RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
Relações_miolo.indd 1
15/04/16 14:14
Relações_miolo.indd 2
15/04/16 14:14
Cleones Cunha
RELAÇÕES IGREJA-ESTADO: A Igreja e o Estado, a Liberdade Religiosa, o Estado Laico, a Igreja e as Relações Internacionais e o Acordo Brasil – Santa Sé
1ª edição 2016
Relações_miolo.indd 3
15/04/16 14:14
Diretor Editorial: Vítor Tavares Capa e diagramação: Telma Custódio Edições Fons Sapientiae é um selo da Distribuidora Loyola de Livros Rua Lopes Coutinho, 74 – Belenzinho 03054-010 São Paulo – SP T 55 11 3322 0100 F 55 11 4097 6487 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Edições.
ISBN: 978-85-63042-36-1 © Copyright 2016: 1ª edição - Edições Fons Sapientiae
Relações_miolo.indd 4
15/04/16 14:14
Aos meus pais, Astolfo Seabra de Carvalho e Maria Helena Cunha Carvalho.
Relaçþes_miolo.indd 5
15/04/16 14:14
Relações_miolo.indd 6
15/04/16 14:14
Agradecimentos: Ao Professor Cônego Doutor Abílio Soares Vasconcelos, cuja magnanimidade tornou possível a realização do Mestrado em Direito Canônico. Ao Pontifício Instituto Superior de Direito Canônico, representado nas pessoas do diretor, Professor Padre Doutor José Gomes Moraes; e do secretário, Professor Mestre Paulo José Tapajós. À minha irmã Maria da Salete Carvalho Coelho, pelo incentivo e apoio.
Relações_miolo.indd 7
15/04/16 14:14
Relações_miolo.indd 8
15/04/16 14:14
SUMÁRIO
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS.......................................... 11 PREFÁCIO ............................................................................................. 13 INTRODUÇÃO .................................................................................... 17 Capítulo 1 A IGREJA E O ESTADO ................................................................... 21 1.1 A igreJA .................................................................. 21 1.2 o estAdo ................................................................. 29 9 SUMÁRIO
Capítulo 2 AS RELAÇÕES IGREJA-ESTADO ...................................................33 2.1 As reLAÇÕes reLigiÃo-estAdo Antes de JesUs cristo .. 33 2.2 o dUALismo cristÃo................................................. 34 2.3 A reFormA ProtestAnte............................................ 45 2.4 o regALismo e sUAs VAriAdAs mAniFestAÇÕes nA eUroPA ................................................................ 47 2.5 o regALismo no BrAsiL ............................................. 53 2.6 o LiBerALismo .......................................................... 56 2.7 reLAÇÕes igreJA-estAdo no sÉcULo XX...................... 64 2.8 sistemAs de reLAÇÕes estAdo-reLigiÃo ...................... 72 Capítulo 3 O ESTADO LAICO ..............................................................................75 Capítulo 4 A LIBERDADE RELIGIOSA ..............................................................85 4.1 A LiBerdAde reLigiosA .............................................. 85 4.2 A LiBerdAde reLigiosA nA VisÃo dA igreJA .................. 95 4.3 A LiBerdAde reLigiosA no BrAsiL ............................. 103
Relações_miolo.indd 9
15/04/16 14:14
RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
Capítulo 5 A IGREJA E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ....................... 113 5.1 As reLAÇÕes internAcionAis ................................... 114 5.2 os trAtAdos internAcionAis ................................... 119 5.3 A igreJA cAtÓLicA, A sAntA sÉ e o estAdo dA cidAde do VAticAno ............................................... 120 5.4 A sAntA sÉ e As reLAÇÕes internAcionAis................ 129 Capítulo 6 O ACORDO BRASIL — SANTA SÉ ...............................................143 6.1 A constitUcionALidAde do Acordo ......................... 145 6.2 Acordo oU concordAtA? ........................................ 150 6.3 o Acordo .............................................................. 151 6.4 disPositiVos do Acordo .......................................... 153 CONCLUSÃO......................................................................................183 REFERÊNCIAS ..................................................................................187
10
Relações_miolo.indd 10
15/04/16 14:14
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
LIVROS BÍBLICOS At Atos dos Apóstolos Jo Evangelho de João Mc Evangelho de Marcos Mt Evangelho de Mateus
LEGISLAÇÃO BRASILEIRA CCB Código Civil Brasileiro CF Constituição Federal ORGANISMOS INTERNACIONAIS MERCOSUL Mercado Comum do Sul OEA Organização dos Estados Americanos ONU Organização das Nações Unidas DIVERSOS Art. Cân. CNBB VV AA
Relações_miolo.indd 11
11 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
DOCUMENTOS ECLESIÁSTICOS AG Ad Gentes (Decreto sobre a Atividade Missionária da Igreja) CDSI Compêndio da Doutrina Social da Igreja DGC Diretório Geral para a Catequese DH Dignitatis Humanae (Declaração sobre a Liberdade Religiosa) DI Dominus Iesus (Declaração sobre a Unicidade e Universalidade Salvífica de Jesus Cristo e da Igreja) GS Gaudium et Spes (Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo de Hoje) LG Lumem Gentium (Constituição Dogmática sobre a Igreja)
Artigo Cânon Conferência Nacional dos Bispos do Brasil Vários autores
15/04/16 14:14
Relações_miolo.indd 12
15/04/16 14:14
PREFÁCIO
P
Relações_miolo.indd 13
13 PREFÁCIO
refaciar esta obra trouxe-me enorme embevecimento, porque o autor deste livro — a quem reputo ser referência em Direito Canônico no Brasil —, é grande amigo meu, de longa data, tanto, que ultrapassamos a fronteira da mera afeição, para entrarmos no aconchegante ninho da fraternidade, que até hoje nos abriga. Mas também houve notas de apreensão, pois o tema tratado: As relações entre o Estado e a Igreja, não só trisca matéria extremamente complexa, como também diz, mormente em nosso país, de forte tradição cristã, de intensas celeumas, tanto com um viés político, quanto aquelas que tocam a essência e dogmas fixadores dos pilares da estrutura da Igreja no Brasil. No entanto, a inquietação inicial deu lugar a um crescente e aguçado interesse para com o tema, pois o autor, ciente dessa natureza de sua obra, logrou, inicialmente, trilhar didático duplo caminho, pelo qual, em uma senda apresenta aos leitores conceitos teológicos que definem e dizem, para fins de apreciação deste tratado, o que é Igreja e quais são seus objetivos e campo de atuação. Na outra vereda introdutória, cuidou de trazer, com fluidez de literato, as marchas e contramarchas históricas que ditaram os rumos dessa relação, durante muito tempo, umbilical, entre Igreja e Estado. E aqui, de se destacar o acuro histórico e a capacidade de Cleones sintetizar os milênios em comum dessas duas instituições, desde seus primórdios pré-messiânicos, onde o monismo era o elemento caracterizador dessa relação, até o advento do dualismo cristão, que depois se viu fragilizado,
15/04/16 14:14
RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
14
tanto pela reforma protestante, quanto pela contrarreforma que se seguiu, e ainda mais duramente, pelo liberalismo que bafejou a cultura ocidental a partir do século XVIII, narrativa que culmina com pincelar sobre os atuais sistemas de relações Estado-Religião, confessionais ou aconfessionais. Vejo, nessa narrativa diacrônica, a perfeita afirmação do cunho primordialmente científico dessa obra, que aborda, com o necessário distanciamento historiográfico, um período extremamente conturbado da Igreja e, consequentemente, das relações que mantiveram com os Estados onde eram sediadas. Com vínculos nesse bloco histórico-descritivo, o autor principia a discussão de temas mais hodiernos e que pululam qualquer debate que envolva as relações entre Estado e Igreja: o Estado laico e a Liberdade Religiosa. Quanto ao Estado laico, mostra como a ideia se amolda aos preceitos da Igreja para sua relação com o Estado, mas traz, também, importante distinção entre laicidade e laicismo, frisando que o primeiro toca a independência do Estado para com qualquer religião, sem descurar, contudo, da existência positiva desse fenômeno na sociedade, enquanto o laicismo agride esse fenômeno, procurando circunscrevê-lo ao espaço privado de cada indivíduo, sem considerá-lo na vida pública da nação. Como desinência ou corolário do Estado laico, vem sequencial abordagem da liberdade religiosa, momento onde se reafirma o caráter eminentemente técnico do texto produzido, pois o autor, tratando da parte histórica, não se furta a abordar um dos períodos mais trágicos da história ocidental, onde a Igreja de antanho, com força e métodos até hoje condenados, bateu-se contra a liberdade religiosa. A nódoa é marcada pelo autor, tanto por honestidade intelectual, como também para servir de contraponto ao que hoje é a tônica dominante dentro da Igreja: a irrestrita liberdade religiosa, sendo esse cânone adotado, inclusive, nas relações entre a Igreja e o Estado brasileiro.
Relações_miolo.indd 14
15/04/16 14:14
Relações_miolo.indd 15
15 PREFÁCIO
Por fim, a envolvente e densa leitura deste agora livro, que se originou de dissertação de mestrado do autor, apresentada ao Pontifício Instituto Superior de Direito Canônico, deságua em dois capítulos que tratam das relações internacionais da Igreja — o primeiro deles de modo lato — e o segundo, discorrendo sobre o acordo Brasil — Santa Sé. Neste, Cleones, jungido seu cabedal jurídico incontestável, ao igualmente profundo conhecimento dos meandros da Igreja e seu escopo nas relações internacionais, aborda os aspectos mais polêmicos que sempre pairaram sobre o referido diploma legal, e seus impactos nas relações institucionais da Santa Sé com o Brasil. Trata assim, preliminarmente, dos questionamentos que envolvem sua constitucionalidade, para, posteriormente, comentar, individualmente, os artigos que compõem essa Concordata, momento em que também aborda sua submissão ao texto constitucional vigente, e afasta possíveis e alegadas antinomias com outros diplomas legais. Colherá então o leitor, por essa panorâmica traçada, a seriedade de um trabalho científico voltado, mas não restrito, a um campo do conhecimento jurídico ainda pouco explorado, ao mesmo tempo em que apreenderá, distinguirá, e esclarecerá, conceitos desconhecidos, realidades de suposições e dúvidas que permeiam a mente de muitos quanto à atuação da Igreja no cenário político-jurídico nacional. Vê-se, então, que a obra, pelo seu aspecto abrangente e sua natureza didática, estende-se para além da comunidade jurídico, indo abarcar todos os interessados em conhecer a fundo o tema, que terão, para além de mera discussão acadêmica, um manual histórico e um tomo jurídico sobre as relações entre Estado e Igreja. Só posso agradecer ao autor pelo prazer da leitura e desejar esse mesmo enlevo aos leitores. Natal de 2015 Fátima Nancy Andrighi Ministra do Superior Tribunal de Justiça
15/04/16 14:14
Relações_miolo.indd 16
15/04/16 14:14
INTRODUÇÃO
I
Relações_miolo.indd 17
17 INTRODUÇÃO
greja e Estado são instituições milenares, organizadas, estáveis. Ambas baseiam-se em cânones próprios, que foram estabelecidos para cumprimento de suas missões peculiares, que existem para satisfação das necessidades do homem: a primeira, a salus animarum; e a segunda, o bem comum. Encerra a instituição Igreja dupla natureza, a espiritual e invisível e a temporal e visível. Na sua feição terrestre, que é visível, humana, social, jurídica, convive a Igreja com as demais instituições e com elas relaciona-se. Daí a justificativa da temática sobre a qual se constrói este trabalho, as relações Igreja — Estado. Dessas relações, aborda-se o viés histórico, donde o monismo houve-se como princípio básico do relacionamento entre Religião e Estado antes de Jesus Cristo, quando Estado e Religião constituíam uma mesma unidade, confundiam-se. Era a Religião tão só função do Estado, que a governava e dominava, numa simbiose tal que impossibilitava diferençar o sagrado do profano, a exemplo da Roma politeísta, cujo imperador era o sumo sacerdote e o pontífice máximo. Os Estados, instituições governadas por autoridades civis, às quais antes de quaisquer outros deveres incumbe perseguir o bem comum, baseiam-se na qualidade que lhes é essencial; seu poder de coerção, poder que lhes confere o status de mais importante agente de controle social e, por sua natureza política, envolve Nação e Governo. Estas autoridades têm, assim, o dever de tornar realidade o fim do Estado, efetivando-lhe a missão: o bem comum. Além da visão jurídica de Estado, constitucionalmente entendida, não se pode esquecer, pela importância que
15/04/16 14:14
RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
18
encerra, o pensamento da Igreja, que modernamente, através do Concílio Vaticano II, na sua Constituição Pastoral Gaudium et Spes, trata, no Capítulo IV, do Estado, sua natureza e finalidade e suas relações com a Igreja. Há de se lembrar também e especificamente o Estado brasileiro, que na busca do bem comum, estabeleceu na Constituição de 1988, além dos fundamentos da República (soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político), os objetivos fundamentais do Estado: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais; e mais a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. São, assim, Igreja e Estado duas organizações bem distintas, tanto na origem quanto na missão. Uma de origem divina e a outra, humana. Para a de origem divina, a missão é anunciar o Evangelho a todas as gentes, nações e povos; para a outra, a de origem humana, consiste em promover o bem comum de todos os seus cidadãos. Ambas, Estado e Igreja, se encontram em todos os rincões da Terra, uma vez que, com mais de um bilhão e duzentos milhões de fiéis, quase vinte por cento da população mundial, a Igreja está presente em todos os Estados, razão por que a realidade Estado não deve e não pode ser ignorada pela Igreja, pois todo cristão é também cidadão, não se podendo separar um do outro. O Estado, igualmente, não há de desconhecer a existência da Igreja, pelo próprio dever de garantidor a todo cidadão do direito natural e fundamental da Liberdade Religiosa, assegurando-lhe o livre exercício da manifestação de fé, individual ou comunitariamente. Portanto, as relações interinstitucionais entre Igreja e Estado são indispensáveis e vitais para que as duas organizações cumpram a missão essencial de cada uma.
Relações_miolo.indd 18
15/04/16 14:14
Relações_miolo.indd 19
19 INTRODUÇÃO
Direta e definitivamente inserida nas referidas relações, a Liberdade Religiosa seria o mote, a grande meta buscada pela Igreja nas suas relações com os Estados? E no que consistiria a Liberdade Religiosa para a própria Igreja? Como os documentos da Igreja a registram e a concebem? E as Constituições dos Estados, como encaram a fé dos seus nacionais? A garantia da Liberdade Religiosa para o cumprimento de sua missão justificaria para a Igreja a necessidade de estabelecer tratados ou institutos similares com os Estados? Como se manifestam as relações Igreja – Estado, segundo o magistério dos papas? Uma abordagem eminentemente jurídica carece ser levantada, porque imprescindível ao estudo dos direitos fundamentais do homem, inclusive o da liberdade de culto, de fé, e de manifestação fora dos muros dos templos. Ademais, importa estudar a Igreja como instituição de direito e de fato, aí compreendidas a Santa Sé e o Estado do Vaticano. Parte-se para tanto do arsenal teórico documental existente sobre a matéria, trazendo naturalmente a natureza humana, terrestre e social da Igreja, não esquecendo seu caráter divino, e daí, à obviedade, a palavra bíblica, os documentos do Vaticano II, o magistério dos papas, o Direito Canônico e a doutrina social da Igreja, como parâmetros, fontes e fundamentos. Provisoriamente sob o esteio da tese que advoga a importância e a necessidade do estabelecimento de formais, oficiais e respeitosas relações da Igreja com os Estados, defender-se-ão tais relações, porque delas adviria o sagrado e fundamental direito à Liberdade Religiosa, necessária e importante ao leitmotiv da existência mesmo da Igreja, sua grande missão de EVANGELIZAR e consequentemente alcançar a salus animarum. Por certo, trata-se de um estudo linear recapitulativo, mas com uma dose de reflexão cristã, visto que elaborado por um católico e com o fim de conclusão de mestrado em Direito Canônico. Do ponto de vista da abordagem,
15/04/16 14:14
RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
20
optou-se por pesquisa bibliográfica de natureza descritivo-qualitativa, pois fruto de estudo exploratório de realidade específica, delimitando-se as variáveis Estado — Igreja, em inquirição que vai além das concepções iniciais mais disseminadas, contudo sem o compromisso de explicar os fenômenos examinados, mas visando contribuir, minimamente que seja, para a discussão doutrinária sobre a temática. Em resumo, num composto de seis capítulos, desenvolver-se-á este trabalho, cuidando da Igreja e do Estado; das Relações Igreja-Estado; do Estado Laico; da Liberdade Religiosa; da Igreja e das Relações Internacionais; e do Acordo Brasil — Santa Sé. Nos primeiros dois capítulos, discorrer-se-á sobre a história das relações Igreja-Estado; acerca de tais relações no Século XX, na visão do Concílio Vaticano II e no magistério dos papas, além dos sistemas que regem as relações Estado – Religião. Estudar-se-ão o Estado laico e a Liberdade Religiosa (como direito fundamental de cada cidadão), mormente com enfoque da visão da Igreja, através da Dignitatis Humanae e do Código de Direito Canônico; fazendo-se ainda um histórico das declarações de direitos e um exame sobre a Liberdade Religiosa no Brasil com alicerce na atual Constituição Federal e nas constituições anteriores. Da Igreja e das Relações Internacionais cuidará o quinto capítulo, no qual se tratará do conceito das relações internacionais e dessas mesmas relações na visão da Igreja; dos tratados e das concordatas, e sobre a pessoa jurídica da Igreja, que a representa nas relações com os Estados. Ao fim, como complemento ilustrativo das boas relações Igreja-Estado, cuidar-se-á do recente acordo firmado entre o Brasil e a Santa Sé, discutindo-se-lhe a importância, abrangência e constitucionalidade; se se trata de acordo ou concordata, para, ao final, examinar-se-lhe os artigos. Assim, o presente trabalho questionará se a Igreja, em relações interinstitucionais com os Estados, exercendo a plena liberdade religiosa, poderá cumprir, com menos entraves e mais abrangentemente, a sua missão: o anúncio da Boa-Nova e a consequente salvação das almas.
Relações_miolo.indd 20
15/04/16 14:14
Capítulo 1
A IGREJA E O ESTADO
1.1 A igreJA
O
Relações_miolo.indd 21
21 A IGREJA E O ESTADO
riginalmente o vocábulo Igreja encerra dois significados: nas línguas anglo-saxônicas, advém do grego kyriakon (inglês, Church; escocês, Kirk; alemão, Kirche; holandês, Kerk), que significava a Casa do Senhor; nas línguas latinas, procede também do grego, mas de ekklesia, que correspondia à assembleia do povo, e que, seria depois no latim ecclesia, que gerou Igreja (português); Chiesa (italiano); Église (francês) e Iglesia (espanhol). A Seputaginta, mais antiga tradução do Antigo Testamento do hebraico para o grego, trouxe o vocábulo hebraico qahal, significando assembleia, reunião ou congregação, usando o vocábulo ekklesia. Referindo-se ao vocábulo Igreja, o Catecismo da Igreja Católica diz ser “[...] o termo frequentemente usado no Antigo Testamento grego para a assembleia do povo eleito diante de Deus, sobretudo para a assembleia do Sinai, onde Israel recebeu a Lei e foi constituído por Deus como seu povo santo” (n. 751). Fundada por Jesus Cristo, sobre o fundamento dos apóstolos, que deram continuidade à sua missão divina, essa comunidade de fé, esperança e caridade, denominada Igreja, que não é mera instituição ou assembleia humana, menos ainda empresa internacional, mas o sacramento do amor de Deus pelos homens, encerra duas grandes realidades: é humana e é divina. A primeira é visível, terrestre,
15/04/16 14:14
RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
22
social, pois se manifesta na união de todos os homens que dela fazem parte, unidos pela fé, constituindo a denominada comunidade eclesial. A realidade divina, espiritual, celeste, santa, advém da fé, portanto é transcendental, tem origem em Cristo e é guiada pelo Espírito Santo; esta dimensão transcendente, por ser uma realidade de fé, é acessível apenas àqueles que acreditam no que pregava seu fundador. Assim, a Igreja se manifesta sob dois grandes aspectos: o visível, humano, terrestre, social e pecador; e o invisível, espiritual, celeste e santo. Constitui o visível, o Povo de Deus, formado por todos os homens que acolheram a Boa Nova anunciada por Cristo e seus apóstolos; enquanto o invisível é o Corpo Místico de Cristo: união de todos os cristãos com Cristo e de Cristo com cada um e com todos. Fundem-se as duas feições, a divina e a humana, e constituem uma única verdade: a Igreja, que “[...] é em Cristo como que o sacramento ou o sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano[...]”1 Essa realidade complexa, como diz o Concílio Vaticano II, é o mistério da Igreja. Tem características comuns às demais sociedades humanas, inclusive em sua aparência externa mas, como um grupo especialíssimo, delas se distingue por suas origem e missão, meios sobrenaturais e pela salvação das almas - que é a sua lei suprema2. Esse é o pensamento do Concílio Vaticano II na Constituição Dogmática Lumen Gentium: O único Mediador Cristo constituiu e incessantemente sustenta aqui na terra Sua santa Igreja, comunidade de fé, esperança e caridade, como organismo visível pelo qual difunde a verdade e a graça a todos. Mas a sociedade provida de órgãos hierárquicos e corpo místico de Cristo, a assembleia visível e a comunidade espiritual, a Igreja terrestre e a Igreja enriquecida de bens celestes, não devem ser consideradas duas 1 COMPÊNDIO DO VATICANO II: Constituições, decretos e declarações. 2000, LG n. 1. 2 MADRID, 1994, p. 23.
Relações_miolo.indd 22
15/04/16 14:14
coisas, mas formam uma só realidade complexa, em que se funde o elemento divino e humano.3
Leão XIII, na Encíclica Satis Cognitum, já ensinava: Disso deriva que erram grave e fatalmente os que forjam na mente e a seu talante uma Igreja latente e não visível; assim como os que a julgam instituição humana com um determinado ordenamento de disciplina e de ritos externos, mas sem comunicação perene dos dons e da graça divina e sem as coisas que, com manifestação clara e quotidiana, atestem que sua vida deriva de Deus. [...] mas é um só por ambas as naturezas, a visível e a invisível, nas quais subsiste. [...] A Igreja é uma sociedade divina na sua origem; sobrenatural nos seus fins e nos meios que são imediatamente ordenados a isso; e é humana porque se compõe de homens.4
3 4 5 6
23 A IGREJA E O ESTADO
Verdadeiro mistério de fé é a Igreja. Existe entre Cristo e a Igreja uma estreita, profunda e íntima união. A união de Cristo com cada cristão e com todos os cristãos, assim como a união de todos os cristãos com Cristo constituem a dimensão transcendental e invisível da Igreja. É a chamada união mística de Cristo com sua Igreja. “Os crentes que respondem à Palavra de Deus e se tornam membros do Corpo de Cristo ficam estreitamente unidos a Cristo [...]”5. A Igreja Corpo Místico de Cristo - Mystici Corporis - é realidade de fé porque somente os que fazem a opção por Cristo e se unem a Ele por meio do Batismo, recebendo o seu Espírito, e da Eucaristia, recebendo o seu corpo, é que podem participar e perceber esse mistério. “É o próprio Corpo de Cristo, um corpo tão especial, que deve ter um nome especial: o Corpo Místico de Cristo. Cristo é a cabeça do Corpo: cada batizado é uma parte viva, um membro desse corpo, cuja alma é o Espírito Santo”6. A denominação Corpo Místico COMPÊNDIO DO VATICANO II, LG n. 8 DOCUMENTOS DA IGREJA. Documentos de Leão XIII, pp. 615-633 CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 1998, n. 790 TRESE, 1995, p. 138
Relações_miolo.indd 23
15/04/16 14:14
RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
24
de Cristo é que transmite a dimensão espiritual da Igreja, orientada permanentemente pelo Espírito Santo. Povo de Deus é uma imagem antiga. Era já usada em Israel à época da fuga do Egito para a Palestina: “Pois tu és um povo consagrado a Iahweh teu Deus; foi a ti que Iahweh teu Deus escolheu para que pertenças a ele como seu povo próprio, dentre todos os povos que existem sobre a face da terra”7. E mais: “Hoje fizeste Iahweh declarar que ele seria teu Deus, e que tu andarias em seus caminhos [...] E hoje Iahweh te fez declarar que tu serias o seu povo próprio [...] e que observarias todos os seus mandamentos”8. O Concílio reintroduz essa imagem com maior força na Eclesiologia. Assim, a Igreja, nesta dimensão, é a união de homens e mulheres, provenientes de todas as raças, de todas as culturas, de todos os recantos da terra. São homens e mulheres, peregrinantes aqui na terra, nunca isoladamente, mas unidos entre si por um laço singular: a crença em Jesus Cristo. Em razão dessa crença, por meio do Batismo e pela ação do Espírito Santo, tornam-se os cristãos filhos de Deus e irmãos e irmãs entre si. Todos são iguais e participantes do Mistério da Salvação e do Corpo Místico de Cristo, estando, portanto, ligados uns aos outros por vínculo espiritual indissolúvel e eterno. Enquanto na aliança feita com o povo de Israel no Antigo Testamento, a participação do povo eleito ocorria em razão do nascimento físico, a participação na nova Nação se dá pelo Batismo, com o nascimento no e pelo Espírito. LOMBARDÍA9 ensina que cuando se afirma que la Iglesia es un pueblo, el Pueblo de Dios, se señala que los cristianos son de un mismo linaje – el de los hijos de Dios – en virtud de vínculos ontológicos, que al unir a cada uno de ellos con Cristo, los relacionan entre si.10 E A BIBLIA DE JERUSALÉM, 1995, Dt. 7,6 A BIBLIA DE JERUSALÉM, 1995, Dt 26,17-18 9 LOMBARDÍA, 1991, p. 18 10 “Quando se afirma que a Igreja é um povo, o Povo de Deus, assinala-se que os cristãos pertencem a uma mesma linhagem – a dos filhos de Deus – em 7 8
Relações_miolo.indd 24
15/04/16 14:14
da lição de VELASCO11 (1996, p. 251) tem-se que: “’Povo de Deus’ traduz mais diretamente a condição peregrinante da Igreja. A Igreja é um povo entre os povos [...].” Como Povo de Deus, a Igreja é a assembleia de todos os batizados na água e no Espírito: os leigos, os religiosos, os diáconos, os presbíteros, os bispos, o papa. Todos são irmãos e irmãs; são igualmente os fiéis: os chamados à fidelidade de sua vocação, como membros da Igreja e filhos de Deus por Cristo. Na sua Primeira Carta, ensina o apóstolo Pedro: “Mas vós sois uma raça eleita, um sacerdócio real, uma nação santa, o povo de sua particular propriedade, [...] vós que outrora não éreis povo, mas agora sois o Povo de Deus [...]”12. Também sobre a constituição do Povo de Deus, reza o § 1. do cânon 204: Fiéis são os que, incorporados a Cristo pelo batismo, foram constituídos como povo de Deus e assim, feitos participantes, a seu modo, do múnus sacerdotal, profético e régio de Cristo, são chamados a exercer, segundo a condição própria de cada um, a missão que Deus confiou para a Igreja cumprir no mundo.
A IGREJA E O ESTADO
É a Igreja a sociedade dos que crêem em Jesus Cristo; nela todos são fundamentalmente iguais – “Entre todos os fiéis, por sua regeneração em Cristo, vigora, no que se refere à dignidade e atividade, uma verdadeira igualdade, pela qual todos, segundo a condição e os múnus de cada um, cooperam na construção do Corpo de Cristo”13 – filhos de Deus, membros da Igreja e admitidos pelo Batismo, mesmo tendo carismas diversos e exercendo funções diferentes; formando uma comunidade de pessoas, todos os fieis mantém entre si vínculos: de solidariedade, de fé, de culto, de mútua afeição. A Igreja é uma instituição nascida da vontade de Cristo, que prometeu edificá-la sobre Pedro quando este o re-
25
virtude de vínculos ontológicos, que ao unir cada um deles com Cristo, os relaciona entre si” (tradução do autor). 11 VELASCO, 1996, p. 251 12 A BIBLIA DE JERUSALÉM, 1995, 1Pd 2,9-10 13 CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO, 2008, cân. 208.
Relações_miolo.indd 25
15/04/16 14:14
RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
26
conhece como o Cristo, e o próprio Jesus assim se torna público pela primeira vez – “[...] ‘Tu és o Cristo, o filho de Deus vivo’. [...] ‘Bem-aventurado és tu Simão, [...] porque não foi a carne ou o sangue que te revelaram isso. E sim o meu Pai que está nos céus. Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja’ [...]”14. A plenificação da Igreja, o seu real nascimento, acontece com a vinda do Espírito Santo em Pentecostes15, quando todos que acreditavam em Jesus, que havia morrido na cruz e ressuscitado, recebem o Espírito Santo, o mesmo Espírito que dota a Igreja dos meios necessários para que todos os homens alcancem a salvação. Os que recebem o Espírito Santo unem-se na fé única: um só Corpo – um só Espírito – um só Senhor – um só Batismo – um só Deus e Pai de todos16. Possui a Igreja/Povo de Deus também uma dimensão social. É uma realidade social, porque os cristãos são homens e mulheres que, unidos entre si pela mesma fé e adesão a Jesus Cristo, formam uma comunidade e mantém vínculos sociais, como em todas as sociedades humanas, distinguindo-se das demais pela existência dos vínculos da fraternidade e da caridade. O apóstolo Lucas dá a ideia precisa de como deve ser esta comunidade: “não havia entre eles necessitado algum. De fato, os que possuíam terrenos ou casas, vendendo-os, traziam os valores das vendas e os depunham aos pés dos apóstolos. Distribuía-se então, a cada um, segundo a sua necessidade”17. A dimensão social da Igreja é fundada sobre os princípios basilares da igualdade fundamentada, da diversidade e da institucionalidade. A Igreja é uma sociedade organizada institucionalmente, o que significa dizer que nesta comunidade, onde todos são irmãos, portanto iguais, existem normas de conduta, padrões de comportamento e, principalmente, uma estrutura 14 15 16 17
Relações_miolo.indd 26
A BIBLIA DE JERUSALÉM, 1995, Mt 16,16-18 A BIBLIA DE JERUSALÉM, 1995, At. 2 A BIBLIA DE JERUSALÉM. 1995, cf. Ef 4,4-6 A BIBLIA DE JERUSALÉM. 1995, At 4,34-35
15/04/16 14:14
18 19 20
27 A IGREJA E O ESTADO
de governo e administração, onde os membros têm funções próprias, para juntos buscarem o cumprimento de sua missão, assim como o bem comum de todos os batizados. A Igreja é também uma comunidade jurídica, pois todos os agrupamentos religiosos e civis necessitam de regras para o seu bom funcionamento, já que nenhum deles sobrevive sem normas, sem o Direito. Tal necessidade é a consequência natural das relações entre os membros desses grupos. Destaque-se, como faz LOMBARDÍA18, que o encontro do cristão com Cristo não é apenas uma união pessoal e íntima, mas gera também um vínculo de fraternidade com os outros cristãos, todos partícipes da condição de Filho de Deus em Cristo, que é a cabeça da Igreja. Igreja que é a totalidade de todos os batizados, portanto uma coletividade de homens, com direitos e deveres. Assim, a Igreja, sociedade organizada (como diz a Lumen Gentium: “[...] esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como uma sociedade, subsiste na Igreja Católica governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele [...]”19), não é incompatível com o Direito porque nelas existem homens e mulheres que se relacionam, e desse relacionamento surgem conflitos a ser resolvidos. Além disso, nela estão estruturados os meios necessários para cumprimento da sua missão maior, que é o anúncio da Boa-Nova a todos os povos e a consequente salus animarum. Na Igreja, inclusive por Direito Divino, estão constituídas as autoridades essenciais para seu governo. Como Corpo Místico de Cristo e Igreja Celeste, pode prescindir do direito, todavia, como Povo de Deus, não foge ao velho princípio latino: ubi societas, ibi ius, constituindo-se, pois, em comunidade jurídica. Na Constituição Apostólica Sacrae Disciplinae Leges20, que promulgou o atual Código de Direito Canônico, o Santo Padre João Paulo II disse: LOMBARDÍA, 1991, p. 17. COMPÊNDIO DO VATICANO II, 2000, LG, n. 8. CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO. 2008, p. 17
Relações_miolo.indd 27
15/04/16 14:14
RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
[...] Constituída também como corpo social e visível, a Igreja precisa de normas: para que se torne visível sua estrutura hierárquica e orgânica; para que se organize devidamente o exercício das funções que lhe foram divinamente confiadas, principalmente as do poder sagrado e da administração dos sacramentos; para que se componham, segundo a justiça inspirada na caridade, as relações mútuas entre os fiéis, definindo-se e garantindo-se os direitos de cada um; e finalmente para que as iniciativas comuns empreendidas em prol de uma vida cristã mais perfeita sejam apoiadas, protegidas e promovidas pelas leis canônicas.
28
Anunciar a Boa Nova a todos os povos e em todos os recantos da Terra e batizar a todos os homens e mulheres para que, por meio da água e do Espírito, se tornem filhos de Deus, irmãos de Cristo e seus membros (da Igreja), levando ao mundo a salus animarum, é a missão da Igreja. E missão universal, dada por seu fundador aos doze apóstolos enviados, como escreve SANTO AGOSTINHO em A Cidade de Deus21 “[...] Cristo enviou ao mar deste mundo, com as redes da fé, uns quantos pescadores, sem instrução liberal e sem educação, ignorantes dos recursos da gramática, das armas e dos pomposos artifícios da retórica [...]” que formaram o denominado Colégio Apostólico, sucedido pelo Colégio Episcopal. Assim, a missão da Igreja, dada por seu fundador, Jesus Cristo, é especialíssima: a salvação dos homens por meio do anúncio do Evangelho, em todos os cantos da terra e até a consumação dos tempos, isto é, “[...] anunciar e comunicar a salvação realizada em Jesus Cristo, que Ele chama de Reino de Deus [...]”22. “Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho”23, que se traduz “[...] na Comunhão com Deus e entre os homens [...]”.24 21 22 23 24
Relações_miolo.indd 28
SANTO AGOSTINHO, 2001, p. 536. CDSI, n. 49. A BIBLIA DE JERUSALÉM, 1995, Mc 1,15. CDSI, n. 49.
15/04/16 14:14
1.2 o estAdo
25 26 27 28 29
29 A IGREJA E O ESTADO
Estado é vocábulo de origem latina: do substantivo status, que significa modo de estar, situação, classe social, condição; derivado do verbo stare (estar firme). Aparece na língua Portuguesa no século XIII, traduzindo-se entre os seus diversos significados como o de nação politicamente organizada; ou como define HOUAISS25: país soberano, com estrutura própria e politicamente organizado. Tratadistas e historiadores do Direito entendem, unanimemente, que neste sentido a palavra Estado foi usada pela primeira vez por Nicolau MAQUIAVEL em sua célebre obra O Príncipe de 1513, ao ali afirmar: “ todos os Estados, todos os domínios que imperaram e imperam sobre os homens, foram e são repúblicas e principados”26, inclusive denominando a sua cidade natal de Stato di Firenze. Nesta obra, o fiorentino, analisando as instituições políticas, as formas de governo e os tipos de Estado, ensina a conquistar o poder e nele se perpetuar, por meio da soberania e da centralização do Estado: “[...] do mesmo modo para conhecer bem a natureza dos povos é preciso ser príncipe e para conhecer bem a dos príncipes é preciso ser povo”27. Conforme FIUZA e COSTA28, o Estado não surgiu a partir de Maquiavel, por óbvio, pois já existia antes. Maquiavel teria criado tão-somente a denominação para a organização social na qual o homem nasce, vive e morre. Os gregos o denominavam de polis; e os romanos, de res publica. De polis nasceu o vocábulo política; e de res publica, república. BOBBIO29, discordando de FIÚZA e COSTA, defende ser a denominação Estado anterior a Maquiavel, pois a clássica obra não poderia ter trazido aquela frase, exatamente no início do texto, se o vocábulo em questão não fosse já usado. INSTITUTO ANTONIO HOUAISS, 2001, p. 1244. MAQUIAVEL, 2002, p. 46. MAQUIAVEL, p. 45. FIUZA; COSTA, 2010, p. 45 BOBBIO, 2010, p. 65.
Relações_miolo.indd 29
15/04/16 14:14
RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
Discorrendo sobre a origem do Estado, o jesuíta sociólogo Fernando Bastos de ÁVILA30 advoga:
30
A origem última do Estado se encontra na própria natureza social do homem, pela qual, desde os mais remotos inícios de sua história, ele procurou associar-se aos seus semelhantes, em comunidades cada vez maiores. Tais comunidades, os clãs, as tribos, as famílias patriarcais, foram se aglutinando em unidades sempre mais amplas [...] À medida, porém, que essas comunidades cresciam, a função de governá-las foi se tornando cada vez mais complexa, exigindo a criação de um órgão específico. Surge assim o Estado, que através dos tempos assumiu as formas mais variadas, desde as formas monárquicas até as formas do Estado democrático moderno.
É o Estado constituído por três elementos fundamentais ou essenciais: a população ou povo, o território e o poder ou governo, sendo os dois primeiros denominados de concretos ou materiais; e o terceiro, de elemento formal ou abstrato. São denominados essenciais ou fundamentais porque obrigatórios e indispensáveis à existência. Para MALUF31, “a condição de Estado perfeito pressupõe a presença concomitante e conjugada desses três elementos, revestidos de características essenciais: população homogênea, território certo e inalienável e governo independente.” Defende esse autor até que a ausência de um só destes elementos desnatura o Estado. A missão ou a finalidade do Estado é a busca do bem comum de todos os seus cidadãos e de todos os estrangeiros que lhe habitam o território. Entenda-se bem comum não exclusivamente como bem-estar material, mas o bem comum realização física e espiritual do homem. Na Encíclica Pacem in Terris, proclama o papa João XXIII (1958-1963) que “[...] a realização do bem comum constitui a própria razão de ser dos poderes públicos”32, isto é, a própria razão 30 31 32
Relações_miolo.indd 30
ÁVILA. 1983, p. 186. MALUF, 2010, p. 23 DOCUMENTOS DA IGREJA, Documentos de João XXIII, 1998, p 338.
15/04/16 14:14
do Estado. E mais conclama o Santo Padre: “Aqui, julgamos dever chamar a atenção de nossos filhos para o fato de que o bem comum diz respeito ao homem todo, tanto às necessidades do corpo, como às do espírito”33 (n. 57). São os Estados governados pelas autoridades civis e a elas, antes de quaisquer outros, incumbe perseguir o bem comum. Sobre as autoridades que têm o dever de tornar realidade a missão do Estado, o papa Leão XIII, nos idos de 1885, na sua Encíclica Immortale Dei34, sobre a constituição cristã dos Estados, asseverava:
Em algumas de suas quatorze encíclicas, João Paulo II destacou a missão do Estado, dentre as quais a Redemptor Hominis, escrita em 1979, com menos de cinco meses de pontificado, e a Centesimus Annus, de 1991. Na Redemptor Hominis, manifestou-se:
31 A IGREJA E O ESTADO
[...] pois os que têm autoridade sobre os outros são dela investidos exclusivamente para assegurar o bem público. Sob pretexto algum deve a autoridade civil servir para vantagem de um ou de alguns, visto que foi constituída para o bem comum. Se os chefes de Estado se deixarem arrastar para uma dominação injusta, se pecarem por abuso de poder ou por orgulho, se não proverem ao bem do povo, saibam que um dia terão de dar contas a Deus, e essas contas serão tanto mais severas quanto mais santa for a função que exercem e mais elevado o grau da dignidade de que estiverem investidos. “Os poderosos serão poderosamente punidos” [...] (n. 8).
O sentido essencial do Estado, como comunidade política, consiste nisto: que a sociedade e, quem a compõe, o povo é soberano do próprio destino. Tal sentido não se torna realidade, se, em lugar do exercício do poder com a participação moral da sociedade ou do povo, tivermos de assistir à imposição do poder por parte de um determinado grupo a todos os outros membros da mesma sociedade [...]. A Igreja sempre tem 33 34
DOCUMENTOS DA IGREJA, Documentos de João XXIII. op cit., n. 57 DOCUMENTOS DA IGREJA. Documentos de Leão XIII, 2005, p. 239.
Relações_miolo.indd 31
15/04/16 14:14
RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
ensinado o dever de agir pelo bem comum; e, procedendo assim, também educou bons cidadãos para cada um dos Estados. Além disso, ela sempre ensinou que o dever fundamental do poder é a solicitude pelo bem comum da sociedade; daqui dimanam os seus direitos fundamentais. Em nome precisamente destas premissas, referentes à ordem ética objetiva, os direitos do poder não podem ser entendidos de outro modo que não seja sobre a base do respeito pelos direitos objetivos e invioláveis do homem. Aquele bem comum que a autoridade no Estado serve, será plenamente realizado somente quando todos os cidadãos estiverem seguros dos seus direitos [...]35
Não se pode esquecer, pela importância que encerra, o pensamento do Concílio Vaticano II, na sua Constituição Pastoral Gaudium et Spes, sobre o Estado, sua natureza e finalidade: Indivíduos, famílias, agrupamentos diversos, todos que constituem a comunidade civil, têm consciência da própria insuficiência para instaurar a vida humana e percebem a necessidade de uma comunidade mais vasta, na qual todos empenhem diariamente as próprias forças para alcançar sempre melhor o bem comum. Por este motivo organizam a comunidade política segundo várias formas. Pois a comunidade política existe por causa daquele bem comum: nela obtém sua plena justificação e sentido, de onde deriva o seu direito primordial e próprio. Ora, o bem comum compreende o conjunto daquelas condições de vida social, que permitam aos homens, às famílias e às sociedades possam conseguir mais fácil e desembaraçadamente a própria perfeição. [...] Portanto é evidente que a comunidade e a autoridade se fundamentam na natureza humana e por isso pertencem à ordem predeterminada por Deus, embora sejam entregues à livre vontade dos cidadãos a escolha do regime e a designação dos governantes.36
32
35 36
Relações_miolo.indd 32
DOCUMENTOS DA IGREJA. Encíclicas de João Paulo II, 1997, n. 17. COMPÊNDIO DO VATICANO II, 2000, n. 74.
15/04/16 14:14
Capítulo 2
AS RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
Q
33 AS RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
uando eles partiram, os fariseus fizeram um conselho para tramar como apanhá-lo por alguma palavra. E lhe enviaram os seus discípulos, juntamente com os herodianos, para lhe dizerem: “Mestre, sabemos que és verdadeiro e que, de fato, ensinas o caminho de Deus. Não dás preferências a ninguém, pois não consideras um homem pelas aparências. Dize-nos, pois, que te parece: é lícito pagar imposto a César, ou não?” Jesus, porém, percebendo a sua malícia, disse: “Hipócritas! Por que me pondes à prova? Mostrai-me uma moeda do imposto.” Apresentaram-lhe um denário. Disse ele: “De quem é esta imagem e a inscrição?” Responderam: “De César.” Então lhes disse: “Devolvei, pois, o que é de César a César, e o que é de Deus, a Deus.” Ao ouvirem isso, ficaram maravilhados e, deixando-o, foram-se embora (Mt 22,15-22).
2.1 As reLAÇÕes reLigiÃo-estAdo Antes de JesUs cristo Foi o monismo o princípio básico das relações entre Religião e Estado antes de Jesus Cristo. Estado e Religião constituíam uma mesma unidade. Confundiam-se, pois. A Religião fazia parte da própria organização social, com o poder político absorvendo todos os fenômenos religiosos.
Relações_miolo.indd 33
15/04/16 14:14
RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
O Estado governava e dominava a Religião; a Religião era função do Estado; não havia distinção entre o sagrado e o profano. Além disso, o Estado cuidava de todas as pessoas e de todas as coisas, inclusive as religiosas. Na Roma politeísta, o imperador dividia-se em sumo sacerdote e pontífice máximo. Ele era uma das próprias divindades do Império; e devia ser adorado. Na Grécia, em Roma, no Egito e na Pérsia, o culto religioso era oficial e obrigatório; ao imperador, ao faraó e ao rei submetia-se a religião, o religioso. Nas Polis e nas Civitas, o religioso e o profano, o político e o sagrado, o espiritual e o temporal formavam uma singularidade. De La HERA e SOLER afirmam: [...] no cabía oposición entre el orden religioso y el temporal [...] El mundo precristiano es, pues, un mundo monista: religión y política aparecen confundidas [...] constituyen un todo único y armónico [...]1.2 E Fustel de COULANGES em A Cidade Antiga noticia: [...] esse regime social dos antigos no qual a religião era senhora absoluta na vida privada e na vida pública; no qual o Estado era uma comunidade religiosa, o rei um pontífice, o magistrado um sacerdote, a lei uma fórmula santa; no qual o patriotismo era da piedade, o exílio uma excomunhão, no qual a liberdade individual era desconhecida, no qual o homem estava submetido ao Estado pela sua alma, pelo seu corpo, pelos seus bens [...].3
34
2.2 o dUALismo cristÃo Dai a César o que é de César, e a Deus o que é Deus (Mt 22,21). Esta foi a grande inovação do Cristianismo quanto INSTITUTO MARTÍN DE AZPILCUETA, 1994, p. 37. “[...] não cabia oposição entre a ordem religiosa e a temporal [...] o mundo pre-cristão é, pois, um mundo monista [...] religião e politíca constituem um todo único e harmônico [...].” (Tradução do autor). 3 COULANGES, 1999, p. 313. 1 2
Relações_miolo.indd 34
15/04/16 14:14
35 AS RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
à relação Religião e Estado. Religião e Estado não mais se confundem, pois são duas realidades bem distintas. Jesus Cristo, no texto antes transcrito do Evangelho de Mateus (o mesmo texto se encontra nos dois outros evangelhos sinópticos – Mc 12,13-17 e Lc 20,20-26), deixa bem clara a existência de duas instituições submetidas a autoridades diversas. É o denominado dualismo cristão, uma das grandes contribuições do Cristianismo ao mundo ocidental, e que ainda vige, rompendo com o monismo da antiguidade grego-romana. O poder político deve ocupar-se das coisas temporais, as coisas temporais são submetidas ao poder civil; o poder religioso cuida das coisas espirituais, as coisas espirituais são submetidas às autoridades eclesiásticas. Com o dualismo cristão é estabelecida a total independência entre Religião e Estado, e entre Estado e Religião. Reconhece-se o poder das autoridades do Estado, mas em matéria de fé deve-se obediência a Deus e às autoridades religiosas, por ser a Igreja uma sociedade independente e autônoma no cumprimento de sua missão. Sobre a célebre frase de Jesus Cristo — Dai a César o que é de César, e a Deus o que é Deus – diz COULANGES: é a primeira vez que se distingue com tanta nitidez Deus do Estado. Pois César, nessa época, era ainda o grande pontífice, o chefe e o principal órgão da religião romana; era o guardião e o intérprete das crenças, sustinha em suas mãos o culto e o dogma.4 De La HERA e SOLER asseveram que [...] la respuesta lapidaria de Cristo al dilema sobre el impuesto ha sido considerada, con razón, el punto central de la doctrina cristiana en este campo5.6 Daí não se poder olvidar ter primazia entre as duas autoridades ou entre as duas ordens as questões espirituais sobre as temporais. COULANGES, 1999, p. 315. INSTITUTO MARTÍN DE AZPILCUETA, 1994, p. 39. 6 “[...] a reposta lapidar de Cristo ao dilema sobre o imposto, com razão, é o ponto central da doutrina cristã neste campo.” (Tradução do autor). 4 5
Relações_miolo.indd 35
15/04/16 14:14
RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
MAC DOWELL, no artigo Laicidade, Estado e Religião: o novo paradigma, declara:
36
[...] na visão de Jesus, a relação entre o religioso e o político se traduz na afirmação de duas realidades e de duas mentalidades claramente distintas, embora fadadas a conviver no mesmo espaço mundano e até nas mesmas pessoas. Se a Igreja e a sociedade política não se confundem, os cristãos que vivem no mundo, sem comungar com seus valores, são chamados a instalar nas relações interpessoais e nas próprias estruturas sociais o espírito evangélico. Esta missão não visa à realização do Reino definitivo no curso da história, mas é exigência do amor que almeja aliviar os sofrimentos dos irmãos e contribuir para que todos tenham uma vida digna de seres humanos e filhos e filhas de Deus.7
Portanto, não restam dúvidas de que o homem está submetido a dois tipos de autoridades: a do Estado e a da Igreja. Que o Estado promova o bem temporal da coletividade; e a Igreja, o bem espiritual da cristandade.
2.2.1 Os primeiros tempos do Cristianismo Foram de perseguição os primeiros tempos da história do Cristianismo, porque os cristãos não se submetiam ao culto oficial do Império Romano, sendo considerados ateus e perturbadores da ordem, e por isso mesmo destinados à morte. O imperador acreditava-se deus, e os cristãos se recusavam a adorá-lo. Por isso, como sustenta FRAGOSO: “o Cristianismo foi considerado crime de lesa-majestade da pior espécie, já que, como o monoteísmo judaico, não reconhecia outro deus, que não o seu.”8 Era o crimen laesae majestatis – perduellio, crime religioso e político ao mesmo 7 8
Revista Horizonte. Belo Horizonte: v. 8, n. 19, p. 44, out/dez de 2010. FRAGOSO, 1983, v. 2, p. 574.
Relações_miolo.indd 36
15/04/16 14:14
37 AS RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
tempo. Não se estabelecia, dessa forma, qualquer relação entre o Estado e a Igreja, porque esta era considerada seita ilícita. Até o advento do Edito do imperador Galério, em 311, quando se tolerou pela primeira vez o culto dos cristãos, desde que não perturbasse a ordem pública; e do Edito de Milão, em 313, dos imperadores Constantino e Licínio, que concedeu liberdade religiosa aos cristãos (aliás, este deve ser considerado a primeira lei de liberdade religiosa e pela qual todas as religiões foram equiparadas), vivem-se tempos de perseguição. Inúmeras perseguições, e o pior, por imputação falsa, porque os seguidores de Cristo eram homens amantes da paz, mas “[...] foram os cristãos levados a um martiriológio que chega às raias do inacreditável, mas até que compreensível se considerarmos que o Cristianismo incipiente, mas renovador, punha em cheque a divindade do imperador, enfraquecendo seus poderes.”9 A última grande perseguição, empreendeu-a o imperador Diocleciano (244-311). A maior e a mais violenta, que deixou milhares de mártires. Para ser condenado à morte, bastava o cristão recusar-se a prestar culto aos ídolos romanos, o que, todavia, não enfraquecia a Igreja, muito pelo contrário, fortificava-a e aumentava o número de cristãos. Ao mesmo tempo em que reconheciam a autoridade do Estado para as questões não religiosas, os primeiros cristãos tinham consciência de que em matéria de fé somente deviam obediência a Deus. Sobre os primeiros tempos da Igreja, LUCAS testemunhou: Chamando-os, pois, ordenaram-lhes que absolutamente não falassem nem ensinassem mais em nome de Jesus. No entanto, Pedro e João responderam: “Julgai se é justo, aos olhos de Deus, obedecer mais a vós do que a Deus. Pois não podemos, nós, deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos.” Então depois de novas ameaças, soltaram-nos, não encontrando
9
PIERANGELI, 2007, v. 2, p. 441.
Relações_miolo.indd 37
15/04/16 14:14
nada em que puni-los, também por causa do povo: todos glorificavam a Deus pelo que acontecera (At 4,18-21).
RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
E mais: O sumo sacerdote os interpelou: “Expressamente vos ordenamos que não ensinásseis nesse nome. No entanto, enchestes Jerusalém com a vossa doutrina, querendo fazer recair sobre nós o sangue desse homem!” Pedro e os apóstolos, porém, responderam: “ É preciso obedecer antes a Deus que aos homens. O Deus de nossos pais ressuscitou a Jesus, a quem vós matastes, suspendendo-o no madeiro” (At 5,27-30).
Costuma a doutrina transcrever trechos de obras dos Padres da Igreja para demonstrar os conflitos deste período histórico. TEÓFILO DE ANTIOQUIA, apologista falecido em 186, escreveu no seu Primeiro Livro a Autólico: Por isso, eu honraria melhor ao imperador, embora não o adorasse, mas rogasse por ele. Adorar, eu adoro apenas ao Deus real e verdadeiramente Deus, pois sei que o imperador foi criado por ele. Então me perguntarás: “Por que não adoras o imperador?” Porque não foi constituído para ser adorado, mas para que se lhe tribute a devida honra. Com efeito, ele não é Deus, mas homem estabelecido por Deus, não para ser adorado, mas para julgar com justiça (n. 11).10
38
JUSTINO DE ROMA, teólogo que viveu entre 100 e 165, na sua I Apologia, advertiu: Quanto a tributos e contribuições, procuramos pagá-los antes de todos àqueles que estabelecestes para isso em todos os lugares, assim como fomos ensinados por Cristo. [...] Portanto, nós somente a Deus adoramos, mas em tudo mais nós servimos a vós com gosto, confessando que sois imperadores e governantes dos homens e rogando que, junto com o poder imperial, também se encontre que tenhais prudente 10
Relações_miolo.indd 38
VV AA, 1995, p. 223.
15/04/16 14:14
raciocínio. Todavia, se não atendeis as nossas súplicas, nem esta exposição pública que vos fazemos de todo o nosso modo de viver, em nada ficaremos prejudicados, pois cremos, ou melhor, estamos persuadidos de que cada um pagará a pena, conforme mereçam as suas obras, pelo fogo eterno, e que terá que prestar contas a Deus, segundo as faculdades que recebeu do próprio Deus [...].11
2.2.2 O Cesaropapismo
[...] a ninguém absolutamente se recuse a liberdade de seguir e preferir a observância e a religião dos cristãos e de que seja concedida a cada qual a liberdade de dar consciente adesão à religião que julgar melhor [...] e que agora, livre e simplesmente, cada um daqueles que tomaram a livre decisão de praticar a religião dos cristãos, possa observá-la sem nenhum impedimento [...] Assim, cada qual tem o poder de escolher e praticar a religião que quiser. Isso resolvemos de sorte que não pareçamos diminuir o rito ou a religião de ninguém.12
39 AS RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
No século IV, com o já referido Edito de Milão (ano 313), expedido pelos imperadores Constantino e Licínio, a Igreja passa a fruir de vasta liberdade religiosa, saindo da clandestinidade e das catacumbas. A partir de então, as perseguições passaram a ser consideradas coisas do passado, pois, além de poder viver publicamente a fé, também se goza de favorecimentos do imperador. O famoso Edito de Milão, transcrito integralmente por EUSÉBIO DE CESARÉIA em sua História Eclesiástica, expressava:
O Edito de Milão, que para alguns não seria uma lei e sim um rescrito, já concedia benefícios aos cristãos, como a devolução de todos os bens eclesiásticos confiscados; e 11 12
JUSTINO DE ROMA, 1995, p. 34. CESARÉIA, 2000, p. 492.
Relações_miolo.indd 39
15/04/16 14:14
RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
40
logo em seguida a isenção de todo encargo público aos clérigos, como por exemplo, a denominada numera civilia. Com o imperador Teodósio, por meio do Edito Cunctos populos ou Edito de Tessalônica, em 380, a Igreja torna-se religião oficial do Império Romano: Es nuestra voluntad que todos los Pueblos que son gobernados por la administración de nuestra clemencia, profesen la religión que el divino Pedro, el Apóstol, dio a los romanos [..]13.14 Se com Constantino já começaram as interferências do poder imperial em assuntos eclesiásticos (assim como a convocação do Concílio Ecumênico de Nicéia em 325, a nomeação dos bispos, a decisão de disputas dogmáticas – Constantino se autoproclama bispo externo da Igreja), com Teodósio essa interferência chega ao extremo, tendo inclusive o Concílio de Calcedônia (451) o cognominado de sacerdos imperator. Ao intervencionismo dos imperadores nos assuntos eclesiásticos denomina-se de Cesaropapismo. A Igreja recebe favores do poder imperial e, em retribuição, contribui para manutenção do status do Império e de seus governantes, colocando-se a serviço da política imperial. La HERA e SOLER lembram que, com Justiniano I (527-565), [...] o Cesaropapismo va a convertirse em una institución permanente, y la teocracia, por voluntad del Emperador, constituirá el fundamento mismo del Estado15.16 Não se pode porém esquecer a contribuição do Cristianismo para melhoria da vida dos cidadãos do Império, influenciando o Direito Romano, a exemplo de melhor tratamento aos escravos. Desenvolveu-se o Cesaropapismo principalmente no Império Romano do Oriente, cuja influência permaneNAVARRO-VALLS e PALOMINO, 2003, p. 48. “É nossa vontade que todos os povos governados pela administração de nossa clemência professem a religião que o divino Pedro, o Apóstolo, comunicou aos romanos...” (Tradução do autor). 15 INSTITUTO, 1994, p. 48. 16 “o Cesaropapismo converte-se numa instituição permanente, e a teocracia, por vontade do imperador, é o próprio fundamento do Estado.” (Tradução do autor). 13 14
Relações_miolo.indd 40
15/04/16 14:14
ceu até o final do século XV, e levou a Igreja ao grande cisma de 1054, o rompimento do patriarca de Constantinopla com o bispo de Roma.
2.2.3 A Fórmula Gelasiana
17
41 AS RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
Gelásio I, papa que governou a Igreja entre 492 e 496, apresentou o famoso princípio sobre o dualismo cristão, designado de Fórmula Gelasiana ou Teoria dos Dois Gládios, verdadeira reação ao Cesaropapismo. Em carta dirigida ao imperador Anastácio I do Oriente, em 494, expõe Gelásio I sua teoria, a da existência de dois poderes para governar o mundo: a sagrada autoridade dos papas, com competência para as coisas espirituais; e o poder real dos imperadores, para administração das pessoas e das coisas temporais. Seria, no entanto, a autoridade dos papas maior e mais importante por recair sobre todos os homens, inclusive os imperadores, perante o tribunal divino. Com a Teoria dos Dois Gládios, a Igreja começa a se organizar estruturalmente. Da carta do papa Gelásio I, podem ser extraídas, segundo PRIETO17 as seguintes conclusões: existem duas potestades que governam o mundo, ambas de origem divina, independentes entre si e com suas respectivas competências, não submetidas uma à outra, sendo a vida espiritual regulada pela sagrada autoridade eclesiástica, devendo todos, inclusive os eclesiásticos, também cidadãos, obediência aos poderes civis; e as autoridades civis, também cristãos, às autoridades eclesiásticas; e merecer a sagrada autoridade consideração maior, por ser a dignidade da vida espiritual superior à da vida temporal. A Fórmula Gelasiana, que expressa a grande novidade do Cristianismo nas relações Igreja e Estado: o dualismo cristão – Dai a César o que é de César, e a Deus o que é Deus PRIETO, 2005, p. 28.
Relações_miolo.indd 41
15/04/16 14:14
– é o denominado paradoxo cristão: o reconhecimento da autonomia dos poderes deste mundo e a simultânea afirmação de necessitarem os homens de redenção e salvação. Com esta teoria, foi firmado no Cristianismo um grande princípio, que não é só de uma época, mas vive na Igreja pós Vaticano II.18 Diz o Concílio Vaticano II:
RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
A Igreja que, em razão de sua finalidade e competência, de modo algum se confunde com a comunidade política e nem está ligada a nenhum sistema político, é ao mesmo tempo sinal e a salvaguarda do caráter transcendente da pessoa humana. Cada uma em seu próprio campo, a comunidade política e a Igreja são independentes e autônomas uma da outra. Ambas, porém, embora por título diferente, estão a serviço da vocação pessoal e social dos mesmos homens (GS, n. 76).
42
2.2.4 A Hierocracia Medieval Hierocracia, vocábulo de origem grega = hierós (sagrado) + cracia (poder), é forma de governo, de origem binzantina, em que os eclesiásticos interferem no poder estatal ou o exercem diretamente. O hierocratismo medieval – potestas indirecta Ecclesiae in temporalibus – baseia-se na superioridade do poder espiritual sobre o poder temporal. Em 395, o Império Romano foi dividido em dois reinos: o Império Romano do Ocidente, com a capital em Roma; e o Império Romano do Oriente, com a capital em Constantinopla. Após a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, e as invasões bárbaras, em especial as dos povos germânicos, formaram-se diversos reinos, e a Igreja começa o ocupar o espaço vazio do poder, cujo ápice ocorreu nos séculos XII e XIII. Nasce o sistema feudal, onde um reino é dividido em vários feudos e entregues aos chefes militares, aos bispos e aos abades. Surge o Sacro Império 18
Relações_miolo.indd 42
RHONHEIMER, 2009, p. 45.
15/04/16 14:14
[...] Pues no pretendemos hacer justicia en assuntos feudales, cuya jurisdicción le pertenece [...] pero nosotros queremos decidir en la questión de peccato, cuya censura nos pertenece sin duda [...] En esto, por supuesto, no nos apoyamos en ninguna constitución humana, sino en mucho más, en la ley divina, porque nuestro poder procede non de hombre, sino de Dios: cualquiera que esté en su sano juicio sabe que es proprio de nuestro cargo apartar al cristiano de todo pecado y obligarle, si desprecia la corrección, con penas eclesiásticas19.20
43 AS RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
Romano Germânico com a coroação de Carlos Magno, no ano 800, pelo papa Leão III (795-816). O império é denominado Sacro porque da Igreja advinha a legitimidade do imperador. Os papas concediam legitimidade ao exercício do poder aos reis, inclusive os coroando, e estes se tornavam seus vassalos, principalmente para defesa da Igreja e do papado. Todo poder temporal foi submetido ao poder eclesiástico, havendo quase uma unidade entre as duas sociedades – só uma Igreja e um só Império —, é a respublica christianorum. Buscando conservar sua independência, a Igreja promoveu grande reforma durante o pontificado de Gregório VII (1073-1075), visando a garantir a superioridade do poder espiritual. Inocêncio III, papa entre 1198 e 1216, expede, em 1204, a Decretal Novit Ille, dirigida ao episcopado francês, em razão do rompimento do tratado de paz entre o rei francês Felipe II (1180-1223) e o rei inglês João I, cognominado João sem Terra (1199-1216), manifestando a primazia do poder dos papas sobre o dos reis. Escreveu o Pontífice:
NAVARRO-VALLS e PALOMINO, 2003, p. 108. “[...] não pretendemos fazer justiça em assuntos feudais cuja jurisdição a ele pertence (ao rei) [...] porém nós queremos decidir sobre a questão do pecado, cuja censura, sem dúvida, nos pertence [...] e para isso não nos apoiamos em nenhuma constituição humana, senão em uma muito maior, na lei divina, porque nosso poder não procede do homem, mas de Deus: qualquer um que esteja em seu perfeito juízo sabe que é próprio do nosso cargo separar o cris19
20
Relações_miolo.indd 43
15/04/16 14:14
RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
44
Surge então a disputa de poder denominada de luta das investiduras, em razão das designações das autoridades para os feudos, em especial os que eram ao mesmo tempo bispados e abadias. Busca a Igreja conservar sua independência. Os reis e imperadores precisam garantir-se no poder, pois bispados e abadias eram também feudos, e esses senhores feudais, ainda que eclesiásticos, ligavam-se ao poder temporal por votos de fidelidade. A luta das investiduras chega ao fim com a Concordata de Worms, também denominada de Pactum Calixtinum, assinada pelo papa Calixto II (1119-1124) e o imperador Henrique V (11111125) no ano de 1122. É a primeira Concordata, composta por documentos distintos: um por parte do imperador Henrique V, e o outro, pelo papa Calixto II. Chega ao apogeu o Hierocratismo Medieval com o papa Bonifácio VIII, que governou a Igreja de 1294 a 1303. Da Bula Unam Sanctam de 1302, que encerra o pensamento de São Bernardo, monge cisterciense e abade de Clairvaux (1090-1153) na sua obra De consideratione ad Eugenium Papam, transcreve-se o excerto: Según nuestra fe estamos obligados a creer y a sostener que hay una sola Iglesia [...] y también que no hay salvación ni perdón fuera de ella [...] Las palabras del Evangelio nos enseñan que en esta Iglesia y en su poder hay dos espadas, a saber: una espiritual y e una temporal [...] la una, para ser utilizada en favor de la Iglesia, y la outra, por la Iglesia; la primera, por el sacerdote; la última, por la mano de reyes y caballeros pero a la voluntad y con consentimiento tácito del sacerdote. Pues es necesario que una espada esté subordinada a la otra, y que la autoridad temporal esté sujeta a la espiritual. [...] Pero es necesario que confesemos sin rodeos que el poder espiritual excede a todo poder temporal en dignidad e en nobleza, como las cosas espirituales superan a las temporales. [...] Por conseguiente, si el poder temtão de todo o pecado e obrigá-lo, se despreza a correção, com penas eclesiásticas.” (Tradução do autor).
Relações_miolo.indd 44
15/04/16 14:14
poral comete error, será juzgado por el espiritual; [...] En consecuencia, declaramos, afirmamos, definimos y pronunciamos que es absolutamente necesario para obtener la salvación que toda criatura humana esté sujeta al Romano Pontífice21.22
2.3 A reFormA ProtestAnte
NAVARRO-VALLS e PALOMINO, 2003, p. 121. “Segundo nossa fé estamos obrigados a crer e a declarar que há uma só Igreja [...]; e também que não há salvação nem perdão fora dela [...]. As palavras do Evangelho nos ensinam que nesta Igreja e em seu poder existem duas espadas, a saber: uma espiritual e uma temporal [...] uma para ser utilizada em favor da Igreja, e a outra pela Igreja; a primeira, pelo sacerdote; a última, pelas mãos dos reis e soldados de acordo com a vontade e o consentimento tácito do sacerdote. Porque é necessário que uma espada esteja subordinada à outra, e que a autoridade temporal esteja subordinada à espiritual. [...] Porém é necessário que confessemos que o poder espiritual está acima do poder temporal em dignidade e em nobreza, como as coisas espirituais estão acima das temporais. [...] Assim, se o poder temporal erra, será julgado pelo espiritual; se o poder espiritual inferior comete erro será julgado pelo poder espiritual [...] Em consequência, declaramos, afirmamos, definimos e pronunciamos que é absolutamente necessário para que se obtenha a salvação que toda criatura humana esteja sujeita ao Romano Pontífice.” (Tradução do autor). 21
22
Relações_miolo.indd 45
45 AS RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
Ocorrida no século XVI, a Reforma Protestante teve como principais protagonistas Martinho Lutero (14831546) na Alemanha; João Calvino (1509-1564) na França; Zuínglio (1484-1531) na Suíça; e Henrique VIII (15091547) na Inglaterra. Por óbvio houve motivações religiosas, mas também foi estimulada por razões políticas. Somente a Escritura com a interpretação livre feita por cada pessoa era o grande princípio dos reformadores. As causas e consequências da Reforma são por demais conhecidas: o rompimento da unidade da Igreja no Ocidente e as denominadas guerras religiosas. Os reformadores tinham em comum, além da radicalidade, o combate a uma Igreja hierárquica e juridicamente organizada. Um dos documentos queimados por Lutero em praça pública, em 1520, juntamente com a Bula de sua excomunhão, foi o Corpus Iuris Canonici, dando
15/04/16 14:14
RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
46
provas inequívocas de que, rompendo com a Igreja, deveria romper com sua estrutura jurídica, com seu Direito.23 A Igreja reage com um movimento denominado Contra-Reforma, cuja culminância foi o Concílio de Trento. O principal resultado da Reforma (que ainda perdura) foi o rompimento da unidade da Igreja. Dele surgiram várias igrejas reformadas, denominadas de igrejas protestantes, sendo as principais a Luterana, a Calvinista, a Anglicana, a Presbiteriana, a Anabatista, a Batista e a Metodista. Sem a hierarquia espiritual, sem a Igreja jurídica e hierárquica, o tradicional princípio do dualismo cristão perdeu sua razão de existir e, em consequência, os países protestantes retornam ao antigo monismo e tornam-se os príncipes e senhores dos assuntos eclesiásticos.24 Assim, um dos resultados da Reforma é o favorecimento dos Estados absolutistas confessionais baseados no princípio cuius regio illius religio, sendo a religião oficial a do rei, que a podia impor a seus súditos, proibindo as demais. Surge, por conseguinte, a intolerância religiosa, pois não seguir a religião oficial era trair o Estado e o rei. O princípio cuius regio illius religio adveio do Tratado de Westfália (1648), que estabelece a competência do poder político sobre a vida religiosa dos cidadãos, e que não contou com a concordância do Papado,25 nascendo assim as monarquias absolutistas, católicas ou protestantes. Havia interferência na vida eclesiástica, e a Religião punha-se a serviço do poder secular. As nações se tornam católicas ou protestantes, de acordo com seus soberanos: Inglaterra, Noruega, Holanda, Dinamarca, Finlândia e Suécia, são protestantes; e França, Portugal, Espanha, Irlanda, entre outras, são católicas. Importa destacar que, ainda hoje, em plena época da laicidade dos Estados, alguns dos países protestantes mantém suas religiões oficiais, a exemplo da Noruega, cuja 23 24 25
Relações_miolo.indd 46
INSTITUTO, 1994, p. 63. PRIETO, 2005, p. 35. INSTITUTO, 1994, p. 64.
15/04/16 14:14
Constituição, apesar da ampla liberdade religiosa existente, estabelece no art. 2º o Luteranismo como religião oficial; e a Dinamarca, que elegeu a Igreja Evangélica Luterana como religião do Estado; ou a Inglaterra, cuja religião oficial é a Anglicana, tendo a rainha como chefe suprema dessa Igreja. Convocado pelo papa Paulo III (1534-1549), o Concílio de Trento (1545-1563) foi ponto alto da reação da Igreja Católica à Reforma, a denominada Contra-Reforma. Neste Concílio foi rediscutida toda a doutrina Católica, levando em conta as críticas apresentadas pelos reformadores, para ao final reafirmar a doutrina tradicional da Igreja, em especial a questão da autoridade do papado, os sete sacramentos, inclusive a indissolubilidade do Matrimônio, e a Igreja como instituição hierárquica e jurídica. Condenando a doutrina reformadora da justificação pela fé, criam-se os seminários para formar os membros do clero e rejeita-se a intervenção do Estado nos negócios eclesiásticos, confirmando o dualismo cristão.
Das nações absolutistas, cuja religião do príncipe era o Catolicismo, surgem os denominados Estados Católicos. Com a Reforma Protestante desaparecem as velhas correntes do Cesaropapismo e do Hierocratismo e vem a lume a nova doutrina do poder indireto, com duas vertentes: a eclesial, na qual a Igreja teria poder indireto sobre as coisas temporais; e a do Estado, onde o príncipe exerceria poder indireto sobre as questões eclesiais. Em ambas, se reconhece o poder direto da outra instituição sobre suas questões: a Igreja sobre o Espiritual, e o Estado sobre o temporal. Assim, apesar de independentes, cada uma tem poderes indiretos sobre a outra. A vertente eclesial elaborada pelos ca-
Relações_miolo.indd 47
AS RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
2.4 o regALismo e sUAs VAriAdAs mAniFestAÇÕes nA eUroPA
47
15/04/16 14:14
RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
48
nonistas, partindo do lema a potestas indirecta Ecclesiae in temporalibus, reconhece a independência e a autonomia do Estado, mas o poder superior é da Igreja em razão de seu fim primário, a salvação das almas; e poder indireto sobre as coisas temporais por deverem estas servir ao fim primário da Igreja. Na vertente estatal, regulada pelo princípio iura maiestática circa sacra, o poder real era considerado de origem divina (o que sempre havia sido pregado pela própria Igreja) razão pela qual o príncipe poderia intervir, ainda que de maneira indireta, nos assuntos eclesiásticos, uma reação do poder indireto da Igreja em matérias temporais. Nasce o Regalismo, sistema de relações entre a Igreja e o Estado na Idade Moderna. Pretendia o Estado Católico pelo menos relativa autonomia em relação ao papado, como ocorria com os Estados protestantes, sobre cujas Igrejas nacionais o rei detinha poder absoluto. Nos séculos XVI a XVIII, exigiam os reis maior intervenção em assuntos eclesiásticos, com base na já referida origem do poder divino dos príncipes, e os papas permitiam aos príncipes, por meio de privilégios ou concessões, algumas competências em assuntos eclesiásticos, os quais depois passam a exigi-los, não mais como uma concessão da Igreja, mas como direito real, uma regalia, algo que lhes pertencia por direito. Manifestou-se, assim, o Regalismo, abusiva intromissão do Estado na vida da Igreja, objetivando controlar-lhe os assuntos eclesiásticos, interferir-lhe na vida interna e limitar-lhe a autonomia. Verdadeiro retorno ao Cesaropapismo; um Cesaropapismo da época moderna. Era o controle do religioso pelo poder civil, principalmente por meio do instituto denominado Padroado, muitas vezes concedido pela própria Igreja, cabendo em razão disso ao soberano a nomeação dos bispos e de outros cargos eclesiásticos importantes; bem como, do Beneplácito, instituto que exigia para validade de documentos pontifícios, em determinado território de uma nação, a devida autorização de seu monarca.
Relações_miolo.indd 48
15/04/16 14:14
O termo regalismo advém de regalia, que eram os direitos, propriedades e prerrogativas da Coroa, passando a significar a atividade real frente aos direitos e jurisdição de outras autoridades. Não foi uniforme o Regalismo nos reinos católicos. Variava de país para país, inclusive com denominações próprias, a exemplo de:
2.4.1 O Galicanismo
Relações_miolo.indd 49
49 AS RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
Regalismo na França, que sempre buscou parcial independência em matéria religiosa em relação à Roma, era comportamento tolerado pelo papado, desde que não envolvesse dogmas. Em 1682, porém, sob o reinado de Luís XIV (1643-1715), o absolutista cognominado de o Grande ou o Rei Sol e autor da célebre frase L’État c’est moi, com a Declaração da Assembleia do Clero Francês (1681), encontrou óbices. Bousset (1627-1704), bispo e doutrinador da origem divina do poder real com sua obra La Politique tirée de l’Écriture sainte, foi o grande redator da Declaração da Assembleia do Clero Francês, na qual são estabelecidos, entre outros, os quatro famosos artigos galicanos: nem a Igreja e nem o papa tem poder algum sobre os príncipes em matéria temporal; o Concílio é superior ao papa (surgia a famosa doutrina do Conciliarismo); o primado deve respeitar os direitos das Igrejas locais francesas; e as declarações papais em matéria de fé não são irreformáveis. Aprovada unanimemente, a Declaração da Assembleia do Clero Francês transformou-se em Lei por determinação de Luís XIV. Buscava a doutrina galicana limitar o poder papal, inclusive em matéria dogmática. Roma reagiu, e tais limitações foram veementemente condenadas pelos papas Inocêncio XI (1676-1689), no mesmo ano de 1682, e Alexandre VIII (1689-1691), em 1690. Revogou-a o próprio Luís XIV, decisão que, após a sua morte, foi cancelada pelo Parlamento
15/04/16 14:14
francês em 1715. O Concílio Vaticano I, em 1870, também condenou os artigos galicanos ao tratar da infabilibilidade papal na Constituição Pastor Aeternus.
RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
2.4.2 O Febronianismo
50
Foi assim denominado na Alemanha o Regalismo, em razão do canonista Justino Febronio, pseudônimo de um bispo auxiliar da diocese de Tréveris, que publicou em 1763 De statu Ecclesiae, no qual defendia teses antipapais, entre as quais a ser o primado pontifício simplesmente honorífico em relação aos demais bispos, e que só visava à unidade da Igreja, por meio da observância dos cânones e da conservação da fé; e que o poder das chaves havia sido concedido a todos os bispos. Para Febronio, o papa não era infalível e “o poder na Igreja toca, primeiramente, ao conjunto dos bispos ou ao Concílio Ecumênico e as decisões papais só têm vigor se aprovadas pela lgreja inteira e introduzidas em cada uma das dioceses pelo respectivo bispo”.26 Buscava o Febronianismo a nacionaliazação da Igreja Católica na Alemanha, tirando-lhe toda e qualquer subordinação a Roma.
2.4.3 O Josefenismo Denominação do Regalismo na Áustria, em razão do imperador José II (1780-1790), o chamado Rei Sacristão, por sua interferência até nas menores questões litúrgicas da Igreja, como por exemplo, o número de velas acesas nas missas e demais cerimônias litúrgicas. A Igreja deveria estar subordinada ao Estado, como ocorria com as Igrejas ProBITTENCOURT, Estevão. Galicanismo e Febronianismo. Disponível em: <http://www.comshalom.org/fo rmacao/exibir.php?form_id=1351> Acesso em: 10 jul. 2013.
26
Relações_miolo.indd 50
15/04/16 14:14
testantes. O Regalismo austríaco, iniciado pela Imperatriz Maria Teresa (1740-1780), mãe de José II, fundamentava-se nas ideias de Febronio. A intervenção de José II impediu a comunicação direta dos bispos com o papa; foram extintas as ordens religiosas contemplativas, e nacionalizadas as oblativas. O Josefenismo revogou alguns cânones da legislação matrimonial, especificamente os que tratavam dos impedimentos. Na tentativa de evitar mais uma divisão na Igreja, como acontecera com Henrique VIII na Inglaterra, o Papa Pio VI (1775-1799) visitou Viena em 1782. Comparou-se o Regalismo austríaco a um verdadeiro Cesaropapismo. Coube ao imperador Francisco José I (1848-1916) extinguir o Josefenismo completamente em 1850.
2.4.4 O Jurisdicionalismo
2.4.5 O Regalismo na Espanha
51 AS RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
Designação do Regalismo na Itália, em especial nos reinos de Nápoles, Turim e Sicília. Era uma espécie de Regalismo menos radical e mais respeitoso com a Igreja. A terminologia advém da questão da jurisdição reclamada pelo papa, com o apoio dos jesuítas, após o Concílio de Trento; teve toda sua base no pensamento do jurista Francesco d’Aguirre; e buscava limitar a jurisdição do papa sobre a Igreja, aumentando a do rei.
Iniciado com os denominados Reis Católicos Isabel I (1474-1504) e Fernando V (1479-1516), que se consideravam defensores e propagadores da Fé Católica, atingiu seu auge com o rei Felipe IV (1621-1665), que chegou a proibir a abertura de novos conventos, e com Carlos III (17161788), que expulsou os jesuítas da Espanha em razão de serem fiéis ao papa, em 1767.
Relações_miolo.indd 51
15/04/16 14:14
RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
Caracterizou-se o Regalismo espanhol por três institutos principais: o padroado, pelo qual o rei criava as dioceses e nomeava-lhes bispos e outras autoridades eclesiásticas; o regium exequatur, impunha que nenhum documento vindo de Roma valeria sem a aprovação real, tendo assim o rei controle sobre todos os documentos advindos da Santa Sé; e os recursos de força, apelações aos tribunais estatais das sentenças dos tribunais eclesiásticos, enfraquecendo os últimos. Interveio também o rei nas comunicações dos bispos com a Santa Sé. Deviam os bispos apresentar relatórios da vida de suas dioceses ao Governo. E mais, existiu um Tribunal da Inquisição Espanhol, independente da Inquisição Romana, além das denominadas reservas de prestações econômicas, pelas quais se proibia a remessa de quaisquer quantias à Santa Sé.
2.4.6 O Regalismo em Portugal
52
Da França, da Alemanha, da Áustria e da Espanha chegam a Portugal influências de toda ordem e com elas o Regalismo, sem perder sua característica principal: a interferência direta do Estado nos assuntos eclesiásticos. Já no século XVI, o Regalismo se faz presente em Portugal, pois em 1532 é criada a Mesa de Consciência e Ordens por Dom João III (1521-1557), em cujo reinado se estabelece o padroado, o regium exequatur e a inquisição. O auge do Regalismo português ocorre nos reinados de Dom João V (1707-1750) e Dom José I (1750-1777). Dom João V, dentre outros feitos, transforma o arcebispado de Lisboa em sede patriarcal (1716) e rompe relações diplomáticas com a Santa Sé por longos dez anos; para depois de restabelecidas, ainda receber do papa, em 1748, o título de Sua Majestade Fidelíssima. No reinado seguinte, o de Dom José I, que teve por primeiro ministro o Marquês de Pombal, o Regalismo por-
Relações_miolo.indd 52
15/04/16 14:14
tuguês vive sua época de ouro, com a publicação de diversas obras de caráter regalista, de autoria do seu ideólogo, o padre Antonio Pereira de Figueiredo. Dentre elas, a De Suprema Regnum, que define a jurisdição real e a eclesial, dizendo-as independentes, contudo o poder real, em razão de origem divina e por cuidar das coisas materiais, a todos subordinaria, inclusive padres e bispos. Pombal, acreditando na origem divina do poder real, buscava em suas ações enfraquecer o poder eclesiástico com o consequente fortalecimento do poder do rei. Para ele, a Igreja estaria a serviço do Estado. Déspota esclarecido, Pombal conseguiu a expulsão dos jesuítas em 1759, visando a retirar o controle da educação da Companhia de Jesus, que se opunha à laicidade do ensino. Em consequência, a Inquisição é debilitada, e os autos de fé são extintos, subordinando-se a Igreja ao poder real, cujas decisões haviam de ser confirmadas pelo rei. Proibiu-se mais a discriminação contra os denominados cristãos novos, e tudo culminou no rompimento, mais uma vez, por Portugal, das relações com a Santa Sé.
Vige o Regalismo no Brasil do descobrimento à Proclamação da República, com toda sua força e com todos os seus institutos. Primeiro, como colônia de Portugal, no período de 1500 a 1822, porque território do Estado Português. Proclamada a independência pelo príncipe português Pedro de Alcântara, herdou-se não só a dinastia, mas também todo o corpo jurídico. Assim, o príncipe, depois imperador Pedro I (1822-1831), outorga em 1824 a primeira constituição brasileira, deixando ali gravados os institutos do Regalismo. Veja-se:
AS RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
2.5 o regALismo no BrAsiL
53
Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão
Relações_miolo.indd 53
15/04/16 14:14
RELAÇÕES IGREJA-ESTADO
permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo.
54
[...] Art. 102. O Imperador é o Chefe do Poder Executivo, e o exercita pelos seus Ministros de Estado. São suas principaes attribuições: [...] II. Nomear Bispos, e prover os Beneficios Ecclesiasticos [...] XIV. Conceder, ou negar o Beneplacito aos Decretos dos Concilios, e Letras Apostolicas, e quaesquer outras Constituições Ecclesiasticas que se não oppozerem á Constituição; e precedendo approvação da Assembléa, se contiverem disposição geral.
Por herança de Portugal e por determinação dos dispositivos constitucionais antes transcritos, a Religião Católica foi a religião oficial do Brasil Império. O sistema de padroado subordinava a Igreja e a tornava uma repartição estatal; seus bispos e padres, simples funcionários públicos; e os bispados, criavam-se por lei. Os documentos pontifícios e conciliares só eram publicados se autorizados pelo imperador, que também escolhia os bispos e párocos. Não se erigia sequer uma paróquia sem autorização estatal; e o acesso à vida monástica era proibido. A maioria do clero se acomodou a essa situação de agente do serviço público, praticava o rito e recebia a baixa côngrua. Entre os diversos conflitos ocorridos nas relações Igreja-Estado no período imperial, dois merecem destaque: a eleição do bispo da diocese do Rio de Janeiro em 1833 e a denominada Questão Religiosa em 1873. Durante a menoridade do imperador Pedro II, a Regência Trina, em 1833, nomeia o padre Antônio Maria de Moura (ordenado em São Paulo e professor da Faculdade de Direito da Província Paulista), deputado por Minas Gerais e presidente da Câmara dos Deputados, bispo da
Relações_miolo.indd 54
15/04/16 14:14