Durando Pais, que governou a diocese entre 1267 e 1283, foi sagrada em 1308, sendo bispo
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É interessante verificar que nos chegaram, quer do bispo D. Durando Pais, quer do bispo D. Fernando Martins, as estátuas jacentes dos respectivos monumentos funerários, incluídas num conjunto de quatro jacentes que só encontra paralelo em igual número de prelados que, sensivelmente pela mesma altura, se fizeram representar na Sé de Coimbra. Se a escultura de D. Durando Pais revela algum arcaísmo e dificuldade na modelação, já a de D. Fernando Martins mostra uma qualidade estética notável, que denota a evolução segura sofrida pela escultura em Évora, no espaço de cerca de 30 anos. Veja ‑se, a este propósito, a análise de Silva e Ramôa 2009, 95‑120. 8
No reinado de D. João V, esta cabeceira gótica foi substituída por uma outra barroca. 9
titular da cátedra eborense D. Fernando Martins (1297‑1313/1314) (Jorge 2000) 8 . De acordo com a reconstituição dessa cabeceira primitiva realizada por Virgolino Jorge, as duas capelas mais exteriores, do conjunto de cinco capelas escalonadas que constituíam a cabeceira da catedral, organizavam‑se em planta quadrangular (Dias 1994, 65 e 67) 9. Convirá dizer, aliás, que esta era também a proposta mais seguida num conjunto de igrejas conventuais e monásticas construídas exactamente por esta altura: em Santarém, nas igrejas de S. Francisco (inspirada na já desaparecida igreja de S. Domingos, na mesma cidade) e de Santa Clara, ambas com os quatro absidíolos de planta quadrangular; em Elvas, na igreja de S. Domingos, com a planta quadrangular a marcar apenas as duas capelas mais exteriores, com o conjunto da cabeceira a apresentar um desenho plenamente igual ao da Sé de Évora; em Almoster, na igreja do mosteiro de Santa Maria de monjas bernardas, fundado em 1289 mas com as obras a arrastarem‑se para dentro do século xiv, com as três capelas da cabeceira – abside e absidíolos – todas de planta rectangular (Teixeira 1992); finalmente, em Coimbra, na igreja do Mosteiro de Santa Clara‑a‑Velha, fundado em 1286 mas com as obras do templo a iniciarem‑se apenas na segunda década do século xiv, por intervenção directa da rainha Santa Isabel, com os dois absidíolos da cabeceira com planta rectangular no exterior e poligonais no interior (Macedo 2006). * A cabeceira da Sé de Silves ajusta‑se, no desenho da sua planta e na organização dos seus volumes, a esta tipologia que, de acordo com a breve resenha acima efectuada, vigorou, de forma consistente, num conjunto de igrejas, de diferentes ordens religiosas, construídas pela mesma época, ou seja, pelos finais do século xiii e inícios do século xiv – coincidindo, grosso modo, com o reinado de D. Dinis. De facto, a cabeceira desta igreja algarvia é constituída por duas capelas laterais de planta rectangular, de dois tramos e muros espessos, e por uma capela axial, mais larga e profunda, com um tramo recto e três panos oblíquos. A par desta organização planimétrica, alguns capitéis das zonas mais baixas (aqueles que ornam os arcos de passagem entre a capela‑mor e os absidíolos) indiciam também, nos elementos vegetalistas estilizados, as décadas iniciais do século xiv, como bem evidencia Manuel Francisco Castelo Ramos (Ramos 1996, 82). Desta forma, tudo concorre para que, com alguma certeza, se possa falar num início da construção da Sé de Silves, naturalmente pela cabeceira, pelos fins do século xiii e inícios do século xiv. O lançamento das abóbadas das três capelas levanta outro tipo de problemas, quer por serem desiguais entre si, quer por indicarem cronologias mais avançadas em relação à definição planimétrica das capelas já referidas. A capela lateral direita, a do Santíssimo, é coberta com uma abóbada em berço quebrado, com um arco toral robusto e uma única nervura longitudinal – a cadeia. Dispõe ainda de uma chave decorada com o brasão régio ornado com a flor de lis, elemento exógeno, em termos de heráldica, introduzido por D. João I nas referi-
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Silves – Sé vista da cabeceira. © Foto José Custódio Vieira da Silva
Silves – Sé portal principal. © Foto José Custódio Vieira da Silva
das armas reais e só retirado no reinado de D. João II. A capela do lado esquerdo, cobre‑se com uma abóbada de ogivas, unida também por uma cadeia central, tendo três chaves ornadas, uma com o brasão régio, outra com elementos vegetalistas e a terceira com a heráldica, provavelmente, do bispo D. Rodrigo Dias do Rego (Ramos 1996, 83) 10 . A capela axial, mais larga e elevada do que as laterais, é coberta por uma abóbada de nervuras definindo um tramo rectangular e um tramo poligonal, com uma cadeia longitudinal a uni‑los. As nervuras do tramo rectangular apoiam‑se em mísulas, sendo as do meio troncocónicas. Este perfil lembra mísulas semelhantes – de igual formato troncocónico ou prismático – utilizadas, entre outros edifícios, no transepto da igreja de S. Francisco de Évora, definindo obras que apontam para o reinado de D. Afonso V11. Aliás, a presença do brasão régio flordelisado na primeira chave da abóbada da capela‑mor da Sé de Silves, semelhante aos das respectivas capelas laterais, mais acentua a probabilidade de as abóbadas que cobrem quer a capela principal quer a capela lateral esquerda terem sido lançadas durante o reinado do já referido rei D. Afonso V. Para isso aponta, de forma definitiva, a colocação de delicados caireis a ornar os arcos de entrada nas três capelas, ornamento que surge pela primeira vez em Portugal na capela‑mor da igreja do Mosteiro da Batalha, pela mão do seu segundo arquitecto, mestre Huguet. As razões para esta intervenção quatrocentista na cabeceira da Sé de Silves são, normalmente, justificadas pelo abalo telúrico que assolou, em 1352 ou 1353, toda a cidade, tendo arruinado, segundo testemunhos, grande parte dela. A catedral não teria escapado às consequências desse fenómeno, como parece fazer crer a carta régia de 28 de Março de 1443, pela qual eram doados ao bispo os resíduos do reino do Algarve, durante dez anos, para serem aplicados nas obras da sé, ou a
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Este bispo deve corresponder a D. Rodrigo Dias ou Diogo (1441‑?), de acordo com a lista referenciada em Oliveira 1994, 296 e confirmada em Jorge 2000. 10
Também no claustro afonsino do Mosteiro da Batalha, na capela de Maria de Resende em Alcácer do Sal, na capela de Fernando do Casal, na matriz de Alhos Vedros, nas quadras primitivas do claustro do Mosteiro da Conceição de Beja, o uso desta tipologia de mísulas prismáticas ou troncocónicas permite agrupá‑las numa certa tendência de simplificação arquitectónica, detectável no reinado do rei D. Afonso V. Veja‑se, a este propósito, Silva 1989, 92. 11
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Sé Catedral de Silves 1995, 24.
Esta é também a opinião de Pedro Dias, quando afirma que a Sé de Silves «deve ter sido projectada com desusada grandeza e que o seu mestre pensava dotar o corpo de um abobadamento, à maneira da Batalha. Se assim não fosse, não se justificava a edificação de tão fortes e complexos pilares no transepto» (Dias 1994, 175). 13
Não concordamos, neste aspecto, com a opinião de Manuel Francisco Castelo Ramos, que data do reinado de D. Afonso V a intervenção no corpo da Sé de Silves (Ramos 1996, 83‑84) 14
isenção, obtida em 1458, de os pedreiros e carpinteiros servirem nas armadas para andarem nas obras da igreja catedral, necessitada de reedificação 12. Seja por estas ou por quaisquer outras razões, a verdade é que a cobertura das três capelas da cabeceira mostra momentos construtivos bem diferenciados – quer seja a abóbada de berço quebrado da capela direita, presumivelmente das primeiras décadas do século xiv (e portanto a única conservada da fábrica inicial da sé), quer sejam as abóbadas da capela esquerda e da capela axial, estas já declaradamente da primeira metade ou de meados do século xv. O transepto da Sé de Silves, bem pronunciado, promove, de forma superlativa, a planta em cruz latina desta igreja. A espessura considerável dos pilares polistilos que definem a zona do cruzeiro, parece atestar uma vontade inicial de erguer não só uma estrutura mais complexa em toda esta zona – uma torre‑lanterna? – mas também, eventualmente, de proceder ao abobadamento integral do corpo de três naves da igreja 13 . A solução adoptada ou, pelo menos, a que hoje se conserva, é uma abóbada de berço quebrado, de sabor nitidamente arcaizante, a cobrir os dois braços do transepto, recorrendo ao lançamento de uma cruzaria de ogivas apenas no cruzeiro – soluções muito próximas das que, por meados do século xiv, se haviam utilizado nas igrejas alentejanas da Flor da Rosa, no Crato, e da Boa Nova, em Terena. Se em termos volumétricos e até no recorte das aberturas (uma fresta na parede norte, uma ampla janela de dois lumes na parede sul), o transepto da Sé de Silves denuncia alguma simplicidade – numa solução que, segundo nós, evoca, mais do que o transepto da igreja do Mosteiro da Batalha, como afirma Mário Chicó, o transepto da Igreja da Graça de Santarém, erguido nas primeira décadas do século xv –, em termos de cobertura o espaço transeptal da sé algarvia, ao optar pelo abobadamento, prossegue um projecto de maior envergadura, como, aliás, seria de todo conveniente a uma sede episcopal. De qualquer modo, a monumentalidade que, apesar de tudo, o transepto manifesta, não teve sequência, sob nenhuma forma, no corpo de três naves da igreja: reduzido a quatro tramos, em lugar dos cinco mais comuns na arquitectura gótica portuguesa, eventualmente por razões topográficas ou económicas, o corpo, assim mais restrito, da Sé de Silves cobre‑se com tecto de madeira, numa fórmula habitual da arquitectura medieval portuguesa. As três naves, sendo a central cega, são separadas por arcos quebrados simples, sem qualquer moldura ou ornato a sublinhar o seu recorte. Apoiam‑se em forte pilares oitavados, cujas bases e capitéis, com um recorte absolutamente idêntico, assumem a ausência de qualquer elemento decorativo, acentuando um rigor e uma simplicidade desarmante que contrasta, apesar de tudo, com a maior monumentalidade do transepto e da cabeceira. Pensamos, a exemplo do que adianta também Pedro Dias (Dias 1994, 174), que toda a estrutura arquitectónica das três naves da Sé de Silves se deve a uma intervenção do reinado de D. Manuel I14. Motivada por qualquer calamidade natural que houvesse derruído a estrutura pré‑existente ou justificada por qualquer outra razão, a verdade
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é que as formas dos arcos de comunicação e dos respectivos pilares são característicos da fase inicial do reinado de D. Manuel I, concorrendo inclusivamente com uma notícia que afirma ter o rei D. Manuel I «reedificado a Sé com obras novas»15 . A tipologia de pilares oitavados muito simples terá sido experimentada pela primeira vez na igreja matriz de Soure, em 1490, quando D. Manuel I era ainda Duque de Viseu. Esta proposta, pela sua simplicidade estrutural, teve depois réplicas, de maior ou menor riqueza decorativa, em várias zonas do país. Citem‑se, a título de exemplo, as colunas oitavadas das igrejas alentejanas de Viana do Alentejo e Alvito, ornadas a meio, sensivelmente, dos respectivos fustes, com molduras vegetalistas ou zoomórficas de belo efeito decorativo ou a coroa que decora, também a meio dos respectivos fustes, idêntico tipo de pilares oitavados da igreja matriz de Azurara, frente a Vila do Conde. Como exemplos de colunas oitavadas simples, despojadas de qualquer tipo de decoração como as da Sé de Silves, apontam‑se apenas os casos das igrejas matrizes de Pavia e do Torrão (Silva 1989). A fachada principal encontra‑se muito alterada, sobretudo na parte superior, por efeitos do grande terramoto de 1755. Deste modo, e para respeitarmos a cronologia gótica que tem presidido a estas nossas reflexões, interessa‑nos analisar, ainda que com brevidade, o portal principal. Desenha um largo vão em arco quebrado, sem tímpano, inscrevendo‑se num corpo quadrangular saliente, que contribui para dar profundidade e monumentalidade ao portal 16 . Quatro arquivoltas, de molduras toreadas simples, assentam em quatro colunelos de mármore que contrastam, com os seus tons claros, com a bela e original cor avermelhada do grés de Silves. Os capitéis, apesar da deterioração que se apoderou de vários deles, permitem visionar um tipo de decoração vegetalista de grande rigor naturalista e com cabecinhas entre folhagem, que descende directamente, segundo pensamos, do trabalho de Afonso Domingues no Mosteiro de Santa Maria da Vitória, particularmente da porta inscrita no braço sul do transepto (de que repete também os socos duplos onde assentam os colunelos), e passa, entre outros, pelo Mosteiro do Carmo de Lisboa e também pelo portal da igreja do Mosteiro da Conceição de Beja. O elemento talvez mais original deste pórtico algarvio será o friso decorado com elementos vegetalistas e antropomórficos que acompanha o desenho da arquivolta mais exterior. Trata‑se, na opinião de Manuel Francisco Castelo Ramos, do primeiro exemplo algarvio em que se verifica uma integração daqueles elementos naturalistas num conjunto decorativo (Ramos 1996, 87), expondo‑se uma teoria de músicos, guerreiros, donzelas e religiosos, entre vegetação farta e de forte personalidade. Uma questão de pormenor que anima, no entanto, o formulário mais frio das molduras arquitectónicas que definem as arquivoltas do portal. * As muitas dúvidas e interrogações sobre a Sé de Silves não ficaram, certamente, resolvidas. Muito trabalho de investigação terá de continuar a ser feito – ao nível
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Lopes 1848, p. 292. Cit. in Ramos 1996, 87, nota 11 e Dias 1994, 174. 15
Esta solução, usada com alguma frequência ao longo do século xiv, é retomada no século xv na igreja de Santiago de Palmela, cujo portal, apesar de mais evolucionado, apresenta algumas semelhanças com o da Sé de Silves. O próprio óculo que se abre por cima da porta da igreja de Palmela é muito semelhante ao da Sé de Silves. Veja‑se, a este propósito, Silva 1977, 65‑66. 16
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«Silves constitui uma das cidades algarvias com mais carácter e dimensão estética. A sua implantação em colina isolada, no período islâmico, as sucessivas muralhas no grés avermelhado da região, bem como a imagem do perfil arquitectónico, desenhado pelo castelo e pela impressiva Sé, contribuem, no seu conjunto, para lhe dar uma expressão inconfundível e bela». José Manuel Fernandes. «Silves na transição dos séculos xix‑xx. Aspectos urbano‑arquitectónicos». Monumentos 2005, 38. 17
arqueológico, arquivístico, arquitectónico e histórico‑artístico – para, com persistência e alguma felicidade, se lograr resolver problemas que, hoje, continuam de difícil solução. Desejámos, apesar de tudo, ter contribuído, com estas reflexões, para um aprofundar do conhecimento deste original edifício algarvio. De algum modo, as suas cicatrizes, as suas colagens e recomposições, as suas diferentes modulações arquitectónicas, fazem dele arqueologia viva e testemunho presencial dos diferentes tempos e das sucessivas gerações que por ele passaram e à sua sombra ou no seu interior sagrado alguma vez se acolheram. Ainda hoje a mancha arquitectónica da catedral marca de forma impressiva o território da cidade de que um dia foi verdadeiramente Sé, contribuindo para dar definitivamente a Silves «uma expressão inconfundível e bela»17.
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Bibliografia ALVES, José da Felicidade (Apresentação e notas de). 1989. Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147. Carta de um cruzado inglês. Lisboa: Livros Horizonte. CHICÓ, Mário. 1954. A Arquitectura Gótica em Portugal. Lisboa: Editorial Sul. DIAS, Pedro. 1994. A Arquitectura Gótica Portuguesa. Lisboa: Editorial Estampa. GOMES, Rosa Varela. 2005. «Da Silves Islâmica à Silves da Expansão: a evidência arqueológica». Monumentos 23. JORGE, Ana Maria C. C. (coord.). 2000. «Episcopológio». Dicionário de História Religiosa de Portugal. Rio de Mouro: Círculo de Leitores e Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa. LOPES, João Baptista da Silva. 1848. Memórias Eclesiásticas do Reino do Algarve. FRANCISCO Pato de Macedo. 2006. Santa Clara‑a‑Velha de Coimbra. Singular Mosteiro Mendicante. Coimbra: Universidade de Coimbra, Dissertação de Doutoramento em História da Arte (polic.). MAGALHÃES, Joaquim Romero de. 2000. «Algarve, Diocese do». Dicionário de História Religiosa de Portugal. Rio de Mouro: Círculo de Leitores e Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa. Monumentos 23 (2005). Lisboa: Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. OLIVEIRA, P.e Miguel de. 1994. História Eclesiástica de Portugal. Mem Martins: Publicações Europa‑América. RAMOS, Manuel Francisco Castelo. 1996. «Decoração Arquitectónica Manuelina na região de Silves (séculos xv‑xvi)». Xelb – Revista de Arqueologia, Arte, Etnologia e História. Silves: Câmara Municipal de Silves.
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va r i a · a s é g ót i c a d e s i lv e s
Sé Catedral de Silves. Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais 80 (1995). SILVA, José Custódio Vieira da. 1989. O Tardo‑Gótico em Portugal. A Arquitectura no Alentejo. Lisboa: Livros Horizonte. SILVA, José Custódio Vieira da. 1995. Paços Medievais Portugueses. 1.ª ed. Lisboa: IPPAR. SILVA, José Custódio Vieira da. 1997. «A Igreja de Santiago da Espada de Palmela». O Fascínio do Fim. Lisboa: Livros Horizonte. SILVA, José Custódio Vieira da Silva e RAMÔA, Joana. 2009. «Sculpto immagine episcopali. Jacentes episcopais em Portugal (sécs. XIII‑XIV)». Revista de História da Arte 7: 95‑120. TEIXEIRA, Francisco. 1992. O Mosteiro de Santa Maria de Almoster. Singular Mosteiro Mendicante. Coimbra: Universidade de Coimbra. Tese de Doutoramento em História da Arte (polic.)
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na torre dos sinos do mosteiro de santa cruz de coimbra: um tesouro de moedas medievais e dois desenhos quinhentistas c át i a t e l e s e marque s Instituto de História da Arte, FCSH/UNL Bolseira de Doutoramento da FCT (SFRH/BD/45995/2008)
Arquivo Nacional Torre do Tombo – Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, Pasta de documentos 19, adiante designado por ANTT – MSCC, PD 19. É um manuscrito de papel, com 31,5 3 21,5cm, coligindo diversos documentos datados de 1540 a 1550. O maço é catalogado por um resumo do processo, com algumas imprecisões, no verso do último fólio: «1539 Papéis tocantes ao Tesouro que achou Aleixo de Figueiredo criado deste mosteiro, e familiar do Colégio de Todos os Santos [...]». À excepção dos dois primeiros fólios rasgados, o seu estado de conservação é bom. Tem 113 folhas não numeradas agrupadas em diversos cadernos, escritas por diversas mãos, estando as folhas 20, 21, 25, 36, 38, 40, 59, 60, 105 em branco. Nas transcrições feitas, é actualizada a ortografia e feito o desdobramento das abreviaturas (quando inequívocas), respeita‑se a pontuação original e as maiúsculas conforme o original (excepto nos nomes próprios), e não se dá indicação de linha finda. 1
Os colégios de S. Miguel e de Todos os Santos abriram os estudos gerais ao público em 1534/1535, conhecendo‑se os registos de matrícula dos alunos, cujas listagens foram publicadas e estudadas (Santos 1973). Aleixo de Figueiredo 2
1539. Este foi um ano central na história do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, com o encerramento do capítulo da reforma de Fr. Brás de Barros e a instituição da nova Congregação dos Cónegos Regulares de Santa Cruz. Ano da eleição do primeiro prior geral e sua nomeação para o cargo honorífico de Chanceler da Universidade, 1539 reservaria, ainda, um outro importante acontecimento que reverteu num litígio judicial envolvendo o mosteiro, o rei e uma representante das principais casas nobiliárquicas de Portugal. O processo é documentado por um manuscrito do mosteiro de Santa Cruz, actualmente à guarda do Arquivo Nacional da Torre do Tombo1. Este maço de documentos, constitui a fonte principal para o estudo que agora apresentamos. Regressando a 1539, em Agosto desse ano foi, de facto, descoberto um tesouro em Coimbra, cuja assinalável soma, inicialmente avaliada em trinta mil cruzados, justificaria a cupidez das três partes envolvidas e ainda uma outra, a do achador de nome Aleixo de Figueiredo. Filho de Nuno Borges e Isabel de Figueiredo, Aleixo foi para o mosteiro de Santa Cruz por volta de 1523, partindo depois para Quiaios, para servir seu tio, o cónego Pero de Figueiredo, cura e capelão da igreja local. De criado do mosteiro passou a familiar do Colégio de Todos os Santos, habitando dentro dos limites da cerca conventual, envergando a loba e capelo pardos e estudando gramática e latim durante os quatro anos que decorreram entre o seu ingresso e o achado do tesouro2. Este jovem adulto, na casa dos vinte anos mas parecendo mais velho pela «sua grande barba e aspecto e severidade», foi o responsável pelo achado. Se dele fez segredo em Coimbra, cedo começou a dar largas à recém conquistada riqueza, emprestando dinheiro a amigos e familiares e adquirindo uma herdade
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no termo de Évora por 540 mil reis. Sendo «filho de homem tão pobre, e ele tão pobre que não tinha mais que quanto o mosteiro lhe dava» (ANTT – MSCC, PD 19, fl. 97), o novo erário ter‑lhe‑á garantido o acesso imediato a um bom casamento, com Andreza Henriques, filha do fidalgo Henrique da Veiga, senhor das honras de Molelos e Botalho no concelho de Besteiros 3. Mas, os avultados gastos chegariam aos ouvidos do rei e, algum tempo depois, Aleixo era encarcerado na cadeia do Limoeiro em Lisboa, apontado como réu por «furto e crime cometido ex dolo e fraude» num julgamento complexo. Nele se defende, alegando que achara o tesouro na torre dos sinos do mosteiro e que o levara por desconhecimento da lei. À data do achado, era ele menor de 25 anos, logo inimputável, sendo‑lhe de direito a liberdade e a metade do tesouro, como determinava a tradição: «em alguns lugares de Portugal onde se acharão tesouros antigos sempre o costume do Reino de tempo que a memória dos homens não é em contrário os tais tesouros foram dos achadores sem contenda» (ANTT – MSCC, PD 19, fl. 15v ). Os Crúzios, pela sua parte, argumentaram que o réu era, à altura, criado e colegial do mosteiro, contestando a sua menoridade, e que o tesouro fora achado dentro da cerca de Santa Cruz mais propriamente na torre dos sinos, factos corroborados pelo testemunho de Aleixo de Figueiredo. Neste sentido, parecia evidente pertencer ‑lhes o tesouro, mas, a demonstração do seu direito esteve longe de ser fácil, ao disputá‑lo com o monarca. As alegações do réu e do mosteiro foram, pois, rebatidas pelos procuradores de D. João III, tentando encontrar contradições no testemunho de Aleixo por exaustivos inquéritos e provar a impossibilidade da descoberta do tesouro na torre do mosteiro com uma escrupulosa vistoria realizada por uma junta de agentes da justiça e pedreiros 4. Além do mais, o objectivo central era provar que o achado ocorrera num muro da cidade na vicinitude de Santa Cruz, fora dos limites da sua cerca, legitimando de imediato o rei como proprietário de direito. A quarta parte requerente era representada pela infanta D. Isabel, filha de D. J aime e irmã de D. Teodósio, duques de Bragança, que casara em 1537 com o infante D. Duarte de Portugal, filho de D. Manuel I, enviuvando três anos depois. Uma vez que o Infante, à data da descoberta, era prior comendatário do mosteiro5 e as dependências da torre eram, originalmente, habitação dos priores, a duquesa de Bragança reclama o tesouro em nome dos filhos como legítimos herdeiros de D. Duarte. A estes argumentos contrapôs o mosteiro razões de peso: D. Duarte era apenas comendador perpétuo, usufruindo das rendas mas sem poder administrativo sobre o mosteiro – até por ser casado –, cessando o seu direito com a morte 6. Amplamente documentado pelo mosteiro de Santa Cruz, o processo da disputa reúne um rico manancial de informações, dentre as quais se procurará aqui salientar as mais relevantes para a História da Arte, centrando a atenção no tesouro e na antiga torre dos sinos do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra.
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ingressou logo no ano inaugural, entre os 86 primeiros alunos, registado como «Aleixo filho de Nuno Borges morador em Besteiros a doze dias de Junho» (Santos 1973, 26). Nas alegações do mosteiro, refere‑se que Aleixo era, em 1539, «já gramático e lógico, e ouvia de filosofia» (ANTT – MSCC, PD 19, fl. 39v). 3
Morais 1943, 205. Na relação que foi feita do
dinheiro, ficamos a saber que Henrique da Veiga custodiava mais de dois contos de reis em moedas do tesouro. ANTT – MSCC, PD 19, fl. 70. 4
A junta reuniu o desembargador Francisco de
Mariz, o juiz Bartolomeu Bernardes, o alcaide Afonso Álvares, o meirinho Gaspar Dias, o tabelião Pero Feio, e os pedreiros Jerónimo Vaz e Gaspar da Costa, moradores em Coimbra. Realizada a 18/9/1542, o auto da vistoria seria firmado a 22/2/1543. ANTT – MSCC, PD 19, fls. 73‑78v. O mosteiro, em face das conclusões da inspecção, colocaria uma acção contra Bartolomeu Bernardes e Francisco de Mariz por má‑fé. Idem, fls. 79v‑82. 5
O infante D. Duarte foi prior comendatário
do mosteiro de Santa Cruz de 1539 a 1540, o primeiro e único secular a usufruir de tal cargo. Finando‑se em Outubro de 1540, aos 25 anos, a comenda seria transferida para D. Duarte, filho de D. João III, que faleceria, por seu turno, em 1543, com ele se extinguindo o priorado‑mor. 6
Mais se defende, «E porque em a dita igreja e
mosteiro e em todas cousas dele assim espirituais como temporais das portas adentro o prior crasteiro e convento tem toda administração, jurisdição, mando, governo e superioridade, a eles pertence o dito tesouro e administração dele, e não aos priores maiores, nem comendatários, que das ditas portas adentro em nenhuma cousa tem espiritual ou temporal administração, jurisdição, mando nem superioridade». A destituição de poder dos priores‑mores perpétuos datava do tempo do priorado de D. Henrique (1527‑37), que renunciara nos priores crasteiros a jurisdição, governo e administração dos assuntos do mosteiro. ANTT – MSCC, PD 19, fl. 26.
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BPMP – Ms. 175, fls. 382v‑384v. O documento a que nos referimos foi transcrito e publicado por duas vezes: Dinheiro… 1842, 53‑54; Actas… 1946, 173‑176. 7
D. Vicente esclarece que os «letreiros foram em Lisboa tornados em nossa língua portuguesa por pessoas que bem sabiam a língua mourisca». Citamos apenas a legenda da face, importante para a sua classificação: Cercadura, repetida nos quatro lados: «Não há vencedor senão Deus». Quadrado inscrito: «Homir escravo de Deus Hiacef filho de Ormir das mouras filho de Esmael filho de Noohe a quem Deus enderence e faça bem aventurado». 8
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Vives 1893, LXXXV.
Agradecemos ao Dr. João Pedro Vieira, historiador e técnico do Museu do Banco de Portugal, esta identificação, bem como ao Senhor Director Dr. António Gil Matos, pela disponibilização dos serviços do Museu para esta investigação. 10
O cartorário crúzio refere‑se ainda a moedas do tempo do rei Pepino I, o Breve (751‑768) (BPMP – Ms. 175, fl. 384). Em todo o processo do tesouro (ANTT – MSCC, PD 19) não se encontra qualquer indicação a este reinado nas descrições dos numismas achados, mas apenas a referência à identificação da legenda relativa a um dos Filipes. 11
Considerando que as moedas referentes aos reinados de Filipe I (1060‑1108) e Filipe II (1180‑1223) têm por legenda apenas “PHILIPPVS REX”, e no reinado de Filipe III (1270 ‑1285) não se emitiu moeda de ouro. Já as de Filipe V (1316‑1322) são difíceis de individualizar por comparação com as do reinado anterior ou dos seus homónimos (Grierson 1976; Engel; Serrure 1964). 12
O tesouro de moedas Pelas relações do processo e posteriores relatos da descoberta ficamos a conhecer o conteúdo deste afamado tesouro. Se se mencionam pontualmente «alguns pedaços de ouro e de prata que pareciam ser de cruzes e turíbulos desfeitos», o grosso era sobretudo constituído por uma copiosa quantidade de moedas de ouro antigas «mouriscas, e parte francesas» (ANTT – MSCC, PD 19, fls. 5, 32), valendo cada uma cerca de quinhentos reis. As moedas “mouriscas”, também designadas «dobras zainas», foram descritas com detalhe pelo cartorário crúzio D. Vicente, nas suas memórias (c. 1545)7. Dados sobre diâmetro e valores e uma reprodução esquemática em desenho identificam‑nas de imediato como dobras (Ø 32mm; 520 rs) e meias‑dobras (210 rs), mas é a transcrição da legendagem8 que melhor serve a sua catalogação, cronologicamente do Reino de Granada (1237‑1492). Uma vez que as tipologias e o sistema monetários nasridas seguiram os introduzidos pelos almóadas – continuando a usar‑se o quadratus in auro idêntico na forma ao desenho que D. Vicente reproduz (Fig. 1) – é a divisa «Não há vencedor senão Deus», repetida nas legendas marginais, que esclarece e confirma a sua origem, dado constituir o mote dinástico nasrida, inscrito em todas as moedas de ouro do emirado9 e perpetuado pelos estuques do Alhambra. A genealogia dinástica e titulatura emiral designadas são outros elementos fundamentais para a classificação das dobras do tesouro e, nesse aspecto, a transcrição fornecida pelo cartorário agostinho remete a cunhagem desse espécime para o emirado de Yusuf I (1333‑1354)10. A maior parte do tesouro reunia, segundo D. Vicente, moedas cunhadas com as armas dos reis de França e a inscrição «Phillippus gratia dei Rex francorum»11. Apesar de parca, a descrição remete estas peças monetárias para os reinados de Filipe IV (1285‑1304) e Filipe VI e (1328‑1350), durante os quais se emitiram numismas de ouro com inscrições desse teor e onde figuram o rei entronizado de um lado e a cruz flor‑de‑lisada do outro12. Nas alegações do processo do tesouro, a datação das moedas é, contudo, recuada aos séculos xii e xiii, tentando o procurador dos feitos de D. João III provar serem
Fig. 1 – Reprodução do desenho das dobras nasridas feito por D. Vicente [in Dinheiro… 1842].
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anteriores à fundação de Santa Cruz e reclamando o mosteiro a sua posteridade13. Para este efeito, os Cónegos anexam ao processo um documento que importa destacar pelo seu positivo interesse: um caderninho impresso de 16 páginas ilustradas a xilogravura14, onde em cada uma se representam três a quatro moedas, frente e verso, perfazendo 55 ao todo (Figs. 2 a 7). A primeira e a terceira páginas são numeradas com “C” e “C.ij.”, donde se depreende tratar‑se apenas de parte de uma obra maior. As imagens são identificadas por legendas em francês e por elas se catalogam numismas dos séculos xv e xvi de diferentes estados europeus,
Figs. 2 a 7 – Alguns dos fólios do caderno de Ordenações, onde se ilustram espécimes monetários dos séculos xv‑xvi em circulação na Europa, c. 1537‑1547 (ANTT – MSCC, PD 19; imagens cedidas pelo ANTT).
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ANTT – MSCC, PD 19, fls. 11, 32‑32v.
O caderno encontra‑se entre os fls. 110v e 111, com as dimensões 10,6 3 8cm. 14
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A ilustração do cruzado de D. João III de Portugal, por exemplo, determina serem ordenações posteriores a 1537, ano em que foi cunhado (Aragão 1964, I: 267). Por sua vez, as características tipográficas (letra gótica e numeração romana) e sistema de valores (patards) são arcaicas quando comparadas com as Ordonnances dv roy et de sa Covrt des monnoyes, contenãt le pris & poix publicadas sob o reinado de Henrique II e de que se conhecem exemplares de 1549 em diante. Nestas os valores são indicados em dinheiros ou soldos torneses e a letra é já a humanista. Agradecemos ao Dr. João Pedro Vieira a chamada de atenção para estas particularidades. 15
Está fora do alcance deste estudo precisar as origens incertas desta construção fortificada, que constituem uma equação complexa relacionada com a história urbana mais recuada de Coimbra, de resto tratada recentemente por Walter Rossa (Rossa 2001) e Jorge de Alarcão (Alarcão 2008), mas que, neste particular, carece de dados mais precisos. Destacamos, sobretudo, o último estudo pela profunda análise que merece a urbanização da Ribela e de Montarroio e pelas propostas de contextualização da torre. 16
17
Descripcam… 1957, 13.
«[...] a torre [...] junto da qual estão hoje todas as oficinas . forno . celeiro . adega . etc.» (BPMP – Santa Cruz 15B, 272v). «Ao pé da torre dos sinos. uma casa grande em que está o forno com sua chaminé e assentos para os tabuleiros e a lenha para o dito forno, e junto dela no mesmo andar outra casa para a amassaria com um portal de pedra para serventia dela para a casa do forno com duas frestas ferradas com seus poiais lajeados em que estão os alguidares e uma fornalha com uma caldeira em que aquentam a água» (BPMP – Ms. 175; excerto documental também publicado em Actas… 1946, 171; e Dias 1982, 153). Perto das torres ficava ainda a antiga Sala dos Prelados (a Oeste) e a capela de S. Vicente, esta última destruída no tempo das reformas joaninas, para dar lugar às escadas de acesso à torre e a parte das canalizações da água, de que terá restado um fresco observado após a demolição de 18
com os respectivos pesos e valor pecuniário. Trata‑se, pois, de um raro “catálogo” numismático de meados do século xvi, que terá servido para avaliação aproximada do valor das peças encontradas. A partir do reinado de Henrique II de França (1547‑1559), e sobretudo com a instituição da Cour des Monnoyes, foi costume a publicação manuais de câmbio, de formato reduzido, para controlo das moedas em circulação na Europa, com ilustrações e indicação do seu peso e valor. O caderno apresentado por Santa Cruz de Coimbra será, é certo, uma obra desse cariz, talvez originária de uma ordenação do reinado anterior, de Francisco I (1515‑1547)15. Reunindo milhares de moedas “mouriscas” e francesas e alguns pedaços de ouro, o tesouro terá sido zelosamente arrecadado na torre do mosteiro crúzio em data posterior à primeira metade de Trezentos. Apesar da grande riqueza que representava, se considerarmos a avaliação feita em trinta mil cruzados, a sua origem e pertença eram uma incógnita já na altura em que foi descoberto. Ao que parece, a ideia de um tesouro era antiga na cidade, pois «de tempo imemorial sempre se disse e foi fama e comum opinião que na cidade de Coimbra estava um muito grande tesouro soterrado e escondido ficando sempre esta fama e opinião nas gentes» (ANTT – MSCC, PD 19, fls. 10v‑11).
A torre dos sinos O edifício central na contenda era a torre de Santa Cruz situada a norte do mosteiro na encosta de Montarroio frente à Ribela16 (Fig. 8). Esta torre integrava, na verdade, um conjunto acastelado de edifícios rematado por ameias, descrito por D. Francisco de Mendanha como «três torres de canto talhado, tão fortes», erguidas a 24 metros (120 palmos) de altura e com paredes de 2,8 metros (14 palmos) de largura17. A imagem que retemos das torres é a de um abrigo poderoso, erguido por paredes de silharia grossas autoportantes, um número reduzido de aberturas (algumas frestas e janelas de arco de volta perfeita), e a entrada feita, como era habitual, pelo primeiro piso, a partir de uma escada. O complexo fortificado deve ter crescido de forma orgânica, entre os séculos xii e xiii, não obedecendo a uma mesma campanha construtiva. Junto dele foram‑se dispondo outras estruturas, pelas quais se distribuíram, até ao final do século xvi, diversas oficinas do mosteiro18. A expansão do conjunto edificado resultou da natural diversificação das necessidades e da complexificação da vida do cenóbio após a estabilização da comunidade e a pacificação das fronteiras. Interessa‑nos, em particular, a torre situada a norte, voltada para a rua de Montarroio mas sem acesso pelo exterior da cerca. Sabe‑se ter sido provida de água, canalizada da Ribela por um aqueduto e recolhida num «tanque onde caía a que fora por um cano de pedra que ainda hoje se vê no meio das torres»19. Esta valência tornava‑a especialmente adequada à habitação dos priores mores que aí tiveram os seus aposentos. A antiga casa do prior é, aliás, ainda evocada por D. Nicolau
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1935 e reconstituído em desenho. Ms. 175, fls. 537, 383v‑384. Gonçalves 1980. Alarcão 2008, 170, fig. 60. «Item a dita torre está dentro em o circuito do mosteiro e não tem nenhuma serventia para fora, mas toda se serve por dentro do mosteiro» (ANTT – MSCC, PD 19, fl. 96). Sobre a serventia de água: BPMP – Ms. 175, 125‑125v; Santa Cruz 15B, fl. 272v. 19
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«Item que em a dita torre estão muitas casas, umas servem de celeiro, outras de sal, outras servem de sinos e Relógio | Em outras pousam servidores em outras estão armas | em outras alguns papéis e livros que pertencem ao mosteiro, e outras servem de outras necessidades | Item é de notar que a dita torre esta aberta comum a todos, excepto que o celeiro e a casa dos papéis e armas estão muito bem fechadas e a casa em que se achou o dito tesouro estava pregada ao tempo que o inventor levou o dito tesouro.» (ANTT – MSCC, PD 19, fl. 96). 21
Fig. 8 – A antiga torre dos sinos do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra.
de Santa Maria, embora no século xvii tivesse sido construída uma nova do lado nascente das torres. Mas, o cronista não deixou de relembrar que na «mesma torre dos sinos foi também uma das antigas, na qual havia casas muito formosas, em que moravam os Priores mores antigamente» ( Santa Maria 1668, II: 36). No processo do tesouro, a localização da residência dos priores na torre é referida, em particular, pelo procurador de D. Isabel de Bragança, a quem interessava provar serem aí os aposentos destinados ao infante D. Duarte: «soía ser aposentamentos dos prelados e priores do dito mosteiro . e nela pousavam e tinham sua habitação por onde é de crer que o dito dinheiro foi ali posto e metido por algum dos prelados e priores passados, pelo que não há dúvida ao prelado e sucessor na dita prelazia pertença o dito dinheiro» (ANTT – MSCC, PD 19, fl. 8v). Sabemos que, no primeiro quartel do século xvi, o aposentamento dos prelados na torre medieval estaria comprometido pelo estado de ruína do edifício, como o prova a preocupação ao tempo de D. Manuel com o madeiramento e telhamento da «torre grande do aposentamento dos priores porque está apontada para cair», mas as obras só progrediriam a mando de D. João III, a partir de 1522, permitindo preservar o seu interior20. A torre fortificada de Santa Cruz, conjugando a residência dos prelados, celeiro, «casa dos papéis e armas»21, apresenta semelhanças tipológicas evidentes com
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O mosteiro… 1914, 33 e 42.
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Chicó 1968, 25. Azevedo 1969. Silva 2003.
Gonçalves 1980. Diário de Coimbra 1935. Numa notícia de 1933 sobre a «Restauração dos monumentos de Coimbra» (Arte e Arqueologia Ano II, 3: 67) lê‑se: “A torre de Santa Cruz, após o incêndio ateado num depósito de palha que abrigava, entrou na ordem de trabalhos e foi já desentulhada dos materiais estranhos, pensando‑se em apear a torre dos sinos e consolidar o monumento medieval que a envolve. A direcção destes trabalhos foi entregue ao dedicado e inteligente Director dos Monumentos do Norte, o arquitecto Baltasar de Castro, o mais vigoroso, enérgico, consciente e sabedor elementos de que a Direcção Geral dispõe, e a quem se devem as restaurações dos monumentos de Entre Douro e Minho e Trás‑os‑Montes, e no sul, a de Alcobaça”. Após a demolição, a área ficaria entaipada mais de 50 anos, até à construção do escadório. Do entulho, seriam requisitado 500 m3 de pedra, logo em 1935, para a construção do parque temático Portugal dos Pequenitos (IHRU – SIPA, PT020603170004, DSARH‑010/079‑0055), onde a torre teve reprodução miniatural, inclusivamente com os seus relógios mecânico e de sol desenhados, com base nos originais, por Cassiano Branco (Arquivo Municipal de Lisboa/Núcleo Histórico – Espólio do Arquitecto Cassiano Branco – Portugal dos Pequenitos / Casa de Coimbra, cota antiga: III – C. 11). 23
as casas‑torre feudais medievais, reproduzindo a primeira tipologia das torres de menagem: planta quadrada, dominada por merlões, com dois ou três pisos pavimentados de «sobrado» e o celeiro no piso inferior22. Não deixa de ser interessante ponderar se, para além de funções militares defensivas, poderá ter alcançado, em determinado momento, o estatuto de marco simbólico afirmando um potentado privado: o do Isento de Santa Cruz, prestando contas directamente ao Papa. Tal como as casas‑torre da nobreza, a torre dos prelados de Santa Cruz ergueu‑se, massiva e imponente, na paisagem urbana de Coimbra, assim perdurando até ao século xx. E, no entanto, estranhamente, a conhecida vista da cidade de Coimbra tirada por G. Hoefnagel para ilustração da obra de G. Braunio em 1572 não a representa... Notável marco urbano da cidade, o conjunto fortificado do mosteiro crúzio ficou para a memória apenas pelos desenhos, gravuras e fotografias que o registaram entre os séculos xix e xx, dado ter sido demolido a 3 de Janeiro de 1935, por estar em risco de derrocada iminente em virtude de infiltrações e cedência do terreno. Em 1894, já se notara a sua fragilidade com a consequente publicação de notícias e avisos na imprensa, cessando‑se a actividade do campanário que o rematava. Após um incêndio em 1933, o monumento foi entregue à Direcção Geral dos Monumentos Nacionais, mas nenhuma medida foi tomada, a não ser a lamentável ideia de provocar a sua queda, que arrastaria consigo parte das construções que a ladeavam23 (Figs. 9‑11). A iconografia mostra bem a imponência destas torres, ladeadas pelos edifícios seiscentistas do celeiro, a poente, e a oriente pelas novas residência do prior e enfermaria. A torre do lado da Ribela marcava presença pelo monumental campanário
Figs. 9 e 10 – Demolição da torre a 3 de Janeiro de 1935.
Fig. 11 – Escadório construído em 1986 na actual rua Olímpio Nicolau Rui Fernandes, no lugar da derrocada da torre.
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barroco, edificado após o terramoto de 175524. De forma e arquitectura “severas e bem concebidas”, na apreciação de Albrecht Haupt (Haupt 1986, 218), este campanário substituiu um mais antigo, quinhentista, localizado na torre do lado de Montarroio. De facto, só em 1530, os sinos seriam aqui instalados, transitando da torre da Madalena, próxima da Porta Nova da cidade. Na relação das obras de D. João III, publicada por Mário Brandão, encontramos referência ao acrescentamento da torre de Montarroio feito para alojar os sinos. Sobre a nossa torre passou então a erguer‑se um campanário de cerca de seis metros de altura, com nove arcos sobre os quais corria uma cimalha, «e os arcos têm todos ao redor bocel que sai fora da parede, e suas represas em baixo» (Actas… 1946, 172). Nove arcos para os nove sinos – cinco maiores e quatro menores – «feitos por tal arte que uns são triples, outros tenores, outros contrabaixos, outros contraltos, e alguns parece que têm duas vozes em modo que todos juntos tocados têm um não sei quê, que se são dias ou novas de aflição dobram o nojo, se de prazer o prazer» (Descripcam… 1957, 13v). Sabíamos, pela relação citada, que a obra custara cento e noventa mil reis, mas recentes investigações clarificaram que a soma foi paga ao arquitecto Diogo de Castilho que a fez 25. A vista de Coimbra de Pier Maria Baldi (1668‑1669) será, talvez, o único testemunho gráfico onde podemos escrutinar uma pálida imagem desta obra de Castilho (Fig. 12). A torre dos sinos é representada por detrás da igreja de Santa Cruz, ao lado de um torreão mais baixo e merlado. No topo do corpo regular da torre, visto do lado sul, rasgam‑se cinco arcos de volta perfeita, destinados aos sinos. Distingue
Fig. 12 – Pormenor da vista de Pier Maria Baldi (1668‑1669) (imagem cedida pela BNP). A torre assinalada a vermelho e, a roxo, a igreja do mosteiro de Santa Cruz.
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Edificada após um reforço estrutural da construção medieva, na altura fragilizada com o abalo sísmico, de acordo com uma descrição de 1758: “Tem mais duas torres de cantaria e de igual grandeza e antiguidade, que ficarão dentro do Real Mosteiro de Santa Cruz; uma das quais por ameaçar ruína com o memorando terramoto do 1.º de Novembro de 1755 se tem reparado, e no interior dela se edificou nova torre que se acha quase concluída, cuja obra se dirige ao fim de nela se colocarem os sinos, que por ora se acham na torre contígua.” (Pacheco 1938‑1939,: 291). 24
«E nesta conta não entram os cento e noventa mil reais que haverá de haver pelo acrescentamento da torre dos sinos que fez [...]». Relação dos pagamentos feitos a Diogo de Castilho no ano de 1530 pelas obras efectuadas por contrato com o mosteiro de Santa Cruz – Carta do rei para Vasco Ribeiro. A.U.C.: Feito em que o mosteiro de Santa + foi autor e a Universidade ré, 492v‑494v (Craveiro 2002, 12‑13). 25
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Em face da informação sobre estes tesouros, Jorge de Alarcão afirma ser “tentador relacionar estes tesouros com o erário régio que D. Afonso Henriques confiou à guarda dos priores de Santa Cruz” (Alarcão 2008, 170). Mas, em face dos dados que agora se apresentam sobre o tesouro descoberto em 1539, julgamos poder afirmar uma outra origem, relacionada, directa ou indirectamente, com a batalha do Salado (1340), que originou a irrupção nos mercados cristãos, nomeadamente os peninsulares e o francês, de uma grande quantidade de metais preciosos e de moedas nasridas. 26
Terão sido, eventualmente, estas moedas recolhidas na inspecção de Fr. Brás observadas por D. Vicente que as desenhou esquematicamente como vimos atrás. 27
‑se, ainda, o remate pinacular central da torre e o relógio sugerido por um largo círculo desenhado sob os arcos sineiros. Conta‑nos D. José de Cristo «que esta torre antes que lhe acrescentassem as casas dos sinos tinha ameias como as outras que estão junto dela o que tudo era cousa de guerra e defesa» (BPMP – Santa Cruz 15B, fl. 271v). O carácter militar deixara, pois, de ser uma necessidade premente e, em 1539, quando se achou o tesouro, a torre mudara, pois, a referência militar para a civil, dando as horas à freguesia de S. João e oferecendo pousada a servidores e hóspedes.
O interior da torre. Os desenhos quinhentistas Do interior, o único dado conhecido até hoje dizia respeito à disposição por «três andares de sobrados e em cada andar tem muitas casas grandes e boas» (O mosteiro… 1914, 33). Com o processo do tesouro, acrescenta‑se alguma informação mais detalhada, embora sobretudo respeitante à casa das necessárias, dado ter sido aí o local onde Aleixo de Figueiredo alegou ter sido descoberto o tesouro. Situada a 8 ou 10 metros do chão, sobre a torre maciça e sem outros pisos abaixo, a casa das necessárias é dada, nas diversas alegações, como uma sala suja, iluminada e ventilada por três vãos, de paredes «de mais de oito ou dez palmos de largo» de «cantaria antiga grossamente lavrada e mal junta, em modo que as pedras por o vivo da parede não ajuntam umas com as outras» (ANTT – MSCC, PD 19, fls. 15, 33v). As peças do tesouro estariam soltas num buraco por detrás de uma pedra, a 14 palmos de altura, de uma das paredes, que pegava com a do tabique da necessária. Cada piso teria cerca de 3,6 metros de altura e acima da sala da necessária ficava uma outra «casa sobradada e bem ladrilhada». Havia razões legítimas para acreditar que a torre era lugar de entesouramentos antigos, onde, para além do achado por Aleixo de Figueiredo, quarenta anos antes um cónego achara perto da torre «uma panela com boa quantidade de moedas . de ouro antigas e assim depois haverá ora sete anos ou o tempo que vier em verdade . achou um familiar do dito convento [...] uma moeda antiga em uma casa pequena que está na dita torre» (ANTT – MSCC, PD 19, fl. 4v)26. Para além do mais, Fr. Brás de Barros, logo após a notícia da descoberta em Janeiro de 1540, deslocara‑se à sala das necessárias onde ainda acharia sete ou oito moedas caídas no chão, deixadas pelo colegial27. A confissão do réu, o testemunho de Fr. Brás e as provas relativas à datação das moedas e às dependências da torre deveriam ser suficientes para a restituição do tesouro ao mosteiro, mas não foram, procedendo‑se ainda à inspecção ordenada pelo Desembargo do Paço. As alegações dos procuradores de Sua Majestade discriminavam diversas impossibilidades: as características da cobertura e do tabique da
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casa das necessárias permitiriam perceber a existência do tesouro a partir de outras salas por qualquer pessoa atenta; as obras na torre decorridas anos antes (construção de uma chaminé e reparo dos sobrados), por sua vez, teriam facultado o acesso à casa das necessárias e a observação das suas paredes por oficiais e serventes. O mosteiro contraria, evidentemente, estas alegações, negando quaisquer obras, mas, como tivemos oportunidade de observar atrás, em 1522 avançara‑se com o reparo da torre e em 1530 aí se construíra o campanário de Diogo de Castilho... Numa última tentativa de provar as “evidências”, Santa Cruz junta ao processo dois desenhos (30 3 20,2cm): uma planta da área da torre onde se situavam as necessárias e uma notável representação em perspectiva da dita sala (Figs. 13 e 14). O desenho à pena transcreve minuciosamente sobre o papel a perspectiva de um espaço cúbico, mostrando o piso, a cobertura e todos os alçados, à excepção daquele de onde se tira a vista, justificando: «e porém para se ver de dentro, não se podem figurar mais que três paredes». O sentido da perspectiva é dado pelos sombreados e pelo alinhamento da cantaria, com as diagonais convergindo para um ponto imaginário no centro da representação. Além de alguns desacertos destas diagonais, há uma evidente transgressão ao rigor perspético na janela à direita ao ser representada de frente, procurando sublinhar a existência e configuração do vão. Nota‑se, aliás, alguma indecisão no traço, mais carregado e menos seguro da forma, como se de uma adição posterior ou correcção se tratasse. Contudo, não é descurada a pormenorização dos materiais construtivos ou de aspectos de degradação da sala, revelando assim vontade de precisão a partir do trabalho das sombras. Na verdade, à primeira vista torna‑se difícil reprimir a sensação de estarmos perante um instantâneo fotográfico, pelo que não se trata, pois, de uma simples redução esquemática na tradução da realidade. Na imagem, encontram‑se representados os principais elementos que provam ser o local do achado: a cavidade onde estava o tesouro; a necessária com o tabique da conduta a eixo, muito próxima do buraco; o releixo onde poderiam ter caído as moedas; o piso coberto de terra que ocultaria alguns numismas caídos; o travejamento e sobrado da cobertura, sólidos, que não permitiriam ver esta sala do piso superior. Em boa verdade, este desenho constitui a transposição para imagem dos relatos de Aleixo de Figueiredo e do mosteiro acerca da torre onde se achara o tesouro. É, ainda, complementado por legendas que confirmam a identidade dos elementos arquitectónicos, utilitários e materiais da divisão e acrescentam informação prática sobre opções da figuração28 e aspectos não representáveis, tais como a orientação espacial, medidas e dimensões e outros dados relativos à torre. Destinado a ser “lido” como verosímil representação da realidade tal como se apresentava, não guarda subjacente qualquer intenção artística, sendo mais uma imagem prática que pretende ser eficaz, com o apoio do sistema de anotação que confirma a sua correcta “leitura”. A planta, por sua vez, contextualiza a casa das necessárias na torre dos sinos, com o muro exterior voltado para Montarroio. Embora restrita a uma área parcial, é rica em pormenores sobre o aproveitamento do espaço interior e sobre a
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«Esta parede e assim as outras desta casa estão guarnecidas por cima da cantaria com cal. E porém para se melhor mostrarem em este debuxo as três quadras se pintou a cantaria». ANTT – MSCC, PD 19, fl. 37. 28
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Uma destas casas é identificada como os aposentos do jerónimo Fr. Urbano (dado como testemunha no processo), antecedida por uma sala com as escadas de acesso (antecâmara?). Entre a parede exterior da torre e as salas, dispunham‑se dois corredores paralelos divididos por uma segunda parede. Para além da casa das necessárias e das duas salas mencionadas, existiriam mais duas “casas”, conforme a legenda do desenho: «E porem esta casa [das necessárias] tem toda esta altura maciça e cheia e o que não tem alguma das outras casas desta torre, que são quatro». Quanto às instalações utilitárias, anota‑se, para além das necessárias, a existência de um poço ou cisterna, aliás discutida no processo. 29
Em 1531 é nomeado mestre de obras do mosteiro de Santa Cruz, e até 1559 foi recebedor de rendas, ano em que abdica do cargo no seu filho Jerónimo de Castilho e assume a posição de vereador da Câmara de Coimbra. Dez anos depois seria destituído da vereação por supostos favorecimentos do mosteiro, lugar onde, aliás, acabaria por ser sepultado. Estes e outros dados sobre a biografia de Diogo de Castilho encontram‑se coligidos e estudados mais recentemente em Craveiro 1993 e 2002; Dias 1982; Lobo 2006. 30
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ANTT – MSCC, PD 19, fls. 53‑58v.
circulação na torre. Constitui, por isso, um valioso documento a partir do qual se podem estudar as divisões internas e a organização das “casas” principais e utilitárias de uma torre medieval29, para além de esclarecer a disposição e configuração dos vãos iluminantes e a situação das escadas de acesso entre pisos. Tal como o desenho, a planta é acompanhada por uma escala (petipé) para medição correcta dos espaços. O rigor do levantamento planimétrico e a utilização da perspectiva são indícios claros de um autor instruído nas ciências da geometria e da arquitectura. Apesar de alguns membros da comunidade praticarem as artes visuais, com «exercícios de mãos que faziam muito perfeitamente, de pintar, escrever, debuxar, e iluminar» (BPMP – Ms. 175, fl. 173), estas teriam a sua maior aplicação nos ofícios do livro manuscrito, no scriptorium de longa tradição medieval. As duas perspectivas quinhentistas denunciam algo distinto, o conhecimento e domínio prático do debuxo arquitectónico. Neste sentido, parece‑nos uma possibilidade forte a sua atribuição ao arquitecto Diogo de Castilho, a trabalhar intensamente no mosteiro de Santa Cruz desde 1519, cuja actividade em Coimbra tem sido objecto de aprofundados estudos 30. No decurso deste período, uma das obras à sua responsabilidade foi, como vimos, a do acrescentamento da torre dos sinos, que lhe terá permitido conhecer bem o edifício em causa, a ponto de poder desenhar a sua planta de maneira expedita e rigorosa, talvez até com base em levantamentos prévios da dita intervenção. Para além do mais, este arquitecto, que atingira um lugar de responsabilidade no mosteiro e junto do rei – que o nomeia mestre dos Paços Reais em 1524 e do mosteiro em 1531 –, é dado, em 25/1/1540, como recebedor e procurador do mosteiro no feito do tesouro, sendo enviado, com o tabelião, aos licenciados e ao corregedor do Desembargo do Paço para apresentação de requerimentos 31. Os cargos de arquitecto e de recebedor e procurador do mosteiro são provas das suas capacidades e da confiança outorgada pelos Crúzios, pelo que não seria de estranhar que fosse incumbido da tarefa de debuxar uma prova de eloquente feição a juntar ao processo. Pode até argumentar‑se que o desenho e planta não serão debuxos originais do arquitecto, mas consideramos, em todo o caso, serem cópias minuciosas executadas para integrar o processo arquivado no mosteiro. No verso do documento indica‑se o seguinte: «estes dois papeis ou debuxos são para dom Francisco ver e praticar se cumprir | e somente se acostará ao feito o outro que não leva mais debuxado que a montea» (ANTT – MSCC, PD 19, fl. 36v). Por aqui se depreende que as ilustrações aqui dadas a conhecer serviram a adequada preparação da argumentação pelos cónegos e que uma delas – a da perspectiva da casa das necessárias (a “montea”) – foi realizada em duplicado, a fim de ser enviada para o Desembargo do Paço. Independentemente de certezas absolutas sobre a identidade do autor dos debuxos, estes dois documentos atestam a consagração do desenho como prática costumada e enraizada nas esferas da relação entre o mosteiro e o monarca. Recordemos a troca de correspondência entre D. João III e Fr. Brás de Barros, para
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Figs. 13 e 14 – Desenhos do interior da torre dos sinos, constantes do processo do tesouro descoberto em 1539. (ANTT – MSCC, PD 19; imagem cedida pelo ANTT)
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a qual o arquitecto Diogo de Castilho serviu tantas vezes de fiel intermediário e favorito interlocutor. Nas cartas que se sucedem entre 1531 e 1537, o monarca refere‑se à execução e estudo de desenhos de diferentes obras, afirmando ter visto debuxos, mostras, ordenações 32. Fórmulas visuais de um testemunho ocular, os desenhos da torre de Santa Cruz constituem, hoje, raros vestígios, importantes enquanto documentos oficiais de um processo judicial, e factos artísticos fornecendo dados sobre um edifício desaparecido e sobre o uso da perspectiva e da prática do desenho à vista.
Considerações finais Com o desenho se provaria definitivamente o local do achamento do tesouro. Testemunha‑o a sentença final dada em Dezembro de 1543 33. A decisão, foi, todavia, contrária aos interesses do mosteiro e da duquesa de Bragança34, acabando os «cinco contos oitocentos oitenta e oito mil cento sessenta e três reis» que se conseguiram arrolar (menos de metade dos 30 mil cruzados previstos) por reverter para o rei e para Aleixo de Figueiredo, em partes iguais35. No treslado da sentença não se nomeiam as razões da decisão, mas terá tido certamente um peso decisivo a vontade de D. João III. No final do processo, com todas as contradições, o rei alcança assim privar os Cónegos do tesouro. Dois anos depois, Santa Cruz vê‑se gravemente desfalcado no seu património com a transferência das rendas do extinto priorado‑mor para a Universidade e para os novos bispados de Leiria e Portalegre, também por diligências do monarca junto do Papa36. Em 1547 – uma década após a mudança da Universidade para Coimbra que arruinou a hegemonia dos Crúzios no ensino superior na cidade –, D. João acaba por solicitar os edifícios dos colégios de S. Miguel e de Todos‑os‑Santos recentemente edificados para instalação do colégio das Artes. Se D. João III se interessara profundamente pela reforma espiritual e renovação material e artística do mosteiro de Santa Cruz, ao mesmo tempo foi‑lhe cerceando o poder que de tempos imemoriais detinha. E o desfecho do caso do tesouro é também disso prova. Dizia‑se que esta amarga memória deixada pel’“o Piedoso” nos Crúzios fez com «que, por represália, nas exéquias do referido Rei nunca tocassem o sino grande» (Magalotti 1933). O processo do tesouro da torre dos sinos ficou para sempre registado na memória dos Cónegos Regulares: desde logo em 1540 na Descripcam de D. Francisco de Mendanha e nas Memórias de D. Vicente (1545) até aos manuscritos de D. José de Cristo e à Crónica de D. Nicolau de Santa Maria do século xvii. A miragem de uma enorme riqueza que esteve sempre nos limites do mosteiro e cuja oportunidade escapou aos Crúzios por entre os dedos; a demanda nos tribunais contra D. João III e D. Isabel de Bragança que, apesar de todas as provas, se lhes revelou desfavorável; são acontecimentos singulares que ainda hoje prendem a nossa atenção.
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8/5/1531: D. João III responde a Fr. Brás dizendo que viu o debuxo das obras que estavam ordenadas no mosteiro, e lhe levara Diogo de Castilho; 20/2/1535: «vi a mostra que de tudo me trouxe Diogo de Castilho» [sobre os colégios], 17/4/1535: «Eu vi o debuxo da ordenação do colégio que trouxe Diogo de Castilho [...] mandei fazer outra ordenança em que fica a obra lançada mais abaixo para a cidade [...] como vai em o debuxo que leva Diogo de Castilho. Vede o e praticai ambos nisso [...].»; 9/2/1537: 727: «[...] vi a carta que me escreveste com o debuxo que me enviaste dessa obra [...] para os estudos [...] Eu vos envio o debuxo da obra das ditas escolas segundo tenho assentado que se façam. e assim uns apontamentos em que vai declaração da largura e altura das paredes e grandura dos portais e de tudo o mais que por eles vereis. Encomendo‑vos muito que logo mandes começar a dita obra pelo dito debuxo e instrução dos ditos apontamentos [...]». Cartas dos reis 1888‑1889: 445, 579, 581‑582, 727. Sobre a relação do desenho com a prática da arquitectura em Portugal no século xvi ver o estudo monográfico Bueno 2001. 32
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ANTT – MSCC, PD 19, fl. 67.
Os Cónegos terão recorrido da sentença pouco tempo depois, discutindo argumentos para reaver o tesouro, conforme denota uma carta de Fr. Brás para o mosteiro datada de c. 1545. Cartas de Frei Brás… 1937, 171. Em 1558 e 1562, já após a morte de D. João III, o assunto ainda estava por resolver, havendo registos nas actas dos capítulos de Santa Cruz de cartas de D. Isabel de Bragança sobre o seu direito no tesouro, instigando a demanda. Actas… 1946, 15‑16 e 63. 34
O treslado da sentença é acompanhado de uma «Conta do dinheiro que achou Aleixo de Figueiredo na torre de Santa Cruz de Coimbra de que pertence a el Rei nosso senhor a metade e a outra metade ao achador por sentença.», assinado pelo contador António Fialho, que servia o contador‑mor Baltasar de Faria. ANTT – MSCC, PD 19, fls. 68‑72. O arrolamento feito das moedas e peças de ouro acabou por somar 5.888.163 reis, ou seja 14.720,40 35
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cruzados, considerando que, pelo documento, 1 cruzado valia 400 reis. Tendo em conta que cada moeda foi avaliada, pela sentença, em 500 reis, o tesouro seria constituído por milhares de moedas e algumas peças de ouro avulsas. Por este documento ficamos a conhecer, igualmente, o destino dado às moedas por Aleixo de Figueiredo antes de ser preso, e depois pelo rei. D. João III, das moedas que lhe couberam, teve despesas com o processo e concedeu mercês a Bento Banha e Amador Leitão (no valor de 8.000 reis cada) e a D. João de Barros (189.600 reis), este último na altura feitor da Casa da Índia (1533‑1567) e desembargador do Paço (1534) que arrecadara nas arcas da Casa da Índia as somas que se iam colectando do tesouro. Documentos… 1938. Da mesa do priorado ‑mor só as rendas de Santa Maria de Leiria foram estimadas em um milhão de réis. Gomes 2005, 27. 36
Em particular, pela miríade de pormenores de que se reveste o processo e pelos elementos materiais sobre os quais se estrutura: um tesouro fabuloso e antigo cuja origem permanece um mistério; a desaparecida torre de Santa Cruz, marco simbólico da história medieva do mosteiro; e dois raros desenhos atribuíveis ao arquitecto renascentista Diogo de Castilho.
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Fontes Manuscritas Arquivo Nacional Torre do Tombo – Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, Pasta de documentos 19. Biblioteca Pública Municipal do Porto – Ms. 175, Memorias Varias de D. Vicente, 1545. – Santa Cruz 15B [antigo Ms. 99] – Fragmentos das Chronicas de Santa Cruz de Coimbra, em 1623.
Fontes Impressas e Bibliografia Actas dos capítulos do Mosteiro de Santa Cruz. 1946. Publ. por Mário Brandão. Coimbra: Publicações do Arquivo e Museu de Arte da Universidade de Coimbra. ALARCÃO, Jorge de. 2008. Coimbra: a montagem de um cenário urbano. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. ARAGÃO, A. C. Teixeira de. 1964. Descrição geral e histórica das moedas cunhadas em nome dos reis, regentes e governadores de Portugal. Porto: Livraria Fernando Machado. vol. I. AZEVEDO, Carlos de. 1969. Solares Portugueses: introdução ao estudo da casa nobre. Lisboa: Livros Horizonte. BRANDÃO, Mário. 1924. O colégio das Artes. 1.º vol.: 1547‑1555. Coimbra: Imprensa da Universidade. BUENO, Beatriz. 2001. “De quanto serve a Ciência do Desenho no serviço das obras del‑rei”. Actas do Colóquio Internacional “Universo Urbanístico Português 1415‑1822”. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. 267‑281. Cartas de Frei Brás de Braga para os priores do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Public. Mário Brandão. 1937. Separata da Revista da Universidade de Coimbra, vol. XIII. Coimbra: Imprensa Académica.
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a exaltação da virtude moral no púlpito da
igreja de santa cruz de coimbra a l exa n dra ro ssi g ou v e i a (1 9 4 1 ‑1 9 9 9 ) Professora do Instituto Politécnico de Tomar
As estátuas dos quatro Padres latinos da Igreja – Santo Ambrósio, S. Jerónimo, S. Gregório e Santo Agostinho – do púlpito da Igreja de Santa Cruz de Coimbra (datado de 1522) sobressaem, pela sua escala e relevo, no programa iconográfico desta peça de escultura. Cada uma preenche um dos quatro painéis1 do púlpito, e está assente numa base com três faces, uma central e duas laterais, não tendo, estas últimas, dimensões rigorosamente coincidentes. Os relevos que decoram as faces destas quatro bases, doze na totalidade, são o objecto do presente estudo. Nas doze faces, e tendo em conta somente a leitura hoje possível, consequente da deterioração da pedra calcária, encontramos as seguintes figurações: Dois Trabalhos de Hércules facilmente identificáveis: 1.º Trabalho A morte do Leão de Nemeia e 10.º Trabalho O Roubo dos Bois de Gerion; dois Trabalhos com possível atribuição: 4.º Trabalho A captura da Corsa de Cerineia e 12.º Trabalho A viagem aos Infernos2; dois parerga (aventuras secundárias), ambos uma luta de Hércules com um centauro, adoptando a mesma tipologia; dois relevos com figuras humanas (uma alada), não identificadas; dois relevos com figuras aladas, respectivamente dois amori e duas meias figuras e duas faces sem vestígios de relevos. Da esquerda para a direita:
I Base em que assenta Santo Ambrósio I.1. Face lateral do lado esquerdo Não restam hoje vestígios de relevos.
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3
Sobre a representação do grupo dos quatro Padres latinos da Igreja refere Louis Réau (Réau 1958): «Ce groupe est particulièrement fréquent dans la décoration des chairs à précher. Les quatre Docteurs sont représentés en bas‑relief sur les panneaux où en ronde‑bosse au pied de la chaire». Cita depois, do século xv, o púlpito da Catedral de Santo Estevão em Viena d’Áustria e o púlpito de Miltenberg na Francónia. Na pintura, 1
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Púlpito da Igreja de Santa Cruz de Coimbra. Estrutura da composição escultótica. (A = Arco; F = Friso) © Desenho de Elizabeth Oliveira
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I.2. Face central Figuração com simetria aparente. Dois amori alados, com cabelo anelado, em posição estante e frontal, repousando respectivamente sobre a perna esquerda e direita, têm a outra perna flectida em abdução. O tronco tem ligeira torsão no sentido desta. A cabeça, a três quartos, apresenta torsão relativamente ao eixo da composição. Os braços, estão em extensão e as mãos seguram um cordão com folhas e frutos, que, relativamente ao amore do lado direito, parte de um elemento de suspensão, circular, apenso a outro cordão, pendente de uma argola no canto superior da face, e que é rematado por um ramo de folhas e frutos, que vai preencher o canto inferior direito do mesmo lado desta face 4. No canto superior direito, do nó do cordão, parte, para a esquerda, uma ponta esvoaçante, tão ao gosto do Renascimento. O cordão passa depois ao nível da coxa e joelho, do amore por detrás das pernas em extensão, sendo suspenso pelas mãos e braços, flectidos e erguidos, criando um ponto de suspensão que coincide com o meio do cordão, donde pendem duas cornucópias e o crânio de um animal. Exemplos, entre outros, deste elemento classicizante, na arte portuguesa do Renascimento, encontram‑se em Tomar na igreja de Santa Maria do Olival, na arca tumular de D. Diogo Pinheiro, e no convento de Cristo, na jamba direita do portal da igreja, em Évora na igreja de Nossa Senhora da Graça e, ao nível da iluminura, no códice quinhentista, da Instituição da Capela e Morgado do Cronista Rui de Pina, na segunda iluminura, atribuída a António de Holanda. O avanço e recuo do cordão define planos e é gerador de movimento, acrescido pelo posicionamento dos amori. A procura de simetria, os amori lúdicos, o crânio de animal, as cornucópias, os cordões com folhas e frutos são também elementos classicizantes, do reportório decorativo e simbólico da arte da Antiguidade clássica, que o Renascimento utilizará amplamente.
(I.2)
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(I.3)
refere o retábulo do altar dos Padres da Igreja (Kirchenväter) na Pinacoteca de Munique. Do século xvi, cita o retábulo do museu de Douai e Andrea Sachi (1516) no Louvre. A ordem dos Trabalhos de Hércules, que seguimos e temos seguido em trabalhos anteriores, (Rossi Gouveia 1983, 1996), é a adoptada por Victor Buescu (Buescu 1969). 2
Nasceu em 340 em Trèves e morreu em 396 em Milão (Réau 1958, III: 63‑67; Hall 1996). Bispo de Milão, lutou contra os cultos pagãos e o arianismo, baptizou Santo Agostinho, obrigou o Imperador Teodósio a fazer penitência pública pelo massacre de Tessalónica em 390. Reformou o canto sacro e criou o rito ambrosiano. 3
Um esquema semelhante cordão, suspenso de argolas, com ramos de flores e frutos é documentado por Berliner (Berliner 1981). O estado de deterioração da pedra não permite uma leitura precisa dos elementos seguros pela mão direita do amore do lado esquerdo, bem como da decoração contida entre o canto superior e inferior do mesmo lado da face. Também não permite ver se é um crânio de boi ou de carneiro, animais de sacrifício, cujas cabeças ou crânios aparecem esculpidos em altares, aras e frisos na arte greco ‑romana. 4
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Agradeço ao Professor Gerhard Doderer, do Departamento de Ciências Musicais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, a identificação do instrumento e apoio nesta área. 5
Nasceu em 347 em Stridon, morreu em 420 em Belém (Palestina) (Réau 1958, II: 740‑750, Hall 1996, 168‑169). A sua actividade centrou‑se, especialmente, nos estudos bíblicos: comentários exegéticos, tradução da Bíblia para latim (Vulgata). Foi também difusor do ideal monástico. 6
I.3. Face lateral do lado direito. A viagem aos Infernos? Figura masculina, em nudez heróica, cabeça de perfil, cabelo anelado e barba, corpo a três quartos, em posição de marcha, com a perna direita em extensão e a esquerda flectida e com a parte posterior do pé levantada do solo. Uma fita passa‑lhe à volta da cintura e dá um nó nas costas, com duas pontas esvoaçantes. Tem algo sobre ou junto ao ombro esquerdo de que o mau estado da pedra não permite já uma leitura. Segura com a mão direita a cauda de um quadrúpede, de perfil, sugerindo um cão, com torção completa da cabeça na sua direcção. Com a mão esquerda segura um instrumento musical de sopro, trompa, que faz soar, instrumento frequentemente representado na iconografia quinhentista, mas de significado diminuto na prática musical da época5. Esta figuração, invulgar na arte do Renascimento, sugere a tipologia do 12.º Trabalho de Hércules, dado estar integrado num ciclo com figurações deste herói. Neste trabalho é‑lhe exigido, por Eristeu, que lhe traga o guarda dos infernos, o cão Cerbero. Algumas versões deste Trabalho referem que Hércules por imposição de Hades não podia usar arma alguma para dominar Cerbero (Grimal 1992); esta implicação está bem explícita numa ânfora grega, atribuída ao século vi a.C., onde Hércules tenta melifluamente atrair Cerbero antes de o acorrentar (Flaceliere e Devambez 1966). Este relevo poder‑se‑ia situar nessa linha de figuração. Hércules tentaria atrair Cerbero pelo poder encantatório da música. Um fresco da loggia do Castel S. Angelo, figura um fauno que, fazendo soar igualmente um instrumento de sopro, atrai uma ninfa, sendo a atracção neste caso, simbolizada pelo amore ou eros que precede esta figura feminina. No acervo da arte portuguesa do século xvi, este Trabalho está representado numa salva de prata do Museu Nacional de Arte Antiga (Rossi 1996).
II Base em que assenta S. Jerónimo
6
II.1. Face lateral do lado esquerdo – A morte do Leão de Nemeia Figura masculina em nudez heróica, de costas, a três quartos, sobre o lado esquerdo, enfrenta um leão, tentando estrangulá‑lo, apertando‑lhe as mandíbulas. Tem a perna esquerda estendida para trás, a direita avançada, e a cabeça encostada à juba do leão, numa atitude de grande concentração e tensão muscular. O leão,
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Animal monstruoso, irmão de um outro mons-
tro, a Esfinge de Tebas. Causava grandes estragos na região de Micenas devorando os habitantes e seus rebanhos. A sua pele era invulnerável a qualquer arma e, Hércules só conseguiu dominá ‑lo, fazendo‑o entrar na caverna com duas aberturas que ele habitava, bloqueando uma delas. Mata‑o por asfixia com a força dos braços. Esfola‑o depois, dilacerando a pele com as garras, pois nenhuma outra coisa a penetrava. Utilizou‑a como armadura, pondo as fauces sobre a cabeça, servindo de elmo (Kirk 1992). 8
Embora Moderno seja considerado o artista
mais completo de “plaquettes” italianas do Re (II.1)
(II.2)
nascimento, quer a sua obra, quer a sua personalidade não estão muito clarificadas. Entre outros
em postura defensiva, sobrepõe a pata direita anterior ao antebraço esquerdo da figura masculina. É uma representação tipológica do 1.º Trabalho de Hércules, a morte do Leão de Nemeia7. E segue de perto os moldes clássicos (Rossi 1983), aproximando‑se muito de uma terracota romana hoje exposta no Vaticano (Seemann 1958). Apresenta também traços formais e iconográficos desta mesma luta, uma “plaquette” de Moderno, onde este artista italiano evidencia uma preocupação arqueológica ao adoptar a tipologia clássica de um modo muito fiel 8. A opção deste Trabalho para a base de S. Jerónimo pode ter sido determinada pela iconografia deste Padre da Igreja9 (Lewis 1989; Luchs 1989). Um paralelo bastante próximo deste Trabalho, no acervo da arte portuguesa, encontra‑se numa salva de prata dourada do Museu Nacional de Arte Antiga (Rossi 1996)10.
estudos, as investigações de Luciano Rognini, de 1975, vêm apoiar de um modo convincente a identificação por Bode, em 1904, de Moderno como Galeazzo Mandela (1467‑1528), ourives proeminente e mestre de uma Guilda em Verona. A sua actividade como medalhista foi também estudada por Douglas Lewis (Lewis 1987). 9
Segundo uma lenda popular S. Jerónimo tirou
um espinho da pata de um leão, que posteriormente se tornou seu amigo e companheiro devoto. O leão é o seu atributo mais comum, a par do chapéu cardinalício, de que são exemplos, entre tantíssimos outros, o relevo do altar do braço esquerdo do transepto na Igreja de Santa Maria de
II.2 Face Central. Luta de Hércules com um Centauro
Belém, do Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa. 10
O 1.º Trabalho de Hércules é por vezes repre-
sentado sob uma outra tipologia, comum à de Sansão matando o leão: uma figura masculina
Relevo em muito mau estado de conservação. No centro está representada uma luta de uma figura masculina, identificada como Hércules pela pele de leão, com um centauro, estando ambos de perfil; o tronco do centauro está envolvido pelo braço direito do herói e tem a cabeça em flexão forçada para trás, cedendo à pressão de Hércules. De cada lado desta luta, dois amori em posição frontal; o da direita segura um arco e o da esquerda segura algo que pode sugerir uma aljava, seta ou facho invertido11. Estes amori estariam representados como alegoria do poder do amor ou numa leitura esotérica, e são motivo recorrente na expressão plástica do Renascimento, como recuperação dos mitos gregos e latinos, difundidos, particularmente, nas
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em nudez heróica (ou com vestes, em figurações da Idade Média) cavalga um leão e abre‑lhe as mandíbulas com as mãos, como é exemplo um capitel românico hoje no Museu Arqueológico de Madrid (e que figurou na Expo 1998 no Pavilhão de Espanha) Dois exemplos na arte portuguesa encontram‑se em Tomar num caixotão da Capela do Cruzeiro (Rossi 1983), e em Lisboa na Igreja de Santa Maria de Belém, no pilar do lado esquerdo, (junto ao transepto). Em ambos os casos citados a identificação é problemática pois estes relevos não estão inseridos num
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contexto narrativo, são, por assim dizer, figuras avulso, não tendo qualquer legenda. Na arte europeia, dos numerosíssimos exemplares, refira ‑se apenas um desenho de Miguel Angelo, hoje na Windsor Library, uma gravura de Dürer (The Illustrated Bartsch, vol X), um tondo da residência oficial de Landshut, na sala hoje designada “italiana” (Bulst 1975), uma gravura de Giovanni Antonio da Brescia (Seemann 1958), e um relevo na Universidade de Oñate (Angulo 1952). Uma terceira tipologia mostra Hércules com uma perna flectida, apoiada quer sobre o joelho quer sobre o pé, que assenta no dorso do leão que jaz por terra. A outra perna em extensão ou ligeiramente flectida, contrabalança a pressão da outra. Um exemplo desta segunda versão é, entre tantos outros, um desenho de Leonardo da Vinci que hoje faz parte do acervo do Ashmolean Museum em Oxford (Lafranconi 1958). Uma quarta tipologia representa Hércules de pé, perante o leão que tem as patas anteriores erguidas, abrindo‑lhe as fauces; é uma figuração detentora de contaminação de conteúdo e forma. 11
Nas academias do renascimento as setas e
as asas de Cupido, bem como os olhos vendados eram tópicos favoritos de discussão (Seznec 1940). Nas Metamorfoses de Ovídio, Apolo, ao recriminar a Eros o uso do arco e flecha, “armas de homens”, diz‑lhe para se contentar com o facho, para “alumiar o fogo escondido do amor”. É
Academias de inspiração platónica em que sobressaem a de Marsílio Ficino e a que se desenvolveu em redor de Lourenço, o Magnífico (1449‑1492), na atmosfera clássica e classicizante de Florença nos últimos anos do Quattrocento. Um dos exemplos mais conhecidos da figuração de Eros com arco, flecha e olhos vendados é um quadro de Boticelli (1445‑1510), Primavera, hoje, nos Uffizi. Este relevo apresenta traços formais e iconográficos que seguem fielmente a tipologia desta mesma luta de Hércules numa “plaquette” de Moderno (Lewis 1989; Pope‑Hennessey 1965; Paul‑Zinserling 1983), que está atribuída aos últimos anos da década de 1480 ou 1490. Esta composição aparece na porta della Rana da Catedral de Como (1507). Um paralelo encontra‑se no palácio de Blois, na ala de Francisco I, num relevo da fachada “des loges”, entre outros que celebram os Trabalhos de Hércules e são também inspirados em cenas da obra de Moderno. Diego Iñigues Angulo documenta, na Arte Renascentista espanhola figurações desta luta, identificando o centauro com Gerion (Angulo 1952). As lutas de Hércules com os centauros12, foram profusamente representados na arte da Antiguidade Clássica, e do Renascimento, tendo, como os Trabalhos de Hércules e o mito clássico em geral, uma função didáctico‑moralizante. O paradoxo da ambiguidade dos centauros, representando a razão e os baixos instintos exerceu grande atracção nos homens do Renascimento e nos criadores de “emblemas” – emblema – (A. Alciato, 1531; N. Reusner, 1970; J. Boudoin, 1638‑39; D. Cramer, 1981; De Angelis, 1984; S. Sebastian 1995). Para os neo‑platónicos a natureza animal dos centauros demonstra que a alma tanto podia descer como ascender se os seus institutos mais elevados não fossem cultivados. Destaca‑se o temperamento violento do centauro Eurítoo – “o mais selvagem dos centauros”, inflamado pelo vinho e pelo desejo, perante a beleza de Hipodamia, noiva de Piritoo, príncipe dos Lápitas, durante o banquete do seu casamento, que o leva a raptá‑la, sendo seguido por outros centauros que tentam fazer violência sobre outras mulheres –
neste sentido que Eros é representado num sarcófago de mármore, hoje na galeria dos Uffizi, figurando a história de Hipólito. Eros, com o seu facho aceso e erguido, está junto a Fedra, sentada, que na sua paixão, que perante si própria reprova, está doente de amor pelo seu enteado, Hipólito, filho de Teseu e da amazona Hipólita. Hércules travou vários combates com centauros,
12
seres míticos, meio homem e meio cavalo, simbolizando as ambiguidades da vida. Dotadas de carácter selvagem, teriam nascido do amor sacrílego de Íxion e de uma núvem, mais tarde chamada Neféle, a que Zeus conferira a forma (eidolon) de sua mulher Hera, para o pôr à prova; pois Íxion, depois de ter sido purificado por Zeus, após ter morto o sogro, esquece a sua dívida bem como a lei da hospitalidade e começa a cortejar Hera (Reid 1993).
(II.2)
(II.3)
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II.1
I.1
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180
2cm
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I.2
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III.1
IV.1
III.2
IV.2
III.3
IV.3
Púlpito da Igreja de Santa Cruz de Coimbra. Os quatro plintos trifacetados com relevo dos Trabalhos de Hércules e outras figurações (Esquema estrutural) Registo do conjunto das três faces @ Desenhos de Elisabeth Oliveira
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está na origem da Centauromachia, a célebre batalha entre Centauros e Lápitas, povo de Tessália. Os Lápitas são ajudados por Teseu13 e outros heróis a expulsar os Centauros desta região14.
13
Um vaso grego, entre tantos outros documen-
tos da Antiguidade Clássica, figura o combate de Teseu na Centauromachia, e é atribuído ao “pintor de Florença” (Boardman 1995). 14
II.3 Face lateral do lado direito – A captura da Corsa de Cerineia
A Centauromachia encontra‑se esculpida nas
métopas de vários templos arcaicos, bem como no frontão Oeste do templo de Zeus em Olímpia, (cerca de 480 a.C.), hoje no Museu de Olímpia, que figura “uma mulher lápita agarrada pelos
Relevo em muito mau estado de conservação. Figura masculina, em nudez heróica, de costas, a três quartos, sobre o lado direito; a perna direita está avançada e a esquerda recuada, com a mão direita segura a haste direita de um animal de que é visível a cabeça e a pata anterior esquerda; tem a cabeça virada para o solo, numa atitude de subjugação, a qual tem uma forma afilada que vem reforçar a interpretação deste animal como uma corsa. Esta figuração representaria o 4.º Trabalho de Hércules. A corsa de Cerineia tinha hastes de ouro e cascos de cobre (símbolo da infatigabilidade). Era dedicada a Artemisa. Eristeu ordenara a Hércules que lha trouxesse viva. Este perseguiu‑a durante um ano, e, quando, já cansada, atravessava o rio Ládon, na Arcádia, feriu‑a com uma flecha, ao de leve, que passou entre o osso e o tendão, não causando derrame de sangue. Foi‑lhe então fácil capturá‑la e levá‑la aos ombros para Micenas (Seemann 1958; Grimall 1992; Aghion et al. 1996). Não foram encontrados outros paralelos na escultura do Renascimento.
cabelos pela mão de um centauro” (C. Picard). Também no mausoléu de Halicarnasso, cuja impressionante estrutura e decoração escultórica o levaram a ser incluído nas Sete Maravilhas do Mundo (J. Turner 1996), no friso dos centauros, de que só resta uma secção completa, é visível uma mulher lápita que com os braços erguidos, em angústia, corre para a direita, sendo ladeada por duas figuras masculinas que atacam um centauro. Miguel Angelo tratou a Centauromachia no relevo da Casa Buonarroti em Florença (C. Argan 1997). Horácio, na Ode XVIII, do Livro primeiro, alude ao combate de Centauros e Lápitas, como sinónimo de excesso e intemperança. Outros centauros inserem‑se na mitologia ligados a tentativa de rapto ou violação como é o caso de Pirito e Nessus. Este tenta fazer violência sobre Dejanira, mulher de Hércules, ao transportá‑la entre as margens do rio Eveno, sendo morto por
III Base em que Assenta S. Gregório
15
este herói com uma flecha. Outro centauro, chamado também Eurítoo, tenta raptar Mnesimaque, filha de Dexâmeno, que estava prometida a Hér-
III.1. Face lateral do lado esquerdo – O roubo dos Bois de Gerion
cules sendo morto por este. Os centauros, Hileu e Reco tentaram violar Atalante. Na Arcádia, na montanha de Foloe, sendo Hércules hóspede do centauro Folo, indu‑lo a abrir o odre de vinho que era pertença comum dos centauros. Atraí-
Figura masculina, em nudez heróica, de costas, a três quartos, com a cabeça de perfil, cabelo anelado e barba, com a perna esquerda em extensão e avançada, não estando o pé apoiado no solo, e com a perna direita flectida para trás, segura com a mão esquerda o chifre esquerdo de um bovino, de que é visível pouco mais do que a cabeça. É uma representação do 10.º Trabalho de Hércules Os Bois de Gerion, que mostra uma adopção da tipologia duma plaquette de Moderno, da colecção Samuel H. Kresson, hoje na National Gallery of Art de Washington, e que tem uma possível atribuição ao ano de 1487 (Lewis 1989) 16 . Não foram encontrados paralelos na escultura portuguesa do Renascimento. Um entre tantos outros, encontra‑se num plinto da colunata do Palacete da Princesa
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dos pelo cheiro, estes acorreram furiosos e foram vencidos por Hércules. Nesta luta o centauro Quíron é ferido acidentalmente, vindo a morrer (Reid 1993). Exceptuam‑se deste carácter violento os centauros Folo e Quíron, sendo este “o mais célebre, o mais sensato e o mais sábio dos centauros”; salvou Peleu dos centauros no monte Pélio e ajudou Teseu a conquistar Tétis, que se haveria de tornar sua mulher. Foi perceptor de Aquiles, e educou também Jasão e Asclépio entre outras figuras gregas. Mesmo Apolo terá recebido lições suas. “O seu ensino constava de músi-
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ca, arte marcial, caça, moral e medicina” (Aghion et al. 1996). Filostrato de Lemnio, o Velho, deixou, nas suas Imagines uma curiosa descrição da educação de Aquiles por Quíron, que é ilustrada
Ana, dito Belvedere, em Praga (Letohrädek Krälovny Anny). Angulo documenta também este Trabalho na arte espanhola do século xvi (Angulo 1952). Ambas seguem a tipologia moderniana.
nas artes plásticas, entre outros exemplos, em sarcófagos (Robert 1890), onde este centauro o exercita na luta, e num belíssimo fresco da basílica de Herculano (Museu Nacional de Nápoles) em que o ensina a tocar lira (Azevedo 1990). 15
Nasceu cerca de 540 em Roma e morreu em
III.2 Face central. Luta de Hércules com um centauro
Ocidente. Para atravessar o Oceano, obteve do
Luta de Hércules, identificado pela pele de leão sobre o ombro direito, com um centauro. Figura masculina de costas, a três quartos, tem a perna esquerda em extensão, para trás, e envolve a cintura do centauro com o braço esquerdo, cabeça de perfil. O centauro está de perfil, com a cabeça para trás, devido à pressão exercida por Hércules; tem cabelo anelado e a cauda está elevada, formando uma curva e contra curva; são visíveis as duas patas posteriores; o membro anterior direito está levemente flectido para a frente e o anterior esquerdo está flectido para trás, deixando ver a pata posterior esquerda parcialmente. De cada lado deste combate, à semelhança de II. 2, dois amori; o da esquerda segura, com o braço esquerdo flectido e erguido, um objecto linear (flecha?) tendo o braço direito dirigido para baixo, e ligeiramente afastado do corpo, o amore da direita segura com as mãos um arco, o que poderá ser uma alusão, como em II.2, às armas de Hércules, arco e flecha, para além da clava e pele de leão, ou às armas do próprio Eros, arco e setas. A posição dos amori está trocada relativamente à figuração da face central da base anterior, II. 2, criando uma simetria relativamente às duas faces, o que em si é um elemento classicizante. Entre o amore da esquerda e o centauro está um pequeno animal, de perfil, sugerindo um cão, com a cabeça erguida. Este relevo, como o da Face II. 2 teria igualmente uma leitura alegórica da “forza d’amore”, Eros – Vénus, divindades que se identificam nos seus poderes inerentes que se abatem sobre os mortais, despertando amor e gerando paixões, em que a
(III.3)
(III.1)
604 em Roma (RÉAU 1958, II: 609‑615). Irmão de S. Basílio. Patrício, perfeito de Roma, fez‑se monge e foi embaixador do Papa em Constantinopla. Eleito Papa por aclamação do clero e do povo, após a peste de Roma. Renovou a liturgia, organizou a evangelização da Grã‑Bretanha. Os seus comentários ao Livro de Job influenciaram profundamente a moral e cultura cristã da Idade Média. Neste Trabalho Eristeu exige a Hércules os bois
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de Gerion, um monstro de três cabeças, filho do gigante Crisaor que, juntamente com o cavalo alado, Pégaso, saiu do pescoço, da Górgona Medusa, quando cortado por Perseu. Gerionte possuía imensas manadas de bois que pastavam na ilha de Eriteia e eram guardadas pelo pastor Eurítion e pelo cão monstruoso Ortro, filho de Tífon e Equidna. Não muito distante, Menates, o pastor de Hades, apascentava os rebanhos deste deus. A Ilha de Eriteia situava‑se no Extremo
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vontade destes permaneceu alheia. Esta conivência está patente na tampa de um espelho grego em bronze do século iv a.C., com decoração incisa, onde Afrodite ensina Eros a disparar o arco. São divindades que exigem adulação e não perdoam ofensas ou contrariedades, mesmo dos deuses, seus iguais, como é patente nas Metamorfoses de Ovídio, no início da tragédia Hipólito de Eurípedes, e na Fedra de Séneca. Fedra na parte final do diálogo com Hipólito, exprime de modo pungente, a sua paixão, de cuja desmedida (hybris) tem consciência ignorando que o “pathos” fora desencadeado por Vénus. Também Safo cantara o poder avassalador da paixão… Os amori ou putti tiveram um papel decisivo na arte do Quattrocento; derivam do tipo helenístico de Amor, meninos naturalistas, que se desenvolveram a partir de modelos gregos de finais do século iv a.C. Vieram a ser incorporados na gramática decorativa de relevos narrativos, bordaduras manuscritas, decoração affresco e arquitectónica, bem como dos relevos funerários e cantorie. Outra fonte, são as crianças dos relevos históricos romanos (camilli), altares funerários e sarcófagos báquicos, onde aparecem aos ombros ou às costas de sátiros, ou dorso de centauros, e de uma escultura do Louvre, Centaure chevauché par l’Amour (sé. II d.C.).
III.3 Face lateral do lado direito. Relevo com figura humana. Figura a três quartos, de frente, cabeça de perfil, ajoelhada sobre o joelho direito. A perna esquerda flectida a quarenta e cinco graus. Está descalça, veste túnica até aos pés com decote quadrado e mangas compridas. Tem o braço direito flectido, com a mão ao nível do peito; com a mão esquerda segura uma cruz com os braços inclinados onde parece estar enleado um réptil. Cena não identificada; não foram encontrados paralelos.
IV Base em que assenta Santo Agostinho
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IV.1 Face lateral do lado direito – Relevo com figura humana Figura de criança sedente, a três quartos, com torção do tronco e cabeça para a direita; tem as pernas cruzadas, sobrepondo‑se a direita à esquerda. Com a mão esquerda segura algo não identificável, devido ao mau estado de conservação da pedra. Cena não identificada.
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Sol, por empréstimo, a sua grande taça, em forma de nenúfar, em que esta divindade embarcava sempre que atingia o Oceano para regressar ao seu palácio no Oriente. Hércules chegado à ilha de Eriteia mata Ortro, Erítion e o próprio Gerion. Embarca então os bois na taça do Sol. De regresso à Grécia sofre imensas aventuras. Para comemorar a sua passagem por Tartesso ergue duas colunas, as chamadas colunas de Hércules, o rochedo de Gibraltar e o de Ceuta (Grimal 1992). Nasceu em 354 em Tagasto, e morreu em 430 em Hipona (Réau 1958, 149‑56; Hall 1996, 35 ‑36). Filho de Santa Mónica. Após uma juventude tempestuosa converteu‑se em Milão pela pregação de Santo Ambrósio. Foi bispo de Hipona. Teólogo, filósofo e moralista. Exerceu uma influência capital sobre a teologia ocidental. Opôs‑se ao maniqueísmo, donatismo e pelagianismo. As suas obras principais são as Cartas, A Cidade de Deus, As Confissões e Acerca da Graça. 17
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Na salva do Museu Nacional de Arte Antiga, embora estejam figurados mais episódios da vida e lenda de Hércules, não está determinada a sua autoria. Não se dispõe também neste momento de um estudo estilístico, ou de investigação, que permitam uma atribuição a um ourives português, ou sequer à sua execução em Portugal. Na cobertura da Capela do Cruzeiro, apenas dois caixotões podem ser seguramente identificados com Trabalhos de Hércules. 18
«Homero dá o nome de heróis aos homens que se distinguem pela sua força, sua coragem e seus feitos; Hesíodo designa especialmente por esta palavra os filhos de um deus e de uma mortal. O tipo de Hércules responde simultaneamente a uma e a outra destas concepções» (Commelin e Maréchaux 1995, 219). 19
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(IV.2)
IV.2 Face central – Relevo com duas meis‑figuras Duas meias figuras aladas, cujos membros inferiores são enrolamentos, seguram uma cartela ansata, sobreposta a motivo floral. A da direita parece ter rosto masculino e a da direita rosto feminino. Um exemplo, entre outros, na arte portuguesa do século xvi de meias‑figuras encontra‑se no friso que encima o arco da capela do Cruzeiro do Convento de Cristo, em Tomar, num púlpito do refeitório do mesmo Convento e na tribuna real das Capelas Imperfeitas no Mosteiro de Santa Maria da Vitória. No desenho, Francisco de Holanda documenta também este motivo do repertório clássico‑renascentista, como é o caso de um desenho hoje fazendo parte do acervo do Museu Nacional de Arte Antiga.
IV.3 Face lateral do lado direito Não são visíveis vestígios de decoração. Dos relevos descritos, cinco, que traduzem a interpretação do mito de Hércules, constituem o único ciclo deste semi‑deus grego na arte portuguesa do século xvi que chegou até nós18 . É a figura do herói19 grego, Herakles, cuja fonte mais antiga sobre o seu mito é Homero, e cujo nome significa “glória de Hera”, que é exaltada nestes relevos. Filho de Zeus, deus dos deuses, e de Alcmena, mortal dotada de grande beleza: Segundo Hesíodo: «da sua fronte, dos seus olhos de azul intenso e sombrio, emanavam eflúvios semelhantes aos que exala Afrodite, cintilante de ouro. E, contudo, honrava o seu esposo no seu coração como jamais alguma mulher honrara o seu» (Flacelière e Devambez 1966). Zeus, na sua paixão, conhecedor da virtude de Alcmena, assume a forma de Anfitrião, seu esposo, durante ausência deste na guerra, vingando a morte dos cunhados de Alcmena. «Segundo uma tradição, Zeus terá prolongado esta noite nupcial pelo
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espaço de três dias completos. Para isso ordenara ao sol que não se levantasse antes que todo este tempo tivesse passado» (Grimal 1992). O ciúme de Hera, esposa mais uma vez preterida a uma mortal de grande fascínio, determinou a existência atribulada de Hércules, com os Doze Trabalhos que lhe foram impostos por Eristeu e se organizaram numa sequência conhecida por Dodekathlos, que aparece pela primeira vez, ao nível das artes figurativas, nas métopas do templo de Zeus em Olímpia 20. “Hércules acaba por incarnar o ideal grego do homem simultaneamente belo e bom (kaloskagathos), reunindo em si todas as qualidades físicas e morais elevadas ao mais alto grau, apesar dos erros, crimes e desventuras que lhe confere uma lenda pouco consequente com ela mesma” (Flacelière e Devambez 1966). Vem a encarnar a força moral que vence as dificuldades por maiores que sejam, e neste sentido é apresentado na Grécia por poetas e filósofos como modelo para a juventude. Os Doze Trabalhos “simbolizam (...), a luta heróica do homem contra o Mal e a Morte. No pensamento mítico, os Trabalhos de Héracles prefiguram as “provações da alma” que se vai libertando progressivamente da servidão corpórea e das paixões até à apoteose final» (Buesco 1969). O apólogo do sofista Pródikos de Keos, «que por vezes se atribui a Antístemes pelos rasgos cínicos» que contém (Mora 1971), apresenta Hércules no bívio, vacilando entre a virtude e o vício, vindo a preterir a voluptas à virtus, situa‑se nesta linha de pensamento, e foi‑nos transmitido por Xenofonte na sua obra Memorabili I, II, ch 21‑34: Este apólogo foi no Renascimento um dos temas alegóricos mais famosos e fonte de inspiração para muitos artistas, como é o caso, só para citar um exemplo, de uma estampa de Adamo Ghisi designada Ercole in un bivio della Virtù e del vizio. A legenda Deliberatio omnium difficilima mostra a dificuldade de Hércules, na escolha dos caminhos que as duas figuras femininas lhe sugerem (Aslan 1996; Panofsky 1997). A leitura simbólica dos Trabalhos de Hércules é reforçada por cinco estátuas de figuras femininas, personificações de Virtudes, que se encontram no nível superior de figurações do púlpito o que implica também um significado simbólico. Os gregos personificavam conceitos, como por exemplo, entre outros, o de Justiça (Témis). Na fachada da Biblioteca de Celsus, em Éfeso estavam representadas, nos quatro nichos, entre as três portas, no plano inferior, quatro estátuas alegóricas da virtude do personagem celebrado: Arete, alegoria do Valor Moral, Ennoia personificação do Pensamento e da Inteligência, Episteme, personificação do Saber e do Conhecimento e Sophia personificação da Sabedoria, caracterizando as qualidades intelectuais de Celsus, como o precisam as inscrições dos nichos. O Cristianismo utilizou a personificação de conceitos morais para a divulgação da sua doutrina quer a nível literário, quer plástico, como é o caso da Psychomachia de Prudêncio, combate de forças espirituais, neste caso Virtudes e Vícios, encarnados por figuras femininas envergando trajes de guerreiros medievais, empenhadas numa luta acérrima, traduzida figurativamente numa representação cinética
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«Estão aí representados os doze Trabalhos de Hércules, nem a mais, nem a menos»: A morte do Leão de Nemeia, A destruição da Hidra de Lerna, O extermínio das Aves do lago Estínfalo, A captura do Touro de Creta, A captura da Corça de Cerineia, A posse do Cinto de Hipólita, A captura do Javali de Erimanto, A captura das Éguas de Diomedes, O roubo dos Bois de Gerion, O roubo das Maçãs de Ouro do Jardim das Hespérides, A viagem aos Infernos, A limpeza dos Estábulos de Augeias. Esta sequência, ou ciclo, com Trabalhos canónicos, aparece também em monumentos de épocas mais tardias, como é o caso do mosaico romano de Liria (Valência), hoje no Museu Arqueológico de Madrid, que é posterior em cerca de sete séculos às métopas de Olímpia (Brommer 1972). 20
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por oposição à figuração das estátuas do púlpito, que é estática. Numa leitura da esquerda para a direita:
Primeira estátua – I. A Fortaleza Figura feminina com vestes até aos pés e um manto sobre os ombros, cuja ponta inferior direita apanha com a mão esquerda. Com a mão direita segura um bastão, tipologicamente muito semelhante ao que segura a figura da Fortaleza no Campanile de Giotto, numa das “formelle” do lado Sul. Nesta, a Fortaleza tem mais dois atributos, um escudo cordiforme que segura, ao alto, com a mão esquerda, e a pele de leão, nomeadamente os fauces, sobre a cabeça, servindo de elmo. O mau estado de conservação da pedra do púlpito, não permite ver se o maior relevo sobre a cabeça desta estátua, representaria aos fauces da pele de leão. O bastão é um atributo que permite uma identificação com a personificação da virtude da Fortaleza (uma das quatro virtudes cardeais). No púlpito de Santa Croce, Florença, a figura da Fortaleza é representada por uma figura feminina, sentada, com vestes até aos pés, que segura na mão direita um bastão.
Segunda estátua – II. Não identificada por falta de elementos. Figura feminina com vestes até aos pés; usa toucado. Do antebraço esquerdo pende uma longa filactera que lhe chega aos pés. Tem os braços flectidos e as mãos seguravam algo, de que já não é possível uma leitura, por ausência de elementos. Resta apenas um fragmento em espiral, que sugere uma cornucópia, que como símbolo da abundância é um dos atributos da personificação da Caridade. Em Florença, no Campanile, a Caridade é representada com uma cornucópia no braço esquerdo.
Terceira estátua – II. A Fé Figura feminina com vestes até aos pés e toucado. Usa manto sobre o ombro direito e uma ponta está apanhada junto à cintura. Segura com a mão esquerda uma cruz com o braço longitudinal, muito longo e que está apoiado no solo. A cruz é um dos atributos da personificação da Fé (uma das três virtudes teologais). Na Campanile de Giotto, entre outros exemplos, a virtude da Fé é figurada sentada, segurando uma cruz e um cálice.
Quarta estátua – IV. Não identificada. Figura feminina com vestes até aos pés. Usa manto sobre o ombro direito cujas pontas apanha com a mão esquerda. Com a mão direita segura algo que tem um cabo, e que não é possível identificar.
Quinta estátua – V. A Justiça. Figura feminina com vestes até aos pés. Manto sobre o ombro direito e as duas pontas apanhadas com a mão esquerda que segura também uma filactera que parte do antebraço direito. Usa toucado. Tem o braço direito flectido à altura do peito e com a mão segura o cabo dum punhal. Poderá ser referência à espada da Justiça
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que normalmente é segura pela mão direita. A opção do punhal poderá ter sido determinada pela lei do espaço. Estas estátuas, como personificações de Virtudes, têm grande relevância na iconografia da arte portuguesa do Renascimento, pois são figurações raríssimas. Na pesquisa que fizemos, encontrámos, até ao momento, apenas personificações de Virtudes no frontal do altar da Igreja de Nossa Senhora da Luz em Carnide [v. nota final] e numa pintura do Museu Nacional de Arte Antiga. O Renascimento, cuja cultura toma o mundo clássico como modelo, retoma pela via filológico‑filosófica, e pela via da descoberta da arte greco‑romana, o interesse pela virtude num contexto clássico e consequentemente pela figura de Hércules. O mito não foi recuperado “como uma reconstrução literal dos seus valores e significados” clássicos, mas como um instrumento alegórico do presente, pelo qual os “comitenti encontravam o seu referimento e exaltação” (Alcaide 1996). Com o Neoplatonismo os humanistas vieram a descobrir na mitologia, mais do que uma moralidade escondida, a própria doutrina cristã. A exegese neo‑platónica viera possibilitar uma reconciliação nunca pensada entre a Bíblia e a mitologia e esbatera de tal modo a distinção entre as duas, que o dogma cristão, já só parecia ter aceitabilidade no sentido alegórico (Seznec 1961). Uma outra via, o retomar, também dos finais do Quattrocento, do antigo mito da “sabedoria egípcia”, vem explicar o acolhimento dos humanistas da versão grega dos Hieroglyphica de Orapolo, um alexandrino obscuro do século ii ou iv a.C., encontrada na ilha grega de Andros e trazida para Florença, em 1419, pelo padre e viajante florentino Cristoforo de Buondelmonti. Os Hieroglyphica vieram reforçar a influência do Neoplatonismo e tiveram um papel relevante na arte e no pensamento humanista (Vasoli 1995). Foram impressos em 1505 por Aldus e considerados o texto exemplar de uma linguagem oculta, inspirando sobremaneira os humanistas a procurar um equivalente, ao tempo, dos antigos criptogramas, que veio a concretizar‑se com os Emblemata de Andrea Alciati, publicados em 1531 (Seznec 1961). O “emblema” é uma figura que esconde uma lição moral; uma explicação que a acompanha, torna possível reconhecer o significado por detrás da imagem. Assim, “cada atributo de Baco mostra um efeito maléfico da intemperança e cada um dos vários aspectos de Mercúrio esconde uma máxima cheia de sabedoria. (...) O touro representa a luxúria, Tântalo a avareza, Bellerofonte a inteligência e coragem vencendo obstáculos (...) Cupido é figurado num carro puxado por leões, que domou, prova de que o poder do Amor é irresistível; é também representado segurando um peixe numa mão e flores na outra, mostrando que tanto a Terra como o Mar estão sujeitos à lei do Amor” (Seznec 1961). Este púlpito, pela elaborada concepção do seu programa humanístico e pela sua cuidada e minuciosa execução, detém um lugar singular no panorama dos púlpitos portugueses e europeus do século xvi (também como o púlpito da igreja de São João Batista de Tomar). Os relevos estudados derivam do fascinante património de mitos e as figurações consideradas mostram a inserção do púlpito no espírito
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clássico renascentista europeu, onde Hércules é tema figurativo e modelo didáctico de primeiro plano. São igualmente contributos significativos para aprofundar o conhecimento de influências inter‑culturais, da atmosfera artístico‑cultural do Renascimento português em geral, e em particular da Renascença coimbrã, dado que estes relevos implicavam uma leitura simbólica por parte do público, decorrente de um sistema de valores eleito por uma sociedade onde a virtude nos surge como valor ético e social por excelência (Osório 1996). Não de somenos importância é o interesse destas figurações para a valorização da dimensão humanística do mosteiro de Santa Cruz. Um testemunho desta valorização são também as Orações de Sapiência, como é o caso, só para citar um exemplo, da que foi proferida por André de Resende no Colégio das Artes em 1551, em que faz o encómio de João III e cuja publicação dedicará à Infanta D. Maria, filha de D. Manuel e de D. Leonor de Áustria, irmã mais velha do Imperador Carlos V. Todo o texto (Ramalho 1980; Vasconcelos 1994) está imbuído de referências à Virtude no sentido lato, e a várias virtudes: Pareceu‑me bem não deixar de dizer alguma coisa do que se refere à religião do rei tão piedoso para com Deus infinitamente Bom e Omnipotente, à sua prudên‑ cia excelsa e invicta coragem e egrégia moderação de toda a sai vida. ... E Plutarco, escritor de enorme autoridade, demonstra que certos germes e princípios latentes de virtude são transmitidos pelos pais aos filhos na própria geração. ... Tendo, pois, D. João III uma tal ascendência, logo desde meninice, com a idade, lhe cresceu não só a religião paterna mas também a piedade e santidade maternas ...
Nota Final O presente texto, revisto por mim, é uma versão resumida do original deixado pela minha mulher Maria Alexandra Rossi Ruano Pera Gouveia Pereira (1941‑1999) e que, na sua última forma, ainda incompleta, foi revista pelo Professor Bairrão Oleiro. Tendo em conta as suas sugestões e a necessidade de o adaptar ao formato da revista, foram‑lhe retiradas as extensas citações literárias clássicas, algumas passagens foram resumidas mas o texto que se apresenta deve‑se quase inteiramente ao que deixou escrito sobre a extensa investigação que fez e que tive o privilégio de acompanhar a par e passo. Em Espanha, França, Itália, Bélgica, Republica Checa e Portugal, reuniu uma vasta documentação fotográfica sobre paralelos que não pode aqui ser publicada por limitação de espaço. Cumpre‑me destacar dois casos particulares: a possível identificação de Hércules na Igreja de Atalaia (Tomar) e o estudo deixado incompleto do frontal de altar da Igreja de Nossa Senhora da Luz em Carnide.
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Igreja da Atalaia. Hércules e Antaeus? Nesta igreja, edifício quinhentista joanino integrado na Renascença tomarense (1528), no nicho colateral direito paralelo à coluna do pórtico, há uma escultura em que uma figura masculina abraça por trás uma outra também masculina, ambas em nudez heróica. Embora a escultura não seja da melhor qualidade, a figura da frente parece debater‑se contra o abraço, tendo o membro superior direito a envolver por trás e cima a cabeça da primeira. Mesmo na ausência de atributos iconográficos parece tratar‑se da luta de Hércules com o gigante líbio Antaeus. Isto é reforçado pelos pés deste último estarem no ar. Na lenda, por ser filho de Gaia, não podia tocar a terra sem que o seu poder se esvaísse. O tema é raro na Antiguidade, mas Antaeus está presente na Divina Comédia de Dante. Por baixo desta escultura há outra da lenda de Leda e o Cisne, cujo significado psicanalítico, a dupla face da masculinidade, pode reforçar a atribuição anterior.
Igreja de Nossa Senhora da Luz. Hércules e a virtude da Fortaleza O programa iconográfico do frontal do altar‑mor desta igreja, em Carnide, foi determinado pela infanta D. Maria, filha de D. Manuel I, em 1575. Foram esculpidos seis painéis figurados, colocados em alternância com outros cinco em mármore vermelho e com motivos geométricos. Nos painéis figurados, cuja escultura é de grande qualidade, identificam‑se, da esquerda para a direita, representações da Temperança, Prudência, Ciência, Fé, Justiça e Fortaleza. Neste último painel na parte superior, sobre o arco encontra‑se uma pequena representação de uma cena mitológica. Uma figura masculina estante, em nudez heróica, toca com a mão direita a cabeça de um leão e com a esquerda segura a pata posterior direita de um Centauro que tem o torso virado para ele e para lhe apontar um arco e flecha. A perna esquerda da figura humana central está fletida e apoiada sobre uma cabeça humana. Esta representação complexa e atípica permite a atribuição da figura central a Hércules, que sempre personificou a virtude da Fortaleza. Combina‑se, assim, uma alusão ao primeiro trabalho (o leão) e as lutas com os centauros. A cabeça sob a perna de Hércules pode ser interpretada como representando Cacus, um gigante, deus romano, irmão de Vulcano que Hercules matou junto ao Tibre para recuperar os Bois de Gerion.
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Orlindo Gouveia Pereira
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a arte têxtil bordada na china:
panorâmica de uma tradição milenar 1
m ari a joão pache co fe rre i ra Centro de História de Além‑Mar, FCSH/UNL
Introdução 1
O texto que agora se publica corresponde a
uma parte da comunicação intitulada A arte têxtil na China: panorâmica de uma tradição milenar que apresentámos no XIII Curso Livre sobre Arte e Cultura da China, realizado pelo Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas entre Abril e Junho de 2009 no Museu do Oriente, em Lisboa. Não sendo possível contemplar todos os conteúdos então apresentados, no artigo que agora se publica circunscrevemo‑nos à análise da produção bordada, assunto que temos tido oportunidade de estudar mais aturadamente no contexto das investigações desenvolvidas em torno dos têxteis chineses destinados ao mercado português entre os séculos xvi e xviii encetadas no âmbito da dissertação de Mestrado e da tese de Doutoramento (Ferreira 2007 e Ferreira 2011). Pese embora as limitações que reconhecemos ao presente artigo supomos que a sua divulgação se afigura ainda assim pertinente, sobretudo face à quase inexistência de estudos publicados em português neste domínio da historiografia da arte, em contraste com a quantidade de estudos divulgados no extrangeiro. No parco universo de publicações em português relacionadas com o tema em estudo c.f., por exemplo, o catálogo da exposição que teve lugar em Macau, no Pavilhão do Jardim Lou Lim Ieoc: AAVVa. 1993.
A reputação da produção têxtil, muito apreciada e valorizada como manifestação artística na China, a par das lacas ou das porcelanas, afigura‑se genericamente incontestável, graças à excelência dos materiais e à inovação das tecnologias de fabrico usadas naquele país, desde os tempos mais remotos 2. A descoberta e utilização sistemática da seda, desde pelo menos 3500 a.C. 3, e o seu emprego como principal matéria‑prima das diferentes tipologias têxteis produzidas no Império do Meio, depressa contribuíram para o implemento de uma verdadeira indústria de sericultura 4. Durante séculos, a China foi o único local onde os bichos da seda foram domesticados e o fabrico de artigos neste material teve lugar. Apesar de a seda se constituir como a única fibra têxtil que a natureza fornece sob a forma de fio, coube aos chineses a domesticação do Bombyx mori e o aperfeiçoamento de um processo que garantisse a sua criação, bem como a transformação do filamento por si segregado num fio passível de ser utilizado em grande escala e sob diferentes procedimentos. Este foi outro aspecto muitíssimo importante para a preeminência da seda no contexto têxtil pois, graças ao desenvolvimento de técnicas extremamente avançadas e durante muito tempo exclusivas, os artigos têxteis chineses realizados naquele material alcançaram uma extraordinária reputação, assumindo‑se como uma das mais fabulosas e fantásticas produções artísticas da Ásia. O estatuto grangeado por estas peças, uma vez considerada a paleta sofisticada das cores e materiais empregues, a qualidade estética e técnica de execução e o requinte que grosso modo as caracteriza, em articulação com o elevado valor comercial que lhes subjaz, viria a valer‑lhes não só uma intensa procura e imitação por parte de outros centros produtores dispersos pela Europa e Próximo Oriente, mas ainda a criação de uma verdadeira aura em seu redor 5.
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A evolução da arte têxtil bordada na China No que respeita à dinastia Shang (1500‑1050 a.C.), genericamente considerada como o primeiro período histórico na China, a maior parte dos testemunhos relativos ao uso da seda não são directos. Durante este período, os teares disponíveis eram bastante rudimentares não permitindo a obtenção de padrões muito complexos ou densos, ainda que os tecidos exibissem composições de natureza geometrizante, à base de nuvens e raios, as quais terão evoluído a partir dos caracteres encontrados em vasos de bronze contemporâneos (Hanyu 1992, 13). A partir deste período parece tornar‑se habitual o recurso ao bordado, já utilizado desde o neolítico e geralmente elaborado com linho ou lã, no qual se reconhece uma decoração simples, feita exclusivamente a ponto de cadeia e análoga áquela observada nos tecidos – à base de símbolos geométricos abstractos, de bandas em ziguezague, losangos e gregas. A era seguinte, dos Zhou (1050‑221a.C.), dividida em duas fases historicamente conhecidas como Primavera e Outono (770‑256 a.C.) e Reinos Combatentes (475 ‑221 a.C.), é grosso modo caracterizada pela desunião e consequente desintegração da antiga China em numerosos estados muito competitivos entre si em termos territoriais e identitários, e acompanhada de drásticas e importantes mudanças ao nível das crenças, dos rituais, da tecnologia e das práticas de enterro. Neste período e apesar do limitado número de espécimes sobreviventes, parecem prevalecer as listras e os motivos geométricos, (como os losangos, zigue‑zagues e espirais angulosas) cuja aplicação, além de extensível à decoração das lacas e dos bronzes coevos, revela versões mais evoluídas dos desenhos Shang, talvez até como uma consequência natural do seu próprio apreço pela linha, a qual exploram de forma muito mais precisa (Hanyu 1987, 13), sobretudo no bordado. Os artigos decorados por esta via apresentam um desenho complexo, dotado de um grande contraste cromático, à base de preto e vermelho (Hanyu 1987, 13), gradualmente ampliado a outras tonalidades, como o castanho e o amarelo (ambos em diferentes intensidades) 6, de estilo similar a posteriores exemplos Han, indiciando claramente um avançado conhecimento das técnicas neste domínio. Esta gradual complexidade, testemunhada no domínio cromático, estende‑se às próprias composições bordadas e tecidas (à base de desenhos mais imbrincados), as quais se desenvolvem rapidamente nas dinastias seguintes – Qin (221‑207 a.C.) e Han (206 a.C‑220 d.C.). A dificuldade de reproduzir em tear alguns padrões mais complicados ou a facilidade com que os desenhos pintados se deterioravam nos artigos têxteis foram aspectos que concorreram para que o bordado conhecesse uma grande projecção ao nível da produção de vestuário como forma de enriquecer e de distinguir os seus utilizadores7. Não obstante a tendência decorativa de teor geometrizante então vigente, deve referir‑se o aparecimento, na dinastia Zhou, dos primeiros desenhos zoomórficos,
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Devemos aqui notar que a excelência da produção têxtil, assinalada ao longo do texto, se associa sobretudo aos espécimes realizados para as elites e não tanto para aqueles concebidos para a generalidade da população ou para a exportação, os quais apresentam uma qualidade muito variável entre si. 2
Entre a bibliografia consultada verifica‑se alguma discrepância de opiniões no que se refere a este assunto, designadamente: Wilson 1999, 133; Scott 2001, 22; Ledderose 2000, 83; Rawson 1999, 170. 3
A importância do cultivo da seda na vida e cultura chinesas pode ser atestada pela promoção do culto à deusa da sericultura o qual remonta, pelo menos, à dinastia Shang (c. 1500‑1050 a.C) e se mantém até pleno século xix, em fábricas de transformação da seda de Shangai. Como Shelagh Vainker sublinha, talvez o reconhecimento do predomínio das mulheres na produção têxtil possa justificar o facto da primeira divindade ser feminina e das cerimónias realizadas em sua honra serem o único ritual presidido pela imperatriz em vez do imperador (Vainker 2004, 10). 4
Vejam‑se as nóticias sobre a seda veiculadas pelos primeiros informes coligidos acerca da China, na sua maior parte da autoria de membros de ordens religiosas (que gradualmente se vão tentando fixar naquele país com vista à difusão e conversão dos locais ao catolicismo): Ferreira 2006, 119‑139. 5
Como testemunham os achados arqueológicos do túmulo 1 em Mashan, em Jiangling, na província Hubei. 6
O “Livro de Shang” revela como o imperador Shun transmitiu as regras vestimentares ao seu sucessor: estipulava que as seis insígnias para as vestes de aparato deviam ser bordadas nas cinco cores primárias e consistiam no sol, lua, estrelas, montanhas, dragões e faisões (Hanyu 1987, 30). 7
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Fig. 1 – Pormenor de gaze bordada proveniente do túmulo 1 em Jiangling, Hubei, séculos iv‑iii a.C. [publ. por Krahl 1998, 56].
Como gazes, damascos e brocados. Gaze: tecido aberto, muito fino e leve composto por ligamento cujos fios de teia, chamados de volta, passam em volta de outros fios chamados fixos e que são ligados pela trama nos dois lados desses fios; damasco: tipo de tecido que na sua forma primitiva se compõe de um efeito de fundo e de um efeito de desenho constituídos pela face teia e pela face trama dum mesmo ponto, tendo a particularidade de ser reversível; brocado: tecido ricamente decorado por tecelagam de fios de ouro ou prata (AAVVb. 1976, 27, 12 e 5, respectivamente). 8
Três dos quatro animais divinos, líderes dos diferentes agrupamentos que compõem o universo zoomórfico chinês – segmentado em animais com escamas, com penas, com pêlo e com conchas – e que controlam os destinos do Império, em concreto, o dragão, a fénix, o unicórnio e a tartaruga. Estas criaturas fabulosas são compostas por partes de vários animais que, do ponto de vista simbólico, encarnam os atributos corres9
como o confirmam os achados arqueológicos, datáveis do século iv a.C., encontrados num túmulo em Mashan: ali se localizaram abundantes quantidades de peças têxteis 8, animadas por sofisticadas decorações à base de aves, quadrúpedes afrontados (uns reais e outros mitológicos, como tigres, dragões, aves fénix e ch’ilin9) e figuras dançantes, entre complicadas composições estilizadas de hastes sinuosas dispersas por toda a superfície, quase de teor geométrico abstracto (Vainker 2004, 37‑38; Krahl 1998, 56), semelhantes às soluções decorativas que animam os bronzes e lacas contemporâneas (Fig. 1). O período dos Reinos Combatentes terminou dando lugar à era Qin (221‑207 a.C.), que, não obstante a sua brevidade, ficou marcada pela fundação do império chinês enquanto estado homogéneo e unificado, com a forma que viria a perdurar durante dois mil anos. No decurso da dinastia Han (206 a.C.‑220 d.C.), considerado um dos mais notáveis e influentes períodos da história da China, as oficinas têxteis eram já estruturas muito complexas com milhares de pessoas empregadas neste ofício e uma produção, também, de milhares de artigos, como consequência de um intenso alargamento tanto da manufactura como do consumo da seda. Este é, aliás, um aspecto a reter na medida em que a produção, preparação e utilização desta fibra viria, ao longo da história da China imperial, a revelar‑se como uma das mais importantes indústrias e um dos principais pilares da economia do país, graças não apenas ao
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seu elevado valor comercial mas também devido à necessidade de contratação de um considerável número de trabalhadores nas unidades fabris, estatais e privadas, criadas com essa finalidade10. A seda deixa de ser um artigo estritamente conotado com a nobreza e as classes oficiais, para se assumir como um bem transaccionável e de consumo deveras requisitado, e, por isso, produzido e comercializado em incríveis quantidades. Para a valorização e incremento da produção de artigos em seda foi também determinante a abertura da China ao exterior, desencadeada pelo Imperador Wu Ti (140 ‑87 a.C.), tanto a Oriente, a nações como a Coreia e o Japão (cerca de 300 d.C.), como a Ocidente, através do envio de emissários à Síria, Índia, bem como ao Império Romano e a grande parte da Ásia Central e Sibéria pela denominada Rota da Seda. No que se refere ao bordado, o mais valioso artigo têxtil dos períodos Han e pós‑Han (Lubo‑Lesnichenko 1995, 68), reconhecem‑se importantes novidades:
pondentes: embora possa surgir com diferentes morfologias e tamanhos, geralmente o dragão exibe corpo escamoso serpentinado, com patas e garras, sendo que pode apresentar cornos de veado e orelhas de boi; a fénix ostenta cabeça de faisão sobrepujada por uma crista de galo, pescoço escamado de tartaruga na base do qual se reconhece uma gola de penas que articula com uma exuberante plumagem e uma cauda de pavão; finalmente, o unicórnio deriva da mistura de partes de dragão, de cervo e de leão (Ball 1969; Eberhard 1995; Cherry 1995). Sendo que as primeiras excediam na quantidade e qualidade as segundas (Ledderose 2000, 84; Rawson 1999, 31). 10
Fig. 2 – Gaze bordada com tema das nuvens flutuantes, proveniente do túmulo 1 em Mawangdui, Changsha, dinastia Han [publ. por Hanyu 1992, 207].
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Cerca de 36 cores (Shuo‑Shin 1989, 17).
Nomeadamente, do espólio encontrado no túmulo de uma nobre, provavelmente esposa do Marquês de Dai, no qual se incluem cerca de 430 unidades de decoração por cada metro de seda, aplicadas à mão sobre gaze. 12
Embora a prática de taxas em seda pelos cidadãos comuns fosse já frequente no decurso da dinastia Este dos Han, só em 204 é que foi decretada uma regulação que determinava as quantidades a entregar em troca de terra (Vainker 2004, 55). 13
o ponto de cadeia, usado desde a alta antiguidade de forma quase exclusiva (nas suas variantes), passa a articular‑se com outras técnicas. São abundantes os exemplos que subsistem de bordado chinês deste período, dotados de grande beleza, sofisticação e qualidade técnica que testemunham o recurso a um conjunto bem mais diversificado de pontos, iguais aos usados na actualidade: além do ponto de cadeia – a partir de então, tendencialmente utilizado de forma combinada e destinando‑se sobretudo a definir contornos ou a conferir relevo/textura –, distingue‑se o ponto de cetim, a outra grande inovação da época e o segundo mais antigo a ser usado no Celeste Império e eleito, a partir de então, como uma das opções mais características do repertório dos pontos orientais; e o ponto pé de flor – frequentemente adoptado para realização de desenhos lineares, ou como meio de delimitação dos motivos e que poderia depois funcionar como enchimento, conferindo efeito de baixo relevo. Para a sofisticação e requinte assinalados são determinantes os progressos tecnológicos implementados, conducentes à obtenção de fios cada vez de menor espessura e segundo uma paleta cromática bastante mais extensa, predominando o carmesim, vermelho, amarelo, castanho dourado, o azul claro, azul escuro, violeta, etc.11 De acordo com os achados datáveis deste período encontrados até ao momento, a iconografia figurada12 é dominada por motivos como nuvens, chamas e montes, constantes do enorme sistema decorativo de cariz não religioso mantido pelos Han (Vainker 2004, 52). O tema das nuvens flutuantes, correspondente a enrolamentos a terminarem em nuvens, aos quais se podem associar folhas e volutas (Fig. 2), afigura‑se como um dos mais frequentes e peculiares deste período, uma vez considerada a sua origem zoomórfica (Lubo‑Lesnichenko 1995, 64). Com o declínio da dinastia Han, sobretudo a partir da ascensão de Hedi (88‑105), o país volta a emergir num estado de caos e guerra civil que o acompanhará até 589, altura em que sobe ao poder uma nova era, dos Sui (589‑618), responsável pela reunificação do Celeste Império. Durante este período intermédio, genericamente designado das Seis Dinastias ou das dinastias Wei, Shu, Wu, Jin, do Norte e do Sul (220‑580) assiste‑se ao estabelecimento do pagamento de taxas domésticas em seda13, uma medida que incentivou a produção de seda por todo o território, muito em particular no contexto doméstico, a par daquela assegurada pelos principais centros de sericultura do país, sob controlo oficial. Do ponto de vista plástico, assiste‑se à manutenção das tradições Han na produção têxtil proveniente das dinastias Wei, Jin, do Norte e do Sul, ao mesmo tempo que se privilegia a temática de cariz religioso como aquela conotada com o budismo, que entretanto se afirma a partir do século iv, durante a governação estrangeira dos Wei. A nova religião foi importante à definição de uma arte de marcadas características chinesas assumindo‑se como principal responsável pela introdução de motivos decorativos no repertório chinês conotados com a imagem e símbolos de Buda (Hallade 1954, 74), dos quais se destaca a valorização dos elementos vegetalistas de que é paradigma a flor de lótus, o seu mais importante atributo. O budismo não só transformou a sensibilidade do povo chinês como inseriu no seu mundo o gosto
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Fig. 3 – Fragmento de seda bordado, proveniente de Dunhuang, século x, British Museum [publ. por Vainker, Shelag. 1996. “Silk of the Northern Song. Reconstructing the evidence”. Silk and Stone. The Art of Asia. Londres: hali Publications. 162].
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pela ornamentação, pela contínua repetição dos motivos usados, sumptuosidade e escala colossal (Gernet 1974, 216). Estes novos aspectos, em choque com a tradição clássica dominada pela sobriedade, pela vigorosa concisão e pela precisão do traço e do movimento (Gernet 1974, 216), afectaram não apenas a arte do ponto de vista iconográfico e respectiva abordagem plástico‑compositiva mas a própria tecnologia adoptada na sua manufactura. Comparativamente com os seus antecessores, o seu estilo revela, no caso particular do bordado, uma qualidade superior de execução (patente, por exemplo no tamanho do próprio ponto, cada vez menor e de execução mais rigorosa) e uma abordagem de índole mais compacta e decorativa, como bem exemplifica o padrão dos caules entrecruzados, desenvolvido a partir do motivo Han das nuvens flutuantes e precursor do padrão Tang da relva (à base de plantas) (Hanyu 1992, 13). Sob as Dinastias dos Sui (581‑618), Tang (618‑906) e das designadas Cinco dinastias (906‑960) a cultura, técnicas e ciências chinesas conhecem um progresso sem precedentes. Com a ascensão dos Tang assiste‑se, durante a primeira metade do reinado, ao alargamento do império e à consolidação das instituições oficiais, assim como a uma franca prosperidade e esplendor. Trata‑se de um dos mais gloriosos momentos da história da China, em parte, como consequência dos intercâmbios ocorridos no espaço das Rotas da Seda estabelecidas ao longo da Ásia central, responsáveis pela afirmação de um estilo artístico profundamente marcado pela presença de elementos internacionais que, em conjunto com a introdução do budismo e de uma nova forma de estar que privilegia o mundo natural em relação ao quadro mitológico das religiões Han, contribuem para uma reformulação do repertório ornamental desta época (Vainker 2004, 98‑99). Neste período, difundem‑se as composições à base de motivos florais, cenas de caça e de animais, como os leões, ursos e veados, e outros assuntos importados de países a Ocidente, como as uvas, romãs e as coroas de pérolas, quase sempre usadas em composições de carácter padronado, em medalhões com figurações afrontadas de animais, como patos e veados, muito apreciados no final desta era (Vainker 2004, 70). Caules torcidos ou espiralados, rosetas e ramos de flores ganham popularidade, associando‑se a um estilo de desenho largo e em cores brilhantes e intensas, composto a partir de unidades independentes mais ou menos simétricas, normalmente organizadas em torno de um centro com o qual se articulam muito ligeiramente (Krahl 1998, 64). No domínio específico do bordado, e no contexto do realismo e da qualidade que a produção artística de então preconiza, novas técnicas se incrementam: assiste‑se a uma nova vaga de criação no âmbito da utilização do ponto cetim, nas suas múltiplas versões – como o ponto lançado embutido e o ponto matiz, através dos quais é possível a obtenção de um efeito de gradação cromática de modo esbatido, semelhante ao proporcionado pela pintura (Fig. 3) –, e o ponto fendido. Entre as novas técnicas, inclui‑se o bordado com fios metálicos, em que os fios de prata ou ouro são estendidos sobre o suporte e depois fixados com sedas também estendidas, mas em diferente direcção. Contanto que o uso do fio de ouro estendido remonte ao
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período dos Estados Combatentes (475‑221 a.C.), o mesmo ter‑se‑á popularizado, como opção de embelezamento de sedas de luxo, através do comércio e contactos com o Ocidente, durante a dinastia Tang (Chung 2005, 116)14. A dinastia dos Song (960‑1279) não foi de particular estabilidade ou de expansão, apesar da sua longa duração, do implemento de uma cultura erudita associada a uma certa contenção estética, promotora da pintura, da caligrafia e da poesia, assim como de uma nova forma de perspectivar os objectos históricos, a qual viria a influenciar artistas, homens das letras e coleccionadores durante os séculos seguintes (Vainker 2004, 110). A primeira parte, dos Song do Norte (960‑1127), foi caracterizada por uma grande pluralidade étnica no Norte do país, fragmentado em vários estados, como o dos Liao (906‑1125) ou o dos Jin (1115‑1234), e, consequentemente, por uma certa instabilidade no que se refere ao relacionamento entre a dinastia principal e os estados circundantes. Não obstante, a economia Song conheceu um importante crescimento ao qual não foi indiferente o protagonismo da seda tanto a nível interno, no contexto doméstico, como exterior, no âmbito das relações comerciais encetadas. Como reflexo desta conjuntura, a produção têxtil deste período apresenta‑se algo diversificada e em função das tendências étnicas regionais. Por exemplo, veados, gansos e falcões associados a figurações de cenas de caça, juntamente com elementos de paisagens são temas dominantes, muito em particular, naquelas composições tecidas em ouro sobre fundos monócromos (verdes, azuis, vermelhos, púrpuras e brancos) características da produção Liao15 e Jin, duas sociedades muito apreciadoras e utilizadoras assíduas do fio metálico16. Quanto ao bordado, a partir dos Tang, e sobretudo dos Song, este deixa de ser produzido exclusivamente com finalidade prática, passando a ser apreendido como um passatempo ou mesmo como uma verdadeira arte. Na verdade, ultrapassa o uso tradicional, confinado ao vestuário e aos objectos quotidianos, e assume‑se como uma manifestação artística, associando‑se à produção de obras de arte congéneres àquelas produzidas no contexto pictórico. Este desenvolvimento de habilidades e capacidades, conduzirá à reprodução de caligrafias17 e pinturas, sendo que além do tradicional repertório iconográfico, dominado pelos motivos vegetalistas e animais (similares aos observados na cerâmica Song, como as plantas aquáticas, as borboletas, libelinhas e peixes), outros temas como aqueles de cariz figurativo, paisagens e estruturas arquitectónicas, de que são exemplo os pagodes e os pavilhões, surgem representados em bordado. Durante este reinado e o seguinte, a proximidade evidenciada entre a pintura e a arte do bordado foi tal que muitas das pinturas eram frequentemente bordadas e os bordados por vezes concluídos com pequenos retoques pintados (Fig. 4). Em termos de técnicas de realização do bordado, estas vão‑se diversificando e apurando – como se reconhece com o ponto de cetim, cuja apreensão se encontra de tal modo evoluída, que conduzirá ao aparecimento do bordado de duas faces (executado com tanta minúcia que, em vários exemplos da época, não se encontram quaisquer pontas de fios do direito ou do avesso). Da mesma forma se distinguem
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Sobre o fio de ouro e as suas variantes na China assim como o impacte que este tipo de fio causou aos europeus que consigo contactaram a partir do século xvi, leia‑se: Ferreira 2006‑2007. 14
Muito mais do que os Song, foram os Liao os herdeiros da cultura material da dinastia Tang, sendo disso bom exemplo a questão dos samitos que, com origem no final da era Tang, se tornam num dos principais tipos de tecido desta dinastia, a qual recupera não só a tecnologia de fabrico mas ainda o tipo de decoração: à base de medalhões circulares mais ou menos espaçados entre si e com quadrifólios nos interstícios, os quais tanto podem corresponder a elementos em forma de folhas como a motivos florais mais complexos (Schorta 2007, 13‑14). 15
Como tivémos já oportunidade de assinalar, os estudos mais recentemente desenvolvidos em torno da cultura material do período em causa revelam a coexistência de dois tipos de fio, sendo que a sua maior diferença incide no suporte utilizado, o qual era feito, respectivamente, de materiais de origem animal e de papel. Por outro lado, a aplicação de ouro sobre suportes animais, nomeadamente, cabedal de cabra ou ovelha cortado em tiras planas (não enroladas), sugere uma produção assegurada por não chineses, ao contrário daquela em que o ouro se apresenta aplicado sobre papel, geralmente observada nas sedas chinesas (Ferreira 2006‑2007). 16
Existe a referência de que na Dinastia Tang, Madame Lu Mei‑Liang terá bordado primorosamente numa pequena peça de seda, o L otus Suha, composta por 7 volumes (Shuo‑Shin 1989, 19). 17
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Sobre esta questão Shelagh Vainker vai mais longe e observa mesmo que a era Yuan se assume como um período chave para o entendimento da história da seda na China. 18
De aparência semelhante ao denominado ponto de renda, o uso desta técnica parece confinar ‑se ao período consignado entre o final da dinastia Song e o início da Ming, portanto, entre meados do séc. XIII e a primeira metade da centúria seguinte (Sonday e Maitland 1998, 55). 19
Fig. 4 – Bordado de papagaio sobre ramo de ameixoeira, dinastia Song [publ. por Hanyu 1992, 83]. Fig. 5 – Pormenor de figura bordada com recurso à técnica de needle‑looping, séculos xiii‑xiv, Cooper‑Hewitt Museum [publ. por Sonday e Maitland 1998, 50].
novidades como o bordado de aplicação, o recurso a materiais de enchimento e a pontos de fixação. No início do século xii os mongóis iniciam a conquista da China, pelo Norte do país, e em 1279 ascendem finalmente ao poder liderados por Khublai Khan, que encabeça uma nova dinastia, a Yuan (1279‑1368), marcada por grandes mudanças uma vez preferido um tipo de governo militar em vez da burocracia e erudição académica chinesas até então implementadas. No que concerne à produção têxtil, não obstante as alterações introduzidas os artigos sobreviventes Yuan parecem evidenciar uma continuidade em relação às tendências anteriores, tanto do ponto de vista do corte, tipos de tecidos e ornamentação dos trajes característicos dos Song do Sul, como da produção bordada realizada no tempo dos Liao e dos Jin, nas regiões Norte do país (Vainker 2004, 138‑140). Não menos relevante é o tipo de vivência então concedido aos têxteis; os artigos que sobreviveram nos seus contextos funcionais e decorativos, em muito maior quantidade do que aqueles apreendidos como bens preciosos e protegidos em túmulos ou criptas, reforçam a noção do intenso uso dos têxteis e da sua importância no quotidiano, comparativamente com o que se verificou até então18. Embora a produção têxtil Yuan se apresente ainda um pouco desconhecida no contexto do bordado, também neste sector se reconhece uma importante inovação: a da técnica do needle‑looping19, responsável pela obtenção de imagens sólidas, quase tridimensionais (Fig. 5), frequentes vezes enfatizadas pela aplicação de pa-
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pel dourado sob a superfície bordada, cuja manufactura parece ter sido restrita às comunidades budistas da região de Jiangnan (Vainker 2004, 141). Com a dinastia Ming (1368‑1644), e ao invés do que até então se assiste, a sericultura tende a ser concentrada numa única zona (tal como se verifica com a porcelana), nas províncias costeiras de Jiangsu e Zhejiang, conhecida como região de Jiangnan. Também as oficinas imperiais são implementadas numa escala sem precedentes, sendo que os principais estabelecimentos se concentram na capital, primeiro sediada em Nanquim e depois em Pequim. O bordado, enquanto procedimento usado nas representações pictóricas, passa a ser equiparado à tapeçaria, e novo avanço técnico se observa, não só ao nível dos pontos como dos materiais empregues: apesar do ponto cetim se manter fundamental no processo de bordar, este foi complementado com algumas variantes, como os pontos curtos e longos; a técnica de enchimento tornou‑se solução frequente sobretudo para certos elementos proeminentes, como é o caso dos olhos (Osborne 1975, 211). A utilização dos fios dourados estendidos, obtidos pela torsão de tiras de folhas de ouro em torno de um fio de seda (alma), passa a ser muito apreciada. Também a técnica de pontos de fixação, já observada durante as dinastias Tang e Song, volta a estar em voga: destinam‑se tal como o nome indica, a prender longos fios estendidos, de modo a proporcionar ao conjunto firmeza e resistência; criam também efeitos de textura, designadamente, em grandes manchas monocromáticas bordadas a seda ou a fio metálico. Reconhece‑se ainda grande multiplicidade na escolha dos materiais para além das fibras mais comuns: desde a aplicação directa de folha de ouro por processo de estampagem, de pérolas ou pedras preciosas nas composições bordadas, à utilização de penas de pavão e faisão, ou mesmo de cabelos humanos. A última dinastia da China imperial, dos Qing (1644‑1911), conquista Pequim em 1644. De origem manchú, ao contrário dos mongóis, não tenta impor as suas leis em exclusivo nem uma forma diferente de governo optando, ao invés, por assimilar os sistemas governativos e culturais então vigentes no país 20. Após um período tumultuoso, coincidente com a mudança dinástica, durante os reinados de Kangxi (1662 ‑1722) e dos seus sucessores, Youngzheng (1722‑1735) e Qianlong (1736‑1795), “a China conheceu o período mais brilhante da sua história, não só pela política de incremento da vida intelectual e apoio a todas as formas de arte e cultura chinesas (…), como pelas relações estabelecidas com os povos vizinhos (…)” (Sapage 1994, 31). Com este florescimento assiste‑se a um considerável reinvestimento na sericultura como forma de incentivar a economia e algumas fábricas são reabertas após um interregno de décadas 21. Como consequência, também o consumo de têxteis conhece novo fôlego, em concreto, no âmbito da representação diplomática e hierárquica civil e militar, face à expansão da burocracia desencadeada no decurso do século xviii. Mais do que nunca, os têxteis em seda, independentemente das tecnologias de fabrico empregues na sua execução, são intensa e amplamente usados por todas as
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Não obstante o esforço de preservarem a sua identidade étnica, sobretudo ao nível do traje de côrte. 20
Foi o caso das oficinas estatais de Suzhou, de Hangzhou, e de Nanquim, restabelecidas em 1646, em 1647 e no início do reinado de Shunzhi, respectivamente. A produção destas oficinas e daquelas de âmbito imperial visava sobretudo quatro domínios: o vestuário imperial, a decoração dos palácios e templos, sedas de representação e vestidos para os oficiais. 21
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Fig. 6 – Quimono bordado, século xix, Museu Nacional de Machado de Castro (n.º Inv. 5145/T786). (© Publ. in Ana Maria Rodrigues (coord). 1999. O orientalismo em Portugal (séculos XVI-XX). Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses – Edições Inapa. 193.)
De tal modo, que permaneceu sempre a ideia de que o governo chinês teve de criar legislação visando a sua proibição. Chung porém, observa que não existem provas factuais para esta sugestão, uma vez que não constam dos anais chineses qualquer lei neste sentido (Chung 1979, 11). 22
Muito embora se conheçam alguns pontos percursores já desde a dinastia Han, como o ponto de semente, o mesmo aparentemente desapareceu do repertório em uso, ressurgindo apenas no período Ming, ainda que de forma discreta e pontual, na elaboração de pequenos pormenores como os estames das flores ou os olhos de animais. 23
classes e em todos os domínios do quotidiano, em particular, naqueles associados aos cerimoniais, tanto da côrte como daqueles que preenchem a vivência da sociedade chinesa. Ao mesmo tempo, os artigos tecidos, bordados ou obtidos a partir da técnica da tapeçaria revelam uma concepção e produção cada vez mais rebuscadas, podendo encontrar‑se espécimes nos quais se assiste ao uso, em simultâneo e de forma complementar, das três técnicas. Mais do que novidades propriamente ditas respeitantes à laboração e ao enriquecimento decorativo das peças investe‑se nos procedimentos apurados pelos antecessores, explorando ao limite as suas múltiplas potencialidades. O bordado atinge o seu apogeu com a dinastia Qing, um período em que o progresso se manifesta no domínio técnico e artístico, e em que a variedade de pontos e de composições excede qualquer dos períodos anteriores. Neste domínio merece referência o ponto de nó de Pequim ou “ponto proibido” (dado o seu pequeníssimo tamanho e a necessidade de execução meticulosa susceptível de provocar cegueira22), o qual conhece no final do século xviii uma intensa difusão23. Na sequência do aperfeiçoamento técnico operado durante os reinados Song e Ming, também o bordado de dupla face atinge nesta altura grande qualidade e esplendor – ideal para leques, separadores de compartimentos, e painéis, por exemplo. Tal como a generalidade das outras manifestações decorativas chinesas de Setecentos e Oitocentos, os têxteis deste período reflectem composições cada vez mais excessivamente trabalhadas, pelo que embora se assumam como testemunhos de uma qualidade inexcedível haviam perdido já o lado mais criativo e expontâneo (Fig. 6).
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alguns aspectos da arte no período ming aquando da chegada dos portugueses a macau ca rl a a l f eres pi n to Centro de História de Além‑Mar, FCSH/UNL Bolseira de Doutoramento da FCT*
Proémio Entre Abril e Junho de 2009, o Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa organizou e ministrou um curso livre intitulado “A Arte e Cultura da China”. Nessa altura fui convidada para proferir uma das palestras que, recorrendo a imagens e a duas generosas horas de exposição, reuni sob o título “As formas artísticas no delta do Rio das Pérolas. Artesãos, encomenda, circulação”. Procurei, assim, interpretar o que me pareceu ser a vontade do Instituto de História da Arte, construindo uma apresentação que envolvesse a produção e comércio de arte em Macau – destinada a encomenda portuguesa/europeia – numa abordagem mais ampla (e que me pareceu mais estimulante) que fornecesse informação sobre a produção artística existente na China aquando da chegada dos Portugueses. Com efeito, e cumprindo a vontade do IHA, também o Departamento intuirá, como uma grande parte de nós, o necessário e inevitável (mas já excessivamente demorado) investimento que há a fazer na diversificação da oferta de conteúdos de carácter académico aos alunos de História da Arte, designadamente, no que diz respeito à urgente abertura a formas de expressão artística asiáticas, africanas e americanas. Esta situação é tanto mais incómoda quando se estuda, nas diversas universidades portugueses (em diferentes cursos e/ou disciplinas), as relações estabelecidas precocemente pela Coroa portuguesa com África (desde o início do século xv) e com a Ásia e a América (desde início do século xvi, como todos sabemos) e quando os estudos relacionados com o “indo‑português”, o namban, o “afro‑português”, o “sino‑português”, etc. têm sido alvo de um forte estímulo e crescente atenção académica, expositiva e comercial. A persistência num modelo formativo em que o olhar europeu é o único disponível e em que nem sequer se fornece informação ou conhecimento sobre as múltiplas, estimulantes e diversificadas estéticas, histórias, culturas, religiões, processos de
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* Doutoranda em História da Arte com tese sobre “A Colecção de Arte Colonial do Patriarcado de Lisboa. Proposta de estudo e musealização”. (FCT – SFRH/BD/63763/2009)
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Extensão do império Qin
FEDERAÇÃO RUSSA
Extensão do império Qing Fronteiras internacionais actuais Fronteiras provinciais actuais 0
500 km
Harbin
CAZAQUISTÃO MONGÓLIA
KYRGYZSTAN
Shenyang (Mukden)
Liaoning Kashgar
Chengde (Jehol)
Xinjiang
Hohhot
Gansu Dunhuang
Beijing
Rio Amarelo
Mt Wu Tai
Jiayugang
Yinchuan
Yungag
khotan
Xining
Lanzhou
Shaanxi
Hebei
Guanxian
Rio Yangzi
Golfo de Bengala
1. Mapa da China. [In Paludan, Ann. 2004. Crónica dos Imperadores Chineses. O Registo dos Reinados da China Imperial. Lisboa: Verbo. 10‑11] Mapa com definição das fronteiras das províncias chinesas e o nome e localização das principais cidades. Apresenta, ainda, as fronteiras territoriais do império Qin (221‑207 a.C.), Qing (1644‑1911) e as fronteiras actuais.
Ver Revista de Cultura. Arte e Comércio: acau, China, Europa Série 3, 24 (2007). M Macau: Instituto Cultural de Macau.
Fujian
Mar da China Oriental
Xiamen (Amoy) Guilin
Kunming
Guangxi
Yunnan
BIRMÂNIA
Zhejiang
Fuzhou
Guiyang
BANGLADESH
1
Jiangxi
Hunan
Guizhou
Xangai Ningpo
Nanchang Changsha
ÍNDIA
Yangzhou Nanjing Suzhou Hangzhou (Lin’an)
Dazu
NEPAL
C
Jiangsu Anhui
Wuhan
Chengdu
Lhasa
Qingdao
Hefei
Hubei
COREIA DO SUL
Shandong
Tibete Sichuan
Península de Liaodong
Qufu Jinan Mt Tai
Shanxi
M
COREIA DO NORTE
Weihaiwei
Shijiazhuang
Gongxain Luoyang Kaifeng Lintong Dengfeg Longmen Xianyang Xi'an Henan (Chang’ an)
Gansu
Dalien
Tianjin (Tietsin)
Taiyuan
Ningxia Qinghai
Shanhaiguan
N
Jilin
A
Urumqi
H
Changchun Mongólia Interior
Ú R I A
Heilongjiang
Nanning
Guangdong Guangzhou (Cantão)
TAIWAN
Kowlon Hong Kong Macau
VIETNAME Haikou
LAOS
Hainan
TAILÂNDIA
PHILIPPINESultrapassado produção e de circulação dos objectos artísticos, está definitivamente e condenado ao fracasso. Não sendo, por isso, resultado de uma investigação ou da elaboração de uma tese mas sim de um desafio colocado pelo Instituto de História da Arte, este texto procura contextualizar artisticamente a chegada dos Portugueses a Macau e fornecer informação relacionada com algumas características da produção de arte na China imperial ming. Pareceu‑me interessante olhar para o Rio das Pérolas como uma plataforma de circulação de formas, materiais e artesãos de diversas origens geográficas1. Ou seja, o que proponho não é olhar para uma pretensa especificidade da “arte portuguesa” em Macau, mas antes alargar horizontes e olhar para a cidade como um local de confluência das rotas comerciais marítimas que traziam objectos e matérias‑primas da Europa e da América Latina; mas antes integrar Macau no
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território chinês de onde chegavam objectos e gostos artísticos que têm que ser tidos em conta – mesmo que pela negação dos valores estéticos que representam –; mas antes suscitar interesse para o desenvolvimento de estudos que compreendam em como, um e outro, confluíram, se complementaram ou se confrontaram. Houve, por isso, uma atenção específica quer quanto à bibliografia referida em texto – a intenção é que esta esteja acessível para consulta dos alunos e, se possível, em português, enquanto esforço de introdução de um tema que, quase sem excepção, se revela particularmente ausente dos programas universitários e das preocupações dos estudantes portugueses – quer quanto ao tipo de conteúdos fornecidos – menos exaustivos e mais diversificados. O objectivo é assumido: potenciar o interesse e o estudo académico da cultura e arte chinesas (e, consequentemente, de outras culturas e artes asiáticas).
A dinastia Ming (1368‑1644) O delta do Rio das Pérolas, situado na zona central da província de Guangdong (onde se situa Macau, Guangzhou, a antiga Cantão, e Hong Kong), é hoje em dia um pólo económico fulcral do Sul da China. Fortemente orientada para as exportações e com um rendimento per capita considerável, vive nos nossos dias um esplendor económico que, sendo relativamente recente, tem antecedentes que recuam há séculos 2. Os Ming foram a última dinastia Han (o principal grupo étnico da China) a reinar no Império do Meio; sucederam aos Yuan (mongóis) e antecederam os Qing (manchus), que foram derrubados em 1911 na sequência da revolta chefiada por Sun Yat‑sen (e da consequente proclamação da República) e da abdicação de Pu Yi, o último imperador da China3. Quando a dinastia Ming ascendeu ao poder na China, era D. Fernando (1345‑1383) que ocupava o trono em Portugal (reinou entre 1367 e 1383). Aquando da sua morte deu‑se início à disputa dinástica que desencadeou a revolução de 1383‑85, da qual saiu vitorioso o mestre de Avis, D. João, e que deu início à dinastia de Avis. Esta dinastia reinou até 1580 com a morte do cardeal D. Henrique. A dinastia Ming reinou, portanto, mais tempo na China que a dinastia de Avis em Portugal. A ascensão da dinastia Ming na China correspondeu, grosso modo, a um período de grande crescimento económico e estabilidade política, realidade que possibilitou o florescimento de uma classe rica e culta ligada ao aparelho de Estado e à corte. A era Ming caracteriza‑se pela expansão económica, cultural, social e geográfica que se manifesta, também, na produção e comercialização de inúmeros objectos de luxo que preenchiam as necessidades de uma encomenda requintada. Exemplos maiores da vontade de abertura da China sob a direcção Ming são as conhecidas e celebradas expedições do almirante Zheng He. Muçulmano e eunuco, como aliás, outros navegadores da altura, este famoso almirante liderou uma poderosa armada que deu a conhecer à China regiões tão distantes quanto a costa
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Sobre a relação de Macau com a China ming existe vasta bibliografia disponível em português. Ver, por exemplo, Barreto, Luís Filipe (ed.). 2009. Macau during the Ming Dynasty. Lisbon: Centro Científico e Cultural de Macau / Fundação para a Ciência e Tecnologia. 2
Para uma abordagem cronológica, simples e em português sobre as dinastias chinesas e seus membros ver Paludan, Ann. 2004. Crónicas dos Imperadores Chineses. O Registo dos Reinados da China Imperial. Lisboa: Verbo. 3
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2. Jarra. Porcelana branca decorada com azul‑cobalto sob vidrado. Marca do reinado de Jiajing (1522‑66), dinastia Ming. Victoria and Albert Museum, Londres (C.100‑1928). [In Kerr, Rose (ed.). 1991. Chinese Art and Design: The T. T. Tsui Gallery of Chinese Art. London: Trustees of the Victoria and Albert Museum. 105.] Jarra para flores, penas ou outros objectos decorativos – tem no gargalo uma série de pequenos orifícios para conter os objectos – com um tipo muito semelhante ao das garrafas. 3. Garrafa. Porcelana branca decorada com azul‑cobalto sob vidrado. Meados do período Wanli (1573‑1620), dinastia Ming. Casa‑Museu Dr. Anastácio Gonçalves, Lisboa (CMAG 69). (© José Pessoa/ DGPC / ADF)
Sobre este assunto ver Church, Sally K. 2006. “Embarcações chinesas de meados da dinas4
tia Ming. Ilustrações e descrições no Chouhai tubian”. Oriente 16: 3‑28; e Vong, Ana. 2006. “A construção naval na China Antiga”. Oriente 16: 29‑43. Lisboa: Fundação Oriente. Ptak, Roderich. 2006. “Percepções das viagens de Zheng He através dos tempos”. Oriente 14: 3‑33. Lisboa: Fundação Oriente. 5
africana, o Oceano Índico oriental e ocidental ou as ilhas indonésias e nipónicas. Esta procura de novos caminhos, que se baseava na óbvia supremacia naval da China face aos seus concorrentes mais próximos 4, não deve ser vista à luz do entendimento das características proselitistas da expansão ibérica; as viagens marítimas serviram essencialmente motivações político‑diplomáticas, nomeadamente, a afirmação da novel dinastia e a propagação de um conjunto de ideais associados ao que poderemos entender como uma certa “mundividência” Ming5. As expedições marítimas de Zheng He, começadas em 1405 (ou seja, dez anos antes da tomada de Ceuta), sofreram um fim abrupto em 1433 tendo, por isso, sido alvo das mais variadas interpretações quer pela historiografia chinesa quer pela historiografia europeia e americana. Há uma série de factores conjugados que explicaram o recentrar da corte Ming no interior das suas fronteiras: a pressão na zona de raia, a Norte, exercida pelos mongóis que tentavam recuperar território perdido e que levaram ao deslocamento do exército e à concentração em terra; a menor capacidade de reagir à pirataria japonesa dos wako e, sobretudo, aquilo que parece ter sido uma decisão reflectida da corte, dominada
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por uma elite confucionista, de abandono do sistema comercial patrocinado pelo Estado e da sua substituição pela iniciativa privada. “A prová‑lo está o facto de as comunidades chinesas no estrangeiro terem sido reforçadas ou, nalguns casos, instituídas, e de os mercadores e marinheiros das províncias costeiras de Fujian e Guangdong terem continuado a comerciar com algumas das ilhas das Filipinas, na Indonésia e, por vezes, com Malaca. Se bem que não se tratasse já de um comércio em grande escala, é um facto que estas actividades foram em larga medida ignoradas pelo governo imperial. É também incontestável que o sistema económico chinês ‘(...) era ainda o mais forte, o mais rico e o mais variado do mundo, capaz de exercer uma influência muito considerável na direcção, composição e dimensões do comércio mundial’”6. Foi uma sociedade organizada e em florescimento que os Portugueses encontraram em 1513. A dimensão gigantesca do território e o difícil acesso ao imperador, quase sempre encerrado na sua “Capital do Norte” (Pequim), levava à necessidade de um governo escrupulosamente hierarquizado e à existência de uma enorme máquina burocrática de oficiais, muitas vezes a um passo da corrupção. Para além da dimensão gigantesca do território, os Portugueses deparam‑se também com dimensão populacional inimaginável: no início deste século xvi, Portugal não ultrapassaria o milhão de almas; a China de 1399 contava com sessenta milhões de habitantes e no fim do reinado de Wanli (1573‑1620) já ultrapassara os cento e cinquenta milhões7. A prosperidade continha, todavia, uma série de contradições, nomeadamente, entre as zonas costeiras (mais desenvolvidas, cosmopolitas e mercantis) e o imenso interior de raiz agrária e com um grande peso da burocracia. Os Portugueses vão usar estas contradições em seu proveito. Não é por acaso que o Jorge Álvares chega ao delta do Rio das Pérolas a bordo de um navio malaio. Com efeito, a intenção era comercial e o entreposto de base seria Malaca. A ideia era transportar para a Ásia Oriental o mesmo modelo comercial que os Portugueses já lideravam no Oceano Índico, isto é, optimizar as necessidades comerciais dos diferentes reinos costeiros entre a costa ocidental do Atlântico e o Índico8. É certo que rapidamente a corte e D. Manuel se apercebem do potencial económico, diplomático e político de uma relação privilegiada com os mandarins, os cortesãos e, inevitavelmente, o Imperador chinês, enviando, por isso, uma embaixada encabeçada por Tomé Pires a Pequim (1517‑1521). Pires chega a Pequim mas não consegue audiência com o Imperador, o que mostra, também, a ambivalência de valores com que a corte Ming se debatia9. Assim, os contactos portugueses voltaram a centrar‑se na questão comercial e Jorge Cabral, capitão‑mor de Malaca, começou a comerciar com navios chineses efectiva, ainda que clandestinamente, por volta de 1527. Mas, a grande oportunidade viria cerca de vinte anos mais tarde com o decreto oficial que baniu todo o comércio com o Japão e permitiu aos Folanji Yi Ren (“Povo Bárbaro Franco”, como foram inicialmente chamados os Portugueses10) ocupar esse espaço, criando uma rede triangular de comércio baseada em Malaca (especiarias e madeiras, particularmente, o sândalo, da Ásia Oriental), China costeira (seda, porcelanas, ouro e “caixas” de cobre) e Japão (prata, de que a China era a grande consumidora mundial).
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Sobre este assunto ver Curvelo, Alexandra. 2007. Nuvens douradas e paisagens habitadas. A arte namban e a sua circulação entre a Ásia e a América: Japão, China e Nova‑Espanha (c. 1500‑c. 1700). Tese de Doutoramento apresentada no Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, cap. 1 [13‑14]. 6
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Curvelo 2007, 14.
Sobre a política comercial e diplomática de D. Manuel ver Thomaz, Luís Filipe F. R.. 1994. “Os Portugueses e a Rota das Especiarias”, “A «Política Oriental» de D. Manuel I e suas contracorrentes” e “Malaca e suas comunidades mercantis na viragem do século xvi”. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel. 169‑87, 189‑206 e 513‑35. 8
Sobre este assunto existe vasta bibliografia disponível em português. Ver, por exemplo, Loureiro, Rui Manuel. 2009. “A malograda embaixada de Tomé Pires a Pequim” e “O Sudeste Asiático na Suma Oriental de Tomé Pires”. Nas Partes da China. Lisboa: Centro Científico e Cultural de Macau. 75‑93 e 55‑73. 9
Lourido, Rui D’Ávila. 1995. A Rota Marítima da Seda e da Prata: Macau‑Manila, das origens a 1640. Dissertação de Mestrado em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa apresentada no Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. 193. 10
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Alguns aspectos da arte ming Em 1992 realizou‑se no Palácio da Ajuda uma exposição que apresentou alguns aspectos da cultura e da corte chinesas. Apesar de incidir especificamente sobre a dinastia Qing (1644 ‑1911), foi publicado um catálogo com informação útil. Ver A Cidade Proibida. 1992. Lisboa: Fundação Oriente. 11
4. Taça (e pormenor com o fundo e a marca da taça). Porcelana branca decorada com azul‑cobalto sob vidrado. Marca do reinado de Jiajing (1522‑66), dinastia Ming. Colecção particular. [In Matos, Maria Antónia Pinto de; Campilho, Maria José de Sousa Holstein e; Alves, Trindade Mexia (comissariado científico). 1999. Caminhos da Porcelana. Lisboa: Fundação Oriente. 145.] Taça para encomenda portuguesa conforme atestam os motivos heráldicos e a inscrição em latim: ave maria gratia plena. Repare ‑se na dificuldade de leitura dos símbolos e caracteres latinos pelos artesãos chineses. Registe‑se, ainda, que esta peça foi adquirida por Celestino Domingues em Nara, no Japão, provavelmente para culto religioso entre os membros da comunidade cripto‑cristã japonesa, apresentando restauro tipicamente nipónico, executados a laca de ouro [Ver Matos, Maria Antónia Pinto de. 1999. “6. Taça”. Caminhos da Porcelana. Lisboa: Fundação Oriente. 144‑5], revelando, por um lado, tratar ‑se de um objecto precioso e, por outro, a circulação e uso deste tipo de peças entre os mercados e comunidades asiáticas.
Os Ming procuraram restaurar a tradição imperial Han, reanimando os costumes milenares chineses. Fundada por Hongwu (1368‑1398), um rebelde letrado – aprendera a ler e a escrever num mosteiro budista –, que contestava o poder mongol, e possuía notáveis qualidades bélicas e de organização, adoptou para nome dinástico a palavra ming (brilhante) devido ao seu significado. Procurou restaurar a grandeza perdida e seguiu a máxima “aprenda‑se com os Tang e os Song”, que teve, obviamente, repercussões na arte. Uma das mais evidentes (e conhecidas) será certamente o investimento na arquitectura de grande escala e impacto, prenunciando uma verdadeira política mecenática associada ao poder. Logo em 1406 – por decisão do imperador Yongle (r. 1403 ‑1424) assiste‑se ao início da construção da Cidade Proibida11, ligeiramente a Sul de Dadu (a capital dos mongóis de Kublai Khan e que conserva no seu perímetro os lagos, parques e colinas criados pelos Yuan). A edificação desta complexa e majestosa cidade (tem cerca de 720 000 metros quadrados e mais de 800 edifícios) prolongou‑se pelo tempo e é considerada Património da Humanidade desde 1998. Este projecto corresponde, grosso modo, ao início das obras do Mosteiro da Batalha, mandado erguer logo em 1386 na sequência do voto de D. João I em caso de vitória na batalha de Aljubarrota. Com milhares de quilómetros de distância, não deixa de ser interessante verificar que diferentes dinastias recorram à arquitectura como forma de demonstrar o exercício do poder e deixar um cunho distintivo, ainda que com motivações, formas, meios e objectivos, necessariamente diversos. Para além do grandioso projecto da cidade imperial, os Ming ficaram ligados à recuperação dos valores ancestrais associados ao culto dos mortos e à tumulária. Para esta situação contribui em grande medida o confucionismo e a fortíssima influência que a religião tinha junto da corte. O confucionismo baseava‑se num sistema filosófico que incorporava antigas ideias chinesas com outras desenvolvidas por Confúcio (551‑479 a.C.). Ainda que mais complexo e dinâmico que esta curta tentativa de explicação, grosso modo, esse
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sistema confucionista evoluiu para um código de comportamento ético que se manifestava em todas as acções do ser humano. Os ensinamentos de Confúcio encorajavam a existência de um sistema hierárquico de obrigações mútuas onde a relação entre dominante e dominado (fosse senhor e servo, pai e filho, etc.) era estritamente observado. O culto dos antepassados incluía‑se nesta regra, que o fomentava e o justificava. O reavivar da tumulária inscreve‑se, portanto, ética quotidiana, recorrendo aos mestres Tang (618‑907; que, enquanto dinastia reinante, já havia recorrido à memória Han e à prática desenvolvida e enraizada de criação de uma réplica do mundo real nos monumentos fúnebres) e Song (960‑1279). Assim, e logo após a instalação em Pequim, o imperador Yongle, escolheu o local para o cemitério imperial. Localizado num vale a cerca de 45 km noroeste de Pequim, alberga todos os túmulos dos imperadores ming. Os edifícios dos túmulos seguem a arquitectura clássica de palácio. Baseado no conceito “céu redondo, terra quadrada” que consiste em salões e pátios vivamente coloridos, onde se realizavam as cerimónias, e uma colina, artificial, redonda, fortificada e sem adornos, plantada com árvores que cobre a câmara funerária que contem o féretro. No interior dos túmulos era erguida uma autêntica cidade, apetrechada de mingqi (substitutos funerários), ou seja, todo o tipo de objectos que eram necessários para a vida eterna. Entre esses objectos incluíam‑se réplicas de alimentos, criados, músicos, animais, celeiros, utensílios domésticos, jóias, arreios, armas, soldados ou as conhecidas almofadas para apoio do pescoço e membros, executados em cerâmica que reunia as mais avançadas técnicas e modas de cada uma das épocas. As figuras, tal como na época áurea Tang, eram exibidas num carro durante a procissão funerária e depois colocadas no túmulo em redor do caixão, em câmaras e salas, segundo a ordem de importância das funções que representavam12.
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5. Figura de templo. Madeira e laca sob dourado. 1600‑1700, transição da dinastia Ming para Qing. Victoria and Albert Museum, Londres (A.7‑1917). [In Kerr. Rose (ed.). 1991. Chinese Art and Design: The T. T. Tsui Gallery of Chinese Art. London: Trustees of the Victoria and Albert Museum. 75.] Escultura votiva, para colocação num templo, representando Guan Di, um heróico e leal soldado que lutou nas guerras civis que grassaram na China na transição do segundo para o terceiro século. Mais tarde, tornou‑se deus da Guerra, protector do império e patrono dos mercadores e letrados, e uma das mais populares divindades na China. Como outras imagens de carácter religioso, contém oferendas e textos escritos em papel introduzidos na cavidade escavada nas costas. Escultura em madeira com a superfície lacada sobre uma folha de ouro de forma a parecer que tem uma patine bronzeada, de acordo com o estilo de representação típica do fim do período Ming início do Qing. A imagem exprime um forte dinamismo (veja‑se, por exemplo, como o artista compensa o desequilíbrio provocado pela postura das pernas com o talhe da saia que cobre a armadura ou as mangas da camisa que, soltas ao vento, estabelecem um ponto de equilíbrio contrário, com uma voltada para cima e a outra para baixo), exibindo um perfeito domínio da matéria (veja‑se o pregueado da saia, o trabalho da face explorado quase ao efeito de espelho), a atenção ao pormenor decorativo, a pontuação cromática com o vermelho que retira a monotonia cromática ao objecto.
Sobre a cerâmica antes dos Ming e a cerâmica funerária ver Krahl, Regina. 2008. “A cerâmica chinesa antes do período azul e branco”. Presença Portuguesa na Ásia. Testemunhos. Memórias. Coleccionismo. Coordenação Científica de Fernando António Baptista Pereira. Coordenação editorial de Carla Alferes Pinto. Lisboa: Fundação Oriente. 280‑287. 12
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Pirazzoli‑t’Serstevens, Michèle. 2004. “Uma mercadoria com grande procura: cerâmica chinesa importada no Golfo Arábico‑Pérsico, séculos ix‑xiv”. Oriente 8: 26‑38. Lisboa: Fundação Oriente. 13
Sobre a cerâmica chinesa para encomenda europeia ver os trabalhos de Maria Antónia Pinto de Matos. Ver, por exemplo, Matos, Maria Antónia Pinto de. 1996. “A Cerâmica Chinesa na Colecção do Dr. Anastácio Gonçalves”. A casa das Porcelanas. Cerâmica chinesa da Casa‑Museu Dr. Anastácio Gonçalves. Lisboa: Instituto Português de Museus / Philip Wilson Publishers. 18‑39 e fichas de catálogo elaboradas pela investigadora. 14
15
Ver Curvelo 2007, 351‑371.
Objectos artísticos Em 1513, quando se verificaram os primeiros contactos directos dos Portugueses com a China, o imperador era Zhengde (r. 1506‑1521), que governou numa altura em que o império já sofria fortes pressões externas e internas mas viveu rodeado por uma corte extremamente luxuosa, ociosa e esbanjadora. A corte ming era abastecida de objectos luxuosos por uma extensa comunidade de artesãos que dominava algumas das mais apreciadas técnicas artísticas de então. A porcelana era uma delas. É certo que a porcelana chinesa, nomeadamente, a azul e branca era conhecida na Europa e no Médio Oriente desde há muito; a encomenda, designadamente, vinda dos reinos pelos quais passava a vetusta Rota da Seda estava, também, enraizada e as tentativas de imitação que a mesma sofreu na Síria, no Egipto, na Turquia e na Pérsia, atestam a procura e valor desta mercadoria13. Todavia, é com a chegada dos Portugueses a Macau que a sua procura se torna exponencial e que a encomenda se vai diversificar. O auge da produção de porcelana azul e branca coincide com o final da dinastia Ming‑início da dinastia Qing (entre 1620‑1683) quando, devido à pressão da procura por parte dos mercadores estrangeiros, os fornos de Jingdezhen (na província de Jiangxi, a norte de Guangdong) intensificam a produção de pastas destinadas à exportação. É neste período que os especializados artesãos chineses produzem uma multiplicidade de formas – algumas delas especificamente criadas para as cada vez mais complexas e elitistas mesas reais, nobres e eclesiásticas europeias – decoradas com motivos exclusivamente do interesse do comissário, como os brasões de família ou os símbolos da fé cristã14. Os primeiros contactos propiciaram logo um acesso facilitado aos grandes centros de produção de cerâmica na China. É fácil perceber que as primeiras compras tenham recaído sobre objectos executados ao gosto local, mas esta situação rapidamente se alteraria. Provavelmente por uma questão de gosto, a encomenda europeia que domina os primeiros anos não foge ao azul e branco e não reconhece interesse pela paleta cromática, por exemplo, da cerâmica sancai, verificando‑se uma conjugação da mestria e técnicas locais com os motivos decorativos europeus, bem como uma reutilização e recontextualização de algumas das formas. A cerâmica sancai (literalmente três cores: gradações de branco‑palha, amarelo âmbar ou castanho e verde vivo) é uma das mais antigas técnicas (entre muitas outras desenvolvidas precocemente) conhecidas pelas dinastias chinesas. Feita em terracota, era revestida com vidrado neutro com uma ou mais cores da sumptuosa paleta à qual foram, com o tempo, acrescentadas as cores turquesa e roxo. Todavia, como sabemos, terá sido a porcelana – branca, inicialmente decorada com azul ‑cobalto sob vidrado e, mais tarde, sujeita a uma decoração variada recorrendo a uma paleta muito mais vasta – que mais entusiasmou os europeus. Quando começaram as obras do colégio de São Paulo (e da sua fachada profusamente esculpida15) e da Sé, na década de 70 do século xvi, assistia‑se na China
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6. Du Jin, rolo de seda para pendurar, final do século xv. Museu do Palácio Nacional, Formosa. [In Paludan, Ann. 2004. Crónica dos Imperadores Chineses. O Registo dos Reinados da China Imperial. Lisboa: Verbo. 175] Representação de dois abastados coleccionadores que expõem e admiram as suas antiguidades.
imperial à transição dos reinados do imperador Longqing (r. 1567‑1572) para Wanli (r. 1573‑1620). Este extenso reinado encerrou em si uma série de contradições e marcou definitivamente a decadência da dinastia Ming. Foi uma época criativa e vigorosa do ponto de vista económico, cultural e formativo, mas, politicamente, o declínio acentua‑se com o aproximar do fim do reinado e o agudizar da idiossincrasia de Wanli que vai, progressivamente, deixando de cumprir as suas funções, provocando com essa posição um sério abalo no sistema – fortemente baseado na pessoa do imperador e sua corte – que deixa de funcionar. A agravar a situação, verificavam‑se sucessivas investidas mongóis a Norte, a guerra ruinosa de expulsão dos Japoneses da Coreia, que durou entre 1493 e 1598, e, por fim, a ocupação do extremo Nordeste do país pelos manchus, num movimento que marca o princípio do fim da dinastia Ming e levaria mais vinte anos a atingir Pequim.
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7. Gabinete de exposição. Madeira huali. 1600‑1700, transição da dinastia Ming para a Qing. Victoria and Albert Museum, Londres (FE.14‑1980). [In Kerr. Rose (ed.). 1991. Chinese Art and Design: The T. T. Tsui Gallery of Chinese Art. London: Trustees of the Victoria and Albert Museum. 229] Repare‑se na qualidade do design e na modernidade da peça de mobiliário.
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A escultura em pedra dura era normalmente reservada para as construções de dimensões majestosas. A pedra‑sabão e o jade eram as pedras mais utilizadas para o talhe da escultura portátil; faziam‑se também objectos em cerâmica, madeiras, osso e resinas. 16
Ver Rose Kerr (ed.). 1991. Chinese Art and Design: The T. T. Tsui Gallery of Chinese Art. London: Trustees of the Victoria and Albert Museum. 217‑250. 17
Sobre o mobiliário chinês existe vasta bibliografia. Consultar, por exemplo, Chinese furniture: selected articles from Orientations 1984‑1994. 1996. Hong Kong: Orientations Magazine, e Jarrige, Jean‑François. 2003. Ming. L’Âge d’or du mobilier Chinois. Paris: Réunion des Musées Nationaux / Musée National des Arts Asiatiques Guimet. 18
Por volta do final do século xvii, a produção e comércio de mobiliário encontrava‑se estabilizada e era uma das fontes de rendimento de Guangzhou (Cantão) onde havia inúmeras oficinas especializadas. A maior parte das referências diz respeito a mobília lacada mas aparecem, também, encomendas de madeiras duras e bambu. A importância deste comércio é graficamente representada e salientada nos conhecidos ciclos pictóricos china trade. 19
Por esta altura, algumas das novidades trazidas pelos mercadores estrangeiros tinham já sido assimiladas pela economia e sociedade chinesa. É o caso do cultivo das plantas vindas do Novo Mundo como o milho, a batata‑doce ou o amendoim, que contribuíam para beneficiar uma população em franco crescimento. Social e financeiramente, assistia‑se a uma série de alterações, como o crescimento económico suscitado pelas reformas fiscais, pela cunhagem de moeda em prata, pela expansão da indústria manufactureira que produzia agora, também, para alimentar o comércio externo (e o consequente impulso dado à produção e colheita de matéria‑prima como o algodão, a cana‑de‑açúcar ou o tabaco), pela concentração das oficinas e fábricas – seda em Suzhou; fábricas de papel e fornos de porcelana em Jingdezhen em Jiangxi – que levou à concentração de riqueza e ao crescimento de uma classe de mercadores, banqueiros e homens de negócios extremamente ricos que vão procurar produtos de luxo caríssimos, rivalizando assim com a corte e nobreza. Entre estes produtos encontrava‑se a cerâmica, certamente, a seda, os têxteis, as lacas, os metais preciosos, os leques, a escultura16, o mobiliário, que, não obstante, eram objectos que se encontravam intimamente associados ao culto e à representação dos antecessores e das divindades mais populares, às quais se pediam favores e benesses. Foi, também, neste período que o coleccionismo de cerâmica como objecto de arte se estruturou e assumiu a importância que tem hoje. Os coleccionadores ming começaram por definir as características e periodização das diferentes cerâmicas, quase sempre por divisões geográficas, atribuindo‑lhes, também, valores de raridade e sofisticação17. Para mostrar as suas colecções, a letrada e abastada elite chinesa dispunha de móveis, especificamente, uma espécie de armário, normalmente em pares, que tinham duas partes definidas: a primeira, uma secção aberta, onde vários tipos de objectos podiam ser colocados em exposição e apreciados; a segunda, em baixo, onde a maior parte das peças da colecção seriam guardadas em caixas feitas à medida, até ao momento em que a oportunidade propiciasse a sua retirada do armário e exposição, ou enroladas cuidadosamente e enfiados um pequenos cubículos, como é o caso da pintura. Ao contrário do que acontecia noutros países asiáticos, na China era comum o uso de cadeiras. A ausência de mobiliário elevado em quase toda a Ásia tornou os Europeus profundamente dependentes do sofisticado mobiliário do proveniente do Império do Meio, normalmente executado em madeiras duras e lacado18. É assim fácil perceber que os móveis e a particular qualidade artesanal dos mesmos fossem muito apreciados pelos Portugueses que os adquiriam e transportavam para as mais vastas zonas do império. Encontramo‑los representados, por exemplo, nos biombos japoneses que retratam a chegada da nau do trato aos portos nipónicos, sendo descarregados dos porões juntos com as outras mercadorias que os enchiam. Os relatos coevos descrevem como era normal para os Portugueses, primeiro, e depois os Europeus em geral, adquirirem inúmeras peças de mobiliário quer para uso pessoal quer como mercadoria de exportação, até ao desenvolvimento mais tardio de um gosto e encomenda específica por este tipo de peça19.
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8. Visitando um amigo na montanha. Rolo de pendurar, tinta e cor sobre papel. 1500 ‑1600, dinastia Ming. Victoria and Albert Museum, Londres (E.422‑1953). [In Kerr. Rose (ed.). 1991. Chinese Art and Design: The T. T. Tsui Gallery of Chinese Art. London: Trustees of the Victoria and Albert Museum. 230] A pintura está assinada, no canto inferior direito, por Li Zhaodao (activo entre 670 ‑730) e apresenta os selos e inscrições de uma série de reputados conhecedores da pintura Tang, incluindo Ke Jiusi (1290 ‑1343) e Wen Zhengming (1470‑1559). Em termos meramente estilísticos a atribuição é impossível. Esta pintura não faz qualquer esforço para imitar o que seria considerado na altura uma pintura ao estilo da dinastia Tang ou sequer para se adequar ao estilo de paisagem que a literatura relacionada com a historiografia da arte associava à pintura de Li Zhaodao, isto é, uma pintura copiosamente trabalhada em pigmentos minerais de tons azul e verde. Os abastados membros da corte e elite ming que se dispunham a comprar este tipo de pintura, particularmente os menos seguros quanto aos seus dotes artísticos, estariam mais predispostos a prestar atenção à autenticidade dos selos e das inscrições do que à forma desenhada pelos pincéis.
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Sobre a pintura chinesa ver, por exemplo, Vandier‑Nicolas, Nicole. 1983. Peinture chinoise et tradition lettrée: Expression d’une civilisation. Paris: Seuil. 20
Ver Lopes, Rui Oliveira. 2009. “Reflections of Sovereign Power: Various Observations on the Painting Volume Entitled ‘Entertainments of Emperor Yongzheng’”. Oriente / Ocidente. Miscigenações. Livro de Actas e Memória do Evento. Lisboa: Faculdade de Belas Artes. 63‑67. 21
22
Ver Curvelo, 2007, p. 370 ss.
O culto pela tradição e pela ancestral magnificência dos antepassados desencadeou a proliferação de tipos de colecção que levaram, inevitavelmente, ao surgir de inúmeras cópias de extrema qualidade no mercado. As imitações eram uma arte afamada e exibida: copiavam rigorosamente o estilo e os motivos decorativos de outras épocas. Muitas vezes assinadas – como, por exemplo, por Lu Zigang (activo entre 1560‑1600), que se tornou na sua época o mais festejado e procurado dos artesãos de jade – estas peças não pretendiam passar por antiguidades. Não eram as qualidades intrínsecas da forma ou decoração que tornavam o objecto uma “falsa” ou honesta reinterpretação dos estilos antigos mas antes o contexto social em que fora usado (que, muitas vezes, nos é, hoje em dia, impossível de apreender). É provável que as imitações feitas no período Ming tenham sido usadas com a mesma intenção e função que o objecto original e, nesse sentido, imbuiu‑se ele próprio dessa singularidade. Entre as peças copiadas, por artistas que levavam uma vida a aprender e aperfeiçoar a técnica dos “mestres”, encontrava‑se a pintura20. Nenhum dos mais usuais formatos de pintura na China foi feito para ser colocado em exposição permanente como, por exemplo, a pintura sobre tela ocidental ou a pintura retabular. As pinturas em formato mais reduzido eram colocadas em álbuns (ou pintadas noutro tipo de superfícies como, por exemplo, os leques) e os formatos maiores adquiriam a forma de rolos de pendurar verticais ou rolos manuais horizontais, ambos conservados nos gabinetes expositores e retirados e expostos consoante as estações, a ocasião ou a disposição do coleccionador assim o ditava. As técnicas necessárias para a reprodução de uma pintura em seda ou papel eram semelhantes às usadas para a caligrafia colocando‑as, por isso, ao alcance de qualquer letrado (o único capaz de transmitir o verdadeiro conteúdo da pintura), ao contrário das técnicas especiais de fundição do bronze ou do talhe do jade ou da xilogravura, técnicas executadas por artesãos especializados. A xilogravura, técnica que era conhecida na China desde o século nono, desempenhou um importante papel na divulgação de motivos artísticos entre a elite chinesa. Catálogos ilustrados de antiguidades eram produzidos desde o século xi e rapidamente os artesãos chineses desenvolveram a capacidade de introduzir nesta técnica o uso da cor, o que lhes permitiu imitar os efeitos da pintura com pincel. A atenção e o interesse pelas antiguidades, pela recuperação dos valores ancestrais da cultura e arte chinesa não impediram o interesse palaciano por outras formas pictóricas. Assim, a corte Ming aceitou e aprendeu com a presença de padres da Companhia de Jesus no seu seio e a Qing patrocinou uma escola de pintura à ocidental21, e Macau assistiu inclusive à migração e labor de membros do Seminário de pintura jesuíta fundado no Japão22. A questão da imitação dos objectos artísticos produzidos na China e, designadamente, no período Ming e no subsequente Qing, coloca à arte europeia questões muito prementes – nomeadamente, à ideia de mimesis presente na pintura, e que também fascinou os chineses – bem como às noções de memória e património que valem a pena explorar, conhecer e ensinar. Assim o espero.
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notícia
A portrait by Vieira Portuense in Germany
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Signed and dated “F. Vieira Fecit London 1800”, this portrait by Francisco Vieira Portuense represents Karl Ludwig Friedrich, the Duke of MecklenburgStrelitz (1741-1816). The Duke was also the brother of Charlotte Sophie von Mecklenburg-Strelitz (1744-1818), who in 1761 married King George III (reigned 1760-1820) and became Queen of England, and the father of Luise von Mecklenburg-Strelitz (1776-1810), who in 1793 married the future King of Prussia, Friedrich Wilhelm III (reigned 17971840). Until the Second World War, the painting hung in one of Queen Luise’s private rooms, along with other portraits of members of her family, as part of the Hohenzollern Museum, that was housed in the Monbijou Palace.1 When the palace was destroyed during the war, the painting was transferred to the Charlottenburg Palace where it can be seen today. It is unknown when or how exactly the painting entered the Prussian royal collections, although it is almost certain that this happened through the Duke’s daughter. 2 Although the portrait was painted in London according to the signature, it is more likely that the Duke (who paid frequent visits to his daughter) met Vieira during the latter’s brief stay in Berlin (August – early September 1797), since there are no documented visits of the Duke to London dating from the end of the eighteenth century. The Duke’s only visits to his sister in England (apart from
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See the black-and-white photograph of the room taken in 1940 in Thomas Kemper, Schloss Monbijou. Von der Königlichen Residenz zum Hohenzollern-Museum (Berlin, 2005), 197, fig. 190. 1
The painting was inventoried in 1902 (inventory number GK I 9423), in the general catalogue of paintings belonging to the Prussian palaces (Generalkatalog I, dating from 1883 till 1945), but this does not necessarily mean that it entered the collections at that time. Many paintings that had formerly been overlooked were inventoried in the beginning of the twentieth century (written communication by Dr. Christoph Martin Vogtherr). 2
Francisco Vieira Portuense (1765‑1805), Duke Karl II. von Mecklenburg‑Strelitz, Signed and dated F. Vieira Fecit London 1800, oil on canvas, 0.66 3 0.49 cm, Stiftung Preussische Schlösser und Gärten Berlin‑Brandenburg/ Foto: Hans Bach
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va r i a · n ot í c i a
the year of her wedding) take place in 17713 and 1786,4 as far as I have been able to ascertain. The extensive correspondence between the Queen and her brother (only her letters survive) does not mention any visits to London, at least for the period 1794-1801.5 While in the Prussian capital, Vieira was warmly received by the Portuguese ambassador João Rodrigues de Sá e Melo (future Count de Anadia) and he also contributed a landscape to the annual exhibition of the Prussian Academy of Fine Arts (September 1797), as is confirmed by its exhibition catalogue where he is mentioned as a “history painter of His Majesty the King of Portugal” long before any official titles were attributed to him.6 Nevertheless, the possibility of a casual meeting between the painter and the Duke does not provide sufficient explanation for the genesis of this portrait. Some clues can be provided by the Duke’s early years in the Hanoverian army and his participation in the Seven Years War. As it turns out, Karl Ludwig Friedrich, then still a young Prince of the duchy of Mecklenburg-Strelitz, arrived in Portugal in 1762 with the Count of Schaumburg-Lippe to fight on the Portuguese side, sent by his brotherin-law, George III. King Joseph I of Portugal appointed him Coronel General of a cavalry regiment that was named after him and kept its honorary name as late as 1806.7 This special honor was in recognition of the Prince’s qualities and merits and of the obligation of Joseph I towards his ally, the King of England who allowed the Prince to continue his “laudable military vocation” in the Portuguese army. 8 The Duke appar-
220
See the exhibition catalogue Jane Roberts,
ta Margarida: R.C., 2002], 14, where the decree
ed., George III & Queen Charlotte. Patronage,
of July 5, 1762 is reproduced.
3
Collecting and Court Taste (London: Royal Collection Publications, 2004), 34.
8
Cf. the letters patent (dating July 10, 1762)
published in Supplemento à collecção de leg-
See Frances Burney, The Diary and Letters of
islação portugueza do desembargador António
Madame d’Arblay (Frances Burney) (London
Delgado da Silva, pelo mesmo. Anno de 1750 a
1890), vol. 1 (covering the years 1778-1787), 336.
1762 (Lisbon: Na Typ. de Luiz Correa da Cunha,
4
1842), 867-868. The letters patent refer to the I have consulted the Hausarchiv des Meck-
Prince as the Duke of Mecklenburg-Strelitz,
lenburg-Strelitzschen Fürstenhauses (Briefsam-
even though he acquired this title only after
mlung No. 877, No. 878 and No. 879) in the
the death of his brother, Adolf Frederick IV, in
Mecklenburgisches Landeshauptarchiv (Schwer-
1794.
5
in, Germany). Cf. also the microfilm S. 144, con The letter is dated December 5, 1769 (Biblio-
taining letters to the Duke (not just from his sis-
9
ter) dating from about 1796 to 1810.
teca Nacional de Lisboa, Reservados, MSS, Caixa 246, no. 4).
6
See Helmut Börsch-Supan, ed., Die Kataloge This case could probably be compared with
der Berliner Akademie-Ausstellungen 1786-1850
10
(Berlin, 1971), 26, entry 77 (reproduction of the
the desire manifested by Pina Manique to ob-
original text). The landscape exhibited is certainly
tain the portrait of the Duke of Northumberland,
the one mentioned in Vieira’s letter to Giambat-
again to be painted by Vieira. See F. A. Oliveira
tista Bodoni (August 10, 1797 from Berlin), pub-
Martins, “Os alunos da Academia Portuguesa de
lished in Agostinho Araújo, “Experiência da na-
Belas-Artes, de Roma, em Londres”, Ocidente 20
tureza e sensibilidade pré-romântica em Portugal.
(1943), 147.
Temas de pintura e seu consumo (1780-1825)”, doctoral dissertation (Porto: Universidade do Porto, 1991), vol. 2, 169. The painter mentions that de Anadia, then still a Viscount, wanted the landscape for himself (“un gran paeze che d’invenzione aveva fatto a Vienna per Londra”) and wanted also to exhibit it in the “expozitione che si va affare in questa Corte al meze venturo”.
11
The painting is included in the exhibition
catalogue Meisterwerke aus den Preussischen Schlössern (Berlin: Preussische Akademie der Künste, 1930), 59, and is also mentioned in Ulrich Thieme and Felix Becker, Allgemeines Lexikon der bildenden Künstler (Leipzig 1940), vol. 34, 336.
The painting remained in Berlin for the exhibition
12
after Vieira’s departure for London (the Berlin ex-
Duke by Johann Georg Ziesenis (1716-1776),
hibition opened on the 26 of September 1797 and
both painted around 1770-1771 and presum-
Vieira was already in London earlier that month).
ably acquired by Queen Charlotte (The Royal
This seems to confirm José Alberto Seabra Car-
Collection, Her Majesty Queen Elizabeth II). See
valho’s hypothesis that the Narcissus painting is
http://www.royalcollection.org.uk/eGallery/.
Such are, for example, the two portraits of the
the one mentioned in the letter (and originally belonging to the de Anadia family), although it is
13
Vieira undoubtedly knew the composition,
a bit strange that the painting is mentioned as a
since it was engraved by Francesco Bartolozzi
landscape in the 1797 exhibition catalogue (“Eine
(with whom Vieira collaborated closely during
Landschaft”). See the exhibition catalogue, Elisa
his stay in London) and published in June 1795.
Soares and José Alberto Seabra Carvalho, eds.,
One print of this portrait belongs to the Col-
Francisco Vieira, o Portuense, 1765-1805 [Porto:
ecção Calcográfica of the University of Porto
Museu Nacional Soares dos Reis, 2001], 194-197.
(Biblioteca do Fundo Antigo, Reitoria da Uni-
See Regimento de Cavalaria 4: 240 anos ao
this collection originally belonged to the paint-
serviço do exército e da nação, 1762-2002 [San-
er (especially the Bartolozzi prints), it is almost
7
r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n.o 9 – 2 0 1 2
versidade do Porto, no. 212). Since large part of
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Detail of Francisco Vieira Portuense’s Duke Karl II. von Mecklenburg-Strelitz, with his signature F. Vieira Fecit London 1800 (Foto: Hans Bach)
certain that Vieira personally owned the print. For a reproduction of the print see the exhibition catalogue, Barbara Jatta, ed., Francesco Bartolozzi. Incisore delle Grazie (Rome: Artemide Edizioni, 1995), 186. See for example the letter dating February 6, 1800, where Queen Charlotte begs the Duke to use his influence on his daughter to make her understand “combien elle pourra par son Exemple prevenir l’introduction de ses Modes pernicieuses. Ce n’est pas au commencement qu’on s’aperçoit du mal que ses choses font en apparences au bonnes mœurs, mais imperceptiblement c’est la corruption totale des bonnes mœurs” (Hausarchiv des MecklenburgStrelitzschen Fürstenhauses: Briefsammlung No. 878). Although the Queen is referring to matters of fashion, the urgency of her appeal against all things French is very significant in this context. 14
ently kept in touch with the Marquis de Pombal even after the end of the war as a 1769 letter attests.9 This early connection between the Duke and Portugal might help to explain the choice of Vieira for this portrait, either as a commission coming from the Duke himself or from a Portuguese statesman or diplomat (de Anadia should not be excluded) who wished in this way to honor the Duke for his services to the country, especially during a period when war was spreading all over Europe.10 The painting, that has not been studied before,11 should be compared with previous portraits of the Duke12 to fully appreciate the departure from the official iconography of the Duke that Vieira’s
work constitutes. The portrait bears, on the contrary, a close resemblance (in the sitter’s relaxed posture, the association of manhood with the physical activities of the outdoors, the painterly landscape) to the portrait of the Prince of Wales (future George IV), painted by John Russell (1745-1806) in 1791 (also in the Royal Collection).13 The ‘englishness’ of Russell’s portrait would have appealed to both the painter and his model at a time when the latter was called upon to use his influence at the Prussian court (through his daughter) against the French.14 The Mecklenburg-Strelitz portrait shows the extent of the international network of nobles and aristocrats where Vieira effortlessly moved and testifies to the quickness with which he assimilated new models, in this case planting firmly the representation of the Duke in his new cultural milieu with all the ideological underpinnings and the associations that this could evoke.
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Foteini Vlachou University of Crete, Greece Instituto de História da Arte, FCSH/UNL Doctoral grant FCT (SFRH/BD/47065/2008)
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Cuerpos de Dolor A imagem do sagrado na escultura espanhola (1500‑1750) Na Galeria de Exposições Temporárias do Museu Nacional de Arte Antiga está patente a exposição Cuerpos de Dolor, mostra constituída por uma selecção de 33 obras pertencentes ao Museo Nacional de Escultura de Valhadolid, enquadradas, do ponto de vista cronológico ‑estilístico, do dealbar do Renascimento ao ocaso do Barroco, ou seja, considerando as especificidades ibéricas, do primeiro quartel do século xvi à segunda metade do século xviii. Do ponto de vista museográfico, a solução encontrada para acolher e exibir as obras no espaço da Galeria de Exposições Temporárias, oferece ao visitante uma experiência notável, permitindo a sua imersão num azul profundo e denso em que o tratamento lumínico desempenha um papel determinante, criando não apenas a desejável adequada iluminação das peças mas sendo igualmente responsável pelo efeito teatral resultante do claro‑escuro, luz‑sombra que cada obra assim mostrada proporciona. Tratando‑se de uma selecção, tem o público português o privilégio de apreciar algumas das mais relevantes peças constantes do acervo do Museo Nacional de Escultura e confrontar‑se assim com a intensidade da obra de alguns dos nomes mais sonantes no âmbito da produção escultórica renascentista, maneirista e barroca espanhola, tais como
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Felipe Bigarny, Alonso Berruguete, Juan de Juni, Pompeo Leoni, Gregorio Fernández, Alonso Cano, Pedro de Mena e Pedro de Sierra ou Salzillo. Tendo em conta o arco temporal eleito dificilmente outro poderia ser o tema da mostra. Com efeito, a expressão de sentimentos extremos é uma característica da produção escultórica espanhola desses períodos, seja ela castelhana, andaluza ou galega. As cerca de três dezenas de obras são apresentadas segundo um fio cronológico mas com facilidade se podem reconhecer conjuntos temáticos, como os que seguidamente se propõem e que podem constituir‑se como um segundo percurso para um visitante desejoso de re‑experienciar a exposição, eventualmente após a leitura do catálogo, construído com belas imagens e textos importantes, do ponto de vista da abordagem eleita e dos conteúdos veiculados.
I. Os santos (fundadores, doutores, ascetas, mártires) A representação escultórica dos santos tem diversas motivações, desde logo as óbvias de carácter devocional, mas para a Espanha da Idade Moderna as esculturas de santos incluem‑se nesse mais vasto desejo de ver Deus, tão bem expresso por Santa Teresa de Ávila, pois Ele pode ser visto através dos santos que são, cada um de seu modo, um espelho desse mesmo Deus. A representação desses santos, sobretudo aquela tridimensional do seu corpo, materializa a experiência espiritual e traduz perante o observador essa sua espiritualidade, num discurso facilmente apreendido pelo olhar.
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Os santos pelos seus diferentes percursos de vida traduzem também a diversidade dos rostos e da voz de Deus e, assim, podemos reconhecer a alusão à sua palavra na representação dos quatro Evangelistas atribuídos a Filipe Bygarny (?‑1542) ou no S. Paulo de Juan de Valmaseda (c. 1488‑depois de 1548). Por outro lado, os construtores da igreja – que a Contra‑Reforma tanto valoriza – encontram expressão na figuração dos fundadores das ordens religiosas, como a Santa Clara de Assis, de Pompeo Leoni (1530‑1608) ou o S. Félix de Valois e o S. Pedro Nolasco de Pedro de Sierra (1702‑1761) ou ainda o S. Francisco de Assis de Francisco Salzillo (1707 ‑1783), bem como nos Doutores, de que é exemplo o dominicano S. Tomás de Aquino, aqui representado em escultura de Gregório Fernández (1576‑1636). Outros santos muito valorizados pela piedade pós‑tridentina, em particular naquela desenvolvida em ambiente espanhol, são sem dúvida os mártires, que em defesa da fé abdicaram da própria vida – a cabeça do Baptista de Torcuato Ruiz del Peral (1708‑1773) sublinha tal afirmação com eloquência –, os penitentes (veja‑se o S. Nicolau Tolentino Penitente de Juan de Mesa y Velasco, 1583‑1627) e ainda os ascetas, aqui representados pela Santa Maria Egipcíaca de Luís Salvador Carmona (1708‑1767), tributária da Santa Maria Madalena de Pedro de Mena (1628‑1688), a quem foi aliás inicialmente atribuída a obra, mas que merece por si só a maior atenção. Trata‑se com efeito de uma peça notável de delicada construção compositiva, segundo um eixo levemente diagonal, onde a meditação da santa, focada na caveira que segura na mão
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A exposição Local: Galeria de Exposições Temporárias, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa Datas: 15 de Novembro 2011 – 25 de Março 2012 Comissariado científico: António Filipe Pimentel, Manuel Arias Martínez, Miguel Ángel Marcos Villán Comissariado executivo: Anísio Franco Organização: Museu Nacional de Arte Antiga; Museo Nacional de Escultura, Valhadolid; Subdirección General de Promoción de las Bellas Artes (Ministério de Cultura). O catálogo Coordenação editorial: Ana de Castro Henriques Textos: António Filipe Pimentel, José Ignacio Hernández Redondo, Manuel Arias Martínez, María Ángeles Polo Herrador, Maria Bolaños, Miguel Ángel Marcos Villán, Rosario Fernandez Gonzalez
esquerda, se revela insuficiente para distrair o observador da beleza feminina, bem como da contradição entre a sua aparente fragilidade (que o equilíbrio precário da construção da figura com os pontos de apoio em planos ligeiramente diferenciados acentua) e a sua força, bem expressa pelo olhar fixo e pela mão direita, intensa e aberta sobre o peito.
II. A Virgem Outro núcleo de obras da exposição é consagrado à Virgem, cujo protagonismo no âmbito da piedade da Época Moderna é sempre crescente. Assim, um percurso mariano pode ser sugerido
com início na infância de Maria – à qual se alude no contexto da mostra com o grupo figurando Santa Ana, S. Joaquim e a Virgem Menina (da autoria de José Montes de Oca, c. 1676‑1754), numa cena doméstica, que procura aproximar o fiel dessa santa família, só aparentemente como as outras –, passando pela sua vida adulta até à sua glória. São particularmente intensas as obras que procuram dar expressão cruel do seu sofrimento enquanto mãe de Cristo: as Senhoras das Dores, respectivamente de José de Mora (1642‑1724) e de Cristóbal Ramos (1725‑1799). Se a segunda atinge o observador pela intensidade do olhar e sobretudo pelas mãos coloca-
das sobre o peito, a primeira impede por completo a indiferença, na sua rigorosa bicromia, no pudor de um olhar que não se revela inteiramente, porque direccionado para um plano inferior indefinido, um olhar onde reside a sua imensa dor. Mas a Virgem é também objecto, quase no final da mostra, de uma abordagem completamente diferente. A figuração da Imaculada de Pedro de Sierra, datada de cerca de 1735 – com a sua fisionomia de traços requintados, panejamentos esvoaçantes e dinâmicas cabeças de querubins, pontuando o aglomerado de nuvens que lhe serve de peanha – é dissonante mas não por isso descabida: ela representa precisamente
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uma mudança de gosto, uma abertura a outros ambientes artísticos, nomeadamente àquele francês, que começaria a ser introduzido por acção de Filipe V e encontraria particular expressão no complexo da Granja de Santo Ildefonso.
III. A expressão do sofrimento e a morte O sofrimento, a dor, a que o próprio título alude, é uma constante e perpassa por quase todas as obras em mostra, remetendo e aludindo inevitavelmente à morte, constituindo‑se a figura de Cristo como o centro do discurso. Para a construção desse discurso contribuem diversas esculturas e desde logo o S. João Evangelista e a Virgem, pertencentes a um Calvário (de autor castelhano desconhecido do segundo quartel do século xvi), que tornam presente essa ausência. Sem que se façam acompanhar da cruz e de Cristo
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crucificado, estas figurações do apóstolo preferido e da sua mãe, obrigam o observador a visualizar o que não está representado, lembrando o observador que Ele está sempre presente. A intensidade do discurso alimenta ‑se também da figura do Carrasco, de Gregório Fernández, que nos conduz ao Ecce Homo de Pedro de Mena, verdadeira personificação do sofrimento e da imensa humildade do Filho de Deus, e recorda as palavras de outra voz do Século de Ouro espanhol, S. João da Cruz: “Matando, muerte en vida la has trocado.” (La Llama de Amor Viva). O discurso da dor culmina no Cristo Crucificado de Juan de Juni (c. 1507‑1577), que se pode apreciar logo na primeira sala. Datável de cerca de 1550, trata‑se todavia de uma obra pioneira do gosto e da maneira do barroco e interpreta magistralmente o duplo significado desta tipologia iconográfica: o comoven-
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te drama da morte de um homem e a imensa glória do Filho de Deus – “En la cruz está la gloria, y el honor, Y en el padecer color, Vida y consuelo” (Santa Teresa de Ávila, La Cruz). Todas estas esculturas, todos estes corpos de dor, que se assumem sobretudo como a morada da alma, para mantermos presentes as palavras de Santa Teresa, convocam o observador para uma comunhão dos sentimentos e das experiências de Cristo, da Virgem e dos Santos. Esta exposição, permite a vivência dessa paz inquieta que a grande escultura proporciona, talvez porque, e recorrendo agora às palavras de Marguerite Yourcenar, nos recorda de forma intensa que as atitudes imóveis das estátuas nos ensinam a apreciar os gestos.
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Teresa Leonor M. Vale Instituto de História da Arte, FL/UL
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Pintura de los Reinos. Identidades compartidas en el mundo hispánico (exposição). Museu do Prado, Outubro 2010 – Janeiro 2011 Pode dizer‑se que, como na generalidade dos museus nacionais centrais (o Louvre, o British Museum, o Kunsthitorisches Museum, o Museu Nacional de Arte Antiga), a missão do Museu do Prado consiste na preservação da memória artística do seu país. Neste caso, esse pais é Espanha, uma realidade política que ganhou os contornos que hoje mantém (sensivelmente) nos últimos anos do século xv, por meio de duas conquistas – a do reino muçulmano de Granada, e a do mar, em direcção ao Novo Mundo –, ambas ocorridas no mesmo ano de 1492. A história da origem e posterior consolidação da frágil realidade que Espanha ainda foi durante muito tempo teve, portanto, a expansão territorial (que incluiu ainda várias outras partes da Europa) como traço absolutamente definidor. Este traço essencial (isto é, “que está na essência mesma”), contudo, é praticamente invisível para o visitante do Museu do Prado que avança de sala em sala, deslumbrado sobretudo pela magnífica colecção de pintura de produção metropolitana. Quem se deslocar ao museu com o propósito específico de visitar a memória artística do passado ultramarino do país – longo de mais
de 500 anos e que ainda hoje perdura, por exemplo, no enclave magrebino de Ceuta – praticamente só o encontra se se lembrar que Sevilha, berço de alguns dos mais importantes pintores espanhóis, esteve no centro desse passado imperial. Algumas das telas encomendadas para decorar o Salon de Reinos, no palácio do Buen Retiro, também celebram vitórias militares espanholas (e até uma luso‑espanhola, a reconquista
da cidade brasileira da Bahia em 1625, numa tela de Juan Bautista Maino) em palcos extra‑europeus. Para além disso, quase mais nada. Na capital espanhola, a herança visual do império está relegada para o Museo de America, detentor de uma bela colecção, mas periférico na geografia (real e simbólica) de Madrid, de difícil acesso e que permanece, portanto, desconhecido da maioria dos visitantes.
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A exposição Pintura de los Reinos procurou resgatar uma parte dessa memória, e quis fazê‑lo nos lugares onde poderia ter maior impacto: o Museu do Prado e o Palácio Real 1. Ao longo de várias salas distribuídas entre os dois locais, e através de mais de uma centena de telas e duas publicações, esta exposição trouxe a Madrid uma amostra significativa da paisagem pictórica que, nos séculos xvi e xvii, podia ser vista nos territórios americanos que então faziam parte do império espanhol. A fixação espanhola no continente americano deu origem a um novo universo de oferta e procura artísticas que começou por ser alimentado por obras de origem europeia, pintura e gravura, espanhola e não só. Nascia assim também um novo mercado para os artistas europeus, alguns dos quais rumaram ao Novo Mundo espanhol, vindos de Espanha, claro, mas também de Itália e do Norte da Europa: foram os casos de Andrés de Concha (de Sevilha), de Baltasar de Echave Orio (do País Basco) e de Symon Pereyns (de Antuérpia), todos a trabalhar no México, ou do italiano Bernardo Bitti, este com obra no Perú, entre muitos outros. Entre obras e um saber‑fazer importados da Europa, foi‑se formando nos territórios da monarquia espanhola uma paisagem visual rica e densa, desenvolvida de mãos dadas com a própria empresa imperial (nas suas múltiplas dimensões política, religiosa, social, económica), de que dão conta os primeiros núcleos da dupla exposição. Com o tempo, a obra e a experiência acumuladas deram origem a um universo artístico próprio que nos finais do século xvi se pode já dizer autónomo.
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Os expedientes de importação permaneceram válidos e, em pleno século xvii, darão origem a alterações na paisagem pictórica muito influenciadas pelas propostas naturalistas dos pintores quer sevilhanos quer caravaggescos, assim como, pouco depois, pela exuberante linguagem de Rubens e dos seus seguidores. Estas são as identidades partilhadas de que nos fala esta exposição, aquelas em que esta mostra mais insiste. Ao mesmo tempo, desenvolvem‑se linguagens próprias, variações locais chama‑lhes o comissário, resultantes da selecção e combinação de influências de origens várias, trabalhadas em resposta às circunstâncias específicas do contexto de produção local, materiais, humanas, políticas, religiosas, sociais, culturais. Podiam ser evocados muitos exemplos mas talvez a obra de Cristóbal de Villalpando (que inclui uma série de telas de enormes dimensões de sabor rubenesco mas claramente pertencentes a outro universo) seja suficientemente paradigmática. Acrescenta‑se assim um capítulo maior à história da cultura visual dita barroca. Curiosamente, esta exposição tornou ‑se já num exercício de alguma maneira impossível. Ela própria, assim como as duas publicações que a acompanham, são o produto imediato (passo o paradoxo) de mais de uma década de lento e paciente trabalho preparatório que envolveu investigadores no México, Perú e Estados Unidos (entre outros). Por detrás do trabalho desta década, estão várias outras de investigação distribuída de forma desigual pelos vários países focados. Destes, o que tem a tradição académica mais antiga e consolidada nesta área é o México onde
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A exposição seguiu depois para a Cidade do México, onde esteve patente no Palacio de Cultura Banamex, entre Março e Agosto de 2011. 1
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se tem vindo a desenvolver trabalho muito relevante desde os tempos de Manuel Toussaint (n. 1890) e também desde então organizado sobretudo em torno do Instituto de Investigaciones Estéticas da Universidad Nacional Autónoma de Mexico (UNAM). Hoje o México conta com um sólido corpo de profissionais e respectivas instituições (académicas e museus) que, no que diz respeito aos tempos coloniais, não tem paralelo na América Latina. O Perú e a Bolívia são talvez os outros dois países americanos de expressão espanhola onde o universo da investigação se encontra mais consolidado. No Perú, a figura patriarcal foi Cossio del Pomar (n. 1889), o criador da expressão Escola de Cusco. Na Bolívia pontuam José de Mesa e Teresa Gisbert. Mais esparso, o universo da investigação na Colombia, Equador, Argentina ou Venezuela, por exemplo, tem contudo vindo a dar sinais recentes de uma vitalidade crescente. Simultaneamente,
nas últimas duas décadas, o interesse da academia norte‑americana pela arte da América espanhola colonial tem vindo a aumentar exponencialmente, multiplicando‑se a oferta de publicações, exposições e programas académicos num crescimento que não dá sinais de abrandamento. Não é acidental que o comissário desta exposição seja um norte‑americano, Jonathan Brown. Por tudo isto, esta exposição é simultaneamente a primeira e talvez também a última grande síntese sobre a matéria a ter lugar na Europa. Aqui, esta arte não tem atraído quase atenção nenhuma e permaneceu, até esta exposição, mais do que desconhecida, essencialmente ignorada. Grande parte da sua importância consiste precisamente em dar a ver (isto é, dar a conhecer) à Europa uma parte importante da sua história visual. Contudo e ao mesmo tempo, aquilo que falta nesta exposição (e, naturalmente, falta muito, desde as áreas geográficas que não foram contempla-
das, a motivos iconográficos que não foram incluídos, assim como tipos de obras que não figuraram) mostra que o conhecimento actualmente disponível sobre a cultura visual destes antigos territórios espanhóis já não se compadece com exercícios de síntese. Já sabemos demais, o campo já está para lá deste tipo de discurso. E ainda bem. Esta exposição cumpriu uma missão importante e difícil. Agora é tempo de seguir em frente. Em Portugal (ao contrário do que acontece em Espanha), o universo visual dos antigos territórios com os quais o país teve contacto tem sido objecto de uma atenção crescente nas últimas décadas. Tem‑se ainda insistido, contudo, na visão sintética de que a recente exposição Encompassing the Globe (MNAA, 2009) retomou. Parece também ser tempo de seguir em frente.
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Nuno Senos Centro de História de Além-Mar, FCSH/UNL
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A Perspectiva das Coisas: A Natureza ‑Morta na Europa Fundação Calouste Gulbenkian, de 21 de Outubro de 2011 a 8 de Janeiro de 2012
Num momento de retracção económica em que a cultura tem sofrido parti cular desinvestimento, esta exposição, da iniciativa da Fundação Calouste
ulbenkian, assume, por isso, ainda G mais prepronderância. Não só pela sua complexa organização, com obras vindas de diversas proveniências e partes do mundo, o que representou certamente um empenho financeiro significativo, mas também pela representação de artistas cuja produção raramente passa por Portugal. A ambição deste projecto manifesta-se igualmente no facto de se ter optado por realizar duas exposições, em vez de juntar apenas numa uma retrospectiva da natureza-morta desde o século xvii à primeira metade do século xx.
Organizada por comissários diferentes (Peter Cherry a primeira mostra e Neil Cox a segunda), A Perspectiva das Coisas: A Natureza-Morta na Europa tem como base um trabalho de investigação e análise pessoal, que expõe, deste modo, uma visão da produção artística ocidental a partir de um dos géneros clássicos da pintura. Ambos os comissários concordam que os impulsos e as dinâmicas artísticas e culturais por detrás da produção de Naturezas-Mortas nos séculos xvii e xviii e nos séculos xix e xx (os dois períodos analisados pela primeira e pela segunda
Fig. 1 – Vista da primeira parte da exposição A Perspectiva das Coisas, séculos xvii e xviii, com pintura de Rembrandt, Pavoas Mortas (c. 1639) em primeiro plano. © Carlos Azevedo
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mostras respectivamente) são bastante diversos para poderem ser associados. Na realidade, Cherry e Cox consideram que há uma cisão entre ambos os núcleos, que é também marcada pela História, pela Filosofia e pela Tecnologia. Porém, como nos apercebemos através da presente exposição, e também do seu catálogo, o sentido de ruptura não é assim tão literal, pois permanecem continuidades em relação ao primeiro período, que se enredam, contudo, quer no século xix, quer no século xx, num ambiente de questionamento e experimentação. Tanto na primeira, como na segunda exposição, o que está em causa, para além do tema da Natureza-Morta e da representação da realidade, é a própria pintura. O modo como a pintura remete para si própria quando aborda a realidade, através das convenções específicas que procuravam também reinventar e mesmo corrigir o real, realçando o virtuosismo do pintor, ocupa lugar especial na reflexão de Cherry sobre este género. A actual exposição narra os novos desenvolvimentos da pintura, após a sua ruptura com o conceito de mimesis, mas vai também generalizar o tema da Natureza-Morta aos movimentos anti-académicos dos séculos xix e xx, diversificando, deste modo, os media artísticos apresentados. A distinção entre as duas exposições e, portanto, entre as duas «perspectivas» sobre a Natureza-Morta, encontra-se também bem definida pela montagem museográfica, que foi concebida, nas duas mostras, por Mariano Piçarra. A primeira – a sala obscurecida com os focos de luz centrados nas obras – revelava, como se penetrassemos numa
gabinete de curiosidades, o espectáculo de ilusão das composições e acentuava o seu dramatismo. A luz era um elemento fundamental na concepção destas pinturas, sendo também determinante para o desenvolvimento da tecnologia fotográfica a partir da câmara obscura. Esta sugestão encaminha-nos para a segunda parte de A Perspectiva das Coisas, pois, para Neil Cox, a fotografia, reconhecida agora como dispositivo autónomo de captação do real, é o ponto de partida conceptual e cronológico desta exposição: «a fotografia sujeitava a vocação da “natureza-morta pura” a um novo teste, no qual desaparecia gradualmente a missão de representar a mera riqueza do elemento visual, e possivelmente grande parte dos seus níveis de significação»1. Assim, o óculo fotográfico (como um novo olhar sobre a natureza e a sua representação) encontra-se simulado logo no início da exposição, focando a obra de Cézanne, e também no núcleo dedicado à fotografia, contido numa caixa negra (câmara obscura) que domina o espaço expositivo. A própria montagem museográfica predispõe, portanto, o visitante para um jogo de sentidos e de olhares sobre visível. Nesta exposição a Natureza-Morta é abordada através de diversos núcleos temáticos. Tendo como marcação dos extremos da mostra (que tanto podem ser o seu início como o seu fim) duas pinturas, de Paul Cézanne e de William Nicholson, a visita pode prosseguir em qualquer direcção. O percurso circular que acaba por ser delineado pelo movimento do visitante permite apreciar as principais tendências da arte europeia, desde 1840, data da fotografia de Hippolyte
Introdução de Neil Cox no catálogo da exposição - «A questão das coisas», p. 17 1
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Bayard, marcando o desenvolvimento do dispositivo fotográfico, até 1955 (ano da morte de Calouste Sarkis Gulbenkian e de uma das pinturas de Morandi). No entanto, a arrumação dos núcleos (que não se encontram numerados e portanto sequenciados) não responde a um critério cronológico mas antes a uma preocupação em analisar o modo como um género da Pintura, considerado menor pela Academia, serviu, por um lado, como actualização da tradição pictórica, que tem como principal referência a obra de Chardin, e, por outro, de campo de experimentação para uma nova abordagem da prática artística. Os movimentos artísticos representados, agrupam-se, assim, através das alterações que imposeram à tradução dos objectos para o campo da arte, dialogando entre si. No núcleo dedicado à «Natureza-Morta enquanto forma», reunem-se os trabalhos dos Impressionistas e dos seus «descendentes», que, contrastando com a prática académica, passaram a captar os objectos em
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ambiente natural, apreciando as metamorfoses que a luz neles impunha. Ainda nesta fase da exposição, a pintura de Van Gogh, Ramos de castanheiro em flor (1890), enfrenta a pintura de Cézanne Natureza-morta com maçãs (c. 1877-1878), traduzindo dois caminhos possíveis para o desenvolvimento da pintura. As questões da «Estrutura e espaço» colocam-nos, assim, perante a herança cézanniana, introduzindo-nos nas vanguardas do início do século xx, neste caso no Cubismo. Mas a questão colocada neste núcleo estende-se das decomposições espaciais de Juan Gris, Picasso e Braque, ao classicismo de Morandi, que recupera uma certa essencialidade que as maçãs de Cézanne manifestavam, retirando, contudo, o concretismo aos objectos, que se afirmam sobretudo como pintura. As vanguardas são recuperadas mais à frente na exposição, agora diversificando geografica e tecnicamente as obras apresentadas, mas fazendo-as dialogar
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Fig. 2 – Núcleo «Jogos de relações: a natureza-morta enquanto forma» em primeiro plano, com pinturas de Cézanne, Monet e Van Gogh. © Mariano Piçarra
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através das soluções encontradas para aprofundar a representação das coisas e para explorar a própria materialidade dos objectos. A realidade como fenómeno está presente na pintura de Boccioni, enquanto que Braque insere na tela elementos estranhos que ao mesmo tempo materializam a realidade e a transfiguram, impondo um simbolismo que o título associa a Bach. A mesma transfiguração da realidade banal em arte encontra-se nas esculturas (reconstruídas) de Tatlin e mais adiante no Porta-garrafas de Duchamp. Nesta exposição, a apresentação desta obra cita a forma como Duchamp dispunha os seus ready-made no seu atelier – o Porta-garrafas está suspenso, deixando apenas no possível plinto a sua sombra, o que estetiza ainda mais um objecto que antes fora utilitário. Circulando mais uma vez pela exposição, encontramos essa apropriação da máquina e dos produtos industriais, agora numa celebração da vida moderna. A pintura de Theo van Does-
burg impõe uma dissecação essencial dos objectos. As suas formas circulares podem remeter para o movimento que decompõe e abstractiza a realidade. Esse mesmo efeito é produzido nos filmes exibidos, de Hans Richter, Man Ray e Fernand Léger, que representam, para além de um novo media artístico, o modo como a tecnologia alterou a percepção da realidade. A fotografia é também um outro início possível desta exposição, representando neste período inicial de desenvolvimento um mecanismo mecânico e purificado da intervenção directa do Homem. O lugar que veio ocupar no registo do real é determinante para a pintura. Mas aqui trata-se também de apreciar como estes dois media (pictórico e fotográfico) se influenciaram mutuamente: das primeiras experiências fotográficas, em que a Natureza-Morta, pela sua imobilidade, tornou-se tema privilegiado (Hippolyte Bayard), até uma encenação copiada da pintura tradicional do tema (Charles Aubry e Adolphe Braun).
Fig. 3 – O Porta-garrafas de Duchamp no lado direito, com núcleo de fotografia ao centro e pinturas de Mário Eloy e Eduardo Viana. © Mariano Piçarra
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Nos núcleos que acabei de referir somos confrontados com o próprio percurso da produção artística, construindo-se, de certa forma, uma narrativa da História da Arte a partir da Natureza-Morta. Mas a exposição incorpora ainda conjuntos temáticos que interrompem este discurso e que têm como base uma expressão pessoal. É o caso do núcleos «Exílios e outros…» e «Modernismos: identidades nacionais e a atracção de Paris». Também no núcleo «Da cena de caça ao horror» identificamos uma simbólica particular relativa ao sofrimento e privações
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decorrentes da II Guerra Mundial. É, portanto, a experiência individual que determina, nestas obras, o tratamento da Natureza-Morta, dependente, no caso dos «Exílios», do lirismo de van Gogh, Gauguin, Odilon Redon, Matisse e de Pisis ou da atracção pela sensualidade e simbolismo dos objectos, como demonstram as obras de Henri Rousseau, Emil Nolde ou Max Beckmann. No segundo núcleo mencionado, os «modernismos» par tem também de experiências pessoais, mais concretamente da reflexão sobre os teste-
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Fig. 4 – Perspectiva da exposição a partir do «gabinete» de fotografia até ao núcleo «Negociar a tradição». © Mariano Piçarra
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munhos visuais e materiais de uma identidade cultural. É neste questionamento que os artistas portugueses encontram espaço. Amadeo de Souza-Cardoso, Eduardo Viana, Vieira da Silva ou Mário Eloy acabam por integrar esta exposição pela via de um certo regionalismo que as suas composições poderão exprimir e pela influência que a arte produzida em Paris exerceu sobre eles (não sendo, porém, este último factor totalmente verificável no caso de Eloy). A Historiografia da Arte em Portugal tem aqui, na sequência da
exposição realizada também na Fundação Calouste Gulbenkian, Amadeo de Souza-Cardoso: Diálogo de vanguardas (2006-2007), mais uma perspectiva sobre a integração do Modernismo português no movimento modernista internacional. Tendo como espaço geográfico a Europa, esta exposição centra-se, de facto, no contexto artístico da capital francesa, apesar de se encontrarem representados artistas de várias nacionalidades (da Rússia a Portugal). Uma alternativa à sua organização seria a distinção em
diferentes núcleos dos vanguardismos franceses, russos, italianos ou alemães. Esta leitura acabaria por impor um percurso linear (e simplista), quando, na exposição de Lisboa, estamos perante uma outra proposta de análise que se faz por um caminho circular, em que retornamos, em determinados momentos, à tradição e significação da Natureza-Morta dos séculos xvii e xviii (e isso é perceptível nos núcleos que se encontram nos extemos opostos da exposição, «Negociar a tradição…» e «Da cena de caça ao horror»). Assim se apresenta a Natureza-Morta como género que mantém a sua identidade para além da destabilização que sentiu no século xx, enquanto «laboratório» das vanguardas. Esta intenção de manifestar as diferentes facetas do tema da exposição, reflecte-se também na abordagem do conceito de realidade. A Perspectiva das Coisas começa e termina com uma interrogação sobre a nossa capacidade de apreender o real. Penetramos no outro lado do espelho com a dúvida sobre o que vemos realmente e se vemos o que nos rodeia do mesmo modo (e não podemos esquecer que nesta actividade também pode contar o subconsciente, segundo a teoria freudiana, tão influente também na arte). Assim, os espelhos à entrada, com os seus reflexos equívocos, e a frase de Morandi no fundo da sala, mantêm-nos alerta para a seguinte proposição: «não existe nada mais surreal, nada mais abstracto do que a realidade».
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Leonor de Oliveira Instituto de História da Arte, FCSH/UNL, linha de Museum Studies Bolseira de Doutoramento da FCT (SFRH/BD/45440/2008)
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A Capela de São João Baptista como obra de arte total Encomenda e construção A Capela de São João Baptista constitui uma das mais mediáticas empresas do reinado de D. João V, o Magnânimo. Monarca interessado em apresentar, através de um plano cultural, a imagem de um estado renovado e requintado que em nada ficava atrás das principais potências europeias da época, promove um vasto programa de encomendas para grandiosos projectos arquitectónicos e obras de arte, entre os quais a Capela de São João Baptista1. Considerada uma obra‑prima no contexto da arte europeia do século xviii, a sua construção teve lugar entre 1742 e 1747, obedecendo a um rigoroso programa arquitectónico e estético que incluía, além da capela, projectada por Luigi Vanvitelli e Nicola Salvi, peças de
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culto e ornamentais do mais puro gosto romano. Contribuíram para a sua construção uma variedade de artistas de diversos ramos de actividade. A Corte portuguesa seguiu de perto a elaboração do projecto, através de João Frederico Ludovice, ourives e arquitecto natural de Hohenhart que trabalhou em Roma, para a Companhia de Jesus, antes de vir para Portugal. Sagrada a 15 de Dezembro de 1744 pelo Papa Bento XIV, na Igreja de Santo António dos Portugueses, foi ali armada para a celebração da Missa papal em 6 de Maio de 1747. Nesse mesmo ano foi desmontada e transportada para Lisboa em três naus, sendo seguidamente montada no espaço da antiga Capela do Espírito Santo da igreja jesuíta de São Roque. O assentamento da capela foi da responsabilidade de Francesco Feliziani e Paolo Riccoli, bem como do escultor Alessandro Giusti (1715‑1799), trabalho que ficou concluído em 1752, dois anos após a morte de D. João V. A sua colecção de ourivesaria é definida como o culminar da arte barroca do ouro e da prata, que atinge um aperfeiçoamento jamais alcançado 2 , estando,
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António Filipe Pimentel, “A Capela de São João Baptista – política, ideologia e estética”; Teresa Leonor Vale, “Do carácter único da colecção de ourivesaria”; Magda Tassinari, “A colecção têxtil”. In Museu de São Roque, catálogo da exposição permanente. Lisboa: Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, 2008. Para este assunto cfr. Maria João Madeira Rodrigues. 1988. A Capela de S. João Baptista e as suas colecções. Lisboa: Edições Inapa (última monografia dedicada à Capela de São João Baptista). 1
Jenniger Montagu. 1996. Gold, Silver and Bronze. Metal Sculpture of the Roman Baroque. New Haven‑Londres: Yale University Press. 2
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por esse motivo, na origem da própria criação do Museu de São Roque (1905) e assumindo, uma importância fulcral neste espaço museológico.
Caracterização e singularidade Espaço ricamente decorado de mármores de cor e aplicações ígneas que se insere no barroco‑romano, ainda que integre inovações plásticas de retoma classicista, a Capela de S. João Baptista, impõe ‑se como uma obra de elevada qualidade inventiva, valor material e rigor técnico. Dos materiais nela utilizados constam, para além de diversos tipos de mármores ou pedras ornamentais, ornatos em bronze dourado, bem como marchetaria de madeiras preciosas e marfim. Integram ainda a capela painéis de mosaicos embutidos figurando o Baptismo de Cristo, a Anunciação e o Pentecostes, da autoria de Mattia Moretti, segundo cartões fornecidos pelo pintor Agostino Masucci, sendo Enrico Enuo o autor do mosaico do pavimento. Tudo revela
um rigoroso programa de arquitectura; o uso de colunas de fustes direitos estriadas de filetes dourados sobre fundo em lapis‑lazuli e, ainda, a decoração constituída por festões, grinaldas, querubins, ilustram bem o conjunto de inovações introduzidas por esta capela na tradição decorativa portuguesa. Para além dos arquitectos Salvi e Vanvitelli, outros trabalhos foram encomendados a ourives, escultores e bordadores romanos que conceberam peças exclusivamente destinadas ao culto litúrgico e à ornamentação da real capela. O reconhecimento internacional da importância desta capela tem sido testemunhado por estudos que lhe têm sido dedicados por reputados especialistas nacionais e internacionais, assim como pelo interesse demonstrado pelos mais relevantes museus a nível mundial com o objectivo de ilustrar o que melhor se fez na Europa e no mundo no quadro da arte sacra no período barroco. O profundo interesse por esta jóia de arquitectura e suas colecções foi recentemente
comprovado pela presença de um significativo conjunto de peças na exposição 1620‑1800 Baroque, Style in the Age of Magnificence, apresentada ao público, em 2009, no Museu Victoria & Albert, em Londres, com o propósito de abordar e dar a conhecer a forma como o barroco se manifestou no mundo nas suas múltiplas expressões. No núcleo dedicado aos espaços sagrados, através do vasto conjunto de peças de origem italiana pertencentes ao tesouro da Capela de São João Baptista, recriou‑se o altar da Igreja Católica Barroca, contextualizando‑se o teor social e político desta encomenda na qual o monarca português empregou avultadas quantias destinadas a arquitectos, mestres pedreiros, especialistas em decoração de pedras duras, marceneiros, bordadores, vidreiros e esmaltadores para criar o que havia de mais esplendoroso na ornamentação de espaços sagrados da época. Este conjunto evidenciava‑se claramente na exposição como a apoteose das artes do ouro e da prata no cenário internacional.
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O projecto de conservação e restauro Com o decorrer do tempo, as condições ambiente do interior da igreja de São Roque potenciaram a oxidação e escurecimento dos materiais de revestimento que ornamentam a Capela de São João Baptista. A primeira intervenção de conservação nela efectuada foi realizada na segunda metade do século xx, através de trabalhos de limpeza nas paredes e de consolidação de ornatos metálicos que, todavia, não obtiveram resultados satisfatórios. A partir de 2007, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa deu início a um processo de análise rigoroso do estado de conservação dos revestimentos que integram a capela, concedendo prioridade àqueles que se encontravam mais deteriorados, nomeadamente as composições em mosaico. Para o efeito, foi solicitada a colaboração do Professor Carlo Stefano Salerno, do Instituto Central do Restauro de Roma (ICRR), especialista em mosaicos vítreos do século xviii, que procedeu à análise de pequenas amostras de mosaicos através
da Estação Experimental de Vidro de Murano (Veneza). Os resultados laboratoriais foram apresentados na II Conferência Internacional Glass Science in Art and Conservation, em Março de 2008, na cidade de Valência e publicados, em Dezembro do mesmo ano, no Journal of Cultural Heritage 3 . Após a realização deste estudo foi ponderada a concretização de uma intervenção mais alargada ao nível das composições em mosaico, não só nos três painéis parietais, mas também no pavimento da capela, tendo em conta o seu avançado estado de deterioração. Assim, em Agosto de 2009, uma equipa de técnicos italianos da firma Donatella Pitzazis, coordenada pelo Professor Carlo Stefano Salerno, procedeu à realização de sondagens ao nível do pavimento. Com o objectivo de aferir qual a melhor metodologia de intervenção, nesta ocasião realizaram‑se testes de limpeza nas zonas das composições parietais onde se encontravam alterações cromáticas decorrentes de reacções químicas às condições ambientais.
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Atendendo à diversidade de materiais que compõem o revestimento decorativo desta capela e com o intuito de se procurar uma intervenção mais ampla e integrada, foi celebrado em 2009, um acordo de cooperação entre a SCML e o Instituto dos Museus e da Conservação (IMC) com a perspectiva de envolver este Instituto e o seu Laboratório 4 na coordenação do restauro nas áreas da pedra e do bronze. Em Novembro de 2010, iniciaram‑se os trabalhos de conservação e restauro nos elementos pétreos e metálicos da capela, com uma equipa de conservadores ‑restauradores, coordenados pela técnica do IMC, Dra. Belmira Maduro. Em Setembro de 2011, após a realização de um levantamento do estado de conservação do revestimento marmóreo e do bronze, deu‑se início ao restauro dos painéis parietais e do pavimento pela firma Conservazione e Restauro di Opere d’Arte e Beni Culturali ENRICO MONTANELLI, com a coordenação técnico‑científica do Professor Carlo Stefano Salerno, tendo, neste âmbito, sido celebrado, em Novembro de 2011,
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um protocolo de estágio curricular com a Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (UNL), através do seu Departamento de Conservação e Restauro e sob a orientação científica da Unidade de Investigação VICARTE, em cujo plano de estudos se incluiu a caracterização físico‑química dos mosaicos, bem como dos produtos de degradação. A investigação derivada deste trabalho permitirá não só a caracterização de uma obra singular no panorama artístico português, como o seu enquadramento na construção italiana de mosaicos de vidro da época barroca.
Estudo e divulgação Tendo a Capela de São João Baptista já sido objecto de grande atenção por parte de autores portugueses e estrangeiros cujo elenco não cabe aqui referir, as novidades que têm vindo a ser descobertas no campo da historiografia da arte justificaram a realização de um estudo historico‑artístico sobre a Capela de São João Baptista e as suas Colecções, o qual, a ser editado em 2013, resulta do trabalho desenvolvido por parte de reputados historiadores da arte de diferentes áreas de actividade. O estudo da encomenda, da arquitectura e da pintura foi confiado a António Filipe Pimentel e a área da escultura, dos metais e da ourivesaria, a Teresa Leonor Vale. Já a componente dos mosaicos foi entregue a Carlo Stefano Salerno, a colecção têxtil a Magda Tassinari e a colecção das rendas a Marialuisa Rizzini. A natureza dos trabalhos de restauro realizados na capela justificam,
pela sua especificidade, a edição de uma publicação que documente todo o processo de restauro, contribuindo, desta forma, para o conhecimento das técnicas, materiais e metodologias utilizadas no domínio da requalificação do património. Com o objectivo de divulgar este programa cultural, na sua globalidade, cujo tópico de referência assenta nas relações Lisboa – Roma na época de D. João V –, o qual podemos qualificar como um projecto grandioso e exigente, pela sua pluridisciplinaridade e abrangência, prevê‑se a realização, após a requalificação da Galeria de Exposições Temporários do Museu de São Roque, de uma exposição temporária que, comissariada pelo Professor Doutor António Filipe Pimentel, pretende reunir no Museu de São Roque, obras directamente relacionadas com a construção da Capela de São João Baptista, dispersas por diversos museus e colecções, nacionais e internacionais. Esta exposição aspira dar a conhecer a relevância que a Capela de São João Baptista ocupa na esfera do Barroco e a forma como foi estabelecido o diálogo entre a corte portuguesa e a cidade pontifícia. Deste fenómeno resultou uma das mais exuberantes obras de arte sacra do século xviii que, colocada ao serviço da Igreja Católica, marcou profundamente a evolução das tendências artísticas no Portugal de Setecentos
Carlo Stefano Salerno, Cesare Moretti, Teresa Medici, Teresa Morna, Marco Verità, “Glass weathering in eighteenth century mosaics: The São João Chapel in the São Roque Church of Lisbon”, June 2008, Elsevier Masson SAS. 3
Laboratório de Conservação e Restauro José de Figueiredo. 4
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Teresa Freitas Morna Museu de São Roque / Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
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Instituto de História da Arte (FCSH|UNL) integra RIHA – International Association of Research Institutes in the History of Art A internacionalização da história da arte portuguesa é um dos objectivos mais relevantes do IHA. Estamos seguros de que é hoje, cada vez mais, necessário trabalhar em articulação com núcleos de investigação de outros pontos do mundo e trazer para o campo disciplinar uma base de investigação apta a estabelecer relações e criar sinergias de nível internacional. Nesse sentido o IHA promoveu, no decurso deste ano, a sua integração na mais importante rede de institutos de investigação científica no domínio da história da arte sediada na Europa. Desde Setembro de 2011 o IHA pertence, pois, à RIHA – International Association of Research Institutes in the History of Art, de que fazem parte, entre outros, a Biblioteca Hertziana – Max‑Plank – Institut für Kunstgeschiche (Roma), o Courtauld Institute of Art (Londres), o Warburg Institute (Londres), o INHA (Paris), o Institut royal du Patrimoine artistique (Bruxelas), o Visual Arts Research Institute (Edimburgo), o Zentralinstitut für Kunstgeschichte (Munique), o Schweizerisches Institut für Kunstwissenschaft (Zurique), o Research Institute for Art History of the Hungarian Academy of Sciences (Budapeste), a Kommission
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http://www.riha‑institutes.org/ 27 de Novembro de 2011
für Kunstgeschichte of the Austrian Academy of Sciences (Viena), o Centre allemand d’histoire de l’art (Paris), mas também, vindos do outro lado do Atlântico, o Center for Advance Studies in the Visual Arts (Washington, DC), o Clark Institute (Williamstown, MA) e o Getty Research Institute (Los Angeles). Mantém ainda contacto assíduo com a sua congénere norte americana, a ARIAH – Association of Research Institutes in Art History, onde muitos outros institutos dos EUA e do Canadá estão inscritos. A RIHA (http://www.riha‑institutes. org/) foi criada em Paris em 1998 com o duplo objectivo de promover (1) a formação e a pesquisa no campo da história da arte e das disciplinas que com ela se relacionam, e (2) a cooperação entre os institutos por via da intensificação da circulação de informação, quer ao nível de actividades científicas e administrativas, quer ao nível de projectos de pesquisa concretos. Procura mesmo,
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por extensão deste último ponto, encorajar a realização de projectos conjuntos entre os quase 30 institutos que a integram. Tem, para além disso, nos últimos anos, centrado grande parte da sua actividade e potencial de influência em dois eixos fundamentais: o combate ao cerco apertado dos copyrights na utilização de imagens em publicações científicas (veja‑se a resolução assinada na assembleia geral da RIHA em Roma em 2008: http://www.riha‑institutes.org/ resolutioncopyright.html) e o combate ao tendencial predomínio da avaliação bibliométrica no domínio da investigação científica em história da arte de alguns anos a esta parte. Nos dias 11 e 12 do passado mês de Novembro a RIHA reuniu em assembleia geral em Praga (Républica Checa). Nesta reunião, em que a adesão do IHA (e do Power Institute de Sydney) ao conjunto dos institutos da rede foi formalizada, ficaram definidos os termos da
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http://www.riha‑journal.org/ 27 de Novembro de 2011
publicação (e disseminação) da resolução relativa à aferição de qualidade da produção científica em história da arte, intitulada Measuring quality in art history. Trata‑se de um documento saído de deliberações produzidas nas últimas assembleias anuais da RIHA e desenvolvido no decurso do worhshop Measuring quality patrocinado pelo Clark Institute em Junho de 2011. Em causa está a ideia de que a indispensável aferição da qualidade do trabalho científico não pode ficar exclusivamente a cargo dos critérios bibliométricos (e da putativa objectividade que oferecem). Como se lê no preâmbulo do documento: “As with any discipline, assessment of scholarship in the humanities must include attention to quality, rigor and accuracy of information as well as produce effective results. Yet in contrast to the natural sciences, which focus primarily on the most recent discoveries and often have a built‑in obsolescence, scholarship
in the humanities has different goals and temporalities. Assessment of impact must therefore take into account the longer time scale of the measurable influence of humanities research, the limits of prediction and prognosis, and the possibilities for employing critical methods that are specific to the humanities context.” A RIHA tomou assim uma posição que confere maior protagonismo aos processos de peer‑review. A defesa do processo de revisão por pares como “still the most effective means of judging quality and impact for work in art history”, não significa porém que a RIHA não lhe reconheça algumas limitações. Precisamente por isso, esta resolução apresenta uma série de princípios e normas de boas práticas aptas a minimizar os seus possíveis impactos negativos, como favoritismos institucionais e de género, ou resistência à inovação em benefício do status quo. Este importante documento vem ao encontro de preocupações centrais
do IHA que com ele inteiramente se solidariza. Para além do compromisso assumido em Praga, em Novembro último, de divulgação do seu conteúdo na página web do Instituto, esta solidariedade traduz‑se ainda pela afinação dos critérios de peer‑review da própria Revista de História da Arte. Isto é, consolidando um conjunto de orientações anteriormente definidas, a Revista de História da Arte aproxima‑se, por ventura agora ainda mais assertivamente, dos princípios que pautam a publicação do próprio RIHA Journal (http://www. riha‑journal.org/), de cujo o núcleo de editores o IHA passou a fazer parte, privilegiando, entre outros aspectos, a clareza dos critérios de revisão, a reserva da identidade dos autores (blind review) e a diversidade do corpo de revisores.
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Joana Cunha Leal Instituto de História da Arte, FCSH/UNL
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Congresso Internacional sobre Arquitectura e Cultura do Século XVIII “Books With A View”– 23 a 25 de Novembro de 2011
O Congresso Internacional sobre Arquitectura e Cultura do século xviii “Books With a View”, decorreu entre 23 e 25 de Novembro, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Organizado em parceria pelo Instituto de História da Arte, Centro de História da Cultura da FCSH/UNL, e pelo Centro de Investigação em Arquitectura, Urbanismo e Design da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, o congresso tinha como principal objectivo celebrar os trezentos anos sobre o nascimento de Eugénio dos Santos (1711‑1760), arquitecto e engenheiro,
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responsável pelo plano de reconstrução da cidade de Lisboa após o terramoto de 1755. Através da leitura da biblioteca particular de Eugénio dos Santos, pretendeu ‑se ao longo de três dias reflectir sobre a época e as várias disciplinas, que o conjunto de livros do arquitecto retrata. Books With a View, centrou‑se no olhar da arquitectura, da história da cultura e das ideias, e do objecto «livro». E para tal contribuíram um vasto número de especialistas nacionais e internacionais, destacando‑se entre outros, os oradores convidados: Carlos Sambricio Rivera
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de Echegaray (Universidad Politécnica de Madrid, Espanha), Professor de Arquitectura e Urbanismo na Escuela Tecnica Superior of Arquitectura de Madrid; Cesare de Seta (Istituto Italiano di Scienze Umane, Florença‑Nápoles, Itália), especialista em história do urbanismo e história da paisagem; Colas Duflo (Université de Picardie Jules Verne, França), especialista em filosofia e literatura do século xviii; François Bessire (Université de Rouen, França), editor da Rouen University Press (PURH) e, especialista de estudos sobre Voltaire; José‑Augusto França (Universidade
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Nova de Lisboa, Portugal), historiador, crítico de arte e Professor Catedrático Jubilado da Universidade Nova de Lisboa; José Esteves Pereira (Universidade Nova de Lisboa, Portugal), especialista em história da cultura e das ideias; Juan Calatrava Escobar (Universidad de Granada, Espanha), professor Catedrático de Historia de la Arquitectura da Universidad de Granada, e especialista em arte, historiografia e teoria do século xviii; Michel Delon (Université de
Paris‑Sorbonne, França), editor da obra Dictionnaire européen des Lumières (PUF, 1997); e Patrick Wald Lasowski (Université de Paris VIII, França), especialista em literatura do século xviii, nomeadamente a literatura libertina proibida em Portugal. O conjunto diverso dos temas apresentados, permitiu estabelecer diversos contactos entre os comunicantes e os participantes, que ultrapassaram a meia centena, esperando‑se no futuro
a p ublicação do volume de actas que constituirá certamente, uma obra de referência para todos aqueles que estudam Eugénio dos Santos, a sua obra e a sua época.
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Ana Celeste Glória Instituto de História da Arte, FCSH/UNL
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Novo inventário da obra de Aleijadinho O Aleijadinho – Catálogo Geral da Obra: inventário das coleções públicas e particulares é o mais recente livro sobre as obras deste mestre do barroco brasileiro. Lançado em Outubro de 2011 no Brasil, o catálogo, de autoria do historiador Márcio Jardim, em co‑autoria com o também historiador Herbert Sardinha Pinto e com o pesquisador Marcelo Coimbra, apresenta novas atribuições de peças ao escultor e arquitecto António Francisco Lisboa, mais conhecido como Aleijadinho (1730‑1814).
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Apesar de ser polémica a atribuição de peças ao Aleijadinho, discussão esta reconhecida pelos autores, este catálogo apresenta 486 obras atribuídas ao mestre do barroco, entre escultura, talha e arquitectura. Este número é muito superior, por exemplo, ao reconhecido pelo IPHAN (Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional), órgão do Governo brasileiro responsável pela preservação do património cultural, que em 1951 listava 163 obras. O trabalho de atribuição das obras decorreu a partir do reconhecimento por parte dos autores de cinco fases produtivas distintas, divididas cronologicamente. Nesta divisão, no entanto, os autores não consideraram fazer uma
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distinção entre obra do Aleijadinho e obra de oficina, justificando como critério do catálogo considerar obra do Aleijadinho tudo o que foi produzido em seu atelier. Embora tenha sido feita esta divisão por fases, as obras no inventário são apresentadas por localização geográfica.
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Eloísa Rodrigues Historiadora da Arte
JARDIM, Márcio; PINTO, Herbert Sardinha; COIMBRA, Marcelo. O Aleijadinho – Catálogo Geral da Obra: inventário das coleções públicas e particulares. Itu (SP): IGIL, 2011.
dissertações de mestrado e teses de doutoramento em história da arte moderna facul da de de ci ê n ci a s s oci a i s e human a s u n i v e rs i da de n ova de l i s b oa
Dissertações de Mestrado concluídas 2011 | Maria João Miranda Fialho O Traje de Corte Feminino em Portugal. Da época de D. Manuel I a D. Pedro II 2010 | Anabela Guerreiro Luís A Igreja Matriz de Nossa Senhora da Esperança de Paderne: um exemplar da transição do Manuelino para o Renascimento no Algarve (Mestrado) 2010 | Ana Maria Rodrigues Sequeira A Capela de Santo António, padroeiro do Regimento da Praça de Lagos. Um exemplo do Barroco total no Algarve setecentista 2009 | Bruno André Casal Nunes Martinho O Paço da Ribeira nas vésperas do terramoto 2009 | Maria Teresa Canhoto Verão Os azulejos do Mosteiro de São Bento de Cástris de Évora 2009 | Ana Maria Rodrigues Sequeira A Capela de Santo António, padroeiro do Regimento da Praça de Lagos, encarada como exemplo do barroco total no Algarve setecentista 2008 | Ricardo Lucas de Sousa Branco Italianismo e Contra-Reforma: A obra do arquitecto Baltazar Álvares em Lisboa 2008 | Olga Maria Faria da Costa O Hospital Grande de Nossa Senhora da Piedade de Beja : uma experiência inovadora no alvorecer da modernidade 2007 | Rui Miguel Goulart de Almeida Território e Paisagem na Ilha de S. Miguel – Séculos XV a XVIII 2007 | Cátia Cristino Correia Teles e Marques Nos bastidores da Liturgia Tridentina: O mobiliário monumental e as sacristias em Portugal do século XVI ao XVIII 2006 | Maria Cristina de Carvalho Barbosa da Cruz A Casa Nobre dos Saldanhas no sítio da Junqueira
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2004 | Paulo Alexandre Martins Oliveira A Arte do Renascimento e o Renascimento da Arte no pensamento teórico e na obra historiográfica de Reynaldo dos Santos (1880-1970) 2004 | Susana Andreia do Carmo Carrusca Lameira A Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo de Faro (1713‑1878), um estudo monográfico 2004 | Tânia Maria Pinto Pereira de Moura Dinis A Igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso 2004 | Ana Margarida Neto Aurélio Duarte Rodrigues A Escultura de vulto figurativa do laboratório de Joaquim Machado de Castro: produção, morfologia, iconografia, fontes e significado 2002 | Paulo Renato Ermitão Gregório A Igreja da Misericórdia de Torres Novas: um estudo monográfico (1575-1700) 2000 | Renata Malcher de Araújo As cidades da Amazónia no século XVIII - Belém, Macapa, Mazagão 2000 | Carlos Manuel Ferreira Caetano A Ribeira de Lisboa na época da expansão portuguesa (Séculos XV-XVIII) 2000 | Ana Maria Botelho de Vasconcelos e Melo Imagens do nordeste brasileiro no século XVIII. Um discurso visual de apropriação colonial 2000 | Nuno de Carvalho Conde Senos Paço da Ribeira (1501-1581) 1999 | Alexandre Manuel Nobre da Silva Pais Presépios Portugueses monumentais do século XVIII em terracota 1998 | Helder Alexandre Carita Silvestre Lisboa Manuelina e a formação de modelos urbanísticos da época moderna (1495‑1521) 1998 | Pedro de Aboim Inglez Cid A Torre de S. Sebastião da Caparica e a arquitectura militar do tempo de D. João II 1997 | Maria do Carmo Guimarães Rebelo de Andrade Iconografia narrativa na ourivesaria Manuelina: as salvas historiadas 1996 | Alexandra Curvelo da Silva Campos A imagem do Oriente na cartografia portuguesa do século XVI 1996 | Carla Alferes Pinto O mecenato da Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577) 1996 | Joaquim Oliveira Caetano O que Janus via: rumos e cenários da pintura portuguesa (1535-1570) 1996 | Teresa Sequeira Santos A Igreja de S. Francisco de Paula: o encomendante, os artistas e a obra
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1995 | Rui Paulo Duque da Conceição Maurício O Mecenato de D. Diogo de Sousa, Arcebispo de Braga - 1505- 1532 - Arquitectura e Urbanismo 1995 | Maria João Lynce da Costa Pais de Freitas Iconografia da Memória na azulejaria do século XVIII - 4 estações, 4 elementos e 4 partes do mundo 1994 | Maria do Céu Pires de Sousa Gomes O Morgadio e a Vila de Oeiras 1994 | Maria Helena da Cunha Murteira Lisboa da restauração às luzes. Uma análise da evolução urbana 1994 | Vitor Joaquim Fialho Medinas A arquitectura capucha da Província da Piedade 1993 | Jorge Manuel da Silva Muchagato Ideologia e arquitectura religiosa na época de D. Manuel. Da réplica ao modelo: uma experiência da temporalidade. De 1800 a 1500 e de 1500 às origens 1992 | Renata Malcher de Araújo As cidades da Amazónia no século XVIII - Belém, Macapa, Mazagão 1992 | Maria Leonor Morgado Ferrão Oliveira A Real Obra de Nossa Senhora das Necessidades 1992 | Miguel Conceição Silva Soromenho Manuel Pinto de Villalobos. Da engenharia militar à arquitectura 1991 | Maria Alexandra Saramago Castelo Branco Trindade Gago da Câmara Os espaços teatrais na Lisboa Setecentista 1991 | Walter Rossa Ferreira da Silva Além da Baixa. Indícios de Planeamento Urbano na Lisboa Setecentista 1990 | Maria Antónia Feilman Gentil Quina Carvalho Fernandes À maneira de Portugal e da Índia. Cinco tapeçarias do Museu do Caramulo 1990 | Luisa d’Orey Capucho Arruda Figuras de convite na Azulejaria Portuguesa do século XVIII 1990 | Adélia Maria Caldas Correia Leiria, Cidade Episcopal. Urbanismo dos séculos XVI e XVIII 1989 | Francisco Ildefonso da Claudina Lameira A Escultura Barroca Algarvia 1989 | Susana Marta Delgado Pinheiro Paisagens de uma Leitura. Manoel Caetano de Sousa 1989 | Celso Francisco dos Santos A Arquitectura do Mosteiro de S. Salvador – 1574-1636 1988 | Ana Cristina Soares Turrion Leite O Jardim em Portugal nos séculos XVII e XVIII. Arquitecturas, Programas Iconográficos
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1988 | João Rosa Vieira Caldas A Arquitectura rural dos arredores de Lisboa no Século XVIII 1988 | Paulo Fernando Sequeira Varela Gomes Vieira Portuense e a Arte do seu tempo 1988 | Paulo Jorge Garcia Pereira A obra silvestre e a esfera do Rei. Iconologia da Arquitectura no período Manuelino e na grande Estremadura 1988 | Maria da Assunção Oliveira Costa Lemos As ilustrações ingénuas do Manuscrito Fortalezas do Ocidente 1987 | Ilídio Oscar Pereira Sousa Salteiro Arquitectura Retabular no século XVI 1987 | Dora Iva Outerelo Forja Rita Martírio de S. Sebastião. Aproximação à pintura do Século XVI 1987 | Teresa Maria Vieira dos Santos Pereira Bettencourt da Câmara Óbidos. Arquitectura e Urbanismo (séculos XVI -XVII) 1987 | António João Medina Mouzinho Afonso Álvares, Arquitecto funcionalista do século XVI 1986 | Emanuel da Costa Correia A iluminura nos forais de D. Manuel 1985 | Maria Teresa Sadio Raposo A representação do objecto de uso doméstico na pintura da primeira metade do século XVI 1984 | Carlos Moura Os desenhos venezianos do Museu Nacional de Arte Antiga: uma contribuição para o seu estudo 1984 | Nestor de Sousa A Arquitectura religiosa de Ponta Delgada nos séculos XVI - XVIII 1984 | José Carrola Pereira A acção artística do primeiro Patriarca de Lisboa 1984 | Joaquim Artur Marques de Carvalho Do Mosteiro dos Jerónimos de Belém, termo de Lisboa (o antigo Mosteiro dos Jerónimos no 150º aniversário da sua Nacionalização) 1983 | Silvana Borges de Medeiros Amorim da Costa Macedo A arquitectura na pintura da primeira metade do século XVI 1983 | Maria de Macedo de Oliveira Soares A oficina de Frei Carlos 1983 | Maria Alexandra Rossi Ruivo Pera Gouveia Pereira A cobertura da Capela do Cruzeiro do Convento de Cristo em Tomar: abordagem iconográfica
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1982 | Mónica Fátima Massara Santuário do Bom Jesus do Monte: fenómeno tardo barroco em Portugal 1982 | Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão O Maneirismo e o estatuto social dos pintores portugueses 1982 | Rafael de Faria Domingues Moreira Um tratado português de arquitectura do século XVI (1576-1579)
Dissertações de Mestrado em preparação Célia Maria Corujo As fortificações de Luanda Pedro Fernandes Igreja de São Martinho de Sintra: História e Arquitectura
Teses de Doutoramento concluídas 2009 | Ana Margarida Neto Aurélio Duarte Rodrigues A escultura de jardim das Quintas e Palácios dos séculos XVII e XVIII em Portugal 2007 | Maria Leonor Morgado Ferrão de Oliveira Eugénio dos Santos e Carvalho, arquitecto e engenheiro militar (1711-1760): cultura e prática de Arquitectura 2007 | Alexandra Curvelo da Silva Campos Nuvens douradas e paisagens habitadas (Namban 1550-1700) 2006 | Carlos Alberto Louzeiro de Moura A escultura de Alcobaça e a imaginária monástico-conventual (1590-1700) 2000 | Renata Klautau Malcher de Araujo A urbanização do Mato Grosso no século XVIII: discurso e método 1995 | Maria Margarida Teixeira Barradas Calado Arte e sociedade na época de D. João V 1992 | José Fernandes Pereira Retórica da perfeição sobre arquitectura e escultura de Mafra 1991 | Rafael de Faria Domingues Moreira A arquitectura do Renascimento no sul de Portugal: a encomenda régia entre o Moderno e o Romano 1984 | José Eduardo Capa Horta Correia Vila Real de Santo António: urbanismo e poder na política pombalina
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Teses de Doutoramento em preparação Anabela Luís Guerreiro As igrejas renascentistas do Algarve Carlos Manuel Ferreira Caetano As Casas da Câmara dos antigos concelhos portugueses, séculos XIV a XIX Cátia Cristino Correia Teles e Marques de Sousa Branco As sacristias dos séculos XVI-XVII no espaço ibérico Edílson Nazaré Dias Motta Na boca do Amazonas: a Arquitectura Militar e a “guerra de mapas” entre Portugal e as potências protestantes João Pedro Rosa As “casas do embaixador” Rui Fernandes de Almada em 1540 (Palácio Almada‑Carvalhais) Luísa França Luzio Condes da Castanheira e Condes de Sortelha, dois tipos de mecenato em confronto na introdução da arquitectura do Renascimento em Portugal Nuno Villamariz de Oliveira O “Salomonismo” na arquitectura portuguesa entre o Manuelino e D. João V Pedro de Aboim Inglez Braamcamp Cid O “Livro das Fortalezas” de Duarte de Armas (1509-1510) Ricardo Marques Lucas de Sousa Branco O Tardo-Clássico na arquitectura eclesial portuguesa no tempo dos Filipes – agentes, influências e modelos Soraya Genin Les voûtes de João de Castilho Teresa Campos Coelho Os Tinocos: duas famílias de arquitectos portugueses dos séculos XVII e XVIII
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a anunciar horário Quintas-feiras (pós-laboral), e visitas aos sábados n.o de sessões 12 data
informações
cursoslivresiha@fcsh.unl.pt
estudos de lisboA: HistóriA, iconogrAfiA e ModernidAde* coordenação científica Pedro Flor Outubro de 2012 a Janeiro de 2013 Pós-laboral o n. de sessões 16 (organizado em 3 módulos) data
horário
1.o Módulo - Evolução histórica e urbanística da cidade de Lisboa 2.o Módulo - Iconografia de Lisboa 3.o Módulo - Das Avenidas Novas ao Parque das Nações: Problemas da Modernidade e Modernização * Opção livre aberta a todos os cursos de doutoramento (10 créditos), do âmbito da oferta lectiva do IHA.
HistóriA e PAtriMónio dA PAisAgeM culturAl de sintrA* coordenação científica Teresa Caetano 5 de Março a 4 de Junho de 2012 horário Pós-laboral n.o de sessões 16 (organizado em 3 módulos) data
* Opção livre para Mestrado
informações
Serviços Académicos da FCSH http://fcsh.unl.pt/ensino/mestrados/opcoes-livres-nas-unidades-de-investigacao
ciclo iMAgeM coordenação científica data
Joana Cunha Leal; Mariana Pinto dos Santos
Fevereiro a Maio de 2012
sessões
09.02.2012 | 18h às 20h: James Elkins. What Photography Is. 15.02.2012 | 12h: encontro com James Elkins 08.03.2012 | 18h às 20h: Georges Didi-Huberman. Imagens apesar de tudo. 16.03.2012 | 10h30: encontro com G. Didi-Huberman e Viktor Stoichita 12.04.2012 | 18h às 20h: Aby Warburg. O Nascimento de Vénus e A Primavera de Sandro Boticelli. 03.05.2012 | 18h às 20h: Viktor Stoichita. O Efeito Pigmalião. 24.05.2012 | 18h às 20h: Hans Belting. A verdadeira Imagem. informações
cicloimagem@gmail.com
cursos livres
Arte e MAçonAriA interAcções estéticAs – séculos XViii A XX coordenação científica David Martín López
normas de redacção [para autores]
editorial guidelines [for authors]
Normas de redacção de artigos/recensões/notícias
Editorial guidelines for articles/reviews/news items
01. objectivos
01. aims
A diversidade de autores que colaboram com os seus trabalhos na preparação desta publicação exige o cumprimento de regras de normalização que têm como objectivo homogeneizar os conteúdos produzidos. Desta forma, torna-se premente o cumprimento destas normas aplicadas aos documentos produzidos, contribuindo para a qualidade da informação e documentação.
Due to the diversity of contributions to the journal, a set of submission guidelines has been devised in order to ensure the editorial consistency of the publication. It is therefore imperative that all articles adhere to the following guidelines.
02. publicação de artigos
02. guidelines for articles
02.1 formatação
02.1 format
aplicação: Microsoft Office Word tipo de letra: Times New Roman; tamanho 12 pt. numeração das páginas: Sequencial notas de rodapé: Numeração automática parágrafos: Alinhamento à esquerda com duplo espaçamento, não indentados.
application: Microsoft Office Word font: Times New Roman; font size 12 pt. page numbering: Sequential footnotes: Automatic numbering paragraph: Left side alignment with double spacing, no indentation.
02.2 tamanho
02.2 size
Não deve exceder as 5 000 palavras, ou cerca de 30 000 caracteres (com espaços).
Should not exceed 5 000 words or about 30 000 characters (including spaces).
02.3 língua
02.3 language
Aceitam-se artigos em Português, Espanhol, Francês ou Inglês.
We accept articles in Portuguese, Spanish, French and English.
02.4 título
02.4 title
Claro e sintético em maiúsculas.
Clear and concise in capital letters.
02.5 subtítulo
02.5 subtitle
Opcional.
Optional.
02.6 resumo
02.6 abstract
Os resumos dos artigos não devem exceder o máximo de 155 palavras, ou cerca de 1 000 caracteres (com espaços), em português e, sempre que possível, em inglês.
Abstracts to the articles should not exceed 155 words, or around 1 000 characters (including spaces), in Portuguese and, if possible, in English.
02.7 palavras chave
02.7 keywords
Para cada artigo deverão ser indicadas até 5 palavras chave.
A maximum of 5 keywords should be included with the article.
02.8 nota biográfica sobre o autor
02.8 short biography of the author(s)
• Nome completo • Afiliação Institucional • Contacto de email (opcional)
• Full name • Institutional affiliation • Email (optional)
02.9 citações
02.9 quotes
Devem ser apresentadas entre aspas e acompanhadas pela referência à obra citada, segundo o sistema abreviado autor-data (ver 02.10)
Must appear between quotation marks followed by an abbreviated author-date reference to the quoted work (see 02.10).
02.10 sistema abreviado autor-data
02.10 abbreviated system author-date
As referências no texto seguirão o sistema abreviado Chicago (apelido do autor data, página). Por exemplo (Grimal 1988, 65) ou (Hauschildt eArbeiter1993, 47). No caso de mais de dois autores, utiliza-se et al. (Laumann et al. 1994, 262). Artigos de imprensa, entrevistas e comunicações pessoais devem ser citados como notas finais, e não como referências bibliográficas abreviadas.
All references within the text will follow the Chicago abbreviated system (author’s surname date, page). For example (Grimal 1988, 65) or (Hauschildt and Arbeiter 1993,47). In case of more than two authors the use of et al is applicable, (Laumann et al. 1994, 262). News articles, interviews and personal communications must appear in footnotes, rather than as abbreviated bibliographical references.
02.11 bibliografia
02.11 bibliography
Toda a bibliografia segue as seguintes normas –exemplos: • Monografias: Silva, José Custódio Vieira da. 2003. O Fascínio do Fim. Lisboa: Livros Horizonte. • Artigos de publicação em série: Moreira, Rafael. 1988. “D. Miguel da Silva e as origens da arquitectura do Renascimento em Portugal”. O Mundo da Arte. Revista de Arte, Arqueologia e Etnografia II série, 1: 111-23. Para esclarecer os casos não considerados nestes exemplos, os autores deverão consultar as normas de publicação no site: www.chicagomanualofstyle.org
All bibliography should abide by the following rules – examples • Monographs: Silva, José Custódio Vieira da. 2003. O Fascínio do Fim. Lisbon: Livros Horizonte. • Articles published in journals: Moreira, Rafael. 1988. “D. Miguel da Silva e as origens da arquitectura do Renascimento em Portugal”. O Mundo da Arte. Revista de Arte, Arqueologia e Etnografia 2nd series, 1: 111-23. In cases not considered by these examples, authors should consult the Chicago bibliographic style guide on www.chicagomanualofstyle.org
02.12 ilustrações
02.12 images
• Fotografias, desenhos, quadros, gráficos, mapas, devem ser fornecidas em papel ou digitalizadas a 300 dpi’s (mínimo), em formato jpg ou tif; • Cada imagem digital deverá ser gravada num ficheiro; • Todas as ilustrações não digitalizadas, deverão ser entregues em papel, numeradas sequencialmente, e acompanhadas da respectiva legenda;
• Photos, drawings, tables, graphs and maps should be supplied either as a hard copy or scanned at 300 dpi’s (minimum), in jpg or tif format; • Each digital image should be saved in a different file; • All non-scanned images should be handed in as a hard copy, sequentially numbered and accompanied by the corresponding caption;
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• No texto deverá ser mencionado o local exacto onde cada ilustração deve entrar, do seguinte modo: fig.1; fig.2; etc.; • Deverá ser entregue um ficheiro independente com a relação de todas as imagens, legendas, e respectivos ficheiros que contêm essas mesmas imagens. exemplo: Fig. 1 > Amadeo de Sousa Cardoso – Pintura, 1913 (CAM-FCG) > Foto001.jpg
• The article text should refer to the exact location where the image is to be inserted in the following manner: fig. 1; fig. 2; etc.; • A separate file should be supplied with a list of all the images, their respective captions and files containing the images. example: Fig. 1 > Amadeo de Sousa Cardoso – Pintura, 1913 (CAM-FCG) > Foto001.jpg
02.13 créditos das ilustrações
02.13 image credits
• No caso de os autores incluírem qualquer material que envolva a autorização de terceiros, é da responsabilidade destes obter a autorização escrita e assumir os seus eventuais encargos. • Os créditos devem ser fornecidos para cada uma das ilustrações do seguinte modo: autor, data, copyright.
• Authors whose submitted work includes any material requiring third‑party authorization, will be responsible for obtaining a written authorization for publication and for any costs that might arise from such an authorization. • Credits should be given for each image as follows: author, date, copyright.
03. publicação de recensões
03. guidelines for reviews
03.1 obra recenseada
03.1 reviewed work
• Deverá ser identificada com: autor, data de edição, título, local de edição e editora. • A citação de outras obras para além da recenseada será feita somente no texto.
• The work reviewed should be identified as follows: author, date of publication, title, place of publication and publisher. • Citations from works other than the one reviewed should be included within the text.
03.2 tamanho
03.2 size
As recensões não devem exceder as 1 000 palavras (aprox. 12 000 caracteres com espaços).
Reviews should not exceed 1 000 words (around 12 000 characters including spaces).
03.3 outras regras
03.3 other rules
As recensões deverão seguir as restantes normas dos artigos, designadamente: 02.1, 02.3, 02.7, 02.8.
Reviews should follow the aforementioned guidelines, namely: 02.1, 02.3, 02.8.
04. publicação de notícias
04. guidelines for news items
A Revista de História da Arte aceita a submissão de notícias sobre temas relevantes, nomeadamente críticas de exposições, apresentações de projectos, notas sobre eventos científicos.
Revista de História da Arte accepts the submission of news items on relevant subjects, such as exhibition critiques, project presentations or scholarly events.
04.1 tamanho
04.1 size
As notícias não deverão exceder as 500 palavras (aprox. 6 500 caracteres com espaços).
News items will not exceed 500 words (around 6 500 characters including spaces).
04.2 outras regras
04.2 other rules
• As notícias não terão notas de rodapé ou bibliografia. Quaisquer referências, bibliográficas ou outras, deverão ser indicadas no corpo do texto. • As recensões deverão seguir as restantes normas dos artigos e recensões, designadamente: 02.1, 02.3, 02.8, 02.12, 02.13.
• News items must not be accompanied by footnotes or bibliography. Any references, bibliographical or otherwise, must be included in the body of text. • News items should follow the aforementioned guidelines, namely: 02.1, 02.3, 02.8, 02.12, 02.13.
05. direitos de autor
05. author’s rights
No caso de os autores incluírem nos seus artigos qualquer material que envolva a autorização de terceiros, é da responsabilidade do próprio obter a respectiva autorização por escrito e assumir os eventuais encargos associados a essa autorização.
Authors whose submitted work includes any material requiring third‑party authorization, will be responsible for obtaining a written authorization forpublication and for any costs that might arise from such an authorization.
06. revisões de provas
06. proofreading
O autor receberá uma prova do seu artigo, de forma a garantir que o texto e as imagens coincidem com a versão final entregue para publicação, não sendo possível alterações substantivas. A revisão final das provas é da responsabilidade do Coordenador Científico, que garante a reprodução fidedigna dos textos.
Each author will receive a set of proofs of his or her article to confirm the final version of text and images to be published. No substantial alterations will be permitted at this stage. The final proofreading is entirely the responsibility of the Scientific Coordinator, who will guarantee that the reproduction of the text is faithful to the original.
07. envio dos trabalhos
07. submission of articles
07.1 material em formato digital
07.1 material in digital format
Todo o material digital deverá ser enviado para: iha@fcsh.unl.pt
All digital material should be sent to the following email address: iha@fcsh.unl.pt
07.2 material em formato não digital
07.2 material in non-digital format
Todo o material não digital deverá ser assinado, e enviado para: Instituto de História da Arte – Revista de História da Arte Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Av. de Berna, 26 C – 1069-061 Lisboa – Portugal
All non-digital material should be signed and sent to: Instituto de História da Arte –Revista de História da Arte Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Av. de Berna, 26 C – 1069-061 Lisboa – Portugal
08. selecção e publicação de artigos/ recensões/notícias
08. selection and publication of articles/ reviews/news items
08.1 Todos os artigos/recensões/notícias propostos para publicação na Revista
08.1 All articles/reviews/news items submitted for publication in Revista de História da Arte will initially be sent to the Scientific Coordinator of the relevant issue, who will assess them for originality, relevance and scientific quality.
de História da Arte serão encaminhados para o Coordenador Científico de cada número, solicitando parecer. Nesta avaliação, o Coordenador Científico privilegiará os trabalhos de acordo com a sua originalidade, relevância e qualidade científicas.
252
r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n.o 9 – 2 0 1 2
08.2 Os trabalhos que forem seleccionados para artigos do Dossiê serão submetidos
08.2 Articles selected for the themed section of the journal will undergo a double-
a arbitragem científica, segundo o processo de revisão anónima por dois pares. Os árbitros serão nomeados pelo Coordenador Científico de cada número da Revista de História da Arte. Os autores dos artigos serão convidados a preparar os seus trabalhos para a revisão científica anónima. Em particular, quaisquer referências, ao longo do texto, ao seu nome e às suas publicações deverão ser cuidadosamente retiradas, tal como a identidade do autor nas “Propriedades” do documento Word. Após a revisão, os autores serão notificados do parecer dos árbitros e ser-lhes-ão enviadas as “Fichas de Avaliação” (ver Anexo 1) respeitantes ao seu trabalho. Se o parecer for positivo à publicação, os autores serão convidados pelo Coordenador Científico a considerar as sugestões dos árbitros. Em caso de publicação, o nome dos árbitros com parecer positivo será divulgado no artigo.
blind peer-review process by two referees chosen by the Scientific Coordinator of the relevant issue. Authors will be required to prepare their work for the anonymous review process; in particular, they will be asked to remove from the text any reference to themselves or their own publications, as well as their identity in the ‘Properties’ tab of Word documents. Following this review process, authors will be notified as to the referees’ decision and will receive the relevant Appraisal Form (see Appendix 1). In the case of a positive assessment for publication, authors will be invited by the Scientific Coordinator to consider any suggestions included by referees in the Appraisal Form. Published articles will show the name of referees having given a positive assessment.
08.3 A Coordenação Editorial da Revista de História da Arte reserva-se
08.3 The Editorial Coordination team of Revista de História da Arte reserves
o direito de proceder à uniformização das referências bibliográficas, bibliografia e a alterações formais, consideradas indispensáveis, sempre que estas não alterem o sentido do texto.
the right to uniformize bibliographical references and introduce other formal alterations considered essential, provided that they do not change the meaning of the text.
08.4 A Direcção da Revista de História da Arte reserva-se o direito de proceder à:
08.4 The Board of Revista de História da Arte reserves the right to:
• reprodução, qualquer que seja o suporte • colocação à disposição do público universitário ou outros • divulgação, nas suas várias modalidades: redes digitais, sites, etc... • distribuição de exemplares da obra
• reproduce the work on any media support • place the work at the disposal of the academic community and others • disseminate the work in various ways: digital networks, sites, etc... • distribute copies of the work
08.5 Os autores serão informados, no prazo de 60 dias a contar do final
08.5 Authors will be informed of the issue’s planned publication date within
do processo de selecção, da data prevista de publicação dos seus trabalhos.
08.6 Após a publicação, cada autor receberá 3 exemplares da revista e o respectivo artigo paginado em formato PDF.
•
60 days from the end of the selection process.
08.6 After publication, each author will receive three copies of the magazine, as well as his/her article in PDF format.
•
normas de arbitragem científica [para árbitros]
peer-review guidelines [for referees]
01. anonimato
01. Anonymity
• Os trabalhos seleccionados para o dossiê da Revista de História da Arte são submetidos ao processo anónimo de arbitragem científica: a identidade do autor não é revelada aos árbitros, e vice versa. Os trabalhos serão revistos por dois árbitros. Se os seus pareceres não forem unânimes, o desempate será feito pelo Coordenador Científico ou, se necessário, será solicitada a revisão a um terceiro árbitro. • No entanto, se um trabalho for publicado, o nome dos árbitros com parecer positivo será divulgado junto do artigo.
• Papers submitted for publication in the themed section of Revista de História da Arte are subject to a peer-review process based on anonymity: the author’s identity is not revealed to referees, and vice-versa. Each paper is reviewed by two referees. If their appraisal differs, the final decision will be taken by the journal’s Scientific Coordinator or, if deemed necessary, the opinion of a third referee will be sought. • Any published paper will show the names of the referees who have given it a positive appraisal.
02. revisão e avaliação
02. Review and appraisal
• Os árbitros serão convidados a fazer a revisão científica dos trabalhos que lhes forem submetidos pelo Coordenador Científico e a avaliar se os mesmos se adequam ou não a publicação. • O seu parecer deverá ser bem fundamentado, seguindo os critérios especificados na Ficha de Avaliação (ver Anexo 1). • Os árbitros são ainda encorajados a fazer sugestões ao autor, no sentido de proceder a alterações e ao desenvolvimento de ideias ou aspectos particulares que melhorem significativamente o seu trabalho. • A Ficha de Avaliação deve ser preenchida em todos os campos, mas não deve ser assinada. Feito o preenchimento, deve ser enviada, por correio electrónico, ao Coordenador Científico no prazo de 4 semanas após a submissão dos trabalhos para revisão.
• Referees will be invited to review the papers submitted to them by the Scientific Coordinator in order to assess whether they are fit for publication. • Referee appraisals will have a solid basis according to the criteria set out in the Appraisal Form (Appendix 1). • Referees are also encouraged to suggest improvements to the author, includingamendments or the further development of ideas or specific aspects which can significantly improve the author’s work. • All fields in the Appraisal Form must be filled in. Once completed, the unsigned form must be sent by e-mail to the Scientific Coordinator within four weeks of the date in which the paper was submitted for review.
03. decisão final
03. Final decision
• As avaliações deverão fornecer ao Coordenador Científico informação e argumentos relevantes sobre os quais possa sustentar as suas decisões. • Os Coordenadores Científicos da Revista de História da Arte levarão a sério as considerações dos árbitros. • Todavia, as decisões finais sobre se e de que forma um trabalho será publicado serão da responsabilidade do Coordenador Científico de cada número.
• Appraisals must supply relevant information and arguments for the Scientific Coordinator to be able to justify his/her decision. • The Scientific Coordinator of Revista de História da Arte will take on board the considerations made by referees. • Notwithstanding the previous point, the final decision on whether and how a paper is to be published, will be the responsibility of each issue’s Scientific Coordinator.
A Revista de História da Arte é uma revista com arbitragem científica. Os árbitros são convidados a ler cuidadosamente a informação e a observar as orientações que se seguem.
•
Revista de História da Arte is a peer-reviewed journal. Referees are invited to carefully read the information and observe the guidelines below.
•
r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n.o 9 – 2 0 1 2
253
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anexo 1
appendix 1
Ficha de Avaliação de artigos submetidos, a ser preenchida pelo Coordenador Científico e pelos membros do Conselho de Arbitragem Científica.
Appraisal Form for submitted papers, to be completed by the Scientific Coordinator and by members of the Peer‑Review Board.
título do artigo
paper title
recepção do original envio ao árbitro científico código do árbitro científico
date received date forwarded to referee referee code
01. O artigo cabe no âmbito de um número da revista Revista de História da Arte, em termos metodológicos? Sim Não
01. Is the paper suitable, in methodological terms, to be included in an issue of Revista de História da Arte? Yes No
02. O artigo é: Demasiado longo (indicar onde deve ser encurtado) Demasiado curto (indicar onde deve ser desenvolvido) Apropriado
02. Is the paper: Too long (indicate where it could be shortened) Too short (indicate where it could be elaborated on) Of appropriate length
03. Apresentação do artigo: Bem Estruturado Mal Estruturado
03. Paper structure: Well structured Poorly structured
04. Bibliografia: Actualizada e relevante Não actualizada e pouco relevante
04. Bibliography: Up-to-date and relevant Dated and not relevant enough
05. Conteúdo do artigo Avaliar tendo em conta os seguintes critérios: • Tema (originalidade, relevância, novidade) • Revisão do estado da questão • Teoria (domínio pelo(s) autor(es), confronto teórico, problematização, profundidade, etc.) • Metodologia (formulação do problema, delimitação do objecto, modelos, hipóteses, estratégias de investigação, procedimentos, definição de conceitos, tratamento de dados, desenvolvimento da análise, fundamentação das conclusões, etc.) • Dados empíricos (sustentação da análise, fontes, informação seleccionada) • Exposição das ideias (estrutura, clareza do discurso, terminologia adequada, concisão)
05. Paper contents Please assess the paper based on the following criteria: • Subject (originality, relevance, novelty) • Historiography review • Theory (knowledgeability, theoretical debate, ability to problematize, depth, etc.) • Methodology (formulation of issues, definition of the object of study, models, hypotheses, research strategies, procedures, concept definition, data handling, development of analysis, basis for conclusions, etc.) • Empirical data (substantiation, sources, data selection) • Presentation of ideas (structure, clarity of discourse, use of appropriate terminology, conciseness)
06. Outras sugestões críticas ao autor:
06. Other improvement suggestions to the author:
07. Resultado geral da avaliação: Publicável na forma actual Publicável com modificações Não publicável •
07. Appraisal: Fit for publication as is Fit for publication with amendments Not fit for publication •
r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n.o 9 – 2 0 1 2
Instituto de Hist贸ria da Arte Faculdade de Ci锚ncias Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa
A
Revista de História da Arte n.º 9 é consagrada à temática da Arquitectura, Urbanismo e Artes Decorativas. Séculos XVII e XVIII. Resultando
das mais recentes investigações realizadas ou em curso, os estudos reunidos neste volume reflectem aspectos particulares e inéditos do complexo mosaico que constitui a arte portuguesa das centúrias de Seiscentos e Setecentos. Uma realidade artística e cultural multifacetada, dominada por longas durações, nomeadamente na persistência do classicismo na arquitectura religiosa e em iniciativas urbanísticas. Do universo amplo das manifestações artísticas do período considerado, os estudos contemplam igualmente o discurso conceptual inerente à fundação de vilas no Brasil, a encomenda de ourivesaria e o coleccionismo, e a azulejaria, tratada na reconstituição de um ciclo de painéis e na análise da sua historiografia particular.
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