Construtor de Sonhos. Antônio Campos

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Ant么nio Campos

CONSTRUTOR DE SONHOS


Copyright© 2011 Antônio Campos ISBN 978-85-62648-17-5 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados sem a expressa autorização do autor. Capa Ideograma japonês da palavra sonho Assessoria técnico-administrativa (CarpeDiem) Veronika Zydowicz Projeto gráfico Patrícia Lima Revisão Consultexto

C198r

Campos, Antônio Construtor de sonhos/ Antônio Campos. - Recife: Carpe Diem – Edições e Produções, 2011. 256 p. ISBN 978-85-62648-17-5 1. Diálogos 2. Escritores 3. Artigos - Fliporto 4. Conferência – o humanismo e o escritor 5. Discurso – posse na Academia Pernambucana de Letras 6. Artigos sobre o livro I. Título.

Impresso no Brasil Printed in Brazil

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“Havia um homem em Argos que acreditava em sonhos e era tido como louco. Os médicos que o curaram de sua loucura conseguiram assassinar seus sonhos.” Aristóteles


Construtor de sonhos

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O CONSTRUTOR ANTÔNIO CAMPOS

Que o leitor remonte a José do Egito, o sonhador e intérprete dos sonhos do Faraó; que desça a Daniel, o também bíblico revelador dos segredos do rei Nabucodonosor, da Babilônia; que passe pela psicanálise de Freud e pela psicologia analítica de Jung; que caminhe pelo surrealismo de Breton e encalhe na pedra de gelo móvel — no iceberg flutuante — que exibe a sua mínima memória e que esconde a profunda consciência; que se debruce sobre os livros — O Ar e os Sonhos, A Poética do Devaneio, A Terra e os Devaneios da Vontade, A Terra e os Devaneios do Repouso — do grande sonhador que foi Gaston Bachelard, formar, deformar, mudar as imagens ou penetrar na viagem do imaginário; que, finalmente, o leitor fixe os seus olhos na palavra sonho, pluralizada em sonhos, e faça cair toda a sua vida diante de uma frase de Hölderlin: “O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa”. Eis, leitor, a riqueza da imaginação e a miséria do pensamento. “Então — como diria Nietzsche — escolhe”.


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Como falei de Daniel e Nabucodonosor, tomo a imagem da grande árvore do sonho e da loucura do rei — da grande árvore que chegava até o céu — e formo outra imagem, a de uma árvore invertida — que desce ao abismo — criada pelas suas raízes ou pelas raízes do sonho, através das suas múltiplas ramificações, como um ninho de serpentes ou a cabeleira de Medusa. Decerto que já considerei — em Narciso — o contraste da folha que nasce da árvore com a árvore do poema, que cresce na folha: “na botânica avessa ou no espelho invertido”. Como na Ode a uma Urna Grega — de John Keats —, de tal árvore, é possível dizer: “Felizes, ah! felizes ramos! Não podeis perder/ as vossas folhas, nem dizer adeus à primavera!”. Não sei se há necessidade de falar do pesadelo ou da “égua da noite” (night-mare) — no verso de Shakespeare, citado por Borges: “Eu me encontrei com a égua da noite”. Para chegar à poesia propriamente, não é preciso um corte — uma poda —, basta baixar a imaginação à terra ou a um poeta da terra, como, por exemplo, João Cabral de Melo Neto, que, em Festa na Casagrande, descreve a conformação do homem privado de sonho: O cassaco de engenho/ quando está dormindo:/ se vê que é incapaz/ de sonhos privativos./ Nele não há esse ar,/ distante e distraído/ de quem, detrás das pálpebras,/ um filme está assistindo./ Detrás das suas pálpebras/ haverá apenas treva/ e de certo nenhum / sonho ali se projeta.

Portanto — via Cabral —, ao cassaco de engenho não foi dado sequer, conforme outro título de Bachelard, O Direito de Sonhar, e sonhar (do latim somnio, ou somniare) é ter um sonho. Há um texto do escritor Maximiano Campos em que ele se diz domador de sonhos. Sim, claro, do cavalo do sonho ou da égua do pesadelo. Por sua vez, o poeta Antônio Campos, seguindo (consciente ou inconscientemente) o pai, se diz Construtor de 8


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Sonhos. Sim, claro, fazedor da pirâmide dos sonhos. Logo, o escritor doma, e o poeta constrói. Mas um sonho é feito de quê, leitor? A resposta está em Shakespeare: “Nós somos feitos da matéria dos nossos sonhos”. Portanto, em última análise, o sonho é feito de nós: da nossa argila e da nossa água ou do nosso suor e da nossa lágrima. Chegando até aqui — ao ato de amassar o barro em água —, construir e domar são a mesma coisa. Construtor de Sonhos é um livro de artigos publicados no Jornal do Brasil e na Folha de Pernambuco. Digo um livro de artigos, mas — diria melhor — é um livro de ensaios. Em vez de folhas esparsas, próprias de artigos, ou de algumas crônicas, há uma unidade temática neste livro, uma harmonia — que pese essa palavra musical — sobre vida, tempo, amor, pessoas, poesia, diálogos, escritores, livro, etc. Por isso, Antônio Campos deixa, como uma impressão digital, a marca de cada sonho ou uma marca em cada sonho. Algo do que Mário de Andrade disse no seu título: Há uma Gota de Sangue em Cada Poema. Na realidade, O Construtor de Sonhos não é um livro de prosador, é um livro de poeta. Antônio Campos parece dizer, à Whitman: “Trato dos intestinos com a mesma delicadeza com que trato da cabeça ou do coração,/ a cópula não é mais indecente do que a morte”. Não quero assinalar, aqui, as qualidades de Antônio Campos como escritor, mas a qualidade do seu livro, que é uma reflexão e uma flexão, um debruçar sobre e sob, um olhar para dentro e para fora. Diria que, mesmo como poeta — ou como exceção —, Antônio Campos não consegue ser só, ficar sozinho, cuidar isoladamente de suas ideias próprias ou fixas. Ele se posta como se estivesse diante de um auditório, de uma plateia, de uma sala de aula e, à medida que fala, escreve, ou, à medida que escreve, fala. Evidente que ele se escuta, mas, quando se escuta, faz-se escutar. Daí a voz alta, o sentido discursivo de quem quer, à Drum9


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mond: “Acordar os homens/ e adormecer as crianças”. E que não pareça paradoxal, leitor, dormir para sonhar e sonhar para acordar e/ou adormecer alguém. Diria mesmo que o seu livro é um discurso ou uma carta: uma fala de rio que se arrasta ou uma daquelas Cartas Pônticas que Ovídio escreveu do desterro. Como Baudelaire diz em La Chevelure (na tradução de Ivan Junqueira): “Ó tosão que até a nuca se encrespa em cachoeira!/ Ó cachos!”, e parece agarrar nas mãos aquele maço, aquele feixe, aquele chumaço de cabelos, Antônio Campos quer segurar e brandir a voz, quer, à Rimbaud, “Segurar a semente”. Vivemos a era da velocidade e sob a pressão (opressão) do relógio. O relógio antes ficava na praça. Depois invadiu nosso tempo e ficou a nos tiranizar na parede. Com o progresso, foi entrando em nosso bolso e chegou ao nosso pulso. Agora está dentro do coração, onde marca o passo.

Observe o leitor que, dizendo uma coisa — um fato —, Antônio Campos registra outro: do enorme, às vezes monstruoso, relógio da praça, ele caminha — como se pelo tempo — pelo relógio grande de parede, maior de bolso ou de algibeira, menor de pulso e mínimo do marca-passo do coração (que, aliás, independentemente de qualquer aparelho, já é, em si, um relógio, ou uma bomba-relógio). Ele consegue diminuir, simbolicamente, o espaço do tempo com a diminuição do tamanho dos relógios. Quando mais perto de nós — até dentro —, mais o relógio nos indica sua tirania: o menor tempo de vida, da vida moderna e/ou pós-moderna. O tempo, embora sempre seja o mesmo, se parecia parado em uma gota, em uma poça, em uma hora, passa a andar pelos nossos olhos, a correr com as pernas dos seus ponteiros, a rodar com os seus formatos de rodas e com a velocidade de todos os seus velocímetros. Na realidade, nós vivemos o passado, pois o presente passa, e 10


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o futuro — observa Joseph Brodsky: “Dado à sua plenitude, o futuro é pura propaganda. Como a maconha”. Não obstante, indaga Carrière, citado por Antônio Campos em Umberto Eco: o Fim do Livro?, “Onde enfiaram o presente? O maravilhoso momento que estamos vivendo e que diversos conspiradores tentam nos roubar?”. Ora, diante da incrível velocidade do tempo hoje — “agoraqui” —, podemos responder a Carrière: o presente foi enfiado no futuro. Nós vivemos o tempo adiante, no tempo adiantado, vivemos o futuro ou no futuro, no instante próximo ou já outro do tempo (pois já não é o instante) saltando de segundo em segundo, do minuto presente ao minuto futuro, como se o hoje fosse o amanhã. Eis a nossa doença com o tempo, a nossa forma de avançar e avançar na vida. Logo, já não é presente, tampouco o passado que estamos vivendo, mas o futuro. Estamos pendurados no abismo do tempo, caindo de um tempo em outro. Afinal — a queda —, seja a nossa ou a de Camus, é inevitável, mas resta ao poeta — como restou a Charles Baudelaire —, entre as baratas restantes ou transformados em insetos (ê, Kafka! — como diria Cortázar), colher no fundo desse abismo (e abismo não tem fundo) as últimas flores do mal. O livro é o cavalo de batalha de Antônio Campos. Aliás, cavalo de batalha é uma imagem apropriada para o livro, desde o cordel, que, com seu grampo a cavalo, vive escanchado em barbante, até os recursos do cérebro, humano ou desumano, das últimas mídias. Contudo, ele bem sabe, Gutenberg não será esquecido nem na Galáxia de MacLuhan, pois, segundo Umberto Eco, “O computador nos reintroduziu na Galáxia de Gutenberg”. Todavia é lírico o discurso de Antônio Campos, lírica a sua carta e, não fosse assim, ele não seria o poeta construtor de sonhos (dos mesmos sonhos que o seu pai domou). Diria que, enquan11


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to questiona o que viveremos, ele vive e quer que todos vivam, adotando o lema de Horácio: Carpe diem. De repente, em uma noite qualquer, ele pensa em algo, em uma lua, uma luz — uma Luíza —, e olha a lua e vê a lua e sonha a lua, mas a sua lua não é a de São Jorge nem a do dragão, tampouco é a lua dos astronautas — a lua de Armstrong —, mas uma lua que, mesmo de sangue — menstruada — pode ser outra coisa, como um disco ou um níquel. Quero dizer, leitor, que a lua de Antônio Campos é a mesma lua da Canção de Joseph Brodsky Paisagem com inundação: “Queria ainda que a lua fosse uma moeda para te telefonar”. Marcus Accioly Itamaracá, maio de 2011

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SUMÁRIO

VIDA,

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Viver é resistir, 21 As faces do quase, 26 Caminhos peregrinos: uma jornada rumo ao coração, 30 Conectivismo, 32 TEMPO,

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Jogo de Deus, 37 O direito à história, 40 AMOR,

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O amor e a religião no futuro, 47 O amor no contemporâneo, 50


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MOLDURA DE MINHA VIDA: PERNAMBUCO,

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Joaquim Nabuco: intérprete do Brasil, 57 Pernambuco em miniquadros, 60 Pernambuco em antologias, 62 PESSOAS,

67

Christina Oiticica e sua arte de “plantar quadros” na Terra, 69 Um novo Nabuco, 72 Pintar ou viver, 76 Ernesto Sabato, 78 Bob Marley – o profeta da música, 80 Lágrimas e sorrisos, 82 O adeus a Maria Schneider, 84 POESIA, música, beleza,

87

A estrela fria, 89 Carlos Pena Filho – 50 anos de memória, 91 Poemas que inspiram, 93 Os olhos violeta e a poesia, 97 A beleza salvará o mundo, 99 DIÁLOGOS,

103

Diálogos culturais no mundo global pós-moderno, 105 Gilberto Freyre e o Oriente que tornou o Brasil possível, 108 Liberdade e cultura em um mundo sem fronteiras, 111 Por uma nova diplomacia cultural, 113 Criadores são seres coletivos, 116

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ESCRITORES,

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80 Anos de Renato Carneiro Campos, 123 Cora Coralina, 129 Gullar, 80 anos de poesia, 132 José Saramago, a consistência dos sonhos, 134 Kaváfis, 137 Moacyr Scliar, 140 O legado de Camus, 142 O Centenário de Nascimento de Mauro Mota, 146 Umberto Eco: o fim dos livros?, 149 Vargas Llosa, 152 A estética do cangaço, 154 Antônio Maria, 156 LIVRO,

161

A Olimpíada do Livro em 2013, 163 A reinvenção do livro, 165 Biblioteca-parque de leituras, 168 Criação imperfeita, 170 Direitos autorais e economia criativa, 172 O deserto do real, 175 O Google e os livros, 178 O livro no século xxi, 181 Sozinhos juntos, 185 FLIPORTO,

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A Fliporto e a sustentabilidade, 191 Eva Schloss, a luta contra a intolerância, 193 Fliporto 2007 – festa da América Latina, 195

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Fliporto 2008 – trilha da diáspora: literatura na África e América Latina, 201 Fliporto 2009 – diálogo entre culturas, 206 Fliporto 2010 – a fliporto e a cultura do diálogo, 210 Fliporto em Olinda, 213 Fliporto 2011 – uma viagem ao Oriente, 216 Malba Tahan, 219

CONFERÊNCIAS E DISCURSOS,

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Discurso de posse na Academia Pernambucana de Letras, 225 Maximiano Campos: o humanista e o escritor, 234 A poesia e o cangaço, 243 Clarice Lispector: uma geografia fundadora, 250

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VIDA

“A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante, chore, dance, ria e viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos.” Charles Chaplin 19



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VIVER É RESISTIR

À Ana, minha mãe.

Nesta época, chamada de pós-utópica, ou era das ilusões perdidas — na qual os grandes ideais foram implodidos —, marcada por uma forte crise de identidade do homem da modernidade, tem sobrado pouco espaço para se falar da existência e do propósito da vida. A História nos ensina que os séculos se parecem uns com os outros e que, a não ser pela inovação de instrumentos técnicos, o homem permanece o mesmo. Os sentimentos e os desejos se repetem ao longo da História: de glória, de amor, de dinheiro, de poder. Atualmente, mascaramos a ideia da morte com a supervalorização do corpo e das sensações para não refletirmos sobre o fim da consciência social. Os ideais transcendentais cederam lugar ao imediatismo do prazer, da forma física, da juventude, da beleza, do materialismo.

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Alexis de Tocqueville, em sua obra A Democracia na América, escreveu estas páginas premonitórias sobre esse individualismo exacerbado: Quero imaginar sob quais novos traços o despotismo poderia se produzir no mundo: vejo uma multidão incontável de homens semelhantes e iguais que giram incessantemente em torno de si mesmos para obter prazeres pequenos e vulgares, com os quais preenchem sua alma. Cada um deles, em separado, é como um estranho ao destino de todos os outros: seus filhos e seus amigos particulares formam para ele toda a espécie humana; quanto ao resto dos concidadãos, está ao lado deles, mas não os vê; ele os toca, mas não os sente; só existe em si mesmo e para si mesmo, e, se bem que ainda tenha uma família, pode-se dizer pelo menos que não tem mais pátria.

A res publica, escreve Gilles Lipovetsky (in L’ère du Vide, ed. Gallimard): [...] desvitalizou-se, e as grandes questões filosóficas, econômicas, políticas ou militares despertam aproximadamente a mesma curiosidade desenvolta que qualquer notícia de jornal; todas as “alturas” afundam pouco a pouco, arrastadas na vasta operação social de neutralização e banalização. Apenas a esfera privada parece sair vitoriosa dessa onda de apatia; cuidar da saúde, preservar sua situação material, livrar-se de seus complexos, esperar pelas férias: viver sem ideal, sem finalidade transcendente tornou-se possível.

Vivemos uma era de contradições e incertezas. As gerações se julgam fadadas a refazer o mundo. Agora, talvez a nossa tarefa seja ainda maior: impedir que o mundo não se desfaça. O inferno de Dante é um reflexo pálido dos horrores das guerras, da fome, das catástrofes, dos ódios e das incompreensões de nossa era. 22


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E qual será o caminho? O escritor Italo Calvino, em As Cidades Invisíveis, dá-nos uma pista: O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, no qual já vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagens contínuas: tentar saber quem e o quê, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.

Como ele diz: é preciso abrir espaço para um mundo mais fraterno e mais justo. Nikos Kazantzákis nos inquieta sobre o mistério da vida: “Por uma só coisa anseio: aprender o que se esconde atrás dos fenômenos; desvendar o mistério que me dá a vida e a morte; saber se uma presença invisível e imota se esconde além do fluxo visível e incessante do mundo”. Pergunto e torno a perguntar golpeando o caos: quem nos planta nessa terra sem nos pedir licença? Quem nos arranca da terra sem nos pedir licença? Sou uma criatura fraca e efêmera, feita de barro e sonhos. Mas sinto em mim o turbilhonar de todas as forças do Universo. Antes de ser despedaçado, quero ter um instante para abrir os olhos e ver. Minha vida não tem outro objetivo. Quero achar uma razão de viver, de suportar o terrível espetáculo diário da doença, da fealdade, da injustiça e da morte. Vim de um lugar obscuro, o útero; vou para outro lugar obscuro, a sepultura. Uma força me atira para fora do abismo negro; outra força me impele irresistivelmente para dentro dele.

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Apesar de todas as guerras, catástrofes e crises morais, existenciais e de valores, o homem resistiu e sobreviveu ao longo dos séculos. A vida é um processo contínuo de resistência. O impulso da vida e mesmo da arte são, paradoxalmente, atos de resistência ou uma grande briga do homem com a morte, este derradeiro encontro que nos é dado e a que estamos condenados desde que nascemos. O homem precisa melhor compreender o sentido da vida e da morte e aprender a conviver com a dor, porque, ao ter consciência da transcendência de seu papel, ganha dimensão de eternidade. Talvez Vinicius de Moraes tenha razão em dizer que é melhor viver do que ser feliz. O propósito da vida não é necessariamente a busca da felicidade. São mais interessantes na vida a curiosidade, os desafios, o bom combate com as vitórias e as derrotas. A busca de harmonia. A vida é mais uma busca do que um encontrar. Fernando Pessoa fala sobre a verdadeira história da humanidade: Ah! Quem escreverá a história do que poderia ter sido? Será essa, se alguém a escrever, a verdadeira história da humanidade. O que não há somos nós, e a verdade está aí. Sou quem falhei ser. Somos todos quem nos supusemos. A nossa realidade é o que não conseguimos nunca.

Muitos já falaram com maior maestria e conhecimento do que eu sobre a dor e a delícia de viver. Contudo, faz-se necessário pregar, mais do que nunca, um novo humanismo para o século XXI, em que o homem afinal se convença de que a grande viagem a ser feita é em torno de si mesmo, em busca da sua identidade, e que a grande descoberta é a do outro — seu irmão —, através da fraternidade e da solidariedade.

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Todo homem pode nascer uma segunda vez ao dar sentido à sua vida, fazendo-a valer a pena. A arte de viver é resistir em defesa da vida e dos valores essenciais humanos. Jamais perdi a esperança. Junho de 2008

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AS FACES DO QUASE

Vivemos fugindo de uma palavra que expressa, na maioria das vezes, um sentimento de frustração, desapontamento e tristeza: quase. Mas nem todo fato que chega próximo a se realizar, acontecer, é tido como frustrante. Para os que têm verdadeiro pavor do quase, um conciso texto escrito em 2003 por uma então estudante de Medicina catarinense chamada Sarah Westphal Batista da Silva e lançado na internet com autoria atribuída ao cronista e escritor Luis Fernando Verissimo tornou-se um ícone para uma legião de pessoas que se identificaram com aquela argumentação tão bem colocada. Depois de tantas negativas de Verissimo de que o texto tinha sido escrito realmente por ele, a autora de O Quase foi descoberta em 2005, quando o seu texto já havia sido traduzido para o francês numa coletânea de textos e versos de brasileiros, entre os quais Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira.

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Atribuído a Verissimo, estava lá O Quase, de Sarah, que na tradução virou Presque. Muito bem escrito, o texto sacode os que, na opinião da autora, estão acomodados a viver na “incerteza do talvez” e acostumados com a “desilusão de um quase”. Mas a mente humana é muito farta de possibilidades e de pontos de vista. O quase pode ser observado pelo prisma abordado por Sarah e ser definido como decepcionante, o nada. No entanto, temos o quase que nos traz o alívio por nos livrar de algo desastroso: escapar de um atropelamento; levar um choque elétrico forte e ficar vivo para contar a história; sofrer um acidente de moto e sair ileso, apenas com pequenas escoriações; e tantos outros. Esse seria, sem dúvida, o lado do quase que todos querem para si quando se deparam com situações de perigo. Há pessoas que acreditam — da mesma maneira que Sarah Westphal — ter o quase como uma verdadeira síndrome em suas vidas. Estas pensam que o quase as persegue, mas, mesmo assim, encaram a perspectiva com resignação e tranquilidade, pois dizem estar acostumadas a ver seus anseios e suas metas sempre apenas chegarem perto de acontecer. Mas não se culpam nem se revoltam por isso. Essa visão também nada tem a ver com falta de determinação ou pessimismo. Para quem pensa assim, o namoro que por um triz não decolou ou aquele emprego que quase deu certo deixaram de ocorrer em suas vidas porque, certamente, dessa forma seria melhor para eles. E assim dizem: “Não era a pessoa certa ou a melhor oportunidade para mim...”. Trata-se de uma filosofia de vida voltada ao não se martirizar e sempre partir para a próxima, acreditando que o melhor está por vir. Existem também aqueles que nem sequer admitem a hipótese do quase em suas vidas. Acostumado com a glória das vitórias e com o doce sabor das conquistas, Ayrton Senna, por 27


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exemplo, nunca se contentou com qualquer outra colocação em corridas ou em campeonatos na Fórmula 1. “O importante é ganhar. Tudo e sempre. Essa história de que o importante é competir não passa de demagogia”, era o que defendia. Desde a época do kart, Senna estava tão habituado a vencer que, para ele, o chegar perto não servia. O quase, portanto, era desprovido de qualquer valor para o piloto. Há muitas pessoas assim, que desconhecem outro gosto que não seja o do triunfo, e isso se reflete em todos os aspectos de suas vidas. Talvez essa característica acabe por formar indivíduos mais intolerantes e perfeccionistas ou apenas com forte autoestima e autoconfiança. Por outro lado, o quase pode ainda assumir ares confortantes. Tem gente que se sente bem só porque se aproximou de conseguir algo tão almejado. Esse comportamento é visto no ex-atleta que faz questão de enfatizar que quase foi às Olimpíadas. Ele não alcançou seu grande objetivo, mas fica satisfeito por ter desenvolvido o seu melhor e até orgulhoso em dizer que faltou pouco para realizar o sonho. Há um sentimento de plenitude nesse quase. Essa pode ser uma visão um tanto quanto romântica — na verdade, certamente defendida e praticada por poucos —, mas é uma maneira de se confortar, uma espécie de defesa do inconsciente. Diferente da visão da jovem catarinense Sarah Westphal — compartilhada por tantos —, que contesta a covardia, a falta de coragem das pessoas, abordando o quase como uma condição recorrente de quem escolhe viver de maneira morna, apática, a leveza e o orgulho do tal ex-atleta residem na certeza de que ele arriscou, fez tudo o que era possível. Vimos este ano o presidente de honra da Grande Rio, Jayder Soares, e todos na escola comemorarem bastante o vicecampeonato na Marquês de Sapucaí. Para a comunidade de 28


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Caxias, o segundo lugar no Carnaval do Rio teve sabor de título. Recentemente, também assistimos os jogadores do Santa Helena darem a volta olímpica no campo de jogo após serem derrotados pela segunda vez na disputa da final e ficarem com o vice-campeonato goiano. Mas foi pela desilusão de mais um fracasso amoroso e por analisar apenas a frequência do quase como consequência da apatia e da falta de atitude que, no fim do seu texto, Sarah Westphal sugere: [...] Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de tentar. Desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando porque, embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu.

O conselho serve para os casos que se enquadram no ponto de vista abordado, mas, mesmo seguindo-o, não estaremos livres do quase. Competitiva como a vida é, haverá sempre os que terão êxito, que conseguirão realizar os objetivos, os vencedores e os tantos outros que, chegando perto, ficarão no quase e não conseguirão um sonho, um objetivo, um casamento, um bom negócio fechado. Portanto, o quase deve ser encarado como fato corriqueiro e comum em nossas vidas, não apenas como fracasso. O quase tem múltiplas faces, tanto pode ser uma grande frustração como ser valorizado muitas vezes, sim. Trabalhemos, portanto, os nossos quases! Jornal do Brasil, 08/05/2010

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CAMINHOS PEREGRINOS: UMA JORNADA RUMO AO CORAÇÃO

No último dia 25 de julho, foi comemorado o Jubileu Apostólico. A data, criada pelo Papa Calixto em 1221, leva milhares de pessoas ao percurso de Santiago de Compostela. É uma antiga rota de peregrinação que se estende por toda a Península Ibérica até a cidade de Santiago de Compostela, no oeste da Espanha. Segundo uma antiga tradição, o apóstolo Tiago, após a dispersão dos apóstolos pelo mundo, teria ido pregar a palavra de Jesus em regiões ocidentais, mas, ao voltar à Palestina, teria sido preso e morto. Dois de seus discípulos levaram seus restos para o Ocidente, mais especificamente na cidade espanhola de Iria Flavia, onde o sepultaram secretamente no bosque de Libredón. O local permaneceu secreto durante oitocentos anos, mas as pessoas que viviam próximas ao lugar começaram a observar um fenômeno, no mínimo, estranho. Diz a tradição que todas as noites estrelas caíam no bosque, criando uma forte luminosidade. O bispo de Iria Flavia, então, iniciou escavações no local para investigar os motivos do fenômeno, e foi aí que encontra30


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ram uma caixa de mármore com os restos do santo. Quando o fato se tornou público, pessoas começaram a ir ao lugar para conhecer o sepulcro. Começou assim o Caminho de Santiago de Compostela, que, na realidade, são vários caminhos que levam a Santiago. Desde o século IX, homens e mulheres partem de suas cidades tendo como destino aquele lugar sagrado. Hoje em dia, milhares de pessoas de todas as idades continuam percorrendo esse antigo trajeto. Alguns buscam respostas e força para questionamentos pessoais, alguns por espírito cristão e outros apenas por aventura, afinal são oitocentos quilômetros de estrada. Paisagens como florestas, cidades históricas, templos religiosos, rios, lagos e antigas construções compõem a mágica viagem. Quando realizei minha peregrinação pelo Caminho de Santiago, em 2005, pude perceber que a travessia tem uma atmosfera diferente de todas aquelas que já presenciei. Durante a caminhada, refleti sobre vários aspectos da minha vida. Descobri naquele percurso que é possível encontrar a verdade do coração. Hoje, mais de 200 mil pessoas viajam todos os anos pelo norte da Espanha na peregrinação religiosa. Caminhando, de bicicleta ou a cavalo, a viagem é sempre emocionante. A popularização da peregrinação, não só no Brasil, mas em todo o mundo, deve-se muito ao escritor Paulo Coelho, que no livro O Diário de um Mago detalhou a emoção de sua peregrinação pelos campos espanhóis. O escritor, casado com a pintora Christina Oiticica, autora da obra Caminho Peregrino — livro que relata sua viagem de quase dois anos pelas estradas da Espanha —, acredita, assim como eu, que o Caminho de Santiago, de histórias seculares, sonhos, ilusões e esperança, serve como uma estrela-guia na vida de qualquer pessoa para descobrir a verdade do coração. 02/08/2010 31


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CONECTIVISMO

Ao longo da História, surgiram diversas teorias a respeito do conhecimento e da capacidade de aprendizado humano. No entanto, as principais linhas de ensino são o behaviorismo, cognitivismo e construtivismo — todas fundamentadas em realidades pré-tecnológicas e a favor da ideia de que a aprendizagem depende apenas da pessoa que aprende, não tendo relação com os fatores externos. Entretanto, essas teorias do conhecimento estão passando por fortes mudanças, pois a sociedade está mais madura e enxerga que, para aprender, é necessário formar conexões entre as fontes de informação para daí criar os próprios padrões de informação. Essa ideia é a base do, cada vez mais influente, conectivismo, no qual a aprendizagem é vista como um processo que acontece em um ambiente com elementos centrais em eterna mutação. Nossa capacidade de adquirir mais informações está, na realidade, fora de nós. É nas conexões com o meio externo

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que aprendemos coisas novas. Essa seria a melhor maneira de se chegar a um patamar elevado de conhecimento. Na última semana, participei de um evento sobre o ensino contemporâneo. O seminário A Sociedade em Rede e a Educação teve como objetivo discutir a melhor maneira de educar a sociedade na era digital. Podemos aprender continuamente, independentemente do horário tradicional da escola ou universidade. A tese do conectivismo ganha força no mundo contemporâneo. No livro Learning Ecology, Communities, and Networks: Extending the Classroom, o professor e diretor do Centro de Tecnologia da Aprendizagem da Universidade de Manitoba (Canadá), George Siemens, defende que a mobilidade trazida pela tecnologia e o impacto da aprendizagem informal tornam a aprendizagem um processo contínuo, tendo como grande fonte de informação a internet. Por outro lado, o ensino tradicional está indo ao encontro e se adaptando a essa era tecnológica. Recentemente, a rede de educação Anhanguera noticiou um ambicioso plano nesse sentido, qual seja de conectar tecnologicamente os alunos com a universidade para criar um ambiente de contínuo aprendizado. Na era digital, podemos aprender continuamente. Essa era já começou, criando um novo conceito de aprendizado. 20/09/2010

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TEMPO

“O tempo e o espaço são modos pelos quais pensamos, e não condições nas quais vivemos.” Albert Einstein 35



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JOGO DE DEUS

Vivemos a era da velocidade e sob pressão (opressão) do relógio. O relógio antes ficava na praça. Depois invadiu nossa casa e passou a nos tiranizar na parede. Com o progresso, foi entrando em nosso bolso e chegou ao nosso pulso. Agora está dentro do coração, onde marca o passo. Vivemos sob o feitiço do tempo, que é um jogo de Deus. Mas é a eternidade que dá sentido à vida. Tempo é movimento. Repouso é eternidade. “A eternidade é um jogo e uma esperança”, já dizia Platão. Rubem Alves, em seu Concerto para Corpo e Alma, apregoa-nos que: “Eternidade não é o tempo sem fim [...] Eternidade é o tempo completo, esse tempo do qual a gente diz ‘valeu a pena’”. A mente, esse portal do ser humano, lutando para escapar do confinamento e do feitiço do tempo, insiste em resistir e produz, entre outras coisas, arte. A arte é uma tentativa de se

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eternizar. É uma briga do homem com a morte e com o tempo, que é um relógio mágico e trágico que marca a vida. O sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre falou de um tempo tríbio em que o passado, o presente e o futuro estão dinamicamente inter-relacionados. Trouxe tal conceito de tempo a partir das considerações de Santo Agostinho sobre a essência do tempo, no livro XI das Confissões — considerações que foram magistralmente sintetizadas pelo poeta T. S. Eliot nos versos iniciais de Four Quartets (1943), que nos traz a seguinte mensagem: “O tempo presente e o tempo passado/ Estão ambos talvez presentes no tempo futuro/ E o tempo futuro contido no tempo passado/ Se todo tempo é eternamente presente/ Todo tempo é irredimível”. Em As Emboscadas da Sorte, o escritor Maximiano Campos afirma que tudo é velho e novo e que só o tempo não tem idade. O homem carregará as lembranças do seu passado, mas será sempre novo, mesmo além da sua vontade. Ele, no texto intitulado Ladrão de Tempo, nos diz que o maior ladrão é o de tempo. A humanidade ainda está presa a conceitos lineares de tempo e espaço. Albert Einstein revolucionariamente fundiu tempo e espaço num contínuo, que chamou espaço-tempo. Em 1988, Stephen Hawking publicou sua hoje famosa Uma Breve História do Tempo, do ponto de vista de um físico. A Física Quântica tenta explicar a direção do tempo. Na presença de campos gravitacionais intensos, podem existir caminhos que levem ao passado. Por isso, é possível passar duas vezes pelo mesmo ponto no espaço-tempo. Deveríamos entender o tempo como um círculo, e não uma linha reta, como imaginou a História ocidental, e afirmar que, ao caminhar para o futuro, nos aproximamos do passado.

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Proust, na literatura, escavou com profundidade em busca do tempo perdido. Será que a vida não é buscar e mesmo perder, proustianamente, o tempo? O poeta russo Joseph Brodsky nos instiga: quem é mais nômade, aquele que se desloca no espaço ou aquele que migra no tempo? Na realidade, há dois modos, básicos, de percepção do tempo: o quantitativo e o qualitativo, ou melhor, o cronológico e o existencial. O modo quantitativo adota um fato como referência e um fenômeno periódico para contagem do tempo. Na cultura cristã, considera-se o ano do nascimento de Cristo como inicial e o ciclo da Terra em torno do Sol como período de um ano. O modo qualitativo considera as mudanças que ocorrem em nossas vidas. Usamos expressões como “novo tempo”, “tempos difíceis” e “tempos fáceis”. No filme Perfume de Mulher, o personagem cego representado por Al Pacino pede a uma jovem para dançar um tango. Ela diz que não pode porque, em instantes, irá chegar o seu noivo. E ele diz: “Em um instante, se vive uma vida”. Esse é o tempo qualitativo ou existencial. Podemos intuir o tempo como relativo ou mesmo uma ilusão. Afinal, aprendi a contar melhor o tempo. Ele não se conta pelas folhas que secam e caem no caminho, mas pelos frutos colhidos ao longo da vida. O tempo não é mais que um momento, mas será eterno se for belo o gesto. Carpe Diem, como já disse o poeta Horácio. Jornal do Brasil, 03/04/2010 Folha de Pernambuco, 05/04/2010

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O DIREITO À HISTÓRIA

O Brasil não pode desconhecer e renunciar à sua história. A instalação da Comissão Nacional da Verdade é uma maneira de trazer à tona o que realmente aconteceu no nosso país em um período obscuro e autoritário. O objetivo é investigar as violações aos direitos humanos ocorridas no Brasil entre 1964 e 1985. A Comissão da Verdade é um instrumento através do qual o País terá a chance de conhecer sua real história. Não é um meio de retaliação ou vingança. O Brasil precisa abrir seus arquivos e mostrar sua verdade. Será o esclarecimento dos inúmeros casos de tortura, assassinato e desaparecimento de pessoas que, de um jeito ou de outro, lutavam contra a repressão. O ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela foi o criador da Comissão para a Verdade e a Reconciliação (CVR). Na luta contra a opressão racial e a favor da exploração da verdade, Mandela, no seu último discurso enquanto presidente, declarou: “Perseverarei na esperança de que um quadro de líderes 40


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emergiu em meu país e em minha região, no meu continente e no mundo, que não permitirá que ninguém seja privado da liberdade como nós fomos [...] que ninguém seja despojado de sua dignidade humana como nós fomos”. Em outra ocasião, o arcebispo Desmond Tutu ressaltou a importância da CVR. “Não jogaram sal nas feridas de seus antagonistas vencidos, não se engajaram em uma orgia de retaliação e vinganças, mas preferiram o caminho do perdão e da reconciliação”, reafirmando, assim, o anseio da Comissão em promover a verdade, e não a vingança. Apurar os casos e fazer o levantamento de possíveis responsáveis é o objetivo maior da Comissão Nacional da Verdade, proposta pelo Governo brasileiro. O projeto de lei de número 7.376/2010, propondo a sua criação, foi enviado ao Congresso em maio de 2010 e, caso aprovado, irá divulgar relatórios anuais com esclarecimento público acerca dos abusos cometidos na época da ditadura militar no Brasil. A ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, apoia e reconhece a importância da formação da Comissão da Verdade para o País e as vítimas do regime militar. Para isso, trabalha para que o presidente da Câmara, Marco Maia, faça a inclusão do projeto na pauta de votações da Casa. A intenção é que, com a criação da Comissão, a sociedade tome conhecimento dos casos de tortura, morte e desaparecimento da época. Além disso, é também função da Comissão da Verdade fazer com que a população brasileira e o Estado possam virar essa página da história do Brasil de modo consciente. O projeto solicita que a Comissão possa reconstituir, efetivamente, o que ocorreu no regime militar através dos agentes do Estado para, assim, fazer justiça às milhares de vítimas do período. Para isso, pede para que a Comissão tenha acesso a qualquer arquivo existente, além 41


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de convocar quem quiser e não ser obrigada a publicar tudo o que descobrir. A líder da Comissão da Verdade é a presidente da República, que, a partir da aprovação do projeto, deverá escolher sete membros para compor o grupo. Um exemplo da utilidade da Comissão seria a sua investigação acerca da Operação Condor, a fim de esclarecer a sua atuação no Brasil. Certa vez, Miguel Arraes declarou, em comissão sobre a Operação Condor, que a morte de homens como Juscelino Kubitschek, João Goulart e Carlos Lacerda merecem atenção em relação às suas causas, pois eles teriam sido indicados à morte pela Operação Condor, que nasceu em uma reunião da direita no Cone Sul. “A suspeita e a dúvida existem. Se essa comissão puder aprofundar, com fatos e testemunhas, acho da maior importância”, disse Arraes. A Câmara dos Deputados tratou sobre a Operação Condor em duas comissões: uma destinada a esclarecer as circunstâncias em que ocorreu a morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek, e outra com o objetivo de elucidar as causas da morte do ex-presidente João Goulart. A comissão em que Arraes prestou depoimento foi a de João Goulart, que teve como autor do requerimento e relator o deputado Miro Teixeira. Nela, o deputado e relator disse: “Estamos escrevendo um modesto começo da história da Operação Condor no Brasil. O tempo, em breve, se encarregará de completá-la”. Melhor que processar e punir os torturadores é discutir os comportamentos inaceitáveis em uma realidade civilizada. Através do conhecimento da História e dos debates acerca desse tema, poderemos evitar que esses fatos voltem a acontecer. 28/02/2011

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AMOR

“Porque quem ama nunca sabe o que ama. Nem sabe porque ama nem o que amar. Amar é a eterna inocência, e a única inocência, não pensar...” Fernando Pessoa 45



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O AMOR E A RELIGIÃO NO FUTURO

Apresentar às pessoas uma clara perspectiva de como construir o mundo que desejamos ou o que vai existir independentemente de nossas vontades, analisando possibilidades e pontos determinantes do passado e do presente sobre um assunto específico é o objetivo da Futurologia, a ciência que estuda o futuro. Apesar da exigência de elevado grau de precisão em suas abordagens, o papel de um futurólogo não é indicar o que vai acontecer, mas o que pode vir a se desenrolar como tendência a médio e longo prazo. Os cenários, portanto, são definidos como possíveis, prováveis ou desejáveis. A maioria das pessoas não está familiarizada com a Futurologia, embora haja estudiosos e conhecimento do exercício dela em quase todas as áreas da ciência: na Sociologia, no Marketing, na História, na Demografia. Assim, a Futurologia apresenta-se como uma significativa ajuda à tomada de decisões, e o desenvolvimento de um bom trabalho nesse campo depende de muitos estudos e pesquisas. 47


Um dos maiores futurólogos que já tivemos foi o luso-brasileiro Pe. Antônio Vieira (1608–1697), com seus célebres e geniais sermões (editados em dezesseis volumes) e os livros História do Futuro (volume I e II). Suas ideias de abolir a distinção entre cristãos-novos (judeus convertidos perseguidos à época pela Inquisição) e cristãos-velhos (católicos tradicionais), de defender o fim da escravatura e de criticar severamente a Inquisição mostravam que o Pe. Antônio Vieira era um grande pacificador, um homem realmente à frente de sua época. Atualmente, um dos futurólogos mais comentados no mundo é Adjiedj Bakas, autor de vários best-sellers, a exemplo de Living without Oil (Vivendo sem Petróleo) e Beyond the Crisis (Além da Crise). Filho de indianos, Bakas nasceu em 1963 no Suriname, mas vive e trabalha na Holanda desde 1983. Especialista em Ciência da Comunicação, Adjiedj Bakas combina conhecimento do mercado de diversão com distribuição de informação de entretenimento, sendo hoje um dos trendwatchers (profissional que realiza análises e monitoramento das macrotendências, coordenação de pesquisas e acompanhamento dos estudos realizados por agências especializadas) mais badalados do mundo. Autor de dez livros publicados, todos nessa linha das tendências para o futuro, e dono de um bom humor contagiante, Bakas é frequentemente convidado para proferir conferências em países de todo o mundo. Considerado pela imprensa internacional especializada em literatura como um fascinante pesquisador, um falante visionário e uma figura pública provocante e inspiradora, Bakas faz jus às classificações em duas de suas obras mais instigantes: Futuro de Deus (Espiritualidade 2.0), escrito em 2006, em coautoria com Minne Buwalda, e O Futuro do Amor, concluído em janeiro deste ano.


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Em Futuro de Deus (Espiritualidade 2.0), Bakas e Buwalda apresentam 49 tendências em religião e espiritualidade. O livro analisa que a transformação do mundo numa grande aldeia global ofereceu múltiplas chances para algumas pessoas, mas há muitos que se sentem ameaçados com essa situação. A globalização, sem dúvida, causou impacto sobre a religião. Os grupos religiosos que não conviviam há cinquenta anos, hoje vivem e trabalham nos mesmos bairros e escritórios. Já em O Futuro do Amor, Adjiedj Bakas traz afirmações cortantes, ácidas para o leitor, fazendo-o refletir sobre novos paradigmas em reflexões pertinentes que o posiciona nas condições atuais de vivência humana e relacionamentos interpessoais. O autor responde a questionamentos assim: Como o amor se relaciona com o trabalho? Como tecnologia e globalização se unirão com o amor? Será que vamos avançar para múltiplas relações (o que Bakas chama de a latinização de amor) ou caminhar para a monogamia serial? Como continuará a divisão aguda entre homossexuais e heterossexuais agora que há cada vez mais “cruzamentos”? Será que vamos chegar a uma multissexualidade? Nesse que pode ser considerado um de seus livros mais fascinantes, Bakas descreve a evolução da vida amorosa

de pessoas de várias gerações, além de estilos de vida e práticas étnicas e culturais no mundo veloz de hoje.

A Editora Girafa irá lançar os interessantes Futuro de Deus (Espiritualidade 2.0) e O Futuro do Amor, em julho, aqui no Brasil, e Adjiedj Bakas virá para proferir uma de suas famosas palestras. É esperar e conferir.

Jornal do Brasil, 17/04/2010 Folha de Pernambuco, 19/04/2010 49


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O AMOR NO CONTEMPORÂNEO

Nossa realidade, denominada modernidade líquida por Zygmunt Bauman em seu livro O Amor Líquido, é a imagem de uma sociedade isolada, egoísta, sem valores morais e éticos. É um mundo confuso e complexo. A fragilidade dos vínculos humanos gera sérias dificuldades em nossa capacidade de amar. Na era da comunicação, ocasionada pelos celulares e pela internet, reina a incomunicabilidade, pois não nos aprofundamos mais em nada na era digital e não comunicamos o essencial. O fenômeno da solidão cresce apesar de todas as redes sociais. Estamos privilegiando relacionamentos em redes sociais virtuais, que são, na verdade, superficiais e frágeis. Cito, mais uma vez, o pensamento de Bauman, que considera as relações sociais reais como bênçãos em um mundo de “furiosa” individualização. Torna-se mais evidente que o fracasso do amor moderno está atrelado ao fracasso da comunicação.

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O filme 2046 – Os Segredos do Amor, do cineasta chinês Wong Kar Wai, retrato da parcialidade do erotismo contemporâneo, tem como principal objetivo mostrar o fim da plenitude, da inteireza. Para ele, o verdadeiro amor é impossível. Ou melhor, só o parcial existe, e é exatamente isso que nos excita. A incompletude é a única possibilidade humana. Apesar da brilhante visão do cineasta de Hong Kong, a própria História e a grande arte buscam negar essa impossibilidade. Apesar de estarmos presenciando dia a dia as mudanças tecnológicas e culturais em tempos pós-modernos, não é de hoje que as pessoas vêm mudando o modo de ser, agir e pensar. Há mais de trinta anos, o sociólogo, historiador e professor norteamericano Richard Sennett afirmou que estavam surgindo mudanças entre as esferas da vida pública e privada. Ele acreditava ainda que o esvaziamento da vida pública traz uma série de problemas ao homem contemporâneo. O escritor já percebia que a chegada de uma “ideologia da intimidade” transforma categorias políticas em psicológicas. Ao discutirmos a crise do amor e dos laços humanos na contemporaneidade, percorremos um caminho histórico, que vai desde o amor romântico ao relacionamento amoroso na perspectiva de gênero. Passamos pela crise do romantismo, em diferentes versões, até as novas formas de vínculo entre os homens e as mulheres. As coisas estão tão mudadas de uns tempos para cá que podemos perceber a ambiguidade existente nessa mutação mental. Os filhos, por exemplo, são, muitas vezes, considerados objetos de consumo emocional. Apesar de serem capazes de despertar os mais puros sentimentos humanos, estão disputando com o comércio o título de bem mais valioso. O capita-

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lismo tem como meta fornecer substitutos à altura dos nossos sentimentos mais preciosos para que a sociedade se contente com tão pouco e esqueça, mais uma vez, sua essência: o amor verdadeiro. 06/09/2010

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MOLDURA DE MINHA VIDA: PERNAMBUCO

“Eu sou mameluco Sou de Casa Forte Sou de Pernambuco Eu sou o Leão do Norte”. Lenine e Paulo César Pinheiro 55



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JOAQUIM NABUCO: INTÉRPRETE DO BRASIL

O centenário de morte do escritor, político, historiador, jurista, jornalista, diplomata e abolicionista pernambucano Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo (1849–1910) foi a referência histórica que deu origem à Lei Federal nº 11.946, que institui 2010 como o Ano Nacional Joaquim Nabuco. Nada mais justo e oportuno. Coloca-se para nossa sociedade a chance de debater a relevância histórica e a atualidade das ideias de um importantíssimo e mundialmente respeitado brasileiro. Também em 2010, se vivo fosse, Gilberto Freyre, outro grande escritor e pensador pernambucano, completaria 110 anos. Portanto, este ano é substancial no tocante à reverência às obras de dois grandes brasileiros e à realização de iniciativas que democratizem e perpetuem os seus legados. Como quem reconhece um mestre, Gilberto Freyre sempre enalteceu o conjunto da obra de Joaquim Nabuco. Foi dele, quando era deputado federal por Pernambuco, o projeto de lei

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que criou o então Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (atual Fundação Joaquim Nabuco, no Recife). Freyre escreveu os prefácios para a oitava e a décima edição da autobiografia intelectual de Nabuco, Minha Formação, publicada pela Editora Universidade de Brasília, e fez ainda o prefácio da Iconografia de Joaquim Nabuco, com o estudo Em torno da Importância dos Retratos para os Estudos Biográficos: o Caso Joaquim Nabuco. A personalidade e a obra de Nabuco foram interpretadas por Freyre em muitos outros textos publicados em revistas e jornais que serão editados este ano, em coletânea, pela Fundação Gilberto Freyre, com organização de Edson Nery da Fonseca, para lançamento em agosto, durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que faz merecida homenagem ao sociólogo pernambucano. Joaquim Nabuco foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, embaixador do Brasil nos Estados Unidos e viveu ainda na Inglaterra e na França, onde se destacou como proponente do pan-americanismo, presidindo as Conferências Pan-Americanas de 1906. Nabuco veio a ser um dos primeiros intelectuais a pensar a formação histórica do Brasil a partir da escravidão. Combateu a prática e a cultura escravagista tanto através de suas atividades políticas quanto por meio de seus escritos. Fez campanha contra a escravidão na Câmara dos Deputados em 1878 e fundou a Sociedade Antiescravidão Brasileira, constituindo-se em um dos principais responsáveis pela abolição, em 1888. Como bem pontua o historiador Evaldo Cabral de Mello, que assina o prefácio dos seus Diários, publicados em 2005 pelas editoras Bem-te-vi e Massangana, Nabuco analisou o regime escravocata sem nenhuma complacência, como uma verdadeira instituição que moldou o ethos brasileiro ao definir a nação econômica, política e organizacionalmente. Para Evaldo 58


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Cabral, grande parte do pensamento social no Brasil recai sobre a herança dessa reflexão. Nabuco dizia que a generosidade dos escravos se contrapunha ao egoísmo dos senhores. E, mesmo depois de ter presenciado a grande vitória de sua causa com a abolição proclamada, profetizou que a escravidão permaneceria por muito tempo como uma característica nacional do Brasil. De fato, apesar de termos avançado significativamente nos nossos indicadores sociais, estamos longe dos ideais defendidos pelo histórico abolicionista nas campanhas para deputado por Pernambuco: garantir terra às famílias de ex-escravos e educação para as crianças destes. “Acabar com a escravidão não nos basta, é preciso destruir a obra da escravidão”, já era o que advertia Nabuco, quatro anos antes do fim da escravatura no País. A desigualdade, no entanto, ainda persiste de maneira cruel. Temos uma considerável parcela da população eminentemente formada por negros sofrendo com a exclusão social. Considerando-se o alcance social de seu pensamento e a abrangência e magnitude de seu desempenho político e de sua produção intelectual em todas as áreas em que atuou, há que se reconhecer em Joaquim Nabuco um homem ousado, um intelectual que não se omitiu em cobrar e atuar em razão dos menos validos. Os ideais de Joaquim Nabuco permanecem vivos, por sua grandeza, pelo seu espírito, pelo seu gênio. E as novas gerações precisam conhecer a obra, o pensamento e a história desse ilustre pernambucano, cidadão do mundo e um dos principais intérpretes do Brasil. Jornal do Brasil, 13/02/2010 Folha de Pernambuco, 15/02/2010

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PERNAMBUCO EM MINIQUADROS

Pernambuco se destaca como um dos locais de maior importância quando os assuntos são arte e cultura. A presença dos colonizadores holandeses no século XVII, dos pintores franceses no século XIX e a Semana de Arte Moderna de 1922 com a participação de pernambucanos em sua fundamentação são alguns motivos pelos quais nossa terra se tornou um berço de criações magníficas e de artistas indiscutivelmente talentosos. Outra importante influência para o surgimento de Pernambuco enquanto celeiro artístico brasileiro foi a criação da Escola de Belas Artes de Pernambuco, em 1932. Inspirada na Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, a escola pernambucana reunia, além do curso de pintura e escultura, o curso de arquitetura. É com o objetivo de levar à tona a importância do nosso estado enquanto fonte de inúmeras produções culturais que

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despertou em mim a vontade de divulgar os artistas pernambucanos e suas expressões culturais. Foi então que eu, juntamente com Dora Dimenstein — viúva de Elias Gabbay Dimenstein, um dos fundadores da antiga Galeria Officina, no Recife —, resolvi fazer uma mostra composta por cerca de setecentas obras. A exposição Pernambuco em Miniquadros será montada no Centro Cultural Correios do Recife entre os meses de junho e agosto de 2011 e aberta à visitação pública. É uma maneira de unir a tradição dos vários quadros que compõem meu acervo pessoal desde 1967 a 2009, em formato 20 x 20, e as obras reunidas por Elias entre os anos de 1975 e 2002, hoje herdadas pela família. Esse projeto cultural na área de artes visuais é uma forma de registrar, divulgar e documentar a trajetória das artes plásticas em Pernambuco nos últimos cinquenta anos. Pernambuco em Miniquadros é uma oportunidade de revelar artistas com pouca visibilidade no mercado plástico, além de resgatar o valor de artistas que tiveram grande expressão e que muito contribuíram para o reconhecimento das artes plásticas no Nordeste e no Brasil. É uma homenagem às artes plásticas de Pernambuco. 31/01/2011

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PERNAMBUCO EM ANTOLOGIAS

O Instituto Maximiano Campos (IMC) é uma organização cujo objetivo é preservar a memória pessoal e literária do escritor pernambucano Maximiano Campos — meu pai —, além de promover e divulgar a obra de escritores, sejam eles iniciantes ou já consagrados. Foi com a ideia de resguardar nossa literatura que o IMC produziu e editou as antologias que integram o projeto Pernambuco em Antologias, conjunto de obras que retrata fielmente a pluralidade literária pernambucana. As obras, organizadas por mim em parceria com grandes amigos, serão lançadas em novembro durante a sexta edição da Fliporto. O primeiro livro da série chama-se Pernambuco, Terra da Poesia. Idealizada por mim e pela ensaísta Cláudia Cordeiro, a obra é um painel da poesia pernambucana entre os séculos XVI e XXI. Em quase seiscentas páginas de poemas escritos por mais de 160 poetas, fizemos um registro da literatura nacional, desde o estreante Prosopopéia, de Bento Teixeira, até produções da fa-

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mosa Geração 65, da qual meu pai fez parte. Através dessa coletânea, podemos ter sempre conosco a história de Pernambuco de uma maneira mais clara e sublime, por meio da arte poética. Creio que a principal função da poesia é passar adiante as verdades que habitam em nós de modo atemporal e que nos mostra como realmente somos. Concordo com o sábio Ferreira Gullar quando diz: “Pretendo que a poesia tenha a virtude de, em meio ao sofrimento e ao desamparo, acender uma luz qualquer, uma luz que não nos é dada, que não desce dos céus, mas que nasce das mãos e do espírito dos homens”, pois a poesia é exatamente isso. É a verdade absoluta em cada um de nós. Minha satisfação com o resultado de Pernambuco, Terra da Poesia me fez sentir a necessidade de criar outro livro. Dessa vez, voltado à área da ficção. O outro volume da coleção é Panorâmica do Conto em Pernambuco, fruto da minha parceria com o escritor Cyl Gallindo. A obra, cuja produção demandou a leitura detalhada de mais de quinhentos textos em livros, revistas, na internet e até mesmo em acervos pessoais cedidos pelos próprios autores, resultou em uma síntese do que há de melhor na literatura de contos. Grandes amores, aventuras e momentos marcantes da infância são narrados por escritores como o recém-falecido Amílcar Dória Matos, Gilberto Freyre, Luzilá Gonçalves e Raimundo Carrero. A junção de textos tão valiosos é um apanhado da cultura nordestina, apesar de não ser possível reunir todos os bons autores em um só volume, pois, como afirmou Cyl Gallindo, “as coletâneas são como as publicações de obras completas de autores vivos: ficam sempre incompletas”; mesmo assim, acredito termos feito um belíssimo trabalho. As antologias Pernambuco, Terra da Poesia e Panorâmica do Conto em Pernambuco estão sendo reeditadas, em versões revistas e ampliadas. 63


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A terceira e última parte da coletânea é uma seleta de crônicas organizadas por mim e pelo professor Luiz Carlos Monteiro. A antologia Cronistas de Pernambuco é um registro de autores pernambucanos acerca de situações cotidianas desde o século XIX. É uma obra com forte expressividade cultural, visto que une escritores de diferentes períodos da vida e da história pernambucana, não pela época em que viveram, e sim pelo real valor de sua narrativa. No mundo contemporâneo, nos tornamos cada dia mais individualistas e isolados. Contudo, precisamos estar unidos. Uma antologia é uma tentativa de união, e, como afirmou o inesquecível João Cabral de Melo Neto, a reunião de diversos cantos é a responsável por uma grande manhã: “Um galo sozinho não tece uma manhã/ ele precisará sempre de outros galos./ [...] para que a manhã, desde uma teia tênue,/ se vá tecendo entre todos os galos”. A série Pernambuco em Antologias é exatamente isso. Através da reunião de contos, crônicas e poesias, podemos mostrar Pernambuco como ele realmente é: pluralizado, mestiço e multicultural. Nos tornamos então capazes de transmitir ao mundo o valor de nossa terra iluminada, tanto pelo sol ilustrado em nossa bandeira, quanto pelo valor histórico, cultural e intelectual do nosso povo. É uma homenagem ao nosso estado e a cada um dos pernambucanos. 11/10/2010

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PESSOAS

“Toda definição é perigosa.” Erasmo 67



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CHRISTINA OITICICA E SUA ARTE DE “PLANTAR QUADROS” NA TERRA

Foi um grande sucesso a exposição Amazônia, da pintora Christina Oiticica, que teve início no dia 15 de março, no Hotel Diplomat, em Estocolmo, na Suécia, por ocasião da conferência O Brasil e o Futuro – Biocombustíveis, Novas Energias, Ciência e Cultura, uma iniciativa do Jornal do Brasil, da Casa Brasil e da Câmara de Comércio Brasileira na Suécia. Companheira do escritor Paulo Coelho, essa talentosa artista plástica brasileira, que já expôs em tantos países pelo mundo (França, Espanha, Estados Unidos, Suíça, Itália, Polônia, Bélgica, Alemanha, Holanda, Irlanda e Eslováquia), agora vê sua arte brilhar na terra onde são escolhidos os vencedores dos prêmios Nobel. Christina Oiticica — como ela própria gosta de dizer — “planta quadros” na terra. Em suas telas, a natureza pinta, deixa marcas, sendo cocriadora da obra. Na realidade, a terra é cocriadora de tudo, inclusive de nós. Dona de uma arte originalíssima e apaixonante, sua pintura vem tendo o reconhecimento crescente do público e da crítica. Apresentada pela primeira vez, a exposição 69


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Amazônia tem vinte quadros, que foram enterrados na floresta amazônica da região do Acre e retirados após um ano. Os quadros renascem e são tratados e expostos por Christina. O quadro Portal de Gaia destaca-se na mostra. A tela é uma grande janela para o interior da terra, nossa grande mãe, local da aventura humana. Desde 2003, Christina Oiticica divide sua vida entre os Pirineus do sudoeste da França e o Rio de Janeiro, locais que escolheu para morar e que a inspiram para desenvolver seu trabalho junto com a natureza. A artista estabelece uma generosa parceria com os elementos naturais, concebendo seus trabalhos com essa interferência direta, uma vez que suas telas são deixadas nos leitos de rios, nas florestas, dentro de árvores, e depois de certo tempo ela faz o que chama de correção. De maneira simples e direta, a pintora retrata em seu trabalho o mundo, o momento presente e as sociedades em que vive. A força e a magia das suas telas nos foram apresentadas desde sua primeira exposição, com os belíssimos quadros surgidos da sensibilidade de sua impressão visual em uma peregrinação pelo Caminho de Santiago de Compostela, em 1990, na Espanha. A mostra foi montada, à época, na Casa de Espanha, no Rio de Janeiro, de modo que o visitante pudesse não só observar a temática dos quadros, mas que experimentasse também um percorrer simbólico do Caminho Santo. A artista diz que enterra seus quadros porque se interessa pela natureza como coautora de sua arte, mas não só pela intervenção estética dos elementos naturais em contato com suas telas, também pelo que chama de “marcas invisíveis deixadas por estes”. Christina pinta ao ar livre já há bastante tempo. Deixou as paredes dos ateliês e passou a exercer os momentos de criação de suas telas no chão dos bosques e nos leitos dos rios. E foi assim que chegou a essa técnica de fazer dos elementos 70


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da natureza coautores de sua obra. Casualmente, um dia trabalhando em um campo, viu um inseto e uma flor de algodão passando sobre um quadro que pintava. Longe de incomodála, isso lhe pareceu belíssimo. A pintura de Christina é muito simbólica. Sendo grande devota da Virgem Maria, sempre trabalhou com o universo feminino: o corpo, os círculos, as transparências, a boca que se transforma em coração ou em rosa. Então, logo veio a ideia de trabalhar na terra, que simboliza o útero e a fecundidade, e tudo se encaixou na semiótica arte de Christina Oiticica. Sensível, doce e muito forte, ela é amante das mariposas, da terra e da água. Um espírito livre, que irradia agradecimento pela vida em cada pensamento seu. A sua pintura é uma espécie de carta da terra a lembrar que a natureza é nossa criadora, nossa morada, lugar sagrado. Talvez por isso as obras que a natureza lhe devolve não são exatamente quadros, mas pequenos tesouros, presentes da terra, dos pequeninos seres vivos que ali deixam suas marcas, da chuva, da Lua, do Sol e da imensa energia das quatro estações. Christina percebe a arte como um caminho de pesquisa. Ousa, inventa, reinventa. O caminho do belo para ela é encontrado em várias linguagens de tradução de sua obra. Tenho a intuição de que as raízes familiares e culturais de Christina, no Nordeste do Brasil, estão chamando-a para um projeto nos sertões nordestinos. Afinal, o sertão está em todo lugar, como já dizia o mago de Codisburgo, Guimarães Rosa. E a arte e a vida de Christina Oiticica são peregrinas, levando-a a colher “quadros plantados” mundo afora. Jornal do Brasil, 12/04/2010 Folha de Pernambuco, 08/04/2010 71


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UM NOVO NABUCO

Homem de formação nacionalista e político maduro e coerente, o deputado federal Aldo Rebelo, presidente da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara Federal, tem assumido fortemente, ao longo de sua trajetória parlamentar, o cuidado com a causa indígena no Brasil. A garantia e preservação dos direitos elementares para os povos indígenas são fundamentais para a manutenção da identidade nacional. Rebelo defende uma completa integração dessas etnias com a sociedade brasileira, mas obedecendo e respeitando os diversos estágios de todas as populações de índios no País. Em sua visão, Rebelo afirma que os índios devem ser efetivamente integrados à nossa sociedade, tendo liberdade e real oportunidade para desenvolverem atividades sustentáveis produtivas e exploradoras nas suas terras e não viverem “tutelados” tanto pelo Estado, quanto pelas ONGs nacionais e internacionais. Com propriedade na causa, Aldo Rebelo observa que os índios não têm direitos sobre suas reservas e que, hoje, muitos 72


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deles não têm sequer como sobreviver. Eles não podem explorar a madeira nem os minérios. Para Rebelo, o Estado poderia ajudá-los nessas atividades, “mas tudo continua imobilizado”. Há situações assim em outros países. No Canadá, os índios fizeram acordos com grandes empresas para a exploração do petróleo em suas terras. O PIB dos índios norte-americanos é de 25 bilhões de dólares por ano. Milhares de índios têm fortunas acima de 1 milhão de dólares nos Estados Unidos. Mas, para chegar a essa realidade, segundo Aldo Rebelo, é necessário haver um consistente processo de integração. “Não essa segregação, que mantém os índios em determinado estágio, para que as pessoas possam produzir suas teses antropológicas de mestrado e doutoramento”, critica. Na pauta internacional, o tema da questão social foi substituído pela questão do meio ambiente. Aldo Rebelo é relator do novo Código Florestal Brasileiro, em tramitação na Câmara Federal, que, ao ser votado e aprovado, vai nos permitir viver no País com a legislação mais avançada no tocante à conservação e ampliação das áreas florestais. Ao longo de seus mandatos como deputado federal, Rebelo foi um importante mediador e interlocutor entre os índios e o Governo Federal e até entre as tribos indígenas e os produtores rurais. É de se enaltecer o seu esforço para a regulamentação da demarcação da reserva indígena na Raposa-Serra do Sol, em Roraima. Do alto de sua sensibilidade para com a causa indígena, Rebelo afirma em seu livro Raposa-Serra do Sol, o Índio e a Questão Nacional (Ed. Thesaurus, 2010) que grafa o nome da reserva com hífen por acreditar que Raposa e Serra do Sol são áreas geograficamente distintas, habitadas por tribos e populações igualmente distintas (macuxi, wapichana, ingarikó, taurepang e patamona). Faz questão de colocar o hífen, portanto, como iniciativa de 73


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denúncia, de alerta para essa observação — tão importante do ponto de vista geopolítico — sobre a área demarcada. As maiores reservas de urânio do mundo estão nas terras indígenas de Roraima. Há muitos minérios importantes nessas terras, inclusive um que tem o apelido de alexandrita, que só foi encontrado nas Américas na terra ianomâmi. Para Aldo Rebelo, os índios nunca são ouvidos pelo Governo Federal, e o processo da Raposa-Serra do Sol é patente em relação a isso. “Ali, um grupo grande de indígenas contestou a demarcação proposta pela Funai. No entanto, não foi levado em consideração”, destaca. Rebelo observa que a relação entre os grupos de índios que vivem na reserva Raposa-Serra do Sol não é das mais amistosas, e eles preferiam que a demarcação fosse em “ilhas”, onde cada tribo teria sua área determinada, sem precisar conviver com outras. Tal divisão não levaria em conta apenas o aspecto das rivalidades, mas principalmente o estágio de evolução de cada grupo. Em Roraima, existem indígenas que vivem da coleta, da caça, e outros formados por pequenos fazendeiros, comerciantes, a exemplo dos macuxis. Na opinião de Rebelo, a demarcação como foi estabelecida, em área contínua e de fronteira, só interessa às ONGs internacionais e ameaça a soberania nacional. Grande admirador de Joaquim Nabuco, o alagoano Aldo Rebelo é um verdadeiro entusiasta da obra Um Estadista do Império (1896). Neste, que é reconhecido como seu principal livro, Nabuco registra e analisa a vida e a obra de seu pai, o senador José Tomás Nabuco de Araújo, e a vida política, econômica e social do Brasil durante a atuação do mesmo. Considero Um Estadista do Império a maior e melhor biografia desenvolvida no Brasil em todos os tempos, por sua forma brilhantemente escrita. Além de sua ferrenha campanha pela abolição da escravidão do povo 74


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negro, Joaquim Nabuco defendeu uma importante causa indígena. Em seu primeiro mandato como deputado geral pela então província de Pernambuco, Nabuco combateu um projeto de exploração do Xingu, defendendo os direitos dos indígenas. Por sua atuação efetiva na preservação dos direitos das várias etnias indígenas e suas culturas no Brasil, demonstrando que a iniciativa é de fundamental importância para o futuro e a manutenção da identidade nacional, Aldo Rebelo pode ser comparado a Joaquim Nabuco, que tanto batalhou pela causa dos negros nesse país. Aldo Rebelo é um novo Joaquim Nabuco, o Nabuco dos índios. O Brasil é um país mestiço, e, por isso, temos que viver numa sociedade que integre perfeitamente as nossas ascendências e culturas indígenas, africanas, europeias e asiáticas. O Brasil inclusive deve ser o paradigma para o mundo do convívio entre raças, religiões e culturas. Ser um facilitador para uma aliança de civilizações. Assim, é perfeita a colocação de Aldo Rebelo de que cabe ao País adotar medidas drásticas para proteger as populações indígenas e assegurar a preservação do meio ambiente em consonância com os interesses sociais e econômicos da população e da Nação, “sem hipotecar seu futuro às pressões ilegítimas e divorciadas de nosso bem-estar e segurança”. Jornal do Brasil, 29/03/2010 Folha de Pernambuco, 29/03/2010

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PINTAR OU VIVER

Com apenas 50 anos de idade recém-completados, Candido Portinari aceitou um desafio que viria a ser mortal: pintar dois murais para a sede da ONU com os temas guerra e paz. As tintas contendo chumbo e os pincéis representavam um risco letal à saúde do pintor, um verdadeiro processo de envenenamento, lento e silencioso. Em contraposição a essa situação, a arte era a razão da vida de Portinari. Quando ele recebeu a proibição de pintar, em prol do seu bem-estar, afirmou: “Estou proibido de viver”. Os famosos paredões de quatorze metros de altura e dez metros de largura, os mais importantes e reconhecidos trabalhos de Portinari, foram pintados durante nove meses, a convite do governo brasileiro, na época representado por Juscelino Kubitschek. A cada pincelada, o pintor paulista se abastecia de coragem para conseguir terminar os esplendorosos murais, que se mesclavam entre o drama e a poesia, a fúria e a ternura. Autor de mais de 5 mil obras, Candido Portinari expressou os sentimentos causados pela temática abordada. De um lado, 76


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o sofrimento, o desespero e a dor projetados no mural sobre a guerra. Do outro, a felicidade, a valorização dos afetos e as experiências decisivas vividas por jovens, homens, mulheres e crianças no decorrer da vida, que trouxeram bem-estar e a sensação de realização pessoal. Apesar de tanto esforço e dedicação aos murais, Portinari, envolvido com o Partido Comunista, teve o seu visto negado e não pôde ir à cerimônia oficial na ONU, em Nova York, de inauguração e apresentação das suas obras. Enviou, então, um telegrama, que dizia: “A luta pela paz é uma decisiva e urgente tarefa. É uma campanha de esclarecimento e de alerta que exige determinação e coragem. Devemos organizar a luta pela paz, ampliar cada vez mais a nossa frente antiguerra, trazendo para ela todos os homens de boa vontade, sem distinção de crenças ou de raças, para assim, unidos, os povos do mundo inteiro, não somente com palavras, mas com ações, levarem até a vitória final a grande causa da paz, da cultura, do progresso e da fraternidade entre os povos”. Com essas palavras e mais de cinquenta anos após a criação dos painéis, uma questão mostra-se contemporânea e cada vez mais urgente: a necessidade do diálogo entre os povos como forma de buscar a paz e respeitar a singularidade das diferentes culturas e crenças. Em fevereiro de 1962, a matéria de Candido Portinari descansou, mas deixou para todos nós a lição de perseverança e luta a favor dos sonhos, da causa da arte e da paz. 23/05/2011

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ERNESTO SABATO

“Arte e literatura unificam-se naquilo a que chamamos poesia”, disse, certa vez, o escritor argentino Ernesto Sabato. No último dia 30 de abril, Sabato deixou o plano terrestre e eternizou-se como um grande romancista, ensaísta, artista plástico e defensor da democracia na Argentina. A apenas dois meses de completar 100 anos de idade, o escritor, vencedor do Prêmio Cervantes de Literatura de 1984, mostrou ao mundo o seu valor artístico-literário, que transcendeu a sua idade biológica. Autor das obras O Túnel, Abadón e Sobre Heróis e Tumbas, o escritor foi ainda dirigente da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), em que defendeu a democracia do seu país e o respeito aos Direitos Humanos. Durante a sua atuação à frente da Conadep, Sabato publicou o informe Nunca Más, sobre a repressão dos governos militares argentinos de 1976 até 1983 e que auxiliou no julgamento dos crimes cometidos durante o regime militar.

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Foi na área da Física que o escritor deu início à sua vida profissional. Um dos maiores romancistas argentinos do século XX, Ernesto Sabato, no entanto, começou a sua vida literária com o romance Nós e o Universo, publicado em 1945. Mas o reconhecimento internacional do seu trabalho só viria anos depois, em 1961, com a publicação do aclamado Sobre Heróis e Tumbas. O livro A Espanha nos Diários da Minha Velhice, de 2004, foi a sua última obra publicada. Ao longo da sua carreira na literatura, esse ilustre argentino uniu, majestosamente, o existencialismo à arte literária fantástica da Argentina. Com a chegada da velhice, Sabato teve a visão prejudicada, o que o obrigou a deixar a escrita de lado. Partiu, então, para as artes plásticas, onde se refugiou das dores causadas pela idade. Com o passar do tempo e o crescimento da sua debilitação corporal, o artista voltou-se para a área da música. E, assim, Ernesto Sabato nos transmitiu o real significado da apreciação da arte, no seu sentido mais puro e amplo, atingindo as mais diversas ramificações e explorando os seus inúmeros talentos, inestimáveis presentes deixados para o mundo inteiro. Durante os seus 99 anos, o escritor carregou a resistência no próprio corpo e intitulou, assim, um obra inesquecível, chamada A Resistência, que inicia-se assim: “Há certos dias em que acordo com uma esperança demencial, momentos em que sinto que as possibilidades de uma vida humana estão ao alcance de nossas mãos. Hoje é um dia desses”. 30/05/2011

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BOB MARLEY – O PROFETA DA MÚSICA

Os trinta anos da morte de Robert Nesta Marley, rei do reggae e um verdadeiro profeta da música, trazem à tona a importância das reflexões e boas energias deixadas pelo músico. Vitimado pelo câncer, Bob Marley foi, além de portador de um inestimável talento para a música, um grande homem, como demonstram as suas canções e os pensamentos disseminados ao redor do mundo. Entre suas famosas frases, destaco uma: “Enquanto a cor da pele for mais importante que o brilho dos olhos, haverá guerra”. Bob Marley era dono de uma louvável preocupação social e política. Nascido na Jamaica, em 1945, o cantor e compositor cantava os problemas dos pobres e oprimidos e, assim, popularizou o seu estilo musical, levando, ainda, a sensibilidade das suas reflexões ao público. Apesar de nunca ter se candidatado a nada no país, o músico soube repassar, através do seu talento musical, seus ideais políticos e sociais ao mundo inteiro.

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Já na vida familiar, o ícone do reggae foi pai de doze filhos, sendo dois adotados, e casado com Rita Marley, cantora que o acompanhou até a sua morte, no ano de 1981. Na carreira profissional, tornou-se um mito e, até os dias atuais, possui uma legião de fãs e seguidores espalhados em todos os continentes. Ao longo dos anos vividos, intensamente, junto ao reggae, Bob Marley estabeleceu parcerias que contribuíram para o seu crescimento, como, por exemplo, os trabalhos realizados com os músicos Bunny Wainer e Peter Tosh, do grupo The Wailers. Com muito talento, dedicação e perseverança, o ícone do reggae foi o responsável pela aceitação do ritmo fora do seu país e disseminação da sua religião, o rastafarianismo. A força da música de Bob Marley é, até hoje, incalculável. Em vida, o cantor recebeu a Ordem do Mérito Jamaicana, mais alta condecoração do seu país; a Medalha da Paz do Terceiro Mundo, pelas Nações Unidas; além de um Grammy e uma estrela na Calçada da Fama de Hollywood. Trinta anos após a sua morte, podemos ter a consciência de que o legado deixado por Bob Marley vai além das suas valiosas canções de reggae, abrange profundas reflexões e pensamentos, como na frase: “Não viva para que a sua presença seja notada, mas para que a sua falta seja sentida”. 06/06/2011

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LÁGRIMAS E SORRISOS

Fortes emoções e muita alegria definem o espetáculo com a música tipicamente argentina que acontece na Casa Señor Tango, casa de shows em Buenos Aires, localizada no antigo bairro Barracas. Com o título Lágrimas e Sorrisos, que retrata bem as sensações vivenciadas por quem assiste à magnífica apresentação, o show nos remete ao tradicional e emocionante tango. A história do tango começou no final do século XIX, como uma expressão folclórica das populações pobres. As primeiras músicas eram compostas pelo próprio povo, que improvisavam letras sensuais e bem-humoradas. Depois, o tango se tornou a trilha sonora dos bordéis e, em seguida, chegou aos países da Europa e conquistou a noite e a admiração de várias metrópoles. Durante toda a festa realizada na famosa casa de show, acontece um belíssimo festival de dançarinos entrelaçados com muito charme e sensualidade. Uma linda homenagem ao tango-canção de Carlos Gardel, inventor desse estilo e o res-

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ponsável pela migração do estilo musical do subúrbio para as cidades. Gardel iniciou a Época Dourada do Tango, período marcado pelo surgimento de inúmeras composições. Em uma visita ao local, tive a satisfação de conhecer Fernando Soler, cantor e produtor da Casa Señor Tango e uma verdadeira lenda viva do ritmo, que ressaltou a importância do compositor Alfredo Le Pera para o tango argentino, destacando-o como “o maior compositor romântico de tango”. Le Pera compôs a famosa canção Por Una Cabeza junto com Gardel. A arquitetura tradicional, além das comidas e bebidas servidas, um outro espetáculo à parte, traz elegância e um toque requintado ao lugar. A apresentação dos mais de quarenta artistas conta, ainda, com um jogo de luz, cor e som, que consegue trazer mais brilho à Casa, fazendo com que o visitante desfrute a mais bela noite do clássico tango. Ao final da grande noite, Fernando Soler encerra o espetáculo com a emocionante ópera No Llores por Mí Argentina, que dizem ter sido o discurso de Eva Perón quando Perón ganhou as eleições. Coreografado belamente pelas dezenas de artistas que se lançam pelo palco, o grand finale traz à Casa Señor Tango um momento inesquecível até para os que não vivenciam o cotidiano da dança e da música apaixonante e envolvente que é o tango. 23/05/2011

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O ADEUS A MARIA SCHNEIDER

O mundo do cinema amanheceu mais triste no último dia 4 de fevereiro. A atriz francesa Maria Schneider, aos 58 anos, deu adeus aos milhares de fãs e admiradores após lutar por vários anos contra um câncer. Ela ficou conhecida pelo papel que desempenhou, com apenas 19 anos, ao lado do grande ator Marlon Brando, no filme O Último Tango em Paris. A personagem — jovem amante de um empresário de meia-idade — deu a Maria a imagem de uma mulher corajosa e polêmica. Cenas de sexo, não muito comuns naquela época, marcaram a carreira promissora que teria a jovem francesa. O filme foi um verdadeiro escândalo. Após o histórico longa-metragem, a atriz atuou em vários outros filmes, dentre eles La Baby Sitter (1975), de René Clement, e La Dérobade (1979), de Daniel Duval. Ao saber da triste notícia da morte de Maria Schneider, que teve uma vida atribulada pelo vício em heroína, lembrei-me do

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artigo escrito pelo cronista Renato Carneiro Campos, meu tio, na época em que O Último Tango em Paris estava em exibição nas telas de cinema do Recife (1973). No texto, intitulado O Último Tango em Paris ou em Qualquer Lugar, tio Renato menciona um dos aspectos mais fascinantes do filme do, à época, jovem cineasta Bertolucci. O filme retrata o sexo como uma forma de protesto que serve como reação a situações absurdas do cotidiano. O ato sexual é uma maneira de pensar, ou melhor, é uma maneira de não pensar. Esquecer as coisas, fugir do convencional e, até mesmo, protestar contra uma sociedade sem valores morais. Como disse Renato, “O Último Tango em Paris pode representar uma cabeça de carneiro nas muralhas já arrombadas de uma falsa moral burguesa; de uma sociedade de consumo que, para vender seus produtos, automóveis, cigarros, roupas, calçados e todo tipo de objeto, emprega mulheres semidespidas em anúncios semipornográficos. É como se as pessoas sentissem que espírito e alma não podem lutar contra máquinas, formas autoritárias de governo, sistemas imperialistas econômicos, e que somente a carne, simplesmente a carne, é que está mais próxima desse mundo”. Lembrarei sempre da atriz Maria Schneider nas cenas de O Último Tango em Paris, que a imortalizaram. 21/02/2011

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POESIA, MÚSICA, BELEZA

“Felicidade é a única coisa que podemos dar sem possuir.” Voltaire 87



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A ESTRELA FRIA

José Almino recorre às lembranças de sua vida pessoal para a construção de seu pensamento poético e literário. O poeta pernambucano, que é presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, já escreveu os livros de poemas De Viva Voz (1982) e Maneira de Dizer (1991) e as novelas O Motor da Luz (1994) e O Baixo da Gávea, Diário de um Morador (1996). Sua mais recente obra se chama A Estrela Fria e é uma coletânea de poesias escritas por Almino ao longo de sua história. Almino, que nasceu no Recife, tinha apenas 19 anos quando foi obrigado a partir para o exílio com sua família. Lembranças dessa intervenção política são marcantes nesse seu livro. A poética de Manuel Bandeira e o estilo oposto presente nos textos de João Cabral de Melo Neto são presentes no livro, que faz uma espécie de mistura de linguagens literárias. Autor de palavras peculiares, José Almino traz na obra momentos de sua vida pessoal, relatos do cotidiano, lembranças

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de sua infância em Pernambuco, do exílio junto com sua família, sobre a vida no Rio de Janeiro e suas experiências amorosas. Almino traz nos poemas algo inovador. A Estrela Fria é uma metáfora sobre a infância e juventude do pernambucano. Muitas vezes fazendo relatos do passado com um tom de nostalgia. “Talvez seja mais migrante quem migra no tempo do que na geografia”, como disse o poeta russo Joseph Brodsky. A nostalgia que rodeia os textos faz com que o autor pareça ser vários personagens em apenas um. Lembranças de várias situações vividas em tempos diferentes por uma mesma pessoa. As palavras traduzem tempos que já se foram. São apenas recordações de uma época que não volta mais, que é citada, porém, com extrema nostalgia. A poesia de Almino parece balançar entre a poesia tradicional e a prosa cotidiana. Por meio de citações nos textos, as vozes do autor parecem gritar das páginas. Nos poemas, fica clara a saudade que o escritor sente de sua juventude. Através de palavras, consegue passar sentimentos que sentiu nas ocasiões lembradas. Sentimentos que teve por várias pessoas. Desabafos de indivíduos próximos. Sensações que viveu em momentos de alegria, tristeza ou estranhamento. Almino expõe sua vida de maneira inusitada. Em frases curtas e versos simples, fala da saudade que sente de si próprio. Obra poética que merece ser conhecida, afinal “Não há crepúsculo, mas o rangido do sol a pino varrendo a sombra e a árvore: quintal pelado. De longe a infância queima: ela é a luz de uma estrela fria”. Jornal do Brasil, 21/06/2010 Folha de Pernambuco, 21/06/2010

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CARLOS PENA FILHO – 50 ANOS DE MEMÓRIA

No último dia 18 de novembro, foi aberta uma bela exposição sobre o universo de um dos maiores poetas da história de Pernambuco. A exposição, intitulada Carlos Pena Filho – 50 Anos de Memória, é uma síntese da vida e da obra desse grande poeta pernambucano. No último mês de julho, quando a morte de Carlos Pena Filho completou meio século, publiquei um artigo sobre a importância do poeta e a relação de amor que o mesmo tinha com o Recife. O advogado, escritor, articulista e poeta Carlos Pena demonstrou ainda muito jovem seu amor pela literatura. Com apenas 19 anos, publicou, no Diario de Pernambuco, o soneto Marinha — o primeiro de vários textos que viria a editar nos jornais da época. Conhecido por valorizar a natureza e dar vida, através de seus versos, a paisagens e obras de arte, Carlos Pena Filho era

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um pintor cujos pincéis eram as letras. A relação do poeta com as artes visuais levou o próprio a considerar-se certa vez um “pintor frustrado”. Essa diversidade das paisagens alcançadas pelo poeta é mostrada com detalhes na exposição Carlos Pena Filho – 50 Anos de Memória. A mostra é uma forma de levar os leitores de Carlos Pena a um universo mágico e repleto de figuras, imagens e reflexões sobre a importância da poesia e da arte para a vida. A exposição foi estrategicamente dividida em dois módulos. O primeiro é uma espécie de memorial do poeta, no qual, através de fotografias, vídeos, objetos e textos, é narrada a curta, mas brilhante vida do pernambucano. A segunda parte da mostra é uma homenagem a ele por parte de artistas plásticos pernambucanos, que recriaram textos do poeta através de belas obras de arte. É uma nova maneira de mostrar a força e a beleza poética do poeta da cor e do Recife. Afinal, como diz Carlos Pena: “Em meio ao longo mar não faço caso/ dos dias meus,/ pois tenho a guiar-me o vento e o puro acaso/ e o acaso é Deus”. 29/11/2010

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POEMAS QUE INSPIRAM

O grande poema é uma oração. Particularmente acredito que também podemos orar a Deus através de alguns poemas tal qual como se citássemos versos bíblicos. E não estou sozinho nessa crença de que existem verdadeiros poemas-orações, capazes de nos inspirar e até transformar nossos pensamentos e nossas atitudes, nos fortalecendo para os embates da vida. O escritor e documentalista Edson Nery da Fonseca gosta de “conversar” com Jesus, declamando o poema Encontro, de Deolindo Tavares: “Vou me encontrar com Cristo/ a uma e meia da manhã./ Por que, então, neste momento/ não me cega a estrela das grandes vigílias?/ Preciso mais do que nunca estar desperto/ e sinto que adormeço sobre finíssimas lâminas de ouro”. O poeta Manuel Bandeira assim começa um poema-oração: “Nossa Senhora, me dê paciência/ para estes mares, para esta vida”. Poema-oração, aliás, é o título de uma belíssima poesia da escritora e poetisa portuguesa Maria José Rijo. Verdadeira súpli93


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ca, o poema é escrito com tamanha leveza e mostra sua fé e intimidade com Deus: Se há coisas que eu entendo/ nos cantos que o vento entoa;/ se há mensagens que eu pressinto/ nas vozes que eu ouço à toa;/ se outros olhos choram mágoas/ que eu sinto no coração/ e de tudo isso eu posso/ fazer a minha oração.../ É, porque, então, sei rezar!/ E se rezar é amar.../ Quero cantar essa alegria/ ainda que dos meus olhos/ corra o pranto sem cessar./ Que nada turve o meu canto/ se eu nasci para cantar!

A palavra poética tem sua força ancorada na miríade de portos de beleza, que resgata o homem sequestrado pela multidão de ilusões que o confundem e o diminuem. A poesia interpreta o sonho da humanidade e, muitas vezes, indica possíveis caminhos. Ela toma o nosso partido e insere-se de corpo, alma e palavra na ideologia do homem. Foi acreditando no poder inspirador e transformador da literatura e sobretudo da poesia que Nelson Mandela conseguiu não só manter sua sanidade mental, como alcançar um equilibrado grau de sabedoria, sobriedade e perspicácia, não perdendo seu foco durante os 27 anos que passou na prisão. Ele estava determinado a mudar o seu país. E mudou. Protagonista de uma luta política que constitui um dos capítulos mais extraordinários do século XX, Nelson Rolihlahla Mandela saiu da prisão, em 1990, aos 71 anos para unificar a África do Sul, marcada pelo ódio entre negros e brancos, e extinguir o apartheid. Após ser libertado da sentença de prisão perpétua, graças à pressão política internacional junto ao então governo sul-africano, o ex-guerrilheiro e líder do Congresso Nacional Africano (CNA), partido formado pelos negros, ganhou o Nobel da Paz em 1993 e elegeu-se presidente da África do Sul um ano de94


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pois. Foi a primeira eleição multirracial da história daquele país. Para acalmar o ímpeto dos negros — que viviam, teoricamente, o momento perfeito para a vingança dos anos de apartheid — e o receio dos brancos, Mandela sabiamente pregou em seu país: “O perdão liberta a alma. Ele remove o medo. Por isso, é arma tão poderosa”. Nelson Mandela sempre foi um homem de ideias, das palavras, que nunca deixou de acreditar em sua causa e no poder de inspiração que esta lhe deu. E essa força interior sustentada por Mandela para passar por tudo que enfrentou e encarar a obra que realizou é abordada pelo filme Invictus, do diretor Clint Eastwood. O roteiro de Invictus, baseado no livro Nelson Mandela e o Jogo que Mudou uma Nação, de John Carlin, traz uma série de histórias da vida de Mandela que poderiam ser ficcionais e, por isso, impressionam. O filme mostra como o ex-presidente usou a força da linguagem universal do esporte e juntou-se ao capitão da equipe nacional de rugby (um dos símbolos do apartheid no país) para unir os sul-africanos e amenizar as tensões raciais entre negros e brancos. O intuito era mobilizar a nação em torno de um objetivo comum: vencer o campeonato mundial de rugby, disputado na África do Sul em 1995. Num grande exemplo de superação, a equipe da África do Sul, considerada o azarão, venceu a copa do mundo de rugby, que foi tratada por Mandela com peso de atividade política. A história mostra que o poema Invictus — que dá título ao filme —, do inglês William Ernest Henley, foi a grande “oração” de Mandela no período em que passou preso e acabou sendo a fonte de inspiração para o triunfo do time sul-africano. No poema Invictus, do alto de seu aparente ceticismo religioso, Henley se rende à força do divino e agradece pela consciên95


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cia de permanecer firme diante das adversidades: “Do fundo desta noite que persiste/ a me envolver em breu — eterno e espesso,/ A qualquer deus — se algum acaso existe,/ Por mi’alma insubjugável agradeço”. Mandela gosta mesmo de repetir a última estrofe da poesia do inglês: “Por ser estreita a senda — eu não declino,/ nem por pesada a mão que o mundo espalma./ Eu sou dono e senhor de meu destino./ Eu sou o capitão de minha alma”. Não se pode desconhecer a criação humana, em todas as artes, como uma imitação da divindade: uma vez que, tentando criar, o homem imita o Criador incriado. Mas a palavra poética, em especial, quando revestida de singular beleza, realmente encanta, inspira e extasia. Há poemas que são verdadeiros mantras, elevam o homem a Deus, transformam mentes e corações, alavancam almas. Jornal do Brasil, 20/03/2010 Folha de Pernambuco, 22/03/2010

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OS OLHOS VIOLETA E A POESIA

Beleza não se define, mas, ao vê-la, é fácil percebê-la: Elizabeth Taylor. Oito casamentos. Três Oscars. Beleza. Muito sucesso, muita solidão. Amigos contam que, nos últimos anos, o que mais confortava Elizabeth Taylor era ler e ouvir poesia. Ela, inclusive, estimulou o amigo Michael Jackson a publicar um livro de poemas, que é pouco conhecido e pouco vendeu. “É preciso pegar a vida entre as mãos e espremê-la como um limão”, disse certa vez. Taylor eternizou-se e foi para outra dimensão. Dona de um dos olhos mais conhecidos do mundo, Elizabeth Taylor deixou uma verdadeira herança cinematográfica para os que continuaram nesse plano. Entre os seus sucessos, Cleópatra, clássico exibido em 1963, além do Quem Tem Medo de Virginia Woolf e O Número do Amor, que renderam a Taylor premiações no Oscar de Melhor Atriz. A atriz também fez história no cinema mundial com A Megera Domada, A Coragem de Lassie, Gata em Teto de Zinco Quente e tantos outros que se acumularam em mais de cinquenta filmes para TV, minisséries e cinema. 97


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Com a bravura de uma mulher que lutou para alcançar prestígio e reconhecimento, Liz Taylor tornou-se um exemplo para as mulheres de Hollywood e do mundo inteiro. Foi mãe de três filhos e uma das primeiras a admitir problemas com o álcool e a se internar em uma clínica de reabilitação. A coragem e a ternura de Liz Taylor a transformaram em uma mulher acima da média, muito além de uma celebridade norte-americana, apesar de ter nascido na Inglaterra. E, assim, fez-se a estrela, irradiante, de olhar amendoado — Elizabeth Rosemond Taylor. Esse ícone feminino, no entanto, foi vitimado por vários problemas de saúde ao longo dos seus 79 anos. Em 2009, ela foi submetida a uma cirurgia cardíaca. Em cima de uma cadeira de rodas, Liz Taylor continuou a enfrentar as adversidades da vida e da sua insuficiência cardíaca. No último dia 23 de março, os olhos violeta descansaram e se tornaram imortais nas inesquecíveis cenas de Taylor. Ela deixou, para todos, um exemplo de perseverança, talento e amor à vida, além de mostrar que, por trás de tanta beleza, havia uma inquietação artística que a fez alcançar patamares admiráveis, dignos de uma verdadeira estrela, cuja luz não se apagará. 25/04/2011

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A BELEZA SALVARÁ O MUNDO

A célebre sentença do escritor russo Fiódor Dostoiévski “A beleza salvará o mundo” e a ideia da arte como remédio para os males humanos são os temas do inspirado ensaio do búlgaro Tzvetan Todorov, recentemente publicado no Brasil pela Editora Difel. Na atualidade, a beleza está associada a produto. Todorov, no entanto, a vê como o sentimento de uma “realização interior”. Diz que a beleza não é algo que se vê, mas é algo que se vive. Para ele, a arte seria a busca obsessiva da beleza e, só ela, incorporada a um poema, a um concerto, a um quadro, a uma música, seria capaz de salvar o mundo. Salvar de quê? Da decadência, da fragmentação, do caos, da fraqueza humana, da precariedade. E a arte fica, permanece. Em seu ensaio, Todorov centra o seu argumento em três grandes artistas: Oscar Wilde, Rainer Maria Rilke e Marina Tsvetaeva. O irlandês Oscar Wilde viveu em busca da beleza e, em seu célebre livro O Retrato de Dorian Gray, sintetizou, assim, 99


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o sentido da vida para ele: “É melhor ser belo do que ser bom”. Para Rilke, o objetivo do poeta não é explicar o mundo, mas “vê-lo por dentro”. Para ele, o poeta se assemelha a um cão “que não deseja atravessar o mundo com o olhar, à maneira de um sábio, mas se instalar em seu interior”. Rilke foi o autor predileto da grande poetisa russa Marina Tsvetaeva, que traduziu para o russo as célebres Cartas a um Jovem Poeta. Para Marina, “a poesia é a língua dos deuses. Os deuses não falam, os poetas falam por eles”. “A arte não é uma emanação pura do mundo espiritual, é uma encarnação”, diz a poetisa russa. Ela defendia uma existência à luz da arte, sendo a beleza uma manifestação do Absoluto. Sendo a beleza, antes de tudo, um sentimento, uma vivência, as pessoas podem se tornar belas e acender o sol de suas vidas ao dar sentido a elas. Pablo Picasso já dizia que: “tem gente/ que faz do sol uma/ simples mancha amarela./ Tem gente/ que faz de uma/ simples mancha amarela/ o próprio sol”. Para Gibran, a beleza seria uma luz que vem do coração, também um sentimento. E a poetisa grega Safo de Lesbos sintetiza assim o tema em seu célebre poema O Belo e o Bom: “Quem é belo é belo aos olhos e basta. Quem é bom é subitamente belo”. Deixem o sentimento da beleza invadir as suas vidas, pois as pessoas não nascem, mas se tornam belas. 18/04/2011

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DIÁLOGOS

“O Brasil pode e deve ser um paradigma importante para o diálogo entre culturas e etnias no mundo contemporâneo.” Antônio Campos 103



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DIÁLOGOS CULTURAIS NO MUNDO GLOBAL PÓS-MODERNO

A globalização econômica e financeira e o progresso das tecnologias de comunicação e informação têm tido impacto sobre as identidades culturais, colocando em risco também a diversidade cultural no mundo. As identidades nacionais, que têm, nas culturas nacionais, as suas principais fontes, estão com uma tendência de desintegração, como resultado da homogeneização cultural do pós-moderno global. Novas identidades híbridas estão tomando seu lugar. Dialeticamente, algumas identidades estão sendo reforçadas pela resistência à globalização, num processo de tensão entre o local e o global, entre culturas. O século XXI passou da diversidade como riqueza para a interculturalidade como problema. As relações, ou os diálogos, entre as culturas estão sendo alteradas pelos deslocamentos de imigrantes, como também pela crescente interdependência entre as sociedades pelo efeito da globalização de um mundo sem fronteiras. 105


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Los Angeles é a segunda cidade em número de mexicanos. Buenos Aires é a segunda em número de bolivianos. O que significa ser europeu num continente marcado não apenas pelas culturas de suas antigas colônias, mas também por outras culturas e povos oriundos de migrações ou diásporas pós-coloniais? No seu livro Choque de Civilizações, o sociólogo Samuel P. Huntington previu que, depois da Guerra Fria, as disputas se dariam no terreno da cultura e da religião. Recentemente, a Suíça proibiu em seu solo novos minaretes (cúpula de mesquitas). Debate-se na França o uso da burca. Cerca de 1,5 milhão de muçulmanos vivem na região de Paris. A legislação inglesa antiterrorismo tornou-se mais rigorosa ante o temor do radicalismo islâmico. Cresce o medo do terrorismo na Alemanha, num momento em que a comunidade muçulmana chega a mais de 2 milhões de habitantes. Como melhorar o convívio ou diálogo entre culturas ou indivíduos, admitindo diferenças, sem discriminações, passou a ser uma das principais indagações do século XXI. O Brasil, que é um país mestiço, marcado pela mistura de várias raças, deve ser motivo de estudos quanto à tolerância e ao convívio entre raças e culturas, quase numa “democracia racial”. Prescindimos de identidade, porque temos todas elas. Esse traço marcante do Brasil foi objeto de estudos de alguns brasileiros, destacando-se o sociólogo Gilberto Freyre, que no dia 15 de março de 2010 faria 110 anos se vivo fosse. Está no centro da vida contemporânea o desafio de construir pontes, diálogos construtivos de paz entre culturas que estão em choque real ou aparente em sociedades cada vez mais interculturais do que multiculturais.

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Somos “Di-versos”, como afirma o poema do músico brasileiro Marcelo Yuka, pois, “entre a revolta e a obediência, crescer com diferenças e crescer pelas diferenças será sempre entender que o amor é a nossa maior forma de inteligência”. Jornal do Brasil, 13/03/2010 Folha de Pernambuco, 15/03/2010

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GILBERTO FREYRE E O ORIENTE QUE TORNOU O BRASIL POSSÍVEL

Em 1936, Gilberto Freyre publicou Sobrados e Mucambos, que é continuação de Casa-Grande & Senzala e talvez a sua verdadeira obra-prima. É um belo estudo do embate entre o Ocidente e o Oriente no Brasil durante o século XIX, em que defende a ideia de que a cultura brasileira havia sido gerada a partir de uma matriz oriental de valores, hábitos e conceitos sobre o mundo. Desde muito cedo, a ideia de uma orientalidade e de um amouriscamento do Brasil apareciam na obra de Gilberto Freyre. A impressão de que o Brasil era, de alguma forma, um prolongamento da cultura oriental nos trópicos. Na perspectiva de Gilberto Freyre, as conexões entre o Brasil, no período de sua formação, e o Oriente, árabe ou asiático, iam muito além de aspectos arquitetônicos, tendo sido determinantes na conformação da sensibilidade brasileira, em sua visão de mundo e seus valores culturais mais marcantes. 108


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O Oriente tornou o Brasil possível, no dizer de Freyre. Foram os saberes orientais que permitiram a construção da “maior civilização moderna dos trópicos”. Freyre estava valorizando o Oriente como matriz cultural formadora do Brasil em contraposição à matriz europeia. Nesse sentido, ele destaca o papel exercido pelos navegadores e conquistadores portugueses como intermediários entre as duas metades do mundo, a ocidental e a oriental: “foram, com efeito, os portugueses que primeiro trouxeram do Oriente à Europa o leque, a porcelana de mesa, as colchas da China e da Índia, os aparelhos de chá e parece que também o chapéu-desol”. (Casa-Grande & Senzala, p. 275). Deve-se, aliás, registrar que, na maior parte das vezes em que Gilberto Freyre fala em Oriente, está, na verdade, se referindo tanto à África, muçulmana ou não, quanto à Ásia. No seu discurso, o Oriente é uma ampla matriz cultural que abriga todos os valores não europeus e, inclusive, antieuropeus. Vejamos: A verdade é que o Oriente chegou a dar considerável substância, e não apenas alguns dos seus brilhos mais vistosos de cor, à cultura que aqui se formou e à paisagem que aqui se compôs dentro de condições predominantemente patriarcais de convivência humana [...] Modos de viver, de trajar e de transportar-se que não podem ter deixado de afetar os modos de pensar (Sobrados e Mucambos, p. 424).

Sobrados e Mucambos apresenta o Brasil do século XIX como um capítulo relevante da história da luta entre Ocidente e Oriente. O estopim da luta, que, na realidade, é uma guerra simbólica, teria sido a chegada da Corte portuguesa ao Brasil, em 1808: “A colônia portuguesa da América adquirira qualidades e condições de vida tão exóticas — do ponto de vista europeu — que o século XIX, renovando o contato do Brasil com a Europa [...] teve para o nosso país o caráter de uma reeu109


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ropeização” (Sobrados e Mucambos, p. 309). Junto com a Família Real, vieram produtos ingleses e modismos franceses. Estes chegavam cercados de tal prestígio e poder de sedução que tornavam difícil a resistência às “vozes de sereia do Ocidente” (Sobrados e Mucambos, p. 453). O século XIX representou, assim, no Brasil, o fim do “primado ibérico de cultura”, que nunca fora “exclusivamente europeu”, mas, em grande parte, impregnado de influências mouras, árabes, israelitas, maometanas. O Oriente perdia a batalha contra o Ocidente à mesma medida que a “manteiga francesa”, a “batata-inglesa”, o “chá também à inglesa” agiam no sentido da “desafricanização da mesa brasileira, que, até os primeiros anos da Independência, estivera sob maior influência da África e dos frutos indígenas” (Casa-Grande & Senzala, p. 458). Por essa via, o Brasil se afastava de si mesmo e se entregava a um processo de descaracterização, numa frágil tentativa de transformar-se numa Europa tropical. O mundo atual é multipolar, e o eixo do poder econômico volta-se novamente para o Oriente, do qual temos influência decisiva em nossa formação. As relações, desavenças e semelhanças entre Oriente e Ocidente são temas de grande relevo. Por essa necessidade de compreensão de nossas raízes e de aprofundar o diálogo entre culturas e países no contemporâneo, é que traremos, na Fliporto 2011, o tema Orientes e Ocidentes – diálogos, para discutirmos tal questão e mostrarmos a importante influência oriental na formação do Brasil. 13/12/2010

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LIBERDADE E CULTURA EM UM MUNDO SEM FRONTEIRAS

Uma das questões centrais da vida contemporânea é a interculturalidade, a relação entre culturas. Atualmente os diálogos entre as culturas estão sendo alterados pelas diásporas póscoloniais, pela crescente interdependência entre as sociedades gerada pelos efeitos da globalização. No seu livro Choque de Civilizações, o sociólogo Samuel P. Huntington previu que, depois da Guerra Fria, as disputas se dariam no terreno da cultura e da religião. O historiador Eric Hobsbawm comentou, em entrevista publicada na Folha de S.Paulo, em abril de 2010, que atualmente o fator xenofóbico do nacionalismo é cada vez mais importante. Trata-se de algo muito mais cultural que político. A França tem a maior colônia muçulmana da Europa, mais de 6 milhões de pessoas. O parlamento francês aprovou a proibição do uso da burca em público. Nesse caminho, trilham Bélgica, Suécia, Suíça, Itália, Dinamarca, entre outros países. 111


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A Inglaterra, por sua vez, está na contramão de vários países europeus que querem banir burcas e trajes afins. A ministra do Meio Ambiente inglês, Caroline Spelman, afirmou que ao visitar o Afeganistão acreditou ter entendido a razão de muitas mulheres quererem usar burcas. “Para elas, a burca confere dignidade. É a escolha delas”. E complementou dizendo que banir a burca seria totalmente contrário aos princípios da Inglaterra. Contudo, é preocupante o crescimento do grupo antimuçulmano Liga de Defesa Inglesa, com várias manifestações no país. O Brasil, que é um país mestiço, marcado pela mistura de várias raças, deve ser motivo de estudos quanto à tolerância e ao convívio entre etnias e culturas. Prescindimos de identidade, porque temos todas elas. O Brasil pode e deve ser um paradigma importante para o diálogo entre culturas e etnias no mundo contemporâneo. Esse traço marcante da mistura racial do Brasil foi objeto de estudos de alguns brasileiros, destacando-se o sociólogo Gilberto Freyre, que acaba de ser homenageado pela Feira Literária Internacional de Paraty (Flip). A polêmica da questão da imigração é mundial, e, recentemente, a nova lei de imigração do Arizona, suspendida parcialmente pela Justiça americana, é acusada até pela Casa Branca de promover racismo antilatino. Querer determinar por lei o que pode ser vestido é reacionário e vai de encontro à liberdade individual e à diversidade cultural. 09/08/2010

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POR UMA NOVA DIPLOMACIA CULTURAL

O Brasil experimenta o melhor momento de toda sua história quanto à estabilidade econômica, e há uma feliz perspectiva de crescimento. O País não só resolveu a dívida externa, acumulada desde que era colônia de Portugal, como passou a ser credor do Fundo Monetário Internacional (FMI). Vem obtendo fechamentos cada vez mais positivos em sua balança comercial. Tem recebido fortes investimentos de companhias estrangeiras que apostam com vigor no mercado nacional. Descobriu uma extensa camada de óleo sob suas águas (présal) e até recebeu a concessão para sediar sua segunda Copa do Mundo de futebol e a primeira Olimpíada a ser realizada no continente sul-americano, que acontecerá no Rio de Janeiro. Além disso, atravessou uma das mais violentas crises econômicas globais de todos os tempos e saiu quase ileso. Por isso mesmo, o Fórum Econômico Mundial escolheu o presidente Lula como o primeiro vencedor do recém-criado Prêmio Estadista Global, pela condução da economia brasileira durante a crise 113


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financeira mundial. Antes mesmo desse fórum, economistas de vários países já previam que o Brasil será a quinta maior economia do planeta até 2020. Todos esses fatos são extraordinários. Contudo, as relações internacionais do Brasil precisam ser vistas não apenas sob o prisma dos entendimentos político-econômicos. É necessário se pensar e desenvolver de forma mais eficaz a nossa diplomacia cultural, o nosso diálogo com as culturas dos outros países. A atividade mercantil e os negócios financeiros promovem o contato entre as pessoas, mas nada melhor que a cultura para fortalecer as raízes do processo de integração entre as sociedades. As desconfianças e rivalidades atenuam-se rapidamente quando há um maior nível de conhecimento das especificidades do outro. Se atentarmos para isso, veremos que a difusão da história cultural dos povos influencia positivamente na maneira de pensar as relações entre os Estados. As representações das diversas culturas constituem-se em objetos históricos legítimos, portanto um maior intercâmbio das práticas e produções culturais precisa ser sempre promovido. Infelizmente, a cultura ainda é considerada por muitos algo supérfluo, não é valorizada nem como um instrumento de aproximação das sociedades nem como facilitadora do avanço da integração mundial ou regional. No Mercosul, por exemplo, as questões culturais são muito pouco debatidas. Os ricos patrimônios culturais dos países integrantes permanecem ignorados e não são utilizados como instrumentos para a construção de vínculos de confiança e de cooperação entre seus povos. A ausência de uma política cultural dos países que o integram deixa claro quais são as prioridades: as de natureza comercial. O aspecto cultural nas relações internacionais brasileiras pode e deve ser mais bem cultivado. Precisamos promover iniciativas 114


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integradas aos países de todos os continentes para estimular um conhecimento mútuo e divulgar os principais aspectos da cultura brasileira, instaurando, assim, uma política cultural que vise à harmonia e ao congraçamento entre os povos, antes mesmo que qualquer comercialização do produto cultural. Uma significativa ação nesse sentido seria a implementação do Instituto Machado de Assis (IMA), instituição que deverá ficar ligada ao Ministério da Cultura (MinC). O instituto foi idealizado para formular e coordenar as políticas de promoção da língua portuguesa no Brasil e no mundo, induzindo e organizando pesquisas sobre o idioma, além de ser referência para o ensino e a formação de professores e promover atividades científicas e culturais visando à divulgação da língua portuguesa e da cultura lusófona. O português é o idioma usado por 200 milhões de pessoas, constituindo-se no quinto mais falado do mundo. Cabe ao governo brasileiro estruturar o projeto de criação do IMA nos moldes da declaração conjunta entre Brasil e Portugal, por ocasião da VIII Cimeira Luso-Brasileira, realizada na cidade do Porto, em 2005, na qual ambos os países asseveraram a importância da promoção da língua portuguesa em nível internacional. Servirão como referência para a contextualização e o início da constituição de uma entidade adequada à realidade brasileira instituições tradicionais e experientes nesse mesmo trabalho, a exemplo do Instituto Camões, Instituto Cervantes, Instituto Dante Alighieri e do British Council. O Instituto Machado de Assis deve contribuir ainda para o efetivo desempenho das práticas sociais da escrita e da leitura para todos os cidadãos brasileiros. É imperioso que em breve seja tirado do papel, contribuindo para iniciarmos uma nova diplomacia cultural no Brasil. Jornal do Brasil, 06/02/2010 Folha de Pernambuco, 08/02/2010 115


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CRIADORES SÃO SERES COLETIVOS

Certa vez, afirmou o escritor alemão Goethe: Minhas obras foram nutridas por incontáveis indivíduos, inocentes e sábios, brilhantes e estúpidos. Frequentemente colhi o que os outros plantaram. Meu trabalho é obra de um ser coletivo que carrega o nome de Goethe.

A discussão aflora em torno da questão dos direitos autorais direcionados aos artistas do País, inclusive no momento em que se discute a reforma da Lei do Direito Autoral, que deve se atualizar para fazer frente ao mundo digital. Afinal, quanto custa e a quem se dirige, por exemplo, o trabalho intelectual de um escritor? Em contraposição, discute-se a importância da gratuidade da arte a partir da possibilidade de torná-la acessível a todos e, assim, propagar a cultura brasileira. Como disse o ensaísta e músico José Miguel Wisnik, “a arte só tem graça se for de graça. 116


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Isto é, se tiver sido feita graças à força da vida que é investida nela mesma e se destinar a gerar, multiplicar e diversificar esse impulso que a gerou, não esperando nada mais do que isso”. Wisnik destacou, no entanto, a necessidade de manter o direito autoral como um estímulo para o surgimento e a manutenção de artistas, mas sem esquecer o sentido real da arte: Podemos pagar para tê-la [a arte], mas não podemos tê-la se não nos entregarmos a ela. Os direitos autorais são um progresso moderno que garante a existência de criadores independentes. Não pode haver retrocesso nisso. Fora isso, a vocação da arte é ser de todo mundo e para todo mundo.

A coletividade da arte produzida pelos artistas nacionais não deve se limitar, portanto, às cifras, levando em consideração, também, que se trata de obras artísticas, o que traz à tona a problemática da precificação de uma arte. Ainda nas palavras de José Miguel Wisnik, “quem calcula o preço da Odisséia, o custo humano da sua confecção, o seu impacto através dos milênios? O mercado não teria dinheiro capaz de pagá-lo”. Pensar em novas maneiras de difundir o trabalho na indústria cultural e entre os consumidores da arte é uma saída estratégica encontrada pelos artistas. Na internet, prepondera a lógica de ganhar centavos muitas vezes, em vez de milhões de uma vez. Uma das opções encontradas é entrar na era virtual e viabilizar o acesso ao conteúdo artístico através da internet, o que pode findar o conflito entre o que é propriedade intelectual e propriedade comum. É de impressionar o recente projeto Google Art Project, que digitalizou obras de mais de vinte grandes museus no mundo, disponibilizando imagens de quadros em alta resolução pela internet. O pesquisador da Universidade de Harvard, Lewis Hyde, em seu livro A Dádiva, defende que: “falamos de ‘propriedade 117


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intelectual’ só em termos de um direito de excluir, mas poderíamos pensá-la em termos de um direito de doar”. Hyde afirmou, ainda, que “a dádiva (o dom) precisa ser mantida em movimento. ‘Tornar público ou morrer’ é uma exigência interna do espírito criador, exigência que nos é feita pelo próprio dom, não por algum agente externo a nós”. É preciso buscar o equilíbrio entre preservar os direitos autorais e possibilitar um maior acesso do público às artes. 04/04/2011

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ESCRITORES

“O mais belo triunfo do escritor é fazer pensar os que podem pensar.” Eugène Delacroix 121



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80 ANOS DE RENATO CARNEIRO CAMPOS

Faria, este ano, 80 anos, o escritor e sociólogo, meu tio, Renato Carneiro Campos. Professor de Literatura no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco, também se dedicou ao estudo do folclore, publicando os títulos Folhetos Populares na Zona dos Engenhos de Pernambuco e Ideologia dos Poetas Populares do Nordeste. Bacharelado pela Faculdade de Direito do Recife, estudou Sociologia em Paris e foi, durante muitos anos, diretor do Departamento de Sociologia da Fundação Joaquim Nabuco, à época chamado Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. Colaborador do jornal Diario de Pernambuco, escreveu aos domingos, de 1969 a 1977, crônicas que o notabilizaram tanto no setor especificamente cultural como nos vários segmentos da comunidade pernambucana. A sua pessoa não estava em plano separado do seu papel intelectual: tinha com a vida um pacto de sinceridade, que o teórico francês Philippe Lejeune haveria de chamar pacto auto-

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biográfico, ao discorrer sobre a relação direta que existe entre a obra e o homem. Apaixonado por tudo o que fazia, tanto as suas crônicas como a sua palavra oral serviam de paradigma da força do estilo e da ética no cenário cultural pernambucano. Comunicava-se com intensidade, tanto com os leitores como com os amigos, e representava o papel de verdadeiro guru das gerações mais jovens, com seu caráter vibrante, mágico, sonhador e sempre bem-humorado. Valorizava extremamente o Recife, de onde nunca desejou sair na busca de qualquer fama ou reconhecimento literário ou científico. Meu pai, seu irmão, Maximiano Campos, lembrando o filósofo espanhol Unamuno, afirmou, referindo-se a Renato, que há livros que se assemelham a homens e homens que se assemelham a livros. Daí podermos dizer o quanto é forte a presença do homem nas crônicas do escritor, hoje homenageado, caracterizados ambos pela coragem; pela generosidade; pelo amor aos amigos, à família, ao Recife; pela paixão por Dostoiévski, Tolstói, Eça de Queiroz, Machado de Assis; pela solidariedade aos humilhados e ofendidos de todas as épocas; pela busca da liberdade e da justiça. Tempo sem Renato Carneiro Campos: sem o menino de engenho que, ao modo de Sartre, colocou-se contra a sua própria classe de origem, ficando ao lado do povo como escritor e cientista social. Do menino de engenho que gostava dos prazeres da vida com amigos das profissões mais diferentes; na voz ainda de Maximiano Campos: [...] um Renato afirmativo, sem contemporizar com os falsos, os prepotentes, os medíocres, um rebelado contra as injustiças e as vulgaridades tantas vezes acobertadas pelo poder ou pela celebridade… Ele nem cortejava dirigentes e poderosos nem sentia necessidade de por eles ser cortejado: morreu

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sem condecorações, com a lapela limpa, mas dava muito valor à estima dos amigos e quase nenhuma importância aos títulos honoríficos, aos cargos, aos quais nunca perseguiu e muito menos fez deles meta da sua vida.

Destaca finalmente, o ficcionista pernambucano, não se tratar o seu irmão Renato [...] desses intelectuais que querem se afirmar a todo custo, atacando ou elogiando sistemática e interesseiramente, escravos da bajulação ou do ódio; herdeiro do ensaio de Montaigne, a sua ironia na crítica de costumes ridiculariza personagens como: o adesista, o novo-rico, o intrigante, o literato, a grã-fina, a mal-amada, o recalcado, o xeleléu, o fofoqueiro, além de outras temáticas, como a ingratidão, a angústia, a coragem, o ridículo; na era desses burocratas da literatura, organizadores do próprio sucesso, que se esquecem da vida, criou o lugar ideal, uma espécie de Pasárgada: Tampico.

Nas palavras de sua filha, minha prima Vanja Carneiro Campos: [...] sua produção científica e literária teve como grande mote a vida: exigiu que o privilégio do saber transpusesse as ambiências dos claustros, dos laboratórios, das cátedras, para alcançá-la [...] não buscava apenas nos clones da sua imaginação ou nos livros; nada foi produzido por vaidade pessoal, medido ou premeditado [...] Renato foi um leitor exigente, refinado e crítico [...] quis mais ser personagem do que autor; quis mais ser amado do que entendido.

Em 1987, na aposição de seu retrato no Espaço Cultural Renato Carneiro Campos, do Instituto Brasileiro de Amizade e Solidariedade aos Pobres, disse Paulo Cavalcanti: [...] aqui o retrato de Renato Carneiro Campos está em casa; aqui é o lar dos seus sentimentos de cidadão do mundo; o panteão de suas afirmações de democrata, ensaísta, antropólogo, etnógrafo, sociólogo, crítico de arte e, sobretudo, cronista do cotidiano. Renato punha em tudo que escrevia a força do seu talento, sua verve e sua ironia, o comentário mordaz de suas 125


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observações, o julgamento da vida [...] vibrante e agitado, soube apreender a fugacidade, o instantâneo do atual, imprimindo a cada frase e a cada gesto a marca do seu sentimento e da sua paixão [...] amei Renato Carneiro Campos no tumulto de suas emoções, na vívida demonstração do seu respeito pelo povo.

O pintor João Câmara, em homenagem prestada pelos conselhos Municipal e Estadual de Cultura, em 1997, destacou em Renato o recifense exagerado e sanguíneo que amou esta cidade aos gritos, mas também com enlevo e romantismo. Nesse mesmo ano, o poeta Marcus Accioly chamou a atenção para o fato de encontrar-se sempre com Renato tanto nos lugares possíveis como impossíveis do Recife e lembrou o seu questionamento sobre a vanguarda e a tradição, o popular e o erudito, acrescentando que: “remontava aos antigos senhores e meninos de engenho a sua bravura moral e física, sua coragem de dizer as coisas de cara e, paradoxalmente, seu desarmamento ao reconhecer os erros cometidos”. O poeta também ressalta a falta que ele faz até hoje como escritor, como cronista desta cidade: [...] como cronista, Renato era um poeta — Tampico não era a Pasárgada de Bandeira, era Tampico mesmo; tampouco Renato era amigo do rei de Tampico: Renato era o próprio rei de Tampico; Tampico era a sua utopia, o seu lugar sem lugar, seu não lugar, lugar de nenhum lugar, lugar de lugar nenhum [...] feliz é o poeta que encontrou, conheceu e teve uma palavra de Renato: ele era uma espécie desses mestres budistas que, à pergunta do aluno, podem responder com o silêncio ou com uma bofetada — o seu lema seria: descubra você mesmo a resposta.

As palavras de Renato, as frases de Renato são, na verdade, versos na memória do povo. Gostaria de evocar alguns deles. Emociona-me verificar e demonstrar o quanto está ele presen126


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te em nossa memória, em nosso cotidiano, em nossa alma. Renato Carneiro Campos com a palavra: As palavras necessárias que não dissemos ao amigo que se suicidou [...] abram-se as grades das gargantas para a saudade de uma época [...] o valor dos caminhos da volta, mesmo que seja tarde, e ouçam o coro de never more [...] tenha calma, muita calma: desencontros serão transformados em permanentes e intensos encontros [...] virá o tempo em que as farmácias se transformarão em casas de chá [...] o grande artista jamais poderá ser devidamente julgado por seus contemporâneos [...] ensinava Dostoiévski que é necessário o escritor ser de sua época para pertencer também a todas as épocas [...] Recife: as minhas ruindades e talvez as minhas bondades, as minhas tristezas e talvez as minhas poucas alegrias, palco, arena, dormitório, janela para o mundo, o vício de ficar [...] solidão do gesto abrindo o envelope de barbitúrico, de pegar no telefone para conversar besteira, das palavras já gastas. Solidão no nascimento e na morte. Solidão maior: conviver [...] uma certa alegria escondida de viver. Um certo vício irrecuperável de sonhar [...] o ir sem querer ir; o ficar sem querer ficar; o dizer sem querer dizer; o agradar sem querer agradar; o viver sem querer viver; o morrer sem querer morrer [...] piano fechado, violão sem cordas, flauta enferrujada, disco arranhado, cinza, cinzento, cinza: nada mais perto da violência do que a ternura repelida e não compreendida [...] olho a minha imagem refletida num espelho antigo [...] sou capaz agora de recomeçar de uma maneira limpa; não necessito mais de bares, solidões acompanhadas, noites perdidas, sim, tem razão o fidalgo da Mancha: até morrer, tudo é vida [...] o dia amanhece no canto do canário-da-terra: vai começar tudo de novo [...] um artigo como este é fruto de teimosia, de quem se acostumou ao monólogo, a falar sozinho, ao grande vazio. Sempre termino me entregando ao hábito de ficar. Consola-me somente a possibilidade de que um descendente meu, consultando velhas coleções de jornais, compreenda que tentei lutar a boa luta, briguei em condições as mais difíceis [...] que fique assinalado pelo menos para os meus filhos que eu protestei na hora em que devia [...] 127


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Tampico nada tem a ver com Pasárgada, Shangri-lá e Rancho Fundo [...] lá ninguém é amigo de reis ou rainhas; apenas em Tampico as fofocas desaparecem, as intrigas se desfazem, as vaidades não têm lugar, as inimizades passam ao largo, os sectarismos políticos não são absolutamente permitidos [...] conversa-se sobre pescarias, caçadas, vidas de heróis obscuros [...] Tampico é uma espécie de sanatório para os escritores que estão cheios de projetos inéditos em suas pálidas bibliografias [...] quero cadeira de balanço, espreguiçadeira, pancada do mar, banho de bica, jogo de cartas, whisky na medida [...] desejo a todos um Carnaval aloprado de alegrias: que se divirtam [...] para os amadores, deixo esta quente folia que se aproxima [...] eu quero me enfurnar num quarto de hotel de uma cidade do interior, sem telefone, sem nenhuma notícia do mundo nem de ninguém. Beberei apenas refrigerantes e chás. É bem possível que leve a Bíblia [...] tirei férias de ser adulto, louvo os reisados, pastoris, bumbas meu boi, mamulengos, retretas, as noites do Recife [...] traje a rigor para aqui tem que ser de brim, de linho ou de qualquer outro leve tecido [...] os jambeiros começam a florir: flores roxas atapetam pedaços do quintal [...] não, não vou para Tampico [...]

Casa Forte, fevereiro de 2011

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CORA CORALINA

Este ano a escritora homenageada da 6ª Festa Literária Internacional de Pernambuco será a ucraniano-brasileira Clarice Lispector. Sem dúvida um grande nome. Mas tem outra, e não menos importante, escritora que sempre teve destaque entre meus livros de cabeceira — os quais tenho como meus preferidos. A poetisa goianiense Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas, mais conhecida como Cora Coralina, me fascina desde moço. Cora, ou Aninha (apelido para seu nome de batismo), nasceu no final do século XIX, na cidade de Goiânia, e viveu boa parte de sua vida em uma casa às margens do Rio Vermelho. A poetisa, que estudou apenas até a terceira série do ensino primário, demonstrou seus dons intelectuais com apenas 14 anos, ao iniciar sua produção de contos e poesias. Foi o primeiro passo de uma promissora carreira literária que se consolidou a partir da colaboração da jovem Cora — ainda conhecida como Ana Lins — ao jornal A Rosa, em 1907. A escritora, que viveu

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nas cidades de Jaboticabal, Penápolis, Andradina e São Paulo, teve seis filhos com seu companheiro de vida, Cantídio Brêtas. Apesar de, desde criança, ter em suas veias a arte de escrever, Cora publicou seu primeiro livro apenas em 1965, aos 76 anos. A poesia de Cora Coralina só se tornou conhecida e valorizada após a menção de seu talento por dois nomes já consolidados na literatura nacional: o escritor maranhense Osvaldino Marques, autor do artigo Cora Coralina, Professora de Existência; e Carlos Drummond de Andrade, que, na década de 1980, declarou Cora como dona do mais importante nome literário do Estado de Goiás. Considerada pelos amigos e pela família como uma pessoa extremamente “de bem com a vida”, Cora vivia de maneira leve e serena, mas sempre preservando sua independência, tanto de atitudes quanto de ideias. Ela, que só no fim da vida encontrou espaço para suas poesias, expressava de lembranças a anseios para o futuro, apesar de ter a lucidez de saber que o que está por vir não nos cabe saber antecipadamente. Acredito piamente quando ela diz que, da vida, pouco, ou quase nada, sabemos. Vejamos o seu poema: Não sei... se a vida é curta.../ Não sei.../ Não sei.../ se a vida é curta/ ou longa demais para nós./ Mas sei que nada do que vivemos/ tem sentido/ se não tocarmos o coração das pessoas./ Muitas vezes basta ser: colo que acolhe,/ braço que envolve,/ palavra que conforta,/ silêncio que respeita,/ alegria que contagia,/ lágrima que corre,/ olhar que sacia,/ amor que comove./ E isso não é coisa de outro mundo:/ é o que dá sentido à vida./ É o que faz com que ela/ não seja nem curta,/ nem longa demais,/ mas que seja intensa,/ verdadeira e pura.../ enquanto durar.

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Cora Coralina faleceu em abril de 1985. Apesar de passados 25 anos, ela continua me dando lições de vida e despertando sentimentos de tranquilidade em relação à maturidade e à velocidade com que nossa vida passa diante de nós mesmos. Ao longo de nossa existência, atravessamos coisas tristes e felizes, grandes perdas e ganhos. Família, filhos, realizações pessoais e profissionais são peças de um mosaico que, no final, formam nossa história. Muitos se assustam com o excesso de emoções e informações. Eu provavelmente também me assustaria se não tivesse Cora sempre comigo, em leituras como as em que ela diz: “Quando eu morrer,/ não morrerei de tudo./ Estarei sempre nas páginas deste livro, criação mais viva/ da minha vida interior em parto solitário”. Sua poesia permanece mais viva do que nunca na memória — e na cabeceira — dos admiradores de suas obras e história. 04/10/2010

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GULLAR, 80 ANOS DE POESIA

O poeta Ferreira Gullar acaba de completar 80 anos. Nascido em São Luís do Maranhão, no ano de 1930, estreou na poesia aos 19 anos com o livro Um Pouco Acima do Chão. Em 1951, ao mudar-se para o Rio de Janeiro, deu início à sua carreira de jornalista. E aprimorou-se enquanto poeta. As décadas de 1960 e 1970 foram marcantes na vida do maranhense que, no início dos anos 1960, modifica sua temática para temas ligados à política e a problemas sociais. Nessa época, escreveu clássicos da literatura brasileira de cordel, como João Boa-Morte, Quem Matou Aparecida? e Cabra Marcado para Morrer. Por ser filiado ao Partido Comunista Brasileiro, desde 1964, teve — assim como meu avô — que partir para o exílio no auge da ditadura militar, vivendo na Rússia, no Chile e na Argentina, onde escreveu o livro Poema Sujo. Para o escritor, a linguagem significa muito mais do que apenas palavras. E a arte é uma das coisas mais presentes no

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seu cotidiano, pois ele, além de poeta, é crítico de arte, pintor, desenhista e adepto da prática de colagens — que o próprio denomina seu “lado B”. O estilo literário de Gullar é reflexivo e nostálgico. É merecidamente considerado um dos intelectuais mais expressivos e influentes da atualidade. Gullar, mais ativo que nunca, acaba de lançar Em Alguma Parte Alguma — coletânea de poemas nítidos e breves escritos ao longo dos onze últimos anos. Publicou também um livro para crianças intitulado Zoologia Bizarra. Essa vivacidade do octogenário Gullar fez com que ele recebesse recentemente o Prêmio Camões, considerado um dos mais importantes da língua portuguesa. Li recentemente uma declaração de Gullar em que ele explica o processo criativo dos seus poemas e textos: “A poesia não é filosofia. Meus poemas não são motivados por reflexões, e sim por espantos”. E disse sobre a poesia: “Pretendo que a poesia tenha a virtude de, em meio ao sofrimento e ao desamparo, acender uma luz qualquer, uma luz que não nos é dada, que não desce dos céus, mas que nasce das mãos e do espírito dos homens”. Dono de cabelos brancos e compridos e de uma imaginação de menino, aos 80 anos Gullar é certamente um dos principais poetas do Brasil. 13/09/2010

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JOSÉ SARAMAGO, A CONSISTÊNCIA DOS SONHOS

Tive a oportunidade de ver, há dois anos, no Instituto Tomie Ohtake, na capital paulista, a exposição José Saramago: a Consistência dos Sonhos. A mostra, que também foi exibida em países como Espanha e Portugal, reuniu cerca de quinhentos documentos originais do escritor, apresentados através de recursos digitais e audiovisuais. Organizada pelo diretor da Fundação César Manrique, Fernando Gómez Aguilera, o evento contou com obras inéditas, traduções, manuscritos, notas, primeiras edições, fotografias pessoais e vídeos. Foi uma forma de comemorar os 85 anos bem vividos de Saramago. Uma bela exposição. No último dia 18 de junho, uma nota publicada pela Fundação José Saramago anunciou que o escritor português homenageado pela instituição morreu aos 87 anos. O intelectual faleceu por conta da leucemia, que enfrentava há vários anos. No momento de sua morte, o autor de Ensaio sobre a Cegueira estava em casa junto da família no arquipélago espanhol Lanzarote, onde vivia desde 2003. 134


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Conheci Saramago na minha adolescência, durante o segundo governo de Miguel Arraes em Pernambuco. O escritor era um dos integrantes da comitiva do presidente de Portugal na época, Mário Soares. Na ocasião, lembro-me de que meu pai, o escritor Maximiano Campos, conversou longamente com Saramago e que Arraes — meu avô — foi presenteado por Mário Soares com uma litografia do pintor português Julio Pomar com a imagem de Fernando Pessoa. Litogravura essa que também foi dada a José Saramago, que a expunha em sua casa. Hoje, guardo carinhosamente o quadro que herdei do meu avô lembrando dele, de Fernando Pessoa, de Saramago e de nossa ancestralidade ibérica. O vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1998 ficou conhecido pela originalidade de obras como Memorial do Convento, O Evangelho Segundo Jesus Cristo e O Ano da Morte de Ricardo Reis, livro através do qual conheceu sua segunda esposa: a jornalista e tradutora espanhola Pilar del Rio, que passou a se interessar pela obra de Saramago a partir da leitura do romance traduzido para o espanhol — La Muerte de Ricardo Reis. A jornalista afirmou que, ao terminar de ler o clássico, se sentiu bastante emocionada e chorou “compulsivamente”. Foi então que ela resolveu procurar o escritor para agradecer o livro e a emoção que sentira ao lê-lo. Nasceu assim uma relação de amizade, que, aos poucos, deu lugar a uma relação sedimentada e, em 1988, se tornou um casamento construído com a mais intensa cumplicidade. Viveram juntos uma grande história de amor. Ouso dizer que Saramago, ao viver o amor maduro com Pilar del Rio, de certa forma conheceu a grande energia de Deus, embora a negasse. No dia em que o falecimento do português completou sete dias, a escritora e atual diretora da Casa Fernando Pessoa, Inês Pedrosa, que esteve na edição da Fliporto 2009, e a viúva de 135


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Saramago criaram um evento em memória do autor. Através da leitura coletiva do clássico O Ano da Morte de Ricardo Reis, centenas de pessoas puderam recordar Saramago. O mundo ficou um pouco mais cego e triste com a morte de Saramago. Contudo, a consistência de seus sonhos por um mundo mais livre e justo permanecerá, através da força e beleza de suas palavras: Olho de cima da ribanceira a corrente que mal se move, a água quase estagnada, e absurdamente imagino que tudo voltaria a ser o que foi se nela pudesse voltar a mergulhar a minha nudez da infância, se pudesse retomar nas mãos o que tenho hoje, longa e úmida vara ou os sonoros remos de antanho, impelir, sobre a lisa pele da água, o barco rústico que conduziu até as fronteiras do sonho um certo ser que flui e deixei encalhado algures no tempo.

Jornal do Brasil, 05/07/2010 Folha de Pernambuco, 05/07/2010

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KAVÁFIS

O século XIX ficou conhecido na história pelo ressurgimento da poesia em lugares antes de tradições de cultura, literatura e artes, como a Grécia. Em um período marcado por redefinições ideológicas e por uma nova forma poética, surgiram nomes importantes para o universo contemporâneo das letras, como o das grandes figuras poéticas de Georgios Seféris, Odysseus Elytis e Yánnis Rítsos. Outro importante personagem desse ressurgimento literário foi Konstantino Kaváfis. Nascido em abril de 1863, na cidade de Alexandria, o descendente de gregos radicado no Egito era considerado uma figura desconcertante e até mesmo estranha. O mundo descrito diversas vezes por Kaváfis era decadente, trágico e nostálgico. Kaváfis viveu durante seis anos na Inglaterra e era extremamente cosmopolita, o que se refletia em seu ser espiritual e em sua práxis linguística. Ele falava e escrevia com perfeição o francês, o inglês e o grego, este com fluência e intimidade, à semelhança dos gregos da Antiguidade. 137


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Kaváfis possuía um estilo único dotado dos seus próprios conceitos e parâmetros. Parece-me semelhante, muitas vezes, ao português Fernando Pessoa, que, assim como Kaváfis, viveu em colônias inglesas na África. Os dois poetas acreditavam que a poesia era capaz de retratar o gauche de maneira menos estigmatizante, o que, somado ao excepcional talento poético, atraiu a atenção de pessoas e críticos literários de todo o mundo. Entretanto, apesar do valor cultural inestimável de suas obras, ambos só ficaram conhecidos após sua morte. O alexandrino se inspirava em antigos relatos da história para criar seus próprios conceitos, pois acreditava que, através da história, é possível termos uma maior subjetividade em nossos pensamentos. Ele também fazia constantes alusões a um passado distante que, aos poucos, foi-se tornando um tema mais presente em seus textos, devido à sofrida velhice que teve. A decadência da civilização humana, analisada e exposta pelo poeta grego, pode ser claramente percebida em um de seus poemas mais conhecidos. No texto, intitulado Esperando os Bárbaros, Kaváfis recria uma cidade fantasiosa e decadente, imóvel em suas atividades cotidianas, promulgação de leis e normas. Trata-se de um lugar em que, apesar da boa estrutura social e ordem pública, falta sempre algo. São a ganância e o inconformismo humano transcritos em palavras, versos e estrofes. Mas acredito que, no poema Ítaca, um dos mais importantes produzidos por Kaváfis, tenha ficado marcada, além da sua visão em relação às coisas, a retidão em agir em detrimento do prazer incondicional. No trecho em que o autor diz “Mas não apresses nunca a viagem./ Melhor que dure muitos anos./ E atracar velho já na ilha,/ enriquecido de quanto ganhaste no caminho”, fica evidente que é melhor agirmos vagarosamente, para que, no final de quaisquer experiências, possamos dizer 138


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que aprendemos, vivemos e vimos muito. Vejo, através desse poema, que, muitas vezes, não vemos a importância de viagens e fases por que passamos na vida. Enxergamos apenas o objetivo final de nosso destino, quando deveríamos levar em consideração todo o percurso e os ensinamentos que tiramos dessas expedições rumo às nossas “Ítacas diárias”. E o poema termina assim: Ítaca te ofereceu tão bonita viagem./ Sem ela não haverias começado o caminho./ Mas já não tem nada a dar-te./ Ainda que as ache pobre, Ítaca não te enganou./ Assim, sábio como te tornaste, com tanta experiência,/ entenderás já o que significam as Ítacas.

Kaváfis recebe a tradição helênica através da reinterpretação europeia. Isso o torna, muitas vezes, dialético em seus pensamentos. Esses cruzamentos ideológicos fazem com que haja, em sua literatura, uma “sintonia desordenada” entre o romântico e o erótico, o sagrado e o profano, o ético e o amoral. Sua poética — adversa aos padrões clássicos da literatura grega — o consagra como primeiro poeta grego moderno cuja obra e cujo pensamento ultrapassam os limites do Mar Mediterrâneo. 20/12/2010

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MOACYR SCLIAR

No último dia 27 de fevereiro, o Brasil deu adeus ao escritor gaúcho Moacyr Scliar. Imortal da Academia Brasileira de Letras e autor de A Majestade do Xingu e Sonhos Tropicais, Scliar participou da última edição da Festa Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto), realizada em novembro de 2010. O ilustre conferencista, filho de imigrantes judeus, fez parte da mesa de abertura do evento literário, ladeado pela escritora e meia-irmã de Anne Frank, Eva Schloss, e pelo jornalista Geneton Moraes Neto. A sua presença na Festa certamente engrandeceu a Fliporto e trouxe ao público presente a experiência única de assistir a uma palestra do renomado autor gaúcho. Durante os seus 73 anos de vida, Moacyr Scliar foi congratulado com três prêmios Jabuti, o Casa de las Américas, entre outras numerosas honrarias. Escreveu mais de oitenta livros, sendo a maioria voltada para a temática judaica, e ingressou no mundo literário com o livro Histórias de Médico em Formação, obra que conta sua experiência enquanto estudante de Medicina. 140


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Em 1962, mesmo ano da publicação do seu primeiro livro de contos, o autor se formava em Medicina. Nascia, então, um notável médico e escritor, natural de Porto Alegre. O gaúcho escreveu desde romances a crônicas e ficções infantojuvenis, além da adaptação dos seus textos para televisão, cinema, teatro e rádio. Moacyr Scliar foi, ainda, colaborador de veículos de imprensa do País e teve sua vasta obra literária publicada em países como França, Polônia, Argentina, Tchecoslováquia e Estados Unidos. Ícone da literatura latino-americana, o escritor foi o autor de A Guerra no Bom Fim, seu primeiro romance, que levou, no título, o nome do bairro onde viveu em Porto Alegre. Escreveu também O Olho Enigmático, A Orelha de Van Gogh e, por último, Eu Vos Abraço, Milhões, livro que teve seu lançamento também realizado na Fliporto 2010 e fala sobre a luta pela sobrevivência de um militante pobre na cidade do Rio de Janeiro. Com o falecimento de Moacyr Scliar, a literatura nacional e internacional sofre uma inestimável perda. Para todos, ficará o exemplo de médico e escritor que o gaúcho foi durante a vida, além do arsenal literário deixado pelo autor e do estímulo à paixão pela literatura. Como, certa vez, em uma entrevista, o escritor ressaltou: “Ler era uma coisa que fazia parte do meu cotidiano. Na nossa casa podia faltar comida, mas livro não faltava”. 07/03/2011

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O LEGADO DE CAMUS

Estamos no ano do cinquentenário de morte do escritor franco-argelino Albert Camus (1913–1960). Talento reconhecido em todo o mundo, Camus é um dos mais representativos escritores do século XX. Nascido em uma família pobre na cidade de Mondovi, na Argélia, então colônia da França na África, teve uma vida sacrificada e dura. Perdeu o pai (francês) quando tinha menos de 1 ano de idade, vitimado em uma batalha da Primeira Guerra Mundial. Foi criado pela mãe (espanhola), que não sabia ler nem escrever, e por uma avó extremamente austera em meio a uma condição que contemplava apenas as necessidades essenciais de sobrevivência, num subúrbio da capital, Argel. Graças à ajuda de um mestre (Jean Grenier), graduou-se em Licenciatura em Filosofia, mas, quando estava prestes a começar a docência, contraiu tuberculose. A doença o acompanhou pelo resto de sua breve vida, e a frequente ameaça de morte o marcou profundamente, refletin-

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do de maneira significativa na sua visão de mundo e na literatura que proferiu. Camus faleceu aos 47 anos em um acidente de carro, no sul da França. Entre seus livros mais conhecidos, estão: O Estrangeiro, escrito em 1942 e traduzido para mais de quarenta línguas; A Peste, de 1947, e A Queda, de 1956. Particularmente, destaco ainda, na obra do vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1957, O Homem Revoltado. Em O Estrangeiro, Camus nos deu uma história tensa, dura, intensa. Como era próprio no autor, é marcante o sentimento existencialista do personagem principal, sua solidão, dúvidas e o quase surrealismo de seus conflitos. Ainda que o livro seja uma obra de ficção, o personagem é inerente ao escritor, com a clara proximidade entre seus pensamentos e valores em relação à sociedade em que vive. A Peste é uma alegoria da guerra e da ocupação nazista e, mais amplamente, da condição humana, através da descrição de uma cidade ameaçada pela epidemia. Em O Homem Revoltado, a reflexão existencialista acaba por descobrir que só revoltando-se pode o homem dar sentido a um mundo dominado pela “completa ausência de sentido”. “O absurdo é a razão lúcida que constata os seus limites... Não espere o juízo final. Ele realiza-se todos os dias” são frases que marcam bem o pensamento do escritor. Albert Camus questionou, em sua obra, assuntos com os quais seguimos debatendo. O escritor não queria ser apontado como um filósofo, mas filosofou sim — e muito —, imprimindo admirável comprometimento com a busca de um caminho ético na existência humana. Camus procurou sempre o real sentido da vida e o grande valor do agir nos indivíduos. Expôs as inquietações fundamentais da condição humana e os delineamentos de um itinerário humanista conciliado à experiência cotidiana da dignidade. 143


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Até mudar-se para Paris, onde começou a fazer parte da resistência contra os nazistas e fundou o jornal clandestino Le Combat, Camus viveu na Argélia. Apesar das dificuldades econômicas impostas pelo colonialismo, sua terra natal o extasiava com suas belezas naturais, seu romantismo e a poesia que brotava de sua gente mestiça. Apaixonado pelo céu, pelo mar e pela exuberância feminina, Camus se deleitava ao ver as mulheres amassarem os absintos. Em seus romances, a Argélia resiste insistentemente como uma bela e sedutora paisagem de fundo. Enquanto jovem, o escritor foi o goleiro da seleção universitária. Conta-se que um bom goleiro. Um dos fatos que mais o impressionou quando da sua visita ao Brasil, em 1949, foi o amor do brasileiro pelo futebol. Tanto que uma das primeiras atitudes que Albert Camus teve ao pisar no Brasil foi pedir para que o levassem para assistir a um jogo. E seu amor pelo futebol o acompanhou por toda a vida. “O que finalmente eu mais sei sobre a moral e as obrigações do homem, devo ao futebol”, costumava dizer Camus. Recentemente, por conta do cinquentenário de morte do escritor, o presidente da França, Nicolas Sarkozy, acabou por lançar uma grande polêmica no país ao propor a transferência dos restos mortais de Albert Camus para o Panthéon, monumento em Paris onde já se encontram os mausoléus de célebres personagens da literatura francesa, entre eles Voltaire, Rousseau, Victor Hugo e Émile Zola. Para os críticos, a proposta de Sarkozy é uma tentativa de apoiar-se politicamente no legado de Camus, que é uma figura mítica da esquerda francesa. Parece que a tentativa do presidente francês não sensibilizou os filhos do escritor, os gêmeos Jean e Catherine, esta, aliás, acaba de publicar o livro Camus, Mon Père (Camus, meu pai), ainda sem tradução para o português. 144


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Meio século após sua morte, quando vivemos em um mundo marcado por irracionalidades, intolerâncias e fanatismos, lembrar e recomendar a leitura desse extraordinário escritor é fundamental para que possamos sempre buscar um melhor entendimento sobre a aventura existencial do ser humano. Sua obra nos deu uma admirável lição de autenticidade. Nunca esqueci uma frase de Albert Camus que li num monumento em Tipasa, quando estive na Argélia pela primeira vez: “Aqui, eu conheci a dor de viver e a glória de amar”. Jornal do Brasil, 1º/05/2010 Folha de Pernambuco, 03/05/2010

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O CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DE MAURO MOTA

A capital pernambucana, no dia 16 de agosto de 1911, trouxe ao mundo um exemplo de poeta, professor, jornalista, cronista, ensaísta e memorialista brasileiro. Não por acaso, também nesta data comemora-se o Dia do Poeta Recifense. Mauro Mota é o autor de Boletim Sentimental da Guerra do Recife, publicado em 1952 e um dos seus mais conhecidos poemas. O poeta faleceu no ano de 1984, deixando para o País um vasto legado da arte escrita e se eternizando como um grande escritor da Geração de 45. Sua viúva, Marly Mota, é minha companheira na Academia Pernambucana de Letras. No ano do centenário de nascimento de Mauro Mota, é imprescindível trazer à tona a memória e a força das obras do escritor para a literatura nacional. Em 1952, Mota publicou Elegias, obra de grande relevância para o mundo literário, que recebeu prêmios da Academia Brasileira de Letras (ABL) e da Academia Pernambucana de Letras (APL). O livro de poesias relata a dor da perda de Hermantine, mulher do eu lírico, no qual o poeta se descobre pela dor e revela uma riqueza melódica. 146


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O jornalista também teve publicadas as obras A Tecelã, Os Epitáfios e O Galo e o Cata-vento, sendo todas compostas por versos e poemas, o que o consolidava na sua posição de poeta, além de retratar, de maneira singular, os dramas do cotidiano dentro da temática regional. Nota-se, entretanto, que as poesias de Mauro Mota se equilibravam nos temas urbanos e regionais, o que revela as influências do autor que nasceu na cidade do Recife e passou a infância na zona rural de Pernambuco, no município de Nazaré da Mata. No jornalismo, o recifense, pai de seis filhos, começou a atuar ainda no colégio, onde, com o estímulo do padre Nestor de Alencar, começou a publicar seus primeiros trabalhos em O Colegial, jornal dirigido pelo religioso. Anos depois, o poeta passaria a escrever, profissionalmente, em A Pilhéria e na Revista da Cidade. Já na década de 1950, o escritor atingiria o seu auge na área, chegando à direção do Diario de Pernambuco, apesar de sua formação na área do Direito pela Faculdade de Direito do Recife. Mesmo com uma marcante atuação no jornalismo e na literatura, Mauro Mota foi além e também fez história no setor educacional do Estado de Pernambuco. Professor de História, catedrático de Geografia do Brasil do Instituto de Educação de Pernambuco e diretor-executivo do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais são algumas das atribuições do poeta pernambucano durante sua dedicação à vida acadêmica. No entanto, a maior influência deixada para nós, certamente, diz respeito à poesia de Mauro Mota, cujo trabalho foi reconhecido ao ingressar na ABL, em 1970, além de ter sido membro da APL e sócio correspondente, em Pernambuco, das Academias de Letras Paulista, Mineira, Paraibana e Alagoana. Merecidamente, o ilustre poeta recebeu inúmeras honrarias, como a Medalha Pernambucana do Mérito e a Medalha Joaquim Na147


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buco. O escritor também publicou Cajueiro Nordestino, Paisagem das Secas, Capitão de Fandango, Terra e Gente, entre outras obras de destaque para a literatura nacional. Numa evocação da cultura e da arte escrita, o poeta Mauro Mota foi ovacionado pelo também pernambucano, poeta e primo Marcus Accioly, que afirmou em um dos seus poemas: “Em Nazaré da Mata (Pernambuco)/ Um poeta viveu sob um menino/ como a semente vive sob o fruto”. 14/03/2011

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UMBERTO ECO: O FIM DOS LIVROS?

A obra Não Contem com o Fim dos Livros, escrita pelo italiano Umberto Eco, foi lançada no Brasil em maio e faz uma análise da existência do livro na atualidade. A ideia da morte da literatura clássica e o pretenso fim dos livros são duas das maiores obsessões de Umberto Eco. A obra surgiu de uma parceria com o ensaísta francês Jean-Claude Carrière e é organizada pelo jornalista Jean-Philippe de Tonnac. Escritor, filósofo, semiólogo, linguista e bibliófilo, Eco é um estudioso das falhas humanas. Fascinado pela má-fé e pela estupidez, o italiano acredita que o erro sempre aponta para algo que não devemos esquecer para ressaltar a verdade. Para ele, existem apenas duas diretrizes no cenário literário: ou o livro permanecerá sendo o suporte da leitura ou existirá alguma coisa similar que não o fará perder seu valor original. As variações em torno do livro enquanto objeto não modificam sua função nem sua construção gramatical. O livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez inven149


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tados, não podem ser aprimorados. Não é possível que uma colher seja melhor que outra. Segundo Eco, quando imaginamos ter ingressado na civilização das imagens, surgiu o computador, que nos reintroduziu na galáxia de Gutenberg, na era alfabética. Com o advento das novas tecnologias, todos se viram predestinados a ler de uma maneira nova. Na obra recém-lançada, Carrière e Eco dizem estar mais preocupados com a extinção do presente do que com a suposta ameaça ao livro. Pois acreditam que nós vivemos espremidos entre uma obsessão pelo futuro e um passado que nos alcança a toda velocidade. Ao proferir uma palestra na atual Biblioteca de Alexandria, Umberto Eco já defendia, desde 2002, que a expansão da internet não ameaça a existência dos livros. O escritor italiano falou sobre os três possíveis tipos de memória: orgânica, mineral e vegetal. A orgânica é feita de carne e sangue e é administrada pelo nosso cérebro. A memória mineral era, há milênios, representada por tijolos de argila e por obeliscos, onde as pessoas entalhavam seus textos. Porém, esse segundo tipo é também a memória eletrônica dos computadores de hoje, cuja base é o silício. O terceiro e último tipo de memória é a vegetal, representada pelos primeiros papiros e, posteriormente, pelos livros, feitos de papel. O filósofo acredita que a biblioteca foi, no passado, e será, no futuro, dedicada à conservação de livros e que, portanto, é e será um templo da memória vegetal. As bibliotecas, ao longo dos séculos, têm sido o meio mais importante de conservar o nosso saber coletivo. “Uma biblioteca é a melhor imitação possível, por meios humanos, de uma mente divina, onde o Universo inteiro é visto e compreendido ao mesmo tempo”, afirmou o italiano.

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No referido livro, Carrière fez um importante questionamento em relação ao valor que o presente deveria ter para o cotidiano das pessoas: “Onde enfiaram o presente? O maravilhoso momento que estamos vivendo e que diversos conspiradores tentam nos roubar?”. Com o excesso de informação da web em um mundo acelerado e entulhado, impõe-se a necessidade de uma espécie de edição do presente, e o livro impresso é um grande parceiro nessa construção. Eco e Carrière afirmam que é falsa a premissa de que o livro está com os dias contados. Não podemos usar um computador sem saber ler e escrever. A escrita é “um prolongamento da mão e, nesse sentido, é quase biológica”, afirmou o escritor italiano. No prefácio, o jornalista Jean-Philippe de Tonnac diz que “a cultura é muito precisamente o que resta quando tudo foi esquecido” e que o livro é a memória desse grande resto que nos constitui. O debate de Carrière e Eco com a mediação de Jean-Philippe de Tonnac é uma importante obra sobre o livro e o mundo contemporâneo. Jornal do Brasil, 31/05/2010 Folha de Pernambuco, 31/05/2010

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VARGAS LLOSA

O escritor peruano Mario Vargas Llosa, que recebeu, no último dia 10 de dezembro, o Prêmio Nobel de Literatura em Estocolmo, na Suécia, foi lembrado pela Academia pela sua “cartografia das estruturas de poder e pelas suas imagens mordazes da resistência, revolta e derrota dos indivíduos”. Vargas Llosa, sempre crítico contundente da situação política de seu país, transpôs suas ideias em obras como Conversas na Catedral e Pantaleão e as Visitadoras. O autor de romances de tirar o fôlego quebrou o regime de quase vinte anos sem um Nobel para um autor de língua espanhola. O anúncio do prêmio coincide com o lançamento, no Brasil, do conjunto de artigos sobre política, história e literatura intitulado Sabres e Utopias. A obra, no entanto, não é apenas composta de textos sobre política. Os artigos mais interessantes tratam de literatura. São textos sobre autores como Gabriel

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García Márquez, Jorge Amado, Cabrera Infante, além de texto sobre a série de livros Millennium, do escritor Stieg Larsson. Seu novo livro, O Sonho do Celta, que será lançado no Brasil em julho de 2011, é baseado na vida do diplomata Roger Casement, forte personagem na luta contra o brutal governo de Leopoldo II da Bélgica durante a colonização do Congo e também contra a violência aos extratores de borracha na Amazônia. Vargas Llosa é de fato surpreendente. Ele não é apenas um forte crítico de sistemas políticos em todo o mundo e defensor da liberdade. É também um adepto do perdão. E o perdão é iluminação. Recentemente, foi anunciado que Vargas Llosa virá ao Brasil, a convite da Academia Brasileira de Letras, para falar de suas obras e, certamente, do Nobel tão merecido que recebeu no ano passado. Será, sem dúvida, um encontro inesquecível no cenário literário nacional. 24/01/2011

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A ESTÉTICA DO CANGAÇO

Tive a alegria de participar, na última quinta-feira, do lançamento da nova obra do escritor Frederico Pernambucano de Mello. Ele, com sua autoridade intelectual de grande pesquisador da temática do cangaço, reuniu informações, dados e curiosidades sobre a importância das vestes dos cangaceiros na árdua rotina dos “guerreiros do sertão”. O livro Estrelas de Couro: a Estética do Cangaço, publicado pela Editora Escrituras, contou com valioso prefácio de Ariano Suassuna. Pernambucano que foi apelidado por Gilberto Freyre, com quem trabalhou durante quinze anos, de “mestre dos mestres em assuntos de cangaço”, faz um relato detalhado do início do cangaço, da rotina dos cangaceiros, da religiosidade, até do conceito e uma contextualização dos trajes por eles utilizados. Além desses temas, Fred vai buscar o porquê de símbolos como o signo de salomão, a cruz-de-malta, a flor-de-lis, o oito deitado — considerado por matemáticos e cientistas como a representação do infinito — e vários outros desenhos e com154


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binações. São cores de uma aquarela que visa pintar a imagem, um tanto quanto vaidosa, de homens com espírito guerreiro e crentes em uma proteção mística. A impressão que tive ao ler o livro de Fred Pernambucano é a de que tudo aquilo que parecíamos saber sobre o cangaço não é exatamente a realidade desse importante movimento brasileiro. A fé dos seguidores de Lampião e de tantos outros líderes é mostrada como algo sagrado para os “nômades sertanejos”. Orações cristãs, amuletos, figas, santos e vários rituais de meditação faziam parte da crença presente no movimento. Outro detalhe que me chamou a atenção foi o fato de nunca termos notado cada um dos incontáveis detalhes das roupas típicas do cangaço. Os chapéus, muitas vezes, com botões de ouro e prata; as calças costuradas com tecidos resistentes e, ao mesmo tempo, macios; as cartucheiras, que mais pareciam cintos largos de couro bordado, mas que serviam na realidade para guardar facas e munições; e os vários modelos de sandálias e sapatos de couro são alguns dos vários componentes dessa “fantasia de luta”. A obra Estrelas de Couro: a Estética do Cangaço faz uma profunda viagem nesse universo cultural desconhecido através da leitura do requinte e dos significados presentes nas autênticas vestimentas dos cangaceiros. É o resultado da demorada, mas fascinante, pesquisa desse, de nome e de alma, grande pesquisador e historiador pernambucano, que fica nos devendo o Museu do Cangaço como o seu próximo desafio. 30/08/2010

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ANTÔNIO MARIA

O ano de 2011 será marcado por datas importantes para o calendário literário nacional e do Estado de Pernambuco. No último dia 17 de março, o cronista e compositor Antônio Maria, se vivo, completaria noventa anos de arte e literatura. Além dele, o escritor, sociólogo e meu tio Renato Carneiro Campos faria 80 anos de idade, sendo boa parte dedicada à cultura pernambucana e aos estudos da Sociologia. Ambos escritores e boêmios. Autor da famosa canção Ninguém me Ama, o pernambucano Antônio Maria Araújo de Morais foi ainda jornalista, cronista, roteirista de TV, compositor e radioator. Na cidade do Rio de Janeiro, o escritor tornou-se o primeiro diretor de produção da TV Tupi e fez amizade com personalidades como Vinicius de Moraes, Luiz Bonfá, Aracy de Almeida e Ismael Netto, pessoas que passaram a compartilhar a vida na boemia carioca com Maria. Com Vinicius, compôs Dobrado de Amor a São Paulo. Porém, o compositor também fez história na Veneza Brasileira

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e deixou aos recifenses canções de frevo, hoje imortalizadas durante os carnavais da cidade. Que o diga o Frevo nº 2 do Recife. Em sua atuação como cronista, Antônio Maria praticou, diariamente, o dom de escrever, chegando a assinar cerca de 3 mil textos em dez anos de dedicação às crônicas feitas no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, onde construiu a sua fama e foi reconhecido. O escritor também teve passagem em emissoras de rádio dos estados da Bahia e de Fortaleza, regiões que o apresentaram a Dorival Caymmi e Jorge Amado. Bastaria a sua música Manhã de Carnaval para o imortalizar. Dizem que, quando Nat King Cole se apresentou no Copacabana Palace, na década de 1960, mandou chamar para o show o autor de Manhã de Carnaval, que foi acompanhado dos então jovens Vinicius de Moraes e Tom Jobim. Bela e marcante, a amizade de Maria com a eterna Dolores Duran, que faleceu aos 29 anos. No ramo musical, Maria uniu o seu talento ao legado deixado por outros grandes músicos, como menciona o escritor Joaquim Ferreira dos Santos. “O que Antônio Maria fazia era samba-canção. Não tinha nada de bolero. Ele não inventou nada, mas ouviu direitinho a lição dos mestres que vieram antes e traduziu para os anos 1950. Deu ao gênero suas cores definitivas: o preto e o cinza”, disse. O escritor, desde criança, sofria de doença cardíaca e, ciente disso, escreveu: “Com vocês, por mais incrível que pareça, Antônio Maria, brasileiro, cansado, 43 anos, cardisplicente (isto é: desdenha do próprio coração). Profissão: esperança”. Em 1964, Antônio Maria sofreu um enfarte e faleceu. Até os dias atuais, o Brasil lamenta a perda do ilustre pernambucano. Maria deixou um legado louvável e presenteou a todos com a crônica Café Com Leite, que começa dizendo:

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É preciso amar, sabe? Ter-se uma mulher a quem se chegue, como o barco fatigado à sua enseada de retorno. O corpo lasso e confortável, de noite, pede um cais. À mulher a quem se chega, exausto, e com a força do cansaço, dá-se o espiritualíssimo amor do corpo [...] O homem só tem duas missões importantes: amar e escrever à máquina. Escrever com dois dedos e amar com a vida inteira.

Antônio Maria foi um dos maiores cronistas e compositores do Brasil e está eternizado na força de suas palavras. Março de 2011

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LIVRO

“O livro é uma extensão da memória e da imaginação.” Jorge Luis Borges 161



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A OLIMPÍADA DO LIVRO EM 2013

Em junho deste ano, o ministro da Cultura do Brasil, Juca Ferreira, e o diretor da Feira do Livro de Frankfurt (Frankfurt Book Fair), na Alemanha, Jüergen Boss, com o apoio da Câmara Brasileira do Livro, assinaram o Protocolo de Intenção, que firma o Brasil como país homenageado do evento em 2013. A Feira do Livro de Frankfurt é a maior feira de venda de direitos de reprodução de livros no mundo, e cerca de 2 milhões de pessoas a visitam a cada edição. Ao levar o Brasil à Feira do Livro de Frankfurt, teremos, além do diálogo entre países, uma grande oportunidade de vender os livros dos autores brasileiros. Editoras dos quatro cantos do País poderão lançar seus autores e publicações. Entretanto, devido à dimensão do evento, é fundamental que haja uma preparação para a feira, que representa uma verdadeira olimpíada do livro e dos direitos de reprodução para o Brasil em 2013.

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As autoridades brasileiras, juntamente com a Câmara Brasileira do Livro e o Ministério da Cultura, devem investir fortemente nesse evento. Vivemos um momento importante dentro da esfera global. Nos próximos anos, as atenções mundiais estarão muito voltadas para o Brasil. Eventos como as Olimpíadas de 2016 e a Copa do Mundo de 2014 estão na pauta do Brasil e do mundo. Devemos, de fato, nos organizar, a fim de consolidar ainda mais a economia criativa em nosso país, que é a grande economia do século XXI. Este é marcado por uma transição para a era da economia do conhecimento. A riqueza revolucionária da Terceira Onda, defendida por Alvin Toffler, é cada vez mais baseada no conhecimento. O Brasil pode ser o melhor dos Brics através do fortalecimento da economia criativa, transformando inventividade em competitividade. A tendência é aumentar a riqueza gerada pela economia baseada no desenvolvimento das indústrias culturais e de criatividade. As editoras, os autores e as produtoras culturais devem se empenhar para que nossas obras sejam expostas de maneira competente para todo o mundo. Através de novas publicações, novas edições de livros já lançados e traduções de obras para idiomas como o alemão, espanhol, francês, inglês e o crescente mandarim, poderemos fazer uma bela participação nessa vitrine para o mundo do setor livreiro. É uma oportunidade única para o país do futebol mostrar que também é o país dos livros. 22/11/2010

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A REINVENÇÃO DO LIVRO

Ontem (23 de abril), comemorou-se o Dia Internacional do Livro e do Direito Autoral, data oficializada pela Unesco em 1996 e que é festejada em mais de cem países. A Espanha, desde 1926, já celebrava o livro na data da morte de Shakespeare e Cervantes. Na região espanhola da Catalunha, é o Dia de São Jorge, da Rosa e do Livro: o dia do padroeiro, do amor e da cultura. As mulheres recebem flores dos homens e retribuem presenteando-os com livros. Diante da profusão de novas plataformas de leitura, escritores e editoras começam a se preocupar com o futuro do livro impresso. Após o surgimento das novas tecnologias para a publicação de conteúdo, como a internet, o processo de produção, edição e impressão de livros na forma convencional se tornou motivo de debate. Não confundo o futuro do livro com o futuro do papel. Nunca tantas ideias foram escritas como na era digital. As pla-

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taformas impressas e digitais não são excludentes, mas complementares. Ao lado do livro impresso, já temos o livro eletrônico. A internet já é a maior biblioteca do mundo. Vivemos uma verdadeira reinvenção do livro ante o mundo digital, com novos paradigmas no mercado editorial e de linguagem. Contudo, em qualquer uma de suas formas, o livro não foi só uma celebração do conhecimento e registro da memória da espécie humana, mas uma celebração da vida. O filme O Leitor nos mostra que, se existe alguma redenção para o ser humano, ela passa pela linguagem. A falta de comunicação ou o erro nela podem ser determinantes nas vidas das pessoas. Os livros falam e dialogam com os homens e são amigos valiosos em nossas vidas. O mundo vive um paradoxo: na era da internet e do celular, ainda reina a incomunicabilidade, pois as questões essenciais não são ditas. Em 2008, uma escola formada por escritores, em Londres, que se denominou Escola da Vida, criou a chamada biblioterapia, que consiste em indicar leituras para o perfil do aluno/cliente, numa verdadeira terapia através dos livros. Em tempos em que um livro é publicado a cada trinta segundos e seriam necessárias 163 vidas para ler todos os livros oferecidos somente pelo site Amazon (como bem lembra o site da escola), as sessões de biblioterapia podem ser um guia para quem está perdido. A boa leitura é uma experiência mágica. Nos livros, conhecemos santos, reis, filósofos e homens comuns. Podemos saber o que disseram Jesus Cristo na Palestina e Gautama Buda no continente asiático. A leitura de um livro não pode parecer uma obrigação, deve ser um ato de prazer ou de paixão. Um livro tem que ser uma forma de felicidade. Alguém já disse que o livro é apenas um instrumento para encontrarmos a verdade por nós mesmos. “Todo leitor é, quando lê, o leitor de si mesmo. 166


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A obra é um instrumento que lhe permite discernir o que, sem ele, não teria visto em si”, afirmava o escritor Marcel Proust, filosofando sobre a leitura. O livro atravessou eras de guerras e perseguições, sobreviveu e, mais ainda, saiu fortalecido. Nesta época de contradições e incertezas, a cultura e o livro são as armas para se manterem os valores básicos do homem acima dos conflitos econômicos e de credo. Desejamos contribuir para que o amor pelos livros seja disseminado em nosso país, que ainda precisa conquistar para seu povo um maior acesso ao livro. Queremos contagiar o maior número possível de pessoas ou, no dizer de José Mindlin, inoculá-las com essa espécie de loucura mansa, que é a paixão pelos livros. O livro é uma forma de resistência e reexistência numa globalização que trouxe mais exclusão social. Longa vida ao livro! Jornal do Brasil, 24/04/2010 Folha de Pernambuco, 26/04/2010

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BIBLIOTECA-PARQUE DE LEITURAS

A sociedade contemporânea tem como principal característica a eterna busca pela informação e pelo conhecimento. Uma educação de qualidade aliada ao hábito da leitura é a principal via de inclusão social. Nessa época em que todo o País está voltado para as eleições, defendo que investimentos na educação e na construção de espaços de disseminação da leitura, como bibliotecas públicas, são fundamentais para mudar nossa realidade. É preciso pensar na educação como meio de transformação. Na nossa irmã latino-americana Colômbia, uma das cidades mais perigosas do país era Medellín. Os altos índices de violência e tráfico de drogas eram sinônimos de preocupação e desilusão por parte dos moradores. Mas, a partir de 2006, com a inauguração de uma biblioteca-parque, essa realidade começou a mudar. A junção de uma biblioteca com um parque arborizado fez com que, através do amor pela leitura, o nível educacional das pessoas aumentasse e, consequentemente, a violência

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diminuísse. É um exemplo evidente de que o conhecimento é a base para um futuro melhor. Li, há alguns dias, o artigo do professor e pesquisador Fernando Antônio Gonçalves sobre a ideia de criar uma biblioteca na estrutura do ainda não concluído Parque Dona Lindu, em Boa Viagem. No texto, ele cita a Biblioteca-parque Manguinhos, recém-inaugurada na periferia do Rio de Janeiro. De fato, o conceito é uma excelente maneira de direcionar crianças, jovens e adultos ao tão buscado “bom caminho”. A primeira biblioteca-parque no Brasil foi implantada na Vila Manguinhos, no Rio de Janeiro. Em uma área de 3,3 mil m², foram construídas várias salas e espaços dedicados à cultura e ao conhecimento. Filmoteca, sala de leitura para portadores de deficiências visuais, acervo digital de música, cineteatro, cafeteria, acesso gratuito à internet e uma sala de reuniões para moradores da comunidade são alguns dos vários equipamentos culturais criados para promover a cidadania e a integração social. Ações como essa desenvolvem um olhar crítico e uma sociedade mais consciente. Recife merece uma biblioteca-parque no espaço do Parque Dona Lindu. 16/08/2010

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CRIAÇÃO IMPERFEITA

Marcelo Gleiser é físico, astrônomo, escritor e professor da Dartmouth College, em New Hampshire, nos Estados Unidos da América. No Brasil, é colunista da Folha de S.Paulo, mas ficou conhecido por escrever obras sobre Física para o público leigo, como A Dança do Universo e O Fim da Terra e do Céu. Lançou, recentemente, sua obra Criação Imperfeita. O livro, que faz uma reflexão de 250 anos de pensamento científico, vai de encontro a um dos maiores mitos da ciência e da filosofia ocidental: o de que uma unidade nos liga ao resto do Universo. Há milhares de anos, a Física tenta explicar como funciona a natureza e afirma que ela é a encarnação científica do monoteísmo. Não é de hoje que cientistas afirmam que, escondida na complexidade existente na natureza, há uma única realidade, que, por sua vez, é mais fácil de ser compreendida. A Teoria do Tudo liga as tradicionais leis da Física, que regem grandes corpos e grandes forças, à ideia de que as partículas, apesar de pequenas, são essenciais. Foi com o objetivo de comprovar essa 170


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tese que o autor escreveu a obra. O professor e escritor Stuart Kauffman acredita que Criação Imperfeita representa o início de uma fase em que a sociedade verá o mundo e suas mutações de maneira diferente. Gleiser desmonta um dos maiores mitos da ciência e da filosofia ocidentais: o de que a natureza é regida pela perfeição. Em Criação Imperfeita, o cientista brasileiro destaca a importância de coisas imperfeitas no desenvolvimento da matéria e do ser humano. Ele acredita ainda que a assimetria de algumas coisas é responsável por algumas das propriedades básicas da natureza e que as transformações que ocorrem no mundo são fruto de algum desequilíbrio. Inverte a ideia do poeta Vinicius de Moraes de que “beleza é fundamental”, pois alega que o imperfeito é que deve ser celebrado ao invés da perfeição. Gleiser argumenta que todas as evidências apontam para uma realidade em que as imperfeições e as diferenças são imprescindíveis na matéria e no tempo. O livro sugere um novo “humanocentrismo”, em que todo e qualquer tipo de vida é, segundo o autor, “raro e preciso”. Para o astrônomo, o surgimento de todas as estruturas materiais é fruto de alguma assimetria. O Prêmio Nobel de Química Roald Hoffmann concorda com o pensamento do autor e afirma que Gleiser é uma espécie de “guia lúcido” para encontrar a beleza em um universo cheio de imperfeições. Jornal do Brasil, 28/06/2010 Folha de Pernambuco, 28/06/2010

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DIREITOS AUTORAIS E ECONOMIA CRIATIVA

O século XXI é marcado por uma transição para a era da economia do conhecimento. A riqueza revolucionária da Terceira Onda, defendida por Alvin Toffler, é cada vez mais baseada no conhecimento e está muito associada à tecnologia. O Brasil pode ser o melhor dos Brics através do fortalecimento da economia criativa. Transformar inventividade em competitividade. A tendência é aumentar a riqueza gerada pela economia baseada no desenvolvimento das indústrias culturais e de criatividade. A revisão da legislação que envolve o direito autoral é um importante instrumento para o desenvolvimento dessa economia criativa no País. Em 1998, quando a Lei dos Direitos Autorais foi promulgada, o Brasil vivia um cenário completamente diferente do que temos agora. As novas formas de mídias sociais, os sites de compartilhamento de arquivos e todas as novidades tecnológicas fazem dos dias de hoje diferentes dos que vimos há cerca de

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dez anos. Ferramentas como a internet, pen drives, MP3, iPods, leitores digitais, CDs e DVDs modificam as maneiras mais tradicionais de disseminar conteúdos e produções artísticas. Nesse descompasso entre a atual lei autoral brasileira e a nova realidade do mundo digital é que aquela é considerada a quarta pior lei do mundo pela ONG Consumers International IP Watch List. Ela limita excessivamente o acesso do consumidor para o uso privado e não comercial, conhecido nos Estados Unidos como uso justo. Na lei atual, não há permissão, por exemplo, para cópias de livros didáticos cujas edições já se esgotaram. Atento a essa nova realidade, o Ministério da Cultura discute, desde 2005, a possibilidade de revisar a Lei nº 9.610/98, que regulamenta o direito autoral, devendo o anteprojeto de reforma entrar em breve em consulta pública no site do ministério. A busca por mais estabilidade entre o direito do autor e os direitos do cidadão comum para acessar a educação, cultura, informação e o conhecimento; o aperfeiçoamento do trato legal entre o autor e as editoras/gravadoras; e a regulação/fiscalização eficaz do direito autoral são apontados pelo diretor de Direitos Intelectuais do MinC, Marcos Souza, como as principais razões para a reforma. O desequilíbrio nos contratos entre gravadoras e compositores, que privilegia demasiadamente a livre negociação contratual, merece mais atenção. É necessária uma regulação e supervisão mais eficazes das sociedades de gestão coletiva, a fim de criar critérios mais justos e transparentes na distribuição de direitos autorais. É fato que a lei dos direitos autorais precisa se moldar às novas tendências e ao formato do mundo globalizado. Afinal, essas mudanças não têm volta. A grande questão do processo de mudança na legislação é garantir um maior debate com 173


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os compositores, escritores e produtores culturais sobre um arcabouço jurídico que proteja os direitos do autor, mas que crie mecanismos que permitam uma maior democratização do acesso ao conhecimento do cidadão comum e o desenvolvimento da economia criativa. Jornal do Brasil, 14/06/2010 Folha de Pernambuco, 14/06/2010

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O DESERTO DO REAL

O escritor e filósofo Slavoj Žižek nasceu em Liubliana, na antiga Iugoslávia. Atua como professor na European Graduate School e no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. Žižek é conhecido pelas suas teorias sobre o real, o simbólico e o imaginário. Extrai seu pensamento do idealismo alemão e da psicanálise, sendo fortemente influenciado por Lacan, Marx, Hegel e Schelling. Žižek defende o “Real em sua violência extrema como o preço a ser pago pela retirada das camadas enganadoras da realidade”. Afirma que o real é um enigma que não deve ser equiparado com a realidade que enxergamos. Segundo ele, nossa realidade foi construída a partir de símbolos. A realidade seria uma ficção. É preciso analisar constantemente aspectos como o antagonismo social, a vida, a morte e a sexualidade para compreender melhor esse contexto no qual estamos inseridos.

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A obra de Slavoj Žižek tem estado na linha de frente do debate filosófico, político e cultural nos últimos tempos. Da teoria da ideologia até a crítica da subjetividade, a ética, a globalização, o espaço cibernético, os estudos sobre cinema, o cognitivismo, a teologia e a música, a influência do sociólogo se estende amplamente no mundo contemporâneo. Suas intervenções continuam a provocar debates e a transformar nossa maneira de pensar. As ideias do filósofo estão presentes em várias obras, entre elas Eles Não Sabem o que Fazem: o Sublime Objeto da Ideologia, O Mais Sublime dos Histéricos: Hegel com Lacan, Um Mapa da Ideologia, As Portas da Revolução, Arriscar o Impossível e Bem-vindo ao Deserto do Real!. No livro Bem-vindo ao Deserto do Real!, Žižek alega que os arquétipos de uma superestrutura capitalista globalizante não deixam as pessoas enxergarem a realidade, mas apenas uma falsa reprodução da mesma. O filme Matrix (1999), sucesso dos irmãos Wachowski, levou essa teoria ao ápice. Na teoria, a realidade material que sentimos e vemos à nossa volta é virtual. Tudo é gerado e coordenado por um gigantesco computador ao qual estamos ligados. No filme, o herói, interpretado por Keanu Reeves, acorda e se depara com a cidade de Chicago completamente destruída após uma guerra global. O líder da resistência, Morpheus, lança-lhe uma estranha saudação: “Bem-vindo ao deserto do real!”. Essa frase é exatamente uma metáfora do que vivemos. O homem vive preso a uma matriz materialista, mas somos mentais e espirituais. O mundo é mental. A intenção move o Universo. Tornamo-nos aquilo que pensamos. Há quem diga que a vida real acontece quando adormece-

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mos. No momento que acordamos, estamos dormindo, pois o homem acordado é tridimensional e sente o tempo linearmente, no tempo do “não tempo”. Ao dormir e/ou ativar o lado direito do cérebro, seria possível despertar uma quarta dimensão, a intuição, conectando uma grande rede cósmica numa quinta dimensão. Somos parte de uma realidade ficcional. Ilusória. Onde nada existe. Tudo foi construído. Precisamos despertar para o mundo real. É um pouco do pensamento desse filósofo, cuja obra merece ser melhor conhecida. Jornal do Brasil, 24/05/2010 Folha de Pernambuco, 24/05/2010

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O GOOGLE E OS LIVROS

Depois do Orkut e do e-mail que nunca está cheio (o Gmail), um dos últimos projetos do Google é a ferramenta Google Book Search, inaugurada em novembro de 2005. Outro projeto é a venda de livros eletrônicos (e-books) através do Google Editions, que começa ainda este ano. Assim, o Google está fazendo a maior biblioteca e o maior negócio livreiro do mundo. A maior companhia da internet tem uma meta nada modesta nesse ramo: quer digitalizar praticamente todos os livros do planeta. Segundo dados do Online Computer Library Center (OCLC), dos 55 milhões de títulos existentes no mundo, 10% representam o catálogo ativo das editoras, 15% caíram em domínio público e 75% — ou 40 milhões — são livros não mais comercializados, mas que ainda não estão em domínio público. O foco inicial do Google são esses dois últimos grupos. No fim de 2009, o total de exemplares convertidos em bits pela empresa já havia alcançado os 10 milhões. Os engenheiros do

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Google criaram um método específico de digitalização em que mil páginas são escaneadas por hora. O Google Book Search investe em parcerias com bibliotecas no sentido de digitalizá-las. Tal iniciativa gerou uma demanda judicial nos Estados Unidos que acabou em acordo e que está sujeita à aprovação do Tribunal Distrital dos Estados Unidos pelo Distrito Sul de Nova York (o texto integral do acordo pode ser lido em www. googlebooksettlement.com/agreement.html). O modelo de negócio do Google tem gerado controvérsias relacionadas à infração de direitos autorais, a questões de monopólio e privacidade. O historiador e estudioso dos livros Robert Darnton, autor da obra A Questão dos Livros, fala do papel das bibliotecas e da iniciativa de digitalização de livros do Google: “O Google tem feito um trabalho maravilhoso de digitalização do acervo dessas bibliotecas. Mas, como toda empresa privada, tem por objetivo dar lucro a seus acionistas. Os objetivos das bibliotecas são distintos — entre eles, oferecer conhecimento público. Esse conhecimento não pode ser detido por uma empresa só. O acordo sobre direitos autorais do Google configura uma situação de monopólio”. Darnton também explicita a falta de critérios da digitalização realizada pelo Google, que não tem bibliógrafos no seu quadro funcional: “O Google emprega milhares de engenheiros, mas, até onde sei, não tem nenhum bibliógrafo em sua equipe. Seu descaso com qualquer preocupação bibliográfica visível é particularmente lamentável, tendo em vista que a maioria dos textos, como acabo de argumentar, foram instáveis por boa parte da história da imprensa”. O Google está criando um comunicador universal com o seu tradutor de línguas. Atualmente, traduz 52 línguas. E mais: no Google estão sendo armazenadas as biografias das pessoas 179


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no mundo contemporâneo. O livro Google: o Fim do Mundo como o Conhecemos, de Ken Auletta, merece ser lido. É de se preocupar que um empreendimento comercial detenha o controle de tanta informação. O Google já está sabendo mais a nosso respeito que a Receita Federal, por exemplo. Precisamos que a sociedade da informação na qual vivemos seja a mais democrática possível e que não seja monopólio de ninguém. Vamos cobrar do Google que siga fielmente seus lemas formal, “organizar a informação do mundo e torná-la universalmente acessível e útil”, e informal, “não faça maldade”. Jornal do Brasil, 17/05/2010 Folha de Pernambuco, 17/05/2010

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O LIVRO NO SÉCULO XXI

Há mais de 3 mil anos, na China, os livros eram feitos com chapas de madeira e de bambu ligadas por barbantes de seda ou couro, e os caracteres eram pintados com pincéis feitos com pelos de animais. Hoje, produtos eletrônicos como os audiobooks ou os e-books (livros eletrônicos), com seus suportes portáteis como o Kindle, da Amazon, o Sony Reader, da Sony, o Mix Leitor D, que está em vias de entrar no mercado, ganham cada vez mais espaço de exposição e discussão. Constatando esse crescimento, as editoras estão discutindo essa nova realidade tecnológica e de negócio. De fato, o fulminante avanço tecnológico para a publicação de conteúdo de texto mexeu com o mercado editorial. Está na ordem do dia, na indústria do livro, o debate sobre os impactos que as novas tecnologias trarão para o processo de produção, edição, impressão e divulgação de livros em sua forma convencional. Em novembro do ano passado, já discutimos o tema na

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Fliporto Digital, que é um dos braços da Fliporto, e lançamos pioneiramente o primeiro concurso brasileiro de literatura no celular. Essa discussão dominou a importante Feira do Livro de Frankfurt no final de 2009. Recentemente, a Microsoft fechou acordo de cooperação com a Amazon, firmando uma parceria em que cada uma das empresas poderá utilizar as tecnologias da outra. Incluem-se aí principalmente o leitor de livros eletrônicos Kindle e o sistema operacional Windows. A Amazon anunciou também que o Kindle já possui, para download, obras em português, espanhol e italiano. Editoras e autores que desejarem disponibilizar livros nos três idiomas podem enviar o conteúdo pelo serviço Digital Text Platform (DTP). No início do ano, a Câmara Brasileira do Livro realiza, em São Paulo, o 1º Congresso Brasileiro do Livro Digital, durante o 36º Encontro Nacional de Editores e Livreiros. Especialistas de todo o mundo irão debater os novos rumos do negócio do livro, as oportunidades junto a um potencial imenso de leitores, as questões de direitos autorais, as novas mídias, entre outros assuntos que surgem nesse novo universo do livro digital. Devemos observar que as mudanças fazem parte do processo evolutivo. O e-book certamente não vai levar o livro de papel à extinção. Assim como o cinema não matou o teatro, a televisão não aboliu o cinema e o computador não extinguiu a literatura. A humanidade sempre temeu o novo. O importante é que, em qualquer uma de suas formas, o livro não é apenas uma celebração do conhecimento e registro da memória da espécie humana, mas uma celebração da vida. O inestimável bibliófilo José Mindlin, recém-falecido, citou um exemplo sobre a experiência sensorial do livro em entrevista

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que concedeu no Recife, em agosto de 2005: “Na última vez que o poeta argentino Jorge Luis Borges veio ao Brasil, nos anos 1980, ele já estava cego e ainda assim queria a primeira edição de Os Sertões. Como eu tinha mais de um exemplar, dei um deles para Borges. Ele não queria o livro para ler, Borges não podia mais fazer isso. Queria tocar nele, pegar, sentir o livro. Era o seu fetiche”, declarou Mindlin. Grande exemplo para os amantes da literatura, José Mindlin nunca foi um Peter Kien, personagem do livro Auto-de-fé, de Elias Canetti, para quem a vida se abria da porta para o interior de sua biblioteca. Homem de sensibilidade, Mindlin foi, antes de tudo, um leitor e sempre se declarou ser mais um depositário, um guardião dos livros do que um proprietário de uma riquíssima e preciosa biblioteca. Sempre haverá alguém que prefira o livro em sua forma de papel. Alguém que escolha alcançar, dessa maneira, a intimidade com um autor por meio das páginas, que vão cobrando a vida enquanto se abrem. Sempre haverá alguém que vai querer voltar a um livro só na edição em que o conheceu pela primeira vez, às dedicatórias, recordações e aos passados que ficaram unidos a esse objeto. Não confundo o futuro do livro com o futuro do papel, que é o seu tradicional suporte. Nunca tantas ideias foram escritas como na era da internet. Se há algo que possa ameaçá-lo é a falta de leitores, e não a mudança da base em que se firma. O que precisamos é combater uma grande fome de livros que há no Brasil. A leitura e o acesso ao livro são direitos sociais básicos e transformadores de indivíduos em cidadãos. A leitura de um livro não pode parecer uma obrigação, deve, ao contrário, ser

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um ato de prazer ou de paixão. Como dizia Jorge Luis Borges: “um livro tem que ser uma forma de felicidade”. O livro é uma forma de resistência e reexistência do ser humano numa globalização que deveria mais aproximar do que separar as pessoas. Jornal do Brasil, 06/03/2010 Folha de Pernambuco, 08/03/2010

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SOZINHOS JUNTOS

O século XXI, conhecido como a Era da Tecnologia, tem passado por fortes mudanças tanto no aspecto social quanto no antropológico. À medida que a tecnologia e a internet se tornam mais presentes em nossa realidade, nos transformamos em pessoas mais afastadas umas das outras. É um paradoxo: o que teoricamente serviria para aproximar, muitas vezes, distancia. De acordo com a socióloga americana Sherry Turkle, autora do livro Alone Together, a tecnologia ameaça dominar nossa vida e nos tornar seres menos humanos. Sob a ilusão de permitir uma comunicação mais eficiente, isola-nos das verdadeiras relações humanas em uma “ciber-realidade”, que é, na verdade, uma pseudorrepresentação do mundo real. O Relatório das Nações Unidas nos dá conta de que já existem 2 bilhões de internautas e 5,3 bilhões de assinaturas de celulares em todo o planeta. No entanto, mais uma vez voltamos ao questionamento moderno de vivermos uma contraditória incomunicabilidade na era da comunicação. 185


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O filme A Rede Social é mais uma prova de que, com a criação de tecnologias inspiradoras, nos tornamos cada vez mais insignificantes e pequenos numa realidade fictícia que nós mesmos criamos. O longa, recém-indicado ao Oscar de Melhor Filme, é uma crítica à geração da mídia social criada por pessoas que, em sua essência, eram incapazes de se encaixar no mundo real. É indiscutível que as redes sociais são mecanismos através dos quais podemos encurtar distâncias e viabilizar a comunicação de modo rápido. É impressionante também a força da comunicação pela internet para derrubar ditaduras. Vejamos os exemplos recentes da Tunísia e do Egito. No entanto, precisamos prestar atenção a esse novo campo para que ele nos aproxime, e não nos distancie. No admirável filme O Leitor, por exemplo, é mostrado o fato de que, se existe alguma redenção para o ser humano, ela passa pela linguagem. A falta de comunicação ou erros existentes nela podem ser determinantes na vida das pessoas. O mundo vive uma contradição: na era da internet, das redes sociais e do celular, ainda reina a incomunicabilidade, pois as questões essenciais não são ditas ou aprofundadas. 14/02/2011

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FLIPORTO

“A mente que se abre a uma nova ideia jamais voltará ao seu tamanho original.” Albert Einstein 189



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A FLIPORTO E A SUSTENTABILIDADE

A questão ambiental está na pauta do dia. Na sede do Instituto Maximiano Campos (IMC), na Rua do Chacon, em Casa Forte, tenho a honra de não apenas exibir, mas também manter ativas as ações que fizeram com que recebêssemos, em 2008, a certificação de Sistema de Gestão Ambiental, também conhecido como ISO 14001. No último dia 18, tive a honra de receber o título de Destaque Latino-americano no 5º Prêmio Brasil de Meio Ambiente. O evento, promovido pela Casa Brasil, com patrocínio da Petrobras, é uma prova de que, em um momento de reflexão sobre a sustentabilidade ambiental e a diversidade cultural, é preciso levar em consideração a importância de preservar não apenas nossas raízes culturais, mas também a natureza. Fui condecorado graças ao trabalho que venho desempenhando na Festa Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto).

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A Fliporto é uma grande festa literária, que realiza diálogos entre culturas tendo a preocupação de ser um evento sustentável. Inovamos ao desenvolvermos, ainda em Porto de Galinhas — nossa antiga “casa” —, a biblioteca comunitária da Praia de Maracaípe ou mesmo com as várias atividades de conscientização ambiental realizadas com crianças na Festa Literária Infantil de Porto de Galinhas (Fliportinho). Julgamos também importante ajudar a preservar os seculares baobás existentes em toda a região de Porto. As árvores, consideradas a “árvore da vida”, são um exemplo de preservação cultural, natural e histórica em um único elemento. Em 2010, a sexta edição da Fliporto, agora em Olinda, tem como meta dar continuidade aos trabalhos de conscientização ambiental junto às crianças e aos jovens, por meio da Fliportinho. Iremos utilizar, em nossas peças publicitárias, papel reciclado e desenvolver uma ação anual de preservação da cultura e literatura brasileiras através de incentivo à leitura dirigida dos estudantes da rede de ensino de Olinda. Isso faz com que nossa festa literária seja muito mais do que apenas literatura. Somos também militantes na luta pela preservação do meio ambiente e das nossas raízes culturais fazendo um evento sustentável. 25/10/2010

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EVA SCHLOSS, A LUTA CONTRA A INTOLERÂNCIA

Na sociedade contemporânea, existem diversos conflitos. Destaco a intolerância como uma das principais causas desses conflitos. Seja ela religiosa, racial ou ideológica. Alguns desses problemas, apesar de extremamente atuais, não são de hoje. Foi com o objetivo de debater sobre a falta de tolerância para com o próximo que, na sexta edição da Festa Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto), cujo tema foi A Literatura Judaica e o Mundo Ibero-americano, convidamos Eva Schloss para falar um pouco sobre sua vida cercada por preconceitos, sofrimentos e, ao mesmo tempo, alegrias. Eva é uma das poucas sobreviventes de um dos mais cruéis atos da história da humanidade: o holocausto. Ela, que sobreviveu às inúmeras torturas e humilhações no campo de concentração de Auschwitz, é, como ela mesma disse, “um exemplo de esperança, coragem e fé”.

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O que mais me admira em pessoas como Eva são a vontade e a obstinação que elas têm de passar adiante o que viveram e os ensinamentos que adquiriram com isso. No último dia 18 de novembro, esteve na comunidade de Paraisópolis, em São Paulo, para contar sua história de vida a 120 jovens. Na mesma semana, a escritora participou do projeto Prosa nas Livrarias, realizado por um periódico do Rio de Janeiro. O objetivo desse encontro foi, assim como na Fliporto, falar sobre a importância de temas como o holocausto, inclusive dentro da literatura. Eva é meia-irmã de Anne Frank, a quem conheceu pessoalmente e cujo pai casou com a sua mãe. Chegou a ver os famosos diários antes de serem publicados pelo pai de Anne. Eva Schloss acredita que “a Europa não aprendeu a lição”. Assim, é importante relembrar o holocausto para que pequenos ódios raciais não se transformem em novos holocaustos. É preocupante a islamofobia crescente na Europa, entre outras tensões religiosas, culturais e mesmo étnicas do mundo contemporâneo. Eva é realmente um exemplo para todos os que, por algum motivo, pensam em desistir da vida. Temos que seguir o exemplo dessa brava judia de 82 anos, que, por pior que fossem os dias em Auschwitz, lembrava dos momentos felizes que havia vivido e não desistiu. 06/01/2010

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FLIPORTO 2007 – FESTA DA AMÉRICA LATINA

Porto de Galinhas é um lugar especial do continente latinoamericano: caminhando nessa praia, surge-nos a dúvida, presente em tantos livros de literatura: trata-se de algo fantástico ou é mesmo realidade? Sua beleza é um passaporte incessante para a arte. Ainda que com seus contrastes, não poderia haver espaço mais propício à troca de experiências literárias; o lugar com força de utopia, dotado da atmosfera mágica de Macondo, de que falou o colombiano García Márquez. Nossa ideia de dedicar a versão 2007 desse festival literário aos países latinoamericanos descansa na certeza de que entraremos em um permanente diálogo com as várias nuanças da nossa latinidade, porque essa praia, mais do que cenário, é memória, vivência e presságio. A utopia da América inventada a cada instante no multipluralismo que desafia, mas confirma paradoxalmente, a noção-tradição de identidade e pátria.

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Mesmo quando os conquistadores, antes de aqui desembarcar, começaram a nos inventar, vozes alternativas levantaram indagações e registraram espaços de alteridade: Frei Bartolomeu de Las Casas, Juan Luiz de Alarcan e, no Brasil, por exemplo, Gregório de Matos. Andrés Bello via a América como o refúgio da liberdade; Simon Bolívar foi o autor da utopia de uma cultura hispano-americana continental e solidária; José Vasconcelos viu a América Latina como uma raça cósmica, e seu anseio anticolonialista se irmanou à universalidade proposta por Bolívar; no Brasil, tivemos os estudiosos Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda pesquisando detalhadamente as consequências dos cruzamentos, em nosso continente, dos modelos étnicos originais. Desde os maias, incas e astecas até os conquistadores, foram muitos os patamares percorridos até a formação da consciência latino-americana. A beleza e a complexidade da América Latina ressaltam a partir de seus textos literários. É a literatura, entendida como produto cultural, que mostra as chaves principais e significativas do processo social, histórico e econômico e que permite entender, de maneira mais profunda, o que somos, o que vivemos, o que sonhamos. A criação literária latino-americana exige uma revisão do passado a partir do presente, uma vez que diluiu fronteiras, mantendo, no entanto, suas diferenças e contradições. Conhecer a realidade latino-americana através da sua literatura implica não só fazer uma viagem em suas várias geografias, mas, sobretudo, compreender o sujeito migrante em seu contexto centro/periferia, âmbito rural/âmbito urbano. Do Caribe à Amazônia, dos Andes à Patagônia. Vivência e vigência mítica, quer voltadas ao cosmopolitismo das vanguardas, quer ao dinamismo psíquico dos confrontos epifânicos. A Festa Literária Internacional de Porto de Galinhas 2007 (Fli196


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porto) vem atender a esse chamado de atualidade, em que ultrapassamos esse conceito do nacional e vamos em direção a esse encontro de países latino-americanos, que, embora não falem a mesma língua, são agentes históricos, na imaginação e na resistência de uma mesma linguagem cívica e humana. O pós-colonialismo permitiu uma melhor compreensão do outro: tanto aquele viajante do mundo passado que aqui aportou há mais de quinhentos anos como os que, produtos de etnias e culturas híbridas, constituem o perfil de diversidade do homem das Américas. O pensamento bolivariano da união desses povos é um espectador, intervém na história do homem como ação. Com as suas obras, ele vai definindo e retratando a sociedade em que vive, bem como toda a fragmentação do homem contemporâneo, pois sabemos que, na América Latina, as dificuldades de ordem econômica e literária têm um contraponto de impacto com a extrema riqueza de suas produções culturais, tudo se articulando na formação desse moral sucessivo de mitos, sonhos, magia, sofrimento, autoritarismo, pobreza, discriminação de uma voz que não se cala e se constitui em um território que extrapola as fronteiras materiais para formar uma marcha direcionada a um mundo que, se acredita, possa ser cada vez mais digno e pleno. Para o escritor peruano Vargas Llosa, ser latino-americano é ter consciência de que as demarcações territoriais que dividem nossos países são artificiais, foram impostas de maneira arbitrária na época colonial, sendo o denominador comum dessas comunidades muito mais profundo do que as diferenças particulares. Não podemos esquecer que, nos anos 1960 do século passado, foi a América Latina o cenário do renascimento socialista e de um romantismo revolucionário: sua brava história foi acompanhada por europeus, anglo-americanos e asiáticos. 197


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Entretanto, se há uma América Latina ocidentalizada, que fala espanhol, português e francês, há outra indígena, que, em países como México, Equador, Peru, Bolívia e Guatemala, conserva práticas e crenças de raiz pré-colombiana. Embora haja quem considere o início da América Latina como a chegada dos portugueses e espanhóis, o que assistimos é ao fortalecimento, na consciência etnográfica, do respeito dos povos indígenas. Esse hibridismo representa um microcosmo que reúne tanto os latino-americanos de origem portuguesa, espanhola, italiana, alemã, chinesa ou japonesa como os que descenderam dos antigos astecas; toltecas; maias; quíchuas; aimarás, ou caribes, sem esquecer, naturalmente, a marca profunda deixada pelos africanos no continente, onde estão há cinco séculos, que vai desde os tipos humanos à fala, música, comida, religião. Na verdade, ao destacar os contrastes da realidade latinoamericana, Mario Vargas Llosa, autor do Dicionário Amoroso da América Latina, afirma que a riqueza desta última será em seu continente, que carece de identidade, porque contém todas elas. Daí porque é essa terra que, com tantos pobres e desempregados, com altos índices de criminalidade aliados à diáspora de sua gente, com um contingente tão grande de analfabetos, vem exibir, diante do mundo, um nível altíssimo de originalidade artística e literária. Perguntado se era cubano ou argentino, Ernesto Che Guevara disse: “sou cubano, argentino, boliviano, peruano, equatoriano [...], considero que a minha pátria não é a Argentina, mas toda a América”. O escritor argentino Julio Cortázar, apesar de nascido na Bélgica e haver morado muito tempo em Paris, sempre se sentiu um latino-americano. Seus textos, como sua vida, são testemunhos da luta por um mundo mais justo, sem imperialismo nem opressão, sem fome nem exploração, e, 198


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quanto mais se considere essa uma luta utópica, mais teremos a convicção de que ela será eterna, porque as armas políticas do escritor estão diretamente relacionadas à sua responsabilidade. Através do romance político latino-americano, tem-se exorcizado no continente o fenômeno de déspotas, ditadores, tiranos, pois é a paixão romântica pela pátria que leva os escritores a denunciarem os abusos dos governantes. Por outro lado, o continente que produz O Senhor Presidente, de Miguel Ángel Astúrias, assim como o Eu Supremo, de Augusto Roa Bastos, e O Outono do Patriarca, de Gabriel García Márquez, é o mesmo em que surgem as obras de Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares, voltados mais para o elemento fantástico da literatura. Já Alejo Carpentier vai contrapor ao racionalismo europeu um mundo de deuses, de vodu e entidades fantásticas, em que o delírio da imaginação intervala com o trabalho, a dor e o sacrifício do homem. Chamamos essa crença mítica que transita pelo registro da cultura europeia a partir da língua de realismo mágico, ou maravilhoso. Se a afirmação do que é americano se faz em oposição ao que é europeu, a do que é latino-americano se faz em oposição ao que é norte-americano. Na fixação da cultura local, é importante a ideologia da mestiçagem, sempre considerando o nosso traço diferenciador. O interesse do Brasil pela cultura da América hispânica — bem como da América de língua francesa, em que avulta, por exemplo, o nome de Édouard Glissant — engloba a música, o cinema, as artes plásticas, a literatura. Sabemos que esses conceitos não se confundem: cultura latinoamericana é toda aquela em que se falam línguas latinas, no caso o português, o espanhol, o francês; cultura ibero-americana é ligada à fala de línguas portuguesa e hispânicas; finalmente, cultura hispano-americana se refere aos países de língua espanhola. 199


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Do etnocentrismo ao diálogo de culturas, ocorreu o questionamento do modelo eurocêntrico, bem como a necessidade de uma atenção específica ao processo de descolonização cultural. O aprofundamento nas raízes da nossa identidade nos mostra latino-americanos imersos na cultura dos nossos países, mas igualmente integrados em um outro tipo de soberania, no caso a emancipação continental dos intelectuais na tribuna permanente da arte e da literatura, na certeza de que a resistência contra qualquer dominação vem sempre intensificar os verdadeiros traços da nossa cultura. Temos mantido o idealismo e a diversificação nesse exercício em que a literatura surge como a razão fundamental da existência, e a nossa mestiçagem cada vez mais se conjuga na produção da referência internacional dos nossos trabalhadores intelectuais. Por isso, estamos para amar e sermos amados, para lembrar e sermos lembrados. Aqui estamos, símbolos e arquétipos de nós mesmos, e temos, em nossa defesa e magia, a história da nossa realidade contemporânea. Cremos no destino comum da América Latina, dos personagens que somos, autores e atores da nossa literatura, a proferir esse eterno testemunho que damos diante do céu e do mar, do azul inesquecível desta Praia de Porto de Galinhas. Antônio Campos, da coletânea Legado – Fliporto 2007 – Memória da Programação Literária, 2008

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FLIPORTO 2008 – TRILHA DA DIÁSPORA: LITERATURA NA ÁFRICA E AMÉRICA LATINA

A terceira versão da Fliporto, realizada em setembro do ano passado, internacionalizou-se e transformou o Brasil em um polo congregador dos países latino-americanos, treze deles fazendo-se representar através de vários de seus escritores: Argentina, Chile, Colômbia, Cuba, Equador, México, Nicarágua, Paraguai, Peru, Porto Rico, República Dominicana, Uruguai, Venezuela. Angola foi representada por Agualusa, e a Galícia, por Xosé Lois Garcia. Foram, ao todo, 135 participantes, sendo quarenta estrangeiros (cinco deles radicados em Pernambuco), quarenta escritores dos vários estados e 55 pernambucanos. Os homenageados foram: Frida Kahlo, que no ano passado completaria 100 anos de nascimento; Hermilo Borba Filho; Ariano Suassuna; Gabriel García Márquez; Moacyr Scliar; Gabriela Mistral; Clarice Lispector; Nélida Piñon; Marcus Accioly; Abreu e Lima; e José Olympio. Entre os muitos escritores, Antônio Torres, Antonio Carlos Secchin, Márcio Souza, Nélida 201


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Piñon, Sábato Magaldi, Thiago de Mello e Vicente Franz Cecim (Brasil); Fabián Casas (Argentina); Armando Romero e Daleth Restrepo (Colômbia), Alex Pausides e Aitana Alberti (Cuba); Odi González (Peru), Francisco Ruiz Udiel (Nicarágua), Etnairis Rivera (Porto Rico), Rei Berroa (República Dominicana). A escritora Nélida Piñon foi responsável pela apoteose da abertura: “toda a história humana pode estar dentro de uma frase feliz”, afirmou. Primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras, ocupando hoje a cadeira de número 30, e uma das principais homenageadas da Fliporto, Nélida repartiu experiências de criação com o público. “Acredito que não se pode ser um escritor moderno sem ser arcaico. Precisamos de, no mínimo, 5 mil anos de inspiração”, defendeu a escritora, reverenciando a importância e contribuição da História para a literatura. Confessando ser apaixonada pelos clássicos gregos, como Homero (autor de Ilíada e Odisséia) e o filósofo Aristóteles, Nélida acredita que “a arte nasce do caos, da riqueza humana”. A apoteose do encerramento esteve a cargo de Ariano Suassuna, que, com uma extraordinária aula-espetáculo, causou delírio na multidão que se comprimia no grande auditório do Hotel Armação. O Brasil literário estava distanciado do resto da América Latina, acredito que a Fliporto contribuiu para uma reaproximação. De uma maneira quase informal, possibilitamos uma aproximação entre os escritores e o público, que participou ativamente dos painéis. Sempre buscando a troca de experiências, a curadoria organizou os painéis mesclando escritores brasileiros com estrangeiros, para ressaltar a diversidade e estimular a troca de experiências. Se as duas versões iniciais da Fliporto colocaram a cidade de Porto de Galinhas no calendário cultural do Estado de Pernambuco, a terceira lhe deu um destaque

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entre os encontros literários nacionais e internacionais. A partir de uma conjugação de lastro acadêmico atualizado com a vitalidade da presença do autor e do livro em painéis estruturados conforme motivações estéticas e ideológicas, foi construída uma plataforma leve, ágil, mas consistente e profunda, no trato da literatura. Um formato de evento especial, que retratou a experiência intercultural e, a partir dela, fez evoluir as exposições e os debates, as palestras, os recitais, as entrevistas e leituras. Curiosas oficinas literárias, como a de poesia quéchua, do peruano Odi González, chamaram a atenção do público para culturas ancestrais da América Latina, mostrando como a cultura maia, por exemplo, antecipou, em muitos séculos, a linguagem cifrada dos modernos computadores. Agora, nos estendemos à África com o tema Trilha da Diáspora: Literatura em África e América Latina. Iremos nos ater mais detalhadamente aos países de língua portuguesa, porém celebrando autores como a primeira mulher africana negra a receber o Prêmio Nobel da Paz, Wangari Maathai (Quênia, 2004), e o primeiro africano negro Prêmio Nobel de Literatura, Wole Soyinka (Nigéria, 1986). Um nome confirmado para o evento deste ano é o do angolano José Eduardo Agualusa, que inclusive já residiu em Olinda, cidade que o inspirou a escrever o livro Nação Crioula. O objetivo é reunir quarenta nomes nacionais. Outro escritor angolano já confirmado é Artur Pestana, mais conhecido por Pepetela, que foi vencedor do Prêmio Camões pelo conjunto de sua obra e militante do Movimento Popular pela Libertação de Angola. Ele está sendo homenageado este ano ao lado do moçambicano Marcelino dos Santos, escritor e membro fundador da Frente de Libertação de Moçambique.

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A Fliporto também presta homenagem ao poeta negro Cruz e Sousa, fundador do nosso simbolismo, aos 110 anos de sua passagem, bem como ao poeta baiano Castro Alves, pelos 140 anos da apresentação pública de Tragédia no Mar, que viria a se chamar O Navio Negreiro (1868). Nessa versão, também é homenageado o grande escritor Jorge Amado, pelos setenta anos de publicação, na França, de Jubiabá, vitória obtida após haverem sido queimadas, no ano anterior, as edições de O País do Carnaval, Suor, Cacau, Mar Morto, Capitães da Areia e o próprio Jubiabá, por determinação da Sexta Região Militar. A Fliporto 2008 presta, ainda, uma significativa homenagem ao centenário do poeta negro pernambucano Solano Trindade, bem como aos 120 anos da Abolição. Outro homenageado é Josué de Castro, pelos 100 anos de nascimento, bem como Machado de Assis, pelo centenário de sua morte. Entre os hispano-americanos, estão lembrados o poeta peruano César Vallejo e a poetisa argentina Alfonsina Storni, assinalando setenta anos de passagem de ambos. Na Praia de Porto de Galinhas, antigo porto de escravos, nos dias de 06 a 09 de novembro, dar-se-á o encontro/reencontro das etnias: escritores de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, debatendo temas de interesse comum com escritores brasileiros, hispano-americanos, autores portugueses e espanhóis, estudiosos do póscolonialismo, teóricos fundamentais contemporâneos dos estudos interétnicos e culturais. E dar-se-á a travessia do Atlântico, mas no sentido inverso ao dos navios negreiros que trouxeram, ao nosso continente, mais de 9 milhões de escravos a partir dos primeiros anos do século XVI. Aos 120 anos da Abolição, celebrar o significado da África no Brasil e na América Latina entre nós, afro-brasilei204


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ros, afro-latinos, latino-americanos, é congregar os vários desdobramentos da diáspora africana nestes tempos pós-coloniais. Conscientes de suas vastas raízes, sabedores de que os próprios iberos colonizadores já traziam dentro de si o sangue norteafricano, após oito séculos em que dominaram a península. A Fliporto acontece de forma descentralizada, com programações literária, social, infantil e gastronômica. Este ano, a festa amplia o leque de opções para os participantes ao incluir um circuito turístico-cultural e um circuito de artes visuais, com exposições de artes plásticas e de fotografia. Quem estiver a distância, poderá acompanhar as discussões através da TV e do rádio ao vivo ou pela internet. Tudo dentro da perspectiva característica da Fliporto, que não vê a literatura como mero entretenimento, mas como fator educacional de formação humanística, de equilíbrio existencial por meio da imaginação, como parte arquetípica e ancestral da cultura, como princípio ético-estético a preencher o vazio e fortalecer no homem a coragem, a resistência, o gosto da beleza, a busca de si mesmo, a solidariedade alegre de continuar, no texto literário, o sonho e a magia de estar vivo por entre a injustiça, o sofrimento e o absurdo. Setembro de 2008

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FLIPORTO 2009 – DIÁLOGO ENTRE CULTURAS

A literatura é o espaço, por excelência, do encontro: letras, sílabas, palavras, frases, versos, estrofes... Unidos é que formam parágrafos, poemas, romances, contos, ensaios, autores, leitores, editores... Literatura ibero-americana: a própria expressão já traz em si o encontro de culturas, de tempos, de mundos, de mentalidades. Encontros tão intensos que incorporam até os desencontros. A Fliporto é, desde a sua internacionalização, a Festa do Livro e da América, ou melhor, do Livro e da Ibero-américa. Portanto, mais do que a busca, o encontro. Mais do que as raízes, as árvores do bosque interminável construído de letras. Nisso a memória e a consciência mais do que desempenham um papel: são a própria razão de ser e escrever ibero-americanos. Há muitos nomes nas nossas letras que encarnam a grande, rica e complexa teia ibero-americana. João Cabral de Melo

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Neto é dos maiores, porque o que escreveu é original e perene. Ninguém melhor do que ele realizou uma obra em que os elementos são tanto os de cá da nossa praia quanto os de lá da península onde também viveu. É o nosso homenageado. Certa vez, o pintor Cícero Dias, que encarnou como ninguém as cores, o brilho e o calor tão típicos daqui, disse que a diferença entre o modernismo e o regionalismo é que o primeiro estava mais ligado “à música, à pintura e à literatura”, enquanto o segundo, “à etnografia, à sociologia, à história”. O modernismo ficava, assim, como território dos artistas, e o regionalismo, como dos cientistas sociais. Felizmente o passar do tempo serve tanto para atualizar e melhorar as ideias quanto para desfazer as dicotomias. A Fliporto 2009 mostra, na prática, que as ciências e artes são também da “mesma maçonaria”. A verdadeira literatura nunca será um compartimento estanque. Assim, que estejamos triunfantes, em uma praia cheia de vida e calor, se possível de mãos dadas, poetas, músicos, romancistas, historiadores contistas, cineastas, críticos, artistas, jornalistas. É com esse espírito tão amplo quanto essencial, teórico e prático, verdadeiramente interdisciplinar, que a Fliporto existe. Combinando saberes e sabores com os melhores temperos. A Fliporto é também coisa de cinema. E de criança. Real e virtual. Analógica e digital. A Fliporto mostra, em 2009, porque é cada vez mais festa, mais internacional e cada vez mais Porto de Galinhas. Participarão escritores de dez países — Brasil, Portugal, Espanha, Uruguai, Chile, Colômbia, Venezuela, Canadá, Alemanha e Israel — em meio a um ambiente em que há um tanto de feira de livros, uma pitada de congresso intelectual, temperado com os ingredientes diversos típicos de festivais de arte e cultura. Tudo prova 207


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de que o livro deve instruir e divertir, tudo na justa medida. Há cinco anos, a Fliporto constrói uma ponte entre as culturas, os autores, os leitores, os editores. Ponte que liga Porto de Galinhas às Américas, à Europa, às Áfricas. A Fliporto tem a alegria de continuar essa ponte, construída por agentes como João Cabral, nosso homenageado, e Gilberto Freyre, reafirmando-se, revendo-se e ampliando-se como se fosse um livro em novas tiragens, uma festa com novas edições, com o vigor fecundado pela Ibero-américa — literatura — seu fruto e sua flor sempre (viva!). Em cinco edições, insistimos em ser tropicalmente africanos, indígenas e ibéricos, não somente porque a nossa festa é numa praia — que foi considerada, pela nona vez, a melhor praia do Brasil pela revista Viagem e Turismo — e nos sentimos em casa com o calor (especialmente o humano), mas porque nos sabemos integrados, suplantando nacionalismos, regionalismos e cosmopolitismos estreitos. Amamos o contemporâneo, o novo, o “por/vir”. Sabedores de que a realidade — e ainda mais a literatura — se alimenta de tensões, queremos esticar ainda mais essas cordas (de todas as músicas) com a reafirmação do diálogo. O que é ser africano? O que é ser autóctone? O que é ser ibérico? Não temos respostas prontas; os teóricos, que as sabem de cor, nunca estão de acordo. Entre as perguntas e as respostas incompletas, preferimos as que nos acordam. Temos as nossas convicções. Íntimas. Intensas. E as compartilhamos nesta festa: felizmente não somos europeus em exílio nem desterrados em nossa própria terra, como falava um grande historiador, e acreditamos que a cultura luso-brasileira não está ameaçada. Portugal é cada vez mais europeu, e o Brasil, cada vez mais brasileiro. Intrinsecamente, sabemos que somos inseparáveis. A nossa nova Ibéria — ao contrário da citada pelo crítico 208


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— nada tem de áulica. É liberta, libertária e libertadora. Vem de Joaquim Nabuco, de Frei Caneca, de Abreu e Lima, de Natividade Saldanha e de tantos outros que fizeram e fazem da festa maior da cultura o caminho de uma nova etapa histórica. O Brasil é o país do presente, desempenha um papel de alto relevo no mundo, e a literatura — em papel ou por outros meios — deve, merecidamente, ser uma grande protagonista. 03/11/2009

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FLIPORTO 2010 – A FLIPORTO E A CULTURA DO DIÁLOGO

A sexta edição da Festa Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto), que acontece entre os dias 12 e 15 de novembro, valoriza a cultura do diálogo através do diálogo entre culturas. Os diálogos culturais são fundamentais para uma maior integração cultural entre países, culturas e etnias em um momento de grande tensão do mundo contemporâneo. A globalização econômica e financeira, juntamente com o progresso das tecnologias de comunicação e informação, têm tido impacto direto nas identidades culturais, colocando em risco também a diversidade cultural no mundo. As identidades nacionais, que têm, nas culturas nacionais, suas principais fontes, seguem uma tendência de desintegração. Novas identidades híbridas estão tomando seu lugar. Dialeticamente, algumas identidades estão sendo reforçadas pela resistência à globalização, num processo de tensão entre o local e o global e entre culturas. 210


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O que significa ser europeu num continente marcado não apenas pelas culturas de suas antigas colônias, mas também por outras culturas e povos oriundos de migrações ou diásporas pós-coloniais? O século XXI passou da diversidade como riqueza para a interculturalidade como problema. A crescente islamofobia na Europa, o conflito entre árabes e judeus, juntamente com as reações às diásporas pós-coloniais em vários países, são grandes preocupações do mundo contemporâneo. No seu livro Choque de Civilizações, o sociólogo Samuel P. Huntington previu que, depois da Guerra Fria, as disputas se dariam no terreno da cultura e da religião. Além de trazer a boa literatura e discutir as nossas raízes literárias, no decorrer da Fliporto iremos tratar dos conflitos interculturais travados no mundo contemporâneo. Um dos painéis, nesse sentido, é com o filósofo e sinólogo francês François Jullien e Kathrin Rosenfield, que tratarão do tema: Do Universal, do Comum e do Diálogo Entre Culturas. O Brasil, que é um país mestiço, marcado pela mistura de várias raças, deve ser motivo de estudos quanto à tolerância e ao convívio entre raças e culturas. Prescindimos de identidade, porque temos todas elas. Precisamos preservar essa grande qualidade nacional, evitando tentativas de fundamentalismos religiosos, como vimos nestas últimas eleições presidenciais. O Brasil pode ser um importante paradigma para uma aliança, e não um choque de civilizações e culturas. Como melhorar o convívio ou o diálogo entre culturas ou indivíduos, admitindo diferenças, sem discriminações, passou a ser uma das principais indagações do século XXI. Está no centro da vida contemporânea o desafio de construir pontes, diálogos construtivos de paz entre culturas que 211


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estão em choque real ou aparente, entre sociedades cada vez mais interculturais do que multiculturais. Somos “Di-versos”, como afirma o poema do músico brasileiro Marcelo Yuka, pois, “entre a revolta e a obediência, crescer com diferenças e crescer pelas diferenças será sempre entender que o amor é a nossa maior forma de inteligência”. O Brasil não é mais o país do futuro: é do presente. Nossa grande tarefa é preservar a cultura do diálogo entre as religiões e etnias existentes no Brasil e tentar alargá-la para o mundo. Essa é, certamente, a maior contribuição que o Brasil pode dar ao mundo contemporâneo. E a Fliporto, como festa e pensamento, busca esse propósito. 03/11/2010

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FLIPORTO EM OLINDA

Na última quinta-feira, recebi, com muito orgulho, da Câmara dos Vereadores de Olinda, a medalha e o diploma Aloísio Magalhães em razão da realização da Festa Literária Internacional de Pernambuco – Fliporto. Em seu sexto ano, a Fliporto já é considerada a maior festa literária do Nordeste. E, este ano, ao trazermos o evento para a mágica cidade-patrimônio de Olinda e primeira capital brasileira da Cultura, temos como meta tornar o evento ainda mais inclusivo e democrático. Olinda é um lugar que inspira cantores, artistas plásticos, músicos, compositores e artesãos, serve de fonte para diversas criações literárias. Sua atmosfera, mix de paz e história de grandes conflitos, é dotada de uma grande singularidade. Como disse o cantor e poeta pernambucano Alceu Valença, Olinda tem uma paz semelhante à dos mosteiros da Índia e, com o seu mistério, é capaz até mesmo de romper o silêncio das madrugadas.

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Essa cidade já sedia eventos importantes, como a Mostra Internacional de Música de Olinda (Mimo), o Cine-PE Festival do Audiovisual, o Abril pro Rock e o Olinda Arte em Toda Parte. Agora, abre suas portas e janelas para a literatura. A natureza, os casarios seculares, a tradição e os ares de cidade colonial fazem do Sítio Histórico de Olinda o porto perfeito para o vasto mar da criação literária e dos diálogos culturais. Dentro das mais variadas formas de se construir a literatura, podemos observar o valor que têm os diálogos culturais. A globalização influencia diretamente nas identidades culturais, e por isso estamos voltados a trazer debates cujo objetivo central é uma maior integração e diálogo entre países, culturas e etnias, em um momento de grande tensão do mundo contemporâneo. Um dos povos mais influentes em Pernambuco foram os judeus, visto que contribuíram de forma significativa à formação intelectual e cultural do Estado, especialmente no século XVII. Por essa mistura de culturas e raízes que forma o povo brasileiro, escolhemos como tema da Fliporto 2010 A Literatura e a Presença Judaica e o Mundo Ibero-americano. E, no ano em que são comemorados os 90 anos de Clarice Lispector, a Fliporto dedica essa edição a essa fabulosa escritora. Conhecida e amada pelos leitores brasileiros, Clarice é dona de uma incrível biografia e bibliografia. A escritora, que passou a infância e adolescência entre Recife e Olinda, de origem ucraniana e família judaica, representa a síntese da contribuição do mundo judaico no Brasil. A Fliporto é hoje um evento amplo, pois trata não apenas de literatura, mas do mundo digital, do cinema, da gastronomia, tudo interagindo com a literatura e os livros. O poeta Jaci Bezerra disse que “Olinda é um volume de sonho e luz aberto nas prateleiras do ar”. E essa beleza de Olinda nos enche de

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alegria e nos deixa a certeza de que esse “casamento cultural” entre a Fliporto e Olinda será duradouro. Estamos não apenas com uma nova casa, mas com um jeito novo de caminhar. 08/11/2010

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FLIPORTO 2011 – UMA VIAGEM AO ORIENTE

Os diálogos entre o Ocidente e o Oriente remontam à Antiguidade e até mesmo antecedem o momento em que palavras como Oriente, Ocidente e diálogos são inventadas e passam a se tornar correntes nas teorias e nos vocabulários principalmente ocidentais a esse respeito. Quem se volta para o século XIX, por exemplo, tem um rico painel disso tudo. Mas é inegável que, no século XXI, esses diálogos ganham contextos e contornos tanto mais ricos quanto instigantes, não só em decorrência das profundas modificações geopolíticas e econômicas, mas nos aspectos culturais subjacentes. De qual oriente e de qual ocidente se fala no século XXI? Assim mesmo no singular, ou as pluralidades e simultaneidades já superam as uniformidades? E a chamada globalização acentuou ainda mais as particularidades regionais? Por essas e outras, percebe-se facilmente como a palavra diálogos, nesse caso, não pode ser dissociada das “questões”

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que evoca e provoca. Várias são recentes; muitas, recorrentes; e outras tantas, permanentes, desde que o mundo é mundo, desde que a humanidade é a humanidade e cuida de construir suas referências, pois não há como negar também o aspecto de construção mental de ocidentes e orientes, mesmo para quem não tenha lido uma linha sequer de Edward Said. O que pensa e sente o Ocidente a respeito do Oriente pode tornar mais fáceis ou mais difíceis tais diálogos. Mas isso é um caminho de mão dupla, tem provado a História: das Cruzadas à Primeira Guerra Mundial. O diálogo, no entanto, estimula algo que suplanta as diferenças, aponta para a convergência e o entendimento. Pensar e agir dialogando e que esses diálogos contribuam para tornar ocidentes e orientes mais próximos — sem imposições, obviamente, de parte a parte — é o que os escritores vêm fazendo ao longo do tempo. Num saudável jogo de influências, sem angústias. O Brasil, potência emergente do Ocidente, cada vez mais dialoga com as suas equivalentes no Oriente e no Extremo Oriente. E a constante abertura ao diálogo é uma das características mais marcantes do seu povo. A palavra encontro, em sua densa ambiguidade, vem mostrando a todos os que se interessam pelo diálogo OcidenteOriente como o tema vai muito além do chamado conflito de civilizações, que ainda tem sua voga, mas que, crescentemente, tem-se obrigado a conviver com o seu oposto, num mundo em que já não pode pregar hegemonias e eixos maniqueístas sem constrangimento. Para além dos livros já clássicos que trataram ora da decadência do Ocidente ora da do Oriente, novos estudos de novos au-

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tores, no riquíssimo cenário da cultura, da economia e da política na atualidade, têm ensejado a pensadores, intelectuais, escritores e a todos os “espíritos livres” novos e fascinantes desafios. O Oriente há muito não pertence ao universo mental europeu. Na era das multilateralidades, os velhos cânones e concepções são suplantados a cada dia, e isso se verifica cada vez, por exemplo, que um estudioso se debruça sobre a descolonização ou que um escritor a lança no complexo reino da sua imaginação e a discute como algo vivo, pulsante. O poeta árabe Adonis disse que “O Oriente e o Ocidente só existem na geografia. No Ocidente há orientes mais orientais que no próprio Oriente. Não há diferença entre ambos, salvo geograficamente. O humano é o que me interessa”. É uma das perspectivas possíveis. O que tudo isso tem a ver com romances, contos, poemas e ensaios no Brasil e em outras partes no novo cenário que o mundo (se) desenha é o que vai mostrar a Festa Literária Internacional de Pernambuco em 2011. 15/11/2010

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MALBA TAHAN

A Matemática é, sem dúvida, uma das ciências mais fascinantes de toda a história da humanidade. É comum ouvirmos falar em diferentes correntes de ensino usadas por professores, estudiosos e admiradores dessa arte. Mas, enquanto disciplina obrigatória nos currículos escolares, o ensino da Matemática adota metodologias que tornam a matéria antipatizada por parte expressiva das crianças. O ex-presidente Lula, em seus oito anos de governo, desenvolveu atividades e programas para dar mais oportunidades de crescimento intelectual e profissional a crianças, jovens e adultos brasileiros. Apesar de existir muito antes do governo Lula, a Olimpíada Brasileira de Matemática teve muita repercussão e visibilidade durante os últimos anos, especialmente na gestão de Eduardo Campos no Ministério da Ciência e Tecnologia. Quando penso nisso, vejo que é de extrema importância trazer à tona a iniciativa e homenagear obras e projetos que

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visem a construção de um melhor raciocínio lógico através de um nome inovador na pedagogia: Malba Tahan — um precursor da arte de tornar a Matemática algo mais prazeroso para o lúdico universo infantil. Ele, eterno incentivador do imaginário infantil, muitas vezes ignorado pelas escolas convencionais, escreveu diversos livros didáticos primorosos, que servem tanto para estudantes quanto para professores. Suas obras tratam de temas como o desenvolvimento da capacidade de pensar diante de situações cotidianas num contexto de multidisciplinaridade, pois, como afirmou o próprio Tahan, “é preciso, ainda, não esquecer que a Matemática, além do objetivo de resolver problemas, calcular áreas e medir volumes, tem finalidades muito mais elevadas. É um dos caminhos mais seguros por onde podemos levar o homem a sentir o poder do pensamento, a mágica do espírito”. Tahan, enquanto professor, ensinou Matemática a crianças e jovens de diferentes idades de uma maneira única, pois tornava, ao seu modo, coisas que antes pareciam difíceis em coisas simples, fáceis e claras. Como escritor, passava, através das letras, toda sua técnica de ensino e ideias. Malba Tahan, que na realidade se chamava Júlio César de Melo e Sousa, faz uma grande falta a todos os alunos e professores não apenas do Brasil, mas de todo o mundo. A obra mais fascinante desse homem foi O Homem que Calculava — reunião de problemáticas implícitas nas aventuras de um matemático persa. A ficção e a ciência dos números tornaram-se escopo para uma das expressivas fontes da arte de ensinar. Certa vez, o não menos admirável Monteiro Lobato classificou o livro como uma obra que “ficará a salvo das vassouradas do Tempo como a melhor expressão do binômio ‘ciência-ima-

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ginação’”. É com o objetivo de relembrar esse carioca falecido no Recife, em 1974, que a Festa Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto) o escolheu como homenageado de um dos espaços de maior importância do evento. Iremos realizar uma olimpíada de leitura em homenagem à obra de Malba Tahan, homenageado da nossa Fliportinho 2011. 17/01/2011

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CONFERÊNCIAS E DISCURSOS

“Eu quase nada sei, mas desconfio de muita coisa.” Guimarães Rosa 223



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DISCURSO DE POSSE NA ACADEMIA PERNAMBUCANA DE LETRAS

A Tradição e a Renovação

Chego à Casa de Carneiro Vilela reafirmando a minha confiança nas possibilidades do ser humano qualquer que seja a diversidade das condições que enfrente, pois nutro a crença de que o homem é a medida de todas as coisas, como já o afirmaram os filósofos da Antiguidade Helênica. Recordo que Solano Trindade, no Poema do Homem, expressa: “Desci à praia/ Para ver o homem do mar/ E vi que o homem/ É maior que o mar./ Subi ao monte/ Pra ver o homem da terra./ E vi que o homem/ É maior que a terra”. O grande espetáculo sempre foi e será o homem. Confesso-me um realista esperançoso. Jamais perdi a esperança, embora haja tantas dificuldades no caminho. Talvez os desafios e as dificuldades façam o próprio sentido da caminhada, ao resistir e continuar. 225


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Por se tratar de uma instituição centenária, acredito que todo escritor, ao tomar posse na Academia Pernambucana de Letras, adquire, de súbito, uma história de cem anos. Logo, o seu olhar não é dirigido para frente, “na direção do relâmpago” — como diria Shakespeare — mas para trás, para a tradição que remonta ao seu fundador: Carneiro Vilela. O Bruxo do Cosme Velho, o imortal Machado de Assis, cujo centenário estamos comemorando neste ano, ensinou, em seu discurso, quando da fundação da Academia Brasileira de Letras, que a Academia precisa da constância de todos, que a tradição é o primeiro voto e que ele deve perdurar. Tradição no sentido daquilo que resiste ao tempo. Em carta a Joaquim Nabuco, legenda da terra pernambucana, chegou a afirmar que o passado é a melhor parte do presente. O escritor Alceu Amoroso Lima, esse pernambucano notável, disse, ao tomar posse, em 1935, também na Academia Brasileira de Letras, que são complementares e de duas ordens as funções literárias da Academia: a de tradição e a de manutenção do que ficou de bom; de criação e de renovação da cultura nacional. Esta é a lição atual e permanente, edificada sobre os juízos do mundo, sempre tão singulares e, às vezes, tão paradoxais, como lembrava Machado de Assis. Paulo Maciel e a Cadeira 25

É honroso e desafiador para mim ocupar a Cadeira 25 da Academia Pernambucana de Letras, sucedendo ao saudoso Paulo Maciel, que foi mestre erudito no plano formal e no plano intelectual e das ideias: foi professor, pró-reitor, reitor, diretor do antigo Instituto Joaquim Nabuco, presidente do Instituto do Açúcar e do Álcool, secretário de Estado, deputado 226


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federal, membro da Academia Pernambucana de Letras e, sobretudo, um humanista e uma das maiores inteligências que Pernambuco produziu. Pensador refinado e homem de ação pronta, esse é o perfil sintético desse pernambucano ilustre e completo, cuja memória se incorpora ao legado da cultura brasileira. E que dizer dos vários outros ocupantes desta Cadeira 25, como o patrono Martins Júnior e o fundador Layette Lemos? O fundador Layette Lemos foi presidente da APL no período entre 30 de dezembro de 1930 e 29 de março de 1932. O patrono Martins Júnior ocupou a Cadeira 13 e, quando da reforma de 1921, passou a ser o patrono da Cadeira 25. Membro da Academia Brasileira de Letras, eleito em 13 de maio de 1902, também lá escolheu a Cadeira 13, cujo patrono é Francisco Otaviano de Almeida Rosa, porém, não chegou a tomar posse. É patrono da Cadeira 20 da Academia Amazonense de Letras. Valdemar de Oliveira, pai desse homem admirável que é o acadêmico Reinaldo de Oliveira, foi o acadêmico que permaneceu por maior período na presidência da Academia Pernambucana. Ocupava a Cadeira 25, e sua atuação marcou definitivamente a dramaturgia pernambucana e brasileira. Maximiano Campos, Meu Pai

Acredito que, ao ingressar na Academia Pernambucana de Letras, de certa forma também é de Maximiano Campos, meu pai, esse pertencimento. Maximiano era um grande leitor. Amigo dos livros. Era escritor.

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Há duas maneiras, entre várias, de um pai marcar o destino de seus filhos: uma delas é pela banalidade da repressão, a outra é pelo exemplo de dignidade e retidão. Há duas maneiras, entre outras, de um escritor inscrever-se na História: uma delas, pela adesão ao modismo e à concessão ao mercado; a outra, pela preservação do humanismo e pelo rigor no exercício da expressão literária. Em um tempo de vulgaridade artística, que confunde talento com mercadoria, são poucos os que, como meu pai, Maximiano, preservaram, na ficção e na poesia, a sua visão humanista primordial e reta, por meio da qual desenhou a sua vida. Registro, neste momento, a grande e inexcedível importância para mim e Eduardo, meu irmão, da nossa mãe Ana, que sempre foi uma pilastra e um grande exemplo em nossa vida, sabendo transformar em benefício todas as coisas que a existência lhe proporcionou, amando-nos com o mais verdadeiro amor materno, aquele que se exalta em desinteresse e se aurifica na devoção, nas crises, nos arroubos e nas elevações da alma não estreita, onde couberam todas as coisas essenciais. Aqui estão também Luís Felipe e Marco Antônio Campos, filhos amados, a quem dedico esta noite, na certeza de que a vida é um processo de continuidade. Pernambuco – Quixote da Federação, Moldura da Minha Vida

Pernambuco é a moldura de minha vida. Pernambuco, “a terra de mais luz da Terra”, na expressão de Pinzón, referida pelo poeta João Cabral de Melo Neto no seu poema O Sol em Pernambuco, vem assistindo a um verdadeiro renascimento cultural com fulcro na (re)valorização de seu diversificado patrimônio artístico-cultural e histórico. 228


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Pernambuco vem mostrando a força e a criatividade de seu artesanato, de sua culinária, de sua música, de suas festas populares, das suas artes plásticas e cênicas e de sua literatura. Constantemente, exposições são inauguradas, livros são lançados e relançados. Feiras e festas literárias são realizadas. É tempo de Pernambuco. O sociólogo Renato Carneiro Campos, meu tio, em ensaio intitulado Joaquim Nabuco: um Agitador de Ideias, afirma que, se tivéssemos que escolher um estado na Federação para representar D. Quixote, esse estado seria Pernambuco. “Não lhe faltam magreza, loucura e sonho para tanto.” Realmente, tio Renato tinha razão: Pernambuco, com suas revoluções, com seus movimentos libertários abafados a ferro e a fogo, é uma espécie de D. Quixote da Federação. Em virtude dos seus ideais republicanos, manifestados em 1817 (República de Pernambuco) e 1824 (Confederação do Equador), o território da antiga Província de Pernambuco perdeu as comarcas de Alagoas e do São Francisco. Contudo, Pernambuco resistiu e nunca deixou de sonhar e de lutar. Alceu Amoroso Lima disse, certa vez, que o Brasil, quando está em crise, se volta para cá, para a região cortada pelo Rio São Francisco, que é o Rio da Integração Nacional. Dedico um grande amor a Pernambuco, que carrego dentro de mim. Mas foi na obra do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade que encontrei os versos que traduzem esse meu sentimento:

[...] carregamos as coisas, moldura da nossa vida, rígida cerca de arame, na mais anônima célula,

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e um chão, um riso, uma voz ressoam incessantemente em nossas fundas paredes.

Aqui, em nossas terras, o poeta cristão-novo Bento Teixeira fez o primeiro poema do Brasil (Prosopopéia). Daqui saíram as primeiras imagens do Mundo Novo. Aqui, forjou-se o berço da nacionalidade. Pernambuco não se cansa de sonhar e de criar. Que o sol de Pernambuco e a força de sua cultura e de seus ideais libertários, forjados na luta de gerações, acendam uma luz no meio da escuridão e nos mostre o caminho do reencontro entre o Estado e a Nação. Entre uma periferia marginalizada e uma minoria elitizada que não compreende a maioria, que precisa ser integrada à sociedade, evitando-se que essa minoria viva cada dia mais assustada com a escalada da violência. Na realidade, justiça é o novo nome da paz. A Paixão pelo Livro

Peço licença agora para falar sobre a paixão pelos livros, que carrego comigo. Costumo afirmar que o livro é o maior amigo do homem e pactuo com quem já definiu que o livro é apenas um instrumento para encontrarmos a verdade por nós mesmos. Marcel Proust, nesse sentido, revela: “todo leitor é, quando lê, o leitor de si mesmo. A obra é um instrumento que lhe permite discernir o que, sem ele, não teria visto em si”. O livro atravessou eras de guerras e perseguições, sobreviveu e, mais ainda, saiu fortalecido. Nesta época de incertezas, de uma grave crise econômica global, a cultura e o livro continuam sendo as armas para se manterem os valores básicos do homem acima dos conflitos econômicos e de credo. 230


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O livro é uma forma de resistência e reexistência numa globalização que só trouxe uma maior integração do mundo e, paradoxalmente, uma maior desintegração do homem. É, no saber de Mario Quintana, um agente de mudança, e esclarece o poeta: “Os livros não mudam o mundo. Quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas”. A Poesia como Companheira

Tenho a poesia como companheira. Gostaria de fazer uma reflexão sobre a palavra poética, sua força ancorada na miríade de portos de beleza que resgata o homem sequestrado pela multidão de ilusões que o confundem e o diminuem. E diminuir o homem foi a exagerada medida do século XX. Precisamos criar um novo humanismo para o século XXI, resgatando a verdadeira identidade do homem em harmonia com a natureza. No turbilhão da violência globalizada, das mudanças vertiginosas, de acontecimentos funestos — como o 11 de setembro americano, a guerra do Iraque e entre árabes e judeus, os atentados na Inglaterra e na Espanha —, a palavra poética é porto seguro, morada sagrada do homem, desde Homero. Ela toma o partido da humanidade, insere-se de corpo, alma e palavra na ideologia do homem. Quase todas as nações, observa Voltaire, têm tido poetas antes que tivessem alguma outra sorte de escritores. Homero floresceu antes que aparecesse um historiador. Os cânticos de Moisés são os mais antigos monumentos dos hebreus, comenta Antônio Joaquim de Mello, em Biografia de Alguns Poetas e Homens Ilustres da Província de Pernambuco, de 1856. 231


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Acredito não ser redundante dizer que a grande arte, seja qual for a forma em que se expresse, a exemplo de um belo poema, sempre nos leva a Deus, tecendo o livro da vida como se fosse uma oração. Imortal é a Arte

Tenho dito que a vida é um ato contínuo de despedida. Tudo o que fazemos, de certa forma, tem um ar de despedida, porque, ao contrário dos outros animais, temos consciência da morte. Temos consciência da morte e dessa ilusória imortalidade que talvez nos confira o que deixamos de nós no que criamos, no que escrevemos, no que realizamos. A vida é curta, mas a arte é longa, já diziam os gregos. Não sei se a vida é longa ou é pequena. Sei que a vida é bela e precisa ser vivida plenamente. Em Palavras de Pórtico, texto resgatado pela organizadora Maia Aliete Galhoz, na primeira edição (1960) de Obra Poética, da Aguilar Editora, o poeta Fernando Pessoa radicaliza essa proposição: “Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: ‘Navegar é preciso; viver não é preciso’”. Quero para mim o espírito dessa frase, transformada a forma para casar com o que eu sou: “Viver não é necessário; o que é necessário é criar”. E prossegue o grande poeta português: “Não conto gozar a vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo”. O homem, ao criar, se assemelha a Deus, que é o grande criador. Aproxima-se da eternização através de sua arte. Hoje, eu aprendi a contar melhor o tempo, esse relógio trágico e mágico que marca a vida. O tempo não se conta pelas 232


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folhas que murcham e caem das árvores ao longo do caminho, mas pelos frutos colhidos ao longo da vida. O tempo não é mais que um momento, mas será eterno se for belo o gesto. O COMPROMISSO DO ESCRITOR

Albert Camus, por ocasião do recebimento do Prêmio Nobel de Literatura de 1957, falou sobre o papel do escritor: [...] em todas as circunstâncias da sua vida, obscuro ou provisoriamente célebre, posto a ferros pela tirania ou livre de se exprimir por algum tempo, o escritor pode tornar a encontrar o sentimento de uma comunidade viva que o há de justificar, com a única condição de aceitar quanto puder os dois encargos que fazem a grandeza da sua profissão: o serviço da verdade e o serviço da liberdade. Já que sua vocação é de reunir o maior número de homens possível, ela não pode acomodar-se à mentira e à servidão, que, onde reinam, fazem proliferar as solidões. Sejam quais forem as nossas pessoais enfermidades, a nobreza da nossa profissão radicar-se-á sempre em dois compromissos difíceis de manter: a recusa de mentir sobre o que se sabe e a resistência à opressão.

Reafirmo esse compromisso ao tomar posse na Cadeira nº 25 da Academia Pernambucana de Letras: o da busca da verdade e o da defesa da liberdade. Finalizo com versos do meu livro Portal de Sonhos: “Pode não ser paz a morte nem tranquila a vida, há sonhos no homem que nem a eternidade limita”.

Hoje, o sonho é realidade, entro na Casa de Carneiro Vilela. Muito obrigado pela atenção e que Deus abençoe a todos nós. 10/12/2008

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MAXIMIANO CAMPOS: O HUMANISTA E O ESCRITOR

A literatura tem sido, ao longo da História, o painel por onde passam a utopia e a decepção da condição humana. Desde a angústia existencial, o sonho e a paixão de cada um até a grande tentativa de liberdade cívica e paz social, a criação literária vem registrando perguntas e respostas para as grandes questões da vida. Na verdade, ela tem sido sempre, em seus vários gêneros, o testemunho e a vontade na busca imaginosa de um mundo melhor. Embora algumas linhas da produção literária não sejam, às vezes, passíveis de serem caracterizadas como edificantes, pelo seu pacto com a transgressão, de um modo geral o resultado da palavra artística é sempre humanista, no sentido de que a pessoa não é o meio, mas o fim, o valor em si mesmo. Em discurso sobre a dignidade do homem, Pico della Mirandola declarou: Dizem os escritos dos árabes, venerandos padres, que, interrogado, Abdala Sarraceno, sobre qual fosse aos seus olhos o es-

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petáculo mais maravilhoso neste cenário do mundo, tinha respondido que nada havia de mais admirável do que o homem!

Um escritor humanista sabe que a literatura não é apenas o desenvolvimento de certas qualidades da linguagem, mas, sobretudo, aquilo que obedece à sua paixão e ao seu sonho. O realismo humanista vê no homem, além da convergência de fatores sociais e ideológicos, a sua dignidade de pessoa, os ideais éticos, a lenda, o mito, o imaginário — tudo o que é humano. Ele não rechaça a herança do romantismo nem a conquista formal do modernismo, mas luta pela concretização das grandes aspirações humanas, reafirmando os seus valores eternos. Em diálogo com um de seus editores, Saramago afirmou que: [...] ao romance e ao romancista não restava mais que regressar às três ou quatro grandes questões humanas, talvez só duas, vida e morte, tentar saber já nem sequer donde viemos e para onde vamos, mas simplesmente quem somos [...]

O que leva à conclusão de Alípio Maia e Castro de que esse escritor português, muito mais do que ser contador de histórias, quer ler o que há dentro do homem, desse homem encurralado por um uso irracional da razão. Porque o homem não se limita ao conhecimento: ele é um ser dotado de vontade e nele palpita algo de imaterial, mas que é real. Saramago defende a bondade como o princípio básico de uma relação autenticamente humana e acrescenta: “somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos”. A propósito da ocasião do falecimento de um amigo que vivia sempre irradiando amizade, ele escreveu: “o homem bom é, no fim das contas, a única coisa que vale a pena ter sido”. Essa é uma declaração a favor da ética humanística, que implica a ideia de respeito ao homem. A nossa época, segundo Saramago, sofre de uma anestesia 235


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do espírito, que faz da ausência de valores o valor e da hipocrisia pública e privada uma regra. A ética que ele propõe diz, sinceramente, que os gritos do mundo chegaram, enfim, aos ouvidos dos escritores, diante do monstruoso compromisso social com o dinheiro e o poder, assim como a obsessão formalista da escrita, pois o mundo também espera que os escritores não se esqueçam de ser cidadãos de vez em quando: há um momento em que compreendemos que todo fingimento é infame, o que revela sua indignação diante da hipocrisia, a qual não deve se confundir com o mistério inerente à vida íntima e secreta do escritor. Como encontrar a paz mental necessária para escrever, indagou Naguib Mahfouz, Prêmio Nobel de Literatura em 1988: Sim, como pode um homem procedente do Terceiro Mundo encontrar a paz mental para escrever estórias [...] e, exatamente como os cientistas se esforçam para limpar o meio ambiente da contaminação industrial, os intelectuais devem se esforçar para limpar a humanidade da contaminação moral.

Para acreditar em Dostoiévski, quando diz que a beleza salvará o mundo, devemos ter na memória Joseph Brodsky, segundo o qual a arte é uma arma que não volta atrás: a literatura está adiante do progresso e antecipa a História, cujo instrumento principal é o clichê; cada nova realidade estética faz com que a realidade ética do homem seja mais precisa. As colunas em que se apoia a literatura são habitualmente a estética e a ética: se a primeira exige vigilância e um mínimo de qualidade de expressão, a segunda diz respeito ao pensamento, à dignidade, à liberdade. Ser ou escrever? Haveria uma maneira de alcançar uma maior compreensão do ser senão através da arte? Podemos considerar de fato a literatura, ao modo de Anthony Burgess, como a exploração estética do mundo? Jorge Luis Borges disse 236


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uma vez que escrevia para os amigos e para passar o tempo. A palavra é o homem, a palavra está com o homem: conforme T. S. Eliot, quando um poeta fala a seu povo, as vozes de outros criadores em outras línguas que tenham tido influência nele também estão falando. Caros companheiros, amigos e leitores de Maximiano, Saudado em 1971 por Gilberto Freyre como futuro mestre na especialidade do conto, meu pai nasceu no Recife e começou a escrever muito cedo, desde os tempos do Colégio São João, onde fez os estudos secundários, e abriu-se o jovem Max para o mundo do conhecimento e da literatura. Com o passar do tempo, foi criando o seu círculo de amigos escritores em livro: Tolstói, Kazantzákis, Hemingway, Ariano Suassuna, José Lins do Rego, Gilberto Freyre. No final da década de 1960, publica o seu primeiro romance Sem Lei nem Rei; e, na década de 1970, o livro As Emboscadas da Sorte, juntamente com a novela O Major Façanha, no Rio de Janeiro, pela editora Arte Nova. No início dos anos 1980, publica, pelas Edições Pirata, A Memória Revoltada, em coedição com a Civilização Brasileira. Ao todo, são doze os títulos em circulação: Sem Lei nem Rei (romance), As Emboscadas da Sorte (contos), As Sentenças do Tempo (contos), As Feras Mortas (contos), A Loucura Imaginosa (novela), O Major Façanha (novela), A Memória Revoltada (novela), O Lavrador do Tempo (poesia), Cartas aos Amigos (epistolografia), Do Amor e Outras Loucuras (poesia), Os Cassacos (novela), Na Estrada (contos), este último reunindo toda a sua obra em contos. Considero uma das linhas de força da obra de meu pai a sua formação e postura humanista. A celebração do ser humano atravessa muitas pontes em direção a vários mundos e cosmovisões, porque o homem é um ser natural, espiritual e consciente. 237


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O humanista secular, mais racionalista, é geralmente associado a cientistas e acadêmicos comprometidos com a ética e a dignidade do ser humano: agnósticos, recusam explicações transcendentais; o humanista marxista diverge do materialismo dialético de Hegel e se baseia nos manuscritos da juventude de Marx, que dá destaque à questão da consciência. Essa linha de pensamento surgiu no século XIV para renovar o padrão tradicional dos estudos nas universidades medievais, voltados para a Teologia, a Medicina e o Direito, transmitindo uma concepção estática e hierárquica da sociedade. O humanismo atualizou os estudos tradicionais incluindo a poesia, a Filosofia, a História, a Matemática, a eloquência, o domínio das línguas clássicas e, posteriormente, o árabe, o hebraico e o aramaico: estudavam-se autores da Antiguidade Clássica, excluindo os textos medievais; considerava-se mais perfeita a cultura desenvolvida no paganismo, exaltava-se o indivíduo, definindo assim o antropocentrismo. Sofreram perseguições: Dante e Maquiavel, que foram exilados; Campanella e Galileu, presos e torturados; Thomas Morus, por ordem de Henrique VIII, foi decapitado; Giordano Bruno, condenado à fogueira. Michelangelo terminou seus dias doente e solitário, mas não colocou os véus sugeridos pelo papa sobre os corpos nus que, na Capela Sistina, havia pintado. Essa atmosfera faria surgir a figura de Erasmo, autor de Elogio da Loucura (1511), e Thomas Morus, autor de Utopia (1516), que iria inspirar A Cidade do Sol, de Campanella, e A Nova Atlântida, de Francis Bacon: comunidades sem conflitos onde as pessoas compactuam uma sociedade feliz. Petrarca e Boccaccio deram sequência à poesia de Dante no que ela tem de moderno. A literatura e o humanismo do século XIV ocupam um papel de destaque no processo de renovação cultural que agitava a Europa; atravessando o século XVI em Portugal, na Espanha 238


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e na França e terminando na Inglaterra, no século XVII. Depois, encontraremos Luís de Camões e o seu poema épico Os Lusíadas (1572) e, mais adiante, o dramaturgo William Shakespeare (1564–1618) a colocar dúvidas em suas peças trágicas sobre a eficácia da racionalidade. De modo que é importante verificar uma linha evolutiva na tarefa de colocar o homem no centro do valor e do conhecimento: daí considerar-se a diferença existente entre o humanismo grego de Sócrates, o humanismo medieval de Agostinho, o humanismo renascentista de Descartes, o humanismo esclarecido de Kant, o humanismo iluminista dos enciclopedistas franceses, o humanismo teológico de Teilhard de Chardin, o humanismo materialista de Marx, o humanismo existencialista primordial de Kierkegaard, o humanismo pós-moderno de Heidegger e Sartre. Caros companheiros, amigos e leitores de Maximiano, Olhemos ao redor e nos reconheçamos entre nós. A alucinação do Quixote é estar cinco degraus acima do senso comum. É ter, em seu interior, imagens e personagens povoando a cotidiana solidão. Olhemos ao redor: como são os escritores tão fortes e frágeis em sua enorme capacidade de se emocionar, de imaginar, de pressentir. Olhemos ao redor: trata-se de uma linhagem que atravessa geografias e tempos históricos; trata-se de mundos particulares encerrados, desde a infância, em arcas do sótão ou do porão; trata-se de trapezistas dando a volta sobre si mesmos no circo iluminado, de onde todos já se foram, indiferentes. Olhemos ao redor: seu riso desesperado pela falta de diálogo, essa enorme galeria de sensitivos a que se chama história da literatura. A essa sucessão de rostos eternizados pelo sofrimento universal diante da injustiça e da irracionalidade humana.

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Olhemos ao redor: este é um encontro com Maximiano. Através do depoimento de seus amigos, uma maneira de tê-lo entre nós, através das imagens daqueles que, à sua maneira, conheceram cada recanto de seu verbo, do seu silêncio, do seu coração. Peço licença para encerrar evocando suas palavras: Meu amigo, a realidade nem sempre é a verdade [...] eu sou o que sonho e aqui, nesta sala, o meu sonho anda solto, fera liberta, desembestada em descampos sem cerca nem dono. Esse vai ser o meu castelo, nele vou colocar o mundo verdadeiro, o descompromissado com as etiquetas, os horários, as convivências interesseiras. É assim mesmo: a realidade quis me fazer medo. O tempo quis e quer acabar comigo. Sei que há dois grandes circos armados por Deus: o da vida e o da morte. O danado mesmo é o preço que se paga para tomar parte no espetáculo. Os que têm fé afirmam que o circo da morte é limpo e asseado. Mas ninguém, ainda, conseguiu sair dele e voltar para contar aos que estão no circo da vida como é o espetáculo. Pode até ser o silêncio. Não sei por quê, mas acho que o tempo é um palhaço maldoso e meio sem graça. E a realidade é uma velha atriz cansada, com uma maquilagem agressiva e a mania de dar más notícias. E a nossa atuação nisso tudo? Nisso tudo não, no circo da vida. Obrigam a gente a entrar na jaula do leão, dar saltos mortais, aplaudir o palhaço, ser o palhaço, e tudo isso sem repouso, mudando sempre de lugares. Pois bem, não saio desta sala [...] a realidade não vale grande coisa [...] a realidade é o que estou conversando com você, os móveis que você está vendo ao meu redor, a hora que o seu relógio está marcando, as minhas feições, o timbre da minha voz. Mas o meu sonho você desconhece [...] O meu sonho? Olhe para pessoas feito você, que vivem a fazer perguntas e indagações, os sonhos são feras mortas. As explicações, às vezes, matam. Mas você não vai matar os meus sonhos. As minhas feras estão vivas e libertas, correndo nos descampos ensolarados da imaginação. Sei que, um dia, os meus sonhos serão feras mortas. Mas eu carregarei comigo essas feras até que o tempo coloque cercas nos descampos e apague todas as lem240


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branças. Um homem vale o que valem as suas feras […] O meu sonho agora está liberto, e o meu silêncio me apazigua. O meu silêncio, essa fera de estimação [...] E o meu silêncio? Ah, está solto no sonho, nesse descampo ensolarado, nessa imensidão das impossibilidades conquistadas porque imaginadas. A conversa para aqui. Mas, na verdade, ela continua, e as feras viram rebanhos, o tempo acovardado vai fugir. O tempo é um covarde, foge sempre, arrastando a mocidade. Estou sonhando, por isso me calo. Os pensamentos partem na imaginação rumo ao outro circo. Vou entrar lá, vou entrar naquele circo, no outro, onde os espetáculos não devem ter tristes intervalos. O intervalo, o último, é agora, pronto, já estou prestes a ultrapassá-lo. Depois, talvez meus amigos entendam que não quis ofendê-los, é que o outro circo estava abrindo para mim as suas portas. E a morte é a única certeza que pode trazer alguma novidade.

A novidade de hoje é esta festa, caros companheiros, amigos e leitores de Maximiano. Em homenagem a todos, faço a leitura do poema escrito pelo meu pai há quarenta anos: Sem lei nem rei, fiz uma opção danada: tudo ou nada. Terra firme ou mar profundo, dia claro ou noite alta. Sem lei nem rei, teci minha própria armadura, da solidão fiz moradia, da liberdade fiz procura. Sem lei nem rei, do aço desse chão e da luz do sol, fiz duas esporas para fazer correr o meu destino vão.

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Sem lei nem rei, sem ofício e sem profissão, finquei raízes neste chão. Canto quando quero, e, se o meu canto não escutam, não paro nem desespero. Sem lei nem rei, nada tenho, mas sei o que quero. Desejo cantar a minha terra, suas cores fortes, o seu verão. Plantar-me neste chão. Sem lei nem rei, corto às esporas a vida que galopa, seguro pelas rédeas a solidão quando sufoca. Sem lei nem rei, sei que, para quem luta, não há derrota, há apenas a morte ou a vitória. Discurso proferido no lançamento do vídeo Sem Lei nem Rei – Maximiano Campos, de Marcelo Peixoto, em 16 de abril de 2007, no Instituto Cultural Lula Cardoso Ayres

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A POESIA E O CANGAÇO

Agradeço pelo convite feito pelo presidente Marcos Vilaça para falar sobre Literatura e Cangaço, tendo destacado, para falar sobre o tema, a poética do cangaço. Começo com os versos do poeta pernambucano Carlos Pena Filho, através de um trecho da poesia chamada Episódio Sinistro do Capitão Virgulino, dedicada a Jorge Amado e Odorico Tavares: Veio o sol imperecível/ e iluminou toda a vila,/ pôs luz no ar e no medo,/ na carne, no pó, na argila./ Banhou de luz um vaqueiro/ que vinha de uma fazenda,/ parou na almofada de uma/ avó que fazia renda./ Desceu ao chão e secou,/ sangue rubro derramado/ brilhou nos botões da farda/ do cadáver de um soldado./ Na meia-manhã, a vila/ preparava um pelotão/ para sair pelos campos/ afora, em perseguição./ Mas norte, sul, leste e oeste,/ pra toda a parte é sertão,/ e nele ninguém descobre/ Virgulino Lampião.

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A poesia popular e erudita no Nordeste cantou o cangaço. Nomes como Leandro Gomes de Barros, Francisco das Chagas Batista, João Martins de Athayde, Ariano Suassuna, Jorge de Lima, César Leal, Doryan Gray Caldas, Maximiano Campos, Bráulio Tavares, Alexei Bueno, Carlos Newton Júnior, Ascenso Ferreira, João Cabral de Melo Neto, Marcus Accioly, entre outros, são alguns dos que declamaram este forte símbolo da região nordestina do nosso país: o cangaço. Todos esses autores, reunidos em uma seleção organizada pelo professor Carlos Newton Júnior, foram muito além dos estereótipos e da ficção criados em torno desse tema. Lançaram a essas poesias, comumente retratadas na literatura de cordel e em xilogravuras, um olhar erudito e, ao mesmo tempo, popular, um olhar de fascínio. Até mesmo o mineiro Murilo Mendes, de longe, geograficamente, das terras nordestinas, escreveu sobre o cangaço de Lampião em seu poema Fuga, que começa dizendo: Lampião fugiu. Lampião./ Quem é que prende Lampião?/ Aviador nem dinamite/ não liquida Lampião./ Nem polícia nem marinha./ Nem os “secretas” de Deus./ Ninguém segura Lampião./ Quem te viu e quem te vê?/ Lampião corre que corre./ Lampião nunca que morre,/ nem ao menos no jornal./ Lampião rouba os tesouros,/ oferece aos jejuadores/ lá na ponta do Sertão.

Esse verso inicial demonstra o olhar de Mendes em relação a uma situação que ultrapassa as fronteiras territoriais, que engloba o Brasil e o mundo com as suas experiências e histórias, que parecem transcender o plano físico, de tão sublimes e poéticas. Por outro lado, a poesia popular, feita pelos que convivem diretamente com a matéria revelada nos versos, é também inestimável para alimentar a nossa cultura literária e difundir essa 244


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grandiosa temática para o resto do mundo. O cordel é a própria literatura viva, um forte símbolo da identidade nacional, que também se apresentou à sociedade como um veículo condutor de informação e notícias e, posteriormente, tornou-se uma essencial fonte de pesquisa histórica e sociológica, marcada pelo valor do seu conteúdo e pela beleza da sua estética. Mesmo com a impressão precária e a presença marcante da oralidade, sem muita preocupação com a forma linguística do texto, o cordel é o símbolo da genialidade dos seus criadores e quebrou barreiras ao adentrar no cotidiano das pessoas com baixa escolaridade, através das suas vendas realizadas em feiras e mercados. Possui uma narrativa, porém, que não tem uma definição única. Ela é formada por várias marcas que trazem originalidade e um sentimento de identificação com os seus leitores. A poesia e os heróis populares, desde a sua origem, preocuparam-se em mapear a alma do povo, como mostrou Ariano Suassuna através do emblemático personagem João Grilo, do seu Auto da Compadecida. Na poesia e na vida, portanto, populares e escritores se mesclam na arte de viver e retratar a memória popular do povo brasileiro. O popular e o erudito se unem em prol da preservação da cultura brasileira, a favor da natureza testemunhal proposta pelas histórias do cangaço. Cangaço que nasceu na região semiárida do Nordeste do Brasil e que, em meio a períodos secos, formou homens revoltados com a miséria que os cercava e com a exploração imposta pelos latifundiários da época. Eis, portanto, o surgimento do cangaceiro, figura que deixou profundas raízes no contexto sócio-histórico da Região e um legado carregado de conhecimento ao mundo. 245


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Os cangaceiros se caracterizavam, principalmente, pela organização, agindo em verdadeiros bandos com a proposta de desarticular a classe dominante, o que misturava o sentimento de barbárie com heroísmo entre os locais. O que poucos sabem, porém, é que o próprio Virgulino Lampião foi promissor na poética do cangaço. O sertanejo era um bom repentista, domava a arte de fazer versos de improviso e usava dessa ferramenta para narrar seus feitos, humilhar os seus adversários e exaltar os que lutavam com ele. Das cidades do Nordeste para o mundo, Lampião tornou-se o personagem preferido dos cordelistas, chegando, ainda, a ser manchete no jornal americano The New York Times. Após sua morte, o Capitão Virgulino se perpetuou como um mito do cangaço e, até hoje, é um ser poético, pela sua bravura e coragem expressas nas poesias, populares ou eruditas, de muitos escritores. Nos poemas, uma viagem histórica, com versos escritos por poetas atuais e da época do próprio Virgulino Lampião. Uma interseção chama a atenção dos leitores da poesia do cangaço: a riqueza de detalhes. A descrição das roupas, dos armamentos e das batalhas participadas por esses homens, verdadeiros representantes da força nordestina, alimentam o imaginário popular. A clareza na narração dos poemas sobre cangaço torna possível vivenciarmos um importante capítulo da história do nosso país, muito bem representado não só pelo famoso Lampião, mas também por outros cangaceiros, como, por exemplo, Jesuíno Brilhante, batizado como Alves de Mello Calado, e mais conhecido como O Cangaceiro Romântico entre todos os que relataram a sua biografia. O pernambucano Antônio Silvino foi outro representante do cangaço, cujo reinado se estendeu de 1896 a 1914, terminando com a sua prisão em Taquaritinga. O seu sucessor, Sebastião 246


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Pereira e Silva, ou o comandante Sinhô Pereira, antecedeu Virgulino Ferreira, o famoso Lampião, rei do cangaço, que se tornou cangaceiro aos 17 anos de idade. Ao seu lado, uma importante representante da ala feminina, Maria Bonita. Ora justiceiros, ora assassinos, os cangaceiros enriqueceram o universo literário da poesia, transportando leitores a uma época marcada por feitos que fascinam, sejam eles verdadeiros ou fictícios. Newton, em sua obra, cita o “ciclo épico do cangaço”, marcado por folhetos como A Morte de Lampião e de seus Companheiros e Perseguição de Lampião no Inferno, do escritor José Pacheco, entre outros vários títulos que marcaram o cangaço na literatura. Interpretar e expressar o cangaço na poesia é tarefa árdua, que exige dos poetas a sua transformação em veículos de expressão do imaginário popular, reconstituindo, assim, a maneira de o sertanejo reagir ao mundo. A poesia viaja, portanto, em um espaço de reflexão sobre a existência e atuação do herói cangaceiro em sua luta de redenção. O ensaísta e historiador nordestino Frederico Pernambucano, em sua obra Estrelas de Couro – A Estética do Cangaço, retrata a beleza, visual e poética, existente na vida e obra dos cangaceiros, visível aos olhos mais sensíveis, capazes de perceber a sua essência. O amigo e autor do ilustre livro Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil, Pernambucano, no nome e na origem, foi um dos promissores nos relatos dessa marcante época vivida por tantos nordestinos. Soube revelar ao mundo, com grandeza e sapiência, a realidade dos que lutavam para sobreviver no Nordeste brasileiro. Em Guerreiros do Sol, o escritor faz uso do cordel para registrar os fatos e descrever os acontecimentos da nossa história. Em um trecho do livro, ele fala: “Desde o princípio do mundo/ que há homem valentão./ Um Golias, um Davi,/ Carlos 247


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Magno, um Roldão,/ um Oliveira, um Joab,/ um Josué, um Sansão./ Eu não chamo valentão/ o cangaceiro vagabundo/ que quer ser um Deus na Terra./ Um primeiro sem segundo/ que vive a cometer crimes/ e ofender todo mundo”. Meu pai, Maximiano Campos, também enveredou pelo caminho da literatura no cangaço e escreveu Pobre Cavaleiro. Em um trecho da poesia, descreve um diálogo com Lampião: Jagunço em Canudos, vi Antônio Conselheiro arrastar a sua forte sina de onça e fera ferida,/ o amor de viver/ no desprezo do medo,/ de não aceitar a miséria feita prisão da vida./ Encontrei Virgulino lutando feito um cão bravio e perguntei:/ — Capitão, o que é feito do seu sossego, da sua perdida paz?/ — Nas estrelas do meu chapéu, já escrevi o meu desgarrado destino;/ Hoje, respondo como o fogo do meu rifle ao que quiseram fazer da vida: medo, soçobro, sofrer triste, fraco e mofino.

Já em seu livro primeiro, Sem Lei Nem Rei, Maximiano Campos propôs um retrato realista sobre as raízes do cangaço. Através de uma narrativa a respeito da gênese de um cangaceiro chamado Antônio Braúna, Maximiano mostrou ao mundo, em 1965, a dimensão social do cangaço nordestino e o modo como era feita a política na época da República deste país. Tornou-se, portanto, uma obra de resistência e denúncia, sem engajamento político, mas que trazia à tona questões polêmicas através de uma prosa poética. Retratou, ainda, o cotidiano do município de Mimoso, como explicou em um determinado trecho que dizia: Assim vai levando a vida o povo de Mimoso. Entre as divergências do coronel da Barra e do coronel Joaquim Nascimento Wanderley. Não podendo aguentar o ônus de política tão

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violenta, os habitantes vão se filiando a um outro coronel e, em torno dele, vão gravitando, acompanhando as suas vitórias e as derrotas na política.

Um pequeno trecho, mas que se faz grandioso em sua proposta de descrever e revelar ao mundo a história dos cangaceiros e seus contemporâneos. A literatura popular e erudita chegam, portanto, a um ponto em comum: a busca pela retratação da presença do cangaço no imaginário social brasileiro. Através das rimas, das palavras, dos versos e da harmonia trabalhada nas letras, os escritores do cangaço exprimem sentimentos, valores, ideias e retalhos significativos da história do nosso país em suas páginas. Com um valor documental e histórico inestimável, os poetas cumprem os seus papéis de verdadeiros artistas e desbravadores desse território rico e mítico chamado cangaço, que se fez também poesia. “Palestra na Academia Brasileira de Letras, no seminário Brasil, Brasis”

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CLARICE LISPECTOR: UMA GEOGRAFIA FUNDADORA

“A DONA DE CASA QUE ESCREVIA”

Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever e nasci para criar meus filhos. O “amar os outros” é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca [...]. Clarice Lispector (Crônicas publicadas no Jornal do Brasil entre 1967 e 1973. Pedro Karp Vasquez.)

É com esse recorte literário de extrema e profunda beleza que saúdo todas as mulheres, neste dia consagrado a homenageá-las, uma vez que Clarice Lispector desafia o próprio cânone literário e obriga os críticos e estudiosos a reconhecerem 250


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uma “literatura feminina” em sua obra. É a grande biógrafa Nadia Batella Gotlib que afirma: “Ninguém escreveu como mulher como Clarice. Não só porque [na sua obra] os personagens na maioria são mulheres, mas porque o modo de ver tem um olhar feminino que um dia a teoria da literatura vai tentar definir, talvez consiga”. Utilizo aqui as lentes de aumento com que essa escritora brasileira transfigurava o cotidiano, os objetos e acontecimentos, para ressaltar, neste dia, a importância da presença feminina no mundo. Olga Borelli assim descreve a mulher Clarice: “Ela tinha suas obrigações diárias como qualquer dona de casa. O ato de escrever não intervinha nesse cotidiano”. E a definiu como “a dona de casa que escrevia”. Na farta iconografia de diversas publicações em livros, revistas e jornais, eletrônicos ou não, podemos observar que ela escrevia sentada numa cadeira da sala de visitas, com a máquina de escrever portátil sobre o colo e os filhos brincando à sua volta. Dizia que não queria que as crianças tivessem uma “mãe de gabinete”. Assim, faço desta palestra, no Dia Internacional da Mulher, uma homenagem não apenas a Clarice Lispector, mas a todas as mulheres representadas por Clarice, seja em seu universo ficcional ou reunidas nele. A PAIXÃO POR CLARICE

Clarice Lispector é a personalidade literária mais multimídia do Brasil. Já inspirou dissertações de mestrado, discos, shows, filmes, exposições, pinturas, comunidades na internet. De acordo com uma pesquisa internacional realizada pelo projeto Conexões Itaú Cultural – Mapeamento da Literatura Brasilei251


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ra no Exterior, depois de Machado de Assis, o nome de Clarice Lispector é o mais lembrado pelos tradutores, professores e bibliotecários estrangeiros. Desde que Clarice faleceu, uma legião de fãs cresce a cada ano. São, sobretudo, jovens que fazem dos livros de Clarice Lispector seus companheiros de cabeceira e gostam de registrar essa paixão na internet. Os números são significativos: no Google, há mais de 1 milhão de opções para Lispector no mundo, sendo cerca de 900 mil páginas em português. Há ainda 642 mil referências para blogs e 57 mil para fotologs. No Orkut, já existem mais de 150 comunidades associadas ao seu nome, num total de 260 mil participantes. Quando acessamos no YouTube o vídeo da entrevista que ela concedeu a Júlio Lerner, constatamos mais de 100 mil acessos em quatro anos de exibição no canal. Mais que isso, há por volta de quatrocentos comentários de exaltação e elogios bem próprios dos internautas, na sua maioria jovens. Alguns recortes dessa entrevista, exibiremos aqui. Aos que estranham tamanho sucesso no mundo virtual, é bom lembrar que, segundo Lígia Sardinha Forte, no livro Informação e Tecnologia: Conceitos e Recortes (2005), organizado por Antônio Miranda e Elmira Simeão: “[...] a realidade virtual procura maximizar a realidade em si e trazer com ela todas as sensações experimentadas pelos usuários em sua vida real”. Nada mais a par da literatura de Clarice que a maximização da realidade, suas lentes de aumento no cotidiano imperceptível, intensificando-o e detendo, em uma rede fina, a sua parte sólida, o fluido espesso das aparências, para deixar entrever o “instante”, o estado crítico da sensibilidade e da urgência. Nada mais virtual que o estado lírico para o qual é arremessado o leitor durante a leitura da obra dessa brasileira-ucraniana, orgulho da literatura em língua portuguesa. 252


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A obra de Clarice continua cativando leitores de todas as partes do mundo. Além das línguas mais conhecidas, a exemplo do inglês, francês, italiano, alemão e espanhol, a autora também já foi traduzida em línguas como croata, coreano, finlandês, sueco, hebraico, grego, tcheco, russo, catalão, turco e japonês. Mas, além de sua escrita insinuante e eminentemente autobiográfica, Clarice Lispector também conquistou fãs por sua extrema beleza. Gregory Rabassa, o renomado tradutor americano de Gabriel García Márquez, Jorge Amado, Mario Vargas Llosa e da própria Clarice, classificou-a como uma das mais influentes escritoras dentre os escritores brasileiros, afirmando que Clarice foi o Kafka da ficção latino-americana. Mas, ao falar sobre a autora, Rabassa não resumia seus comentários ao aspecto literário. “Clarice era tão bela. Fiquei chocado ao encontrar uma pessoa rara que se parecia com Marlene Dietrich e escrevia como Virginia Woolf ”. (The New York Times, 11 de março de 2005). Recentemente, o crítico americano Benjamin Moser lançou o ensaio biográfico Clarice, pela Cosac Naify, tendo ampla repercussão. A Editora Rocco lançou, também recentemente, uma seleção de 22 contos feita por leitores e organizada por Teresa Monteiro, intitulada Clarice na Cabeceira. Foram reeditadas, em livro, as suas crônicas no Jornal do Brasil. “Que mistério tem Clarice/ pra guardar-se assim tão firme no coração?”, pergunta Caetano Veloso. “Ler Clarice é viver em permanente estado de paixão”, responde Teresa Monteiro.

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“CRIEI-ME NO RECIFE”, “ ESTÁ TODO VIVO EM MIM”

Ao chegar ao Recife, com 5 anos de idade incompletos (1925), Clarice já viajara muitas milhas: para nascer, obrigou a família emigrante a uma estada na aldeia Tchetchelnik, em 10 de dezembro de 1920. Chaya (Clarice), que em hebraico significa vida, os pais e as duas irmãs ainda passariam por Bucareste para chegar ao porto de Hamburgo, quando só então atravessariam o Atlântico e chegariam a Maceió, em 1922. Fugiam dos pogroms, ataques violentos aos judeus que ocorreram em muitas partes do mundo, antes mesmo da Segunda Guerra Mundial. Na cidade alagoana, todos da família, exceto Tania, mudariam de nome, por iniciativa do pai, Pinkhas, que passaria a se chamar Pedro; a mãe, Mania, Marieta; a irmã, Leia, Elisa; e Chaya, Clarice. Mesmo assim, seu sobrenome, Lispector, causaria estranheza aos menos avisados sobre a “flor-de-lis no peito” que ela era. Singular em suas origens, Clarice acentuaria seu destino emigrante: no Brasil, além de Maceió e do Recife, viveu no Rio de Janeiro e em Belém do Pará; no exterior, durante 16 anos, transitou entre várias cidades, residindo por períodos mais significativos em Nápoles (1944), Berna, Suíça (1946), Torquay, Inglaterra (1950) e Washington, EUA (1952). Portanto, seria difícil fundar uma geografia para a escritora de origem judia se não a ouvíssemos afirmar: “Morei no Recife, morei no Nordeste, me criei no Nordeste”. Clarice faz essa afirmativa em entrevista a Júlio Lerner. Justificava assim a tônica de seu romance então inédito, A Hora da Estrela, que surpreenderia a todos com uma abordagem sociorregionalista à qual nunca se rendera, mesmo no início de sua carreira, quando ainda em voga as propostas literárias da Geração de 30. Os críticos já apontavam, nessa época, indícios de um modo de 254


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ser mais direto, mais explícito na sua produção, e Nadia Batella Gotlib sugere que a autora se ficcionalizara em seus últimos trabalhos: deixa de ser apenas a escritora para ser a persona que ela própria criava. A simultaneidade espacial e temporal de seus romances entra em perfeita simbiose com essa perspectiva de sua biógrafa brasileira. São as declarações dela mesma e a abordagem desse seu último romance, A Hora da Estrela, com protagonistas nordestinos imigrantes no Rio de Janeiro, que permitem apontar a importância de uma geografia fundadora da escritora Clarice Lispector, que afirma: “Desde que comecei a ler e escrever, eu comecei também a escrever pequenas histórias”. Sua alfabetização se deu no grupo escolar João Barbalho, no Recife, aos 7 anos de idade. Aos 9, ela já escrevera uma peça de três atos, que escondeu de todos entre as estantes. Revelaria depois: “Era uma história de amor”. Nesse mesmo ano, morre sua mãe, que, dentre os da família Lispector, foi a maior vítima da violência dos pogroms. Já se encontrava, então, no Collegio Hebreo-Idisch-Brasileiro, onde termina o terceiro ano primário. Estuda piano, hebraico e iídiche. Em 1931, ingressa no Ginásio Pernambucano, e a “tímida e ousada” Clarice já apresentava seus trabalhos para publicações em jornais locais. Foi recusada muitas vezes, mas não deixava de enviar suas histórias, embora nunca tenha sido agraciada com os prêmios concedidos às crianças leitoras; talvez — observa a crítica literária Ermelinda Ferreira — “porque seus textos já focalizassem menos o enredo do que a reflexão”. A essa altura, as dificuldades financeiras da família já eram menores, e mudaram-se do pequeno sobrado da Praça Maciel Pinheiro para o segundo andar do sobrado número 21 da Rua da Imperatriz. No térreo, funcionava a Livraria Imperatriz e, da sacada, avistava-se o Rio Capibaribe. 255


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Em 1935, Clarice já estaria em terras cariocas, mas anotava: Meu pai acreditava que todos os anos se devia fazer uma cura de banhos de mar. E nunca fui tão feliz quanto naquelas temporadas de banhos em Olinda, no Recife. Meu pai também acreditava que o banho de mar salutar era o tomado antes de o sol nascer. Como explicar o que eu sentia de presente inaudito em sair de casa de madrugada e pegar o bonde vazio que nos levaria para Olinda ainda na escuridão?

Por toda essa vivência incrustada para sempre na nossa paisagem e, mais ainda, pelo fato de que foi em nossas escolas que ela aprendeu a ler e escrever em língua portuguesa, aqui inaugurando a sua literatura no nosso idioma, ouso dizer que o Recife é a geografia fundadora da escritora Clarice Lispector. No ensaio biográfico já citado de Benjamin Moser, intitulado Clarice, destacamos dois trechos sobre esse pertencimento ao Recife: Passaram três anos em Maceió, dos quais Clarice não teria lembrança alguma; tinha 5 anos de idade quando se mudaram para o Recife, no qual ela sempre pensaria como sua cidade. “Pernambuco marca tanto a gente que basta dizer que nada, mas nada mesmo, nas viagens que fiz por este mundo, contribuiu para o que escrevo. Mas Recife continua firme”. “Criei-me no Recife”, ela escreveu em outro lugar, “e acho que viver no Nordeste ou Norte do Brasil é viver mais intensamente e de perto a verdadeira vida brasileira [...] Minhas crendices foram aprendidas em Pernambuco, as comidas que mais gosto são pernambucanas”.

Meses antes de morrer, Clarice Lispector fez sua última viagem ao Recife, para dar uma palestra na universidade. Ela insistiu em se hospedar no Hotel São Domingos, na esquina da Praça Maciel Pinheiro, onde ficava o velho banco judaico. Passou horas na janela olhando para a pracinha onde crescera. Para a 256


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pequena Clarice, conforme ela lembrou numa entrevista, aquele jardinzinho, onde os motoristas de táxi flertavam com as empregadas domésticas, parecia uma floresta, um mundo onde ela escondera coisas que nunca mais conseguiu recuperar. Depois de todos aqueles anos, só a cor da casa tinha mudado: “Minha lembrança é a de olhar pela varanda da Praça Maciel Pinheiro, no Recife, e ter medo de cair: achei tudo alto demais [...] Era pintada de cor-de-rosa. Uma cor acaba? Se desvanece no ar, meu Deus”. Um entrevistador perguntou: “Sabemos que você passou toda a sua infância aqui no Recife, mas o Recife continua existindo em Clarice Lispector?”. Ela respondeu: “Está todo vivo em mim”. O referido ensaio biográfico do crítico americano busca associar a trajetória de Clarice à questão de pertencimento, como se sua produção literária refletisse de forma cifrada a sua existência plena. Dessa forma, a sua origem ucraniana, a sua criação no Recife e a sua moradia no Rio de Janeiro são tão importantes quanto a leitura de clássicos como o Lobo da Estepe, de Hermann Hesse, e Crime e Castigo, de Dostoiévski, que a influenciaram. O Recife precisa reivindicar Clarice. A casa onde ela viveu na Praça Maciel Pinheiro deveria ser um memorial. Precisamos mudar a relação do Recife com Clarice Lispector e passar a adotá-la plenamente. Neste ano, são 90 anos de nascimento de Clarice, e a Fliporto 2010 fará uma homenagem especial a essa grande escritora. FELICIDADE CLANDESTINA: OLHAR DA INFÂNCIA

Muitas anotações preciosas encontram-se em Clarice: Fotobiografia, de Gotlib. No entanto, para descobrir a paisagem do Recife no universo ficcional, o livro Felicidade Clandestina (1971) traz narrativas exemplares, quase autobiográficas, da menina e 257


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da adolescente Clarice revisitada pela então mãe de dois filhos, Pedro e Paulo, com um casamento desfeito, variados níveis de dificuldades socioeconômicas contrastantes com o reconhecimento internacional que já obtivera, além de graves episódios comprometedores de sua saúde. Felicidade Clandestina é o nome de um dos 25 contos que dá título à obra. Além dele, a paisagem recifense insere-se acentuadamente em Restos do Carnaval, Cem Anos de Perdão e Os Desastres de Sofia. São narrativas em primeira pessoa povoadas pela arguta menina de 9 anos, que “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante”, ao ter em mãos o primeiro volume de Monteiro Lobato; pela primeira máscara que permitia esconder-se dela mesma; pelo seu professor “grande e silencioso, de ombros caídos”; pelas rosas roubadas das mansões não frequentadas pela Lispector hoje inserida em todas as geografias indimensionais de seus milhares de leitores no mundo. Detemo-nos na clandestina felicidade de Clarice. Sob suas poderosas lentes de aumento, surge a antagonista. “Mas que talento tinha para a crueldade. Ela era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.” Assim Clarice descreve a antagonista no conto, aquela que lhe negaria a felicidade: a primeira edição de As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. A partir dessa negação sistemática, instaura-se o processo kafkiano da revolução do ser estabelecendo novas relações com ele mesmo e com o mundo. Surge, então, a adolescente

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em um erotismo singular: “Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo ele, comendo-o, dormindo-o”. Daí o primeiro salto rumo à epifania na desrealização temporal: “[...] mas em breve a esperança de novo me tomava toda, e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas do Recife. Dessa vez, nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira. [...] Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso”. O roteiro cotidiano humilhante não é doloroso, a adolescente às voltas com o grotesco crispa-se, desequilibra-se e encontra-se com o essencial escondido dela mesma e desnuda a personagem cruel: “Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra” (grifos nossos). Eis aqui uma característica que permeia a obra de Clarice: desnudada a personagem, ergue-se a compaixão articulada por quem domina a ciência da dor, por quem já desceu aos seus próprios infernos. Se conjugarmos as inúmeras personagens de Clarice na extensão de sua obra, poderemos dizer que Macabéa, protagonista de A Hora da Estrela, talvez represente mais agudamente esse poder da narrativa de Lispector. Mergulhada no “eu” e no “outro”, a “menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas do Recife”, enfim obtém o objeto desejado: Não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo. 259


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Esvai-se o “não”, desrealiza-se o real. Eros apodera-se da cena e é todo sedução, personificação absolutamente pertinente à fabulação: Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois, abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga [...] Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina para mim. Parece que já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Esse conto revela uma constante na obra de Clarice: sua paradoxal profundidade narrativa em confronto com a linguagem simples, sem rebuscamento vocabular ou sintático, mas intensamente lírica e singela: “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante”. Mesmo no tônus da narrativa psicológica, aqui e ali surgem a paisagem recifense e muitas outras, coletadas na dolorosa viagem interior a que é compelido o leitor de Clarice. Fátima Quintas, em seu ensaio Clarice Lispector: Nervo Exposto, observa: “Ouso dizer que a literatura é uma autobiografia concebida sob o vórtice de fatos idealizados — a possibilitação do ser ou o imaginário do ser — e calcada em uma história assinada pelo nome do outro”. Em Clarice, o íntimo parece cósmico, o silêncio, o mais agudo dos gritos. Na consagração do instante, a definitiva epifania: “Eu acho que, quando não escrevo, estou morta”. PAIXÃO PELO LIVRO

A escolha do conto Felicidade Clandestina, que revela a paixão de Clarice pelo livro, foi também a maneira que encontrei para 260


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homenagear o grande bibliófilo José Mindlin, recentemente falecido, aos 95 anos, e, em nome dele, a todos e todas que compartilham dessa paixão. Clarice, aos 9 anos, já começara a escrever; Mindlin, aos 13, já iniciara sua coleção e, antes de partir (2006), doou grande parte dela à USP, dando origem à Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, uma prova de sua grandeza e de seu altruísmo, pois esse legado é um dos mais importantes do Brasil. São exemplos a serem lembrados e seguidos sempre, exemplos que acendem o orgulho de ser brasileiro e nos impulsionam a prosseguir nas fronteiras da luta pela cultura do nosso estado, do nosso país. É com esse sentimento que agradeço a todos pela paciência em ouvir-me neste Dia Internacional da Mulher, em que homenageamos Clarice Lispector e lembramos José Mindlin, compartilhando a homenagem com todas as mulheres neste dia tão especial. Muito obrigado.

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BIBLIOGRAFIA CONSULTADA FERREIRA, Ermelinda. Clandestina Felicidade: Infância e Renascimento na Obra de Clarice Lispector. Revista Cerrados. Universidade de Brasília, n. 24, ano 16, 2007. GOTLIB, Nadia Battella. Clarice: Fotobiografia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2009. LERNER, Júlio. Entrevista concedida por Clarice Lispector ao jornalista Júlio Lerner no programa Panorama, em 1977. Edição da TV Cultura. Os Trinta Anos Incríveis. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=9ad7b6kqy>. Acesso em: 20 fev. 2010. LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. Contos. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. MIRANDA, Antônio; SIMEÃO, Elmira. Informação e Tecnologia: Conceitos e Recortes. MONTEIRO, Teresa (org.). Clarice na Cabeceira. Rio: Rocco, 2009. QUINTAS, Fátima. Clarice Lispector: Nervo Exposto. Recife: Bagaço, 2007.

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DADOS BIOBIBLIOGRÁFICOS

ANTÔNIO Ricardo Accioly CAMPOS nasceu no Recife, Pernambuco, (25/06/1968). Diplomado em Direito pela UFPE. Advogado, especialista em Direito Empresarial e Eleitoral, notadamente nas áreas de Consultoria, Planejamento e Contencioso Tributário e Comercial, como também em Direito Público e Direito do Entretenimento. Associado à Noronha Advogados, com atuação em diversos países. Cofundador do Instituto de Direito Privado da Faculdade de Direito do Recife; membro e sócio benemérito da UBE-PE; conselheiro da AIP; palestrante honorário da Escola Ruy Antunes, da OABPE, na cadeira de Direito Eleitoral; conselheiro titular da 1ª Câmara do 2º Conselho de Contribuintes da Receita Federal; autor de artigos jurídicos e literários publicados em periódicos, revistas e jornais; detentor da comenda Dom Quixote da revista Cidadania e Justiça. Membro das Academias Pernambucana de Letras e de Artes e Letras de Pernambuco.


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Antônio foi um dos fundadores do Instituto Maximiano Campos (IMC), depositário do acervo literário e artístico do escritor Maximiano Campos, seu pai, prematuramente falecido, e também promotor e divulgador das culturas pernambucana e nordestina. Presidente do IMC, sociedade civil voltada para a valorização da cultura brasileira, especialmente dos valores literários, com ampla atuação em Pernambuco e na região nordestina, já apoiou a publicação de mais de cem livros. O IMC apresenta uma lista considerável de lançamento de livros de outros escritores e produções dele próprio, como a coletânea Pernambuco, Terra da Poesia: um Painel da Poesia Pernambucana dos Séculos XVI ao XXI, organizada pelo próprio Antônio Campos e por Cláudia Cordeiro, IMC/Escrituras, São Paulo, 2005; e Panorâmica do Conto em Pernambuco, lançada em 2007 e agora em 2ª edição. Também promove concursos, como o de contos, que classificou dez novos escritores de diferentes estados e resultou no livro O Talento com as Palavras, organizado pelo IMC/Edições Bagaço, 2006. Além disso, o IMC realiza eventos culturais, como a participação com a Casa das Letras no I Festival de Literatura de Garanhuns, 2006. Antônio Campos assinou contrato para realizar, através do IMC, a Festa Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto). Sob a sua curadoria, a Fliporto aconteceu em Porto de Galinhas, onde foi debatido o tema Integração Cultural da América Latina; seguido de Cultura Africana, Cultura Hispânica. No ano de 2010, em novo cenário, enfocou o tema Cultura Judaica. Como escritor, além dos livros, Antônio Campos é articulista, com coluna no Jornal do Brasil, Rio

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Antônio Campos

de Janeiro, e colaborador dos jornais locais, conferencista, contista e poeta. Estou consciente das dificuldades de reduzir uma nota biográfica de Antônio Campos. Dizer o quê do mentor, do dínamo de todos esses acontecimentos? Antônio não limita sua atuação a Pernambuco, pois, como foi noticiado, ele, acompanhado de Arnaldo Niskier, Ivo Pitanguy e Gilberto Freyre Neto, visitou Estocolmo para falar para acadêmicos suecos sobre o nosso país: “O Brasil, que é um país mestiço, marcado pela mistura de raças, deve ser motivo de estudos quanto à tolerância e ao convívio entre raças e culturas, quase uma ‘democracia racial’”. E conclui: “É preciso resistir à tentação fácil da xenofobia e do racismo de toda espécie. Diálogo é a palavra-chave do mundo contemporâneo: entre artes, etnias, religiões, culturas”. Visitar a Academia Sueca de Letras equivale a dizer: o Brasil existe e tem escritores. Antônio Campos traz de berço, no sangue, na alma, o gosto pela literatura e pelas artes transmitido pelo seu pai, o escritor Maximiano Campos, assim como a marca da luta, do desbravamento, da transformação do meio em que vive, herança de uma das maiores figuras políticas deste país, seu avô Miguel Arraes. Sendo este um bem de família, não podemos deixar de citar a figura do irmão, o governador Eduardo Campos, nem a obra que está realizando em Pernambuco. Bibliografia: Mensagens, seleta de artigos publicada pelas Edições Bagaço, 2ª edição, Recife, 2002; Pense S.A., acerca de planejamento estratégico e melhoria organizacional, Edições Bagaço, Recife, 2002; O Grande Portal, seleta de artigos e ensaios,

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Construtor de sonhos

Edições Bagaço, Recife, 2003; Direito Eleitoral – Eleições 2004, Edições Bagaço, Recife, 2004; A Arte de Advogar, Edições Bagaço, Recife, 2004; Viver É Resistir, Edições Bagaço, Recife, 2005; Pernambuco, Terra da Poesia, coletânea, em parceria com Cláudia Cordeiro, Editora Escrituras, São Paulo, 2005; Território da Palavra, Edições Bagaço, Recife, 2006; Panorâmica do Conto em Pernambuco, em parceria com Cyl Gallindo, Editora Escrituras, São Paulo, 2007; Portal de Sonhos, poesias, Editora Escrituras, São Paulo, 2008; [Em]Canto – A Voz do Poema (leitura de Antônio Campos), poesia em CD, Atração Fonográfica/IMC, s.d.; Clarice Lispector – Uma Geografia Fundadora, palestra proferida na APL quando da comemoração do Dia Internacional da Mulher, em 08/03/2010, Carpe Diem Edições e Produções, Recife, 2010; A Reinvenção do Livro, conferência proferida na UBE-PE, em comemoração ao Dia Internacional do Livro, em 23/04/2010, Carpe Diem Edições e Produções, Recife, 2010; Diálogos Culturais no Mundo Pós-moderno, realizado em Estocolmo, março, 2010, Carpe Diem Edições e Produções, Recife, 2010. Cyl Gallindo, Panorâmica do Conto em Pernambuco, 2010.

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Este livro foi composto e editado eletronicamente na fonte Garamond. Impressão em papel Pólen, 90 g/m², para o miolo e papel Triplex, 280 g/m², para a capa. Recife, junho de 2011.




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