Instantâneos: fragmentos da memória

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INSTANTÂNEOS fragmentos da memória

Margarida Leitão

INDEX ebooks 1ª edição, 2014


Ficha técnica Título: Instantâneos: fragmentos da memória Autor: Margarida Leitão Revisão: João Máximo, Luís Chainho e Patrícia Relvas Foto da capa: João Máximo 1ª edição, 2014 Versão 1.00 de 17 de fevereiro de 2014 © Copyright de Margarida Leitão, João Máximo e Luís Chainho, 2013 Todos os direitos reservados. Esta publicação não poderá ser reproduzida nem transmitida, parcial ou totalmente, de nenhuma forma e por nenhuns meios, eletrónicos ou mecânicos, incluindo fotocópia, digitalização, gravação ou qualquer outro suporte de informação ou sistema de reprodução, sem o consentimento escrito prévio do autor e dos editores, exceto no caso de citações breves para inclusão em artigos críticos ou estudos. INDEX ebooks www.indexebooks.com indexebooks.com@gmail.com www.facebook.com/indexebooks Lisboa, Portugal ISBN: 978-989-8575-34-0 (ebook)


Estou grata ao Miguel, ao João Roque e ao João Máximo, que foram os primeiros que leram algumas destas histórias, pela generosidade e disponibilidade, pelos comentários e sugestões que engrandeceram as histórias reunidas nesta coletânea. Aos meus amigos da blogosfera, este livro é para vós. Muito obrigada! Margarida Leitão


Instantâneos Porque te amo? … As manchas e os dedos … Na mira … Tudo isto, e o céu também … O café da aldeia … A morta … Noites de inverno … Azul … Ângelo e José … Felisbela … O meu tio Camilo … Quinta-feira, night and day … Abandono … Quando a loja fechou … César … Antigamente, aqui havia um cinema … A felicidade é intermitente … Moinhos de Vento … Sim! … Quero demais para estares longe … O senhor Janeiro … Os deuses devem estar loucos … Comigo, despido de medos maiores … Fanã … Abraço que cura … A virgem Maria … Natal … Eu quero-te na minha vida … Um presente envenenado … Esse olhar mole e felino … Frágua … Guloseimas ou travessuras … A outra face de Ricardo … Hello, Dolly … Linhas de amor … A mãe … O pai … Algodão-doce … No dia em que te esqueci … A camisola de caxemira cor-de-rosa … Plenitude … O César do tio Camilo


Porque te amo? (conto dedicado ao João Roque – 2013)

Lembras-te do primeiro dia em que nos conhecemos? Há tantos anos. Hoje, como naquela altura, a nossa vida continua a ser de encontros e despedidas. De cada vez que te afastas no aeroporto, o meu coração despedaça-se em mil pedacinhos e cambaleio sem forças como se fosse uma marioneta. A custo, resisto à vontade de gritar, ir no teu encalço, puxar-te por um braço e dizer uma e outra vez “Amo-te, amo-te!” E eu amo-te, meu amor, porque és a primeira folha de um novo livro, uma flor de canela no arroz-doce e o orvalho na macieira. Um raio de sol na minha pele, a brisa da primavera no rosto e o malmequer na lapela. Amo-te, porque trazes o sabor do pão-de-ló, o cheiro da terra molhada e o gosto da erva mordida. As estrelas no olhar, um noturno de Chopin no sorriso e o veludo da noite nos dedos. Amo-te na solidão da madrugada, na cama gelada e nos intermináveis dias cinzentos. Na mesa para um, no teu lugar vazio e na comida sem sabor. Amo-te no livro tombado, nas flores secas na algibeira e no lume apagado da lareira. Num cortinado afastado, no rosto encostado ao vidro e nas lágrimas de saudade. Amo-te em noites de insónia, nas mensagens gravadas no telemóvel e nos dias contados no calendário. Amo-te, porque chegas sem avisar e sorris-me à porta com um ramo de malmequeres. Porque és a minha rosa-dos-ventos. A minha âncora. E toda a vida.


A mancha e os dedos A rapariga tinha uma mancha roxa na face esquerda. Começava na pálpebra, descia pela maçã do rosto e terminava num pingo de cor junto ao queixo. Era como se Deus tivesse brincado com um tubo de guache e, a dado momento, tivesse carregado com um pouquinho mais de força, derramando um feixe de cor na pele alva. O rapaz tinha seis dedos na mão direita. Junto ao dedo mindinho, existia, mais pequeno, um outro. Talvez Deus se tivesse entusiasmado a brincar no barro e tivesse resolvido moldar um dedo extra à sua criação. Ele deslizou a mão de seis dedos pela face esquerda dela, como um dedilhar suavíssimo nas teclas de um piano, tocando uma melodia quase inaudível, ou como a espuma que sobeja numa onda rasteira e deixa um beijo tímido na areia. Ela fechou os olhos e esperou. Com a ponta dos dedos, ele desenhou a ternura naquela tela violácea, num coração cheio de amor e numa flor cujo caule terminava no canto dos lábios. Observo-os da janela, entre tragos de uma bebida. Protegiam-se da intempérie debaixo do toldo do bar. Antes de terem aparecido para se abrigarem da chuva, o anoitecer caía negro, chuvoso e triste. Naquele momento, como um fio de cor que escorrega por uma lata de tinta, de entre os seis dedos do rapaz que amavam a mancha roxa da rapariga, o amor explodiu num sorriso cor-de-rosa que coloriu os lábios dela e fez cintilar os olhos azuis dele.


Na mira Os olhos brilhantes observam os pombos saltitando no passeio enquanto debicam o farelo atirado da janela do rés-do-chão. Os ouvidos atentos captam os sons, a cabeça girando para a direita, seguindo o velhote do quiosque que refila com a velha que alimenta os pássaros, ‘Cambada de porcos que me borram as revistas!’, vocifera, abanando os braços. Parece um helicóptero que tenta levantar voo, com os braços compridos como duas pás sacudindo o ar, tapados pelas mangas do casaco escuro e largo. O olhar curioso deteta o frenesim do homem, andando de um lado para o outro, afastando as aves. ‘Maldita velha!’, resmunga ele, regressando ao cubículo. Ajeita as pilhas de jornais, volta a prendê-las com os oitocentos e cinquenta gramas de chumbo em forma de paralelepípedo. Aos diários generalistas seguem-se os desportivos, depois os sensacionalistas e, por fim, os semanários. Alinhados, muito direitos, como se esperassem o sargento para a revista diária. Do seu lugar, veem tudo isso, mas os olhos continuam a procurar outro alvo. Encontram-me sentada na esplanada do café ao lado do prédio. Descobremme a olhar para eles, com o pescoço erguido para a janela do segundo andar. Fixos em mim, os olhos enfrentam-me sem pestanejar, num duelo silencioso. Debato-me, o coração bate mais rápido, as narinas contraem-se e sei que estou perdida. Num golpe final, surge um sorriso malicioso. Baixo os olhos, rendida. Na mesa, deixo o dinheiro do café, e vou ter com ela.


Tudo isto, e o céu também (conto dedicado ao Miguel – 2013)

Conheci dezenas de países. Tenho quatro passaportes cheios de carimbos, uma estante repleta de guias de viagens e um armário com recordações. De todas as vezes, regressei a casa de mãos vazias. No ano seguinte, recomeçava. Planeava cuidadosamente o itinerário, pesquisava, entusiasmado, os locais possíveis para te encontrar. Seria dessa vez, dizia para mim, seria num museu no Cairo, numa ponte sobre o Sena, numa esplanada de um bar em Nova Iorque, num jardim em Tóquio. Estarias sentado sob uma cerejeira a ler o jornal vespertino. Conheci-te na cidade onde vivo, num pequeno livro de poemas que comprei numa feira de livros usados. Amei-te ao primeiro verso. Pesquisei o teu nome na internet, descobri o teu blogue, enviei-te uma mensagem e, duas semanas depois, estávamos frente a frente no aeroporto do teu país. Poisei a mala e suspirei de alívio. Ali estavas, finalmente. Guardo o momento em que te vi e me encontrei. Um gigante de olhos verdes e enormes braços que me envolveram longamente. A primeira noite de amor e um poema que eu sabia de cor sussurrado ao teu ouvido. As tuas lágrimas, uma dedicatória no livro, um beijo apaixonado e o café da manhã na varanda do hotel. Guardo tudo isto, e o céu também. Nesta noite estrelada, um cometa rasa o infinito. Vejo-te a sorrir, firmemente agarrado à poeira cósmica. Acenas. Regresso ao teu livro de poemas. Choro baixinho, recordando o momento em que te encontrei e te perdi.


O café da aldeia Aos fins-de-semana, íamos todos ao café. Descíamos o outeiro, passávamos a ponte, descíamos mais uma ladeira e virávamos à direita. Abríamos o desengonçado portão de ferro, que chiava nos velhos gonzos. De um verde azeitona descolorido pela passagem do tempo, vibrava da energia de milhares de mãos que, ao longo dos anos, o tinham agarrado. Era a entrada num novo mundo, o do café. A avó não saía do outeiro nos dias de semana. A caminhada era longa e esperava pelo regresso da minha mãe à aldeia, aos fins-de-semana. Os adultos colocavam a conversa em dia, entre a fumarada dos mata-ratos dos velhotes que, compenetrados, jogavam à sueca, e eu, o meu irmão, dois primos e, muitas vezes, um casal de irmãos da quinta em frente à nossa casa, os nossos companheiros de aventuras na infância, saíamos para a esplanada, após choramingarmos por caramelos e algumas moedas de cinquenta centavos. Com a boca cheia de doces que se prendiam nos dentes, circundávamos, excitados, a velha mesa de matraquilhos. De sobrolho franzido, as mãos crispadas, golpes ágeis do punho e manobras dignas de Chalanas de nove anos, defendíamos, entusiasticamente, a baliza e atacávamos a meio campo, cinzelando para a eternidade momentos de risos e gritos de vitória. Ao início da noite, regressávamos a casa, extenuados, mas satisfeitos. Tínhamos rostos afogueados e enganávamos a fome mastigando os últimos caramelos. Subíamos as ladeiras e tagarelávamos sem parar, ansiando pelo fimde-semana seguinte, quando, novamente, desceríamos para o café da aldeia.


A morta A tia-avó estava na casa-de-jantar. Como eu era muito pequena, não consegui ver o seu rosto, mas cheirei as flores que adocicavam o bafio daquela sala gelada onde ela repousava. Aos quatro anos, nada sabia sobre a morte, a não ser que fazia as mulheres vestirem-se de preto para sempre e usarem um medalhão ao pescoço com a fotografia do marido. Fiquei quieta a olhar as velhas, que sussurravam palavras inaudíveis aos meus ouvidos de criança, as bocas tapadas pelo xaile enrolado no rosto e nos ombros encurvados. Pareciam grandes pássaros negros, onde só se viam a ponta do nariz e os olhos enrugados e pequeninos. A avó ficou na companhia delas e eu regressei a nossa casa. Naquele dia, havia muita gente por lá; os primos do Brasil, de Lisboa, do Porto, adultos, a família que eu só conhecia dos retratos a preto e branco pendurados na parede do corredor. Curiosa, escutava-os, a sua conversa entretecendo-se num rendilhado de sotaques, como a linha de crochet que a avó enroscava no dedo e tecia com a agulha para criar delicadas rendas. Recordo-me de que me escondi debaixo da mesa da velhinha máquina de costura, ajoelhada sobre o grande pedal castanho de metal. Dez metros separavam-me da morta e eu, baloiçando-me ao som das vozes cálidas dos primos, fechara os olhos com muita força. Nesse momento, desejei que a tia-avó pudesse estar ali viva para sentir o calor da família, e não morta na sala gelada ao lado da nossa casa.


Noites de inverno Esperávamos sentados, bem juntinhos, no velho sofá castanho, embrulhados na quente manta de retalhos da avó Josefa. No meio de risadas nervosas e expectantes, mastigávamos grossas fatias de pão-de-ló, enquanto ouvíamos a música perfeita de um serão de inverno, longo e tenebroso, que era o soalho do corredor a chiar sob o peso do avô Sebastião. A labareda do candeeiro a petróleo desenhava sombras bruxuleantes na parede amarelada, e pela porta entreaberta da sala parecia que deslizavam garras afiadas. Por fim, pé-ante-pé, ele aparecia, usando o habitual casaco de malha aos losangos. Poisava o candeeiro em cima do baú, reduzia a chama azulada ao mínimo e aproximava-se da janela. Desviava a portada de madeira e percorria com o olhar temente a escuridão que cobria a serra. Os nossos olhos acompanhavam-no, garantindo que o ritual era cumprido à risca. O silêncio era interrompido apenas pelas respirações ofegantes de três crianças, cujos corações batiam desenfreadamente. Lentamente, o avô voltava a encostar a portada, sentava-se no cadeirão e repousava as mãos nos joelhos. A sua voz roufenha como um serrote enferrujado tentando cortar um ramito fresco de oliveira fazia-se, então, ouvir: – Estava escuro como breu e chovia a cântaros. Os lameiros ficaram alagados, os animais, assustados, remexiam-se no curral e foi à meia-noite, no cruzamento, junto ao cemitério, que o demo surgiu… Parava de vez em quando para tomar fôlego, como se procurasse a inspiração para as histórias tantas vezes contadas e que nós escutávamos, vibrando, como se fosse, sempre, a primeira vez.


Azul Todos os dias, eu passava por sua casa. Abria o portão e subia os degraus de pedra. Dava-lhe dois beijinhos, ela sorria e retribuía. Os seus lábios fininhos deixavam um vestígio húmido na minha cara. Eu dominava a impaciência e, porque a amava muito, não esfregava as marcas da sua doçura. Nas suas mãos, enrugadas e trémulas, vivia a ternura, e no rosto mirrado repousavam os seus olhos cobertos por uma névoa azul clarinha. Puxava, então, o banquinho vermelho de madeira, sentava-me de costas e esperava. Ela percorria devagar uma trança, acariciando os cabelos que se tinham soltado durante a noite. Desenrolava o elástico grosso, desmanchava a trança esquerda, e três longas melenas de cabelo negro ondulavam nas suas mãos. Começava a pentear-me lentamente, primeiro com os dedos magros e curvados, depois com a escova, marcando o ritmo de mais uma manhã serena, como eram então todas as manhãs. Perguntava-me como estava a avó, a mãezinha, os irmãos. Eu respondia que estavam bem, depois olhava para o céu, em busca dos dois traços de giz que riscavam o azul. Diariamente, passava um avião a jato lá no alto. Com o olhar, seguia-lhe o rastro, que se ia esfumando em pontos diáfanos, o avião desaparecendo lá ao longe. Ela voltava a entrançar o cabelo, enrolava o elástico na ponta e repetia os mesmos gestos na trança direita. Depois, eu encostava-me nos seus joelhos e ela descansava as mãos nos meus ombros, num remanso de mais uma manhã calma de verão.


Ângelo e José Eu queria muito que o papá me abraçasse e dissesse que estava tudo bem, que não era nada, que não tínhamos ouvido o grito da mamã, que entrou tão fundo dentro de mim que ainda hoje o oiço. Mas ele continuava sentado na sala, com o cigarro apagado nos lábios, alheado, e era eu quem abraçava o meu irmão José, de quatro anos. Era um menino pequenino demais para a idade, estava quase sempre doente e não conseguia andar direito. Caminhava como se tivesse um pêndulo dentro do corpo franzino, às vezes balançava para um lado, depois para o outro, parava e lá recomeçava, até as pernas, finalmente, se entenderem com a cabeça. Eu tinha que fingir que era a pessoa mais forte da sala, pelo que o apertava nos braços e lhe afagava as costas magras com as minhas mãos. As suas vértebras eram pequenos interruptores que eu massajava delicadamente um a um, como se, dessa forma, eu o pudesse recarregar de energia para o resto da vida. – Está tudo bem, tudo bem, a mamã vai ficar boa. Mas nada ficou como antes. O bebé tinha nascido com o cordão umbilical à volta do pescoço. A Georgina puxou-o de dentro da minha mãe e mostrou-o ao meu pai e ele olhou para a trouxinha sem vida e não reagiu. A Georgina proibiu-nos de maçarmos a mãezinha, que estava muito fraquinha, e disse-nos para fazermos companhia ao paizinho, e foi à mercearia telefonar aos meus padrinhos. Eles apanharam o primeiro comboio do dia seguinte e chegaram a meio da tarde, cansados e molhados, porque não havia ninguém na estação à sua espera e tiveram de esperar pela camioneta. O meu irmão Ângelo foi a enterrar num pequenino caixão branco tão leve como as asas de um anjo. A chuva era miudinha, fria, empapava os montes de terra que não tinham campas e eu agarrava com muita força a mão do José,


enquanto, com a outra, segurava o guarda-chuva. Não conseguia chorar. Não podia. Nos primeiros dias após a morte do Ângelo, a mamã passava o tempo a chorar. Eu e o José começámos a passar os dias em casa da Georgina, que era ao lado da nossa, porque a mamã precisava de sossego e era a madrinha que tomava conta dela. O papá passava os dias na taberna, com o meu padrinho a fazer-lhe companhia e a beber quase tanto como ele. Eu, por outro lado, só queria fugir da escola, porque a professora usava uma régua de madeira de cada vez que eu respondia mal e eu, nesses primeiros dias, estava sempre a responder mal. Com a morte do Ângelo, os meus padrinhos, que não tinham filhos, decidiram que a partir daí, iriam tomar conta de mim como se fosse sua filha. A mamã teria o José para cuidar, que precisava muito dela, pois era uma criança muito frágil. Também ouvi a madrinha queixar-se uma vez à Georgina que já estava farta de ver o padrinho sempre na taberna e a relojoaria fechada, os clientes a procurarem os arranjos noutro local. Pouco me recordo do que aconteceu depois. Tento puxar pela memória, mas tudo o que surge é um borrão: o meu irmão José agarrado a mim na estação, o comboio quase a partir, o meu pai a tentar puxá-lo sem sucesso, até perder a paciência, a gritar com ele e, num solavanco seco, a afastá-lo de mim para sempre: – Solta a tua irmã já! Virada para a janela, lutei contra as lágrimas durante quase toda a viagem, apertando o casaco molhado do choro do meu irmão. Por fim, desisti e deixeias escorrer pela cara, para se juntarem às dele. Uns dias depois, a madrinha matriculou-me na terceira classe, que eu tinha deixado a meio, e notou que o casaco estava com uma grande mancha de


muco seco no peito. Lavou-o com afinco, esfregando bem o tecido até o deixar como novo, fazendo desaparecer, para sempre, o único vestígio que me restava do meu irmão José. Nunca me esqueci do seu andar desajeitado e, quando tenho muitas saudades de casa, o seu choro acompanha-me e eu junto as minhas lágrimas às dele.


Felisbela Já não me recordo do seu nome. Era uma menina loira, magra e de olhos azuis e seria um ou dois anos mais nova do que eu. Vivia no nosso bairro com o avô, já de uma certa idade. Eu andava na primária e ela numa escola de ensino especial. Por vezes, brincávamos enquanto esperávamos a camioneta de regresso a casa, ao fim da tarde, na central de camionagem, enquanto o avô dela conversava com a minha mãe. Andava eu pelos meus doze, quase treze anos, e fomos viver para a cidade. No meu antigo bairro, eles lá ficaram, ela com o seu andar trôpego, sempre a sorrir, apesar dos dentes tortos, da fala arrastada e da espuma aos cantos da boca. Há muitos anos que não me lembrava dela. Aos poucos, começo a recordarme de pessoas que saíram da minha vida há muito tempo, que me disseram muito em determinada altura e que a distância, temporal e física, guardou numa gaveta da memória, pronta para ser aberta quando menos esperamos e mais precisamos. Lembrei-me de escrever uma história sobre essa menina, que perdi há muito tempo, mas que regressou em forma de doces recordações da minha infância. Será que é verdade o que dizem, que à medida que envelhecemos começamos a recordar um passado cada vez mais longínquo, procurando, assim, um tempo em que fomos mais felizes, o tempo da infância?

A cartolina A Felisbela tinha muitos problemas de saúde, não falava, andava com os pés metidos para dentro, encurvada, com um sorriso torto sempre presente no rosto, um bonito sorriso torto nos seus lábios molhados de saliva. Os olhos


límpidos, azuis clarinhos como um céu sem nuvens, engoliam tudo, casa, mãe, irmã, cão, gatos. Ela tinha nove anos quando eu entrei na primeira classe. Ao fim do dia, regressei a casa na companhia da mãe e ela já lá estava, com a avó. Abraçoume com muita força, apertando-me de encontro ao seu corpo magro, tão contente que não parava de dar gritinhos estridentes, balbuciando palavras incoerentes. A Felisbela ria muito, a saliva escorrendo pelo queixo e molhando a camisola com o Rato Mickey estampado. Eu puxei-a pela mão e ela, alta, muito mais alta que eu, franzina e pequena demais para a idade, deixou-se levar, os pés arrastando pelo chão de madeira, os seus gritinhos acompanhando-nos pelas escadas acima até ao meu quarto. Mostrei-lhe os cadernos novos, imaculados, os livros da escola, de exercícios, os lápis, os marcadores com doze cores diferentes, as canetas, azul, vermelha e verde. Nos meses seguintes, as páginas ficariam cheias de letras acabadas de aprender. Depois vieram as palavras, os números, as contas. O meu dedo deslizava sobre o papel, enquanto lhe soletrava as palavras. Por seu lado, ela trazia da escola cartolinas pintadas com desenhos abstratos, pinceladas de amarelos, castanhos, rosas, azuis, roxos, verdes. Eu olhava para as suas obras de arte e via princesas loiras com os olhos azuis mais bonitos do mundo. Num dia de janeiro, a Felisbela adoeceu e foi para o hospital. Eu estava no segundo ano do ciclo. Depois das aulas, fui para casa, entrei no quarto dela e descolei as cartolinas da parede, enrolei-as e dirigi-me para o hospital. Pendurei-as na parede ao lado da sua cama, de modo a que, quando abrisse os olhos, a primeira coisa que visse fosse uma bela princesa de olhos azuis e de sorriso bondoso.


Passados alguns dias, ela abriu os olhos. Eu não estava lá. Quem me contou foi a minha avó, que todas as tardes, ao seu lado, tricotava as camisolas para a Felisbela, mas que acabariam por me aquecer nos três invernos seguintes. Abriu os olhos, respirando pela máquina de respiração artificial e fixou as muitas pinturas com que eu tinha decorado o seu quarto, juntamente com os seus peluches preferidos e as nossas fotografias. A custo, levantou um braço e apontou para uma cartolina, muito gasta, de um desenho que tinha feito há anos. A avó descolou-a da parede e colocou-a no seu peito e depois chamou a enfermeira. A Felisbela ainda viveu duas semanas daquele rigoroso inverno. A pintura, essa, tem quase trinta anos. Está pendurada no seu antigo quarto, onde dorme agora a sobrinha com o mesmo nome, abraçada a um peluche do Rato Mickey.


O meu tio Camilo Eu tinha dezoito anos e acabara de entrar para a faculdade. Partilhava um quarto numa residência universitária e, uma vez por mês, metia-me no barco até à margem sul. Por volta das sete e meia, aparecia à porta da casa do tio Camilo com uma caixa de bolinhos de chá comprada na pastelaria ao lado e atada primorosamente com uma fita vermelha. Depressa a substituí por uma garrafa de vinho tinto. “Da próxima vez, passa pelo Joaquim, ali ao fundo da rua. Tem lá um Dão da nossa terra, e pelo preço dos bolinhos, trazes uma pinga da boa”, disse-me a meio do terceiro jantar. Púnhamos a conversa em dia e a noite terminava comigo a adormecer, invariavelmente, no sofá da sala de estar. Na manhã seguinte, acordava abraçada por uma águia de asas abertas estampada no cobertor vermelhoescuro cheirando a naftalina em que ele me embrulhava e que entalava debaixo dos pés para não cair. Sempre que despertava, mesmo antes de abrir os olhos, lembrava-me vagamente do tio Camilo a tirar-me os sapatos, a encolher-me as pernas, a tapar-me, e da maneira como executava tais ações, calcando devagar a roupa, com tanta ternura, sem deixar um pedaço do meu corpo desprotegido, com exceção da cabeça. Por fim, abria os olhos, acordava feliz e sorria. Naquela altura, ele viajava muito e quando o trabalho o obrigava a estar mais tempo longe de casa, o jantar era adiado para a sexta-feira seguinte. Era a época das novidades, das descobertas, dos amores e das desilusões e eu vivia em constante sobressalto, porque tinha muitas lágrimas para chorar e precisava muito dele, das suas palavras de reconforto, do seu sofá surrado e de adormecer entorpecida de álcool e emoções.


A noite em que conheci o César não fora diferente das outras. Conversámos, bebemos, eu estiquei-me no velho sofá, com as pernas a baloiçar num braço, enquanto o tio Camilo entrava num apurado diálogo com o felino. Feitas as cedências de parte a parte, à semelhança de dois miúdos que firmavam um compromisso com cuspo e aperto de mão, aceitaram partilhar o trono. O tio sentou-se no cadeirão e o César ajeitou-se sobre os joelhos ossudos, massajando-lhe as rótulas sobre as calças de fazenda castanhas. E eu fiquei a observá-los: um gato de pelo amarelo, ronronando, feliz, e o meu tio, que lhe fazia festas e sorria, cativado.


Quinta-feira, night and day Tive um sonho muito estranho esta noite, depois de ter sido acordada pela Elvira, aí pelas quatro da madrugada. Tinha saudades da Alice. A Alice estava no veterinário. Calma, não está doente. Fui lá levá-la para a recolha de sangue, que será hoje. Comecemos pelo princípio, então. Ontem saí mais cedo e fui a um notário tratar da papelada para a família da terra. Entretanto a veterinária responsável pela recolha de sangue telefonou e fui deixar a Alice no sítio do costume, chovia que deus a dava. Poisei a gata na gaiola, triste. Mais triste fiquei eu. Coloquei um tapete que tinha o cheiro das gatas e que a Elvira costuma arrastar pelo chão e ela lá ficou, com os seus grandes olhos verdes a olharemme enquanto me afastava. Fui para casa, numa aberta, aí pela melhor hora de ir às compras no super, que é a partir das 8 da noite (acho que fecha meia hora, ou uma hora mais tarde), fui utilizar o desconto de 1,5€ em 15€ em compras. Já tinha a lista feita e 15€ atingiram-se num instante, eu tontinha a falar sozinha com uma data de talões de desconto nas mãos, a fazer contas de cabeça a ver se compensava o desconto. A maior parte nem foi utilizada, pois não compro esses produtos e consumo cada vez mais coisas da marca da loja. De seguida, eram nove e picos, ainda pensei ir ao festival de jazz para ver se me animava, mas continuava a chover e no dia seguinte teria de me levantar cedo e desisti. Li um pouco, acabei com uma tablete de chocolate, comi um iogurte, dei as boas-noites às gatas e fui para a cama. Pela madrugada, então, a Elvira arranha a porta do quarto, acorda-me, abro a porta, entram as duas, saltam para a cama, ajeitam-se, a Joana continua a bufar


à Elvira, odeia-a. Não é brincadeira, não a aceita mesmo, há quase três meses que vivem juntas e não há convívio. A Joana é uma gata muito egoísta, muito ciumenta, agora que os outros gatos morreram é a mais velha e agora quem manda aqui é ela. Ainda tolera a Alice, mas a mais novita nem barrada com paté de atum lá vai. Lá dormimos as três e comecei a sonhar, embalada por um valente temporal. Senti, no meio do sonho, uma presença no quarto e o coração começa a bater mais rápido, eu desperto devagar mas continuo de olhos fechados. Então, abro os olhos e penso, penso sempre da mesma maneira, já que não é a primeira vez que tenho pesadelos ‘sobrenaturais’, «Não é nada, é energia, tu não és como a tua mãe, que ouvia a água a correr nas torneiras e a chave à porta e ninguém entra. Tu não acreditas nestas coisas». Lá estico um braço e acendo o candeeiro da mesa-de-cabeceira e não funciona. Tiro o lenço que tapa os números fosforescentes do radiodespertador (não consigo adormecer com luz) e está desligado. «Isto não é bom», pensei. Levantei-me (a sonhar, ainda) e fui ao quarto de banho, porque tenho outro radiodespertador lá (dá-me jeito ver as horas e ouvir a estação da música clássica) e está a piscar algures nas três e picos. Pensei que talvez tivesse faltado a eletricidade devido à chuva. Ou seja, fiquei na mesma, não sabia as horas certas. Fui à cozinha, que tem um grande relógio na parede, e quando acendi a luz aquilo estava muito estranho. Em frente ao micro-ondas estava uma máquina de café. Não uma dessas caseiras, mas uma mini-industrial, até me recordo que era vermelha e, ao seu lado, duas pás de lixo, molhadas. Pás de lixo?! A cozinha também estava molhada e procurei a tartaruga, para ver se continuava no seu canto. Não me lembro se estava lá, mas notei que a mesa da cozinha – uma grande mesa de vidro que existe desde que comprei a casa – estava toda desarrumada e cheia de sacos de plástico. Continuo a sentir uma presença estranha em casa, mas, entrementes, o rádio toca. São seis horas. Acordo com as notícias.


Respiro de alívio. As gatas lá estão. A Elvira mia desconsolada. Tem saudades da Alice. Deita-se no chão e ronrona e mia quando eu pego nela e a coloco no ombro. Nunca a vi assim tão carente. A Joana olha-nos ciumenta, mas não se aproxima. Lá deixo a pequenita e ajoelho-me e encho-a de festas e mimos. No quarto de banho, senti uma dor no lado direito da barriga. Tão forte que tive que me dobrar e pensei que fosse algo como apendicite. Depois pensei em toda a porcaria que tinha comido na véspera – não tive tempo para almoçar, comi umas sandes e depois abri uma lata de sardinhas em tomate e não esqueçamos o chocolate. Entretanto, li algures que houve um dia ‘purple’ ou ‘Spirit Day’, para apoiar os jovens lgbt contra o bullying, usando uma peça de roupa roxa. Bem, do dia 17 para hoje só vai uma semana, mas hoje estou roxa em 90% da vestimenta, nas galochas, na camisola de alças de licra e no camisolão. Continuo com uma pontada do lado direito da barriga. Chove a potes. A Elvira está triste, a Joana resmungona e a Alice sozinha no veterinário por um bem maior. Este dia vai custar a passar.


Abandono A um canto, está a poltrona surrada e manchada; na mesa pequena ao lado, sobre o pano de crochet, cheio de pó, o comando da televisão com o elástico enrolado em duas voltas. Inclino-me e agarro-o. Com o polegar esquerdo, rolo o elástico. O barulho ecoa na sala vazia, como um pedaço de lenha a crepitar no fogo. Sento-me, triste. Em frente, um grande televisor cinzento encara-me, silencioso. Compridas franjas de um napperon tombam de cada lado do aparelho, pesadas de melancolia. Encosto-me, sinto a nuca a colar-se à pele da poltrona e fecho os olhos. Aquecendo-me por dentro, o elástico continua a estralejar. Revejo-te, então, trazendo um tabuleiro com uma caneca de café com leite e duas meias torradas rijas, barradas com manteiga. Torravas metades de pães no forno, que guardavas num saco de pano pendurado sobre a mesa da cozinha. O café com leite morno estava sempre como eu gosto, na perfeição que somente as avós atingem, apurada ao longo do tempo, com gotas de carinho e resignação. Muitas vezes esperaste por mim, aceitando a minha ausência em silêncio, junto ao telefone quase sempre mudo. Quando finalmente te visitava, tu fazias-me sentar na poltrona, qual rainha no teu mundo. Ias à cozinha e regressavas com o tabuleiro e um sorriso de felicidade no rosto enrugado. Eu era servida por uma rainha. Agora, imagino-me a partir metade da torrada pela dobra do pão, a mergulhála no café com leite até perder a rigidez, vendo a gordura a boiar em pequeninos círculos, e a levá-la à boca. Alimento-me do teu amor, da tua paciência, do teu riso, das tuas lágrimas, e sacio a minha dor.


Quando a loja fechou Estuguei o passo. Na esquina de um prédio, sob a cascata de água que escorria até ao passeio, brilhava um velho estore metálico. Cinco minutos antes, uma chuva oblíqua, fina, fria, acompanhada de rajadas ciclónicas, abatera-se sobre a cidade. Resguardei-me o mais que pude na entrada do velho prédio, enquanto ouvia a chapa, qual instrumento de percussão, a receber a bátega, estrondosamente. Era nesta loja que eu costumava entrar. Havia um pequeno sino de metal amarelo sobre a porta que tinia como um alegre canário que recebe o sol. Este recanto fascinava-me, com o seu balcão estreito, os guarda-chuvas coloridos pendurados em ganchos nas paredes amarelas e as prateleiras cheias de sapatos engraxados muito alinhados. Era aqui que, a pedido da minha mãe, eu vinha arranjar os chapéus-de-chuva, cujas varetas não resistiam aos implacáveis temporais de inverno; outras vezes, as capas dos sapatos, uma ou outra meia-sola, que ela desgastava no granito cinzento das pedras da rua. A minha mãe fora cliente assídua. Dois irmãos exploravam esta loja, tanto nos invernos rigorosos, que viravam os chapéus, como nos verões secos, quando as minhas sandálias escorregavam nas pedras polidas e se esfolavam, ou se quebrava uma fivela. Num fim de tarde primaveril, tinha eu dezasseis anos, a loja encerrou a porta para sempre. Por trás deste estore corrido, há mais de quarenta anos que, em singelos trinta metros quadrados, se encontra pendurada, como se fosse um chapéu-de-chuva à espera de vez para arranjo, um fragmento da minha infância.


César Poucos dias antes da morte do meu tio Camilo, acolhi o César. De início, ele não tinha nome. O tio Camilo contou-me, num dos habituais jantares de sexta-feira, que o tinha encontrado enroscado à porta de casa, ao regressar do hospital. “Era um bicho escanzelado, só pele e ossos, assim como eu”, ergueu um braço magríssimo, empunhando o garfo, “e pensei que estaríamos bem um para o outro. Mirei-o, não se mexeu, passei por cima dele, empurrei a porta, fui à cozinha, abri uma lata de atum, que por sinal seria o meu jantar, mas onde come um, comem dois, coloquei metade num pires e pousei-o à beira dele. Esperei, esperei, mas nem um pelo se moveu e nem uma orelha tremeu, de modo que voltei a entrar em casa, deixei a porta encostada, fui à casa de banho, regressei para ir ver do bicho, o pires estava vazio, ele tinha desaparecido. Encolhi os ombros, pelo menos, hoje não morres de fome, pensei eu, e fechei a porta. E onde estava o gato? Agora vem a melhor parte. Eis que vou dar com sua excelência sentada no meu cadeirão”, apontava o bichano com o garfo enquanto falava, “e fiquei a mirá-lo durante bastante tempo, ele muito compenetrado nas suas abluções. Quando acabou, bocejou, dignouse a olhar-me, baixou um tudo ou nada a cabeça, como uma pequena vénia, deu duas voltas e deitou-se. E…”, terminou com um gesto brusco, espetando uma batata, “…aí o vês.” Perguntei-lhe como se chamava, ao que me respondeu, com um encolher de ombros, que não tinha nome. “Não me parece que ele se importe muito com isso. Basta ouvir o barulho dos tachos e aparece na cozinha”, respondeu. Olhei para o gato, refastelado no lugar usurpado uns dias antes. Dormitava. “Agora, faz parte da família. Até tem um lugar cativo”, repliquei eu. “Não achas que merece um?”


O meu tio franziu o sobrolho, pensativo e, depois de alguns segundos em silêncio, respondeu: “César.” E, como que aprovando o novo nome, o César abriu os olhos e ergueu a cabeça. Levantou-se, espreguiçou-se languidamente e saltou para o chão. Esfregou-se nas nossas pernas, ronronando, e voltou a subir para o cadeirão. Soltou um breve miado e tornou a deitar-se. “Veni, vidi, vici”, suspirou o meu tio, com sorriso que lhe iluminou, por um instante, o rosto macilento.


Antigamente, aqui havia um cinema (conto dedicado ao Miguel – 2012)

Ela entrou numa terça-feira. Chovia que deus a dava. Foi à procura de abrigo e naquele lugar, cheirando a suor e madeira, a tabaco e caramelos, com estofos surrados e portas empenadas e ecrã manchado de humidade nos cantos, sentiu-se em casa. Passou por mim, não, deslizou suavemente pela minha perna e sentou-se ao meu lado. Pouco lhe importou que o sobretudo e o cachecol estivessem molhados, atirados de qualquer maneira para cima da cadeira. Muito direita, olhou o ecrã. De perfil, na semiobscuridade, o olho reluzia, de pupila negra, absorvendo ‘Que Teria Acontecido a Baby Jane?’. Naquele instante, vinte e dois anos depois e ainda tão nítido, ecoa a gargalhada doentia da Jane nos velhos altifalantes; ela vira-se ligeiramente para mim, com os olhos muito brilhantes, mexendo um bocadinho as delicadas orelhas, captando as vozes do filme, o barulho da película a rolar no velho projetor, inclinando um quase-nada a cabeça. Era magnífica. Antigamente, aqui havia um cinema. Tinha dezanove anos e uma gata chamada Bette Davis. A sala permanecia quase vazia, eramos nós, uns namorados do liceu, que trocavam beijos e carícias, depois foram-se os namorados, fiquei eu e a Bette Davis e, por fim, desapareceram as cadeiras surradas, a tela manchada, as portas empenadas, quando o centro comercial apareceu, com as suas modernas salas de cinema.


Agora, aqui existe um bar. Olho a cadeira ao meu lado, enquanto bebo um copo, e penso na Bette Davis, que desapareceu quando o cinema encerrou.


A felicidade é intermitente (conto dedicado ao Sad Eyes – 2012)

Entraram na cabine de fotos instantâneas. Sentaram-se juntos, abraçados. Ele enfiou as moedas na ranhura e prepararam-se para as fotografias. Um minuto depois, uma tira de quatro fotos mostrava um pai e uma filha com a língua de fora, sorrindo cúmplices e fitando seriamente a câmara. – Para mais tarde recordar – disse ela. – Eu fico com esta e esta – apontou para as escolhidas. Ele aceitou sem discutir. A última palavra era dela. Guardava religiosamente os poucos momentos que passavam juntos. Recordou-se de quando ela tinha seis anos, dezassete anos atrás, no primeiro Natal separados. Tinham comprado um globo de neve para a mãe, com o anjo sentado na nuvem, segurando uma estrela nas mãos pequeninas. Na sua memória, surgiram o sorriso da criança e as suas palavras, numa vozinha que há muito havia desaparecido. “A neve a cair são as lágrimas do anjo. Ou diamantes.” Dividido entre dois mundos, teve que se readaptar. A menina transformou-se numa mulher, independente e sonhadora como ele. Nisso, ninguém lhe tirava o mérito. Aprendeu a viver um dia de cada vez e a apreciar o que a vida lhe dava de bom. Mas como a vida nem sempre era generosa, vivia plenamente os poucos minutos que passava com ela. Caminharam em direção à estação do metropolitano. Era o destino dela. Ele seguiria a pé até casa. Abraçou a filha, viu-a afastar-se e guardou no coração mais um momento de felicidade.


Moinhos de Vento (conto dedicado ao Pedro – 2012)

‘Oh! Não me peças isso’, foi a resposta que recebeu, quarenta e cinco minutos atrás, quando deixou o seu apartamento. Agora, o seu coração batia acelerado. Se colasse um balão de banda-desenhada junto ao peito, a onomatopeia seria algo como ‘tuc-tuc-tuc-tuc-tuc’. Reparou então, olhando para os pés, que não era o coração, mas as escadas rolantes do metropolitano que estremeciam, fazendo o músculo absorver a vibração. Teve plena consciência, porém, que o que sentia não era apenas provocado pelo balanço das escadas. Na impossibilidade de fugir – amava-o, sim, amava-o incondicionalmente; na verdade, a conclusão a que chegou um segundo após o confronto, mas que não verbalizou, era que não queria fazê-lo – decidiu não baixar os braços. Não ia desistir, porque o que os unia era forte, forte demais para ficar escondido e negado. Todos os dias perguntaria a mesma coisa, repetiria, repetiria até à exaustão. Sabia que iria escutar dezenas de vezes, como da primeira: ‘nunca poderemos ficar juntos.’ Claro que sabia as consequências, tinha sofrido por elas há muitos anos. Quantos? Vinte e cinco. Desde os dezassete, é só fazer as contas. E, convenhamos, era muito mais difícil há um quarto de século. Era a razão de não se conformar e de nunca desistir. Sim, iria conseguir convencê-lo, juntos seriam mais fortes, os gigantes são apenas moinhos de vento. O resto da vida seria suportada a dois, consolada, chorada, gargalhada a dois. Um dia, uns anos depois, pediu mais uma vez e foi aceite.


Sim! (conto dedicado ao Arrakis – 2012)

Dobrou a folha ao meio, que guardava a singela pergunta escrita pela Montblanc recebida vinte anos atrás. Encostou-a ao solitário de cristal que tinha o botão de rosa vermelha. Ajeitou os copos uns milímetros para a direita e passou os dedos pela argola de prata que segurava o guardanapo. Um sorriso de satisfação desenhou-se-lhe nos lábios. Agora sim, a mesa estava perfeita. Fechou a porta da sala e esperou no escritório, como se fosse um dia igual aos outros. Arquivou uns papéis que se acumulavam na secretária, devolveu à estante os livros que sobreviviam na torre periclitante, no parapeito da janela, e deambulou de um lado para o outro, nervoso. Por fim, sentou-se no velho cadeirão e olhou para a janela. Notou a poalha que bailava na luz avermelhada do pôr-do-sol, uma dança suave entre os cortinados entreabertos, e viu-o surgir ao longe, a sua silhueta inconfundível no meio da multidão apressada. Viu-o tirar a chave do bolso da gabardina e entrar no prédio. Contou mentalmente os degraus que ele tinha de subir até alcançar o patamar certo, vinte e oito. Ouviu-o a meter a chave na fechadura e a fechar a porta da entrada delicadamente, como sempre fazia. Só quando ele abriu a porta, com a folha e a rosa entre os dedos esguios, bonitos, se apercebeu que tinha parado de respirar. Com um suspiro profundo, soltou o ar dos pulmões e deixou-se abraçar, ouvindo a sua gargalhada, feliz. Sim, ele aceitou.


Quero-te demais para estares longe (conto dedicado ao João Roque – 2012)

Caminho pelas mesmas ruas que calcorreámos há semanas. Olho a montra da loja de velharias e o móvel de carvalho, de que gostaste tanto. Precisava de ser restaurado, lembro-me de te ter dito, e daria uma bonita estante. Concordaste, entusiasmado, seria uma bela peça para a nossa casa, a nossa futura casa. Continuámos a caminhar, lado a lado, sentámo-nos na esplanada do hotel, à beira-mar, a mesma para onde me dirijo agora. Vou sentar-me na mesma cadeira e fingirei que estás comigo a tomar um copo. Não preciso de fingir que estás comigo, porque estás, mas neste momento, é tanta a saudade e estás tão longe. A solidão impera, carregada e envolve-me e sinto-me triste. Já vejo a entrada do hotel, acelero o passo, eis-me passando a receção, as portas de vidro, as mesas do café, saio para as traseiras, sento-me no lugar certo, na nossa mesa, e peço um copo de vinho branco, um Douro, cremoso, como tu, fica na língua, como tu ficas na minha, persistente, entras dentro de mim, enches-me enquanto o meu olhar cai no mar encrespado, enquanto as vagas se estilhaçam em espuma branca suja nas falésias de ardósia rendilhada. Está frio. Penso em ti. Quero-te aqui, o teu corpo a aquecer-me por fora enquanto o vinho me aquece por dentro. Quero-te demais, tanto neste instante, em todos os instantes, faltas tu, falta a peça do puzzle para completar o quadro da minha vida, estás longe e o teu espaço encontra-se agora vazio.


O senhor Janeiro (conto dedicado Francisco – 2012)

O calendário estava quase pronto. Por solidariedade, dizia para mim próprio. Só o fazia por solidariedade. Os miúdos precisavam de um campo de futebol novo, andavam a jogar à bola naquele terreno de terra batida, nem balizas tinha, eram umas traves colocadas toscamente, com umas redes velhas, era uma tristeza de meter dó. Só assim se compreendia eu estar ali, rodeado de rapazes nus, nus, como vieram ao mundo. No fundo, eu sabia ao que vinha, um calendário gay, com adónis de cair para o lado, sorrisos de fazer derreter o mais empedernido dos machões. Bem, lá terá de ser, esta camisola de lenhador é quente, mas ficará desabotoada, assim, de lado, não fica mal, está perfeito. Eles sorriem, brincam, aproximam-se de mim: “Senhor Janeiro, com o machado ao ombro, sorriso maneiro”. Sou eu. Virei-me mais uma vez, agora o outro lado e já está. Afinal, não foi tão difícil assim. Tenho pena de estar a terminar. Olhei disfarçadamente para o senhor Março, março, garanhão, manhãs de inferno, tardes de ilusão. Ri para mim, por que não? Quero viver. Senhor Março… podia ser uma bonita amizade. A sessão terminou. Eu e Março saímos juntos, trocámos sorrisos cúmplices e sabores a menta e a cafeína.


Os deuses devem estar loucos (conto dedicado ao João F. – 2012)

Há já dois meses que os três aparecem à noite, entre os novelos de sonhos, e sentam-se na minha cama, de pernas cruzadas, esperando pacientemente pelo meu despertar. Eu sei que só pode ser um sonho, mas desejo ardentemente pela noite, pelo instante em que a imaginação se apodera de mim e eu vivo, então, verdadeiramente. Sei quem são. São fruto das centenas de livros que li, imagens que retive, que desenhei na minha mente, os meus três deuses preferidos: Hórus, com a cabeça de falcão, Osíris, com a mitra branca na cabeça e segurando o báculo e o látego, Anúbis, com a cabeça de um cão. Quando surgiram pela primeira vez, assustei-me. Dormia, cansado, depois de um exame sobre as divindades do Antigo Egito, a minha paixão, e sentaram-se sem demoras em cima de mim. Acordei sobressaltado, com um peso estranho, risos divertidos e olhares curiosos. Com o passar do tempo, vivia duas vidas: de dia, era um adolescente tímido, inquieto e confuso, de madrugada, era Anúbis, ou Hórus, ou Osíris, os três metamorfoseando-se em mim quase ao mesmo tempo, rápido, tão rápido, cão, falcão, eu, mitra, cão, mitra, eu, falcão… Se é apenas um sonho, eu deixo-me levar, que as manhãs trarão a realidade cinzenta, triste, enfadonha e solitária. Desejo que cada dia acabe depressa, para voltar a encontrar os meus deuses e imaginar que me encontro, não no meu triste quarto, mas no Antigo Egito.


Comigo, despido de medos maiores (conto dedicado ao Mark – 2012)

Deitei-me no monte de folhas secas do jardim da casa do avô e olhei o céu. Era um ritual que repetia desde criança. A serenidade envolvia-me, qual camada invisível; paulatinamente, moldava-se ao meu corpo. Fechei os olhos, sentindo-a penetrar-me na pele, nos músculos, no sangue e nos ossos. Eu já não era apenas eu. Era eu e as folhas que estalavam quando me mexia lentamente, eu e o sol que me aquecia o rosto gelado, eu e o azul da abóbada celeste que contemplei quando, vagarosamente, abri as pálpebras. Estava pronto. Sorri, ergui-me, sacudi a sujidade, olhei por cima do ombro esquerdo e soltei uma folha do capuz do blusão. Ela baloiçou, como um dos barquitos de plástico que tinha quando, em pequeno, me entretinha a brincar no lago do jardim, e voou para longe. Juntou-se à angústia que me assolara antes. Saí de casa. A decisão estava tomada. Conduzi meia hora até ao meu destino. Abri o pequeno portão de ferro, dei a volta ao singelo jardim e dirigi-me para as traseiras. A porta da cozinha estava entreaberta. Vi a sombra projetada na tijoleira, duas pernas alongadas que se estendiam pelo alpendre e me recebiam sem receio. Depois as pernas materializaram-se, ele abriu mais a porta e recebeu-me com um abraço cálido. – Bem-vindo a casa – anunciou. Sorrindo, desviou-se e apresentou-me a uma gata altiva, de olhar brilhante e orelhas delicadas, que me observava curiosa: – É o novo membro da família.


Fanã (conto dedicado à Rosa Carioca – 2012)

Depois da primeira queda, já nada foi o mesmo. Dessa vez, ele nem ligou. Era uma entre tantas. Ao longo de treze anos, caiu de morros, caiu a um poço, felizmente pouco profundo, obrigando-me a saltar lá para dentro e amarrar-lhe uma corda ao lombo, para o tirar da lama; caiu da varanda e andou coxo três semanas; caiu ao ribeiro, aqui, confesso, não era bem isso, ele atirava-se ao primeiro peixe que via. ‘Cão estranho este’, era o que o que o meu avô dizia, soltando uma gargalhada. Um dia, notei que que ele sentiu alguma coisa diferente. Dessa vez, quando a avó o chamou: «Fanã! Fanã, anda cá! Fanãããããã!’» – muito ele se deliciava com aquele tom anasalado que lhe chegava às orelhas espetadas, na vogal que voava ao sabor dos cheiros quentes da cozinha até à porta da entrada onde ele se estendia. Hábito arreigado ao longo dos anos, com a cabeça deitada nas patas dianteiras, recebendo o fresco do cair da tarde, sabendo que um pedaço de pão-de-ló barrado com manteiga estaria à sua espera – ergueu-se nas patas, depois caiu, estranhou, voltou a erguer-se, primeiro nas patas traseiras, e pareceu sentir um formigueiro a percorrer-lhe a espinha. Ficou quieto, em pé, e vi-o tremer, à espera que passasse. Não lhe passavam sempre, as mazelas que ele recebera ao longo dos anos, e foram muitas – treze anos marcados no corpo de um rafeiro que era o mais enfezado de uma ninhada de seis? Não passou. Chegou o que temia. Como eu, o Fanã estava a envelhecer.


Abraço que cura Esta história passou-se esta manhã (vou tentar descrevê-la de memória, porque me pareceu inapropriado tirar o caderno do saco e anotá-la, com eles à minha frente). Uma mãe e o seu filho adolescente (é visível a deficiência mental do jovem) sentam-se junto a mim no comboio. O rapaz passou o tempo a inquirir a mãe, já de uma certa idade. – Amanhã vamos a Coimbra, mãe? Saímos em Sete Rios e compramos o bilhete, está bem, mãe? A mãe, umas vezes paciente, outras a suspirar, cansada, lá lhe respondia: – Está bem, João, compramos o bilhete em Sete Rios. – Vamos a Coimbra, mãe? – É só em maio, João. Estamos em abril. – Mas vamos a Coimbra, mãe? – Sim, João. Vamos a Coimbra. – Tu não podes ficar doente, mãe. O João fica preocupado. – Todos ficam doentes, João. Eu também. E eu ouvia – já não conseguia concentrar-me no "Juliano". – Tu não podes ficar doente, mãe – repetiu o João. [Ele estava sentado ao meu lado e a mãe à sua frente.] – Oh, João... – ela suspirou, sorrindo. – Dá-me um abraço, mãe – o filho inclinou-se e abriu os braços – Tu não podes ficar doente.


– Sim, João, com os teus abraços a mãe não fica doente – disse ela, abraçandoo muito. Não tive coragem de pedir um abraço ao João, mas tenho a certeza que mo teria dado e curado as minhas dores. Nota: versão revista do conto publicado em “Pixel 2: Aquele Abraço”


A virgem Maria – Se não paras com isso, ainda levas mais – disse a mãe, à mesa do jantar. A criança fungou. Nas lágrimas deslizava, irremediavelmente, o sonho perdido, que se derramava a seus pés. – Sinceramente, que ideia a tua! – a mãe prosseguiu – Que haveriam de pensar de nós? O pai disfarçou o olhar e baixou a cabeça. Mastigou devagar a batata cozida e engoliu a vergonha. A criança mordeu o lábio inferior, tentando reter os soluços. – Eu só queria… – a tentativa de verbalizar o seu desejo resultou numa bofetada que lhe rachou o lábio e a deitou da cadeira abaixo. Olhou-a, de olhos esbugalhados, com sangue e lágrimas que se enleavam na língua. Notou o sabor acre e salgado, como das outras vezes, mas agora doíalhe mais. Sentiu um abandono tão grande, como se o ardor dos dedos cruéis da mãe fosse um prenúncio dos dias difíceis por que teria que passar. – Basta! – o pai levantou-se. Fora a gota de água. – Se apoiares essa ideia maluca, eu vou-me embora – ela ameaçou. Ele ajoelhou-se, abraçou a criança e limpou-lhe o sangue com as pontas dos dedos. – Serás a mais bonita virgem Maria da peça de Natal da escola – garantiu-lhe. Ouviram a cadeira a arrastar, a porta a bater, os dias cinzentos a afastarem-se. O rapazinho ergueu os olhos marejados para o pai e perguntou timidamente: – Prometes?


Envergando um manto azul celeste e contemplando um menino Jesus deitado nas palhinhas, todo ele resplandecia, qual estrela de Belém. Nota: versão revista do conto publicado em “Pixel 3: Happy Xmas”


Natal Ele sentou-se à mesa do café. Não pronunciou nada. Limitou-se a esperar que ela servisse o mesmo de sempre. Bebeu a bica em dois sorvos e, de uma assentada, engoliu a ‘meia São Domingos’. Soltou um estalido com a língua, satisfeito. – Onde é que ela está? – perguntou, então. Tirou a boina e olhou-a, compenetrado, como se perscrutasse, no padrão às riscas finas castanhas escuras, os carris que deixara há mais de duas décadas. – Pai… – a mulher suspirou. – Está a descansar. – A casa está calma – ele fingiu que não ouviu, enquanto a automotora a diesel fazia soar o apito no fundo da sua memória enfarruscada. – Virão mais logo – a mulher respondeu. – Esses… – ele resmungou, enfiando a boina na cabeça calva. Tirou um Kentucky do maço amarfanhado do velho casaco e colocou-o nos lábios. – Continuas com os malditos mata-ratos – ela apanhou a chávena de café e o cálice. – Vens cá logo ou não? – Ela virá? – Sim, Pai, ela virá – foi a resposta que recebeu, antes de sair do café, malhumorado. Caminhou sem rumo durante horas. Por fim, estacou em frente ao café, já a noite entrava pela madrugada adentro. Cheirava-lhe a bacalhau com todos, a filhoses e canela. Abriu a porta e o silêncio rodeou-o. Até o bebé, ao colo da mãe, o mirou, curioso. Depois, riu e esticou os pequenos braços.


– Anda ao avô – disse ele, transfigurando-se. – Faz falta um homem nesta família, rapaz. – Feliz Natal, Pai – ela murmurou, beijando-o no rosto cansado. Ele retribuiu, poisando um fugaz beijo na têmpora dela e, suspirando de alívio, abraçou o neto. Nota: versão revista do conto publicado em “Pixel 3: Happy Xmas”


Eu quero-te na minha vida (conto dedicado ao Ribatejano – 2013)

O homem mais pequeno do mundo sabia ler as lágrimas. A água evaporava e os cristais de cloreto de sódio brilhavam no sítio onde elas tombavam. A sua vida girava em torno das histórias que as lágrimas contavam. Se eram de amor, ele sonhava com beijos ao pôr-do-sol; de dor, o seu coraçãozinho encolhia-se muito, cheio de angústia; de felicidade e rodopiava de braços abertos, rindo sem parar. Na véspera de Natal, o homem mais pequeno do mundo chegou a casa e encontrou uma lágrima colada na porta com um lacinho vermelho. Delicadamente, segurou-a com a ponta do seu dedo minúsculo, entrou, ajoelhou-se e colocou-a no chão, junto à árvore de Natal. Com um sorriso, ajeitou o lacinho do único presente que tinha recebido até então e sentou-se na poltrona. Esperou pacientemente pela meia-noite. Com o calor da sala, a água dissipava-se e os cristais refulgiam na tijoleira. À hora certa, aproximou-se, ansioso. Debruçou-se e leu baixinho «Eu quero-te na minha vida…». Arregalou os olhos, surpreso. Quem teria chorado tal lágrima? Seria mesmo para ele, o homem mais pequeno do mundo, que passava incólume entre os pingos da chuva, mas não conseguia fugir às tormentas das lágrimas? Chorando de felicidade, adormeceu enroscado ao seu pequeno tesouro. No dia de Natal, acordou e a primeira coisa que viu foi o terno sorriso de um anjo. Nas palmas das suas mãos, os cristais das lágrimas do homem mais pequeno do mundo reluziam: «Sou o homem mais feliz do mundo.»


Um presente envenenado (conto dedicado ao Arrakis – 2013)

Um barulho de testos, panelas e talheres chegava-lhe aos ouvidos. Tinha-se postado à entrada da cozinha e olhava, curiosa. O rapaz mexia-se com desenvoltura, enquanto lhe dirigia palavras que não compreendia. Achava simpático o seu tom de voz e gostava do cheiro que entrava pelas suas narinas pequeninas, negras, húmidas, que lhe fazia lamber os beiços, ondular os bigodes e tremeluzir os olhos. Como se estivesse numa passerelle, aproximou-se languidamente e roçou o quadril pela sua perna. De seguida, saltou para uma cadeira e ficou a observálo, como uma rainha no seu trono. Ele cozinhava, conversava e ela fitava-o muito atenta. Por fim, ele tirou um pires e uma pequena lata do armário debaixo do lava-loiça e abriu-a. Ela espetou as pequenas orelhas com o som. Miando de gula, deu um saltou para o chão. – És uma diva! – ele riu, fazendo-lhe uma festa. Como resposta, a cauda bateu caprichosamente na sua perna. – Sim, és – repetiu, regressando ao fogão. Quando virou a cabeça, encontrou um pires brilhando como se tivesse sido lavado e a cozinha vazia. Suspirou. – Comeu e desapareceu, a rainha… Muito tempo depois, preparou a mesa da sala com a loiça de Natal, os talheres dourados, os copos de cristal. Olhou, então, para o saco de papel que estava tombado junto à lareira. Uma ponta mordiscada de um laço dourado espreitava. – Gata! Oh, gata! – correu para o saco e abriu-o. Lá dentro, em cima da caixa embrulhada e enrolado no laço dourado, jazia um pardalito.


Esse olhar mole e felino (conto dedicado ao João Máximo – 2013)

Depositou a rosa vermelha no decote, pintou os olhos e os lábios e calçou as luvas pretas até ao cotovelo. Com um gesto teatral, ergueu as mãos. Virando-se de repente, retirou o chapéu de plumas cor-de-rosa da caixa redonda, aberta sobre a cama. Em frente ao espelho, decorado com retratos de galãs de cinema, de bigodes finos, cigarros nos dedos esguios e olhares de predador, deu duas voltas e colocou-o na cabeça. Ajeitou-o e riu para o seu reflexo, coquete. Cantarolando baixinho, saiu do quarto, caminhou meneando as ancas, levantando o pesado vestido de folhos. Girou a cabeça de um lado para o outro, as plumas do chapéu esvoaçando no ar, e soltou uma sedutora gargalhada. A tarde estender-se-ia pela noite. Iria sorrir, sorrir muito, beber, sentar-se num joelho, receber uma carícia no pescoço, um beijo na face, beber champanhe. Ah! Champanhe, em taças redondas, quais moldes dos delicados seios da Marie Antoinette. Lentamente, desceu a longa escadaria, poisando os pequenos pés nos degraus alcatifados, prolongando o momento em que os aplausos irromperiam, esfuziantes. Raios de sol banhavam o vazio e decadente salão. Ela sorria. E com um sorriso no olhar, esse olhar mole e felino, afagava cada um dos seus fantasmas. Invariavelmente, solicitar-lhe-iam que cantasse os seus êxitos, ao que acederia, sorrindo, conformada. Nessa noite, o filho encontrou-a tombada sobre o teclado do velho piano desafinado, com a pauta de uma imemorável canção de amor espalhada aos seus pés.


Frágua (conto dedicado ao Alexandre – 2013)

O comboio desapareceu na curva. Não se ouvia o chilreio dos pássaros, nem o zumbido elétrico da catenária, nem vozes no cais. Apenas um silêncio pesado, de chumbo, como as nuvens no céu. No ombro, segurava a mochila com meia dúzia de peças de roupa, um diário, um lápis, a máquina fotográfica. No peito, um coração despedaçado. Estilhaçara-se e caíra aos seus pés como lixo. Lixo que alguém recolhera e deitara no caixote, como coisa que já não presta. Tinha sido tão feliz, amara tanto e tão intensamente. Fora tudo uma descoberta, sedução, mensagens de amor em conchas, corcódeas com iniciais gravadas, um pedido num banco de jardim, castelos de amor no ar. Avassalador e tão breve. Consentira nos segredos, nos enganos, anulara-se. Aos poucos, morria; procurava respostas e encontrava um muro. Ainda sonhou derrubá-lo, confiança e amor bastariam, pensava. Como se enganara. Censura, palavras de circunstância, refeições desencontradas, a cama cada vez mais vazia, um gelo no olhar, um toque repelido. Desejou o sol, encontrou a escuridão. Tateando no escuro, deixava passar um dia, depois outro e mais outro, criando coragem. Queria luz, sol e risos novamente. A conversa fora breve. Basta, merecia mais. Viu alívio nos outros olhos, no seu peito ficou a dor. Despediram-se. Saiu da estação. A cidade, majestosa, banhada por um rio cinzento como as nuvens, surgia diante de si. De braços abertos, acolhia-o e às suas mágoas.


Quando os primeiros pingos de chuva lhe bateram no rosto, finalmente chorou.


Guloseimas ou travessuras (conto dedicado ao Francisco – 2013)

Aproximava-se devagar, a respiração em suspenso, o peito cheio de ar como um balão. Observava a silhueta que se destacava sob o halo do candeeiro do jardim. Queria picotar à volta, destacá-la e levá-la consigo, como fazia em criança com os seus desenhos preferidos. Parou atrás dele e expirou o ar dos pulmões. Silenciosamente, ergueu os braços e colocou as mãos à frente dos seus olhos. Ele tateou com as pontas dos dedos as suas mãos. Um polegar com uma unha bem cuidada rodeou o anel que trazia no dedo mindinho direito. Sentiu-o a respirar mais rapidamente. Notou que ele sorria e relaxou por fim. Os dedos elegantes percorreram as suas mãos, passaram para os pulsos escondidos sob a grossa camisola e detiveram-se na pulseira de cabedal, recordação das férias que tinham passado juntos. Subiram novamente, quais aranhas, e sentiu um leve beliscão na pele. Um gemido fingido de dor soou da sua garganta. Riu, virou a cabeça, beijou-o e poisou o queixo no seu ombro. Rodeou-lhe a cintura com os braços, fechando os olhos. Murmurou-lhe algo ao ouvido. Tinha um saquinho de bombons de chocolate com licor no bolso do casaco. No outro lado da rua, um grupo de crianças andava de porta em porta a pedir doces. Um pirata de mão dada a uma princesa, um principezinho com uma raposa de peluche na mão, um super-homem com um braço no ombro de um homem-aranha, uma fada e um pikachu. Velas bruxuleavam nos parapeitos das janelas.


A outra face de Ricardo (conto dedicado ao Ricardo – 2013)

Nasci enfezado e baço. O seu peito suado acolheu-me antes de tempo. Fui um funâmbulo, tremendo entre a vida e a morte, no meio de lágrimas, beijos, preces e afagos. Reconheci-lhe a voz, cheirei-a pela primeira vez e fiz do seu odor o meu. A sua mão quente afagou-me a cabeça molhada e suja, a voz esgotada e comovida murmurou um nome de rei. Como que aceitando a dádiva, aperteilhe o dedo e olhei-a através da névoa, o seu sorriso amado envolvendo-me. Fazendo jus ao meu nome, sobrevivi. Todos os dias, levanto-me, destemido, e recebo a vida com os braços abertos. Trago o sol nos olhos, o calor nos abraços e a ternura nos beijos. Todavia, conscientemente, sinto o espectro gelado que paira sobre mim. Sussurra-me palavras acintosas, nega-me a felicidade, como se eu não tivesse o direito de viver. Com tenacidade, enfrento-o sem armadura ou escudo, despido de preconceitos, olhos nos olhos. Conquisto sem pudor o meu lugar no mundo. Sinto, vivo e amo incondicionalmente. Dizem-me que tenho um sorriso que desarma, pelo que sorrio, sorrio muito. É, talvez, a minha única arma. Sou encantador. Sei que pareço convencido, mas luto com o que tenho. Desta forma, ganho as minhas batalhas contra os infiéis. E continuam a ser muitos. Sou Ricardo, coração de leão, alma de guerreiro. Sou filho de uma rainha de mãos calejadas, olhos meigos e corpo cansado. Ela é o meu refúgio, o meu ombro e a fonte da minha invencibilidade.


Hello, Dolly Inconsolável, o César sentava-se, dias seguidos, junto à janela, protegido pelo cortinado. Escondia-se, estranhava o pequeno apartamento e miava, miava sem parar. Os dois anos que estivera em casa do tio Camilo tinham-no transformado num gatarrão de patas compridas, pelo brilhante e focinho redondo. Agora, eu via-o emagrecer a olhos vistos, não comia há cinco dias e soltava longos miados, que se propagavam no ar e se juntavam aos meus soluços. Chorávamos. Éramos dois órfãos. Quando o tio Camilo piorou, vivi os últimos quatro meses da sua vida com ele. Apesar de ter resistido, “Não há necessidade, Anita, eu ainda me aguento nas canetas”, eu sabia que estava emocionado. Tentando esconder as lágrimas, eu abraçava-o muito. Ele passava-me uma mão esquelética pelo cabelo e dizia, “Pronto, pronto”, e dava-me palmadinhas na nuca. Sentíamos o tempo a fugir por entre os dedos. Previsível, o fim aproximava-se a passos largos. Quando ainda tinha forças para andar, o corpo reagindo aos tratamentos, o apetite indo e voltando conforme os humores, íamos ver um filme, ele era louco por cinema. Havia alturas em que, sentindo-se bem-disposto, fazíamos maratonas cinéfilas. À tarde, víamos dois filmes seguidos, jantávamos e, a seguir, entrávamos na Cinemateca para mais outro. Depois, passámos a vê-los em casa, as antigas e riscadas cassetes de vídeo foram retiradas do armário e o velho leitor acordou depois de anos a hibernar. Nos tempos mais recentes, tinha sido trocado por um leitor de DVD e pelos filmes nos canais de televisão. Passámos a devorar as glórias de meados do século passado, musicais que ele adorava e de que trauteávamos as músicas com as nossas vozes desafinadas, “Hello, Dolly, well, hello, Dolly! It's so nice to have you back where you belong”, ele amava a Barbra Streisand.


Recordei-me desses momentos quando tomei a decisão. Agarrei no gato apático, coloquei-o dentro da transportadora, enfiámo-nos no carro e regressámos a casa do tio Camilo. Mal o soltei, o César correu para o velho cadeirão. Cheirou-o, soltou um compungido e agradecido miado, deu as usuais duas voltas e acomodou-se. Abri a janela da sala. Estava uma tarde soalheira e o sol de maio começou a aquecer a fria sala. Pus-me a cantar, “Dolly'll never go away again, Dolly'll never go away again, Dolly'll never go away again!” No dia seguinte, levei o César ao hospital veterinário perto de casa. Queria que ele fosse visto pela veterinária morena e de felinos olhos verdes com que o tio Camilo tinha ficado encantado.


Linhas de amor A mãe, sentindo a força dos constantes apelos mudos da criança, levantava a cabeça da máquina de costura. Com um sorriso bondoso, estendia-lhe a mão e dava-lhe outro pano. Ela, então, corria feliz até ao grande espelho que estava pendurado na parede. Enrolava o delicado organdi na cintura, dava uma volta e apreciava o resultado, a gargalhada ecoando no quarto de costura. Depois, apanhava do chão a grossa fita de cetim vermelho e prendia o cabelo negro e brilhante como as penas de um corvo. Terminava com um grande laço encostado à orelha direita, um coração cintilante que lhe murmurava segredos apaixonados. Entre moldes de tecidos marcados com giz, fotografias recortadas de revistas de moda e linhas multicolores, ela ia pedindo licença para entrar no mundo. A mãe notava-lhe a ânsia no corpo errado; sabia, desde muito cedo, que o seu filho era diferente dos outros rapazes. Tinha gestos delicados e femininos, uma voz suave que mal se ouvia. Pedia roupas de menina e tinha conversas intermináveis com as bonecas, entre chás de brincadeira, sentado aos seus pés enquanto ela costurava. Um dia, ele fez-lhe o derradeiro pedido, mostrando-lhe o desenho que tinha feito. Ela aquiesceu, incondicionalmente, sem demoras nem fatalidades. Aos doze anos, qual borboleta que, finalmente, se libertou do casulo, a filha surgiu em toda a sua plenitude. Lágrimas de gratidão inundavam-lhe os olhos amendoados. Usava o vestido mais belo que tinha visto até então e que nascera das mãos hábeis da melhor mãe do mundo.


A mãe Bina nascera no Lobito. Tinha olhos castanhos vivazes, pele brilhante e, na cabeça, um lenço de matizes quentes como as da sua terra. Roberto, de penetrantes olhos verdes e cabelo louro, era alto, magro e usava óculos redondinhos num nariz adunco. Roberto perdia-se de amores pela sua Bina tom de café com leite, de peito largo e convidativo, e Bina continuava apaixonada por ele, o seu homem da cor do milheiral em pleno setembro, de barba hirsuta pontilhada por manchas grisalhas que ela tentava domesticar sem sucesso com dedos doces e pacientes. Nando, quinze anos feitos na semana anterior, era um rapaz acanhado, com a pele morena da mãe e olhos verdes do pai. Gaguejava as palavras em fragmentos tímidos, como um papagaio de papel que hesita, em pulos desengonçados, antes de conseguir levantar voo encavalitado numa rabanada de vento. Um dia apresentou aos pais uma colega da escola. Roberto, calado, observou com curiosidade a rapariga de que Nando tanto gostava. Bina, a seu lado, com um sorriso, mediu-a intensamente da cabeça aos pés. A jovem sentiu-se a afoguear naqueles olhos incandescentes como o sol e no seu colo quente como África. Acompanhados de uma sonora gargalhada de júbilo, os braços roliços de Bina receberam-na em casa, como a porta da entrada a tinha acolhido minutos antes. Maria encostou o rosto ao seu peito, respirou o cheiro do pirão, da mandioca e do jindungo e, pela primeira vez na vida, soube o que era ter uma mãe.


O pai O menino, numa voz límpida como um passarinho que trinava na tília ao lado da oficina, pedia bonecas. Bastara-lhe erguer os olhos. O seu apelo silencioso derreteu, mais uma vez, um pai de rosto imperturbável, maxilar saliente, cabelo grisalho e sobrolho franzido que provocava duas rugas profundas que sulcavam verticalmente o meio das sobrancelhas. E lá iam os dois ao armazém da vila. Eram olhados de lado, as cabeças abanando em desprezo, comentando em voz baixa, um menino pedindo tais coisas quando devia seguir a profissão do pai, ser o sustento do velho quando já não pudesse trabalhar, e ele ainda incentivava tais desvarios. O pai fazia ouvidos moucos e olhava em frente, colocando uma mão protetora sobre os pequenos ombros da criança. O pai nunca sorria com a boca nem com os olhos e o menino, desde muito cedo, aprendera a olhar para os seus lábios direitos como uma aduela e para os seus olhos pretos como telhas de ardósia que abrigavam aquele corpo de um metro e setenta e sete centímetros de altura e oitenta e quatro quilos. As mãos do pai eram duas árvores cheias de vida, como que compensando o calor ausente do olhar e da boca. Procuravam a criança, uma mão e outra de cada vez, e cinco enormes dedos, como ramos sedentos, tateavam o seu rostinho rechonchudo, deixando na pele macia o cheiro a óleo do motor dos automóveis. Cobriam-lhe a cara toda e as unhas farruscas deixavam pequenos sulcos como regatos de água num carreiro seco. Sentia o calo da ponta do indicador direito, a cicatriz da palma da mão esquerda, a aspereza dos dois polegares que esfregavam as suas têmporas quando se queixava de dores de cabeça. Os dedos afundavam-se no seu cabelo liso e macio, afagavam-lhe a nuca com um vigor que em outra pessoa, poderia magoar, mas ele gostava.


Ao pequeno-almoço, uma mão afagava-lhe o cabelo enquanto a outra lhe enchia a caneca com o leite e misturava o chocolate em pó; ao fim da tarde, quando regressava da escola, uma segurava-lhe a mãozinha direita e ensinavalhe as primeiras letras e a outra apertava-lhe o ombro esquerdo. Aos domingos, atavam-lhe os atacadores dos sapatos brilhantes de graxa preta. Era um pai tardio, inesperado aos cinquenta e dois anos. Uma noite, afugentou a solidão numa aldeia vizinha. Nove meses depois, uns dias após os Finados, uma mulher, já mãe de quatro filhos e marido emigrante, depositava-lhe nas mãos um bebé de olhos brilhantes e bochechas rosadas e quentes. Nesse dia, soube pela primeira vez o que era amar. Felizes, regressavam a casa, um pai idoso, taciturno, vestindo um fato-macaco azul-escuro manchado de óleo e o seu filho de cabelos lisos, rosto macio e olhos cintilantes, abraçado a uma boneca.


Algodão-doce A minha mão direita estava pousada há um longo tempo na pequena bancada cinzenta de fórmica. Com a outra mão, massajava lentamente o joelho esquerdo, que latejava devido a um antigo acidente. Permanecia sentada, hirta, contemplando o pálido círculo no chão. Ergui o olhar e procurei a sua origem. Através da pequena e baça vidraça de uma janela junto ao teto, um translúcido raio de sol, salpicado por pontinhos escuros de poeira, derramava-se obliquamente. Qual David, enfrentava a incandescente iluminação artificial do centro comercial. Baixei a cabeça e olhei para quatro homens de meia-idade sentados em poltronas vermelhas dispostas num círculo largo. Dois folheavam jornais desportivos de clubes rivais e um dormitava com o queixo encostado na mão e o cotovelo apoiado no braço da poltrona. O último homem respirava pausadamente, com um sorriso nos lábios, enquanto olhava a mancha solar a seus pés. Um ou outro cabelo branco assomava, rebelde, numa cabeça quase calva. As mãos repousavam placidamente sobre o seu abdómen protuberante. – Vô! – um grito esfuziante de uma criança entrecortou o silêncio do corredor, o eco reverberando no ar. Os dois velhotes interromperam a leitura dos jornais e o outro estrebuchou e abriu os olhos. Virei a cabeça. Ao longe, dois homens tentavam, sem sucesso, acalmar uma menina, que, impaciente, acabou por se soltar das suas mãos. Correu para junto das poltronas e sem rodeios, pulou para os joelhos do grande homem, abraçando-o. Dois bracitos magros e compridos apertaram com vigor o seu pescoço enrugado. – Gosto muito de ti! – exclamou, mostrando um sorriso desdentado.


– Ora! – o avô disfarçou a emoção, amparando-a e levantando-se sem demora. Ignorou o peso da pequena criatura que se colava ao seu corpo como um molusco, com as pernas enroladas na sua cintura avantajada. – Está na hora? – perguntou aos dois homens que se tinham aproximado. – Sim, Pai – um deles respondeu, olhando com ternura para a filha nos braços do avô. Depois, virando-se para o parceiro – Um para a viagem? Ele sorriu e virou-se para mim, pedindo – Um, por favor. Apoiando-me na bancada, ergui-me com dificuldade, com o joelho a palpitar de dor. Verti o açúcar no reservatório, liguei-o e rapidamente doces fios enovelaram-se no fino pau de madeira. Sob o olhar atento da menina, girei-o habilmente nos dedos, moldando uma nuvem doce e alva. Coroada por um raio de sol, observei aquela família feliz a partilhar um enorme e fofo algodão-doce.


No dia em que te esqueci Momentos antes de me esquecer do teu nome tinha estado na adega. Agarrara na garrafa de vinho do porto do ano do teu nascimento, que tínhamos comprado na primeira viagem que fizemos, carregara-a nos braços com todo o cuidado, como me tinhas ensinado, a mais frágil das porcelanas que, mal saísse da prateleira, precisaria de mil cuidados. Deitada nos meus braços, assim amparada, qual bebé, eu tinha caminhado com todo o vagar deste mundo, evitando perturbar o seu descanso. Recordo-me bem o que pensei nessa altura: aos setenta e quatro anos só podemos caminhar assim, independentemente de termos uma garrafa de vinho nos braços ou não. Na cozinha, deitei-a na bancada junto ao lava-loiças, afastada da claridade da janela. Depois, sentei-me num banco de madeira, encostei-me ao armário e olhei-a. Era uma simples garrafa verde-escura, cheia de pó na parte de cima, como um véu sujo a resguardar o vidro. De seguida, comecei a erguê-la devagarinho, parando aos 120 graus, depois aos 90, enquanto inspirava e respirava profundamente a cada passo. Continuei a olhá-la, fixando a rolha marcada com as nossas iniciais, L e C, o meu C apoiando-se suavemente na tua letra protetora. Então, esqueci o teu nome. Naqueles breves e terríveis segundos, fiquei parada, de olhar estarrecido, os dedos engelhados pousados na boca aberta, até que, finalmente, voltei a recordar-me. Acaricio lentamente a garrafa e choro de saudade. Temendo esquecer-me de ti, de nós, há meia hora que murmuro sem parar o teu nome: Laura, Laura, Laura, Laura...


A camisola de caxemira cor-de-rosa Durante três noites, foi a minha companhia. Na nossa cama, abraçava-a e apertava-a com força, e, como a água que se entranha na terra sedenta, desejei que se infiltrasse pelos meus poros e me saciasse com o seu odor. Cheirava à água-de-rosas com que todas as noites limpavas o rosto antes de te ires deitar, à laca com que domavas o teu farto e grisalho cabelo, à pasta de dentes e ao elixir de mentol, à fragância de baunilha do teu perfume favorito. Ao mesmo tempo, cheirava a anos de refogados, a bolos que os nossos filhos levavam para a escola nos dias de aniversário, a compotas e a biscoitos e a vésperas de Natal em que nunca faltavam o bacalhau com couves e a perna de cabrito. Cheirava a trinta e oito anos de casamento, a quatro filhos e a sete netos. Aspirei-lhe o cheiro pela última vez, tentando gravar na memória, nesse precioso e imaterial instante, uma última recordação de ti. No derradeiro momento, e como era a tua vontade, fechei a porta do quarto do hospital onde estavas há sete meses e despi a camisola de caxemira cor-derosa, desculpando-me por a ter deformado com o meu tronco largo, os braços compridos, os cotovelos salientes. Ergui os teus braços frágeis e magros e, a custo, mas sem ajuda, vesti-te com a tua camisola preferida. Sorriste e encostaste-te às almofadas. Sentei-me ao teu lado, apertei-te a mão e aninhada nos nossos cheiros, fechaste os teus olhos cansados pela última vez.


Plenitude Marcando o tempo, o vento trouxe o primeiro compasso da ‘Ave Maria’. Quinze minutos antes, as seis badaladas tinham soado. Como que prolongando o eco religioso, a cama de ferro chiou. Rimos e desembaraçámos os corpos. O leito cálido ressumbrava de amor, quente e profano. Ela ergueu-se, ajeitando o cabelo que se tinha soltado do coque. Nua, tão bela como sempre, virou-se, procurou os ganchos debaixo da almofada e encontrou-os. Com uma centelha de brilho no olhar, fixou-o no meu, enquanto enrolava as ondas prateadas como o mar numa noite de lua cheia. Pela segunda vez nesse dia, domou-as com a desenvoltura de anos de prática. Levantou-se e procurou a bata. Segurei-lhe na mão e beijei-lhes os dedos compridos, encurvados, marcados por pequeninas manchas. Sei de cor quando cada uma surgiu, como sei de cor as rugas do seu rosto que, de olhos fechados, traço com as pontas dos dedos. O seu pescoço perdeu a elasticidade, os seios estão caídos, a pele está flácida. Agora, o amor faz-se demorando-se nos recantos que descubro de cada vez, nos sulcos da pele, num sinal que aparece, num cabelo branco que cobre o louro de antigamente, as suas pálpebras estremecendo quando lhe deposito um beijo na pele. Finalmente, ganho forças e ergo o corpo pesado. Ela ajuda-me a vestir, a calçar os sapatos, ajeita-me os óculos e passa a mão pelo meu cabelo grisalho. Saciadas, de mãos dadas, olhamo-nos demoradamente, e volto a ter vinte e cinco anos e ela, vinte e dois.


O César do tio Camilo O César e eu fazemos um par singular. Por vezes, estacamos à entrada da cozinha, olhamos para a bancada vazia e é como se o tio Camilo estivesse lá encostado a preparar o jantar. Recordo-me que, quando o mirávamos, virava a cabeça e, entre resmungos e sorrisos, apontava o armário com a faca, “Ele quer uma lata de atum. Um lorde, este gato. Atum em azeite, vejam só! Não bastava ao natural. Não bastava em óleo! Não, tem que ser em azeite”. Nessas alturas, choro. “Temos tantas saudades, não temos, César?”, murmuro para o gato silencioso. Nos melhores dias, ele pula para o seu lugar favorito, mia consolado, dá um enorme bocejo, deixando entrever um céu-da-boca molhado e umas presas brilhantes, e deita-se. Dorme horas seguidas. Vou encontrá-lo na soleira da porta, sentado muito direito e a observar a rua, qual sentinela esperando pelo dono ausente. Reage ao afago que lhe dou atrás da orelha, virando o focinho e encostando-o à minha mão. Afasto-me de casa. O César segue-me. Fazemos o mesmo trajeto do tio Camilo. Vamos à leitaria da dona Clara, eu bebo um café enquanto ela lhe dá uma fatia de fiambre; de seguida, passamos pelo minimercado do senhor Joaquim. Ronda-o, interesseiro. Sabe que não sairá sem comer um pedacinho de bacalhau. Regressamos a casa. Trago uma garrafa de vinho e uma lata de atum em azeite. O César caminha ao meu lado, de cauda no ar, qual antena sintonizada aos sons da sua rua. A Ângela colocou-lhe um chip, caso um dia se perca nestas andanças. Não é muito provável. Aqui, toda a gente o conhece. “É o César do Camilo”, dizem, passados tantos anos. Agora, estou sentada no sofá e ele descansa no cadeirão. Ao seu lado, em cima da arca, encontram-se uma velha telefonia Philips, uma pilha de revistas National Geographic, cinco livros com as lombadas gastas, um pesado cinzeiro


de cristal com rebuรงados de fruta e um antiquado candeeiro de metal que o tio Camilo desencantara numa loja de velharias. Um solitรกrio raio de sol espraia-se na base metรกlica. A sala resplandece.


Sobre a autora Margarida Leitão nasceu em Angola, cresceu entre a cidade de Viseu e a aldeia da avó; aos dezoito anos mudou-se para Lisboa. Atualmente, partilha um apartamento na margem sul com três gatas e uma tartaruga. Participou em duas edições do Pixel – Concurso de pequenas histórias lgbt, cuja coletânea foi publicada pela INDEX ebooks. Ganhou o gosto e começou a escrever contos. Foi pedindo títulos a amigos e ofereceu-lhes as histórias em formato de micronarrativa, não ultrapassando as 250 palavras. Publicou-as no seu blogue mas tu és tudo e tivesse um casa tu passarias à minha porta. Os amigos gostaram e incentivaram-na a continuar, tornando-se nos principais culpados pela edição do seu primeiro livro, Instantâneos, fragmentos da memória.


Sobre a editora A INDEX ebooks é uma editora especializada em ebooks de literatura gay em língua portuguesa a preços low-cost. A publicação de novas obras de literatura gay por autores portugueses, brasileiros ou de outros países de expressão portuguesa é muito reduzida, tal como a reedição de obras esgotadas. Por outro lado, a oferta em português de literatura gay traduzida é quase inexistente. A INDEX ebooks está focada em facilitar a todos os leitores o acesso a este acervo de obras. Por isso mantemos os nossos custos em patamares tão baixos quanto possíveis. Por isso usamos conteúdos de domínio público ou com licenças de uso livre. Por isso editamos apenas em formato digital e estamos 100% online. Por isso oferecemos as nossas edições a bibliotecas para que as disponibilizem aos seus leitores gratuitamente. Por isso oferecemos serviços de edição de ebooks a novos autores de manuscritos originais de literatura gay em língua portuguesa. O nome da editora faz uma referência irónica à Lista de Livros Proibidos da Igreja Católica, o Index Librorum Prohibitorum, uma lista de publicações proibidas, os “livros perniciosos”, criada em 1559 no Concílio de Trento (1545-1563), administrada pela Inquisição, ou Santo Ofício, que foi inicialmente utilizada como ferramenta contra o avanço do protestantismo e contra a corrupção dos fiéis. A última edição, publicada em 1948, continha 4.000 títulos censurados por várias razões: heresia, deficiência moral, sexualidade explícita, incorreção política, etc. Em determinados períodos da história, obras de cientistas, filósofos, enciclopedistas ou pensadores famosos como Galileu, Copérnico, Maquiavel, Erasmo de Roterdão, Espinosa, Locke, Berkeley, Diderot, Pascal, Hobbes, Descartes, Rousseau, Montesquieu, Hume ou Kant pertenceram a esta lista. Mais informação sobre as nossas publicações em www.indexebooks.com.


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