CARPE DIEM Diálogos Contemporâneos
Antônio Campos
CARPE DIEM Diálogos Contemporâneos 2ª edição
Recife | 2010
Copyright© 2010 Antônio Campos Reservados todos os direitos. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida – em qualquer meio ou forma, seja mecânico, eletrônico, fotocópia, gravação, etc. – nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem a expressa autorização do Autor.
Projeto gráfico Patrícia Lima Revisão Norma Baracho Araújo Dados Internacionais de Catalogação e Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
___________________________________________________ C198c
Campos, Antônio, 1968 CarpeDiem : diálogos contemporâneos. 2. ed. / Antônio Campos. – 2. ed. – Recife : CarpeDiem,
201 0.
166 p. : il.
ISBN 978-85-62648-06-9 I. ENSAIOS BRASILEIROS – PERNAMBUCO. I. I. Titulo. PeR – BPE 10-0435
CDU 869.0(81)-4 CDD B869. 4
___________________________________________________ ISBN 978-85-62648-06-9
Foi feito o depósito legal.
Apresentação Luiz Carlos Monteiro
Neste conjunto de artigos de Antônio Campos o que prevalece é o senso de atualidade, a consciência do instante veiculada em proposições de uma visada nova para um mundo em constante transformação. E isso se realiza em forma de diálogos que não se restringem ao local nem ao nacional, embora tenham sido publicados pela imprensa escrita nesses âmbitos. São textos breves e de variada procedência, versando sobre eventos correntes e diferenciados em sua natureza de base: da diplomacia cultural ao roteiro biográfico sucinto, da complexidade da religião ao fluxo institucional dos bens culturais. Quando fala de diplomacia cultural, o escritor chama a atenção para a política internacional e as relações exteriores, geralmente mais voltadas para o mercantilismo em grandes acordos e negócios de guerra, quais políticas públicas e privadas que sobrepujam as nuanças culturais que legitimam e referenciam povos e países. Empreende a defesa veemente de criação do Instituto Machado de Assis
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
(IMA), cuja plataforma inicial foi ventilada a partir de uma declaração conjunta de representantes de Portugal e do Brasil, na VIII Cimeira Luso-Brasileira, ocorrida na cidade do Porto em 2005. Ao referir-se a aspectos às vezes pouco conhecidos da vida e da obra de personalidades tão diferentes quanto um Albert Camus e um Joaquim Nabuco, ou uma Clarice Lispector, passa a estimular a curiosidade de leitores diversos, pelo que expõe desses escritores. Instantâneos da vida da menina Clarice no Recife, com indicações dos lugares em que morou, das escolas que frequentou e das circunstâncias da imigração da sua família; a faceta libertária de Nabuco na luta espetaculosa pelo fim da escravidão brasileira, dispondo do luxuoso, guerreiro e financista auxílio inglês; a breve práxis revolucionária de Camus militando, mesmo que subterraneamente, na Resistência Francesa, e propagando, da sua estatura precoce de escritor e filósofo, a junção de existencial, surreal e marxismo. Do lado dos vivos, fica-se sabendo do modo inusitado de pintar de Christina Oiticica, que enterra literalmente seus quadros por um tempo, até que apreendam o cheiro, a consistência e a pele da terra. A saga de um Aldo Rebelo, político que vem desenvolvendo uma luta intransigente dos direitos vilipendiados dos índios brasileiros, algo que não tem a devida repercussão, provavelmente pelos altos interesses exploratórios ali envolvidos e embutidos. As funções do “quase” podem ser constatadas no artigo As faces do quase, que refletem uma inclinação esotérica. Elas se originam do artigo O quase, de autoria da catarinense Sarah Westphal Batista da Silva, que foi divulgado na In-
6
Antônio Campos
ternet e traduzido para o francês como sendo do escritor Luis Fernando Verissimo. Um campeão que jamais perde ou perdeu, não conhece o significado profundo do “quase”. O perdedor que se contenta por ter lutado com todas as forças, sem alcançar a vitória, poderá dar-se por satisfeito com o fato de “quase” ter chegado lá, na consecução de seu intento, este, sim, conhece as variações e ambiguidades da palavra. Há o “quase” que frustra e preocupa e o que é alívio e libertação da tensão e do perigo. As possibilidades de realização advindas do “quase” podem estar hospedadas no acaso, ou derivarem diretamente da decisão individual ou coletiva. Em outro texto de especial importância, Presença judaica no Brasil, é feita uma relembrança histórica da imigração quase sempre forçada dos judeus, das perseguições que sofreram mundo afora, e que ainda sofrem, mas em menor e mais velada escala. Do outro lado, aflora a contribuição inestimável para a cultura, a educação e o trabalho que esse povo de gente sábia proporcionou nos lugares onde esteve ou está instalado. O arremate do artigo serve para anunciar o que norteará a VI Fliporto: A literatura judaica e o mundo ibero-americano, cuja homenagem principal será prestada a ninguém nada mais nada menos que Clarice Lispector, que tinha no sangue o forte estigma da descendência judia e a marca voluntariosa do povo ucraniano. O que está por trás das novas e sedutoras mídias, a problemática universal do livro como objeto supostamente a desaparecer ou a ser preservado em suas formas seculares e presentes, o trabalho individual de figuras da política, do pacifismo ou da cultura, que mudaram a história de um país ou de um continente refletem abordagens definidoras e persistentes, aliadas a uma investigação paulatina e ininter7
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
rupta. Cada modalidade dessas amplia-se e gera extensivamente outra gama de textos escritos sob um ponto de vista assemelhado em seus modos afirmativo, descritivístico e argumentativo. E assim, o autor apresenta ao leitor atento um grupo de realizações textuais que logram ultrapassar a visão provincialista pelas reflexões instigantes que permitem e pelas questões e problemas que suscitam, pelo fato de trazerem a lume temáticas e assuntos que ainda estão sendo pensados e absorvidos, alguns em pleno processo de experimentação, numa tentativa mais de abrangência e largueza de raciocínio, do que de falseados e incipientes aprofundamentos. Antônio Campos constrói sem alarde e trabalha com paciência os seus escritos. Foi uma surpresa para todos que o conheciam a sua aparição como poeta quando do lançamento de Portal de sonhos em 2008. Anteriormente, ele já havia lançado outro livro de boa repercussão nos meios literários, um mosaico de artigos, cartas e crônicas a que intitulou Território da palavra. Mas agora, com este Carpe Diem: diálogos contemporâneos, volta com novas surpresas, sustentadas de um ângulo conceitual e questionador, sem pretender ser dono da verdade e sem escamotear a inclinação jornalística que tais artigos expressam e configuram. Além disso, é de notar a conquista cotidiana de um estilo em progresso a partir de estruturas sintáticas, semânticas e formais que vem apurando e refinando. Algo desse desempenho é consequência da forte relação que manteve com o pai, o escritor Maximiano Campos, com quem jamais deixou de aprender, e de quem recebeu o necessário incentivo para a leitura e a escrita. No presente, Antônio Campos esmera-se nas tarefas culturais a que se propõe, entre as quais produzir eventos, publicar 8
Antônio Campos
livros, ministrar palestras, participar de entidades diversas. Contudo, sua pauta fundamental consiste em estabelecer diálogos onde quer que esteja. Numa palavra, está na razão de ser deste livro a sua orientação para temas, fatos e situações que oferecem novas motivações para discussões, embates, reflexões e questionamentos acerca do que vai pelo planeta. E o que deflagra o nível de importância dessas digressões são justamente o ensejo e o esforço de tomá-las como assuntos fundadores e relacionais na escrita, evitando, sempre que possível, o feitio circunstancial que as reveste pela sua condição de atualidade gritante, cujas revelações em bloco não prescindem inteiramente do estigma e da onipresença de um real mais aproximado e direto. Luiz Carlos Monteiro é poeta, crítico literário e mestre em Teoria da Literatura pela UFPE.
9
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
10
Sumário
Por uma nova diplomacia cultural, 17 Jornal do Brasil, 6 de fevereiro de 2010 Folha de Pernambuco, 8 de fevereiro de 2010
Joaquim Nabuco: intérprete do Brasil, 23 Jornal do Brasil, 13 de fevereiro de 2010 Folha de Pernambuco, 15 de fevereiro de 2010
Presença judaica no Brasil, 29 Jornal do Brasil, 20 de fevereiro de 2010 Folha de Pernambuco, 22 de fevereiro de 2010
Clarice Lispector: uma geografia fundadora, 35 Jornal do Brasil, 27 de fevereiro de 2010 Folha de Pernambuco, 1º de março de 2010
O livro no século XXI, 41 Jornal do Brasil, 6 de março de 2010 Folha de Pernambuco, 8 de março de 2010
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
Diálogos culturais no mundo global pós-moderno, 47 Jornal do Brasil, 13 de março de 2010 Folha de Pernambuco, 15 de março de 2010
Poemas que inspiram, 53 Jornal do Brasil, 20 de março de 2010 Folha de Pernambuco, 22 de março de 2010
Aldo Rebelo: um novo Nabuco, 59 Jornal do Brasil, 29 de março de 2010 Folha de Pernambuco, 29 de março de 2010
Jogo de Deus, 65 Jornal do Brasil, 3 de abril de 2010 Folha de Pernambuco, 5 de abril de 2010
Alice, o livro e o filme, 71 Jornal do Brasil, 10 de abril de 2010 Folha de Pernambuco, 12 de abril de 2010
Christina Oiticica e sua arte de plantar quadros na terra, 77 Jornal do Brasil, 12 de abril de 2010 Folha de Pernambuco, 8 de abril de 2010
O amor e a religião no futuro, 83 Jornal do Brasil, 17 de abril de 2010 Folha de Pernambuco, 19 de abril de 2010
A reinvenção do livro, 89 Jornal do Brasil, 24 de abril de 2010 Folha de Pernambuco, 26 de abril de 2010
O legado de Camus, 95 Jornal do Brasil, 1º de maio de 2010 Folha de Pernambuco, 3 de maio de 2010
12
Antônio Campos
As faces do quase, 101 Jornal do Brasil, 8 de maio de 2010
Viver é uma arte, 107 Folha de Pernambuco, 10 de maio de 2010
O Google e os livros, 111 Jornal do Brasil, 17 de maio de 2010 Folha de Pernambuco, 17 de maio de 2010
O deserto do real, 117 Jornal do Brasil, 24 de maio de 2010 Folha de Pernambuco, 24 de maio de 2010
Umberto Eco: o fim dos livros?, 123 Jornal do Brasil, 31 de maio de 2010 Folha de Pernambuco, 31 de maio de 2010
Aliança de civilizações, 129 Jornal do Brasil, 7 de junho de 2010 Folha de Pernambuco, 7 de junho de 2010
Direitos autorais e economia criativa, 135 Jornal do Brasil, 14 de junho de 2010 Folha de Pernambuco, 14 de junho de 2010
A estrela fria, 141 Jornal do Brasil, 21 de junho de 2010 Folha de Pernambuco, 21 de junho de 2010
Criação imperfeita, 145 Jornal do Brasil, 28 de junho de 2010 Folha de Pernambuco, 28 de junho de 2010
13
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
José Saramago, a consistência dos sonhos, 149 Jornal do Brasil, 5 de julho de 2010 Folha de Pernambuco, 5 de julho de 2010
As enchentes e a solidariedade humana, 155 Jornal do Brasil, 12 de julho de 2010 Folha de Pernambuco, 12 de julho de 2010
Saudades do poeta da cor, 161 Jornal do Brasil, 19 de julho de 2010 Folha de Pernambuco, 19 de julho de 2010
14
Ant么nio Campos
15
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
Ant么nio Campos
Por uma nova diplomacia cultural
P
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
18
O BRASIL EXPERIMENTA o melhor momento de toda sua história quanto à estabilidade econômica e, melhor, com uma feliz perspectiva de crescimento. O país não só resolveu a dívida externa, acumulada desde o tempo em que era colônia de Portugal, como passou a ser credor do Fundo Monetário Internacional (FMI). Vem obtendo fechamentos cada vez mais positivos em sua balança comercial e recebido fortes investimentos de companhias estrangeiras, que apostam com vigor no mercado nacional. Descobriu uma extensa camada de óleo sob suas águas (pré-sal) e até recebeu a concessão para sediar sua segunda Copa do Mundo de Futebol, em 2014, e a primeira Olimpíada a ser realizada no continente sul- -americano, que acontecerá no Rio de Janeiro, em 2016. Além disso, atravessou uma das mais violentas crises econômicas globais de todos os tempos e saiu praticamente ileso. Por isso mesmo, o Fórum Econômico Mundial escolheu o presidente Lula como o primeiro vencedor do recém-criado Prêmio Estadista Global, pela condução da
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
economia brasileira, durante a crise financeira mundial. Antes mesmo desse Fórum, economistas de vários países já previam que o Brasil será a quinta maior economia do planeta até 2020. Todos esses fatos são extraordinários. Contudo, as relações internacionais do Brasil precisam ser vistas não apenas sob o prisma dos entendimentos político-econômicos. É necessário se pensar e desenvolver de forma mais eficaz a nossa diplomacia cultural, o nosso diálogo com as culturas dos outros países. A atividade mercantil e os negócios financeiros promovem o contato entre as pessoas, mas nada melhor que a cultura para fortalecer as raízes do processo de integração entre as sociedades. As desconfianças e rivalidades atenuam-se rapidamente quando há um maior nível de conhecimento das especificidades do outro. Se atentarmos para isso, veremos que a difusão da história cultural dos povos influencia positivamente na maneira de pensar as relações entre os Estados. As representações das diversas culturas constituem objetos históricos legítimos, portanto um maior intercâmbio das práticas e produções culturais precisa ser sempre promovido. Infelizmente, a cultura ainda é considerada por muitos algo supérfluo, não é valorizada nem como um instrumento de aproximação das sociedades nem como facilitadora do avanço da integração mundial ou regional. No Mercosul, por exemplo, as questões culturais são muito pouco debatidas. Os ricos patrimônios culturais dos países integrantes permanecem ignorados e não são utilizados como instrumentos para a construção de vínculos de confiança e de cooperação entre seus povos. A ausência de uma política cultural dos países que o integram deixa claro quais são as prioridades: as de natureza comercial. 20
Antônio Campos
O aspecto cultural nas relações internacionais brasilei ras pode e deve ser mais bem cultivado. Precisamos promover iniciativas integradas aos países de todos os continentes para estimular um conhecimento mútuo e divulgar os principais aspectos da cultura brasileira, instaurando, assim, uma política cultural que vise à harmonia e ao congraçamento entre os povos, antes mesmo de qualquer comer cialização do produto cultural. Uma significativa ação nesse sentido seria a implementação do Instituto Machado de Assis (IMA), instituição que deverá ficar ligada ao Ministério da Cultura (MinC). O ins tituto foi idealizado para formular e coordenar as políticas de promoção da língua portuguesa, no Brasil e no mundo, induzindo e organizando pesquisas sobre o idioma, além de ser referência para o ensino e a formação de professores e promoção de atividades científicas e culturais de divulgação da língua portuguesa e da cultura lusófona. O Português é o idioma usado por duzentos milhões de pessoas, constituindo o quinto mais falado, no mundo. Cabe ao governo brasileiro estruturar o projeto de criação do IMA nos moldes da declaração conjunta entre Brasil e Portugal, por ocasião da VIII Cimeira Luso-Brasileira, realizada na cidade do Porto, em 2005, na qual ambos os países asseveram a importância da promoção da língua portuguesa em âmbito internacional. Servirão como referência, para a contextualização e o início da constituição de uma entidade adequada à realidade brasileira, instituições tradicionais e experientes nesse mesmo trabalho, a exemplo do Instituto Camões, Instituto Cervantes, Instituto Dante Alighieri e do British Council. O Instituto Machado de Assis deve contribuir ainda para o efetivo desempenho 21
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
das práticas sociais da escrita e da leitura para todos os cidadãos brasileiros. É imperioso que em breve seja tirado do papel, para que possamos iniciar uma nova diplomacia cultural no Brasil. Jornal do Brasil, 6 de fevereiro de 2010 Folha de Pernambuco, 8 de fevereiro de 2010
22
J Ant么nio Campos
Joaquim Nabuco: int茅rprete do Brasil
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
24
O CENTENÁRIo DE MoRTE do escritor, político, historiador, jurista, jornalista, diplomata e abolicionista pernambucano Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo (1849-1910) foi a referência histórica que deu origem à Lei Federal n. 11.946 que institui 2010 como o Ano Nacional Joaquim Nabuco. Nada mais justo e oportuno, pois que permite à nossa sociedade a chance de debater a relevância histórica e a atualidade das ideias de um importantíssimo e mundialmente respeitado brasileiro. Também em 2010, se vivo fosse, Gilberto Freyre, outro grande escritor e pensador pernambucano, completaria 110 anos. Portanto, este ano é substancialmente importante no tocante a se reverenciar as obras de dois grandes brasileiros e realizar iniciativas que democratizem e perpetuem os seus legados. Como quem reconhece um mestre, Gilberto Freyre sempre enalteceu o conjunto da obra de Joaquim Nabuco.
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
Foi dele, quando era deputado federal por Pernambuco, o projeto de lei que criou o então Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (atual Fundação Joaquim Nabuco, no Recife). Freyre escreveu os prefácios para a oitava e a décima edição da autobiografia intelectual de Nabuco, Minha formação, publicada pela Editora Universidade de Brasília, e fez ainda o prefácio da Iconografia de Joaquim Nabuco, com o estudo Em torno da importância dos retratos para os estudos biográficos: o caso Joaquim Nabuco. A personalidade e a obra de Nabuco foram interpretadas por Freyre em muitos outros textos, publicados em revistas e jornais que serão editados este ano, em coletânea, pela Fundação Gilberto Freyre, com organização de Edson Nery da Fonseca, para lançamento em agosto, durante a FLIP de Paraty, numa merecida homenagem ao sociólogo pernambucano. Joaquim Nabuco foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras (ABL), embaixador do Brasil nos Estados Unidos e viveu ainda na Inglaterra e na França, onde se destacou como proponente do pan-americanismo, presidindo a conferência de Pan-Americanos de 1906. Nabuco veio a ser um dos primeiros intelectuais a pensar a formação histórica do Brasil a partir da escravidão. Combateu a prática e a cultura escravagista tanto através de suas atividades políticas, quanto por meio de seus escritos. Fez campanha contra a escravidão, na Câmara dos Deputados, em 1878, e fundou a Sociedade Antiescravidão Brasileira, constituindo um dos principais responsáveis pela abolição, em 1888. Como bem pontua o historiador Evaldo Cabral de Mello, que assina o prefácio dos seus diários, publicados em 2005 pelas Editoras Bem-te-vi e Massangana, Nabuco analisou o regime escravocata sem nenhuma complacência, como uma verdadeira instituição que moldou o ethos brasi26
Antônio Campos
leiro ao definir a nação econômica, política e organizacionalmente. Para Evaldo Cabral, grande parte do pensamento social no Brasil recai sobre a herança dessa reflexão. Nabuco dizia que a generosidade dos escravos se contrapunha ao egoísmo dos senhores. E mesmo depois de ter presenciado a grande vitória de sua causa com a abolição proclamada, profetizou que a escravidão permaneceria por muito tempo como uma característica nacional do Brasil. De fato, apesar de termos avançado significativamente nos nossos indicadores sociais, estamos longe dos ideais defendidos pelo histórico abolicionista nas campanhas para deputado por Pernambuco: garantir terra às famílias de ex-escravos e educação para as crianças dessas famílias. Acabar com a escravidão não nos basta, é preciso destruir a obra da escravidão, já era o que advertia Nabuco, quatro anos antes do fim da escravatura no país. A desigualdade, no entanto, ainda persiste de maneira cruel. Temos uma considerável parcela da população eminentemente formada por negros sofrendo com a exclusão social. Considerando-se o alcance social de seu pensamento e a abrangência e magnitude de seu desempenho político e de sua produção intelectual em todas as áreas em que atuou, há que se reconhecer em Joaquim Nabuco um homem ousado, um intelectual que não se omitiu de cobrar e atuar em razão dos menos validos. Os ideais de Joaquim Nabuco permanecem vivos, por sua grandeza, pelo seu espírito, pelo seu gênio. E as novas gerações precisam conhecer a obra, o pensamento e a história desse ilustre pernambucano, cidadão do mundo e um dos principais intérpretes do Brasil. Jornal do Brasil, 13 de fevereiro de 2010 Folha de Pernambuco, 15 de fevereiro de 2010
27
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
Ant么nio Campos
Presen莽a judaica no Brasil
P
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
30
RECENTEMENTE, o presidente Lula participou, no Recife, de uma cerimônia pelo Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. A Sinagoga Kahal Zur Israel — a primeira das Américas, situada à Rua do Bom Jesus, antiga Rua dos Judeus — ficou lotada para assistir a uma bela cerimônia religiosa, incluindo apresentação artística com violino e leituras poéticas. Alguns ali (os mais novos) talvez não soubessem ser de autoria de um cristão-novo português chamado Bento Teixeira o que para muitos é a primeira obra poética do Brasil: Prosopopeia. Outros, porventura, desco nhecem que há ainda os que defendem ser do intelectual judeu português Isaac Aboab da Fonseca as primeiras poesias escritas em nossas terras. O rabino Aboab da Fonseca foi o primeiro religioso judeu, nas Américas, enviado ao Recife para chefiar a então crescente comunidade judaica, quando da tomada da cidade pelos holandeses. Independentemente de qual corrente de historiadores esteja certa, fica evidenciado que a semente da herança cultural judaica no mundo ibero-americano foi plantada
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
em solo pernambucano. Pernambuco é no Brasil o lugar que mais cedo definiu uma clara vocação para o cosmopolitismo e o que primeiro se organizou em torno da cultura, não só da cana-de-açúcar, mas do urbanismo, das artes, das ciências. Foi especificamente no século 17 que essa característica se evidenciou, mais precisamente nos anos que vão de 1630 a 1654, no famoso tempo dos flamengos ou, mais popularmente, dos holandeses, estudado exaustivamente pelo historiador José Antônio Gonsalves de Mello. Os judeus constituíram uma importante presença dessa época, que se tornou há muito uma das mais estudadas do ponto de vista histórico da cultura pernambucana. Gonsalves de Mello também fez sobre eles um elaborado estudo e diversos outros trabalhos foram publicados abordando a temática dos judeus que vieram para Pernambuco nesse período. O povo de Israel deixou traços que não podem ser apagados da história e da imaginação pernambucanas, entre eles, a edificação da sinagoga na Rua do Bom Jesus e a aventura dos que saíram daqui para a outra América, onde ajudaram a fundar aquela que hoje vem a ser a cidade Nova Iorque. Na verdade, os judeus estão em Pernambuco desde o início da colonização. Quando da chegada de Pedro Álvares Cabral, em terras brasileiras, Olinda, sede da então capitania hereditária, e Recife foram destinos para vários judeus e cristãos-novos (judeus convertidos ao cristianismo por medo da Inquisição) vindos da Península Ibérica (Portugal e Espanha). Graças à influência judaica, o povo pernambucano aprendeu a cultivar, com igual intensidade, o gosto pelo cosmopolitismo e por suas raízes mais profundas, instaurando um forte orgulho regional, tão peculiar nesse efervescente pedaço do Brasil. Além disso, reconhecidamente exímios comerciantes, os judeus do Recife foram 32
Antônio Campos
responsáveis diretos pela consolidação da cidade como importante polo comercial no Nordeste do país. Os judeus deram uma contribuição riquíssima, em variados aspectos, sobretudo à cultura de Pernambuco. É inteiramente reconhecida a inseparável influência deles no tocante às identidades ibéricas e transnacionais do Estado. Aliás, se fizermos um exercício de trocadilhos, podemos até observar que o Estado foi o berço de uma América Ladina, dentro da América Latina, uma vez que o Ladino é um dialeto judeuhispânico, o idioma dos sefaraditas, os judeus de Sefarad, nome hebraico da Península Ibérica. O Ladino tornou-se uma língua caracteristicamente judaica apenas depois da expulsão dos judeus da Espanha — até então era apenas a língua da província onde moravam. Quando os judeus foram expulsos da Espanha e de Portugal, perdeu-se o contato com o desenvolvimento posterior da língua, mas continuaram a usá-la em comunidades formadas nos países para os quais emigraram. A natural consideração de todos esses fatos levou a Festa Literária Internacional de Porto de Galinhas (Fliporto) a definir o tema para o evento este ano: A literatura judaica e o mundo ibero-americano. Nesse contexto, a escritora Clarice Lispector foi escolhida para ser a homenageada da VI Fliporto. Além de ter uma obra literária digna de todas as home nagens, Clarice era de família judia de origem ucraniana e viveu parte da infância no Recife (1925-1934), residindo em um casarão da Praça Maciel Pinheiro, tradicional reduto judeu no centro da cidade. Em sua diáspora, a nação judaica legou ao Brasil um dos pontos mais altos de sua Literatura. Jornal do Brasil, 20 de fevereiro de 2010 Folha de Pernambuco, 22 de fevereiro de 2010
33
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
Ant么nio Campos
Clarice Lispector: uma geografia fundadora
C
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
36
Ao CHEGAR Ao RECIFE, com cinco anos de idade incompletos (1925), Clarice já viajara muitas milhas: para nascer, obrigou a família emigrante a uma estada na aldeia Tchetchelnik, em 10 de dezembro de 1920. Chaya (Clarice), os pais e as duas irmãs ainda passariam por Bucareste para chegar ao porto de Hamburgo, quando só então atravessariam o Atlântico e chegariam a Maceió, em 1922. Fugiam dos pogroms, ataques violentos aos judeus, que ocorreram em muitas partes do mundo, antes mesmo da Segunda Guerra Mundial. Na cidade alagoana, exceto Tania, todos da família mudariam de nome, por iniciativa do pai, Pinkhas, que passaria a se chamar Pedro; a mãe, Mania, Marieta; a irmã, Leia, Elisa; e Chaya, Clarice. Mesmo assim, seu sobrenome, Lispector, causaria estranheza aos menos avisados sobre a flor-de-lis no peito que ela era. Singular em suas origens, Clarice acentuaria seu destino emigrante: no Brasil, além de Maceió e do Recife, viveu no Rio de Janeiro e em Belém do Pará; no exterior, durante 16 anos, transitou entre várias cidades, residindo
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
por períodos mais significativos em Nápoles (1944), Berna, Suíça (1946), Torquay, Inglaterra (1950), Washington, EUA (1952). Portanto, seria difícil fundar uma geografia para a escritora de origem judia se não a ouvíssemos afirmar: Morei no Recife, morei no Nordeste, me criei no Nordeste. Clarice faz essa afirmativa em entrevista a Júlio Lerner, em fevereiro de 1977, dez meses antes de sua morte. Justificava assim a tônica de seu romance, então inédito, A hora da estrela, que surpreenderia a todos com uma abordagem sociorregionalista, à qual nunca se rendera, mesmo no início de sua carreira, quando ainda em voga. Os críticos já apontavam, nessa época, indícios de um modo de ser mais direto, mais explícito, na sua produção e Nádia Batella Gotlib sugere que a autora se ficcionalizara em seus últimos trabalhos: deixa de ser apenas a escritora para ser a persona que ela própria criava. A simultaneidade espacial e temporal de seus romances entra em perfeita simbiose com essa perspectiva de sua biógrafa brasileira. São as declarações dela mesma, em sotaque peculiarmente nordestino, e a abordagem desse seu último romance, A hora da estrela, com protagonistas nordestinos imigrantes no Rio de Janeiro, que permitem apontar a importância de uma geografia fundadora da escritora Clarice Lispector que afirma: desde que comecei a ler e escrever eu comecei também a escrever pequenas histórias. Sua alfabetização se deu no grupo escolar João Barbalho, no Recife, aos sete anos de idade. Aos nove, ela já havia escrito uma peça de três atos que escondera de todos entre as estantes. Revelaria depois: Era uma história de amor. Nesse mesmo ano, morre sua mãe que, dentre os da família Lispector, foi a maior vítima da 38
Antônio Campos
violência dos pogroms. Já se encontrava, então, no Collegio Hebreo-Idisch-Brasileiro, onde termina o terceiro ano primário. Estuda piano, hebraico e iídiche. Em 1931, ao ingressar no Ginásio Pernambuco, a tímida e ousada Clarice já apresentava seus trabalhos para publicações em jornais locais. Foi recusada muitas vezes, mas não deixava de enviar suas histórias, embora nunca tenha sido agraciada com os prêmios concedidos às crianças leitoras, talvez — observa a crítica literária Ermelinda Ferreira — porque seus textos já focalizassem menos o enredo do que a reflexão. A essa altura, as dificuldades financeiras da família já eram menores e assim mudaram-se do pequeno sobrado da Praça Maciel Pinheiro para o segundo andar do sobrado número 21 da Rua da Imperatriz, onde, no térreo, funcionava a livraria de Revecca Berenstein, conhecida como Livraria Imperatriz. Da sacada, avistava-se o rio Capibaribe. Em 1935, Clarice já estaria em terras cariocas, mas anotava: Meu pai acreditava que todos os anos se devia fazer uma cura de banhos de mar. E nunca fui tão feliz quanto naquelas temporadas de banhos em Olinda, Recife. Meu pai também acreditava que o banho de mar salutar era o tomado antes do sol nascer. Como explicar o que eu sentia de presente inaudito em sair de casa de madrugada e pegar o bonde vazio que nos levaria para Olinda ainda na escuridão? Muitas outras anotações preciosas encontram-se em Clarice: fotobiografia, de Gotlib, no entanto, para descobrir a paisagem do Recife no universo ficcional, o livro Felicidade clandestina (1971) traz narrativas exemplares, quase autobiográficas, da menina e da adolescente Clarice, revisitada pela então mãe de dois filhos, Pedro e Paulo, um casamento des-
39
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
feito, variados níveis de dificuldades socioeconômicas contrastantes com o reconhecimento internacional que já obtivera, além de graves episódios comprometedores de sua saúde. “Felicidade clandestina” é o nome de um dos 25 contos que compõem a obra e é o que lhe dá título. Além dele, a paisagem recifense insere-se acentuadamente em “Restos do carnaval”, “Cem anos de perdão” e “Os desastres de Sofia”. São narrativas em primeira pessoa povoadas pela arguta menina de nove anos, que Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante, ao ter em mãos o primeiro volume de Monteiro Lobato; pela primeira máscara que permitia esconder-se dela mesma; pelo seu professor grande e silencioso, de ombros caídos; pelas rosas roubadas das mansões não frequentadas pela Lispector, hoje inserida em todas as geografias indimensionais de seus milhares de leitores no mundo. Jornal do Brasil, 27 de fevereiro de 2010 Folha de Pernambuco, 1º de março de 2010
40
Ant么nio Campos
O livro no s茅culo XXI
O
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
42
HÁ MAIS DE 3 MIL ANoS, na China, os livros eram feitos com chapas de madeira e de bambu, ligadas por barbantes de seda ou couro, e os caracteres eram pintados com pincéis feitos com pelos de animais. Hoje, produtos eletrônicos como os audiobooks ou os e-books (livros eletrônicos), com seus suportes portáteis como o Kindle, da Amazon, o Sony Reader, da Sony, o Mix Leitor D, que está em vias de entrar no mercado, ganham cada vez mais espaço de exposição e discussão. Constatando esse crescimento, as editoras estão discutindo essa nova realidade tecnológica e de negócio. Realmente, o fulminante avanço tecnológico para a publicação de conteúdo de texto mexeu com o mercado editorial. Está na ordem do dia, na indústria do livro, o debate sobre os impactos que as novas tecnologias trarão para o processo de produção, edição, impressão e divulgação de livros em sua forma convencional. Em novembro do ano passado, já discutimos o tema na Fliporto Digital, que é um dos braços da Fliporto, e lançamos pioneiramente o
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
primeiro concurso brasileiro de literatura no celular. Essa discussão dominou a importante Feira de Frankfurt, no final do ano passado. Recentemente, a Microsoft fechou acordo de cooperação com a Amazon, firmando uma parceria em que cada uma das empresas poderá utilizar as tecnologias da outra. Incluídos aí, principalmente, o leitor de livros eletrônicos Kindle e o sistema operacional Windows. A Amazon anunciou também que o Kindle já possui para download obras em português, espanhol e italiano. Editoras e autores que desejarem disponibilizar livros nos três idiomas podem enviar o conteúdo pelo serviço Digital Text Platform (DTP). De 29 a 31 deste mês, a Câmara Brasileira do Livro realiza, em São Paulo, o 1º Congresso Brasileiro do Livro Digital, durante o 36º Encontro Nacional de Editores e Livreiros. Especialistas de todo o mundo vão debater os novos rumos do negócio do livro, as oportunidades ante um potencial imenso de leitores, as questões de direitos autorais, as novas mídias, entre outros assuntos que surgem nesse novo universo do livro digital. Devemos observar que as mudanças fazem parte do processo evolutivo. O e-book certamente não vai levar o livro de papel à extinção. Assim como o cinema não matou o teatro, a televisão não aboliu o cinema e o computador não extinguiu a literatura. A humanidade sempre temeu o novo. O importante é que em qualquer uma de suas formas, o livro não é apenas uma celebração do conhecimento e registro da memória da espécie humana, mas uma celebração da vida. 44
Antônio Campos
O inesquecível bibliófilo José Mindlin, recentemente falecido, citou um exemplo sobre o fetiche que exerce o livro impresso, em entrevista que concedeu, no Recife, em 25 de agosto de 2005. Diz o artigo: “Na última vez em que [o poeta argentino Jorge Luís] Borges veio ao Brasil, nos anos 80, ele já estava cego e ainda assim queria a primeira edição de Os sertões. Como eu tinha mais de um exemplar, dei um deles para Borges. Ele não queria o livro para ler, Borges não podia mais fazer isso. Borges queria tocar nele, pegar, sentir o livro. Era o seu fetiche”. Grande exemplo para os amantes da literatura, José Mindlin nunca foi um Peter Kien, personagem do livro Auto-de-fé, de Elias Canetti, para quem a vida se abria da porta para o interior de sua biblioteca. Homem de sensibilidade, Mindlin foi, antes de tudo, um leitor, e sempre se declarou mais um depositário, um guardião dos livros que um proprietário de uma riquíssima e preciosa biblioteca. Sempre haverá alguém que prefira o livro em sua forma de papel. Alguém que escolha alcançar, dessa maneira, a intimidade com um autor, por meio das páginas que vão cobrando a vida enquanto se abrem. Sempre haverá alguém que preferirá voltar a um livro só na edição em que o leu pela primeira vez, às dedicatórias, às recordações e aos passados que ficaram unidos a esse objeto. Não vamos confundir o futuro do livro com o futuro do papel, que é o seu tradicional suporte. Nunca tantas ideias foram escritas na era digital. Se há algo que possa ameaçá-lo é a falta de leitores e não a mudança de base em que se firma. O que precisamos fazer é combater essa grande fome de livros que há no Brasil. Cerca de 23% dos jovens
45
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
brasileiros entre 15 e 24 anos nunca leram um livro sequer (fonte: Instituto Cidadania). Dados da Câmara Brasileira do Livro (CBL) demonstram que apenas 26 milhões dos mais de 170 milhões de brasileiros leem pelo menos um livro a cada três meses. Pior, 61% dos adultos alfabetizados têm pouco ou nenhum contato com livros. A leitura e o acesso ao livro são direitos sociais básicos e transformadores de indivíduos em cidadãos. A leitura de um livro não pode parecer uma obrigação, deve, ao contrário, ser um ato de prazer ou de paixão. Um livro tem que ser uma forma de felicidade. O livro é uma forma de resistência e reexistência do ser humano numa globalização que deveria mais aproximar do que separar as pessoas. Jornal do Brasil, 6 de março de 2010 Folha de Pernambuco, 8 de março de 2010
46
Ant么nio Campos
Di谩logos culturais no mundo global p贸s-moderno
D
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
48
A GLobALIZAÇÃo ECoNÔMICA e financeira aliada ao progresso das tecnologias de comunicação e informação têm tido impacto sobre as identidades culturais, colocando em risco também a diversidade cultural no mundo. As identidades nacionais, que têm nas culturas nacionais as suas principais fontes, estão com uma tendência de fragmentação, como resultado da homogeneização cultural da pós-modernidade global. Novas identidades híbridas começam a ganhar força. Dialeticamente, algumas identidades estão sendo reforçadas pela resistência à globalização, num processo de tensão entre o local e o global, entre culturas. O século XXI passou da diversidade como riqueza para a interculturalidade como problema. As relações ou diálogos entre as culturas estão sendo alterados pelos deslocamentos de imigrantes, como também pela crescente interdependência entre as sociedades, ante os efeitos da globalização, surgindo daí um mundo sem fronteiras, o que torna as relações mais complexas.
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
Los Angeles é a segunda cidade em número de mexicanos. Buenos Aires é a segunda em número de bolivianos. O que significa ser europeu, num continente marcado não apenas pelas culturas de suas antigas colônias, mas também por outras culturas e povos oriundos de migrações ou diásporas pós-coloniais? Calcula-se que a Europa tenha em seu território cerca de 20 milhões de muçulmanos. No seu livro Choque de civilizações, o professor e ensaísta americano Samuel P. Huntington previu que, depois da Guerra Fria, as disputas se dariam no terreno da cultura e da religião. Recentemente, a Suíça proibiu em seu solo novos mina retes (cúpula de mesquitas). Debate-se na França o uso da burca, onde cerca de 1,5 milhão de muçulmanos vive na região de Paris. A legislação inglesa antiterrorismo tornouse mais rigorosa, ante o temor do radicalismo islâmico. Na Alemanha, cresce o medo de terrorismo, num momento em que a comunidade muçulmana chega a mais de 2 milhões de habitantes. Melhorar o convívio ou o diálogo entre culturas ou indivíduos, admitindo as diferenças, sem discriminações, passou a ser uma das principais preocupações do século XXI. O Brasil, que é um país mestiço, marcado pela mistura de várias raças, deve ser motivo de estudos quanto à tolerância e convívio entre raças e culturas, quase numa democracia racial. Prescindimos de identidade, porque temos todas elas. Esse traço marcante do Brasil foi objeto de estudos de alguns brasileiros, destacando-se o sociólogo Gilberto Freyre, que no dia 15 de março de 2010 faria 110 anos se vivo fosse. 50
Antônio Campos
Está no centro da vida contemporânea, o desafio de construir diálogos de paz entre culturas que estejam em choque – real ou aparente –, ante o fato de que, tais sociedades, a cada dia, se tornam mais interculturais que multiculturais. Somos “Di-versos”, como afirma o poema do músico brasileiro Marcelo Yuka, pois entre a revolta e a obediência, crescer com diferenças e crescer pelas diferenças, será sempre entender que o amor é a nossa maior forma de inteligência. Jornal do Brasil, 13 de março de 2010 Folha de Pernambuco, 15 de março de 2010
51
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
Ant么nio Campos
Poemas que inspiram
P
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
54
O GRANDE PoEMA é uma oração. Particularmente, acredito que também podemos orar a Deus, através de alguns poemas, tal como se citássemos versos bíblicos. E não estou sozinho nessa crença de que existem verdadeiros poemasorações, capazes de nos inspirar e até transformar nossos pensamentos e atitudes, fortalecendo-nos para os embates da vida. O escritor e documentalista Edson Nery da Fonseca gosta de conversar com Jesus, declamando o poema Encontro, de Deolindo Tavares: Vou me encontrar com Cristo a uma e meia da manhã. Por que, então, neste momento não me cega a estrela das grandes vigílias? Preciso mais do que nunca estar desperto e sinto que adormeço sobre finíssimas lâminas de ouro. O poeta Manuel Bandeira assim começa um poemaoração:
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
Nossa Senhora, me dê paciência para estes mares, para esta vida. Poema-oração, aliás, é o título de uma belíssima poesia da escritora e poetisa portuguesa Maria José Rijo. Verdadeira súplica, o poema é escrito com tamanha leveza e mostra sua fé e intimidade com Deus: Se há coisas que eu entendo nos cantos que a vento entoa; se há mensagens que eu pressinto nas vozes que eu ouço à toa; se outros olhos choram mágoas que eu sinto no coração, e de tudo isso eu posso fazer a minha oração... É, porque, então, sei rezar! E se rezar é amar... quero cantar essa alegria. Ainda que dos meus olhos corra o pranto sem cessar que nada turve o meu canto se eu nasci para cantar! A palavra poética tem sua força ancorada na miríade de portos de beleza, que resgata o homem sequestrado pela multidão de ilusões que o confundem e o diminuem. A poesia interpreta o sonho da humanidade e, muitas vezes, indica possíveis caminhos. Ela toma o nosso partido e insere-se de corpo, alma e palavra na ideologia do homem. Foi acreditando no poder inspirador e transformador da literatura e sobretudo da poesia, que Nelson Mandela conseguiu não só manter sua sanidade mental, como alcan çar um equilibrado grau de sabedoria, sobriedade e pers picácia, não perdendo seu foco, durante os 27 anos em que 56
Antônio Campos
passou na prisão. Predestinado, ele estava determinado a mudar o seu país. E mudou. Protagonista de uma luta política que constitui um dos capítulos mais extraordinários do século XX, Nelson Rolihlahla Mandela saiu da prisão, em 1990, aos 71 anos, para unificar a África do Sul, marcada pelo ódio entre negros e brancos, e extinguir o apartheid. Depois de ser libertado da sentença de prisão perpétua, graças à pressão política internacional junto ao então governo sul-africano, o ex-guerrilheiro e líder do Congresso Nacional Africano (CNA), partido formado pelos negros, ganhou o Nobel da Paz em 1993 e elegeu-se presidente da África do Sul um ano depois. Foi a primeira eleição multirracial da história daquele país. Para acalmar o ímpeto dos negros — que viviam teoricamente momento perfeito para a vingança dos anos de apartheid — e o receio dos brancos, Mandela sabiamente pregou em seu país: O perdão liberta a alma. Ele remove o medo. Por isso é arma tão poderosa. Nelson Mandela sempre foi um homem de ideias, das palavras, que nunca deixou de acreditar em sua causa e no poder de inspiração que esta lhe deu. E essa força interior sustentada por Mandela para passar por tudo que lhe foi imposto e encarar a obra que realizou é abordada no filme Invictus, do diretor Clint Eastwood. O roteiro de Invictus, basea do no livro Nelson Mandela e o jogo que mudou uma nação, de John Carlin, traz uma série de histórias da vida de Mandela que poderiam ser ficcionais e por isso impressionam. O filme mostra como o ex-presidente usou a força da linguagem universal do esporte e juntou-se ao capitão da equipe nacional de rugby (um dos símbolos do apartheid no país) para unir os sul-africanos e amenizar as tensões raciais entre negros e brancos. O intuito era mobilizar a Nação em torno de um objetivo comum: vencer o campeonato 57
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
mundial de rugby, disputado na África do Sul, em 1995. Num grande exemplo de superação, a equipe da África do Sul, considerada azarão, venceu a copa do mundo de rugby, que foi tratada por Mandela com peso de atividade política. A história mostra que o poema Invictus — que dá título ao filme —, do inglês William Ernest Henley, foi a grande oração de Mandela no período em que passou preso e acabou sendo a fonte de inspiração para o triunfo do time sul-africano. No poema Invictus, do alto de seu aparente ceticismo religioso, Henley se rende à força do divino e agradece pela consciência de permanecer firme diante das adversidades: Do fundo desta noite que persiste a me envolver em breu — eterno e espesso, a qualquer deus — se algum acaso existe, por mi’alma insubjugável agradeço. Mandela gosta mesmo de repetir a última estrofe da poesia do inglês: Por ser estreita a senda — eu não declino, nem por pesada a mão que o mundo espalma; eu sou dono e senhor de meu destino eu sou o capitão de minha alma. Não se pode desconhecer a criação humana, em todas as Artes, como uma imitação da divindade, uma vez que, tentando criar, o homem imita o Criador Incriado. Mas a palavra poética, em especial, quando revestida de singular beleza, realmente encanta, inspira e extasia. Há poemas que são verdadeiros mantras, elevam o homem a Deus, transformam mentes e corações, alavancam almas. Jornal do Brasil, 20 de março de 2010 Folha de Pernambuco, 22 de março de 2010 58
Ant么nio Campos
Aldo Rebelo: um novo Nabuco
A 59
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
60
HoMEM DE FoRMAÇÃo nacionalista e político maduro e coerente, o deputado federal Aldo Rebelo, presidente da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara Federal, tem assumido fortemente ao longo de sua trajetória parlamentar o cuidado com a causa indígena no Brasil. A garantia e preservação dos direitos elementares para os povos indígenas são fundamentais para a manutenção da identidade nacional. Rebelo defende uma completa integração das etnias indígenas com a sociedade brasileira, mas respeitando os diversos estágios de todas as populações de índios no país. Sua visão é a de que os índios devem ser efetivamente integrados à nossa sociedade, tendo liberdade e real oportunidade para desenvolver atividades sustentáveis produtivas e exploradoras nas suas terras, e não viverem tutelados tanto pelo Estado, quanto pelas ONGs nacionais e internacionais. Com propriedade na causa, Aldo Rebelo observa que os índios não têm direitos sobre suas reservas e que hoje muitos deles não têm sequer como sobreviver. Os ín-
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
dios não podem explorar a madeira, nem os minérios. Para Rebelo, o Estado poderia ajudá-los nessas atividades, mas tudo continua imobilizado. Há situações assim em outros países. No Canadá, os índios fizeram acordos com grandes empresas para a exploração do petróleo em suas terras. O PIB dos índios norteamericanos é de 25 bilhões de dólares por ano. Milhares de índios têm fortunas acima de 1 milhão de dólares nos Estados Unidos. Mas para chegar a essa realidade, segundo Aldo Rebelo, é necessário haver um consistente processo de integração e não essa segregação, que mantém os índios em determinado estágio, para que as pessoas possam produzir suas teses antropológicas de mestrado e doutoramento, critica. Na pauta internacional, o tema da questão social foi substituído pela questão do meio ambiente. Aldo Rebelo é relator do novo Código Florestal brasileiro, em tramitação na Câmara Federal, que ao ser votado e aprovado vai nos permitir viver no país com a legislação mais avançada do mundo, no tocante à conservação e ampliação das áreas florestais. Ao longo de seus mandatos como deputado federal, Rebelo foi um importante mediador e interlocutor entre os índios e o Governo Federal e até entre as tribos indígenas e os produtores rurais. É de se enaltecer o seu esforço para a regulamentação da demarcação da reserva indígena na Raposa-Serra do Sol, em Roraima. Do alto de sua sensibilidade para com a causa indígena, Rebelo, em seu livro Raposa-Serra do Sol, o índio e a questão nacional (Ed. Thesaurus 2010), grafa o nome da reserva com hífen por acreditar que Raposa e Serra do Sol são áreas geograficamente distintas, habitadas por tribos e populações igualmente distintas (Macuxi, Wapichana, 62
Antônio Campos
Ingarikó, Taurepang e Patamona). Faz questão de colocar o hífen, portanto, como iniciativa de denúncia, de alerta para essa observação — tão importante do ponto de vista geopolítico — sobre a área demarcada. As maiores reservas de urânio do mundo estão nas terras indígenas, em Roraima. Há muitos minérios importantes nessas terras, inclusive um que tem o apelido de alexandrita, e que só foi encontrado nas Américas na terra ianomâmi. Para Aldo Rebelo, os índios nunca são ouvidos pelo Governo Federal e o processo da Raposa-Serra do Sol é patente em relação a isso. Ali, um grupo grande de indígenas contestou a demarcação proposta pela Funai. No entanto, não foi levado em consideração, destaca. Rebelo observa ainda que a relação entre os grupos de índios que vivem na reserva Raposa-Serra do Sol não é das mais amistosas e que eles preferiam que a demarcação fosse feita em ilhas, onde cada tribo teria sua área determinada, sem precisar conviver com outras. Tal divisão não levaria em conta apenas o aspecto das rivalidades, mas principalmente o estágio de evolução de cada grupo. Em Roraima, existem indígenas que vivem da coleta, da caça, e outros formados por pequenos fazendeiros, comerciantes, a exemplo dos Macuxis. Na opinião de Rebelo, a demarcação estabelecida, em área contínua e de fronteira, só interessa às ONGs internacionais e ameaça a soberania nacional. Grande admirador de Joaquim Nabuco, o alagoano Aldo Rebelo é um verdadeiro entusiasta da obra Um estadista do império (1896). Neste que é reconhecido como seu principal livro, Nabuco registra e analisa a vida e a obra de seu pai, o senador José Tomás Nabuco de Araújo, bem como a vida política, econômica e social do Brasil durante a atuação do 63
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
pai. Considero o livro Um estadista do império a maior e melhor biografia desenvolvida no Brasil em todos os tempos, por sua forma brilhantemente escrita. Além de sua ferrenha campanha pela abolição da escravidão do povo negro, Joaquim Nabuco também defendeu uma importante causa indígena. Em seu primeiro mandato como deputado geral pela então província de Pernambuco, Nabuco combateu um projeto de exploração do Xingu, defendendo os direitos dos indígenas. Por sua atuação efetiva na preservação dos direitos das várias etnias indígenas e suas culturas no Brasil, demons trando que a iniciativa é de fundamental importância para o futuro e a manutenção da identidade nacional, Aldo Rebelo pode ser comparado a Joaquim Nabuco, que tanto batalhou pela causa dos negros neste país. Aldo Rebelo é um novo Joaquim Nabuco, o Nabuco dos índios. O Brasil é um país mestiço e por isso temos que viver numa sociedade que integre perfeitamente as nossas ascendências e culturas indígenas, africanas, europeias e asiáticas. O Brasil deve ser o paradigma para o mundo no que diz respeito ao convívio entre raças, religiões e culturas. Ser um facilitador para uma aliança de civilizações. Assim, perfeita a colocação de Aldo Rebelo quando diz que cabe ao país adotar medidas drásticas para proteger as populações indígenas e assegurar a preservação do meio ambiente em consonância com os interesses sociais e econômicos da população e da Nação, sem hipotecar seu futuro às pressões ilegítimas e divorciadas de nosso bem-estar e segurança. Jornal do Brasil, 29 de março de 2010 Folha de Pernambuco, 29 de março de 2010
64
J Ant么nio Campos
Jogo de Deus
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
66
VIvEMoS A ERA da velocidade e sob a pressão (opressão) do relógio. O relógio antes ficava na praça. Depois invadiu nossa casa e passou a nos tiranizar na parede. Com o progresso, foi entrando em nosso bolso e chegou ao nosso pulso. Agora está dentro do coração, onde marca o passo. Vivemos sob o feitiço do tempo, que é um jogo de Deus. Mas é a eternidade que dá sentido à vida. Tempo é movimento. Repouso é eternidade. A eternidade é um jogo e uma esperança, já dizia Platão. Rubem Alves, em seu Concerto para corpo e alma, apregoa-nos que: Eternidade não é o tempo sem fim [...] Eternidade é o tempo completo, esse tempo do qual a gente diz valeu a pena. A mente, esse portal do ser humano, lutando para escapar do confinamento e do feitiço do tempo, insiste em resistir e produz, entre outras coisas, arte. A arte é uma tentativa de se eternizar. É uma briga do homem com a
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
morte e com o tempo, que é um relógio mágico e trágico que marca a vida. O sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre falou de um tempo tríbio em que o passado, o presente e o futuro estão dinamicamente inter-relacionados. Trouxe tal conceito de tempo baseando-se nas considerações de Santo Agostinho sobre a essência do tempo, no livro XI das Confissões, considerações essas, que foram magistralmente sintetizadas pelo poeta T. S. Eliot nos versos iniciais de Four quartets (1943), que nos traz a seguinte mensagem: O tempo presente e o tempo passado estão ambos talvez presentes no tempo futuro e o tempo futuro contido no tempo passado. Se todo tempo é eternamente presente todo tempo é irredimível. Em As emboscadas da sorte, o escritor Maximiano Campos afirma que tudo é velho e novo, e só o tempo não tem idade. O homem carregará as lembranças do seu passado, mas será sempre novo, mesmo além da sua vontade. Ele, em texto intitulado Ladrão de tempo, nos diz que o maior ladrão é o de tempo. A humanidade ainda está presa a conceitos lineares de tempo e espaço. Albert Einstein revolucionariamente fundiu tempo e espaço num contínuo, que chamou espaço—tempo. Em 1988, Stephen Hawking publicou sua hoje famosa Uma breve história do tempo, do ponto de vista de um físico. A física quântica tenta explicar a direção do tempo. Na presença de campos gravitacionais intensos, podem existir caminhos que levem ao passado. Por isso, é possível passar duas vezes pelo mesmo ponto no espaço—tempo. Deveríamos entender o tempo como um círculo, e não uma linha reta, como imaginou a história ocidental, e, ainda, 68
Antônio Campos
que ao caminharmos para o futuro estamos nos aproximando do passado. Proust, na literatura, escavou com profundidade em busca do tempo perdido. Será que a vida não é buscar e mesmo perder, proustianamente, o tempo? O poeta russo Joseph Brodsky nos instiga: quem é mais nômade, aquele que se desloca no espaço ou aquele que migra no tempo? Na realidade, há dois modos, básicos, de percepção do tempo: o quantitativo e o qualitativo, ou melhor, o cronológico e o existencial. O modo quantitativo adota um fato como referência e um fenômeno periódico para contagem do tempo. Na cultura cristã, considera-se o ano do nascimento de Cristo como inicial e o ciclo da Terra em torno do Sol como período de um ano. O modo qualitativo considera as mudanças que ocorrem em nossas vidas. Usamos expressões como novo tempo, tempos difíceis e tempos fáceis. No filme Perfume de mulher, o personagem cego representado por Al Pacino pede a uma jovem para dançar um tango. Ela diz que não pode porque, em instantes, o noivo dela vai chegar. E ele diz: ...em um instante se vive uma vida. Esse é o tempo qualitativo ou existencial. Podemos intuir o tempo como relativo ou mesmo uma ilusão. Afinal, aprendi a contar melhor o tempo. Ele não se conta pelas folhas que secam e caem no caminho, mas pelos frutos colhidos ao longo da vida. O tempo não é mais que um momento, mas será eterno se for belo o gesto. Carpe Diem, como já disse o poeta Horácio. Jornal do Brasil, 3 de abril de 2010 Folha de Pernambuco, 5 de abril de 2010 69
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
Ant么nio Campos
Alice, o livro e o filme
A
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
72
A LITERATURA SEMPRE foi fonte inspiradora para o cinema. Mais recentemente, não só para a sétima arte. Além de inspirar filmes, os livros passaram a contribuir com ideias que podem se estender também na criação de jogos eletrônicos. Com o desenvolvimento da tecnologia e o surgimento dos e-books e audiobooks, o mercado editorial atravessa um período de turbulência com o avanço no terreno do mundo virtual. O caminho rumo ao digital é mesmo sem volta para a produção literária. E junto a tudo isso são vistas, de forma cada vez mais frequente, obras literárias que suscitam imagens fantásticas na cabeça do leitor (muitas delas até surreais) e servem de roteiros para filmes de linguagem e exibição que exploram bastante a tecnologia. Alguns deles lançados, também, em terceira dimensão (3D), recurso que passa uma forte sensação de realidade às imagens. No 1º Congresso Internacional do Livro Digital, realizado recentemente em São Paulo, o presidente da Feira do Livro de Frankfurt, Juergen Boos, afirmou que o livro
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
não é apenas um objeto, mas uma experiência. A edição do livro não é mais um setor isolado, agora estamos dentro do negócio do conteúdo. O livro se torna uma ideia que pode servir para a criação de filmes e até jogos, apontou Boos. O desafio para roteiristas e diretores, no entanto, é justamente a adaptação de obras literárias, que, em sua maioria, são densas e/ou complexas e grandes, para a linguagem ágil e dinâmica do cinema. Há sempre certo impasse, caminhos distintos entre a obra literária concebida pelo autor (o criador de palavras) e a percepção que o diretor de cinema (o criador de imagens) tem do texto. Mas isso é perfeitamente normal. Uma boa tradução não se faz literal. Quando um grande criador de universos se aproxima do outro não há obediência completa de nenhum dos lados. Um significativo exemplo de êxito, nessa aproximação entre um gênio do mundo da imagem e a obra de um brilhante escritor, é o filme Alice no país das maravilhas, que estreia no Brasil este mês. Dirigido por Tim Burton, o longa é certamente a melhor adaptação para o cinema da obra do inglês Lewis Carroll (1832-1898). Diretor dos filmes Edward, mãos de tesoura e A noiva-cadáver, Burton é o que se pode chamar de um mago do universo jovem, por isso a união feliz com Carroll, que era um exímio conhecedor do mundo infantil. Entretanto, há diferenças entre o livro e o filme. Nada mais que adequações do universo de Carroll para o de Burton, seguindo ainda as especificidades da linguagem e aspectos da literatura e do cinema. Em vez de uma menina de sete anos, o filme Alice no país das maravilhas traz a bela atriz australiana Mia Wasikowska, com trajes bastante sensuais, no papel principal. Outras diferenças significativas entre livro e filme 74
Antônio Campos
ficam por conta de personagens como a Rainha Vermelha e o Chapeleiro Maluco. Mas o que vale a pena ressaltar é a junção de nomes que, embora sejam de épocas tão distintas, obtiveram algo bastante raro no meio artístico: sucesso de crítica e público. Professor de matemática na Universidade Oxford, Carroll chegou ao estrelato com dois livros: Alice no país das maravilhas e Através do espelho e o que Alice encontrou por lá, até hoje bastante estudados nas universidades, lidos por pessoas de todas as idades e objetos de várias traduções. No mundo do cinema, Tim Burton também alcançou o sucesso, com estouros de bilheteria, a exemplo de Batman e A lenda do cavaleiro sem cabeça. Além disso, está tendo o privilégio de ter uma exposição, neste momento, com mais de 700 peças de sua vida e obra (desenhos, cartazes, fotografias e animações), no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA). O filme Alice é um belo diálogo entre as artes literária e cinematográfica com uma releitura contemporânea da linguagem do cinema. Burton fez um livro em cinema, através da tecnologia 3D, utilizando a linguagem literária e também cinematográfica de Carroll, mostrando a tendência da diminuição do limite entre as linguagens da literatura, do cinema e mesmo da vida real. Jornal do Brasil, 10 de abril de 2010 Folha de Pernambuco, 12 de abril de 2010
75
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
76
Ant么nio Campos
Christina Oiticica e sua arte de plantar quadros na terra
C
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
78
FoI UM GRANDE sucesso a exposição Amazônia da pintora Christina Oiticica, que teve início no dia 15 de março, no Hotel Diplomat, em Estocolmo, na Suécia, por ocasião da conferência O Brasil e o Futuro — Biocombustíveis, Novas Energias, Ciência e Cultura, uma iniciativa do Jornal do Brasil, da Casa Brasil e da Câmara de Comércio Brasilei ra na Suécia. Companheira do escritor Paulo Coelho, essa talentosa artista plástica brasileira, que já expôs em tantos países pelo mundo (França, Espanha, Estados Unidos, Suí ça, Itália, Polônia, Bélgica, Alemanha, Holanda, Irlanda e Eslováquia), agora vê sua arte brilhar na terra onde são escolhidos os vencedores dos prêmios Nobel. Christina Oiticica — como ela própria gosta de dizer — planta quadros na terra. Em suas telas, a natureza pinta, deixa marcas, sendo cocriadora da obra. Na realidade, a terra é cocriadora de tudo, inclusive de nós. Dona de uma arte originalíssima e apaixonante, sua pintura vem tendo o reconhecimento crescente do público e da crítica. Apresen-
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
tada pela primeira vez, a exposição Amazônia é composta de 20 quadros, que foram enterrados na floresta amazônica da região do Acre e retirados após um ano. Os quadros renascem e são tratados e expostos por Christina. O quadro Portal de Gaia destaca-se na mostra. A tela é uma grande janela para o interior da terra, nossa grande mãe, local da aventura humana. Desde 2003, Christina Oiticica divide sua vida entre os Pirineus do Sudoeste da França e o Rio de Janeiro, locais que escolheu para morar e que a inspiram para desenvolver seu trabalho. A artista estabelece uma generosa parceria com os elementos naturais, concebendo seus trabalhos com essa interferência direta, uma vez que suas telas são deixadas em leitos de rios, florestas, dentro de árvores, para, só depois de certo tempo, fazer o que ela chama de correção. De maneira simples e direta, a pintora retrata em seu trabalho o mundo, o momento presente e as sociedades em que vive. A força e a magia das suas telas nos foram apresentadas, desde sua primeira exposição, por intermédio de belíssimos quadros surgidos da sensibilidade de sua impressão visual em uma peregrinação pelo Caminho de Santiago de Compostela, em 1990, na Espanha. A mostra foi montada, à época, na Casa de Espanha, no Rio de Janeiro, de modo que o visitante pudesse não só observar a temática dos quadros, mas que experimentasse também um percorrer simbólico do Caminho Santo. A artista diz que enterra seus quadros porque se interessa pela participação da natureza como coautora de sua arte, não só pela intervenção estética dos elementos naturais em contato com suas telas, mas também pelo que
80
Antônio Campos
chama de marcas invisíveis deixadas por esses elementos. Christina pinta ao ar livre já há bastante tempo. Deixou as paredes dos ateliês e passou a exercer os momentos de criação de suas telas no chão dos bosques e nos leitos dos rios. E foi assim que chegou a essa técnica de fazer dos elementos da natureza coautores de sua obra. Casualmente, um dia, trabalhando em um campo, viu um inseto e uma flor de algodão passando sobre um quadro que pintava. Longe de incomodá-la, isso lhe pareceu belíssimo. A pintura de Christina é muito simbólica. Sendo grande devota da Virgem Maria, sempre trabalhou com o universo feminino: o corpo; os círculos; as transparências; a boca que se transforma em coração ou em rosa. Então, logo veio a ideia de trabalhar na terra, que simboliza o útero e a fecundidade, e tudo se encaixou na semiótica arte de Christina Oiticica. Sensível, doce e muito forte, ela é amante das mariposas, da terra e da água. Um espírito livre, que irradia agradecimento pela vida em cada pensamento seu. A sua pintura é uma espécie de carta da terra a lembrar que a natureza é nossa criadora, nossa morada, lugar sagrado. Talvez, por isso, as obras que a natureza lhe devolve não sejam exatamente quadros, mas pequenos tesouros, presentes da terra, dos pequeninos seres vivos que ali deixam suas marcas, da chuva, da Lua, do Sol e da imensa energia das quatro estações. Christina percebe a arte como um caminho de pesquisa. Ousa, inventa, reinventa. O caminho do belo para ela é encontrado em várias linguagens de tradução de sua obra. Tenho a intuição de que as raízes familiares e culturais de
81
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
Christina, no Nordeste do Brasil, a estão chamando para um projeto nos Sertões nordestinos. Afinal, o Sertão está em todo lugar, como já dizia o mago de Codisburgo, Guimarães Rosa. E a arte e vida de Christina Oiticica são peregrinas, levando-a a colher quadros plantados mundo afora. Jornal do Brasil, 12 de abril de 2010 Folha de Pernambuco, 8 de abril de 2010
82
Ant么nio Campos
O amor e a religi茫o no futuro
O
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
84
APRESENTAR ÀS PESSoAS uma clara perspectiva de como construir o mundo que desejamos, ou o que vai existir independentemente de nossas vontades, analisando possibilidades e pontos determinantes do passado e do presente sobre um assunto específico é o objetivo da Futurologia, a ciência que estuda o futuro. Apesar da exigência de elevado grau de precisão em suas abordagens, o papel de um futurólogo não é indicar o que vai acontecer, mas o que pode vir a se desenrolar como tendências a médio e longo prazo. Os cenários, portanto, são definidos como possíveis, prováveis ou desejáveis. A maioria das pessoas não está familiarizada com a Futurologia, embora haja estudiosos e conhecimento do seu exercício em quase todas as áreas da ciência: na Sociologia; no Marketing; na História; na Demografia. Assim, a Futurologia apresenta-se como uma significativa ajuda na tomada de decisões, mas o desenvolvimento de um bom trabalho nesse campo depende de muitos estudos e pesquisas.
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
Um dos maiores futurólogos que conhecemos foi o luso-brasileiro Pe. Antônio Vieira (1608-1697), com seus célebres e geniais sermões (editados em 16 volumes) e o livro História do futuro (volumes I e II). Suas ideias de abolir a distinção entre cristãos-novos (judeus convertidos perseguidos à época pela Inquisição) e cristãos-velhos (católicos tradicionais), de defender o fim da escravatura e de criticar severamente a Inquisição mostravam que o Pe. Antônio Vieira era um grande pacificador, um homem realmente à frente de sua época. Atualmente, um dos futurólogos mais comentados no mundo é Adjiedj Bakas, autor de vários best-sellers a exemplo de Living without oil (Vivendo sem petróleo) e Beyond the crisis (Além da crise). Filho de indianos, Bakas nasceu em 1963, no Suriname, mas vive e trabalha na Holanda desde 1983. Especialista em Ciência da Comunicação, Adjiedj Bakas combina conhecimento do mercado de diversão com distribuição de informação de entretenimento, sendo hoje um dos maiores trendwatchers (profissional que realiza análises e monitoramento das macrotendências, coordenação de pesquisas, e acompanhamento dos estudos realizados por agências especializadas) e dos mais destacados do mundo. Autor de dez livros publicados, todos nessa linha das tendências para o futuro, e dono de um bom humor contagiante, Bakas é frequentemente convidado para proferir conferências em países de todo o mundo. Considerado pela imprensa internacional especializada em literatura como um fascinante pesquisador, um falante visionário e uma figura pública provocante e inspiradora, Bakas faz juz às classificações em duas de suas obras mais instigantes: Futuro de Deus (Espiritualidade 2.0), escrito em 2006, em coautoria com Minne Buwalda, e O futuro do amor, concluído em janeiro desse ano. 86
Antônio Campos
Em Futuro de Deus (Espiritualidade 2.0), Bakas e Buwalda apresentam 49 tendências em religião e espiritualidade. O livro analisa o fato de que a transformação do mundo numa grande aldeia global ofereceu múltiplas chances para algumas pessoas, mas há muitos que se sentem ameaçados com essa situação. A globalização, sem dúvida, causou impacto sobre a religião. Grupos religiosos que não conviviam cinquenta anos atrás, hoje vivem e trabalham nos mesmos bairros e escritórios. Já em O futuro do amor, Adjiedj Bakas traz afirmações cortantes, ácidas para o leitor, que o fazem refletir sobre os novos paradigmas, com reflexões pertinentes, e o posicionam nas condições atuais de vivência humana e relacionamentos interpessoais. O autor responde a questionamentos a exemplo de: Como o amor se relaciona com o trabalho? Como tecnologia e globalização se unirão com o amor? Será que vamos avançar para múltiplas relações (o que Bakas chama de a latinização de amor) ou caminhar para a monogamia serial? Como continuará a divisão aguda entre homossexuais e heterossexuais, agora que há cada vez mais cruzamentos? Será que vamos chegar a uma multissexualidade? Nesse que pode ser considerado um de seus livros mais fascinantes, Bakas descreve a evolução da vida amorosa de pessoas de várias gerações, além de estilos de vida e práticas étnicas e culturais no mundo veloz de hoje. A Editora Girafa vai lançar os interessantes Futuro de Deus (Espiritualidade 2.0) e O futuro do amor, em julho, aqui no Brasil, e Adjiedj Bakas virá para proferir uma de suas famosas palestras. Jornal do Brasil, 17 de abril de 2010 Folha de Pernambuco, 19 de abril de 2010 87
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
Antônio Campos
A reinvenção do livro
A
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
90
ONTEM (23 DE AbRIL) comemorou-se o Dia Internacional do Livro e do Direito Autoral, data oficializada pela UNESCO, em 1996, e que é festejada em mais de 100 países. A Espanha, desde 1926, já celebrava o livro na data da morte de Shakespeare e Cervantes. Na região espanhola da Catalunha, comemora-se, nessa data, o dia de São Jorge, da rosa e do livro, ou seja, o dia do padroeiro, do amor e da cultura. As mulheres recebem flores dos homens, que retribuem, presenteando livros. Diante da profusão de novas plataformas de leitura, agentes da cadeia produtiva do livro começam a se preocupar com o futuro do livro impresso. Após o surgimento das novas tecnologias para a publicação de conteúdo, como a Internet, o processo de produção, edição e impressão de livros na forma convencional se tornou motivo de debate. Não vamos confundir o futuro do livro com o futuro do papel. Nunca tantas ideias foram escritas na era digital.
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
As plataformas impressas e digitais não são excludentes, mas complementares. Ao lado do livro impresso temos o livro eletrônico e a Internet já é a maior biblioteca do mundo. Vivemos uma verdadeira reinvenção do livro ante o mundo digital com novos paradigmas no mercado editorial e de linguagem. Contudo, em qualquer uma de suas formas — o livro não foi só uma celebração do conhecimento e registro da memória da espécie humana, mas uma celebração da vida. O filme O leitor nos mostra que se existe alguma redenção para o ser humano, ela passa pela linguagem. A falta ou o erro de comunicação podem ser determinantes na vida das pessoas. Os livros falam e dialogam com os homens e são amigos valiosos em nossas vidas. O mundo vive um paradoxo: na era da Internet e do celular, ainda reina a incomunicabilidade, pois as questões essenciais não são ditas. Em 2008, uma escola formada por escritores, em Londres, que se denominou Escola da Vida, criou a chamada biblioterapia, que consiste em indicar leituras para o perfil do aluno/cliente, numa verdadeira terapia, através dos livros. Em tempos em que um livro é publicado a cada 30 segundos e seriam necessárias 163 vidas para lermos todos os livros oferecidos somente pelo site Amazon (como bem lembra o site de escola), as sessões de biblioterapia podem ser um guia para quem está perdido. A boa leitura é uma experiência mágica. Por meio dos livros, conhecemos santos, reis, filósofos e homens comuns. Podemos saber o que disseram Jesus Cristo na Palestina e Gautama Buda no continente indiano. A leitura de um livro não pode parecer uma obrigação, mas deve ser um ato de
92
Antônio Campos
prazer ou de paixão. Um livro tem que ser uma forma de felicidade. Alguém já disse que o livro é apenas um instrumento para encontrarmos a verdade por nós mesmos. Todo leitor é, quando lê, o leitor de si mesmo. A obra é um instrumento que lhe permite discernir o que, sem ele, não teria visto em si, afirmava o escritor Marcel Proust, filosofando sobre a leitura. O livro atravessou eras de guerras e perseguições, sobreviveu e, mais ainda, saiu fortalecido. Nesta época de contradições e incertezas, a cultura e o livro são as armas para se manter os valores básicos do homem acima dos conflitos econômicos e de credo. Desejamos contribuir para que o amor pelos livros seja disseminado em nosso país, o qual ainda precisa conquistar para seu povo um maior acesso ao livro. Queremos contagiar o maior número possível de pessoas, ou, no dizer de José Mindlin, inoculá-las com essa espécie de loucura mansa, que é a paixão pelos livros. O livro é uma forma de resistência e reexistência, numa globalização que trouxe mais exclusão social. Longa vida ao livro! Jornal do Brasil, 24 de abril de 2010 Folha de Pernambuco, 26 de abril de 2010
93
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
94
Ant么nio Campos
O legado de Camus
O 95
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
96
ESTAMoS No ANo do cinquentenário de morte do escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960). Talento reconhecido em todo o mundo, Camus é um dos mais representativos escritores do século 20. Nascido em uma família pobre na cidade de Mondovi, na Argélia, então colônia da França na África, teve uma vida sacrificada e dura. Perdeu o pai (francês) quando tinha menos de um ano de idade, vitimado em uma batalha da 1ª Guerra Mundial. Foi criado pela mãe (espanhola), que não sabia ler nem escrever, e uma avó, extremamente austera, em meio a uma condição que contemplava apenas as necessidades essenciais de sobrevivência, num subúrbio da capital Argel. Graças à ajuda de um mestre (Jean Grenier), graduou-se em Licenciatura em Filosofia, mas quando estava prestes a começar a docência contraiu tuberculose. A doença o acompanhou pelo resto de sua breve vida e a frequente ameaça de morte o marcou profundamente, refletindo de maneira significativa na sua visão de mundo e na
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
literatura que proferiu. Camus faleceu aos 47 anos em um acidente de carro, no sul da França. Entre seus livros mais conhecidos: O estrangeiro, escrito em 1942 e traduzido para mais de 40 línguas; A peste, de 1947, e A queda, de 1956. Particularmente, destaco, ainda, na obra do vencedor do prêmio Nobel da Literatura de 1957, O homem revoltado. Em O estrangeiro, Camus nos deu uma história tensa, dura, intensa. Como era próprio no autor, é marcante o sentimento existencialista do personagem principal, sua solidão, dúvidas e o quase surrealismo de seus conflitos. Ainda que o livro seja uma obra de ficção, o personagem é inerente ao escritor, com a clara proximidade entre seus pensamentos e valores em relação à sociedade em que vive. A peste é uma alegoria da guerra e da ocupação nazista e, mais amplamente, da condição humana, através da descrição de uma cidade ameaçada pela epidemia. Em O homem revoltado, a reflexão existencialista acaba por descobrir que somente se revoltando é que pode o homem dar sentido a um mundo dominado pela “completa ausência de sentido”. “O absurdo é a razão lúcida que constata os seus limites... Não espere o juízo final. Ele realiza-se todos os dias”, são frases que marcam bem o pensamento do escritor. Albert Camus questionou, em sua obra, assuntos sobre os quais continuamos debatendo. O escritor não queria ser apontado como um filósofo, mas filosofou sim — e muito —, imprimindo admirável comprometimento com a busca de um caminho ético na existência humana. Camus procurou sempre o real sentido da vida e o grande valor do agir nos indivíduos. Expôs as inquietações fundamentais da condição humana e os delineamentos de um itinerário humanista conciliado à experiência cotidiana da dignidade.
Antônio Campos
Até mudar-se para Paris, onde começou a fazer parte da resistência contra os nazistas e fundou o jornal clandestino Le Combat, Camus viveu na Argélia. Apesar das dificuldades econômicas impostas pelo colonialismo, sua terra natal o extasiava com suas belezas naturais, seu romantismo, e a poesia que brotava de sua gente mestiça. Apaixonado pelo céu, pelo mar e pela exuberância feminina, Camus se deleitava ao ver as mulheres a amassar os absintos. Em seus romances, a Argélia resiste insistentemente como uma bela e sedutora paisagem de fundo. Quando jovem, o escritor foi goleiro da seleção universitária. Conta-se que um bom goleiro. Um dos fatos que mais o impressionaram quando da sua visita ao Brasil, em 1949, foi o amor do brasileiro pelo futebol. Tanto que uma das primeiras atitudes que Albert Camus teve ao pisar no Brasil foi pedir para que o levassem para assistir a um jogo. E seu amor pelo futebol o acompanhou por toda a vida. O que finalmente eu mais sei sobre a moral e as obrigações do homem, devo ao futebol, costumava dizer Camus. Recentemente, por conta do cinquentenário de morte do escritor, o presidente da França, Nicolas Sarkozy, acabou por lançar uma grande polêmica no país ao propor a transferência dos restos mortais de Albert Camus para o Panthéon, monumento em Paris onde já se encontram os mausoléus de célebres personagens da literatura francesa, entre eles Voltaire, Rousseau, Victor Hugo e Emile Zola. Para os críticos, a proposta de Sarkozy é uma tentativa de apoiar-se politicamente no legado de Camus, que é uma figura mítica da esquerda francesa. Parece que a tentativa do presidente francês não sensibilizou os filhos do escritor, os gêmeos Jean e Catherine, a qual acaba de publicar o li-
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
vro Camus, mon père (Camus, meu pai), ainda sem tradução para o português. Meio século após sua morte, quando vivemos em um mundo marcado por irracionalidades, intolerâncias e fanatismos, lembrar e recomendar a leitura desse extraordinário escritor é fundamental para que possamos sempre buscar um melhor entendimento sobre a aventura existencial do ser humano. Sua obra nos deu uma admirável lição de autenticidade. Nunca esqueci uma frase de Albert Camus que li num monumento em Tipasa, quando estive na Argélia pela primeira vez: Aqui, eu conheci a dor de viver e a glória de amar. Jornal do Brasil, 1º de maio de 2010 Folha de Pernambuco, 3 de maio de 2010
100
Ant么nio Campos
As faces do quase
A 101
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
102
VIvEMoS FUGINDo de uma palavra que expressa, na maioria das vezes, um sentimento de frustração, de desapontamento e de tristeza: quase. Mas nem todo fato que chega próximo a se realizar, a acontecer é tido como frustrante. Para os que têm verdadeiro pavor do quase, um conciso texto escrito em 2003 por uma então estudante de medicina catarinense chamada Sarah Westphal Batista da Silva e lançado na Internet com autoria atribuída ao cronista e escritor Luis Fernando Verissimo tornou-se um ícone para uma legião de pessoas que se identificam com aquela argumentação tão bem colocada. Depois de tantas negativas de Verissimo de que o texto tinha sido escrito realmente por ele, a autora de O quase foi descoberta em 2005, quando o seu texto já havia sido traduzido para o francês, numa coletânea de textos e versos de brasileiros, entre os quais Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Atribuído a Verissimo, estava lá O quase, de Sarah, que na tradução virou Presque. Muito bem escrito, o texto sacode
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
os que, na opinião da autora, estão acomodados a viver na incerteza do talvez e acostumados com a desilusão de um quase. Mas a mente humana é muito farta de possibilidades e de pontos de vista. O quase pode ser observado pelo prisma abordado por Sarah e ser definido como decepcionante, o nada. No entanto, temos o quase que nos traz o alívio por nos livrar de algo desastroso: escapar de um atropelamento; levar um choque elétrico forte e ficar vivo para contar a história; sofrer um acidente de moto e sair ileso ou apenas com pequenas escoriações, entre tantos outros exemplos. Este seria, sem dúvida, o lado do quase que todos querem para si quando se deparam com situações de perigo. Há pessoas que acreditam — da mesma maneira que Sarah Westphal — ter o quase como uma verdadeira síndrome em suas vidas. Pessoas que pensam que o quase as persegue e, mesmo assim, encaram a perspectiva com resignação e tranquilidade, pois dizem estar acostumadas a ver seus anseios e metas sempre chegarem apenas perto de acontecer. Mas não se culpam por isso e nem se revoltam. Essa visão também nada tem a ver com falta de determinação ou pessimismo. Para quem pensa assim, o namoro que por um triz não decolou ou aquele emprego que quase deu certo só deixaram de acontecer em suas vidas porque, certamente, dessa forma, seria melhor para elas. E assim dizem: Não era a pessoa certa ou a melhor oportunidade para mim... Trata-se de uma filosofia de vida voltada para a necessidade de não se martirizar ou de partir para a próxima, acreditando que o melhor está por vir. Existem também aqueles que sequer admitem a hipótese do quase em suas vidas. Acostumado com as glórias das vitórias e com o doce sabor das conquistas, Ayrton Senna, 104
Antônio Campos
por exemplo, nunca se contentou com qualquer outra colocação, em corridas ou em campeonatos de Fórmula 1, que não fosse a primeira. O importante é ganhar. Tudo e sempre. Essa história de que o importante é competir não passa de demagogia, era o que defendia. Desde a época do cart, Senna estava tão habituado a vencer que para ele o chegar perto não servia. O quase, portanto, era desprovido de qualquer valor para o piloto. Há muitas pessoas assim, que desconhecem outro gosto que não seja o do triunfo e isso se reflete em todos os aspectos de suas vidas. Talvez essa característica acabe por formar indivíduos mais intolerantes e perfeccionistas, ou apenas com forte autoestima e autoconfiança. Por outro lado, o quase pode ainda assumir ares confortantes. Tem gente que se sente bem só porque chegou perto de conseguir algo tão almejado. Esse comportamento é visto no ex-atleta, que faz questão de enfatizar o fato de quase ter ido às Olimpíadas. Ele não alcançou o seu grande objetivo, mas fica satisfeito por ter desenvolvido sua melhor performance e até orgulhoso em dizer que faltou pouco para realizar o sonho. Há um sentimento de plenitude nesse quase. Essa pode ser uma visão um tanto quanto romântica, certamente defendida e praticada por poucos, e uma maneira de se confortar, uma espécie de defesa do inconsciente, mas diferente da visão da jovem catarinense Sarah Westphal, e certamente compartilhada por muitos, na qual ela contesta a covardia e a falta de coragem nas pessoas. A escritora considera o quase como uma condição recorrente de quem escolhe viver de maneira morna e apática. A leveza e o orgulho do tal ex-atleta residem na certeza de que ele, pelo menos, arriscou, fazendo tudo o que lhe era possível.
105
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
Vimos este ano o presidente de honra da Grande Rio, Jayder Soares, e todos na escola comemorarem bastante o vice-campeonato na Marquês de Sapucaí. Para a comunidade de Caxias, o segundo lugar no carnaval do Rio teve sabor de título. Recentemente, também assistimos aos jogadores do Santa Helena darem a volta olímpica no campo de jogo, após terem sido derrotados na disputa de uma final que os manteve, pela segunda vez, com o vice-campeonato goiano. Mas foi pela desilusão de mais um fracasso amoroso e por analisar apenas a frequência do quase como consequência da apatia e da falta de atitude que, no final do seu texto, Sarah Westphal sugere: ...Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de tentar. Desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando, porque, embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu. O conselho serve para os casos que se enquadram no ponto de vista abordado, mas, mesmo seguindo-o, não estaremos livres do quase. Competitiva como a vida é, haverá sempre os que terão êxito, os que conseguirão realizar os objetivos, os vencedores e os tantos outros que, chegando perto, ficarão no quase e não conseguirão alcançar um sonho, um objetivo, um casamento, um bom negócio fechado. Portanto, o quase deve ser encarado como fato comum em nossas vidas, não apenas como fracasso. O quase tem múltiplas faces, tanto pode ser uma grande frustração como ser valorizado muitas vezes, sim. Trabalhemos, portanto, os nossos quase! Jornal do Brasil, 8 de maio de 2010
Ant么nio Campos
Viver 茅 uma arte
A
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
108
Vinicius de Moraes dizia que é melhor viver do que ser feliz. O propósito da vida não é necessariamente a busca da felicidade. O mais interessante na vida reside na curiosidade, nos desafios, no bom combate, com suas vitórias e derrotas, na busca da harmonia, e coisas afins. A vida é mais uma busca do que um encontrar. Fernando Pessoa fala sobre a verdadeira história da humanidade: Ah! Quem escreverá a história do que poderia ter sido? Vivemos fugindo de uma palavra que expressa, na maioria das vezes, um sentimento de frustração: quase. Um texto escrito em 2003 por uma então estudante de medicina catarinense chamada Sarah Westphal Batista da Silva e lançado na Internet com autoria atribuída ao cronista e escritor Luis Fernando Verissimo tornou-se uma referência sobre a síndrome do quase. Depois de tantas negativas de Verissimo de que o texto tinha sido escrito realmente por ele, a autora de O quase foi descoberta em 2005, quando o seu texto já havia sido traduzido para o francês numa co-
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
letânea de textos e versos de brasileiros, entre os quais Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. No fim do seu texto, Sarah Westphal sugere: ...Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de tentar. Desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando porque, embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu. Muitos já falaram, com maior maestria e conhecimento que eu, sobre a dor e a delícia de viver. Contudo, faz-se necessário pregar, mais do que nunca, um novo humanismo para o século XXI, em que o homem afinal se convença de que a grande viagem a ser feita é em torno de si mesmo, em busca da sua identidade, e que a grande descoberta é a do outro – seu irmão – através da fraternidade e da solidariedade. Não faça de sua vida um quase. Todo homem pode nascer uma segunda vez ao dar um sentido à sua vida, fazendo-a valer a pena. Viver é uma arte. Saiba viver. Jamais perdi a esperança. Folha de Pernambuco, 10 de maio de 2010
110
Ant么nio Campos
O Google e os livros
O 111
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
112
DEPoIS Do ORKUT e do e-mail que nunca está cheio (o Gmail), um dos últimos projetos do Google é a ferramenta Google Book Search, inaugurada em novembro de 2005. Outro projeto é a venda de livros eletrônicos (e-books), através do Google Editions, que começa ainda este ano. Assim, o Google está fazendo a maior biblioteca e o maior negócio livreiro do mundo. A maior companhia da Internet tem uma meta nada modesta nesse ramo: quer digitalizar praticamente todos os livros do planeta. Segundo dados do Online Computer Library Center (CLC), dos 55 milhões de títulos existentes no mundo, 10% representam o catálogo ativo das editoras; 15% caíram em domínio público e 75% — ou 40 milhões — são livros não mais comercializados, mas que ainda não estão em domínio público. O foco inicial do Google são esses dois últimos grupos. No fim de 2009, o total de títulos convertidos em bits pela empresa já havia alcançado os 10 milhões. Os engenheiros da empresa Google criaram um
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
método específico de digitalização, em que mil páginas são escaneadas por hora. O Google Book investe em parcerias com bibliotecas no sentido de digitalizá-las. Tal iniciativa gerou uma demanda judicial nos Estados Unidos, que acabou em acordo, sujeito à aprovação do Tribunal Distrital dos Estados Unidos pelo Distrito Sul de Nova York (o texto integral do acordo está disponível no site: <www.googlebooksettlement.com/agreement.html>). O modelo de negócio do Google tem gerado controvérsias relacionadas à infração de direitos autorais, questões de monopólio e privacidade. O historiador Robert Darnton, autor da obra A questão dos livros, fala do papel das bibliotecas e a iniciativa do Google de digitalizar livros: O Google tem feito um trabalho maravilhoso de digitalização do acervo dessas bibliotecas. Mas, como toda empresa privada, tem por objetivo dar lucro a seus acionistas. Os objetivos das bibliotecas são distintos — entre eles, oferecer conhecimento público. Esse conhecimento não pode ser detido por uma empresa só. O acordo sobre direitos autorais do Google configura uma situação de monopólio. Darnton também fala da falta de critérios para a digitalização realizada pelo Google, que não tem bibliógrafos no seu quadro funcional: O Google emprega milhares de engenheiros, mas até onde sei, não tem nenhum bibliógrafo em sua equipe. Seu descaso com qualquer preocupação bibliográfica visível é particularmente lamentável, tendo em vista que a maioria dos textos, como acabo de argumentar, foram instáveis por boa parte da história da imprensa. O Google está criando um comunicador universal com o seu tradutor de línguas. Atualmente, traduz 52 línguas. E mais: no Google estão sendo armazenadas as biografias das 114
Antônio Campos
pessoas no mundo contemporâneo. O livro Google: o fim do mundo como o conhecemos de Ken Auletta merece ser lido. É preocupante o fato de um empreendimento comercial deter o controle de tanta informação. O Google já está sabendo mais a nosso respeito que, por exemplo, a Receita Federal. Precisamos cuidar para que a sociedade da informação na qual vivemos seja a mais democrática possível e que não seja monopólio de ninguém. Vamos cobrar do Google que siga fielmente seu lema formal: organizar a informação do mundo e torná-la universalmente acessível e útil, e informal: não faça maldade. Jornal do Brasil, 17 de maio de 2010 Folha de Pernambuco, 17 de maio de 2010
115
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
116
Ant么nio Campos
O deserto do real
O 117
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
118
O ESCRIToR E FILÓSoFo Slavoj Žižek nasceu em Liubliana, na antiga Iugoslávia. Atua como professor na European Graduate School e no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. Žižek é conhecido pelas suas teorias sobre o real, o simbólico e o imaginário. Extrai seu pensamento do idealismo alemão e da psicanálise, sendo fortemente influenciado por Lacan, Marx, Hegel e Schelling. Žižek defende o Real em sua violência extrema como o preço a ser pago pela retirada das camadas enganadoras da realidade. Afirma que o real é um enigma que não deve ser equiparado com a realidade que enxergamos. Segundo ele, nossa realidade foi construída a partir de símbolos. A realidade seria uma ficção. É preciso analisar constantemente aspectos como o antagonismo social, a vida, a morte e a sexualidade para compreender melhor esse contexto no qual estamos inseridos. A obra de Slavoj Žižek tem estado na linha de frente do debate filosófico, político e cultural nos últimos tempos.
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
Da teoria da ideologia até a crítica da subjetividade, a ética, a globalização, o espaço cibernético, nos estudos sobre cinema, no cognitivismo, na teologia e na música, a influência do sociólogo se estende amplamente no mundo contemporâneo. Suas intervenções continuam a provocar debates e a transformar nossa maneira de pensar. As ideias do filósofo estão presentes em várias obras, entre elas, Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia; O mais sublime dos histéricos: Hegel com Lacan; Um mapa da ideologia; As portas da revolução; Arriscar o impossível e Bem--vindo ao deserto do real!. No livro Bem-vindo ao deserto do real!, Žižek alega que os arquétipos de uma superestrutura capitalista globalizante não deixam as pessoas enxergarem a realidade, mas apenas uma falsa reprodução da mesma. O filme Matrix (1999), sucesso dos irmãos Wachowski, levou essa teoria ao ápice. Na teoria, a realidade material que sentimos e vemos à nossa volta é virtual. Tudo é gerado e coordenado por um gigantesco computador ao qual estamos ligados. No filme, o herói, interpretado por Keanu Reeves, acorda e se depara com a cidade de Chicago completamente destruída após uma guerra global. O líder da resistência, Morpheus, lança-lhe uma estranha saudação: Bem-vindo ao deserto do real. Essa frase é exatamente uma metáfora do que vivemos. O homem vive preso a uma matriz materialista, mas somos mentais e espirituais. O mundo é mental. A intenção move o universo. Tornamo-nos aquilo que pensamos.
120
Antônio Campos
Há quem diga que a vida real acontece quando adormecemos. No momento em que acordamos estamos dormindo, pois o homem acordado é tridimensional e sente o tempo linearmente, no tempo do não tempo. Ao dormir e/ ou ativar o lado direito do cérebro seria possível despertar uma quarta dimensão, a intuição, conectando uma grande rede cósmica numa quinta dimensão. Somos parte de uma realidade ficcional. Ilusória. Onde nada existe. Tudo foi construído. Precisamos despertar para o mundo real. Isso é um pouco do pensamento desse filósofo, cuja obra merece ser mais bem esmiuçada. Jornal do Brasil, 24 de maio de 2010 Folha de Pernambuco, 24 de maio de 2010
121
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
122
Ant么nio Campos
Umberto Eco: o fim dos livros?
U 123
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
A obRA Não contem com o fim dos livros, escrita pelo italiano Umberto Eco, foi lançada no Brasil em maio e faz uma análise da existência do livro na atualidade. A ideia da morte da literatura clássica e o pretenso fim dos livros são duas das maiores obsessões de Umberto Eco, surgindo daí o interesse em publicar o livro, numa parceria com o ensaísta francês Jean-Claude Carrière, organizado pelo jornalista Jean-Philippe de Tonnac. Escritor, filósofo, semiólo, linguista e bibliófilo, Eco é um estudioso das falhas humanas. Fascinado pela má-fé e pela estupidez, o italiano acredita que o erro sempre aponta para algo que não devemos esquecer, e que ressalta a verdade. Para ele, existem apenas duas diretrizes no cenário literário: ou o livro permanecerá sendo o suporte da leitura ou existirá alguma coisa similar que fará com que ele não peca seu valor original. As variações em torno do livro como objeto não modificam sua função, nem sua construção gramatical. O livro é
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez inventados, não podem ser aprimorados. Não é possível fazer com que uma colher seja melhor que outra. Segundo Eco, quando pensamos que havíamos ingressado na civilização das imagens, surgiu o computador, que nos reintroduziu na galáxia de Gutenberg, na era alfabética. Com o advento das novas tecnologias, todos se viram predestinados a ler de uma maneira nova. Na obra recém-lançada, Carrière e Eco dizem estar mais preocupados com a extinção do presente que com a suposta ameaça ao livro. Pois acreditam que nós vivemos oprimidos entre a obsessão pelo futuro e o passado que nos alcança a toda velocidade. Ao proferir uma palestra na atual Biblioteca de Alexandria, Umberto Eco já defendia, desde 2002, que a expansão da Internet não ameaça a existência dos livros. O escritor italiano falou sobre os três possíveis tipos de Memória: orgânica, mineral e vegetal. A orgânica é feita de carne e sangue e é administrada pelo nosso cérebro. A Memória mineral era, há milênios, representada por tijolos de argila e por obeliscos, onde as pessoas entalhavam seus textos. Porém, esse segundo tipo é também a Memória eletrônica dos computadores de hoje, cuja base é o silício. O terceiro, e último tipo de Memória, é a vegetal, representada pelos primeiros papiros e posteriormente pelos livros, feitos de papel. O filósofo acredita que a Biblioteca foi, no passado, e será, no futuro, dedicada à conservação de livros e que, portanto, é e será um templo da Memória vegetal. As bibliotecas, ao longo dos séculos, têm sido o meio mais importante de conservação do nosso saber coletivo. Uma bi-
126
Antônio Campos
blioteca é a melhor imitação possível, por meios humanos, de uma mente divina, onde o universo inteiro é visto e compreendido ao mesmo tempo, afirmou o italiano. No livro, Carrière faz um importante questionamento em relação ao valor que o presente deveria ter para o cotidiano das pessoas. Onde enfiaram o presente? O maravilhoso momento que estamos vivendo e que diversos conspiradores tentam nos roubar?. Com o excesso de informação da web em um mundo acelerado e entulhado, impõe-se a necessidade de uma espécie de edição do presente e o livro impresso é um grande parceiro nessa construção. Eco e Carrière afirmam que é falsa a premissa de que o livro esteja com os dias contados. Não podemos usar um computador sem saber ler e escrever. A escrita é um prolongamento da mão e, nesse sentido, é quase biológica, afirma o escritor italiano. No prefácio, diz o jornalista Jean-Philippe de Tonnac: a cultura é muito precisamente o que resta quando tudo foi esquecido e conclui que o livro é a memória desse grande resto que nos constitui. O debate de Carrière e Eco com mediação de Jean-Philippe de Tonnac é uma importante obra sobre o livro e o mundo contemporâneo. Jornal do Brasil, 31 de maio de 2010 Folha de Pernambuco, 31 de maio de 2010
127
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
128
Antônio Campos
Aliança de civilizações
A 129
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
130
APRESENTAR NovAS dimensões para os problemas entre as diferentes culturas e chamar a atenção para questões que afetam diretamente os países, como emigração, fome e educação. Esses foram alguns eixos temáticos discutidos durante o 3º Fórum da Aliança de Civilizações, que reuniu cerca de 7 mil participantes de 100 países, no Rio de Janeiro. Realizado nos dias 28 e 29 de maio, o Encontro abordou questões referentes aos conflitos mundiais e às diferenças culturais, além de propor soluções, através do diálogo, para superação dos conflitos entre as nações. A Aliança de Civilizações é uma iniciativa da Organização das Nações Unidas, cujo objetivo é mobilizar a opinião pública a fim de superar preconceitos e ideias que, muitas vezes, geram conflitos entre países e etnias diferentes. Foi inicialmente proposta pelo presidente do Governo da Espanha, José Luis Rodríguez Zapatero, na 59ª Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), logo após os atentados terroristas no metrô de Madri, em 2004.
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
O evento aconteceu em boa hora, pois métodos para melhorar o convívio ou diálogo entre culturas ou indivíduos, admitindo diferenças, sem discriminações, passou a ser um dos principais desafios do século XXI. Atualmente, as relações ou diálogos entre as culturas estão sendo alteradas pelos deslocamentos de imigrantes, como também pela crescente interdependência entre as sociedades, pelo efeito da globalização. Exemplo disso é o que acontece em Los Angeles, segunda cidade em número de mexicanos, e em Buenos Aires, a segunda em número de bolivianos. O que significa ser europeu num continente marcado não apenas pelas culturas de suas antigas colônias, mas também por outras culturas e povos oriundos de migrações ou diásporas pós-coloniais? Recentemente, a Suíça proibiu novas cúpulas de mesquitas. Debate-se na França o uso da burca e a edição de uma legislação proibindo o uso de vestimentas árabes, quando cerca de 1,5 milhões de muçulmanos vivem na região de Paris. Cresce o medo de terrorismo, na Alemanha, num momento em que a comunidade muçulmana chega a mais de 2 milhões de habitantes. No seu livro Choque de civilizações, o sociólogo Samuel P. Huntington previu que, depois da Guerra Fria, as disputas se dariam no terreno da cultura e da religião. O historiador Eric Hobsbawm comentou, em entrevista publicada na Folha de S.Paulo, em abril de 2010, que: Hoje, porém, o fator xenofóbico do nacionalismo é cada vez mais importante. Trata-se de algo muito mais cultural que político. Jorge Sampaio, ex-presidente de Portugal e alto representante da ONU no Fórum Aliança de Civilizações, ressaltou duas notas em entrevista recentemente publicada: 132
Antônio Campos
Em primeiro lugar, entendo que a governança democrática da diversidade cultural se tornou questão central do desenvolvimento sustentável, como seu quarto pilar, para além das dimensões econômica, social e ambiental. Em segundo lugar, a questão das relações entre o Ocidente e o Islã comporta uma vertente global e, nesse sentido, interessa a todos independentemente do tecido étnico, cultural e religioso de cada. O Brasil, que é um país mestiço, marcado pela mistura de várias raças, deve ser motivo de estudos quanto à tolerância e ao convívio entre etnias e culturas. Prescindimos de identidade, porque temos todas elas. O Brasil pode e deve ser um paradigma importante para o diálogo entre culturas e etnias no mundo contemporâneo. Esse traço marcante da mistura racial do Brasil foi objeto de estudos de alguns brasileiros, destacando-se o sociólogo Gilberto Freyre. Ultimamente, o Brasil tem tido papel relevante nas relações diplomáticas internacionais, destacando-se o acordo firmado entre Brasil, Irã e Turquia, que mostra um caminho do diálogo entre o Ocidente e o Islã. O cineasta Oliver Stone, diretor do filme Platoon, comentou em visita ao Brasil que o país é muito importante no mundo, mas que a parceria firmada com o Irã pode não ser bem vista por todos. Nós queremos paz. Nós não queremos uma guerra. E a situação do Irã pode se tornar outro caso como o Iraque. Me parece que os Estados Unidos estão interessados em outra marcha para a guerra, afirmou. Está no centro da vida contemporânea, o desafio de construir diálogos de paz entre culturas que estejam em choque – real ou aparente –, ante o fato de que, tais socie-
133
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
dades, a cada dia, se tornam mais interculturais que multiculturais. É preciso lutar contra os comportamentos de discriminação e de condenação do diferente. Resistir à tentação fácil da xenofobia e do racismo de toda espécie. Diálogo é a palavra-chave do mundo contemporâneo: entre artes, etnias, religiões e culturas. Jornal do Brasil, 7 de junho de 2010 Folha de Pernambuco, 7 de junho de 2010
134
Direitos autorais e economia criativa
D
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
136
O SÉCULo 21 É marcado por uma transição para a era da economia do conhecimento. A riqueza revolucionária da 3ª Onda, defendida por Alvin Toffler, é cada vez mais basea da no conhecimento e está muito associada à tecnologia. O Brasil pode ser o melhor do BRIC, por meio do fortalecimento da economia criativa e da transformação da inventividade em competitividade. A tendência é aumentar a riqueza gerada pela economia baseada no desenvolvimento das indústrias culturais e de criatividade. A revisão da legislação que envolve o direito autoral é um importante instrumento para o desenvolvimento dessa economia criativa no país. Em 1998, quando a Lei dos Direitos Autorais foi promulgada, o Brasil vivia um cenário completamente diferente deste que temos agora. As novas formas de mídias sociais, sites de compartilhamento de arquivos e todas as novidades tecnológicas fizeram os dias de hoje diferen-
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
tes daqueles que vimos há cerca de dez anos. Ferramentas como internet, pen drives, mp3, iPods, leitores digitais, CDs e DVDs modificam as maneiras mais tradicionais de disseminar conteúdos e produções artísticas. Nesse descompasso entre a atual lei autoral brasileira e a nova realidade do mundo digital, é fato que a nossa lei é considerada a quarta pior do mundo pela ONG Consumers International IP Watch List. Ela limita excessivamente o acesso do consumidor para o uso privado e não comercial, conhecido nos Estados Unidos como uso justo. Na lei atual, não há permissão, por exemplo, para cópias de livros didáticos cujas edições já se esgotaram. Atento a essa nova realidade, o Ministério da Cultura discute, desde 2005, a possibilidade de revisar a Lei nº 9.610/98 que regulamenta o direito autoral, devendo o anteprojeto de reforma entrar em breve em consulta pública no site do MinC. A busca por mais estabilidade entre o direito do autor e os direitos do cidadão comum de ter acesso a educação, cultura, informação e conhecimento; o aperfeiçoamento do trato legal entre autor e editoras/gravadoras e a regulação/ fiscalização eficaz do direito autoral são apontadas pelo diretor de Direitos Intelectuais do MinC, Marcos Souza, como as principais razões para a reforma. O desequilibrio nos contratos entre gravadoras e compositores, que privilegiam demasiadamente a livre negociação contratual, merece mais atenção. É necessária uma regulação e supervisão mais eficazes das sociedades de gestão coletiva a fim de criar critérios mais justos e transparentes na distribuição de direitos autorais. 138
Antônio Campos
É fato que a lei dos direitos autorais precisa se moldar às novas tendências e ao formato do mundo globalizado. Afinal, essas mudanças não têm volta. A grande questão do processo de mudança na legislação é garantir um maior debate com os compositores, escritores e produtores culturais para se fazer um arcabouço jurídico que proteja os direitos do autor, mas que crie mecanismos que permitam uma maior democratização do acesso ao conhecimento por parte do cidadão comum e o desenvolvimento da economia criativa. Jornal do Brasil, 14 de junho de 2010 Folha de Pernambuco, 14 de junho de 2010
139
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
140
Ant么nio Campos
A estrela fria
A 141
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
142
JoSÉ ALMINo RECoRRE às lembranças de sua vida pessoal para a construção de seu pensamento poético e literário. O poeta pernambucano, que é presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, já escreveu os livros de poemas De viva voz (1982) e Maneira de dizer (1991) e as novelas O motor da luz (1994) e O Baixo da Gávea, diário de um morador (1996). Sua mais recente obra se chama A estrela fria e é uma coletânea de poesias escritas por Almino ao longo de sua história. Almino, que nasceu no Recife, tinha apenas 19 anos quando foi obrigado a partir para o exílio com sua família. Lembranças dessa intervenção política são marcantes nesse seu livro. A poética de Manuel Bandeira e o estilo oposto presente nos textos de João Cabral de Melo Neto são presentes no livro, que faz uma espécie de mistura de linguagens literárias. Autor de palavras peculiares, José Almino traz na obra momentos de sua vida pessoal, relatos do cotidiano, lem-
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
branças de sua infância em Pernambuco, do exílio junto com sua família, sobre a vida no Rio de Janeiro e suas experiências amorosas. Almino traz nos poemas algo inovador. A estrela fria é uma metáfora sobre a infância e juventude do pernambucano. Muitas vezes fazendo relatos do passado com um tom de nostalgia. Talvez seja mais migrante quem migra no tempo do que na geografia como disse o poeta russo Joseph Brodsky. A nostalgia que rodeia os textos faz com que o autor pareça ser vários personagens em apenas um. Lembranças de várias situações vividas em tempos diferentes por uma mesma pessoa. As palavras traduzem tempos que já se foram. São apenas recordações de uma época que não volta mais. Que é citada, porém, com extrema nostalgia. A poesia de Almino parece balançar entre a poesia tradicional e a prosa cotidiana. Por meio de citações nos textos, as vozes do autor parecem gritar das páginas. Nos poemas fica clara a lembrança que o escritor sente de sua juventude. Através de palavras, consegue passar o que sentiu nas ocasiões lembradas. Sentimentos que teve por várias pessoas. Desabafos de indivíduos próximos. Sensações que viveu em momentos de alegria, tristeza ou estranhamento. Almino expõe sua vida de maneira inusitada. Em frases curtas e versos simples fala da saudade que sente de si próprio. Obra poética que merece ser conhecida, afinal “Não há crepúsculo, mas o rangido do sol a pino varrendo a sombra e a árvore: quintal pelado. De longe a infância queima: ela é a luz de uma estrela fria”. Jornal do Brasil, 21 de junho de 2010 Folha de Pernambuco, 21 de junho de 2010 144
Antônio Campos
Criação imperfeita
C 145
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
146
MARCELo GLEISER É FÍSICo, astrônomo, escritor e professor da Dartmouth College, em New Hampshire nos EUA. No Brasil, é colunista da Folha de S.Paulo, mas ficou conhecido por escrever obras sobre física para o público leigo, como A dança do universo e O fim da terra e do céu. Lançou recentemente sua obra Criação imperfeita. O livro, que faz uma reflexão de 250 anos de pensamento científico, vai de encontro a um dos maiores mitos da ciência e da filosofia ocidental: o de que uma Unidade nos liga ao resto do universo. Há milhares de anos, a física tenta explicar como funciona a Natureza e, sobre ela, diz tratar-se da encarnação científica do monoteísmo. Não é de hoje que cientistas afirmam que, escondida na complexidade existente na natureza, há uma única realidade que, por sua vez, é mais fácil de ser compreendida. A “Teoria do Tudo” liga as tradicionais leis da física, que regem grandes corpos e grandes forças, à ideia de que as partículas, apesar de pequenas, são essenciais. Foi com o objetivo de comprovar essa tese
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
que o autor escreveu a obra. O professor e escritor Stuart Kauffman acredita que Criação imperfeita representa o início de uma fase, na qual a sociedade verá o mundo e suas mutações de maneira diferente. Gleiser desmonta um dos maiores mitos da ciência e da filosofia ocidentais: o de que a Natureza é regida pela perfeição. Em Criação imperfeita, o cientista brasileiro destaca a importância de coisas imperfeitas no desenvolvimento da matéria e do ser humano. Ele acredita ainda que a assimetria de algumas coisas é responsável por algumas das propriedades básicas da natureza e que as transformações que ocorrem no mundo são fruto de algum desequilíbrio. Inverte a ideia de Vinicius de Moraes, de que “beleza é fundamental”, alegando que o imperfeito é que deve ser celebrado e não a perfeição. Gleiser argumenta que todas as evidências apontam para uma realidade em que imperfeições e diferenças são imprescindíveis na matéria e no tempo. O livro sugere um novo “humanocentrismo”, quando afirma que todo e qualquer tipo de vida é, segundo o autor, “raro e preciso”. Para o astrônomo, o surgimento de todas as estruturas materiais é fruto de alguma assimetria. O prêmio Nobel de Química Roald Hoffmann concorda com o pensamento do autor e afirma que Gleiser é uma espécie de “guia lúcido” para encontrar a beleza em um universo cheio de imperfeições. Jornal do Brasil, 28 de junho de 2010 Folha de Pernambuco, 28 de junho de 2010
148
J Antônio Campos
José Saramago, a consistência dos sonhos
149
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
150
TIvE A oPoRTUNIDADE DE vER, há dois anos, no Instituto Tomie Ohtake, na capital paulista, a exposição José Saramago: a consistência dos sonhos. A mostra, que também foi exibida em países como Espanha e Portugal, reuniu cerca de 500 documentos originais do escritor apresentados por meio de recursos digitais e audiovisuais. Organizada pelo diretor da Fundação César Manrique, Fernando Gómez Aguilera, o evento contou com obras inéditas, traduções, manuscritos, notas, primeiras edições, fotografias pessoais e vídeos. Foi uma forma de comemorar os 85 anos bem vividos de Saramago. Uma bela exposição. No último dia 18 de junho de 2010, uma nota publicada pela Fundação José Saramago anunciara que o escritor português, homenageado pela Instituição, havia falecido, aos 87 anos. O intelectual sofria de leucemia e vinha lutando contra a doença havia anos. No momento de sua morte, o autor de Ensaio sobre a cegueira estava em casa junto da família no arquipélago espanhol Lanzarote, onde vivia desde 2003.
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
Conheci Saramago na minha adolescência, durante o segundo governo de Miguel Arraes em Pernambuco. O escritor era um dos integrantes da comitiva do presidente de Portugal na época, Mário Soares. Na ocasião, lembrome de que meu pai, o escritor Maximiano Campos, conversou longamente com Saramago e que Arraes – meu avô – recebera de presente de Mário Soares uma litografia do pintor português Júlio Pomar com a imagem de Fernando Pessoa. Uma mesma litogravura fora dada também a José Saramago, que a expunha em sua casa. Hoje, guardo carinhosamente o quadro que herdei de meu avô e que me traz lembranças dele, de Fernando Pessoa, de Saramago e de nossa ancestralidade ibérica. O vencedor do prêmio Nobel de Literatura em 1998 ficou conhecido pela originalidade de obras como Memorial do convento, O evangelho segundo Jesus Cristo e O ano da morte de Ricardo Reis, livro através do qual conheceu sua segunda esposa: a jornalista e tradutora espanhola Pilar del Rio, que passou a se interessar pela obra de Saramago depois da leitura do romance traduzido para espanhol La muerte de Ricardo Reis. A jornalista afirmou que ao terminar de ler o clássico se sentiu bastante emocionada e “chorou compulsivamente”. Foi então que resolveu procurar o escritor para agradecer o livro e a emoção que sentira ao lê-lo. Nasceu assim uma relação de amizade, que, aos poucos, deu lugar a uma relação sedimentada, levando-os, em 1988, a um casamento construído com a mais intensa cumplicidade. Viveram juntos uma grande história de amor. Ouso dizer que Saramago, ao viver o amor maduro com Pilar del Rio, de certa forma, conheceu a grande energia de Deus, embora a negasse.
152
Antônio Campos
No dia em que o falecimento do português completou sete dias, a escritora e atual diretora da Casa Fernando Pessoa, Inês Pedrosa, que esteve na edição da Fliporto 2009, ao lado da viúva de Saramago criaram um evento em memória do autor. Com a leitura coletiva do clássico O ano da morte de Ricardo Reis, centenas de pessoas puderam recordar Saramago. O mundo ficou um pouco mais cego e triste com a morte de Saramago. Contudo, a consistência de seus sonhos por um mundo mais livre e justo permanecerá, pela força e beleza de suas palavras: ”Olho de cima da ribanceira a corrente que mal se move, a água quase estagnada, e absurdamente imagino que tudo voltaria a ser o que foi se nela pudesse voltar a mergulhar a minha nudez da infância, se pudesse retomar nas mãos que tenho hoje longa e úmida vara ou os sonoros remos de antanho, impelir, sobre a lisa pele da água, o barco rústico que conduziu até às fronteiras do sonho um certo ser que flui e deixei encalhado algures no tempo.” Jornal do Brasil, 5 de julho de 2010 Folha de Pernambuco, 5 de julho de 2010
153
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
154
Ant么nio Campos
As enchentes e a solidariedade humana
A 155
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
156
QUAL A SEMELHANÇA entre um gari desempregado de rua e um médico? O que leva uma pessoa a sair de casa em uma manhã de folga do trabalho para carregar sacolas e cestas básicas? O que faz com que um morador de rua dedique dez horas de seu dia ajudando pessoas tão pobres e sofridas quanto ele? A resposta é mais simples do que se imagina. Recentemente, 69 municípios foram fortemente atingidos pelas fortes chuvas que passaram por Pernambuco, sendo 27 em estado de emergência e 12 em estado de calamidade. Os municípios de Cortês, Escada, Palmares, Barreiros e Catente são alguns dos locais que ficaram praticamente destruídos. O governo do Estado criou pontos de apoio aos desabrigados e vítimas das enchentes, na operação reconstrução. As “embaixadas” – como foram chamadas – têm como objetivo prestar os serviços de maior urgência às vítimas.
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
Mas o que realmente chama a atenção nas ações desenvolvidas pelas embaixadas é a quantidade de voluntários que trabalham diariamente nessa rede de solidariedade. O Quartel da Polícia Militar de Pernambuco, no Recife, é o principal ponto de doação de materiais para as vítimas das recentes chuvas. Além dos funcionários do Estado, milhares de pessoas ajudam nessa luta pela sobrevivência. Aproximadamente 2,4 mil já se cadastraram como voluntários. Gente que perdeu sua casa ou que tem parentes desabrigados. Pessoas que não tinham quase nada e que perderam o pouco que possuíam. Conta-se até mesmo com aqueles que nada sofreram com as chuvas, mas que se uniram em torno de um mesmo propósito: ajudar o próximo. É o caso do médico Paulo Santana e do morador de rua Airton Oliveira, que foram objeto de matéria jornalística publicada recentemente. Ambos têm dedicado boa parte do tempo trabalhando voluntariamente em prol dos desabrigados, apesar de fazerem parte de realidades tão diferentes – o primeiro, um conceituado cirurgião dos hospitais particulares do Recife; e o outro, um gari desempregado que vive nas ruas da cidade desde 2000, os dois trabalham arduamente para que as doações cheguem o mais rápido possível às mãos dos necessitados. São heróis anônimos. Em Palmares, por exemplo, cerca de quinhentas pessoas, das quais trezentos são voluntárias, trabalham incansavelmente para ajudar as vítimas dessa verdadeira tragédia. A todo instante, caminhões e carros lotados de água mineral, roupas e alimentos descarregam na cidade, onde, outro grupo, com um número cada vez maior de pessoas, está a postos para receber, selecionar e dar destino às doações vindas de todo o país. 158
Antônio Campos
Em um momento como esse ajudar os que mais precisam é de fundamental importância. Pobre ou rico. Branco ou negro. Jovem ou idoso. O que realmente vale em situações como essas é o amor ao próximo. É através desse sentimento que nossa vida ganha mais sentido. Como disse o sem-teto Airton de Oliveira, ao ajudar os outros “a personalidade cresce”. Temos de praticar a solidariedade. Ela é a única esperança ante esse cenário repleto de tristeza e desespero. Jornal do Brasil, 12 de julho de 2010 Folha de Pernambuco, 12 de julho de 2010
159
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
160
Ant么nio Campos
Saudades do poeta da cor
S 161
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
162
No ÚLTIMo DIA 1º DE jULHo estivemos há exatos 50 anos da morte do escritor pernambucano Carlos Pena Filho. O poeta, que nasceu no Recife em 17 de maio de 1928, faleceu em um acidente de carro ao lado de seu amigo José Francisco de Moura Cavalcanti. Pouco antes, meu padrinho de crisma, o advogado Syleno Ribeiro, chegou a entrar no mesmo veículo, mas saiu antes do ocorrido. Estudou o primário e o ensino fundamental em Portugal, pois era filho de portugueses. Assim como eu, formou-se Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e descobriu logo cedo sua paixão pela literatura. Com apenas 19 anos já demonstrava habilidade com letras de música e poemas. Em 1947, publicou, no Diario de Pernambuco, o soneto “Marinha”. Era o primeiro de vários que viria a lançar nos suplementos dos jornais nordestinos e em publicações do Sul e Sudeste brasileiro.
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
Carlos Pena Filho era considerado uma das grandes promessas da poesia nacional. Suas primeiras obras foram reunidas e publicadas no livro O tempo de busca. Profundamente telúrico, inspirou-se na literatura de cordel e escreveu um longo poema chamado Memórias do boi Serapião. O escritor de A vertigem lúcida e Livro geral fazia parte de uma geração ligada diretamente à arte e atuante na vida política e literária do país. Em suas obras, nas quais é possível perceber a personificação da natureza, de objetos, paisagens e até de obras de arte, tudo ganhava vida e cor ao toque dos pincéis de letras de Carlos Pena Filho, como no poema Fazendo nova: “Vistas de longe, essas pedras/ de irregulares tamanhos/ são lembranças renascidas/ de abandonados rebanhos.” Em Soneto raspado das telas de Aloísio Magalhães, a inspiração alcança o azul, a cor vertical de suas obras: “Aquém do sonho e além dos movimentos/ uma nesga de azul perdeu as asas./ Quem a invadir, invade os próprios ventos/ que varrem mares e entram pelas casas.” A sucessão de imagens bem engendradas em cada poema forma uma espécie de pinacoteca da palavra, com predominância da cor azul. Mais lírica que sensual ou erótica. Numa declarada relação do poeta com as artes visuais, considerou-se certa vez um “pintor frustrado”. Como afirmou o escritor Renato Carneiro Campos em seu ensaio Carlos Pena Filho: poeta da cor, nas mãos do poeta pernambucano “as vogais e as consoantes magicamente se transformavam em ornamentos coloridos”. E encerrou magistral palestra sobre Carlos Pena, reiterando o amor do poeta pela cor azul, “o homem quando foi à lua e avistou a Terra, disse: a Terra é azul”. 164
Antônio Campos
Na diversidade das paisagens alcançadas pelo poeta, uma se destaca, a cidade do Recife. Quando de sua morte, Jorge Amado escreveu: “Foi preciso que faltasses assim, brusca e terrivelmente, para que compreendessem que eras o dono da cidade, que eras a cidade, em sua infinita e complexa realidade”. Carlos Pena Filho, poeta da cor e do Recife, consagrou-se imortal pela força e beleza de sua poesia. Jornal do Brasil, 19 de julho de 2010 Folha de Pernambuco, 19 de julho de 2010
165
Antônio Campos Rua do Chacon, 335 | Casa Forte Recife | PE | CEP 52061-400 fone 55 81 32675787 | 34418090 fax 55 81 33047342 http://www.antoniocampos.com.br http://blog.antoniocampos.com.br camposad@camposadvogados.com.br
Este livro foi composto em fonte Basset, corpo 11,8/15,8, e impresso pelas Edições Bagaço para a Carpe Diem Edições e Produções, no inverno de 2010, no Recife.
Ant么nio Campos
167