19 minute read

Da carne e da carcaça A miss e o dinossauro (2005)

Next Article
Aquelas pessoas

Aquelas pessoas

e A mulher de todos (1969)

Júlia Noá

A rejeição ao establishment não é feita por fálicos fuzis. A contrapartida à militarização é – em A mulher de todos – a volúpia carnal de uma mulher. O espaço do coletivo não é a organização de assembleias e palanques políticos, mas o gesto colérico de amor de Angela Carne e Osso ao dizer: “Eu amaria todos os homens do mundo”. A erótica resiste ao entojo do poder policial adestrador. Helena Ignez veicula em seu corpo a personagem Angela, o corpo indócil sobre o qual não recaem as regras sociais, a “inimiga número um dos homens”, a que conquista todos os homens e os larga sem melindres. Como atriz e como produtora, Helena construiu parte do que seria um período incontornável do cinema brasileiro. Ganhou inúmeros prêmios e foi fundadora e idealizadora da produtora carioca Belair, junto a Julio Bressane e Rogério Sganzerla. Como um lampejo que cruzou o céu do cinema brasileiro, a Belair foi um coletivo que mal nasceu e foi implodido pelos adventos autoritários que tomaram conta do país em meados dos anos 1960. Forjado em meio a agitações socioculturais, o coletivo teve uma breve existência de menos de quatro meses, entre fevereiro e maio de 1970, e sete filmes, que culminou com o exílio de seus membros.

O curta-metragem A miss e o dinossauro (2005) é o segundo filme dirigido por Helena

Ignez depois de seu retorno ao Brasil. Ainda que já houvesse retornado seus trabalhos no campo da atuação desde meados dos anos 1980, período em que saiu do exílio, A miss e o dinossauro estabelece um marco tanto em sua carreira de diretora como também em um movimento de mirada ao que havia sido a Belair e quais seriam suas inflexões na contemporaneidade. A investida da diretora de recapitulação de um material da qual ela mesma fez parte produz como efeito um espelhamento fractal. Desmembrar imagens conhecidas e reorganizá-las, em parelha, com arquivos não antes vistos gera um encadeamento de ideias calcado na lembrança, na rememoração, mas que visa à articulação de novos sentidos.

A miss e o dinossauro é um filme sobre um corpo coletivo no derradeiro dia de sua existência. A festa que sobressai ao luto do exílio, a partilha do olhar que é, também, a partilha do desejo de filmar. O curta-metragem de Helena Ignez é um making-of tardiamente elaborado, que desabrocha como retrato-homenagem daqueles últimos momentos de existência da Belair, delongando a existência fugaz desse empreendimento. Ao reorganizar, a seus moldes, imagens produzidas à época, Helena Ignez não se deixa inebriar pelo saudosismo. A visada em perspectiva, atualizada, se combina à ternura daqueles fotogramas, e é nesse desmoronamento de expectativas que está a grandiosidade da obra.

O filme dá início ao que seria um projeto híbrido de criação e apropriação de imagens da Belair retrabalhadas pelo olhar de quem a fundou, uma mulher mirando seu próprio passado através dos materiais produzidos pela sua trupe. As reflexões que realiza, entretanto, não se limitam à mera homenagem ao grupo do qual fez parte, mas ensejam debates sobre a realidade social daquele momento e, sobretudo, a coloca em discussão com o contemporâneo. Ao se debruçar sobre o arquivo da Belair, Helena Ignez manuseia seu próprio corpo materializado na película, sua atuação experimental reelaborada a partir do olhar de si sobre si, sempre atravessada por esses outros personagens-amigos que permearam aquele momento. Cria-se um duplo, portanto: a intimidade e o público. Os filmes de Helena Ignez se alimentam de imagens, sons e palavras do passado. O filme abraça a melancolia dos eventos ao não se furtar da sensação de finitude que permeia os últimos dias da Belair. A recuperação de um material sensível a nível pessoal e coletivo é o que faz de A miss e o dinossauro um filme que trafega pleno entre a apropriação de frames, o documental e o registro caseiro, meio making-of, meio colagem.

Helena detém em suas mãos imagens que ecoam na esfera do privado e do coletivo, que se intercambiam entre si sem hierarquia particular entre o que está no âmbito do íntimo e do compartilhado, fazendo uma espécie de descentralização anárquica que remete justamente ao material que manipula. O aspecto marginal, aqui, se presentifica na relação desimpedida entre a diretora e as imagens, na liberdade semântica de criação. A desobediência formal como elemento fulcral da elaboração criativa do filme prospera no encadeamento catártico estabelecido entre as cenas, numa busca incessante pela compreensão cinematográfica da baderna que é o Brasil.

Angela Carne e Osso é muitas coisas: ela é casada e é devassa, é apaixonada e desapegada, é envolvente e fria, é ultrapoderosa e ultrassensível. Relacionado à produção marginal, A mulher de todos é uma incursão na vida caótica da protagonista, mediada por uma câmera que se interessa por amplificar. Bastante fragmentário, o filme retrata a viagem de Angela à Ilha dos Prazeres, praia de nudismo onde se permite a maior sorte de libertinagens. Angela é casada com Dr. Plirtz (interpretado por Jô Soares), “o mais boçal dos homens”, empresário rico e abestalhado a quem constantemente trai. Angela é inescrupulosa, seu enfado em relação aos homens se equipara ao tesão que sente por eles, os assalta com seu corpo sempre à mostra e não escanteia seu desejo, seja de conquistar, seja de largar.

A sina marginal repousa no corpo esguio de Angela, espaço físico da contravenção. A superfície interessa ao filme e à protagonista, no sentido material mesmo, em que a linguagem exprime o mesmo temperamento caótico de Angela, em uma espécie de simbiose entre câmera e objeto, que se retroalimentam de suas próprias erupções. A manifestação corpórea é dada através de uma nudez incessante, que tem no pudor uma manifestação forte contra a qual se empenha em acachapar. O pudor é a ordem, é velar o desejo, é a família, é a supressão da sexualidade. Como fábula, Angela é a canibal antropofágica que devora os boçais; como mulher, ela é a antítese do ideal feminino submisso, mas, mais do que isso, ela ultrapassa qualquer conformismo identitário, qualquer regra castradora, qualquer lógica de comportamento “bom-mocista” que a iniba de operar em função de seu próprio desejo. A lei estabelecida por Angela e pela marginalidade enquanto método é a lei orgânica do corpo, que permite a descoberta de algo inesperado frame a frame , membro a membro; é a lei que coloca tudo que se conhece sob suspeita ao mesmo tempo que suspende a vigilância hierarquizada em que os termos que definem a qualidade da linguagem, falada ou manipulada, são erradicados em benefício de um cinema e de uma vida que consegue aproveitar da carne e da carcaça.

Não é propositivo no que tange à busca de uma consagração tradicional, não mira a autorização externa e, ao mesmo tempo, anseia a disrupção interna. Assim como em O paraíso proibido (1970), de Carlos Reichenbach, também exibido na Sessão

Cinética, de um filme que se contenta com seu próprio peso e fala sua própria língua insubordinada à tradução. Reichenbach, Sganzerla e Ignez incorporam a precariedade dos modos de produção “terceiro-mundistas” sem que haja a pretensão de se fazer um discurso suntuoso marcado por verbos intelectuais. A intenção aqui é outra, é a transmutação do raciocínio do proceder do lixo para ser o lixo. O lixo comporta tudo, não faz a decoupage das carnes nem separa os legumes, não escapa daquilo que jogam dentro dele. O lixo aceita, decompõe, reduz ao chorume todas aquelas partes incongruentes, produz uma matéria (torpe, de fato) que só ele é capaz de produzir em sua resiliência e auto aceitação.

O outro lado da aposta era no vigor do cinema de gênero, reclamam para si elementos cênicos e narrativos clássicos na costura de uma cinematografia heterogênea que indiscriminadamente recolhe suas referências. Em ambos os filmes, cada um à sua maneira, se detecta um humor ácido característico das chanchadas brasileiras, gênero popular que vinha sendo recalcado pela intelectualidade e que, pro Cinema Marginal/Boca do Lixo, retorna com status renovado. Aqui, a lógica mercantil não é, então, afugentada como oposição ao cinema “autoral”; pelo contrário, é a partir dela ou em função dela que muitos desses filmes são feitos. Ainda que com profundas diferenças em termos de estilo e de apostas estéticas, ambos os filmes partilham do desejo de serem vistos e compreendidos como brasileiros na mais profunda de suas contradições.

A batalha não é contra o establishment e contra o cinema comercial, tampouco se ocupa de se opor ao cinema intelectual, é um combate à morosidade dos rótulos, do cinema sem envergadura, desapaixonado. A mulher de todos é um filme chanchadesco, mas também é irônico e vanguardista; tem uma protagonista que cativa, mas que tem motivações torpes. Os pactos imersivos com o espectador são rompidos, caem as cortinas da ilusão, mas, debaixo delas, ainda reside um espetáculo bélico, divertido e amoral. A função política não reside no discurso, mas no gesto mesmo de apreender, no tecido fílmico, a explosão multifacetada que é o Brasil. Angela como metáfora antropofágica, porque ela comporta, em si, todos os discursos, do clássico ao vulgar. Angela é o corpo feroz que não negocia com o poder, porque ela é, em si, seu próprio poder absoluto, sua própria régua, sua própria lei. O Cinema Marginal tem um tanto de Angela em si não porque a fabricou, mas porque a cosmologia caótica regeu essas forças criativas e a Belair permite que tudo esteja dentro do todo e produz o efeito radical ensejado pelo grupo. Ignez e Sganzerla confabularam um cinema amotinado de referências que mirava, na superfície chamuscada, a elaboração de um retrato brasileiro receptivo a sua própria crueza, desordem e mistificação.

A praga

Pedro Junqueira, Matheus Sundfeld, Luis Claudio Bonacura, Cédric Fanti e José Mojica Marins | Brasil | 2021, 70’, DCP (Elo Studios)

A praga é o último filme inédito dirigido pelo mestre do horror José Mojica Marins, também conhecido como Zé do Caixão. No filme, o casal Marina e Juvenal passeia pelo campo e para em frente à casa de uma estranha idosa para tirar fotos. Irritada, a mulher se revela uma bruxa e joga uma maldição em Juvenal: uma perseguição psíquica horrorizante, provocando uma ferida que se abre em seu corpo de forma descontrolada. O ferimento leva Juvenal a uma fome insaciável por carne crua.

Inicialmente, A praga foi concebido como um episódio do programa Além, muito além do além, escrito por Rubens Francisco Lucchetti e exibido pela TV Bandeirantes entre 1967 e 1968. Essa primeira versão da história se perdeu em um incêndio na emissora e, em 1980, Mojica decidiu refilmá-la, mas não conseguiu concluir o trabalho. Após mais de 15 anos empenhado na recuperação das obras de Mojica, Eugênio Puppo encontrou os rolos de filme originais do projeto, que eram considerados perdidos. Sabendo da grande afeição do mestre pela obra, o produtor trabalhou na correção de cores, remasterização sonora, trilha musical e até na inclusão de dublagem, já que as gravações das vozes originais não foram encontradas. A história desse processo de restauro em 4k foi registrada no curta-metragem documental A última praga de Mojica, que antecede a exibição do filme.

“Todo o cuidado que tivemos com a recuperação do filme foi importante para não deixar que ele se perdesse através da história”, conta Puppo em depoimento disponível no material de imprensa do filme. “Fizemos de tudo para manter a autenticidade, oferecer ao público algo muito próximo do que tínhamos encontrado, com a veracidade de um autêntico filme de Mojica. Quando me contava sobre os vários trabalhos que não conseguiu concluir, ele sempre fazia referências a A praga. Agora, finalmente, o filme terá um lançamento à altura de sua importância.”

Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).

Asteroid City

Wes Anderson | EUA | 2023, 104’, DCP (Universal)

No mais recente filme de Wes Anderson, somos apresentados aos bastidores e à encenação de uma peça chamada Asteroid City, que se passa em 1950 em uma cidade fictícia do deserto norte-americano. Na peça, uma convenção juvenil de astrônomos é interrompida por uma série de eventos misteriosos.

“Asteroid City era algo sobre o qual Roman Coppola e eu estávamos conversando. Durante muito tempo, pensei em fazer algo que tivesse a ver com o teatro aqui [na cidade de Nova York] quando ele estava em seu último auge – seu último momento de ouro, ou algo assim. A era do Actors Studio e a Broadway”, comenta Wes Anderson em entrevista ao portal The Daily Beast. “Tínhamos mais ou menos duas coisas. Queríamos fazer algo com Jason Schwartzman no centro; tínhamos a ideia de escrever um papel para Jason. Acho que tínhamos a sensação de que seria um pai que está lidando com um momento de extrema tristeza.

Depois, tivemos a ideia de fazer algo em um palco, e também contaríamos a história da peça que eles estavam montando, e isso seria uma grande parte do filme. [...] Estávamos pensando em algo parecido com Sam Shepard, em algum lugar do Oeste. Então, tudo se misturou e se tornou essa coisa dos anos 1950.”

“Há muitos filmes de deserto dos anos 1950 (e anteriores) – é meio que uma coisa americana. Voltei a alguns desses filmes e assisti a vários que nunca tinha ouvido falar antes, e foi interessante. Há um novo tipo de cinema que acontece nos anos 1950, com o Cinemascope. Há um tipo de cinema em widescreen, o de David Lean, que tem essa coisa épica. E há outro tipo com o qual me associo mais, não necessariamente de filmes B, mas não tão prestigiados, que têm uma natureza selvagem e uma energia diferente. Eles não têm o ritmo dos filmes dos anos 1930, mas têm algo feroz que, em parte, vem do mundo de [Elia] Kazan. Mas também acho que isso pode ter algo a ver com essa nova forma da imagem e para onde ela está levando os cineastas.”

[Íntegra da entrevista, em inglês: bit.ly/imsacity]

Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).

Canção ao longe

Clarissa Campolina | Brasil | 2022, 76’, DCP (Vitrine Filmes)

Vinda de uma família tradicional de Belo Horizonte, Jimena é uma jovem arquiteta, responsável pelo desenho técnico da nova sede da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais. Seu pai deixou o Brasil quando ela tinha só 4 anos, e, após um longo afastamento, eles voltam a se comunicar através de cartas. Filha de uma mãe branca e um pai negro, Jimena busca sua identidade enquanto lida com a inadequação de morar com uma família branca e se identificar com um homem negro que não vê há tempos.

Em entrevista ao blog Colab, da Faculdade de Comunicação e Artes da PUC Minas, a diretora Clarissa Campolina reflete: “Eu acho que todos os meus trabalhos têm uma transformação, algo em transformação, em movimento, às vezes mais ligados a esse cinema diário, cinema ensaísta e, às vezes, ligado ao cinema da paisagem, mas cada um com características particulares. De alguma forma, os filmes buscam sempre um lugar para se estar e um jeito de se transformar.”

“Lá no Girimunho [2011, codirigido com Helvécio Marins Jr.], a Bastú começa em luto, e é o acompanhar da transformação dela, dessa passagem. No Canção, é a busca de uma jovem mulher que procura o lugar dela no mundo. Começou motivado pela questão da família, o que é a família. Eu estava grávida na época em que comecei a escrever, e fiquei me questionando: eu sou hétero, tenho meu companheiro, a gente está junto até hoje, já estávamos juntos há um tempo, e eu engravidei. Aí eu falei: ‘Cara, eu estou nesse modelo porque é um modelo ou por que eu quero?’. Na época, estava tendo aquelas enquetes no Senado sobre o que é família, é composto por um homem e uma mulher? Pode ser composto por duas mulheres? Tinham várias perguntas, e eu tinha certeza de que família não é só isso que eu estava construindo, existiam outras possibilidades. Eu tenho uma amiga que os pais são separados, e ela se relaciona com o pai por cartas, ele mora em um país da América Latina, e eles não tinham se visto desde quando ele deixou o Brasil, quando ela tinha 7 anos. Aí, a partir desse desejo que eu tinha da história dessa minha amiga, eu comecei a desenvolver um argumento e um desejo de olhar um pouco para essas estruturas. Eu acho que o filme fala um pouco de raça, de classe, de gênero, a partir de um drama familiar.”

[Íntegra da entrevista em: bit.ly/cançãoao]

Ingressos: R$ 15 (inteira) e R$ 7,50 (meia).

Eami

Paz Encina | Paraguai, França | 2022, 85’, DCP (Filmicca)

No idioma do povo indígena AyoreoTotobiegosode, “eami” significa “floresta”. Também significa “mundo”. Atualmente, eles vivem em uma área que está sofrendo o desmatamento mais rápido do planeta, no Chaco paraguaio.

A diretora Paz Encina mergulhou na mitologia Ayoreo-Totobiegosode e ouviu histórias sobre como as pessoas estão sendo expulsas de suas terras. A partir dessa experiência, fez um filme sobre uma menina de cinco anos chamada Eami. Depois que sua aldeia é destruída e sua comunidade se desintegra, Eami vagueia pela floresta tropical. Ela é o deus-pássaro – explica em voice-over em seu próprio idioma – procurando por quem quer que tenha sobrado. “Lembre-se de tudo”, diz o lagarto/velho que acompanha Eami em sua jornada.

Em entrevista à revista Variety, Encina comenta o processo de realização do filme, desde o encon- tro com a comunidade indígena até o trabalho de reelaboração do roteiro na sala de edição: “Logo no início do processo, me surpreendi ao ver que quase não havia contato físico entre pais e filhos, eles nunca se abraçavam, mal se tocavam. Logo percebi que isso se devia ao fato de que, para eles, tudo é transmitido por meio de palavras. É uma relação profunda com o mundo por meio da oralidade, a linguagem está no centro e estrutura toda uma relação. Eles não usam nossas convenções verbais com relação ao tempo. Por exemplo, falam todos ao mesmo tempo, ao contrário de nós, que esperamos que o outro termine a frase. É uma harmonia totalmente diferente, em que a palavra é essencial. Portanto, o filme só poderia seguir essa mesma estrutura lógica, em que não há futuro ou passado, e se baseia fortemente em suas palavras. Um dos momentos mais bonitos foi quando uma mulher me disse: ‘Para mim, isso é amor, o que estamos fazendo agora, o encontro com a palavra’.”

“Tive a imensa sorte de trabalhar com Jordana Berg, a editora dos filmes de Eduardo Coutinho. Foi como uma escola de edição, um sonho que se tornou realidade. Fiquei maravilhada com seu processo, e ela me ajudou imensamente, pois eu havia escrito o filme e, como sempre acontece, você chega à sala de edição, e o filme não é mais aquele. Eu havia filmado rostos e entrevistas que achei que seriam centrais e poderiam se tornar o fio condutor, mas não funcionou, então tivemos que reescrever o filme, literalmente. Fizemos muitas subtrações e reformulações. Mas ela fez uma imensa contribuição espiritual, estive na sala de edição com essa mulher que podia ver através do que havíamos encontrado durante a filmagem e encontrar as pérolas. Parecia uma jornada interior que percorremos juntas, lado a lado. Foi maravilhoso, mas tempestuoso, porque muitas vezes eu me sentia muito perdida.”

Em 2022, Eami foi o vencedor do Tiger Award, prêmio principal do Festival de Cinema de Roterdã.

[Íntegra da entrevista, em inglês: bit.ly/imseami]

Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).

Fantasma neon

Leonardo Martinelli | Brasil | 2021, 20’, DCP (Vitrine Filmes)

Um entregador de aplicativo sonha em ter uma moto. Disseram a ele que tudo seria como um filme musical.

Fantasma neon, primeiro filme do diretor viabilizado a partir da captação de recursos públicos, via Lei Aldir Blanc, estreou em 2021 na competição oficial do Festival Internacional de Cinema de Locarno, na Suíça, no qual recebeu o Leopardo de Ouro de Melhor Curta-Metragem. De lá para cá, o filme reuniu exibições e prêmios ao redor do mundo. Em entrevistas concedidas respectivamente aos portais Le Polyester e Le Monde Diplomatique, Leonardo declara:

“Estou convencido de que é possível fazer um filme que trate de problemas realistas, políticos do mundo contemporâneo, mas com uma encenação estilizada. Com essa ideia em mente, eu e nosso diretor de fotografia, Felipe Quintelas, pensamos em como aproximar as ruas antigas do Rio de Janeiro desses personagens que pertencem ao mundo moderno. Cada construção arquitetônica da cidade nos mostra uma justaposição de realidades.”

“O filme traz essa hibridez de um documentário, com um viés dramático e de fantasia, mas, ao mesmo tempo, também tem alguns elementos documentais, como os depoimentos no início, que são reais. Usamos o musical como uma plataforma de contraste narrativo, mas também espacial. Como contrastar o cinema mais fantasioso possível, o menos diegético, que é a fantasia musical, com as realidades mais duras de extinção de direitos trabalhistas que o Brasil enfrenta hoje?”

O curta-metragem Fantasma neon será exibido junto ao filme Fogo-fátuo

[Citações extraídas de bit.ly/fantasneon e bit.ly/fantasmaneon, respectivamente em francês e português.]

Fogo-fátuo

João Pedro Rodrigues | Portugal, França | 2022, 67’, DCP (Vitrine Filmes)

2069, ano talvez erótico – logo veremos –, mas fatídico para um rei sem coroa. No seu leito de morte, uma canção antiga o faz rememorar árvores, um pinhal ardido e o tempo em que o desejo de ser bombeiro para libertar Portugal do flagelo dos incêndios foi também o despontar de outro desejo.

Neste filme, que se apresenta como uma fantasia musical, João Pedro Rodrigues tensiona, a partir de seu ponto de vista, visões de raça, classe e sexualidade, ao fabular o encontro amoroso entre Alfredo, um homem branco, um “príncipe” que não quer ser príncipe, e Afonso, aparentemente o único homem negro entre os bombeiros da corporação. Uma tensão que se coloca já em uma das primeiras imagens, na qual descendentes brancos da família real estão em primeiro plano e têm ao fundo uma pintura do fim do século XVIII realizada no seio do racismo colonial por- tuguês pelo pintor oficial do império. João Pedro Rodrigues fala sobre o quadro em algumas de suas entrevistas recentes:

“A pintura é do século XVIII e se chama O casamento da preta Rosa, de José Conrado Roza”, disse ao portal Film Comment. “Retrata uma cerimônia de casamento que uma das nossas rainhas fez para anões. Preta Rosa era a confidente da rainha. A pintura é uma representação relativamente diversa: tem um homem brasileiro, um indígena – todos anões. O quadro está agora no Musée du Nouveau Monde, em La Rochelle, na França, e é chamado de Mascarada nupcial. Acho que fala muito dos tempos que estamos vivendo. Não se pode chamar um quadro de O casamento da preta Rosa hoje, porque é considerado racista – e é claro que é, mas também era esse o título que o quadro tinha. O filme é sobre esse tipo de sutilezas – o que você pode dizer e o que não pode dizer.”

Ao mencionar o quadro em um debate após o filme no Cinema Nimas, em Lisboa, o diretor declara também: “É muito curioso que, na pintura, cada personagem tenha pintada, nas roupas, a sua história, o nome, quando veio, quando chegou à corte, quem o trouxe… Para mim, é como se toda a nossa história passada estivesse ali representada. No fundo, tratou-se de usar aquela obra como uma espécie de pano de fundo, como uma pintura que atravessa épocas. No filme, ela está na casa da família desde o início, e percebe-se que é uma espécie de herança de família que eventualmente será vendida no final.”

Fogo-fátuo foi exibido na Quinzena dos Realizadores, no Festival de Cannes, em 2022. O filme será exibido junto ao curta-metragem Fantasma neon.

[Citações de João Pedro Rodrigues extraídas do portal Film Comment, em inglês: www. filmcomment.com/blog/interview-joao-pedro-rodrigues-on-will-o-the-wisp/ e À pala de Walsh, em português: bit.ly/fogofatuope]

Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).

Luz nos trópicos

Paula Gaitán | Brasil | 2020, 260’, DCP (Descoloniza Filmes)

Em Luz nos trópicos, a cineasta e multiartista

Paula Gaitán tece uma densa estrutura de histórias e linhas do tempo, enredados por cosmogonias indígenas, cadernos de viagem e literatura antropológica. O filme é um tributo à abundante vegetação das Américas e às populações nativas do continente. Um rivermovie, filme de navegação, livre como um rio sinuoso.

“O filme foi se transformando ao longo de 15 anos, porque a primeira versão do roteiro foi de 2003 e o nome também é de 2003”, conta a cineasta em entrevista a Camila Macedo para o festival Olhar de Cinema. “Na realidade, quando eu comecei a fazer o filme ele estava muito mais ligado à própria ideia da fotografia, da história da fotografia. Muito inspirado pela história do Hercule Florence, que fez a descoberta isolada da fotografia no Brasil. Era uma ideia mais de pesquisa da própria imagem, que é um projeto que per- corre todo o meu cinema. [...] Quando eu consegui materializar imagens e sons com essa equipe maravilhosa, eu já tinha colocado algumas das ideias do Luz em outros projetos. Então o roteiro também teve que ir se modificando. O roteiro também sofreu o processo da Paula amadurecendo como realizadora, do mundo se transformando. Não foi um roteiro que se congelou no tempo. Então meus interesses também foram se abrindo e também o Brasil foi… Não dá mais pra ter uma visão muito de observação. O Brasil também foi se transformando. Não é um cinema que pode se manter ligado apenas à questão da própria imagética. [...] Por isso que eu digo que é um filme que tá ainda em processo. É uma obra expandida. Tanto que outro dia eu sentei aqui pra começar a editar uma quarta parte. Eu não contei isso pro Vitor [Graize, produtor] pra ele não ficar nervoso. Eu senti essa necessidade vital. Não é gratuito.”

“É um filme brutal também. É um filme político, muito político. Ele não é exatamente político explícito, mas ao colocar na tela uma mulher Kuikuro, uma mulher indígena, a Kanu, uma das nossas protagonistas, fazendo um beiju na sua duração, é trazer de volta a importância dos gestos. Os primeiros gestos, aquilo que já foi esquecido. O tempo de produzir o alimento. No fundo, é um filme materialista dialético. Ele tem uma base não só no contemplativo, não é uma questão estética, é o tempo mesmo tanto da personagem da Kanu quanto da personagem da Maíra [Senise], que é a escultora. É o tempo do fazer as coisas, o tempo do objeto, da realização da própria vida.”

Luz nos trópicos teve sua première mundial na mostra Forum do Festival de Berlim em 2020. No Brasil, no mesmo ano, recebeu o prêmio de Melhor

Filme no 9º Olhar de Cinema – Prêmio de Melhor Filme. O elenco conta ainda com a participação dos artistas Paulo Nazareth e Arrigo Barnabé.

[Íntegra da entrevista ao Olhar de Cinema: bit.ly/ Luztró]

Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).

Máquina do desejo

Joaquim Castro, Lucas Weglinski | Brasil | 2023, 110’, DCP (Descoloniza Filmes)

Em seis décadas, o Teatro Oficina fez mais que revolucionar a linguagem teatral no país: a influência estética da companhia de José Celso Martinez Corrêa estende-se do Tropicalismo à renovação das linguagens audiovisuais brasileiras a partir dos anos 1960. A partir do precioso acervo audiovisual da Associação Teatro Oficina Uzyna Uzona, o filme revisita uma história que envolve personalidades como Caetano Veloso, Glauber Rocha, Lina Bo Bardi, Chico Buarque e José Mojica Marins, aproxima arte cênica, ecologia, arquitetura e sexualidade, e se propõe a misturar arte e vida em busca de uma linguagem verdadeiramente brasileira.

Originalmente previsto para estrear em outubro, o filme teve o lançamento antecipado como parte de um mutirão artístico em homenagem a Zé Celso.

Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).

This article is from: