Viver em Igarapé Grande: Cotidiano e História em narrativas ribeirinhas

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Universidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação Curso de Licenciatura Plena em História

Inácio dos Santos Saldanha

Viver em Igarapé Grande: Cotidiano e História em narrativas ribeirinhas

Belém 2018


Inácio dos Santos Saldanha

Viver em Igarapé Grande Cotidiano e História em narrativas ribeirinhas

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciado Pleno em História, Universidade do Estado do Pará. Orientadora: Prof. M. Venize Nazaré Ramos Rodrigues

Belém 2018


Inácio dos Santos Saldanha

VIVER EM IGARAPÉ GRANDE: COTIDIANO E HISTÓRIA EM NARRATIVAS RIBEIRINHAS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Licenciatura Plena em História da Universidade do Estado do Pará como requisito para obtenção do título de graduado em Licenciatura Plena em História. Orientação: Professora Msc. Venize Nazaré Ramos Rodrigues.

Data de aprovação: 10/09/2018

Banca Examinadora: - Orientadora Profª Msc. Venize Nazaré Ramos Rodrigues Universidade do Estado do Pará - UEPA - Membro da Banca Examinadora Prof. Dr. Agenor Sarraf Pacheco Universidade Federal do Pará – UFPA - Membro da Banca Examinadora Prof. Dr. Jairo de Jesus Nascimento da Silva Universidade do Estado do Pará – UEPA


Dedico este trabalho a minha avó, Raimunda Gonçalves (em memória), filha de Igarapé Grande, que ajudou a me educar e me deu todo o alento de que sinto tanta falta. Com este trabalho espero fazer um pouco de justiça à mulher que fez o que pôde para que os filhos fossem para a escola, como tantas outras. Nunca esqueceremos de tudo o que você fez por nós.


AGRADECIMENTOS Eu gostaria de dividir meus agradecimentos em três blocos: as pessoas de Curuçambá, as de Igarapé Grande e as de Belém. Em Curuçambá, agradeço a minha família, que me apoiou, ajudou e torceu por mim nas incontáveis vezes que eu precisei. As minhas tias Maria e Auxiliadora, o tio Clóvis, a Carla, a Verônica, a Vanessa, o Vinnicius, o meu irmão Valter e tantos outros e outras que acreditaram em mim e me ajudaram a tornar este trabalho possível, mesmo com todas as adversidades, mesmo com todas as incertezas. Aos meus cachorros Preta, Lola e Dengoso, que são os amores da minha vida. Agradeço a minha mãe, que se esforçou e se preocupou de uma forma extraordinária para me ajudar, que torceu pelo sucesso deste trabalho mais do que qualquer um, apesar dos atritos e das dificuldades. Os meus padrinhos Carlos José e Nazaré, que me compreenderam e me ajudaram como eu jamais imaginei que alguém o faria por mim, vocês estarão sempre em meu coração. Gostaria de dizer a todos os meus familiares que este trabalho mudou a forma como eu vejo a nós todos, me permitiu ver melhor o nosso lugar no mundo. No momento em que eu escrevia, enquanto redescobria a cidade que nós vimos se transformar desde o início, perdemos o Maurílio para as milícias e tivemos medo de sair de nossas casas. A História é dolorosa, mas devemos lutar para que seja justa; este trabalho não seria possível sem a sua ajuda, e saibam que a História que está nessas páginas também é a de vocês. Agradeço também à professora Selma, que me levou a casa de seu Nazareno e foi a primeira a contribuir para esta pesquisa. Ao seu Nazareno, que teve a gentileza de compartilhar suas memórias comigo e a confiança de me emprestar seu livro. Ao seu Raimundo, por também me conceder entrevista, pela enorme paciência, confiança e disponibilidade, de quem eu tive a alegria de me descobrir sobrinho. Em Igarapé Grande, agradeço à “tia” Thereza, pela hospedagem, pela enorme contribuição, para além da própria entrevista, e a sua família: Manoel, Matheus, Maria, Socorro, Boto, Tomásia, Paulo e todos os que me receberam na Cabeceira com paciência e disposição extraordinárias. A atenção e a


animosidade no transporte, nas conversas e sugestões foram fundamentais para a execução da pesquisa e para a escrita do trabalho. Agradeço também a Raimundo dos Anjos, o seu Dico (em memória), que foi o primeiro a se dispor a me ajudar em Igarapé Grande; ao seu Cristino, ao seu Tonico e a dona Olanda, que dividiram comigo um pouco de suas memórias nas entrevistas. Também ao Lucivaldo, pelo transporte, e ao Hélio, pela conversa sincera. Ao meu tio Valdir e à minha “prima” Marta, que foram extremamente acolhedores e atenciosos comigo, me permitindo ver nas entrevistas e na pesquisa como um todo uma parte de minha própria História. Conhecer melhor Igarapé Grande e suas Histórias transformou-me como pessoa; por isso, esforcei-me para dar de volta a comunidade um trabalho que faça justiça a riqueza de experiências e narrativas que vocês têm a compartilhar, e com os quais temos tanto a aprender. Em Belém, agradeço a professora Venize Rodrigues pela orientação valiosa, pelas sugestões, incentivos e cobranças, e pela paciência exemplar para com quem ainda aprende a pesquisar. Aos professores Tony e Andrea que, aos seus modos, também contribuíram para a produção deste trabalho; à professora Denise, pelo apoio psicológico no início da pesquisa. A Thales Ravena-Cañete eu também agradeço a bondade de me enviar sua tese, muito importante para todos nós que somos filhos e parentes das ilhas. Mesmo não podendo citar todos, agradeço aos amigos e amigas que me ajudaram a respirar e reconsiderar tantas coisas, com apoio, sugestões, compreensões e desabafos: Jaci, Ana Paula, Ícaro, Paulo Henrique, Dayana, Ysiadnne, Lucas Franco, Amanda, Patrícia Rodrigues e Patrícia Pinheiro, Larissa, Igor, Pedro Henrique... Obrigado também aos amigos que me apoiaram e me consolaram mesmo a centenas de quilômetros de distância; especialmente Vinnicius Roberto, Maras, Ali, Ana Bia, Paulo Mendonça, Paloma e outros. Este trabalho jamais seria possível se eu estivesse sozinho.


RESUMO Este trabalho visa cartografar as continuidades-transformações que marcam os modos de viver, fazer e saber na História recente da comunidade ribeirinha de Igarapé Grande, localizada na ilha de João Pilatos, em Ananindeua (Pará), através das narrativas de seus moradores. Mais especificamente: a gênese, o trabalho, o transporte, o lazer, a cura, o imaginário e a educação; sempre considerando as linguagens e saberes locais como autônomos e aliados da investigação histórica. Dessa forma, aponto a percepção da gênese e do processo histórico da comunidade de Igarapé Grande nas narrativas de seus narradores; definir a relação histórica da comunidade com os demais distritos e comunidades da região (Icoaraci, Outeiro, Benfica, Murinin, Curuçambá e outros) e o modo de vida da região metropolitana de Belém; e compreender como as formas de saber e de trabalhar vêm reagindo frente as transformações que os sujeitos locais vivenciam no social, no ambiental e no cultural. Ao longo deste trabalho busquei responder algumas questões que se constituíram como fios condutores da pesquisa: Como os moradores de Igarapé Grande vêem e contam a sua História? De que forma a proximidade da ilha com o modo de vida urbano de Belém e Ananindeua, tem afetado a sociabilidade da localidade? O que muda e o que permanece em termos de trabalho e cultura dos moradores de Igarapé Grande? Para tanto, realizei entrevistas orais posteriormente transcritas, acrescentando-lhes a revisão das pesquisas já realizadas sobre a comunidade e um viés etnográfico pautado na observação em campo, na conversação informal e na produção de fotografias. O trabalho foi organizado como uma viagem, e dividido em três capítulos: a partida (apresentação da bagagem teórico-metodológica e do destino-objeto, contemplação do lugar da comunidade em seu município), a chegada (as narrativas dos moradores sobre sua gênese e seu presente) e a estadia (apontamento mais profundo das transformaçõescontinuidades nos diversos âmbitos da vida em Igarapé Grande). A “estadia” revela uma comunidade que, ao contrário do que foi pensado no começo da pesquisa, sempre esteve e ainda está em transformação, sendo através da proximidade com a região metropolitana de Belém, historicamente muito mais moderna do que tradicional.

Palavras-chave: Amazônia, Ribeirinhos, História Oral, História Conectada.


ABSTRACT This paper aims to map the continuities and transformations that set the ways of living, doing and knowing in the recent History of the riverside community of Igarapé Grande, located on the island of João Pilatos, in Ananindeua (Pará), through the narratives of its residents. More specifically: genesis, work, transportation, leisure, healing, imagination and education; always considering the local languages and knowledge as autonomous and allied to historical research. In this way, I aim to point out the perception of the genesis and the historical process of the community of Igarapé Grande in the narratives of its narrators; to define the historical relationship of the community with the other districts and communities of the area (Icoaraci, Outeiro, Benfica, Murinin, Curuçambá and others) and the way of life of the metropolitan area of Belém; and to understand how the ways of knowing and working are reacting to the transformations that local people experience in social, environmental and cultural contexts. Throughout this paper I sought to answer some questions that were constituted as guiding threads of the research: How do the residents of Igarapé Grande see and tell their History? How has the proximity of the island to the urban way of life of Belém and Ananindeua affected the sociability of this area? What changes and what remains in terms of work and culture of the residents of Igarapé Grande? To that end, I conducted oral interviews that were later transcribed, adding to them the review of the researches already done on the community and an ethnographic perspective based on field observation, informal conversation and photo production. The work was organized as a trip, and divided into three chapters: the departure (presentation of the theoretical and methodological background and the target object, contemplation of the community place in its municipality), the arrival (the residents' narratives about their genesis and their present time) and the stay (a comprehensive presentation of the transformations and continuities in the different scopes of life in Igarapé Grande). The "stay" reveals a community that, in contrast to what had been considered at the beginning of the research, has always been and is still in transformation, being through the proximity to the metropolitan area of Belém, historically being much more modern than traditional.

Keywords: Amazon, Riverside Community, Oral History, Connected History


LISTA DE IMAGENS Imagem 1- Entrada do Porto do Surdo em Ananindeua (PA)

16

Imagem 2- Porto na comunidade de Igarapé Grande

19

Imagem 3- Os rabiscos de “Vida Loka” na casa de farinha da Cabeceira

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Imagem 4- O Porto do Surdo

32

Imagem 5- Recibo de pagamento anual pago nas localidades próximas do Curtume Maguary

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Imagem 6- O antigo prédio em que funcionou o Curtume Maguary

35

Imagem 7- Moradores de Igarapé Grande visitam a capela de São Pedro

38

Imagem 8- Cópia da certidão de nascimento de Raimunda Gonçalves, registrada no cartório de Benfica

43

Imagem 9- A escola Domiciano de Farias na década de 1980

45

Imagem 10- O núcleo de Igarapé Grande onde foi fundada a escola

47

Imagem 11- O padre Pietro Gerosa

48

Imagem 12- Missa realizada na capela pelo padre que substituiu Gerosa

49

Imagem 13- A comunidade de Nova Esperança, na ilha de João Pilatos

51

Imagem 14- Uma casa do PAE João Pilatos, na Cabeceira

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Imagem 15- Fogão a lenha apoiado sobre um toco de árvores

53

Imagem 16- Forno de carvão na terra firme

56

Imagem 17- Forno de carvão no nível do igarapé

56

Imagem 18- Forno de carvão a beira do igarapé Bravo

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Imagem 19- Os caminhos que levam às casas da Cabeceira

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Imagem 20- O fogão e o saco de carvão no fundo da casa

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Imagem 21- O retiro de farinha da Cabeceira

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Imagem 22- A prensa na casa de farinha

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Imagem 23- Os tanques em que os tubérculos da maniva são conservados

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Imagem 24- O forno em que a mandioca ralada se torna farinha

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Imagem 25- O abano

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Imagem 26- O paneiro

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Imagem 27- A peneira

66

Imagem 28- Pato confeccionado com um cacho de bacaba

66

Imagem 29- As florestas de mangue

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Imagem 30- Guará domesticado na comunidade de Cajueiro

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Imagem 31- A rua do Porto do Surdo

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Imagem 32- Matapi no igarapé Maritubinha

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Imagem 33- A oficina em que são produzidas canoas

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Imagem 34- A chuva cai sobre o furo do Curuçambá

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Imagem 35- As rabetas fossem amarradas no porto

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Imagem 36- O caminho de miritis que leva ao Maritubinha II

74

Imagem 37- O trapiche de miritis da Cabeceira

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Imagem 38- Jovem anda com uma criança de colo sobre os miritis

75

Imagem 39- A procissão do Círio chega a capela

75

Imagem 40- A antiga imagem de São Sebastião

76

Imagem 41- Inauguração da capela de Nossa Senhora da Conceição

77

Imagem 42- A procissão do Círio passa pelo trapiche recém-construído

78

Imagem 43- A berlinda segue atrás no primeiro Círio de Igarapé Grande

79

Imagem 44- Moradores de Igarapé Grande em procissão religiosa

80


Imagem 45- O único Círio Fluvial realizado em Ananindeua

81

Imagem 46- Pietro Gerosa realiza o batizado de uma criança na capela

84

Imagem 47- Folder do primeiro Festival das Ilhas de Ananindeua

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Imagem 48- O verso com a programação do primeiro Festival do Açaí

91

Imagem 49- O time de futebol no segundo Festival do Açaí

92

Imagem 50- A chegada do Círio no campo de futebol

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Imagem 51- A EMEIF Domiciano de Farias, na entrada de Igarapé Grande

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LISTA DE MAPAS E GRÁFICOS 1- Mapa de situação geográfica do Município e da cidade de Ananindeua

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2- Índices de saneamento em domicílios permanentes urbanos

32

3- Índices de saneamento em domicílios permanentes urbanos

32

4- Mapa da região insular de Ananindeua

33


LISTA DE SIGLAS CEASA

CENTRAL DE ABASTECIMENTO DO PARÁ

CEBs

CONSELHOS ECLESIAIS DE BASE

EBAL

ESTALEIROS BACIA AMAZÔNICA S/A

EMATER

EMPRESA DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL

EMBRAPA

EMPRESA BRASILEIRA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA

EMEIF

ESCOLA MUNICIPAL DE ENSINO INFANTIL E FUNDAMENTAL

IBGE

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA

INCA

INDÚSTRIA DE CERÂMICA DA AMAZÔNIA

INCRA

INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA

LBA

LEGIÃO BRASILEIRA DE ASSITÊNCIA

LOAS

LEI ORGÂNICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL

PAE

PROJETO DE ASSENTAMENTO EXTRATIVISTA

PARATUR

COMPANHIA PARAENSE DE TURISMO

SAGRA

SECRETARIA DE AGRICULTURA E ABASTECIMENTO


SEASTER

SECRETARIA DE ESTADO DE ASSITÊNCIA SOCIAL, TRABALHO, EMPREGO E RENDA

SPU

SECRETARIA DE PATRIMÔNIO DA UNIÃO

UFRA

UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DA AMAZÔNIA


SUMÁRIO À GUISA DE UMA INTRODUÇÃO

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1. PARTIDA: RUMO A IGARAPÉ GRANDE

18

1.1. DESTINO-OBJETO

18

1.2. METODOLOGIA

20

1.3. MEMÓRIAS

25

1.4. RIBEIRINHOS

28

1.5. “LÁ EM ANANINDEUA”

30

1.5.1. Onde está a Ananindeua rural?

32

1.5.2. Outros passados

34

2. CHEGADA: GÊNESE E MEMÓRIA DE IGARAPÉ GRANDE

36

2.1. ANTES DE IGARAPÉ GRANDE

36

2.2. OS PRIMEIROS MORADORES

38

2.3. EDUCAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO

42

2.4. ANANINDEUA RURAL NA CONTEMPORANEIDADE

49

2.5. LUZ

51

3. ESTADIA: NARRATIVAS ORAIS E VISUAIS EM DIÁLOGO

55

3.1. TRABALHO

55

3.1.1. O dilema do carvão

55

3.1.2. Roceiras e Parteiras

60

3.1.3. Artesanato

63

3.2. O RIO E O IGARAPÉ

67

3.2.1. Banho

67


3.2.2. Pesca

69

3.2.3. Transporte

72

3.3. IMAGINÁRIO E ESPIRITUALIDADE

75

3.3.1. Religião

75

3.3.2. O Círio

79

3.3.3. Imaginário

81

3.3.4. Cura

83

3.4. LAZER E FESTA

88

3.4.1. Santos e bebidas

88

3.4.2. O Festival do Açaí

90

3.4.3. Futebol

93

3.5. EDUCAÇÃO

94

3.5.1. A educação dos avós

94

3.5.2. Escola e comunidade

95

3.5.3. Futuro

97

RETORNO: CONSIDERAÇÕES

98

REFERÊNCIAS

101

NARRADORES

104

APÊNDICES

106


À GUISA DE UMA INTRODUÇÃO: Igarapé Grande é um pequeno lugar em uma ilha próxima da capital do Pará, com casas cercadas por rios e florestas. A comunidade foi um referencial importante para minha formação pessoal, embora seja pouco conhecida na região e suas histórias estejam às margens das mídias e das Academias; isto foi o que primeiro me motivou a iniciar esta pesquisa. Este trabalho é uma análise das transformaçõescontinuidades dos modos de viver em Igarapé Grande em sua recente História. A gênese, o trabalho, o transporte, o lazer, a cura, o imaginário e a educação são eixos de uma cartografia das narrativas memoriais dos moradores do local. A pesquisa que começou visando uma comunidade tradicional que agora encontrava um novo mundo, acabou se revelando um esforço muito mais complexo e um grande aprendizado, e apontando o caráter híbrido e conectado que o local tem em relação ao mundo. Minha família é originária de Igarapé Grande e viveu ali até que minha avó mudou-se para a pequena comunidade de Curuçambá, próximo dali, que viria a se tornar o bairro onde moro. As muitas viagens de barco e as trilhas pela ilha nas férias escolares permearam o imaginário de minha infância e foram fundamentais para a formação de minha consciência de mundo. As paisagens naturais e a memória dos mais velhos tornaram-se combustíveis para a criatividade e curiosidade características da primeira idade, e sinto que tenho ainda hoje uma dívida para com a identidade e o sentimento de liberdade que me proporcionaram. A História é sempre um retorno às origens e um estudo dos caminhos que levaram ao presente, mas a viagem que iniciamos agora não é uma jornada pessoal, por mais que eu tenha redescoberto nesse percurso. Este trabalho foi organizado como uma viagem por aproximar os conhecimentos codificados da Academia dos saberes desenvolvidos historicamente em comunidades como Igarapé Grande, em uma Amazônia marcada pela colonização e pela invisibilização das diversidades. No primeiro capítulo, entramos em contato certas bases acadêmicas e a primeira introdução a Igarapé Grande, e se aproxima gradualmente das linguagens e saberes dos moradores da ilha. Neste primeiro momento, atravessamos a cidade de

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Ananindeua e sua riqueza em contradições, e nos aproximamos ainda do porto e do rio, rumo ao destino.

A entrada do porto do Surdo, próximo de minha casa, dá acesso as ilhas do município de Ananindeua. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2017).

No segundo capítulo, a chegada, avistamos Igarapé Grande e descemos nos seus portos, decifrando as primeiras narrativas que vêm ao nosso encontro: a gênese da comunidade e suas diferentes formas de encarar o seu passado; a negação de qualquer passividade por parte dos habitantes perante a urbanização de sua cidade e a colonização de seu mundo; sua contínua transformação dos espaços e dos modos de vida junto aos mais diversos atores externos. No terceiro capítulo, a estadia na comunidade nos leva a conhecer mais a fundo seus espaços e seus personagens; nos diferentes eixos enumerados acima, exponho as inesperadas continuidades no cotidiano de Igarapé Grande ao longo das últimas décadas; é aqui, em nosso contato mais demorado e mais íntimo, que fica mais clara a relação da comunidade com os mais diversos processos históricos que poderiam lhe afetar. Não se trata de ensaiar uma crônica definitiva legitimada pelas narrativas coletadas dos próprios moradores, uma vez que outras pesquisas já foram realizadas ali e devem continuar a ser realizadas. Entre as principais: o blog de Adrielson Furtado, primeiro pesquisador a estudar as ilhas de Ananindeua, buscando sua História e seu potencial turístico; Raimunda Lopes Mendes (2016), autora do primeiro (e, até o momento, o único) livro sobre Igarapé Grande, que explorou as práticas pedagógicas da escola municipal Domiciano de Farias; Janise Viana (2017), que investigou a atividade pesqueira e a organização social na ilha de João Pilatos; 16


e Thales Ravena-Cañete (2017), que, em sua tese de doutoramento, realizou uma rica cartografia da comunidade, criticando o conceito de população tradicional. Este trabalho vem contribuir no sentido de acrescentar a riqueza de processos históricos atravessados por Igarapé Grande, e apontar sua ambígua forma de se conectar com a região metropolitana de Belém ao construir suas próprias experiências de renovação e resistência.

.

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1. PARTIDA: RUMO A IGARAPÉ GRANDE 1.1. DESTINO-OBJETO: A Amazônia, se é que podemos falar em apenas uma Amazônia, abriga em sua grande extensão uma enorme diversidade social e cultural. Esta diversidade se dá pela variedade de posições geográficas e contextos sócio-históricos pelos quais seus diferentes locais e sujeitos passaram, desde as cidades até as diferentes comunidades nas zonas rurais. Os chamados “ribeirinhos” vivem em pequenas (mas muitas) povoações ocidentalizadas nas beiras dos rios, e têm experiências e saberes bem característicos. Sua vida em comunidade está intrinsecamente ligada a dinâmica do rio e geralmente a atividades como a agricultura, o extrativismo vegetal e a pesca. Longe de cair em qualquer exotismo, seus modos de vida, que a olhos rápidos podem parecer simples e estáticos, na verdade estão ligados a ricos processos e formas de conhecimentos. É o caso da comunidade ribeirinha de Igarapé Grande, na ilha de João Pilatos, em Ananindeua (Pará); situada às margens do igarapé Bravo, braço do rio Maguari-Açu que adentra o interior da ilha, a comunidade está muito próxima da região metropolitana de Belém. Igarapé Grande, na verdade, é formada por quatro localidades próximas, quase como bairros, entre os igarapés Bravo e Maritubinha: Cabeceira, Bela Vista, Maritubinha e Paraíso. É nesta última que está localizada a Escola Municipal Domiciano de Farias, e o templo religioso da comunidade, a capela de Nossa Senhora da Conceição. Como as demais ilhas de Ananindeua, João Pilatos tem uma considerável cobertura vegetal, com florestas na terra firme e manguezais nas suas margens.

18


Porto na comunidade de Igarapé Grande, na ilha de João Pilatos, Ananindeua (PA). Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2017).

Tão próxima da capital, Igarapé Grande tem sido palco de inúmeras transformações sociais e culturais ao longo das últimas décadas, e são essas transformações pretendo explorar neste trabalho. De acordo com o sítio jornalístico online Jornal Brasil, a comunidade conquistou o serviço de energia elétrica em 2010, e vem convivendo com o aumento populacional da ilha e a degradação do patrimônio ambiental; porém, seus habitantes não viviam isolados até a eclosão dessas transformações. Estiveram integrados em um meio de sociabilidade entre as comunidades das demais ilhas de Belém e Ananindeua, e com estes municípios em suas porções continentais, principalmente através do Porto do Surdo, no bairro do Curuçambá (Ananindeua). É importante, então, considerar a forma como os sujeitos que habitam comunidades, como Igarapé Grande, vêm vivenciando sua História, compreendendo seus mundos; e mesmo como compreenderam e interagiram com tantos processos. Sujeitos estes que têm sido invisibilizados na História da região e mesmo na História do município. Não podemos esquecer como a lógica do conhecimento ocidental institucionalizado, isto é, o acadêmico, foi importante para essa invisibilização. Neste processo, experiências e conhecimentos como as narrativas memoriais ribeirinhas, foram marginalizados e desconsiderados enquanto saberes válidos. Na urgência de compreender uma comunidade em franca transformação, a pesquisa acadêmica é um caminho importante, dado o seu prestígio e o seu rigor, mas desde que reconhecendo seu lugar, sua natureza e suas limitações. 19


Reconhecido isso, deve-se ver nos conhecimentos e experiências da comunidade, saberes válidos que têm muito a contribuir para o debate científico. Sendo este um saber privilegiado em nossa sociedade e com maior relevância política, ouvir na Academia o que sujeitos como os de Igarapé Grande têm a dizer (e que até hoje foi tão pouco ouvido) é de grande valia para sua visibilidade, e também para a compreensão, conservação, e valorização dos saberes e das memórias. É fundamental para a compreensão de nossas (falo neste momento como amazônida) próprias relações e vivências regionais. Afastada do centro de Ananindeua e com um número relativamente pequeno de habitantes, Igarapé Grande é uma desconhecida para a maioria da população do município, embora sua História e sua presença sejam tão antigas quanto. A prefeitura concebe uma região insular do município, com potencial turístico (ainda não explorado) e uma população com demandas próprias, uma vez que não é interessante transformar seu estilo de vida (embora este esteja há tempos em transformação).

Esclarecendo:

enquanto

um

bairro

urbanizado

receberá

asfaltamento e obras de saneamento, uma comunidade insular receberá energia elétrica e um barco que transportará estudantes para a escola. É necessário pensar uma História sobre o município e a região que englobe e reconheça o protagonismo devido às populações das ilhas. Não por acaso, essas populações fazem parte de uma porção menos conhecida de Ananindeua: a Ananindeua rural. Dentro desta, além de outras porções marginais da cidade, estariam suas nove ilhas: João Pilatos, Guajarina, Santa Rosa, Viçosa, do Mutuá, do Arauari, Sororoca, São José da Sororoca e Sassunema. 1.2. METODOLOGIA: No

processo de pesquisa

utilizei a

metodologia

da

História

Oral,

acrescentando-lhe um viés etnográfico pautado na observação em campo nas diversas visitas que fiz à ilha, registrada em fotografias e cadernos de notas. Este trabalho de observação do presente foi fundamental para aprofundar e interpretar as narrativas das pessoas que entrevistei e conversei; nesse sentido, várias conversas informais com moradores de Igarapé Grande (e mesmo de outros locais) enriqueceram a pesquisa tanto quanto algumas entrevistas. 20


A produção de fotografias se aliou a pesquisa de acervos fotográficos dos narradores, embora nem todos pudessem ajudar. Por outro lado, a raridade de fontes impressas sobre a comunidade em órgãos públicos e jornais dificultou o diálogo com demais meios metodológicos. Ainda assim, a leitura de trabalhos acadêmicos já realizados sobre a comunidade foi de grande valia. As entrevistas foram realizadas com nove moradores de Igarapé Grande (cinco homens e quatro mulheres) e com o primeiro diretor e professor da escola da comunidade, fundada em 1986. A escola é um marco fundamental no processo de (re)construção

da

comunidade

de

Igarapé

Grande,

pois,

como

tratarei

posteriormente, ensejou transformações importantes em seus modos de viver. Mesmo compreendendo que os mais jovens também são sujeitos e conhecedores da História, entendi que trabalhar com as memórias de diversas gerações deixaria o trabalho extremamente complexo; por isso, meus narradores todos foram pessoas que vivenciaram as experiências da comunidade desde a fundação da escola (1986) até a atualidade (2018). Foram eles, na ordem em que foram feitas as entrevistas: 1. Valdir Gonçalves Pinheiro: Com 76 anos, meu tio-avô e o único membro de nossa família a ainda viver na ilha. Trabalhou por décadas produzindo carvão e cuidando de suas roças na localidade da Cabeceira, e é hoje um dos moradores mais antigos de Igarapé Grande. 2. Manoel Nazareno de Souza Farias: Atualmente mora no bairro do Curuçambá, com 77 anos, mais ainda é considerado uma referência na memória das ilhas de Ananindeua, tendo um papel fundamental na implantação da escola. Sua memória extraordinária lhe tornou o principal interlocutor de quase todas as pesquisas realizadas na comunidade até o momento. 3. Maria Therezinha Farias Ramos: A dona “Thereza”, 49 anos, que me acolheu gentilmente em sua casa nas visitas que fiz a Igarapé Grande. Seu esposo, filho, irmãos e sobrinhos me ajudaram com transporte, sugestões e esclarecimentos. Uma das primeiras alunas da escola, Thereza é uma pessoa espontânea e extremamente perspicaz.

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4. Cristino Bento Farias: Com 58 anos, Cristino já trabalhou na produção de carvão, foi seminarista e hoje é vigia noturno da escola. Tem opiniões fortes e uma criticidade apurada que me ensinou muito sobre como Igarapé Grande pensa e trabalha. 5. Raimundo Nonato Ferreira Pantoja: Hoje com 55 anos, foi o primeiro professor e diretor da escola Domiciano de Farias; desenvolveu trabalhos que marcaram a História da comunidade. Cedeu-me fotografias suas e esclareceu muito sobre o passado recente de Igarapé Grande e sua relação com as cidades de Ananindeua e Belém. Tive a felicidade de descobrir que é originário do Curuçambá e que tem parentesco comigo também. 6. Marta Lima da Cunha: Ex-parteira de Igarapé Grande, a dona “Martinha” tem 80 anos e presenciou muitas transformações da comunidade; nos demos bem desde o primeiro momento e realizamos a mais leve das entrevistas, em que ela muito me esclareceu e me impressionou com sua visão do presente. 7. Maria do Socorro dos Anjos de Farias: Irmã de dona Thereza, com 53 anos, Socorro vive com a irmã Maria na casa que fora de sua mãe, a dona Bena, um verdadeiro centro da sociabilidade da localidade da Cabeceira. Teve a gentileza de me falar do ofício do artesanato e de compartilhar suas ricas memórias familiares comigo. 8. Antônio Delgado da Cunha: O seu Tonico, nos seus 77 anos de idade, dividiu suas memórias e opiniões comigo em sua casa, no núcleo do Maritubinha II. Conhecer sua localidade e testemunhar a cura que realizou no pé de seu neto, com suas massagens, foi um dos momentos mais ricos do processo de pesquisa. 9. Olanda Severino da Silva: Natural de Benevides, Olanda chegou a Igarapé Grande na década de 1960 e viu muito da comunidade se transformar. Com 67 anos, me contou sua interessantíssima história de vida, em que festejou e trabalhou com as roças e as curas. Em nosso caso, a memória local é fundamental para interpretar os modos de fazer e de viver da comunidade, mesmo seus costumes. Aqui, o conceito de Hobsbawm (2008) de costume é útil para não se cair no preconceito de ler comunidades do tipo como puras ou paradas no tempo. O autor diferencia costumes de tradições, apontando estas últimas como ligadas a invariabilidade, sendo 22


normalmente

formalizadas. Os costumes, por sua vez, são passíveis de

transformação, sendo ligados também a processos, ao invés de rupturas totais. Os costumes seriam associados de imediato às “sociedades tradicionais” pelo autor; embora use este termo, Hobsbawm vê essas sociedades como passíveis de transformação e processos de ruptura e continuidade. O Círio de Nossa Senhora da Conceição em Igarapé Grande, tais como outros hábitos que podem parecer tradicionais em comunidades como esta, foi instituído em 1986 e está ligado ao recente processo de transformação pelo qual os hábitos dos moradores têm passado. Os habitantes da comunidade não podem ser lidos como meros receptores dos processos de mudanças pelos quais passam, mas sim como atores em processos de transformações históricas, sendo os seus costumes passíveis de transformações. Freitas (2006) defende como o relato oral é importante, da mesma forma que o documento oficial e do jornal, e é como pretendemos utilizá-la, uma vez que fonte nenhuma é uma palavra definitiva e todas exigem seus cuidados particulares. A autora, ao distinguir a história oral temática, que aqui é a que nos interessa, afirma: A entrevista tem caráter temático e é realizada com um grupo de pessoas, sobre um assunto específico. Essa entrevista – que tem característica de depoimento - não abrange necessariamente a totalidade da existência do informante. Dessa maneira, os depoimentos podem ser mais numerosos, resultando em maiores quantidades de informações, o que permite uma comparação entre eles, apontando divergências, convergências e evidências de uma memória coletiva, por exemplo. (FREITAS, S. M. 2006)

As entrevistas foram realizadas a partir de um roteiro, mas sempre respeitaram a fluidez e a estrutura das narrativas destas pessoas. O processo de transcrição das gravações assumiu a função de esquematização e interpretação das conversas. Este estudo seguiu à risca os procedimentos aconselháveis na pesquisa oral, desde a esquematização prévia das entrevistas até a autorização também prévia dos entrevistados; não houve qualquer exposição indevida ou perturbação de linguagens e pontos de vista. Compreendo que uma pesquisa científica nunca passa despercebida em um núcleo social e deve, por isso, ser ética e cuidadosa, mantendo os entrevistados cientes de como a pesquisa está sendo feita e para quê. 23


Ao serem preservados e relidos, tanto nas expressões materiais das sociedades quanto nas subjetividades dos indivíduos, os relatos são fontes específicas, até por não se reduzirem somente a palavra. O ato da comunicação do indivíduo entrevistado é rico em traços dotados de significado; o tom, o volume e o ritmo do discurso popular “carregam conotações implícitas, que dificilmente sobrevivem na transcrição inscrita” (PORTELLI, 1997, p. 4). Cabe ao estudo histórico com base na memória, portanto, uma preocupação especial com as linguagens particulares que testemunham os conhecimentos e experiências desses grupos. Neste contato entre diferentes naturezas de saber e diferentes linguagens, não devemos esquecer os velhos preconceitos que garantiram prestígio a História enquanto conhecimento institucionalizado. Preconceitos e lógicas que deram ao método e à linguagem da História, o lugar de legítimos, definindo como inexistentes demais formas de conhecimento, como as de comunidades “tradicionais” ao redor do mundo. Aqui: Inexistência significa não existir sob qualquer modo de ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção de inclusão considera como o "outro". A característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade da co-presença dos dois lados da linha. O universo "deste lado da linha" só prevalece na medida em que esgota o campo da realidade relevante: para além da linha há apenas inexistência, invisibilidade e ausência não-dialética. (SANTOS, 2007)

Os mundos amazônicos da atualidade são resultados da experiência colonial, que definiu e redefiniu as dinâmicas socioeconômicas e culturais de suas populações. Os modos de ser, de fazer e de saber do ribeirinho amazônico caem no lugar do outro na lógica mundial do pensamento denunciada por Boaventura de Sousa Santos, e são, portanto, renegadas a invisibilidade. Cada vez mais, porém, vem surgindo na Academia esforços de burlar essa lógica e assumir as diversas formas de conhecimento como aliadas. Dentro ou não da desobediência epistêmica decolonial, a História Oral tornou-se uma das propostas de quebrar o monólogo acadêmico e trazer outras vozes para a produção de saber em instituição.

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1.3. MEMÓRIAS: A memória tem sido um instrumento de grande utilidade para a investigação histórica; sua maior potencialidade “é a possibilidade de resgatar o indivíduo como sujeito no processo histórico. Sendo assim, reativa o conflito entre liberdade e determinismo ou entre estrutura social e ação humana” (FREITAS, 2006, p. 29). O sociólogo francês Maurice Halbwachs apresentou o importante conceito de memória coletiva, que é muito caro em processos de representação do passado. Este tipo de memória não se confunde com a História propriamente dita, uma vez que esta implicaria em uma classificação, organização e interpretação dos acontecimentos passados para veículos escritos, produzidos por e para grupos e demandas específicos. A rigorosidade metodológica da História, por sua vez, a torna-lhe erudita “e a erudição é condição de apenas uma minoria” (HALBWACHS, 1990, p. 81). O autor, escrevendo na Europa da década de 1940, vê na artificialidade do conhecimento histórico uma diferença em relação a uma continuidade da memória coletiva, que nada teria de artificial. Devemos levar em conta, porém, que a memória é sim passível de manipulação e pode sim ser afetada por eventos externos aos grupos que a detém; as recorrentes relações entre memória e poder, bem apontadas por Jacques Le Goff (1990), por exemplo, são marcantes na História recente do Brasil. Logo, não podemos encarar a memória coletiva de uma comunidade como retrato real do passado, mas como uma representação que provavelmente foi desenvolvida, embora não seja menos legítima por isso. Le Goff, aliás, chama a atenção para o perigo de separar a memória em sociedades orais da memória em sociedades escritas; não nega a diferença, mas considera que a diferença não é absoluta. A memória coletiva, porém, substituiria a memória objetiva na medida em que se aproxima da História e do mito. O historiador aponta, também, a maior diversidade da narrativa memorial na oralidade, narrativa esta que vem ganhando cada vez mais concorrência com os meios de comunicação digital. Mas Halbwachs ainda parte da premissa de que depoimentos baseados em memórias podem ser confrontados para que se chegue a uma essência do passado; 25


estas confrontações seriam importantes por irem além das limitações que as memórias individuais podem apresentar. A confrontação não visa, então, o alcance de uma reconstituição fiel, não se trata de descobrir qual é a verdade dentre as várias apresentadas no depoimento. Por isso Verena Alberti (2012) corrige-se ao substituir o termo versão por narrativa no tratamento dos depoimentos com os quais trabalha. Esta mudança de percepção seria importante também para a análise do depoimento enquanto fonte, uma vez que o estudo da narrativa implica em um entendimento sobre “para quem ela fala e por que ela fala”. E continua: E nossos entrevistados? Para quem falam? Para nós, os entrevistadores, certamente – e por isso é tão importante, para a análise da entrevista, saber quem é o entrevistador e como ele se apresentou, para entendermos a relação de entrevista que ali se estabeleceu e, por extensão, entendermos (ou procurarmos entender) por que o entrevistado disse o que disse. O entrevistado também fala para nossas instituições, depositárias das entrevistas e, muitas vezes, vistas como depositárias da própria “História”. Dependendo da instituição, ela acaba sendo até mais importante do que o próprio entrevistador. Em alguns casos, o entrevistado também fala para a comunidade acadêmica, para aqueles que vão escrever a história daquele acontecimento ou período. E, finalmente, ele fala para os pares – tanto os que participaram do mesmo movimento ou ação como os opositores (ALBERTI, 2012, p. 162-163).

Isso nos remete a ideia de Alessandro Portelli (1997) de que “as fontes históricas orais são fontes narrativas”. E continua: “Daí a análise dos materiais da história oral dever se avaliar a partir de algumas categorias gerais desenvolvidas pela teoria narrativa na literatura e no folclore” (PORTELLI, 1997, p. 5). Os relatos orais que serão usados nessa pesquisa estão imersos em formas de linguagem e visões de mundo características, são narrativas próprias do grupo em questão, isto é, dos moradores da ilha. Como Portelli reforça, não são narrativas objetivas e têm intenções e significações singulares, de multiplicidades. No caso da comunidade de Igarapé Grande, por exemplo, a natureza chega a falar junto de seus moradores. Vemos isso na experiência de Carvalho, Silva e Leite (sd), que, ao pesquisarem o imaginário nas narrativas orais em Igarapé Grande e Sassunema (ilha vizinha a João Pilatos), surpreenderam-se com a riqueza presente nas narrativas coletadas. E não só isso, perceberam como a natureza e a realidade imediatamente locais enchem de identidade relatos de visagens e personagens 26


míticos tão recorrentes na Amazônia, como o boto e a Iara, na memória dos moradores sobre a comunidade e a ilha em que vivem. Essa característica denota como a imensa diversidade natural e social em que se encontram os ribeirinhos na região amazônica, em geral torna-se também uma imensa diversidade de saberes e narrativas em locais específicos. Um dos entrevistados pelas autoras, em seus relatos, privilegiou histórias sobre as origens de nomes de lugares, furos e igarapés e a própria ilha de Sassunema, que aparecem com estruturas semelhantes aos dos relatos míticos, como “causos”. Acreditando piamente na veracidade de suas narrativas, os moradores entrevistados têm nelas fortes marcas de suas visões de mundo, valiosos conhecimentos. Assim, a ilha em que vive, o igarapé, a canoa, a cacimba, todos os elementos de seu cotidiano e de seu imaginário (que não estão dissociados para ele como para a Academia) estão diluídos na memória histórica do entrevistado. Ou, como interpretaram as pesquisadoras, é “esta íntima relação do homem ribeirinho com a natureza é que vai ser fonte de inspiração para o afloramento de seu imaginário”. E de suas experiências, também. A cartografia de memórias, em um sentido semelhante, parte de um termo da Geografia para um estudo de cunho etnográfico que atravessa várias áreas do conhecimento. Agenor Sarraf (2015), trabalhando com a cartografia de memórias no contexto amazônico, deixa clara a independência que esta tem do conceito de cartografia abissal de Boaventura de Sousa Santos, ligada a esta negação das demais formas de conhecimento pelo ocidental. Mas, ainda assim, aproxima a cartografia de memórias do pensamento decolonial. Diferente das lógicas mais engessadas de produção do conhecimento científico, a cartografia de memórias teria um método aberto a reformulações e ressignificações através dos contextos:

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O mapa não produz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói (...) é aberto, conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social (...). Uma das características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas (DELEUZE & GUATTARI, 1995, apud SARRAF-PACHECO, 2015).

A definição dos autores europeus supracitados parece apontar a mais livre das formas de produzir o saber, mas não podemos esquecer que a cartografia é uma proposta europeia e nós, enquanto ocidentalizados, devemos compreendê-la de forma crítica antes de simplesmente aplicá-la em nossos contextos; quando acharmos possível, devemos dialogá-la. Por outro lado, é certo, citando novamente um europeu, que a “cartografia revela múltiplos campos do saber que estruturam representações sobre a realidade social” (SANTOS, 2002, apud SARRAFPACHECO, 2015). 1.4. RIBEIRINHOS: O apagamento ou invisibilização das comunidades rurais da Amazônia não é recente. O conceito de população tradicional chega em um momento sobre a conservação ambiental e a presença humana em espaços considerados naturais e intocados. Diegues (1994) se adiantou ao propor que as populações extrativistas, historicamente instaladas nessas áreas, tivessem papel ativo na conservação ambiental, ao invés de serem excluídas em detrimento de áreas de conservação “intocadas”. As “populações tradicionais”, porém, têm históricos e formas múltiplas de lidar com a natureza. A recorrência das “tradições” e das atividades extrativistas, não dá conta da riqueza de experiências de ribeirinhos, quilombolas, indígenas e outros em seus diferentes processos históricos. Muitas das transformações que estes grupos enfrentam, por exemplo, estão ligadas a processos de exclusão em espaços urbanos e pauperização. Adotando a ideia de “comunidade local”, o casal Ravena-Cañete (2013) parte para uma característica que parece marcante na região. Apresentando uma tabela, mostram como a dinâmica do rio é importante para essas comunidades, sendo influente nas suas “escolhas sociais e econômicas”, que se definem a partir do movimento do rio. A dinâmica mencionada seria a alternância entre enchente, cheia, 28


vazante e seca. Mas esta não seria uma dinâmica que remonta a tempos imemoriais, pois há 200 anos, seus antepassados estavam trabalhando em engenhos ou escapando a repressão à Cabanagem na capital da província; é preciso entender que comunidades como estas têm passados ainda mais ricos do que se imagina. Ao chamar de “neo-amazônida” o homem das comunidades locais da Amazônia, os Ravena-Cañete apontam esse sujeito como o resultado de um processo de mestiçagem e encontro de culturas que durou por séculos. A população de uma comunidade rural na Amazônia, uma entre tantas plurais, é muito mais complexo do que pode parecer a primeira vista, e é fundamental que isso seja reconhecido para que sua História seja contada e assumida.

Os rabiscos de “Vida Loka” na casa de farinha da Cabeceira, em Igarapé Grande. O estigma de tradição e estagnação cultural dos ribeirinhos mascara perfis e práticas das mais diversas. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2018).

No maior trabalho já realizado em Igarapé Grande, Thales Ravena-Cañete (2017), em sua tese de doutorado, já fez uma larga associação da vivência da comunidade com esse debate. Após sua experiência etnográfica na ilha, afirmou que Igarapé Grande nada tinha de tradicional; baseou-se no perspectivismo ameríndio de Viveiros de Castro, que analisa grupos não ocidentais como coletivos de humanos e não-humanos, e questiona a dicotomia ocidental entre natureza e cultura. Embora Igarapé Grande seja muito ocidentalizada, é bem verdade que sua relação com o espaço natural e os vestígios do processo de colonização criaram nela perspectivas bem próprias.

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O termo ribeirinho, embora também seja de origem externa, já foi em grande parte absorvido pela população da comunidade, em especial devido as políticas públicas do governo federal, e por determinadas práticas pedagógicas de sua escola de ensino fundamental. Na Antropologia, Charles Wagley e Eduardo Galvão já chamavam a atenção para as especificidades destas “comunidades” da Amazônia desde a década de 1950. Por isso, este é o termo que eu uso neste trabalho. 1.5. “LÁ EM ANANINDEUA”: É comum ouvir em localidades como Igarapé Grande e em vários bairros de Ananindeua, que alguém foi, veio ou vivenciou algo “lá em Ananindeua”. O bairro central, sede do poder público e porta de entrada da região metropolitana, por muito tempo foi a única Ananindeua, enquanto outros locais próximos desenvolveram seus próprios processos e identidades. O crescimento da cidade reconfigurou vários espaços e deu lugar a um município cheio de particularidades. Como podemos calcular quantas Ananindeuas existem? Questões mais diretas que essa: Em um município dividido entre rurais e urbanos, qual o lugar do rural e de seu habitante? Como estes negociam com o avanço da urbanização, que não cessa? Para partir rumo a respostas para estas perguntas, é necessário buscar no passado o início desse processo, e como ele chegou até sua configuração atual. A abundância e a diversidade características do meio ambiente, e mesmo do âmbito social, na Amazônia, demandam olhares atentos às especificidades de cada local e de cada grupo. Para pensar as populações da região, portanto, essa riqueza em especificidades deve ser considerada. E, em casos como os das metrópoles amazônicas, este esforço torna-se ainda maior e mais necessário, pois é nelas que o global encontra o local com maior recorrência, e é nelas que as negociações entre estes dois são mais dinâmicas e complexas. Em Ananindeua, cidade vizinha de Belém, capital do Pará, um processo acelerado de urbanização deu margem a múltiplas disparidades e formas de dialogar com elas. Ananindeua é um município de 191,4 km², situada bem no meio da região metropolitana de Belém, mas com uma marcante produção agrícola e uma

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considerável área insular, com natureza exuberante e populações rurais, como a de Igarapé Grande, que interagem diretamente com o modo de vida urbano. Mapa de situação geográfica do Município e da cidade de Ananindeua, Pará.

Ananindeua rural e urbana. Fonte: FILHO, J.S; NETO, A.O; RODRIGUES, J.C. O rural e o urbano na Amazônia metropolitana: reflexões a partir de Ananindeua, Pará. In: Rev. NERA, Presidente Prudente, n. 42, p. 256-280, 2018.

Segundo o censo realizado no Brasil (IBGE, 2010), Ananindeua

contava

então com 471.980 habitantes, caracterizando-se, então, como uma cidade média; mas, ainda assim, sendo o segundo município mais populoso do estado do Pará. A cidade também é marcada por índices sociais que saltam aos olhos: em uma intrincada conurbação com Belém, Ananindeua cresceu de forma desordenada e tem cada vez mais problemas com criminalidade e mobilidade urbana. Boa parte da área do município é admitida como periferia da metrópole ao lado, embora não se trate de uma satelização. Segundo dados do DataSus, divulgados pelo site Geledés - Instituto da Mulher Negra (2017), é a cidade em que mais se mata mulheres no Brasil, proporcionalmente. O censo de 2010 também a colocou como a cidade com o pior índice de saneamento básico, entre as 100 maiores cidades brasileiras; nos quadros abaixo, é possível observar a desigualdade entre suas zonas rural e urbana, ainda que nem mesmo a urbana esteja em boas condições:

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Índice de saneamento em domicílios permanentes da Ananindeua urbana 1%

76%

23%

Adequado Semiadequado Inadequado

Índice de saneamento em domicílios permanentes da Ananindeua rural 02%% Adequado Semiadequado 98%

Inadequado

Fonte: IBGE (2010), adaptado pelo autor.

1.6.1. Onde está a Ananindeua rural? Grande parte da dita Ananindeua rural está localizada no norte do município, na região insular. São nove ilhas ao todo, com algumas localidades rurais e moradores que vivem mais afastados entre si. O acesso a ilhas de Ananindeua é feito por barco, a partir do Porto do Surdo, este localizado em uma propriedade particular no bairro do Curuçambá, em Ananindeua.

O porto do Surdo, no bairro do Curuçambá, principal comunicação entre a população das ilhas com a porção urbana do município de Ananindeua. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2018)

Entre as localidades das ilhas, também, o transporte dá-se por meio de embarcações, que a circundam pelo rio e pelos igarapés, e por algumas trilhas, por onde passam bicicletas. A maior das trilhas, já referida por alguns moradores como uma estrada, liga Igarapé Grande a João Pilatos, na ilha de João Pilatos, por onde circulam motocicletas. Dispõe-se do serviço de moto-táxi entre estas duas comunidades, por estarem localizadas no interior da mesma ilha, a maior do município, e sendo o bom estado da trilha mantido por meio de mutirões.

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As ilhas de Ananindeua receberam o serviço de luz elétrica a partir de 2010, de forma gradual. Por tanto, a televisão e o uso de eletrodomésticos, bem como de aparelhos celulares, têm provocado ainda há pouco tempo transformações consideráveis nos modos de vida da localidade e na sua comunicação com a porção continental do município. As ilhas de Ananindeua não contam com delegacia ou posto policial, embora, em decorrência dos ataques de uma quadrilha de piratas (a embarcações e moradias da região), a polícia fluvial tenha se tornado recorrente na paisagem do rio Maguari, na década de 2010. Em Igarapé Grande, como nas demais, não existe posto médico, embora haja visita médica à comunidade duas vezes por semana, para o atendimento da população. Até pouco tempo, os moradores precisavam locomover-se para o posto de saúde do Curuçambá Rural (sim, a prefeitura também divide este bairro em um rural e um urbano), próximo ao Porto do Surdo. Algumas comunidades contam com a atuação de associações de moradores e produtores rurais. As famílias vivem da renda de produtos vendidos principalmente em Ananindeua: açaí, peixe (embora cada vez mais escasso), camarão, e até a produção na ilha ser proibida, lenha e carvão. O açaí, portanto, é um produto de grande importância para seu trabalho, não apenas por ser produzido artesanalmente e, portanto, largamente consumido, mas também por ser o mais vendido para a porção continental do município. Anualmente é realizado na comunidade de Igarapé Grande o Festival do Açaí, em que o caldo é vendido e consumido, para pessoas de dentro e de fora da região das ilhas.

Mapa da região insular de Ananindeua/PA. Fonte: Folha Ananin. Disponível em: https://folha.ananin.com.br/jornal/ilhas-de-ananindeua-potencial-em-ecoturismo.

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1.6.2. Outros passados: Mas como se encontram as populações dessas áreas com os processos de transformação que convergem da metrópole? Antes de tudo, é importante ter em mente que as comunidades ribeirinhas de Ananindeua, bem como a comunidade quilombola de Abacatal, não estavam em um estado de estagnação antes de seu momento atual. As próprias formas como se verão e serão vistos, por exemplo, é resultado de diálogos com fatores externos anteriores, tais como as migrações de cabanos, e depois as negociações com a influência do Curtume Maguary, empresa que teve grande importância na região.

Recibo de pagamento anual pago nas localidades próximas do Curtume, para o uso da terra pelos moradores. Fonte: Acervo de família de Inácio Saldanha.

Nosso caso, Igarapé Grande, está nas ilhas ao norte da cidade, o Curtume era uma entidade um tanto distante; porém, outra empresa teve presença marcante sobre a sociabilidade dos habitantes da região. Os relatos orais dos moradores das ilhas identificam a importância de um engenho de produção de açúcar e cachaça na ilha de São Pedro, que funcionou entre os séculos XVIII e XIX. O passado linear, de um único núcleo que se expande, não contempla o processo histórico pelo qual a cidade passou. Desenvolver uma História como tal, para fins solenes, invisibiliza as experiências de boa parte do município e de suas populações, e nega a diversidade que o torna tão rico e complexo. Neste sentido, o núcleo que se configurou mais rapidamente urbanizado, é novamente privilegiado com o protagonismo na História local.

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Segundo o blog de Adrielson Furtado (2011), pesquisador da região das ilhas, relembra, porém, que a prefeitura de Ananindeua, em administrações passadas, divulgou o nome da ilha de São Pedro “e sua História em materiais impressos como mapa e folders”. A sua memória não seria mais explorada depois que, no começo da década de 1990, uma série de comunicados e leis municipais enquadraria São Pedro como parte do distrito de Mosqueiro, ou seja, como integrante do município de Belém, e não de Ananindeua.

O antigo prédio em que funcionou o curtume hoje é sede da Secretaria de Habitação de Ananindeua. Fonte: Blog Lúcia Araújo. Disponível em: http://luciaaraujoama.blogspot.com/p/fotos-curtumemaguary.html.

Este é um claro exemplo de como a negociação e a escrita da História tocam em diversos fatores. Atualmente, a História das ilhas de Ananindeua não é mais mencionada por materiais do município, que já são poucos, e estas são generalizadas como “Ananindeua rural” em seus projetos e políticas públicas. A ideia de associar povoamento e passados locais ao de uma ilha belemense, reforçando o papel secundário que Ananindeua exerceria com a conurbação das duas, não era interessante. O Curtume Maguary, memória muito mais aceitável, foi uma influente iniciativa privada instalada no atual centro político do município, onde estabeleceu a paróquia, o futuro mercado municipal e o fluxo da estrada de ferro, que viria a ser rodovia federal. A vila dos operários do Maguary atraiu a sociabilidade das comunidades ao redor, como o engenho na ilha de São Pedro também fez, mas diferente deste, tornou-se franca protagonista quando do processo de urbanização a partir dos anos 1970. É a memória oficial da cidade. 35


2. CHEGADA: GÊNESE E MEMÓRIA DE IGARAPÉ GRANDE 2.1. ANTES DE IGARAPÉ GRANDE: A memória cultivada entre os moradores de Igarapé Grande associa a origem da comunidade à propriedade de Domiciano de Farias, um imigrante baiano que se instalou na ilha de João Pilatos por volta de 1900. Domiciano dá nome a escola de ensino fundamental que funciona na comunidade, o que torna sua memória presente como um fundador de Igarapé Grande. Essa narrativa é muito semelhante às narrativas bíblicas dos patriarcas; de certa forma, a gênese de Igarapé Grande é vista pelos seus moradores na chegada de certos homens com suas famílias, sempre antepassados dos moradores atuais. No decorrer de minhas entrevistas, porém, notei a escassa presença de moradores ainda mais antigos na memória oral da região: os tupinambás. Sua herança chegou até a atualidade através de certos nomes de lugares e em certos costumes, como o uso das canoas, embora este último muito modificado com o passar dos tempos. Sua memória é praticamente inexistente em Igarapé Grande, uma vez que a comunidade é fruto de uma ocupação posterior. Mas Manoel Nazareno1, considerado uma referência em se tratando da memória de Igarapé Grande, ainda guarda histórias sobre os índios que ouviu quando criança. Segundo ele, as aldeias mais próximas estavam localizadas no continente, e as ilhas não eram, portanto, habitadas. Os tupinambás da atual Belém usufruíam, também, da margem do rio Maguari-Açu desde o atual bairro do Guajará (em Ananindeua) até a boca deste rio na baía do Guajará (em Icoaraci). Mas a aldeia mais próxima seria a dos sapararés2, que viria a se tornar a vila de Benfica com o processo de catequização e colonização. Seu Nazareno fala de certos “índios saraparás de Benfica”, que, segundo relatos de seu avô, caçavam e pescavam nas atuais ilhas de Ananindeua; elas não seriam, então, habitadas, mas 1

Entrevista realizada em 23 de Abril de 2017. Manoel Nazareno de Sousa Farias (77 anos) já viajou e morou em outros lugares, mas sempre manteve ligações com a comunidade de origem; tendo conhecido o avô, Domiciano de Farias, e sempre tendo sido uma pessoa curiosa, ele aprendeu muito sobre a História de seu lugar e hoje é considerado uma referência pelos moradores. 2 Bezerra et al (2012) também apontam a riqueza de relatos de europeus sobre outras aldeias na região: uma dos tupinambás chamada Murubira na ilha de Mosqueiro (logo ao norte das ilhas de Ananindeua), e outra aldeia maior chamada Cubi, mais ao norte, na ilha de Colares. Sobre estas, não há relatos em Igarapé Grande.

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exploradas pelos índios para estes fins. Seu avô afirmou-lhe que o nome da ilha de Sassunema, por exemplo, teria origem na língua destes índios. É claro que Domiciano não conheceu os sapararés, mas esta memória deles e certos vestígios de sua herança cultural conseguiram chegar até ele através das vias orais. Em meados do século XVII, a liderança da aldeia Sapararé fora assumida pelos jesuítas, tornando-se uma próspera freguesia com a expulsão da ordem religiosa. Curiosamente, foi em Benfica que o governo da província iniciou a libertação dos escravizados no Pará, ainda em 1884; a essa altura, infelizmente, após um longo período de escravização e aculturação, já não existiam mais índios nesta região. Devemos notar que, por mais distantes que os relatos orais sobre as aldeias possam ser, não vão além do período do contato, uma vez que a presença dos tupinambás na região era relativamente recente quando da chegada dos europeus 3. Isso nos mostra como a memória histórica dos ribeirinhos, assim como seus modos de vida, estão fortemente ligados ao processo histórico de mestiçagem; ambos formaram-se a partir das experiências da colonização, e ainda lidam com elas, diferente do que qualquer visão essencialista possa sugerir. Apesar da proximidade com Benfica, o começo da habitação da ilha de João Pilatos viria de outra direção. No século XVIII, um engenho para produção de açúcar e cachaça é implantado por alemães na ilha de São Pedro, situada ao sul da grande ilha de Mosqueiro e ao norte das atuais ilhas de Ananindeua. É de conhecimento dos moradores de Igarapé Grande que houve escravos em São Pedro no passado; Adrielson Furtado (2011) afirma que os proprietários do engenho usavam as ilhas de São José (hoje João Pilatos), Santa Rosa e Sororoca para plantar seus canaviais, matéria-prima para os seus produtos; o cronista também aponta as atividades do engenho como o início da ocupação e exploração das ilhas.

O frei Claude d’Abbeville (2008), que esteve no Maranhão em 1612, afirmou que a presença dos tupinambás nessa parte do continente não era antiga, pois esse povo chegara ali fugindo das invasões portuguesas. Em sua crônica, o francês afirma que conheceu um velho índio que ainda se lembrava da chegada da aldeia na região. 3

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Moradores de Igarapé Grande visitam a capela de São Pedro de Valois, na ilha de São Pedro. A capela e as ruínas do engenho e da olaria ainda são uma referencial sobre a História da região. Fonte: Acervo pessoal de Raimundo Pantoja (1992).

De fato, Valdir Pinheiro4 afirma que seu tio costumava caçar capivaras nos canaviais da ilha de Sororoca, que não existem mais. A essa altura, a propriedade do engenho já havia sido vendida para a família do português Manoel Coimbra, que registrou a posse da ilha em cartório no fim do século XIX. Seu Nazareno, por sua vez, lembra como os trabalhos de Coimbra prosperaram, dispondo de uma olaria e cinco “barcos grandes” que levavam mercadorias para Belém. Os empregados do antigo engenho, então, já começavam a se estabelecer nas ilhas da região, lançando as bases das comunidades locais atuais. A ilha de São Pedro ainda continuaria como um centro na vida religiosa e comercial dessas famílias por algumas décadas. Desde o século XIX, a única capela e o único comércio das redondezas estavam localizados ali (depois surgindo o comércio do Roldão, na ilha de Santa Rosa). 2.2. OS PRIMEIROS MORADORES: Nazareno nomeia com segurança os primeiros habitantes de Igarapé Grande. O primeiro, seu avô, Domiciano dos Anjos de Farias, é o principal “patriarca” da comunidade; tem um nome bem preservado entre os atuais moradores, através do batismo da escola inaugurada na comunidade, décadas depois de sua morte. Baiano, Domiciano mudou-se para a ilha de São Pedro ainda no século XIX, período

4 Entrevista

realizada em 16 de Dezembro de 2017. Com 76 anos, Valdir Gonçalves Coelho é o único membro de sua família a ainda morar em Igarapé Grande.

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em que milhares de nordestinos imigraram para o Pará. Em São Pedro, trabalhou como marceneiro e cozinheiro no engenho. Sua esposa, Maria Cristina dos Anjos, era cearense. De acordo com o neto, Domiciano comprou um terreno na ilha de João Pilatos, na margem direita do igarapé Bravo, que adentra a ilha. Ali nasceu o Sítio Paraíso, onde começou a criar gado leiteiro e prosperou. O segundo morador seria Inácio Pinheiro, que se estabeleceu na margem esquerda do mesmo igarapé, ainda mais no interior da ilha: o Sítio Bravo. É a razão pela qual o igarapé, que dá acesso a comunidade, chama-se igarapé Bravo até hoje. Neto de Inácio, Valdir afirma que o avô veio da comunidade ribeirinha de Castanhal do Mari-Mari, no sul da ilha de Mosqueiro, e que se dizia filho de cabanos. A memória da povoação do igarapé Bravo está sempre associada a narrativa dos patriarcas, os “antigos”. Nazareno ainda dá os nomes dos demais: Laurindo Pinheiro no Sítio Santa Maria, seu André no Sítio Alegria; as primeiras famílias que chegaram a pra habitar a ilha de João Pilatos. Aí Maritubinha: Andelino Castro Barreira. Aí nós vamos pra Marituba I: Arthur Piedade [...]. Aí Bela Vista: João da Luz, os primeiros moradores que chegaram lá. Aí Maritubinha II: Rufino, o apelido Finé. Finado Chico Cunha no Sítio São Sebastião, onde mora o Manoel Bigode hoje (NAZARENO, 2018).

É comum, entre autores, apontar os cabanos como os iniciadores das populações de Ananindeua, vindo de várias partes do Pará e se estabelecendo ali como caboclos durante a repressão do governo da província nas cidades; isso não é, porém, uma regra. A memória de Igarapé Grande aponta a sua origem nestas propriedades rurais do começo do século XX. De fato, na comunidade é muito comum pessoas com os sobrenomes Farias e Cunha até hoje. Os moradores mais velhos falam em uma gênese feliz para a comunidade, não apenas pela nostalgia natural em relação ao passado, mas também a fartura de que gozaram os primeiros moradores. Segundo os relatos, Domiciano de Farias e Inácio Pinheiro tinham casas grandes, com amplos salões onde realizavam festas. Valdir lembra de sua infância em uma Igarapé Grande bem diferente da atual, em que a relativa proximidade criou um espírito comunitário e fez unir as famílias ao longo das gerações: 39


Na época que eu me entendi eram poucas casas que tinham. Então tinha a do seu, que eu conheci mesmo, a do Manoel Cunha, a do seu Domiciano e a do seu Manoel Souza, que já moravam aí. Era só as casas que tinha aqui em Igarapé Grande [...]. Faziam mutirão com os vizinho. Uma vez um... uma semana eles iam, um dia iam ajudar um, outro dia ia ajudar outro, assim que era. (VALDIR, 2017)

Domiciano tinha seu gado bovino, para a produção de leite e manteiga; dona Marta5, sua neta, afirma que ele mesmo tirava o leite das vacas, que seria consumido pelos habitantes da comunidade. Nazareno, por outro lado, afirma que seus funcionários iam vender o leite em Murinin, Benfica e Maguary. Raimundo Pantoja6 afirma que Domiciano de Farias veio para o Pará atraído pela febre da borracha, na virada do século XX; extraía látex das seringueiras nativas da ilha, que ainda hoje existem na região, e os vendia para a fábrica Bitar, instalada em Mosqueiro: Se tu for lá pra banda de Mosqueiro, ainda tem um negócio lá em Mosqueiro da Bitar, que lá era o negócio deles comprarem a borracha desse pessoal tudinho dessas ilhas, e lá eles faziam aquelas... aquelas bolotas [...]. Eles iam pra lá a remo levar, o seu Domiciano com os seus filhos, sabe. Eles levavam pra vender lá o que eles produziam do látex, que eles tiravam aí. (RAIMUNDO, 2018)

Nazareno, por outro lado, afirma que a borracha era vendida pelos habitantes da ilha nos comércios próximos, de São Pedro e Roldão, e que estes revendiam para Belém. Mas a principal fonte de renda entre os moradores das margens do Igarapé Bravo era a madeira, vendida principalmente para o comércio do Roldão, que revendia para Belém. Valdir fala em madeira cortada, que o barco buscava nos portos das famílias, saindo de lá com “milheiros e milheiros de lenha”. Já Manoel Cunha, proprietário de um “barco grande”, levava a madeira para Belém sem precisar de intermediários. Valdir afirma que sua família não tinha como plantar nada na margem esquerda do Bravo, devido a enorme quantidade de saúvas; atualmente as formigas desapareceram, deixando vestígios de suas enormes casas em seu quintal. Já as criações de galinha e porco, eram apenas para a alimentação de seus donos, Entrevista realizada em 29 de Abril de 2018, na residência de Marta Lima da Cunha, a “Martinha” (80 anos), em Igarapé Grande. 6 Entrevista realizada em 24 de Abril de 2018, em minha casa, no bairro do Curuçambá (Ananindeua). Raimundo Nonato Ferreira Pantoja (55 anos) trabalhou por muitos anos em Igarapé Grande, mas sempre morou no Curuçambá. 5

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embora nas ilhas de Sororoca e Sassunema houvesse grandes criações de porcos para a venda. Nazareno, com sua memória extraordinária, nomeia os diversos usos das madeiras extraídas: Aí vai entrar a lenha de umari, pras padarias lá de Belém. Umari, maçaranduba, cupiúba e lenha vermelha. Pras padarias em Belém. Pra Palmeira, pra essas padarias grandes que tinha em Belém; iam pra Belém nesses barcos do português [proprietário do comércio do Roldão]. E uma lenha curta pros barões lá que governavam, tinha chaminé, fogão grande; e vendiam madeira curta, tudo em feixe, as grandes pra padaria e essas pra fogão. Esses fogões grandes que tem em fazenda, né, agora só em fazenda existe. E madeira, tirar madeira pra dormente, pra linha do trem, e lenha pra Pará Elétrica em Belém. Casca de mangue e arara pra curtir couro no Curtume Maguary; mangue, arara e muruci. Pra vender no curtimento de couro aí no curtume. Madeira tirada a serrotão pra fazer tábua pra fazer barco; louro, esteio. Outras pra fazer casco pra vender; eram os casqueiro que a gente chamava, que ainda tem aqui, gente que trabalhava só em casco pra vender pro pessoal ribeirinho. Remo, outro fazia só remo; ginga e palha, e remo de mão. (NAZARENO, 77)

E continua: Era... esses remos faziam da madeira da sapuíca; a ginga fazia do ipê ou do mangal; o Ipê Preguiça, que chamava, fazia o remo da ginga; o Faia [?] fazia da mangaba. Essas eram as madeiras pra fazer remo. Aí tiravam as estacas de acapu, maçaranduba ou maparajuba que era pra fazer cercado deles, que agora é muro, naquele tempo era cerca; sobreviviam disso aí. As cerrarias eram poucas também, tiravam os caibros e os paus roliços pra fazer as casas. (NAZARENO, 77)

Como fica visível em sua narrativa, Igarapé Grande nunca esteve isolada do mundo ao redor. A madeira da ilha de João Pilatos chegava até a Fábrica Palmeira em Belém e o Curtume Maguary em Ananindeua (empresas de importância expressiva na região, na primeira metade do século XX), através de revendedores que a levava até o Ver-o-Peso e o Maguary. Outro exemplo: Antônio Delgado da Cunha, o seu Tonico 7, morador do Maritubinha II (o núcleo de mais difícil acesso da comunidade), lembra com tristeza que viveu uma certa guerra quando criança:

7 Entrevista

realizada em 30 de Abril de 2018, na residência de Antônio Delgado da Cunha, o seu Tonico, morador mais antigo da localidade do Maritubinha II, com 78 anos.

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Ah essa aí ainda foi uma das primeiras revoluções que teve, eu não sei nem o nome, do que era. Eu sei que todos nós participemos; eu e a tia Ambrósia e muitos e muitos e muitos daqui. É que a gente participava assim na falmitura, né. É porque eles tavam brigando pra fora; Belém tava tudo parado, a capital tava no escuro, em estado de sítio. Aí ficava... Se tivesse uma banana, fazia mingau de banana pra não morrer, se tivesse um pé de macaxeira cozinhava a macaxeira, mas só um pedaço (TONICO, 2018).

Embora uma criança na época, Tonico ainda se lembra da falta de comida e de como seus pais improvisavam o fogo, devido a falta de fósforos, e peneiravam carne de peixe, devido a falta da farinha. Sua descrição bate facilmente com os efeitos da 2ª Guerra Mundial sobre Belém do Pará, nos primeiros anos da década de 1940. Menezes Neto (2013) e Venize Rodrigues (2010) apontam diversos desdobramentos que o conflito na Europa teve sobre a capital paraense, devido a instalação da Base Aérea americana de Val de Cans e a carência de produtos como o açúcar e o óleo diesel: a falta de energia elétrica, as simulações de ataques pela Defesa Civil e o aumento exorbitante no preço de alimentos. É provável que o alto preço dos alimentos tenha impedido o trabalho dos revendedores para as localidades próximas da capital, uma vez que o comércio do Roldão ficou praticamente fechado. Tonico entende que faltou de tudo devido as exportações para os que estavam em guerra, e lamenta uma realidade como essa até hoje, em que o dinheiro de sua família praticamente perdeu o valor: “é muito difícil”. 2.3. EDUCAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO: A maioria das pesquisas desenvolvidas em Igarapé Grande até o momento, ao falar de sua História, apresentaram apenas a sua origem, sugerindo que a comunidade manteve o mesmo modo de vida por quase cem anos. Em minha observação de campo, ao perceber diversos costumes e elementos do lugar e indagar os moradores sobre eles, tomei conhecimento de diversos momentos marcantes na História de Igarapé Grande, para além de sua origem e seu presente. A comunidade, então, mantinha sua sociabilidade em várias direções: Benfica, por exemplo, sediava o histórico cartório utilizado pelos habitantes das ilhas. A família dos Navegantes, citada por Nazareno como a proprietária do cartório de Benfica, abriu uma olaria na região, mais precisamente na comunidade de Cajueiro, na ilha de Santa Rosa. Com a fortuna dessa família, Cajueiro ganha 42


também uma capela e uma escola pública: a Escola do Livramento. Próxima da entrada dos igarapés Bravo e Maritubinha, Cajueiro sempre manteve boas relações com Igarapé Grande, e suas crianças desta última estudariam ali n década de 1940. Na falta de cemitérios próximos a sua propriedade, Domiciano de Farias foi enterrado em Mosqueiro. A família de Inácio Pinheiro, a princípio sepultada em Benfica, depois passou a ser levada para Ananindeua. Tonico tem seu pai enterrado em Ananindeua, e sua mãe em Mosqueiro. Com o tempo, seus filhos e netos começaram a espalhar as famílias por esses locais, criando laços mais fortes com as diferentes localidades.

Cópia da certidão de nascimento de Raimunda Gonçalves, registrada no cartório de Benfica. A data de nascimento é 29 de Novembro de 1922, em Igarapé Grande. Fonte: Acervo de família de Inácio Saldanha.

Segundo Valdir, na falta de produtos no comércio do Roldão, sua família recorria a cidade: “A mais perto, cidade mesmo, acho que era... Não tinha perto, não. Porque na época a cidade mesmo era só Belém, aí depois que veio já... Porque depois, aí já veio a mais perto é Ananindeua; mas na época não era, na época não tinha, era vila lá” (VALDIR, 2017). A relativa fortuna dos primeiros moradores não sobreviveria às gerações seguintes: “Os velhos foram morrendo né, os donos foram morrendo do lugar e foi se acabando. Acabaram com a olaria, acabaram com tudo, a igreja que tinha pra santa acabou, acabou com a escola, acabou com tudo”, lamenta Tonico. Pelo que dão a entender as narrativas dos mais velhos, Igarapé Grande passaria por um processo parecido com o de Cajueiro: os empreendimentos dos 43


fundadores não seriam levados adiante pelos seus filhos. O carvão vegetal, produzido em fornos de barro nas beiras dos igarapés, tornar-se-ia o principal produto, agora vendido para as comunidades como Curuçambá e Guajará, duas localidades em Ananindeua, próximas ao rio Maguari-Açu. Como disse anteriormente, Igarapé Grande nunca foi isolada. Seu modo de vida esteve, desde o princípio, interagindo com o modo de vida urbano das cidades ao redor. Mas a violenta urbanização de Ananindeua, a partir do regime militar, aceleraria essas interações com a chegada de uma escola para a comunidade, em 1986. Nazareno conta uma história pitoresca sobre a criação da escola, que seria um marco na História da ilha: Então, eu vim pra cá [para o bairro do Curuçambá, onde mora atualmente], já tinha 8 filhos meus nascendo e não tinha mais escola em ilha nenhuma mais, e nem quem ensinasse [...]. Isso no tempo que o Carmont era o vice e o Paulo Afonso [Falcão] era prefeito de Ananindeua. E eu tava lá, era carpinteiro, tava fazendo um barco lá, e o prefeito procurava, procurava pra fazer uma CEASA pras ilhas de Ananindeua. Como ele não achou, eu tava lá, e o gerente falou: “Olha, o Nazareno conhece tudo aí”, e eu fui com ele. Nós fomos lá na beira-rio né, no São Miguel, e pelo norte eu levei ali onde era o forno das Carmitas, e falei “Olha aqui dá pra fazer uma CEASA”, ele: “Aqui dá”, o prefeito. (NAZARENO, 2018)

E continua: Ia fazer uma CEASA aqui se ele ganhasse pra prefeito, que ele vinha a candidato. Aí tá bom, “E uma praia?” Aí foi lá na praia onde é a Marina hoje, bonito pra fazer uma praia, “Então se eu ganhar pra prefeito o projeto é fazer uma praia aqui, e uma CEASA lá”. Aí, “Quanto é o teu trabalho?”, aí eu fui imaginar: “O meu trabalho é caro”, “Caro como?”, “O meu trabalho eu queria uma escola pra ilha, do Igarapé Grande”. Ele disse: “Olha, não te dou a resposta aqui, hoje, mas amanhã eu te dou a resposta”. Aí quando chegou outro dia ele já chegou pra falar com o prefeito, que ele era o vice, e o prefeito era o Paulo Afonso: “Olha, tá ganha a tua escola”. (NAZARENO, 2017)

Mais de 30 anos depois, as ilhas de Ananindeua ainda não têm uma CEASA para o escoamento de sua produção, e os portos à beira do rio Maguari-Açu foram aos poucos sendo fechados; atualmente o único, o Porto do Surdo, é alugado pelos seus proprietários para o uso público. Já a praia, na ilha de Sororoca, continua um espaço pouco conhecido e explorado, embora isso não seja exatamente negativo. A escola prometida por Paulo Falcão, no entanto, começaria a funcionar naquele ano.

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A escola Domiciano de Farias durante alguma festividade na década de 1980. Fonte: Acervo pessoal de Tereza Farias.

O primeiro diretor e professor da escola, Raimundo Pantoja, intermediaria a execução do projeto entre a prefeitura e a população da ilha. Deparou-se com enormes dificuldades em uma comunidade bem diferente da que fora em décadas anteriores; a grande maioria dos moradores agora era analfabeta, e uma boa porção não tinha documento algum; assim, não tinha como matricular os alunos ou contratar os funcionários: Quando eu cheguei lá eu tive uma grande dificuldade até pra organizar a escola, porque a prefeitura exige que tenha o documento. Aí no primeiro momento eu tive que reuni-los; e dos 42 alunos, só 20 só tinham certidão e nascimento, uns 22 nem certidão de nascimento tinham. Aí eu tive que providenciar, o prefeito da época me deu apoio através da LBA (Legião Brasileira de Assistência), que era um órgão do governo federal que fazia o negócio... Através da LBA eu tirei o registro desses outros alunos que não tinham. (RAIMUNDO, 2018)

Raimundo afirma que o apoio da prefeitura foi fundamental para o começo de seus trabalhos na ilha; mesmo em vista das dificuldades que tinha para a instalação da escola, o professor esforçou-se para beneficiar todos na comunidade com ela: E nesse tempo só tirava em Belém, no tribunal de Justiça aquele lá atrás da Prefeitura de Belém. Aí a Prefeitura [de Ananindeua] dava uma Kombi, levava esses adultos pra lá [..]. Aí nesse caso, eu tive que pegar essas pessoas que eram de maior, os pais dos alunos tudo tavam lá, mas eram encostados que não tinham documento; levava eles pra lá pra Belém pra esse juiz que eu tinha agendado previamente com ele, e levava o pessoaL. Tanto é que o povo de lá é quase tudo registrado na Praça Brasil, naquele cartório, pra lá que eu levava esse povo pra poder registrar. E isso eu fiz, não foi uma vez nem duas vezes, durante o ano foi umas 4 vezes que eu tive que fazer deslocamento com esse povo pra poder fazer certidão lá. (RAIMUNDO, 2018)

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A cruzada para fazer os registros no cartório de Belém inauguraria uma relativa aproximação da localidade com as instituições da cidade. Ligado a partidos de esquerda, em pleno período de abertura política do Brasil, Raimundo fundaria a Associação dos Moradores com os habitantes de Igarapé Grande, apresentaria a aposentadoria aos mais velhos (agora garantida pela LOAS de 1988), se uniria aos mutirões para a construção da escola, ampliação do campo de futebol e da primeira capela da localidade, e idealizaria o Círio de Nossa Senhora da Conceição e o Festival do Açaí. Mudanças que, de fato, afetariam costumes do local: Quando eu cheguei pra lá tinha pessoas que nunca tinham andado de carro! Aí quando eu fui levar esse pessoal a primeira vez [acha graça], ih teve gente que chegou desmaiado lá pra Belém! A dona [cita um nome] foi uma. Eu lembro benzinho, ela, uma outra lá de João Pilatos que já morreu, que desmaiou também porque ela nunca tinha andado de ônibus na vida dela. Lá tinha pessoas que ônibus, de carro assim, de condução, sabe. Andavam de barco, de barco já, mas de ônibus não. (RAIMUNDO, 2018)

A escola funcionaria seis meses na casa de Antônio Farias, neto de Domiciano, enquanto seu prédio era construído. Para atender as necessidades da comunidade, Raimundo matricularia crianças e adultos nas primeiras salas, em um esforço extraordinário de diminuir o analfabetismo na comunidade. Contrariando qualquer impressão de que foram passivos neste processo, os moradores discordaram até da planta apresentada pela prefeitura: Porque na verdade o prefeito, ele pagou uns pedreiros que eu levei lá, mas só que quando nós fizemos a planta, era um tamanho, só que depois o povo... Chegando lá o povo achou muito pequeno, aí teve esse primeiro embaraço. Voltei com o prefeito e disse “Olha prefeito... Olha, o povo...”, “Mas eles nem tinham escola!” [acha graça], “Pro senhor ver como o povo é, quando a gente começa a esclarecer as pessoas, o povo já não quer só aquilo, já querem além daquilo, agora tá complicado” [acha graça]. (RAIMUNDO, 2018)

Os moradores também exigiam dois pátios e duas salas de aula, quando a planta tinha apenas um pátio e uma sala; em um acordo com a prefeitura, a comunidade participou ativamente da construção do prédio, inclusive usando varas e areia extraídos da ilha. O sistema de mutirão, a partir daí, obteria sucesso na abertura de roças, alargamento da trilha de João Pilatos e na ampliação do campo de futebol, reconfigurando o espaço das localidades.

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É comum escutar em Igarapé Grande que a “comunidade” começou com o trabalho de Raimundo, embora o “lugar” já existisse desde Domiciano; como esclarece Raquel Wiggers (2012), o uso do termo “comunidade” seria popularizado na Amazônia a partir da década de 80, com a atuação da Igreja Católica através das CEBs. Raimundo, de fato, também cria uma comunidade católica em Igarapé Grande. Diferentes das demais localidades de Igarapé Grande, a entrada do Paraíso, onde está escola, os tucumanzeiros e carananzeiros dão lugar a uma capela que lhe assemelha a centenas de outros núcleos na Amazônia, com uma igreja na margem do rio.

O núcleo de Igarapé Grande onde foi fundada a escola, com a capela às margens do igarapé Bravo. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2017).

Mas os habitantes não deixariam de ser atores nessas transformações. Católico, Raimundo conta que queria dar o nome de São Raimundo Nonato para a escola, mas os próprios moradores preferiram homenagear Domiciano de Farias, primeiro morador do local. Quando da criação da capela, Raimundo tentaria novamente dar o nome de seu santo, mas a memória do local voltaria a se impor. A pequena imagem de madeira de Nossa Senhora da Conceição, que pertencera a Domiciano, ainda existia, e os moradores resolveram voltar a celebrá-la, depois de “vários anos” de abandono. Estando a imagem em péssimas condições, o pároco de Ananindeua, Pietro Gerosa, doaria uma nova, e passaria ele mesmo a visitar a comunidade. Fundador do Hospital Beneficente Anita Gerosa, em Ananindeua, o padre começa a encorajar os moradores a visitar a consultar o hospital. Segundo o site do Hospital Anita Gerosa, desde 1982 a instituição tem uma maternidade; isso ajudou a diminuir a 47


procura por parteiras em Igarapé Grande. Em 1987, a localidade começaria a receber visitas de uma equipe médica: O doutor era diretor daquele centro de Ananindeua, do centro de saúde de Ananindeua, ele era meu compadre [...]. Aí eu levei ele pra fazer um comando médico, ele queria fazer lá. Chegou lá, tinha pai que tinha 16 filhos, e ele não sabia nem o nome dos filhos, sabia só pelo apelido! (RAIMUNDO, 55).

Raimundo afirma que sempre pesquisou benefícios possíveis para a comunidade. A comunicação com diferentes entidades trariam benefícios que seriam compartilhados entre a escola e a comunidade, como quando da doação de um motor doado pela SUDAM, para o qual os moradores construiriam um barco.

O padre salesiano Pietro Gerosa, conhecido como padre Pedro, era italiano e teve uma importante atuação em Ananindeua. Fonte: Acervo pessoal de Thereza Farias (cerca de 1990).

Os moradores começariam a vender seus produtos na Feira do Produtor Rural de Ananindeua (hoje extinta). Raimundo enumera parcerias que a comunidade desenvolveu: a EMBRAPA ofereceria um curso de técnico rural, a entidade missionária JOCUM visitaria a escola regularmente com atendimento odontológico e oftalmológico, a EMATER abriria um projeto de piscicultura, e a SEASTER um projeto de apicultura, já a SAGRA ajudaria a equipar as casas de farinha (substituindo o tipiti pela prensa). As parcerias com a UFRA e a Prefeitura de Ananindeua, mas principalmente com a EMATER, seriam importantes para a realização do 1º Festival do Açaí, em 1995. Ouvindo esses relatos, é de se espantar a abertura de Igarapé Grande ao mundo ao longo de apenas uma década; o Festival do Açaí em 1995 teria cobertura de grandes jornais de Belém e atrairia centenas de pessoas de todas as ilhas e 48


cidades próximas. Mas isso não transformou por completo os costumes e a mentalidade da população. Enquanto isso, o processo de urbanização que a região metropolitana de Belém enfrentava não vinha dando apenas efeitos positivos sobre a região, e o ônus dessas transformações tornava-se cada vez mais evidente.

Missa realizada na capela pelo padre que substituiu Pietro Gerosa. A utilização das cadeiras da escola dão mostra dos esforços da comunidade para introduzir as instituições. Fonte: Acervo pessoal de Raimundo Pantoja (1990).

2.4. ANANINDEUA RURAL NA CONTEMPORANEIDADE: No dia 28 de Julho de 1989, a comunidade quilombola do Abacatal, no sul de Ananindeua, foi invadida. De acordo com Sirotheau (2012), 30 homens derrubaram casas e dois barracões comunitários, sem sequer retirar os objetos de dentro das residências; a estrada que dá acesso a comunidade foi fechada, e a escola ocupada e incendiada. O episódio ocorreu em meio a uma dura luta judicial que a comunidade movia contra uma tentativa de grilagem de suas terras, em que viviam desde o século XVIII. Abacatal, a essa altura, como diversas localidades rurais de Ananindeua, já entrava em contato com entidades missionárias e recebiam projetos técnicos da EMATER, que seriam fundamentais para a sua organização. Em busca de apoio político, os quilombolas recorreram a movimentos sociais e mesmo outras comunidades rurais de Ananindeua: “Eles vieram chamar aqui, que as famílias não tinham onde morar. Eles traziam aqueles trator e derrubavam as casas. Aí vieram chamar o pessoal do Curuçambá, o pessoal do João Pilatos, o pessoal aqui do Igarapé Grande. Aí fomos tudo pra lá” (THEREZA, 2018). 49


Maria Thereza8 lembra-se de quando os moradores de Igarapé Grande participaram de um protesto em frente ao Fórum de Ananindeua, apoiando a população de Abacatal. O episódio seria fundamental para a consolidação da identidade quilombola, mas também dá mostra da articulação política que as comunidades começavam a exercer; “foi, até hoje a gente tem o apoio dos pessoal do Abacatal”. Raimundo relembra um grande protesto nos anos 1990, em relação a BR-316, inaugurada sem a sinalização e as passarelas características da atualidade: Mas credo! O padre celebrou foi uma missa na BR [...]. Não sei se vocês já foram pra Mosqueiro, que ainda tem aqueles lugarzinhos que as pessoas colocam cruz aqui e acolá; quando a gente vê foi desastre de carro. Se fosse aqui nessa BR, o pessoal chegou a fazer isso no começo; tinha muitas cruzes, depois até atrapalhava o trânsito, atrapalhava quando alguém ia fazer algum serviço na beira da pista, porque era muita cruz. No começo era de piçarra, mas logo asfaltaram. Já se matou muuuito nessa BR. Aí nós começamos essa luta na década de 80 pra esses negócio dessas lombadas. Pra ti ver, pra fazer lombada é obrigado fazer greve! Olha, nós fomos daqui do Igarapé Grande, nós fomos era muita gente, dormi nessa BR um tempo aí! Uma vez um carro passou por cima de uma senhora com aquelas rasas de açaí do Abacatal, matou ela, matou a filha, matou o marido; matou 3 de uma tacada só. Foi uma carreta, que passou levando. Aí isso foi o estopim, nós saímos do Igarapé Grande tudinho [cita nomes], uma caravana, fomos pra lá, dormimos nessa BR, fizemos muita onda! (RAIMUNDO, 2018)

Raimundo organizava missões com os jovens, que visitavam outras comunidades católicas pela cidade, desde as ilhas até o Abacatal. Thereza aponta um pioneirismo da comunidade, que, com o tempo, começou a inspirar outros Círios e festivais do açaí na região. Mas a violência, com que a rodovia federal modificou a paisagem e os modos de viver em Ananindeua, chegaria também às ilhas. O aumento populacional das décadas de 1990 e 2000 modificaria intensamente as áreas próximas do rio Maguari-Açu, como Icoaraci, Curuçambá, Distrito Industrial e Murinin, todos com índices criminais cada vez maiores. Segundo Raimundo, os diversos portos que davam acesso a Ananindeua foram aos poucos sendo fechados, restando somente o Porto do Surdo, em uma propriedade privada. O fluxo de populações marginalizadas rumo a ilha de João Pilatos daria origem a uma nova comunidade ribeirinha: Nova Esperança. Segundo Ravena8

Entrevista realizada no dia 21 de Abril de 2018, na residência de Maria Therezinha Farias Ramos, a Thereza, de 49 anos, e no caminho entre sua casa e a casa de farinha da Cabeceira, em Igarapé Grande.

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Cañete (2017), a ocupação tomaria o lugar da antiga Indústria de Cerâmica da Amazônia (INCA), que funcionou entre as décadas de 1940 e 1990; local em que Tonico afirma ter trabalhado em sua juventude. Nova Esperança ganhou função de balneário para os moradores dos bairros próximos, aumentando uma demanda por transporte e atraindo os primeiros ataques de piratas na região, na década de 2010. Logo começaram a transitar motocicletas na trilha que leva de Igarapé Grande a João Pilatos; mesmo depois da saída de Raimundo, as comunidades prosseguiram em lutas por seus direitos, como a luz elétrica e o barco para a escola, que passou a atender toda a região das ilhas.

A comunidade de Nova Esperança, na ilha de João Pilatos, dista apenas 15 minutos do porto do Surdo, no Curuçambá. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2017).

2.5. LUZ: Raimundo Pantoja trabalhou em Igarapé Grande até 1998; já não estava ali quando foi atendida uma antiga reivindicação da comunidade: a luz elétrica. Ele explica: Olha, essa luz que chegou lá pra Igarapé Grande, eles chegaram uma vez a roçar pra abrir o pico. Iiih esse pico que eles abriram aqui dentro do mangal, huuum, deu onda. O IBAMA foi, queriam prender o pessoal da comunidade lá uma vez, teve uma onda muito grande. Porque essa luz já tava há que tempo, vez ou outra a gente ressuscitava esse projeto e dava muita confusão. (RAIMUNDO, 2018)

A vitória teria vez com a visita do INCRA em 2005:

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É imprescindível mencionar que [a ilha de] João Pilatos, no ano de 2005 foi caracterizada como Patrimônio da União, atendendo à solicitação dos seus moradores, já que os mesmos temiam perder suas terras devido as constantes invasões de terras ocorridas na área. Sendo assim, a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) propiciaram a criação do Projeto de Assentamento Extrativista (PAE) João Pilatos através do processo INCRA/SR - 01/Nº 54100.001818/2005 – 63. (INCRA, 2011, apud VIANA, 2017)

O assentamento PAE João Pilatos engloba todas as 3 comunidades da ilha: João Pilatos, Igarapé Grande e Nova Esperança; 200 famílias ao todo, sendo o maior da região metropolitana de Belém. Apesar da atividade histórica de produção de carvão em Igarapé Grande, o modelo de assentamento PAE sugere atividades agroextrativistas, de acordo com o site do INCRA, mas garante benefícios como o título especial das terras e o financiamento de moradias: “Eles escolheram umas famílias pra dar casas, e mudou muito. Porque antes nós morava em casa de madeira, de barro, e cada um ganhou uma casa própria”, afirma dona Tereza.

Uma das casas do PAE João Pilatos, na Cabeceira; apesar da mudança, as casas anteriores de madeira não foram totalmente abandonadas. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2018).

Escolhendo os móveis e eletrodomésticos, vários moradores passaram a utilizar fogões elétricos, geladeiras e batedores elétricos de açaí. Afinal, a luta pela luz teria sucesso em 10 de Junho de 2010, com a inauguração da energia elétrica em Igarapé Grande, através do programa federal Luz Para Todos. Isso possibilitou a variedade no trabalho; nas proximidades da escola, Hélio faz designs com o programa Photoshop e os entrega por endereços eletrônicos. Já a família de Thereza, na Cabeceira, semanalmente faz compras em supermercados de Ananindeua, transportando as mercadorias em carros conveniados com a Uber, para revendê-los na comunidade.

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A supervisão do IBAMA limitaria a exploração dos manguezais e da floresta para a produção do carvão; a atividade estimulada pelos órgãos seria o extrativismo ecológico. A presença de técnicos da EMATER introduziria o cultivo do açaí e do cupuaçu nas propriedades, para a venda na cidade.

Fogão a lenha apoiado sobre um toco de árvores, em uma casa de madeira no Maritubinha II. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha.

O pequeno fogão de Tonico, que ele afirma ser quase tão velho quanto ele, é testemunha de um longo processo de transformação ainda em curso. As plantas medicinais perdem espaço para os remédios comprados na cidade, mas a TV digital ainda divide a casa com o fogão a lenha. No dia em que visitei sua casa no Maritubinha II, tive uma das melhores experiências do processo de pesquisa. Saímos da localidade e já era noite. O Maritubinha II está localizado no interior da ilha de João Pilatos, entre os igarapés Maritubinha e Bravo; não está, porém, nas margens de nenhum dos dois. O Maritubinha é muito mais estreito que o Bravo, mas sua área de várzea é bastante larga. O caminho entre a casa de Tonico e o pequeno porto no Maritubinha (onde estava nossa canoa) é longo e não tem iluminação. Portanto, a luz se limita aos limites das casas, e a lua ainda reina absoluta em muitos espaços frequentados durante a noite. Já de noite, ofereci a lanterna de meu celular e fomos eu e os jovens que me levaram até o local, rumo a canoa. Caminhamos no meio do mangue sobre um caminho de dezenas de metros de troncos de miritis (usados em Igarapé Grande antes dos trapiches de tábuas), 53


iluminado apenas pela lanterna. Depois de descer do miriti, guardo o celular e seguimos pela canoa no igarapé escuro, sem iluminação. Os jovens ainda estão habituados às margens escuras, embora já estranhem suas casas quando falta luz. A relação com a luz, principalmente durante a noite, ainda é ambígua em Igarapé Grande, as formas de viver o escuro ainda são muitas. O caminho do rio e do igarapé ainda de longe iluminado pela lua e pela comunidade que se aproxima, ainda é palco de uma forma surpreendente de lidar com a paisagem. A televisão, por sua vez, ganha presença nas casas e participa das conversas em família, por vezes já silenciadas; em minhas visitas, percebi que muitas vezes o aparelho fica ligado por horas seguidas, mas nem sempre é protagonista no espaço da casa; ainda disputa com as conversas entre os familiares na noite e no almoço.

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3. ESTADIA: NARRATIVAS ORAIS E VISUAIS EM DIÁLOGO 2.6. TRABALHO 3.1.1. O dilema do carvão Em minhas entrevistas, ao perguntar a forma de trabalho mais comum em Igarapé Grande, obtive apenas uma resposta: o carvão. Porém, como mencionei anteriormente, Igarapé Grande teve uma maior diversidade de atividades em sua origem; as memórias que alcançam mais longe no tempo apontam a prosperidade com que os primeiros moradores criaram seus filhos e realizaram suas festas. As narrativas orais não são tão precisas ao apontar quando e como se deu a decadência econômica, se assim podemos chamá-la, uma vez que a venda do carvão oferece um lucro baixo dada a dificuldade de sua produção. Marta afirma que os empreendimentos dos primeiros moradores simplesmente não foram levados adiante pela geração seguinte. Cristino9 vê da mesma forma o fim do negócio de seu avô, Domiciano de Farias: “Quando ele morreu, meu pai ficou com 15 cabeças de gado. Só que meu pai não soube aproveitar, acabou tudo. Até hoje era pra ter muito gado aí na ilha, mas meu pai destruiu tudo”. Em meados do século XX, a extração da borracha também perdia sua força e a venda da madeira em grandes quantidades seria abandonada pelos moradores de Igarapé Grande; a produção do carvão vegetal, enfim, se tornaria uma atividade de trabalho característica da comunidade. Atualmente, são encontrados muitos fornos de carvão ativos nas margens dos manguezais do igarapé Bravo. O processo de produção do carvão em Igarapé Grande já foi descrito e ilustrado por Ravena-Cañete (2017), no trabalho etnográfico que desenvolveu ali. A riqueza de etapas no método de trabalho, exclusivamente masculino, constitui saberes que continuam presentes entre homens adultos da comunidade.

9 Entrevista

realizada no dia 21 de Abril de 2018, na residência de Cristino bento Farias, 58 anos, na localidade da Cabeceira, Igarapé Grande.

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O mesmo forno de carvão visto da terra firme e do nível do igarapé, um elemento comum na proximidade das casas, principalmente na Cabeceira e no Maritubinha II. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2018)

Cristino, porém, não acha que a atividade seja muito grata: Já pensou tu entrar num forno quente? Se tu ver como é um forno de carvão, tu entrar lá pra dentro daquilo; quando tu abre ele, chega treme [com o calor]. Então é um trabalho que não é bom, o carvão, ele acaba a gente. A gente fica velho rápido, de quentura, queimado. E é só o trabalho desses jovens aí, se não for o carvão, do que que eles vão viver? Novo! Rapaz novo de sair pra fora... (CRISTINO, 2018)

Na sua visão, as oportunidades de emprego na atualidade estão na cidade, e há pouca perspectiva para a juventude em Igarapé Grande. De fato, o corpo musculoso de vários homens que trabalham com o carvão há anos na ilha, contrasta com os cabelos brancos e rostos envelhecidos. O trabalho duro e a exposição a acidentes movimentam um mercado que cada vez menos se paga: Eu já trabalhei mais de 30 anos em carvão, já trabalhei. Pra mim isso era uma vantagem doida, vendo essas biboca de mato aí, cortando de machado. E corta, machado risca o pé da gente, perde sangue. [Faz uma careta] Ah, trabalho! Quem vê, filho, carvão, é doído. E aquele pó que tu penera, engole todo o teu nariz se não tiver uma máscara; vai tudo pra dentro, tu escarra. Aí eu parei tá uns 40 anos, mas até um tempo eu escarrava isso. Tive que ir no médico, passaram lavagem pra lavar, que não sai, fica agarrado no pulmão da gente. Com 20 anos atrás, ainda saía isso de dentro, o pó. Já pensou? (CRISTINO, 2017)

A preocupação de seu Cristino com os mais jovens também diz respeito às restrições a produção de carvão na ilha de João Pilatos pelo IBAMA. Em 2005, com a implantação do PAE João Pilatos pelo INCRA, que trouxe benefícios inegáveis para suas três comunidades, a ilha torna-se patrimônio da União, e a extração de madeira é limitada em detrimento do extrativismo de frutas.

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Os fornos de carvão não estão na beira do igarapé à toa. A lenha é trazida e o carvão é levado através de canoas, que transportam grandes pesos por locais de extração, produção e venda. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2018).

A mobilização das associações de moradores para conter o desmatamento na ilha culminaria na regulamentação da extração da madeira em toda a região insular de Ananindeua, uma vez que outros PAEs seriam implantados nas ilhas vizinhas. A luta por benefícios desencadearia transformações já almejadas nos seus modos de vida (principalmente a luz), mas também aumentaria a força do poder público na ilha. O esforço louvável do PAE de promover uma economia de baixo impacto ambiental na região acabou por modificar a paisagem das localidades. Visitantes em Igarapé Grande, não raro, se impressionam com a abundância de árvores frutíferas nos espaços da comunidade. Thereza, porém, afirma que muitas dessas árvores foram trazidas no processo de assentamento por técnicos da EMATER, como mudas de cacau, cupuaçu, acerola, açaí, entre outras. Em Igarapé Grande, como em muitos locais habitados (ou um dia habitados) na Amazônia, as paisagens modificadas enganam aos desavisados com sua semelhança de naturais; engano semelhante ao que já foi apontado por Diegues (1994).

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Nos caminhos que levam às casas da Cabeceira, somente os moradores podem nos apontar o que é natural e o que é modificado na paisagem. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2018).

O processo vivido em Igarapé Grande, porém, é um pouco diferente da expropriação de indígenas nos Estados Unidos, estudada por Diegues. Aqui, o incentivo público ao extrativismo já põe em prática o protagonismo dos moradores na conservação ambiental, como Diegues já afirmava, mas tenta impor um modo de trabalho supostamente “tradicional” a uma comunidade que historicamente se comportou de forma diferente. Em outras palavras, a tentativa de conservacionismo ambiental esbarrou em costumes recorrentes há quase um século em Igarapé Grande. A produção do carvão pelos moradores passa a ser limitada conforme o número de seus dependentes: “Se por acaso é eu e a mulher em casa, a gente pode até 10 sacas, vender. Aí se tem filho, vai aumentando assim. Não pode fazer muito, derrubar muita madeira” (CRISTINO, 2018). Cristino lamenta que os jovens não busquem emprego em Belém e Ananindeua, abandonando os modos de trabalho que, que em sua visão, tornamse cada vez mais obsoletos: Agora é mais pau que cai no mato, que o vento joga, que se aproveita; se derrubar mesmo... Esses paus grandes, que é pra sustentar a família. Que agora ninguém quer comprar carvão. Ninguém quer [fala com revolta]! E aí? Pra ir pra fora a polícia [ambiental] pega no rio, prende o carvão da pessoa; não pode andar assim. Então é difícil, filho. Mudou muito do passado. Lá atrás era bom, ainda peguei o tempo do meu pai. Meu pai trabalhava muito com roça, abacaxi, de 1.000, 1.500 pés de abacaxi ele vendia, meu pai. Naquela época aparecia; hoje tu tá

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aí, não tem um que venha comprar carvão, ajudar o próximo. O pai de família aí, coitado. (CRISTINO, 2018)

Socorro10, por sua vez, afirma que muitas das casas financiadas na comunidade de João Pilatos têm sido abandonadas pelos moradores, que se mudam para Belém, Icoaraci e Murinin. Como lamenta Tonico, o morador não pode vender ou alugar sua casa (uma vez que a ilha pertence a União); embora eu não tenha escutado relatos de abandonos de casas em Igarapé Grande, percebi uma certa diversificação do trabalho com o advento da energia elétrica, como expus anteriormente.

No fundo da casa, o fogão e o saco de carvão usado para a preparação do feijão. Tanto o carvão quanto o abano que está sobre ele foram produzidos na Cabeceira. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2018).

Mas essa diversificação poderia ter sido anterior11; Cristino ainda menciona cursos de cerâmica e panificação, bem mais recentes, em que os jovens da comunidade receberam treinamento e equipamentos para desenvolver as profissões. A cerâmica ainda seria vendida em alguns festivais do açaí, mas a padaria não teria futuro: “Cadê? Tu vai lá e cadê pão que tá saindo? Tão comprando lá fora; aprenderam e tão comprando lá fora. Aprenderam e tão comprando... o pão. Uma semana de curso, fazendo pão lá, ensinando lá...” (CRISTINO, 2018).

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Entrevista realizada no dia 30 de Abril de 2018, na residência de Maria do Socorro dos Anjos Farias, 53 anos, na Cabeceira. 11 Como dito anteriormente, na gestão de Raimundo Pantoja na escola, várias entidades realizaram em Igarapé Grande cursos de técnico rural, apicultura, piscicultura e mesmo equiparam casas de farinha.

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Nazareno também vê no abandono de práticas uma incerteza para o futuro do trabalho em Igarapé Grande. Para ele, o aproveitamento dos recursos naturais da ilha não é mais feito como antes, pelas novas limitações, mas também pela mudança na mentalidade: Quase tudo é diferente; porque naquele tempo, nós tinha um pé de piquiá bom nós plantava mais dois, nós tinha um uxizeiro bom nós plantava mais três, nós tinha um boi, nós criava mais uma cabeça, nós tinha um peru nós criava um pato. Aí hoje “Ah, não sei, que não dá fruta...”, mas naquele tempo, todos eles tinham um casal de boi, um casal de pato e um casal de peru. Dava pra fazer adubo, e hoje eles queimam o adubo, eles queimam... Quando dava o tempo do piquiá, tu escutava lá no mato. Aí tu ia lá no mato, um matava uma cotia, outro matava um veado, outro matava uma paca, outro pegava um jabuti... (NAZARENO, 2018)

É certo que as juventudes ribeirinhas poderiam ser tema de um trabalho dos mais complexos, uma vez que esta se encontra em um momento que as transformações sociais vêm chegando aos níveis mais profundos. Hoje a pesca vem ganhando força, apesar de diminuir a população de peixes e aumentar a de pescadores. 3.1.2. Roceiras e Parteiras Os relatos orais colhidos por Ravena-Cañete (2017) em Igarapé Grande associaram a gênese da comunidade ao dia em que o baiano Domiciano de Farias conheceu a jovem Cristina em uma festa, na ilha de São Pedro, onde ele fora tocar trombone. A união com a jovem cearense o levaria a comprar o sítio de uma senhora de nome Bibiana, que pretendia se mudar dali. Marta, neta do casal, atesta que Cristina ajudou o marido a cuidar e ordenhar as vacas da família até o fim da vida. Com toda a certeza as mulheres sempre tiveram uma grande importância doméstica nas comunidades ribeirinhas, limpando as casas e preparando a comida diariamente; bem como cuidando do quintal, dos animais domésticos e das plantas utilizadas na cozinha (urucum, limoeiro) e na cura (arruda, erva doce), que são mantidas sempre perto de casa. As mulheres, na maioria das vezes, também cuidam dos animais criados para a alimentação: o porco, as galinhas, os patos, os perus.

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Embora os homens estejam mais envolvidos com outras atividades, como a navegação, a caça e a pesca, e a produção do carvão, as mulheres de Igarapé Grande nunca deixaram de contribuir ativamente para a renda das famílias. Socorro, moradora da Cabeceira, lembra como sua mãe plantava bananeiras ao redor da propriedade da família: “A mamãe comprava essas telhas [da casa] tudo com dinheiro de banana. Nesse tempo o papai só comprava o carvão pra comprar comida, né? Café, açúcar... E ela plantava, vendia cada cachão de banana pra comprar essas telhas” (SOCORRO, 2018). De canoa, o pai de Socorro levava as bananas junto com seu carvão e outras frutas (uxi, bacuri) até Marituba, Elo Perdido (atual parte do Distrito Industrial) e Ananindeua. A relação de parceria também se estenderia para a abertura de roças de mandioca, sendo que algumas mulheres tiveram suas próprias roças, quando viúvas. Estudando os modos de trabalho dos agricultores de Igarapé Grande, Hora et al (2015) observaram um número muito próximo de agricultores homens e mulheres na comunidade. Na Cabeceira, o retiro de família construído em 1980 tem sido usado de forma comunitária para as famílias da Cabeceira e do Maritubinha, principalmente pelas mulheres, na produção das farinhas, da goma, do tucupi, entre outros alimentos. Nessa localidade, com a aquisição de uma máquina de bater açaí por dona Maria, através do projeto de assentamento do INCRA, o preparo do caldo tornou-se função feminina, ao passo que a extração do fruto permanece sendo feita pelos homens.

O retiro de farinha da Cabeceira, situada no caminho que leva da localidade até a escola. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2018).

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É importante dizer que as transformações ocorridas na comunidade entre as décadas de 1980 e 1990 também afetariam os modos de fazer a farinha. A introdução da prensa, instrumento em forma de parafuso que extrai o caldo da mandioca através da pressão, cumpre a função ancestral do tipiti de forma mais eficiente.

A prensa foi introduzida na década de 1980 através de um projeto da SAGRA, substituindo o tipiti. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2018).

Raimundo Pantoja lembra-se que dona Bena, na época a moradora mais antiga da Cabeceira, resistiu ao uso da prensa: É, sabe, a pessoa não gosta de largar [acha graça] o costume... Quando nós tinha o negócio da casa de farinha lá, era bem de prensa, já não usava tipiti. Mas Dona Bena não gostava, ela queria saber de fazer a farinha dela, só se for no tipiti. Porque na prensa, a pessoa coloca dentro daqueles sacos assim de trigo, aí colocava um em cima do outro, botava às vezes quatro... Aí a gente ficava só enroscado o parafusão assim, no negócio; aí ia pesando tudinho e amassando, pra poder tirar o tucupi. Aquilo era tecnologia; mas pensa, muita gente tinha resistência pra fazer farinha assim (RAIMUNDO, 2018).

Na atualidade, o tipiti não é mais usado, e muito menos produzido em Igarapé Grande; pode-se dizer que as transformações vão obtendo sucesso com o passar das gerações. As filhas de Dona Bena utilizam recipientes de material plástico para conservar a mandioca, ao invés de poços cavados no chão, como em diversas localidades rurais da Amazônia.

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Os tanques em que os tubérculos da maniva são conservados antes ir para a prensa. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2018).

O forno em que a mandioca ralada se torna farinha, remexida com o auxílio de um rodo. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2018).

3.1.3. Artesanato Por mais impressionantes que sejam as transformações que chegaram a Igarapé Grande com a escola Domiciano de Farias, não podemos pensar que foram completas nos modos de fazer de seus habitantes; houve continuidades profundas. Uma história contada por Raimundo deixa bem claro o caráter funcional

que

as

atividades

de

trabalho

tiveram

em

Igarapé

Grande

historicamente: Não é assim, uma pessoa chegar lá e “Ah eu vou mudar, aquele povo dali vai ter que passar a ser...”; mas hum! O povo é capaz de se matar e não faz, inventa uma desculpa e não faz, sabe. Olha, eu me lembro que teve um senhor, um pai dum aluno lá, que uma vez ele pegou um peixe que deu 60 quilos, um filhote. Tu pensa, ele ficou um mês tudinho sem trabalhar! Só bebendo cachaça e gastando o dinheiro que ele ganhou no filhote, porque o filhote é

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um peixe caro, não é um peixe barato [...]. Mas só depois de um mês que ele voltou pra pescaria, depois que acabou todo o dinheiro dos 60 quilos de peixe que ele vendeu de uma tacada só, que ele pescou. (RAIMUNDO, 2018).

Tal qual foi a pesca, a produção do artesanato e a extração de frutas na comunidade é marcada por ritmos naturais como o tempo da safra do açaí e a necessidade do uso. As frutas e os utensílios confeccionados não são gerados em larga escala e, quando vendidos, é em pequenas quantidades para amigos e familiares que não vivem na ilha.

O abano, confeccionado para o manuseio do fogo na produção de comida. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2018).

A natureza essencialmente prática do artesanato não lhe configura como uma habilidade masculina ou feminina; qualquer um que quiser pode aprender com quem que já sabe: “O papai fazia paneiro, fazia tipiti pra espremer massa [de mandioca, na produção da farinha], abano. Depois que o papai morreu, eu aprendi a fazer, que ele fazia peneira de coar massa, peneira de coar açaí” (VALDIR, 2017). Valdir ensinou a prática a partir de uma palmeira chamada guarumã a Socorro, que agora pretende ensinar jovens da Cabeceira que lhe pediram. Apesar dessa rotante pedagogia, são poucos os moradores de Igarapé Grande que costumam fazem os utensílios: Socorro, na Cabeceira, e Bené, nas vizinhanças da escola. Mesmo o artesanato tendo uma função estritamente prática, é um número baixíssimo de artesãos em uma comunidade em que tantos já detiveram esse saber.

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Socorro lembra que o artesanato já teve função importante em sua família, na época em que o pai vendia os produtos na cidade: “Tinha vez que a gente fazia era muito que tinha encomenda do papai lá pro colégio pra onde o papai vendia carvão”. O colégio em questão era a Quinta das Carmitas, administrado por freiras em Ananindeua: Nós fazia de 500, de 200... Mas faz um bom tempo já. Eu só sabia fazer ainda paneiro mesmo, que a mamãe sempre aprendeu, aí ela nos ensinava. Mas nós fazia paneirinho desse tamanho, pra muda né, que elas [as freiras] queriam [...]. Pra colocar plantinha... Nesse tempo era barato; era no tempo do cruzeiro ainda. (SOCORRO, 2018)

O cesto, ou paneiro, recipiente com inúmeras utilidades. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2018).

Em sua etnografia, Ravena-Cañete (2017) registrou as etapas da produção do açaí na localidade da Cabeceira, flagrando, através de fotografias, uma substituição parcial dos paneiros produzidos com o guarumã por baldes, latas e garrafas PET. Como dito anteriormente, a introdução da máquina para bater o açaí, da prensa na produção da farinha e da panela de alumínio já extinguiram artefatos como o tipiti em Igarapé Grande e as panelas de barro, que Socorro afirma que também eram produzidas por moradores.

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Na Cabeceira, a peneira já perdeu sua função no preparo do açaí. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2018).

Não posso deixar de dizer que os moradores atribuem, sim, certo valor estético aos instrumentos produzidos com folhas e palmeiras. Cristino, como citei anteriormente, afirma que a produção de artefatos artesanais em Igarapé Grande permanece como uma atividade secundária, apesar de já ter sido realizado um curso de cerâmica na comunidade. Tenho certeza de que o ensino dessas práticas seria de grande valor para os moradores na atualidade, desde trabalhos mais criativos como os de Bené, até a construção e venda de canoas.

Pato confeccionado por um morador de Igarapé Grande a partir de um cacho de bacaba, palmeira comum na região. Ao fundo, alguns paneiros produzidos pelo mesmo. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2017).

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3.2. O RIO E O IGARAPÉ 3.2.1. Banho: A micro-bacia do rio Maguari-Açu foi o centro da vida de boa parte da população de Ananindeua por muito tempo; os diversos igarapés que adentram as 9 ilhas da região e os furos que as comunicam entre si facilitaram uma duradoura troca de experiências e conhecimentos entre seus moradores por décadas. No continente, a bacia se estende por igarapés e rios menores, como o Icuí, o Ariri e o 40 Horas, ao longo dos quais surgiram comunidades com modos de vida muito semelhantes aos das ilhas.

As florestas de mangue são características da micro-bacia do rio Maguari-Açu. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2017).

Mas a comunicação cultural e econômica possibilitada pelo rio, que desemboca em Icoaraci, na Baía do Guajará, seria profundamente afetada pelo processo de urbanização da região metropolitana de Belém, que desaguaria em Ananindeua na década de 1970. Na contemporaneidade, lagos são encarcerados por condomínios fechados e balneários pagos, e igarapés tornam-se canais com cada vez mais lixo e cada vez menos água; extensões das florestas de várzea, terra firme e dos manguezais tornaram-se raros em boa parte de Ananindeua. Nas localidades de onde outrora desciam o rio para vender frutas e carvão em Icoaraci, ou subiam para vendê-lo em “Ananindeua”, os moradores deslocamse hoje de ônibus para trabalhar, muitas vezes, em Belém. Como a urbanização chegou dirigindo ônibus e caminhões nas estradas, as ilhas de Ananindeua vem sentindo esse processo de forma mais lenta. Mas os habitantes dos atuais bairros 67


periféricos de Icoaraci, Ananindeua e Marituba modificaram sua relação com os rios e as paisagens naturais, deslocando-se para áreas rurais nos feriados e fins de semana. Enquanto Nova Esperança se consolidou como um balneário nas férias de Julho, Igarapé Grande ainda atrai mais familiares e amigos de moradores, que pescam e tomam banho no igarapé durante suas visitas, impressionados com a conservação do patrimônio natural nesta parte da região. Os moradores, por sua vez, já não mergulham mais para tomar banho. Com o advento do projeto de assentamento do INCRA, Igarapé Grande deixou de puxar água dos poços com baldes e passou a tomar banho com chuveiros e consumir água da geladeira. Em minhas visitas a comunidade, não vi nenhum morador tomar banho no igarapé Bravo; e, embora exista uma caixa d’água comunitária, assisti a abertura de um novo poço para uma casa, por trabalhadores trazidos de Murinin. Diferente do que os visitantes possam pensar, os habitantes das ilhas já não vivem e nem veem a paisagem da micro-bacia como antes. O maguari, ave semelhante a garça, que deu nome ao rio, ao Curtume e ao bairro atual, desapareceu da região. Nazareno afirma ter matado o último, mas devemos saber que os hábitos caçadores dos moradores das ilhas não teriam como extinguir os animais da região sozinhos. Enquanto o rio ainda é sobrevoado por garças (consideradas bons indicadores ambientais pelos biólogos) e diversos pássaros menores, os guarás também já não são mais vistos voando livremente; a ave de plumagem vermelha, que Nazareno diz ter inspirado o nome do bairro do Guajará, já foi extremamente comum no rio Maguari-Açu.

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No quintal de dona Ambrósia, na comunidade de Cajueiro (ilha de Santa Rosa), o guará domesticado que talvez seja o último da espécie nas ilhas de Ananindeua. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2018).

3.2.2. Pesca O declínio da fauna na região não extinguiu a caça, mas esta atividade vem tornando-se cada vez menos feliz para os habitantes das ilhas. Nazareno relembra a diversidade de animais que havia na região: “Era veado, paca, cotia, tatu, quati, capivara, mucura. Tudo eles caçavam pra comer”. Valdir acrescenta o catitu (porco selvagem) às caças encontradas nas ilhas; Marta, por sua vez: Tinha, hoje em dia não tem mais; que nisso de tarem caçando, hoje em dia vão caçar e não pegam nada. Nesse tempo tinha muito... Matavam veado. Tudo o que era bicho tinha [...]. Mas eles não tinham coisa de matar onça, onça a gente não matava não (MARTA, 2018).

Assim como na porção continental de Ananindeua, principalmente a partir da década de 1970, as nove ilhas do município vem sentindo uma grande perda de sua diversidade animal, característica das florestas amazônicas. Nos rios, a queda do número de peixes também vem com a irregularidade das marés e a diminuição do volume de água, uma vez que muitos olhos d’água e igarapés estão em áreas cada vez mais habitadas.

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A rua do porto do Surdo está bem ao lado de um pequeno igarapé, e por isso está constantemente cheia de água, deteriorando o asfalto e os sucessivos aterros. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2018).

Nazareno enumera peixes que sempre foram encontrados na região: Bom, era tucunaré, bagre, xaréu, aruanã, traíra, jacundá, acará, bacu, jundiá, tuí, mandiaçu, matupiri (que era a isca pra pescar o peixe, e o amuré também era isca pra pegar o peixe), filhote, tinha o pescador de piraíba que é o mesmo filhote; só que filhote é até 50 quilos, de 90 pra frente já é piraíba. Tartaruga, mês de maio pescava e pegava tartaruga [...]. Carataí, piramutaba (NAZARENO, 2017).

Valdir também nota a diferença na população dos rios de sua juventude para a atualidade: Rapaz tinha muito peixe; mapará, pescada, bacu. Na época do verão dava, entrava pescador no bicharéu; dourada botava uma linha aí no rio, pegava dourada, filhote... Agora tá difícil; mas ainda pega, aí ainda pega; Tem vez que pega, vez ou outra tão pegando aí, mas é mais difícil. Tinha bagre... muito peixe (VALDIR, 2017).

Raimundo, como citei ao falar do trabalho na comunidade, deixa claro o caráter utilitário da pesca: a alimentação da família e a venda para a obtenção de outros produtos. Para ele, o impacto no número de pescados veio do crescimento populacional no entorno das ilhas: Foram sentir essa diferença quando cresceu o Curuçambá; que teve essas invasões e as pessoas já foram daqui pescar pra lá. Já cresceu o Distrito [Industrial] também, o povo do Distrito já baixou pra pescar pra lá. Aí já teve muitas invasões lá no Murinin [...]. Porque já tem muitas invasões, muitos conglomerados humanos aí de todos os lados, aí ficou complicado as coisas. Mas esse povo desce pra pescar, aí meu amigo, não tem rio, não tem peixe que dê conta de abastecer todo esse povo que tá a procura (RAIMUNDO, 2018).

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A falta de peixes tem tornado obsoleta antigas práticas de pesca, como o hábito de tapar a boca dos igarapés com cacuris, espécie de curral que aprisiona os peixes; com a descida das marés, os pescadores tiravam grandes quantidades de peixes dos cacuris, libertando aqueles que não seriam vendidos ou consumidos. Embora nunca tenha sido um pescador, Cristino se impressiona ao ver a prática deixar de ter sucesso na contemporaneidade. Já o matapi, apresentado no primeiro capítulo deste trabalho, vem se multiplicando na ânsia de capturar os camarões. Em minhas visitas a Igarapé Grande, notei a intensidade com que estes artefatos são encontrados nas margens dos igarapés; em muitos casos, já são usados materiais plásticos em sua confecção, como garrafas PET que os fazem boiar.

No igarapé Maritubinha, um enorme matapi produzido com elementos artesanais e reutilizando objetos industrializados. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2018).

Cristino dá a entender que esta quantidade não era costumeira: Peixe não é como antigamente, que tu botava uma rede e em uma hora de tempo tu vendia, comia. Hoje tu demora um dia pra conseguir um almoço. Já que é muito, é rede por cima de rede nesse igarapé, nesse rio. Camarão, é um com 10, 20, 30, 40 matapis adonde na beira, dá pro povo? Não dá (CRISTINO, 2018).

Sua preocupação com a juventude da ilha se redobra vendo na pesca a opção mais comum dos jovens com as limitações para a produção de carvão: O matapi, hoje eu tava olhando. 30 ali os matapis, botou; o meu primo ali tava pescando. Rapaz, não deu um litro de camarão. 30 matapi! Eu fiquei bestinha de ver, tinha matapi que não tinha um camarão dentro. Tu já pensou? Eu colocar aquele horror de matapi e não pegar um litro de camarão, dá só pra comer, que dá! E aí, pra vender? Não dá. 30 matapi eu vi hoje de manhã; um

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pinguiiinho dentro, d’água... Isso não é vida não, não dá. Te juro, não dá (CRISTINO, 2018).

3.2.3. Transporte Os filhos mais velhos de Igarapé Grande ainda se lembram dos barcos a vela que cruzavam os rios e furos da região até meados do século XX; o papel visceral que os cursos d’água têm para os ribeirinhos da Amazônia vem de raízes seculares. Assim como o veleiro de Domiciano de Farias levava seus netos para a escola na ilha de Santa Rosa, ainda hoje estudantes vão de canoa para as escolas de ensino médio em Murinin e Curuçambá. Embora ninguém na comunidade tenha precisado em que momento surgem as rabetas na região, posso afirmar que sua adoção foi recente. Raimundo afirma que em 1986 apenas um morador da ilha tinha um barco a motor; o motor doado pelo superintendente da SUDAM, que apontei no capítulo anterior, seria acoplado a uma embarcação produzida na ilha, e permitiria o transporte de alunos e também de produtos para a extinta Feira do Produtor Rural de Ananindeua.

A oficina em que são produzidas canoas, ao lado de uma casa na Cabeceira. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2018).

A união entre a canoa de origem indígena, que sobreviveria ao processo de colonização, e o motor de origem industrial dá forma ao artefato que melhor representa o modo de vida do ribeirinho na atualidade. O hibridismo que, à primeira vista, pode parecer precipitado e pouco seguro, na verdade está ligado a diversas formas de uso e conhecimento.

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Apesar da velocidade (que pode variar), a rabeta deixa seus passageiros expostos ao sol e a chuva, que são males dos menos temidos. Sempre que um barco passa por outro no rio, a distância, todos se cumprimentam, e o piloto da embarcação menor começa a manobrar para desviar do banzeiro da embarcação maior. Em minhas visitas me impressionei com a habilidade dos ilhéus de se locomover e se comunicar em rabetas em movimento, sob o barulho do motor.

Durante um trajeto de rabeta, a chuva cai sobre o furo do Curuçambá. Apesar da intensidade, ninguém na embarcação parece se preocupar com ela. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2018).

O meio de navegação não está ligado apenas a saberes, mas também a uma forma de interagir socialmente. Presenciei o resgate de uma canoa no porto do Surdo, que se soltara da vara em que o dono a amarrou; o dono não estava presente, mas aqueles que estavam no porto animaram-se em ajudar na questão. Essa forma de lidar comunitariamente com as posses de outros pode soar absurda no bairro em que ocorreu, dada a fama criminal que o Curuçambá tem. Durante a realização de um jogo de futebol, na Cabeceira do igarapé Bravo, o número impressionante de rabetas inspira piadas: “Se fosse no Curuçambá ou no Murinin, não sobrava um motor aí”. É bem verdade que a quadrilha de piratas que amedrontou a região no começo da década de 2010, não era formada apenas por jovens das ilhas, mas também do Curuçambá. Novamente o avanço da região metropolitana trazia ônus para a população das ilhas.

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Em plena seca da maré, a diminuta largura do igarapé já não era suficiente para que todas as rabetas fossem amarradas no porto. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2018).

Mas os portos de Igarapé Grande também são um capítulo a parte de sua História. Segundo Raimundo Pantoja, a construção do primeiro trapiche da ilha foi realizada através de um mutirão em 1989; antes disso, eram utilizados apenas os troncos de miriti. Extintos na frente da escola, os troncos grossos da palmeira ainda são usados no Maritubinha II, onde só se chega após atravessar um grande área de várzea.

Parte do longo caminho de miritis que leva ao Maritubinha II, onde os trapiches ainda não são usados. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2018).

Andar sobre os miritis, principalmente quando a maré está cheia e os troncos rolam pra os lados, é mais uma das habilidades naturalizadas pelos habitantes, com a qual muitos citadinos têm dificuldades. Raimundo lembra que Pietro Gerosa, em uma de suas primeiras visitas a Igarapé Grande, não conseguiu se equilibrar sobre o miriti e caiu na água. Episódios semelhantes devem ter acontecido inúmeras vezes na Cabeceira, até a recente construção de 74


um trapiche de tábuas; os miritis, porém, ainda fazem parte da paisagem desta localidade.

Embora já não sejam mais usados na Cabeceira, os miritis da localidade continuam intactos. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2018).

Jovem anda com uma criança de colo sobre os miritis, rumo ao Maritubinha. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2018).

3.3. IMAGINÁRIO E ESPIRITUALIDADE 3.3.1. Religião: Nas ilhas de Ananindeua, como em grande parte da região amazônica, o catolicismo está presente desde a sua origem; ainda hoje, o único templo religioso em Igarapé Grande é a capela de Nossa Senhora da Conceição, diferente das comunidades mais próximas12. A histórica hegemonia do catolicismo ditou muito

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João Pilatos, no outro lado da ilha, tem uma capela e um templo da Assembleia de Deus. Em Cajueiro, situada logo a frente da boca do igarapé Bravo, a Assembleia de Deus assumiu o papel majoritário na religiosidade dos habitantes.

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da cosmogonia dos ribeirinhos ao longo do tempo; valores patriarcais e heteronormativos, por exemplo, se perpetuaram através dos núcleos familiares de muitos filhos.

A procissão do Círio de Nossa Senhora da Conceição chega a capela de Igarapé Grande, enfeitada para a festividade da santa. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2017).

Na falta de uma capela na ilha, as primeiras gerações de moradores deslocavam-se até a capela de São Pedro de Valois, construída na ilha de São Pedro no século XIX, e as capelas de Santa Rosa do Livramento e São João do Maracacuera. A riqueza dos proprietários do engenho e, depois, da olaria, lhes permitia trazer padres de Belém para realizar as missas na ilha de São Pedro; Socorro afirma que vários de seus irmãos foram batizados naquela capela. Nas primeiras décadas, a principal expressão do catolicismo na ilha de João Pilatos foram as festividades aos padroeiros das famílias, das quais falarei mais a frente; passada a prosperidade destes patriarcas, todas as festas religiosas de Igarapé Grande foram abandonadas. Olanda13 lembra do fim da festa de São Sebastião, realizada pelos seus sogros Pedro e Ingrácia Cunha. Em 1971, o casal cairia doente e a festa não seria realizada desde então.

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Entrevista realizada em 30 de Abril de 2018, na residência de Olanda Severino da Silva, 67 anos, na localidade do Maritubinha II. É Olanda que guarda hoje a antiga imagem de São Sebastião, festejada pela família Cunha.

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A antiga imagem de São Sebastião, celebrada pela família Cunha até Janeiro de 1970. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2018).

Em seu trabalho etnográfico, em 1948, Eduardo Galvão já notava uma preocupação dos realizadores das festividades em Gurupá em relação aos mais novos, que tinham mais interesse em se divertir do que em aprender a organizálas. Hoje, em Igarapé Grande, Marta e Tonico reforçam a ideia de que as diferenças entre as gerações foram responsáveis pelo abandono das festas no passado. Estranhar a mentalidade dos mais novos, diferente do que pode parecer, não é uma novidade para as populações ribeirinhas. A festividade de Nossa Senhora da Conceição, santa cultuada por Domiciano de Farias, voltaria a ser realizada apenas com a inauguração da escola que leva o seu nome. Marta lembra que, antes da construção da capela, através do mutirão, o altar foi improvisado em uma das salas de aula da escola: “Eles fizeram um negócio em cima de uma mesa assim de cimento, pra botar o santo lá, pra quando o padre viesse, fazer a missa lá, dentro da escola mesmo, que não tinha coisa. A gente que rezava lá dentro, os alunos e nós tudinho rezavam” (MARTA, 2018). Com a introdução da capela por Raimundo Pantoja e as recorrentes visitas de Pedro Gerosa, os moradores de Igarapé Grande não precisariam mais se deslocar até São Pedro. Até então, era inédito um padre vir de longe para a comunidade, e a atração de pessoas para as missas deixou Gerosa impressionado.

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Inauguração da capela de Nossa Senhora da Conceição pelo padre Raimundo Possidônio (o padre Cid). Ao seu lado, no altar, está Raimundo Pantoja. Fonte: Acervo pessoal de Raimundo Pantoja (1990).

Expliquei anteriormente como a chegada destes novos personagens na década de 1980 teve impacto sobre o modo de vida na comunidade; mas a igreja católica já não seria a única a se aproximar da ilha. Mesmo sendo católico, Pantoja receberia outras entidades religiosas no espaço da escola, atitude que reconhece ser rara até hoje entre diretores de escola: Muitas outras organizações colaboraram, muitas igrejas. A Igreja Católica ajudou, as igrejas evangélicas também tiveram um papel importante ali; eles sempre desenvolviam ações educativas, palestras, eles pediam a escola pra mim ceder; sempre cedia, nunca neguei assim pra nenhuma entidade assim que viesse pedir pra fazer qualquer tipo de trabalho, nunca. Nunca foi fechado as portas, pra ninguém, eles são testemunhas disso lá (RAIMUNDO, 2018).

Mas a noção de espaço público de Raimundo Pantoja esbarraria na religiosidade original da comunidade, ao extrapolar os limites do cristianismo. Em certo dia 23 de Abril, o diretor cedeu o espaço da escola para uma festividade de Ogum, realizada por um grupo de Icoaraci: “Cedi e deu um comentário danado, foi uma luta pra mim poder explicar pra eles que isso eles não tavam errado não. Eu digo ‘Gente, tudo é possível, desde que a pessoa documente, desde que a pessoa oficialize o pedido. E tudo esses procedimentos eles fizeram, então...’” (RAIMUNDO, 2018).

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A procissão de Nossa Senhora da Conceição passa pelo trapiche recém-construído na comunidade. O manto azul, utilizado por vários anos, seria proibido pelo pároco por lembrar o sincretismo da santa católica com Iemanjá. Fonte: Acervo pessoal de Raimundo Pantoja (1989).

Ao trazer uma campanha de planejamento familiar com a equipe médica de Ananindeua, Raimundo não seria levado a sério; a formação dos grandes núcleos familiares estava naturalizada na noção de mundo dos moradores. “A questão é cultural. Claro, a questão cultural se muda, mas se muda com muito trabalho, com muita paciência, com muita... Não é assim não” (RAIMUNDO, 2018). Trinta anos depois, dona Marta já estranha a nova configuração das famílias em Igarapé Grande, que tem geralmente dois filhos por casal: Ah... De primeiro era muita gente. Muita gente, muito alegre; vai acabando as pessoas... Hoje só tem mais gente na escola; assim nas casas não tem ninguém, tem só marido e mulher [...]. Não tem muita gente agora, tá acabando... Eu acho que tá acabando. Se tu ver a escola como tá, é só um pouquinho de gente; não é como de primeiro, que eles colocavam as salas tudo cheias, que a gente ia ver, tudo cheio, toda a escola. Agora nem isso tem mais, parece (MARTA, 2018).

Na Cabeceira, Socorro está acostumada a visita de missionários da Assembleia de Deus, vindo antes do Caiçal (localidade de Santa Bárbara), e hoje do Distrito Industrial e de Belém. Mas o catolicismo continua imbatível na comunidade, e a aproximação das demais igrejas ainda se resume a relação amigável estabelecida pelas ações sociais: “Dia de natal ele veio, trouxeram um bocado de coisa assim daquelas marmitas né, com doce, com coisa, pra fazer a mesa de natal [...]. Ceiaram com nós” (SOCORRO, 2018).

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Algumas transformações culturais, de fato, são mais lentas. Raimundo ainda lembra a resistência que a questão religiosa lhe ofereceu: “Não tem nada a ver gente, vocês tem que procurar quebrar essas barreiras, essas coisas que... esses preconceitos que às vezes a gente coloca na vida da gente, que dificulta até os relacionamentos”, dificulta até a luta, né? [...] E lá eu tive muita dificuldade no começo, pra desenvolver o trabalho ali foi muito complicado, sabe, no começo. Mas depois andou bem, graças a Deus... (RAIMUNDO, 2018)

3.3.2. O Círio: Ao recuperar a festividade de Nossa Senhora de Conceição, os moradores de Igarapé Grande já não a realizariam da forma que seus pais e avós fizeram. No mesmo ano em que foi inaugurada a escola, Raimundo Pantoja propôs a criação de um Círio, procissão religiosa que partiu da casa de dona Tomázia, filha de Domiciano, rumo ao altar da escola. Maria Tomázia foi a matriarca da Cabeceira, e o trajeto do Círio indica a forte relação deste núcleo com o núcleo onde a escola está. A festividade agora era inspirada no Círio de Nossa Senhora de Nazaré, realizado em Belém desde o século XVIII; uma berlinda, enfeitada com flores, foi produzida em Icoaraci para transportar a imagem da santa, que agora recebia também um manto. Raimundo conta que no primeiro ano, 1986, a berlinda recémfabricada chegou tão atrasada que o padre decidiu começar a procissão sem ela. Em uma fotografia que o ex-diretor tem do evento, dona Oscarina segura o que parece ser um braço de cera, semelhante ao carregado por pagadores de promessas grande Círio de Belém.

No primeiro Círio de Igarapé Grande, a berlinda segue atrás da santa devido ao atraso. À direita do padre, está dona Bena; à esquerda: dona Oscarina e dona Marta. Fonte: Acervo pessoal de Raimundo Pantoja (1986).

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Com a reconfiguração dos espaços da comunidade, através de mutirões, Igarapé Grande construiria sua capela e abriria o caminho que leva a João Pilatos. Raimundo relembra que Valdir organizava os trabalhadores enquanto ele ajudaria na comida e na realização de festas para a arrecadação de dinheiro. A partir de então, a procissão passaria a ligar João Pilatos a Igarapé Grande, através da trilha que cruza a floresta da ilha. As duas comunidades sempre foram ligadas por relações de amizade e parentesco, mas também pelos mesmos modos de vida do qual o catolicismo fazia parte. Até hoje os moradores de Igarapé Grande visitam a comunidade vizinha na festividade de São João, em Junho. Em Dezembro, uma transladação cruza a mata na noite do segundo sábado do mês, de Igarapé Grande a João Pilatos, e o Círio faz o caminho inverso na manhã do dia seguinte. A programação ainda inclui visitas a casas de moradores da área, ao longo de um mês.

O Círio de Nossa Senhora da Conceição percorre a trilha entre João Pilatos e Igarapé Grande, cercado pela floresta. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2017).

No primeiro capítulo deste trabalho, usei o Círio de Igarapé Grande como exemplo da noção de costume a partir de Hobsbawm. Reconfiguração das antigas festividades de Nossa Senhora da Conceição na comunidade, o Círio já teve trinta edições e passou por diversas mudanças e transformações, mesmo crescendo e diminuindo. Em 1994, por exemplo, o trajeto de João Pilatos a Igarapé Grande seria feito de barco. O Círio Fluvial de Ananindeua, apesar de seu sucesso, não seria aprovado pela Capitania dos Portos, e deixaria de ser realizado no ano seguinte.

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O único Círio Fluvial realizado em Ananindeua. As embarcações enfeitadas com fitas circundam a ilha de João Pilatos, rumo a Igarapé Grande. Fonte: Acervo pessoal de Raimundo Pantoja (1994).

O Círio de 2017 caminhou rápido pela trilha que liga as comunidades. Apesar de fazer parte do município de Ananindeua, a ilha de João Pilatos faz parte da paróquia de Outeiro, e é de lá que o padre vem com os guardas da santa para a procissão e a missa. A dificuldade de se chegar a sede da paróquia alimenta nos moradores o desejo de se integrar a uma paróquia de Ananindeua. 3.3.3. Imaginário: Como dito mais acima, Galvão (1955) viu na religiosidade das cidades amazônicas um hibridismo do catolicismo com elementos de outras origens. Dentre eles, as práticas de cura dos pajés e benzedeiras e os mitos de origens diversas, reinterpretados durante a colonização. Nazareno lembra de ouvir sobre a mãe-do-mato, o curupira, a cobragrande e um certo “andador”. Ele explica: Tinha uma visagem grande aqui, que essa foi acabada daqui. Da ilha de João Pilatos. Ela saía daqui de Nova Esperança, saía de noite lá naquela boca que tem lá: “Eeeeh me dá uma passagem! Eeeeh me dá uma passagem!”, aí o caboclo ia remando mais com medo. Porque naquele tempo era a visagem né, a onça e a visagem. Metia o remo! “rapaz, essa visagem hoje quase não deixa eu passar”. Um dia um engraçado, sempre tem um curioso no meio: “Vou tomar uma cachaça e vou ver essa visagem, se ela é boa mesmo”. Ia passando, “Eeeeh!”, “Lá vem o grito”, foi remando, na boca do cotovelo, remando, lá vem! E ele remando; ah vou dar uma passagem lá pra ela. Chegou lá na boca do Maguari, que tem aquelas 4 bocas, encostou: “O que é?”, “Me dá uma passagem pro outro lado”, “Umbora!”. E aí o caboclo embarcou lá com um [?] nas costas, quando embarcou lá, arreou, ficou lá em cima, que não

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dava nem pra meter o remo lá. Levou até o lugar dele, na ilha Sassunema e ela ficou lá. Aí: “Olha tua visagem não tá mais aqui, levei tua visagem” (NAZARENO, 2018).

Narrativas como esta são reveladoras do mundo ribeirinho, dos referenciais espaciais e culturais que os narradores têm; por exemplo, várias pessoas que entrevistei negaram já ter visto uma visagem na vida, pois estas só apareciam longe das áreas habitadas. Nazareno, porém, assegura que estas experiências acontecem dentro das circunstâncias do local, mas também das pessoas: “É capaz de tu dormir num cemitério e não ver nada; como eu já dormi no cemitério de Benfica e não vi nada, mas eu dormi na frente da igreja de Benfica e ouvi muito apito no meu ouvido”. Os relatos, na maioria das vezes, dão a entender que estas experiências estão recuadas no tempo. Nazareno relembra a história de um jovem, nas primeiras gerações de Igarapé Grande, conhecido como Piacá. O rapaz fora “tapar um igarapé com um cacuri14”, quando se deparou com duas mulheres, uma loira e uma negra, que tomavam banho no riacho. Aí nessa hora que ele gritou, ele olhou a mulher, daí deu um sono nele que ele dormiu. Aí o pessoal esperaram ele, esperaram ele, e não veio mais. Aí “Aconteceu alguma coisa com o Piacá” [...]. Quando foram lá, o Piacá deitado com o peito pra cima, “Ih, o Piacá morreu mesmo”.

Seus parentes recorreram aos curandeiros da região: um senhor negro chamado Maximiliano, mas conhecido como Maxico, e um certo Pedro Procópio. Seria Procópio que curaria o rapaz, afirmando que Piacá havia mexido com a “mãe” do igarapé; “Foi a branca que olhou, fosse a preta, ele não tava mais contando história não, ele tava morto”, reproduz Nazareno.. Os elementos raciais no relato apontam uma população miscigenada desde o início, como suas crenças. Já a atribuição do elemento mágico a personagem feminina também aparece em uma narrativa de dona Thereza. Uma fêmea do boto teria se apaixonado por um primo seu, assumindo a forma de uma mulher e se deitando com ele; o homem caiu pálido e doente, e acabou por morrer; “entraram lá pra dentro do quarto e ele morreu disso. Dizendo o povo; que eu não acredito” (THEREZA, 2018). 14 Espécie

de curral para a captura de peixes, armado por pescadores na região amazônica. O método já foi muito comum nas ilhas de Ananindeua, não sendo mais recorrente ali.

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A incredulidade de Thereza, no passado, poderia ser entendida como um abuso e lhe atrairia a visagem, mas este tipo de experiência já não é mais recorrente. Pode-se dizer que a chegada da televisão e as invasões ao longo da micro-bacia do Maguari-Açu afugentaram os botos e as matintas. Assim como em diversas partes de Ananindeua, as visagens e os episódios extraordinários ficaram na memória dos mais velhos. Socorro lembra que tinha medo, quando criança, ao ouvir as histórias de matinta-pereira e lobisomem que sua avó lhe contava. Quando lhe perguntei se isso ainda havia em seu tempo, ela me disse: “Não. Nem no tempo dela tinha não, ela que falava! Que o pai dela contava, ninguém chegou a ver não”. É provável que o bisavô de Socorro, Domiciano de Farias, tenha trazido muitas histórias de sua terra natal, a Bahia, como muitos nordestinos que vieram para o Pará no fim do século XIX. Mas são cada vez menos dos seus descendentes que acreditam nessas coisas. E talvez até mesmo estas criaturas tenham o seu próprio ritmo para abandonar os velhos hábitos. Testemunhos recentes de uma enorme cobra na boca do igarapé Bravo fizeram os moradores duvidosos lembrar as histórias de que a cobra-grande era vista no rio Maguari-Açu. Na cacimba da propriedade de Valdir, onde seu pai dizia que a Uiara aparecia, moradores mais jovens já ouviram barulhos e viram um “indiozinho”. Em Igarapé Grande a mudança está sempre em processo. 3.3.4. Cura: Talvez a atividade de caráter feminino mais afetada pelo processo que se seguiu a implantação da escola tenha sido a das parteiras e benzedeiras. Historicamente, estas mulheres acumularam a função de realizar o parto, ensinar remédios e realizar as rezas para pessoas doentes; tendo os pajés da região ficado no passado já há décadas, as parteiras assumiram em suas mãos o fazer e o saber da “medicina caseira”, como se referem os moradores. As duas parteiras com que tive contato em Igarapé Grande, hoje aposentadas, há muito abandonaram suas funções e já não têm mais plantas medicinais em seus quintais. Marta, hoje com 80 anos, assumiu a função da irmã, 83


quando esta morreu; a irmã, por sua vez, substituíra a mãe de ambas. Ela afirma que jamais teve um prestígio especial na comunidade por isso: “Era normal. Às vezes tava até chovendo e eu ia por debaixo de chuva fazer, aí botava um paninho na cabeça e ia embora...”. Valdir, também, afirma que só se procurava uma parteira quando ninguém na família sabia fazer parto; sua mãe, por exemplo, fazia o trabalho para as próprias filhas. Marta afirma que já foi convidada para trabalhar na Santa Casa de Misericórdia, em Belém, mas preferiu ficar em sua casa. Raimundo Pantoja, por sua vez, afirma que as parteiras da comunidade chegaram a ser levadas para o Hospital Beneficente Anita Gerosa para um treinamento. O hospital, porém, começaria a ser indicado pela escola Domiciano de Farias, o que também introduziria a prática do pré-natal entre as moradoras da ilha. Raimundo relembra o episódio em que uma moça morreu com sua criança em trabalho de parto; o fato revoltou o padre Pedro Gerosa, que soube do ocorrido ao realizar a missa de sétimo dia da jovem. Diretor do Hospital Anita Gerosa, que levava o nome de sua mãe, o padre facilitaria o acesso dos habitantes de Igarapé Grande ao atendimento médico.

Pároco de Ananindeua, Pietro Gerosa realiza o batizado de uma criança na capela de Igarapé Grande. Fonte: Acervo pessoal de Thereza Farias, do fim da década de 1980.

A procura pelas parteiras diminuiria gradativamente com a difícil introdução da medicina institucionalizada na ilha. Responsável pelas primeiras visitas de médicos e enfermeiros de Ananindeua na década de 1980, Raimundo narra um episódio curioso, em que uma aluna da escola desenvolveu uma horrível infecção 84


no pé, conhecida como mija-cão. Sem saber como curar a enfermidade, causada pelo contato com fezes infectadas de animais, a mãe da menina enrolara seu pé com um pano; Raimundo visitou a família e, com medo que a menina perdesse o pé para a ferida, trouxe uma equipe médica de Ananindeua: Aí eu cheguei lá... Meu irmão, a maioria dos irmãos tudo correram pro mato, outros escaparam pra debaixo da cama junto com ela. Aí quando eu cheguei lá, falei “Ei dona Maria, cadê sua menina”, “Ah tá aqui no quarto”. Eu entrei o quarto, chega embaixo da cama se embalava, que eles tavam debaixo, acho que era uns 4 assim de baixo, que chega levantava a cama nas costas. “Mas meu Deus do céu!”, eu digo “Ei Elisabete! Ei Gita, Gita!”, e nada, “Ei Gita!”, e nada. Até que nisso deles se mexerem lá, eu vi a perna dela que tava marrada pelos panos, aí eu com o enfermeiro puxei a perna dela assim pra fora [acha graça], “Bora”, aí veio me ajudar assim na marra, aí tirou aquele peno assim, aquela toalha. Quando ele viu aquilo, chaga tava horrível de podre; aí tinham levado uma bacia, meteram a baciazinha por baixo, jogaram aquele medicamento e foram limpando. Assim mesmo, ela lá embaixo da cama; olha eles vieram embora e nem viram o rosto, nem sabiam quem era a pessoa, porque não saiu mesmo, rapá, fiquei besta de ver! (RAIMUNDO, 2018)

Ele continua: Limparam tudinho, aí passaram aquela pomada tudinho, aí passaram remédio pra ela ficar tomando direitinho lá. Aí remédio pra mãe dela ficar passando, fazer curativo, em casa. Eles tiraram tudinho aquela parte necrosada assim, limparam tudinho. E olha aquilo durou bem uma hora e meia, nós ali naquela agonia, pois ela não saiu! Nem os irmãos que tavam lá debaixo. Pra ti ver como eles eram... Sabe, no começo eles era muito difícil, sabe. Difícil, difícil mesmo (Raimundo, 2018).

Com o passar de três décadas, as rezas e os remédios caseiros seriam praticamente abandonados em detrimento do precário serviço de saúde pública da região metropolitana de Belém. Cristino se lamenta que o posto de saúde implementado recentemente em Igarapé Grande funcione na casa do produtor rural, e que a prefeitura nem se deu ao trabalho de construir um prédio. A falta do atendimento diário na ilha também os obriga a se deslocar para o posto médico do Curuçambá rural: Tem o posto médico, mas o médico só vem duas vezes na semana [...]. É, vem pra população; dia de terça e quinta que o médico vem. Aí tem uma enfermeira e um agente de saúde; tinha 4 agentes de saúde, só que tiraram a Rayane, tiraram a Lucinda, tiraram mais outra lá de João Pilatos. Só tem o Eduardo de agente de saúde (THEREZA, 2018).

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Mas a sobrevivência de práticas de cura como a de seu Tonico, no Maritubinha, dão mostras de que as transformações na função medicinal são mais complexas do que parecem. Como ele mesmo explica: Era, negócio de puxar o pé da gente. O sujeito torce a perna, aí sempre vem aqui comigo, aí eu agarro, eu rezo e puxo. “E aí?”, “Graças a Deus tô melhor já”, “Tá bom mesmo?”, “Com certeza”. Aí vão embora; é assim que eu faço, agora de outras maneiras eu não faço, porque eu não tenho (TONICO, 2018).

Em uma de minhas visitas a comunidade, acompanhei o neto de seu Tonico, que estava com o pé torcido e um pouco inchado, e pediu ajuda a seu avô. Tonico pediu que sua casa fosse toda fechada, sentou em um banquinho e pediu que Boto sentasse em uma cadeira; dada a seriedade da ação, resolvi não fotografar. Enquanto esticava e remexia o pé do jovem, citou vários casos de pessoas cujos pés e pernas ele acudiu, pois este é o termo que usa. Com a casa toda fechada, o ambiente começava a ficar muito quente, embora bem iluminado (Tonico comentou que o serviço é ruim e que falta luz com muita frequência). Após cerca de 20 minutos, perguntou se o neto já se sentia bem; Boto afirmou que sim, que já conseguia esticar e mexer o pé, como não podia antes. Embora Boto dissesse que já se sentia apto até mesmo para jogar futebol novamente (!), o avô o aconselhou a descansar o pé por um dia, por via das dúvidas. Neste processo, inclusive, ouvi uma declaração reveladora sobre o ofício da cura na comunidade (ou talvez no passado dela): certa vez, Tonico decidiu parar de acudir mulheres, por medo de que alguém dissesse que ele estava se aproveitando da situação de alguma forma, apertando o pé de moças ou senhoras. Voltou atrás da decisão a pedido de conhecidas, por ele ser o último a realizar a prática na ilha. Este provavelmente foi um problema que Tonico teve por exercer um ofício tradicionalmente feminino. Como ele mesmo afirma, aprendeu a “puxar pé” com a sua mãe, Ingrácia, que acumulava os saberes da prática do parto e da cura: A minha mãe que era assim. Ela puxava, era parteira também, minha mãe era parteira. Eu aprendi esses negócios; às vezes chegava a mulher “Olha o chefe disse que... às vezes tá com duas crianças na barriga”. Aí ela ia ver, isso não é a criança, isso é água, é só aguaceiro (TONICO, 2018).

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Enquanto Thereza, na Cabeceira, afirme que ainda usa bastante remédios caseiros,

dona

Olanda,

no

Maritubinha,

lamenta

que

sua

propriedade

praticamente não tem mais plantas de cura, das quais outrora foi cheia. Não é exagero afirmar que conhecimentos de valor imensurável estejam se perdendo aos poucos com essas mulheres. Natural de São Paulo das Pedrinhas, localidade do atual município de Benevides, Olanda aprendeu a usar vários remédios que tinha em casa com a avó. Lembra de um dia em que deu um ramo de ar em seu primo, que andava pela mata: “ele pegou um vento, ele ficou todo torto. Ah, a boca dele entortou, o olho dele, se entortou todinho”. A pedido da avó, Olanda colheu gergelim preto, pucá e catinga-de-mulata para que ela preparasse o chá: “Olha vó, manda fazer... Isso é muito fino esse remédio, não deixe pegar vento”. Neste caso, mais uma vez, a casa foi fechada para o processo de cura. Também é importante notar que a disponibilidade ou não dos remédios nos quintais movimentou a sociabilidade entre os parentes que se espalhavam pela região. Olanda também lembra do dia em que foi procurada por um familiar do Curuçambá, a procura de um remédio ensinado por dona Raimundinha, benzedeira do Curuçambá, para um bebê que contraiu asma: “Ela ensinou o pelo do gato preto pra queimar, fazer aquele moído bem moidinho, fazer o chá da catinga-de-mulata... E, 3 pingos da banha da mucura. E agora, onde vai buscar isso [ela acha graça]?”. Olanda sabia onde encontrar a banha, e a criança foi curada. Valdir afirma que a dificuldade de se chegar ao hospital deu lugar a dificuldade de ser atendido por ele. Os antigos remédios, ainda que eficazes, não parecem ser o bastante para a crescente diversidade de doenças: “Não se ouvia falar em muita doença [...]; agora não, que aparece é muito. Tá com isso, tá com aquilo, é isso, é aquilo; agora é assim, naquela época não”. Enquanto a inversão gradual das práticas de cura se completa (ou não), os remédios caseiros e as memórias das parteiras ganham cada vez mais ares de nostalgia: 87


Quando fazia [o parto], gritava: “Ei mãe Ingrácia! Oi, pode ir chegando!”. Eles não iam assim pra parteira aí fora não, já tinha aqui né, que ela acudia, e tudo ficavam bom de saúde. Tomavam remédio, bem bacana mesmo. Hoje não, hoje não tem mais disso; acabou. Elas vão lá pra fora e os filhos vão nascendo... (TONICO, 2018)

3.4. LAZER E FESTA 3.4.1. Santos e bebidas: Os moradores mais antigos de Igarapé Grande denotam uma grande variedade de festas no passado da comunidade. Nazareno, por exemplo, afirma que já houveram pelo menos três cordões de bicho nas ilhas de Ananindeua: Pretinho, Cordão do Rouxinol e Cordão do Boi: Era um cordão bonito, tu pegava, arrumava um montão de gente, trinta, quarenta pessoas, botava chapéu, e cantava. Tinha o Nego Chico pra atirar com a espingarda, tinha o rouxinolzão lá, aí tinha a mesma coisa que agora; era mais bonito que agora. Tinha influência pra fazer um negócio bonito, vestidão. Todo mundo se juntava lá. Era no Socorro, lá que era mais... que tinha o cabeça né, o tal da velha Marieta. Era a dona Marieta; Cantílio, ele que era o inventor dos cordões do boi. Carneiro, o Boi e o Rouxinol. Aí o Pretinho mesmo era da família dos Coimbra, lá de Igarapé Grande. Cordão dos Pretinhos . (NAZARENO, 2018)

Os teatros musicais populares, executados no período junino, já foram muito comuns na região, desde os cordões ainda conhecidos em Icoaraci até os extintos bois-bumbás nas comunidades da porção continental de Ananindeua. As fantasias eram feitas com plumagens de maguaris e guarás, dentre outras aves abundantes nas redondezas, e as peças eram encenadas nos pátios das grandes casas. Nazareno ainda canta os versos de uma das cantorias dos Pretinhos: “Eu não gosto de caboclo, nem que seja meu parente Por que tem o mau costume de mexer com o que é da gente” Com a falta de continuidade dos mais jovens, estes espetáculos morreram com os primeiros moradores das comunidades. Dona Marta, por outro lado, afirma que não conheceu cordões na ilha, mas que Igarapé Grande era visitada por grupos vindos de Icoaraci: “Era bonito isso! [acha graça]. Quando a gente ouvia aquele tambor lá, pra banda daqui, quando a gente ouvia o tambor pra banda do rio grande dali, pode contar que quando era de noite, chegava!”. Segundo ela, os 88


grupos já vinham fantasiados em suas canoas, cheias, e desciam dançando no porto da comunidade; os moradores agradeciam com paneladas de mingau. Mas as principais celebrações do local eram as religiosas. Um senhor conhecido como o “velho André” festejava o Divino Espírito Santo, no cinquentésimo dia depois da Páscoa, em uma grande festa onde sua família matava um boi para comer. Manoel Cunha também fazia uma grande festa para a Santíssima Trindade, no dia 27 de Março; sua irmã, Ingrácia, festejava São Sebastião, com a imagem que apresentei anteriormente, e Domiciano de Farias celebrava Nossa Senhora da Conceição, que seria resgatada na década de 1980. Dona Olanda, que viveu anos com a família Cunha, fala das festas de São Sebastião, que duravam 8 dias e atraíam pessoas de toda a região. As memórias dela, de dona Marta e de seu Tonico aludem a bandas de música que vinham de Vigia para tocar, enquanto os botos subiam do rio para dançar com as moças: Vigia era muito falada aqui, porque eles vinham, eles eram... eles eram mordomos das festas daí do coisa... Quando eles iam pra lá, o santo ia pra lá fazer visita; que eles sabiam que a festa era 20 de Janeiro, dia de São Sebastião [celebrada no que hoje é o Maritubinha], antes disso tinha que andar por lá que... Chamavam donativo... Eles iam em canoa grande; aquilo vinha cheio... PEIXE, vinha muito peixe; traziam farinha, traziam arroba de farinha. Verdura, muita verdura... Farinha de tapioca, tapioca, mas era tanta coisa de lá de que vinha muita coisa. Eles passavam mais de um mês pra lá, viajando pra lá, nesse tempo não era nem motor. Mas quando que era motor... À remo! À remo, à vela! Tempo bom, né? (OLANDA, 2018)

A descrição de Olanda é semelhante a que Eduardo Galvão fez em Gurupá, sobre os mordomos e a arrecadação de donativos para estas festas, o que parece ter sido um padrão em toda a região. Ela ainda menciona a realização de leilões no primeiro dia de festejo: Era leilão! Leilão que eles falavam; tudo o que dão, aí pedia ajuda pro santo, e acho que eles acreditavam muito no santo né, se pegavam, recebiam benção do santo... Aí um já dava galinha, outro já dava porco, fava pato, dava fruta, dava farinha, o que eles quisessem dar! Aquilo ia tudo pro leilão. No sábado a noite tinha o primeiro leilão, aí um fazia aquela chamada ali; era muita gente, muita gente. Eles ofereciam, cada coisa eles iam oferecendo, e aquelas pessoas iam “eu dou tanto!”; aí outras pessoas “Eu dou tanto a mais!”, outro: “Eu dou tanto a mais!”. Aí eu que já dava, via que já tava um bom preço e deixava com o último que falava (OLANDA, 2018).

89


Estas festas ainda são muito louvadas na memória dos moradores mais velhos; apesar de terem um cunho religioso, as festividades se notabilizavam pela música e pela bebida. A cachaça era altamente consumida pelos homens, enquanto a cerveja preta seria menos popular, e o refrigerante de guaraná seria bebido pelas mulheres; a comida ia desde bois comprados em Icoaraci para o abate até a maniçoba batida em pilões para cozinhar por vários dias. “Aí tudo bem, brincavam, bebiam, ficavam doooooido, inté caíam; no outro dia de novo”, lembra Olanda. A moradora do Maritubinha II ainda afirma que as festas não demandavam muito gasto para seus realizadores: O dono daqui, da casa mesmo, que eram os donos da festa, eles não gastavam não! Porque de um ano pro outro eles criavam muita criação. Por exemplo, se fosse esse mês a festa, eles matavam as criação que tinham que coisar, tiravam o dinheiro do santo, compravam tanto em criação. Porco... Agora, aquilo que ele ganhava, ele tirava que era pra investir; aquilo não era gasto não, aquilo era pra gastar na festa, outras coisas que eles já iam gastar pra festa (OLANDA, 2018).

A nostalgia na memória coletiva dos moradores permanece ao observar as muitas transformações pelas quais as suas festas passaram. A partir da década de 1960, as bandas de música seriam substituídas pelas aparelhagens, vindas muitas vezes de Icoaraci. A influência da capital do Pará sempre acelerou a modificação dos costumes em Igarapé Grande, em que as datas religiosas perderiam sua função para as festas. Na Cabeceira, Socorro lembra de um tio que dava festas ao som de uma vitrola, tocando merengues e lambadas; tocador de violão, Lourival queria ser música. Sua trágica morte, na ilha de São Pedro, revela que a região das ilhas ainda socializava e festejava com frequência na década de 1980. Naquela época chegaria a escola Domiciano de Farias, e as intensas transformações em Igarapé Grande se acelerariam. 3.4.2. O Festival do Açaí: Uma das obras mais lembradas de Raimundo Pantoja na comunidade até hoje foi o primeiro Festival do Açaí, em 1995, festividade realizada até a atualidade. Segundo Thereza, o diretor da escola pensou na festa como um meio 90


de comercializar a grande quantidade de açaí dos espaços de Igarapé Grande, muito maior do que aquela extraída pelos moradores. A programação durou dois dias e contou com o apoio da prefeitura de Ananindeua, da PARATUR, da EMATER e da comunidade de João Pilatos, atraindo políticos, jornalistas e pessoas de todos os distritos e comunidades próximas. Thereza e Raimundo lembram que já não havia mais espaço ao redor do porto do Surdo para tantos carros; a comunidade ficou repleta de gente; a forma como Igarapé Grande negociou com órgãos públicos e assumiu o pioneirismo diante das localidades próximas já era um reflexo dos ganhos em cidadania e estrutura.

Folder do primeiro Festival das Ilhas de Ananindeua, realizado em Igarapé Grande em Outubro de 1995. Fonte: Acervo pessoal de Thereza Farias.

O verso com a programação do primeiro festival, que durou todo um fim de semana. Fonte: Acervo pessoal de Thereza Farias.

91


Sempre realizado em Outubro ou Novembro, meses da safra do açaí, o Festival se enfraqueceria a partir da década de 2000; Thereza atribui a queda do público à realização de outros festivais em outras comunidades da região. Já Cristino, culpa a crescente criminalidade da região metropolitana: O povo que dava antigamente de encher, de não caber ali aquela área ali da escola, quase não cabia gente. Hoje tu faz, não dá 30 pessoas; só tu fazer hoje que não dá lucro nenhum, não dá mais ninguém [...]. Hoje mudou o negócio da violência, a briga; naquele tempo não brigavam, sabe? Aí já afastou a briga; que tem a festa, e com poucas horas tão brigando e puxando arma, espantou (CRISTINO, 2007).

Ele continua: Aí isso que eu te digo que espantou os coroas, que gostavam; até 2007, eles vinham de lá pra brincar pra cá, hoje não dança um. Pode vim uma festa quando tu quiser, não tem ninguém. Espantou a violência, espantou; de 2008 pra cá a violência cresceu com esses jovens. Bebam e começam a brigar, e hoje eu não sei como eles arrumam arma, espantam. Espantou, acabou a nossa festa; aí dá pouco. Aí eu digo que o que mudou foi isso; dos jovens.

Estas novas mudanças, contudo, não diminuíram o gosto dos moradores pela celebração; os aparelhos ganharam força com o advento da energia elétrica. Thereza lembra que, no primeiro Festival, viria o aparelho Pantera de Icoaraci, e no ano seguinte o aparelho Tubarão de Murinin; hoje, seu genro tem a própria aparelhagem em sua casa.

O time de futebol dos moradores de Igarapé Grande no segundo Festival do Açaí. Fonte: Acervo pessoal de Raimundo Pantoja (1996).

O Poraquê, com sua lambada elétrica, mudou a sonoplastia da Cabeceira nos fins de semana. Já o Mikuim, que Hélio tem nos lados da escola, ganhou seu 92


nome pelo incômodo que causa na vizinhança, apesar do pequeno tamanho 15. As músicas são acompanhantes para as bebidas e os jogos de futebol, são tocadas para os visitantes e para os aniversários, criam memórias para o futuro. 3.4.3. Futebol: Presente em quase todas as festas, desde os aniversários até os festivais do açaí, o futebol é uma das principais expressões de lazer em Igarapé Grande. Lá ele ainda tem um caráter intensamente masculino e está presente na formação social dos jovens; a propósito, ele reflete muito da sociabilidade na comunidade. Ouvi de um morador que Igarapé Grande e João Pilatos são como Remo e Paysandu, uma não vive sem a outra. A comparação com os times de futebol não é à toa, a trilha que liga as duas comunidades é constantemente percorrida por moradores para jogos amistosos. Em qualquer uma das duas, o campo de futebol também ocupa um local de destaque no espaço.

A chegada do Círio de Nossa Senhora da Conceição; a queima dos fogos, doados pela comunidade de João Pilatos, é dedicada a memória de seu Dico, falecido naquela semana. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2017).

Segundo dona Marta, o primeiro campo de futebol de Igarapé Grande foi aberto pelos filhos de Domiciano de Farias, nas margens do igarapé Bravo, onde hoje está o barracão da comunidade. O campo, que Raimundo afirma ter sido minúsculo, foi ampliado através de um dos muitos mutirões realizados a partir da inauguração da escola.

15 O

nome é uma referência aos pequenos insetos picadores conhecidos como maruins na Amazônia, que Hélio me afirmou ter confundido com os carrapatos chamados micuins.

93


O campo atual, vizinho do colégio, é ponto de partida para vários caminhos da comunidade, inclusive os que levam a Cabeceira e a João Pilatos. É ali que se concentra o Festival do Açaí e são queimados os fogos da chegada do Círio de Nossa Senhora da Conceição. Além dele, foram abertos novos campos na Cabeceira; um na propriedade de Valdir, e outro em frente a casa que fora de dona Bena. A adoção adiantada do jogo, na primeira metade do século XX, também nega qualquer ideia de isolamento ou caráter tradicional de Igarapé Grande. Porém, o ritmo próprio de viver as transformações no local ainda não consolidaram o esporte como de interesse de todos os gêneros. Já um episódio que ouvi de um menino estranhado por não se interessar por futebol, em uma infância regada a televisão, também demarcam o silêncio insinuado em relação a diversidade sexual, tabu que está longe de ser provocado na ilha. 3.5. EDUCAÇÃO 3.5.1. A educação dos avôs Os narradores mais velhos com quem trabalhei não precisaram no tempo a existência da Escola do Livramento, que funcionou na propriedade da família Navegantes, na ilha de Santa Rosa, por volta da década de 1940. Raimundo dos Anjos, o seu Dico, principal contribuidor de Ravena-Cañete (2017), afirmou ao antropólogo que precisou se mudar para o Maguari para estudar. Entre as décadas de 1920 e 1930, por tanto, a escola mais próxima de Igarapé Grande foi a Quinta das Carmitas, que funcionou nas proximidades do Curtume Maguari. Já Valdir, na década de 1950, se mudaria com a família para a vila do Curuçambá, onde funcionava uma precária Escola Isolada Mista, atendendo a meninos e meninas em uma casa de madeira. No período que se interpôs entre estas duas infâncias, a escola do Livramento, na ilha de santa Rosa, alfabetizou várias crianças das ilhas. Tonico ainda lembra das palmatórias e cartilhas de ABC; já Marta, do barco a vela que levava ela e seus primos para a escola, subsidiada pelo “governo”. Nazareno afirma que a primeira professora dali se chamava Maria, e era de Icoaraci; depois Catarina, da família do local, daria as aulas. A memória dos 94


moradores mais velhos de Igarapé Grande parece associar a escola do Livramento a prosperidade das primeiras gerações. O fim da riqueza dos Navegantes teria sido também o fim da escola e da capela que existia na propriedade da família. A partir de então, alguns viajantes ainda trabalhariam como professores nas casas dos moradores mais ricos das ilhas, como Domiciano, convidados pelos donos. Nazareno os nomeia: “Atacílio, primeiro professor de João Pilatos, da comunidade de João Pilatos. Aí de Igarapé Grande: José Maranhão; era o professor de Igarapé Grande, era um pretão. O Zé Maranhoto, primeiro professor que teve em Igarapé Grande” (NAZARENO, 2018). Cristino, por sua vez, chegaria a entrar para um seminário em Ananindeua. Porém, depois de décadas, a dificuldade de se chegar a uma escola acabou por tornar boa parte da população de Igarapé Grande analfabeta. Em 1986, Raimundo Pantoja encontraria uma comunidade relativamente estagnada e com pouco contato com o país que se transformava. 3.5.2. Escola e comunidade A construção da Escola Municipal de Ensino Infantil e Fundamental Domiciano de Farias animou toda a comunidade de Igarapé Grande. Como eu expus anteriormente, as exigências da comunidade sobre a estrutura fez com que os moradores assumissem parte da função da prefeitura. Em um grande mutirão, os moradores abriram a tapera de tucumãs e caranás que cobria a entrada da localidade do Paraíso; as crianças mergulharam no igarapé para retirar pedras, carregadas por filas, enquanto adultos cortavam varas no mato ou preparavam mingau para os trabalhadores. Cristino afirma que não hesitou em doar o terreno, que um dia fora do próprio Domiciano, sabendo da importância que uma escola teria para seus parentes e

demais jovens.

A

mobilização

inédita

da

população

seria

recompensada com os esforços de Raimundo Pantoja para tornar o colégio um espaço de cidadania; depois de tirar documentos para grande parte dos moradores, o diretor e professor da escola chamaria pais e filhos para assistir as aulas:

95


A maior parte não tinha ido pra escola. Tanto é que quando nós implantamos lá a escola, que a Prefeitura deu todo o apoio, nós implantamos tudo misturado. A sala às vezes tinha aluno de 10 anos e tinha aluno de 50 [acha graça]. Mas era misturado pra ver se alfabetizava, sabe, só depois do segundo ou terceiro ano que eu já pude fazer uma classificação pra ver, sabe como é? Fazer tipo um teste classificatório pra ir dividindo realmente pelo grau de conhecimento, pra ir colocando cada qual no seu devido... Mas no começo teve que ser uma coisa meio... Tanto que muita gente me criticou, “Mas como é que!!”, “Mas gente, pelo amor de Deus, é uma necessidade excepcional, é um caso excepcional”. Tanto é que foi gente lá de Ananindeua “Ah mas como é o trabalho?” “É o jeito né!” Lá estudava a mãe, estudava o marido, estudava o filho, o neto, tudo... (RAIMUNDO, 2018)

Ao encarar aquele momento como excepcional, Raimundo e sua equipe alfabetizaram boa parte da comunidade, partindo daí para a criação da associação de moradores e a realização de eventos e novos mutirões. Enquanto os espaços de Igarapé Grande começavam a ser reconfigurados, a escola permanecia como local da vida religiosa e comunitária. Em um esforço de se inserir no contexto do local, o colégio também se adequaria ao ritmo do trabalho em comunidade: Como os alunos tavam apanhando açaí, aí a gente fazia horário especial, que muitos alunos lá viviam desse negócio de apanhar açaí. Aí quando tinha esse negócio do horário especial, a gente cobria as aulas no dia de sábado. A gente transferia muitas aulas, deixava pra dar no sábado; então teve tempo lá que teve até em dia de domingo. Teve domingo lá que teve aula, porque infelizmente tavam no meio da semana tirando açaí, aí ficavam fora da escola a grande maioria. Aí a gente tentava adequar o horário a realidade local, sabe (RAIMUNDO, 2018).

O mesmo valeria para as colheitas da maniva, em que as crianças ajudavam seus pais no preparo da farinha. A experiência notável de educação contextualizada assustou o prefeito Fernando Correa, ao visitar a escola em um sábado: Porque quando ele chegou lá a gente tava dando aula, mas era repondo o dia que, como eu falei, a gente combinava com os pais; respeitando a peculiaridade lá, a vivência deles. Quando não dava, a gente tinha que transferir pro sábado, pro domingo, prum feriado quem sabe. Porque geralmente a vida no interior não é semelhante, não é como aqui na nossa cidade. A vida no interior não, é bem diferente (RAIMUNDO, 2018).

Raimundo deixaria a direção da escola em 1998 e, embora as experiências de exceção tenham ficado no passado, Igarapé Grande continuaria a inspirar esforços nesse sentido. Com a conquista de um barco para o transporte dos alunos, 96


já nos anos 2000, a escola teria um novo meio de desenvolver atividades, sendo ainda hoje realizadas visitas às ruínas de São Pedro, como fizeram os alunos das primeiras turmas.

A EMEIF Domiciano de Farias, na entrada de Igarapé Grande. Fonte: Acervo pessoal de Inácio Saldanha (2017).

3.5.3. Futuro Mas nem tudo é bonito na História. Thereza lamenta que a experiência de ensino médio na escola não tenha seguido em frente; hoje os adolescentes da ilha que quiserem terminar o ensino básico têm que ir para escolas no Curuçambá, Benfica ou em Murinin: “Inclusive tem um rapazinho que sofre que só, agora; ele vai todo dia de remo pro Curuçambá e volta. Ele sai 9:00 daqui pra chegar 13:00 no Curuçambá, de remo. Aí ele chega 11, 10 horas da noite de volta”. Como no passado, muito em relação a cidadania ainda precisa ser conquistado. A propósito, a escola ainda atraiu um último ator sobre a comunidade: a Academia. As primeiras pesquisas científicas nas ilhas de Ananindeua foram as de Adrielson Almeida, que fez inventários da oferta turística da região a partir de 2005, pesquisando os recursos naturais e a História das comunidades. Seus estudos culminaram em um blog pessoal na internet, e em um curso de capacitação para os moradores de Igarapé Grande, na escola Domiciano de Farias. Enquanto o potencial turístico da região não é explorado, várias pesquisas exploram os modos de trabalho “tradicionais” do local, desde a pesca até a agricultura. Raimunda Lopes Mendes (2016), em Educação Ribeirinha, primeiro livro a falar da comunidade, destrinchou os recursos e a pedagogia de escola, identificando os traços de educação contextualizada ainda presentes. Logo as seguidas pesquisas sobre a escola e suas novas experiências com o PAE João 97


Pilatos trouxeram Thales Ravena-Cañete (2017), o primeiro a estudar os costumes e o cotidiano de Igarapé Grande. Ravena-Cañete reconhece que a comunidade não cabe na dicotomia tradicional-moderno, tendo experiências que partem de perspectivas mais ricas. Experiências que não cessam. Segundo Socorro, a associação dos moradores informou que em 2020 uma ponte ligará a ilha de João Pilatos a Outeiro. Seu medo de que isso aconteça é justo; a cidade que cada vez mais se aproxima, transforma cada vez mais rápido os modos de vida nas ilhas. A instalação de uma ponte teria consequências incalculáveis, mas também não estou aqui defendendo nenhum essencialismo. Igarapé Grande é um complexo que revela saberes dos mais diversos, por isso busquei nas memórias dos ilhéus os processos de mudança ao longo de sua História recente, que brilham por trás da invisibilidade que lhes é renegada. RETORNO: CONSIDERAÇÕES Esta viagem, visando identificar a influência dos processos de transformaçãocontinuidade sobre os modos de vida em Igarapé Grande, acabou por apontar a permanente relação destes processos com a comunidade através de sua História. Em vez de uma comunidade que passa a transformar-se com o modo de vida urbano, Igarapé Grande nasce e segue ao longo dos últimos cem anos se transformando em contato com os núcleos urbanos ao redor, sendo, portanto, um meio híbrido. A observação de campo foi fundamental para perceber diversos elementos do cotidiano da comunidade e provocar nas narrativas dos moradores memórias que, a princípio, são deixadas de lado. Como acentuou Hallbwachs (1990), a memória coletiva é desenhada também no processo de afetividade de um grupo; as narrativas colhidas em Igarapé Grande, principalmente nos trabalhos anteriormente realizados ali, constroem uma visão do passado na origem familiar patriarcal, a semelhança do livro de Gênesis. As provocações trazidas pela observação dos espaços e do cotidiano, em meus registros escritos e fotográficos, portanto, revelaram uma gama de momentos e personagens importantes que eram deixados de lado nessas narrativas. 98


As entrevistas, então, trouxeram à tona um mapa ainda mais rico do que fora imaginado no início da pesquisa. Seja usufruindo da fortuna das primeiras gerações, seja limitando seus modos de fazer na metade do século XX, seja entrando em contato com o Estado e a religião institucionalizada na década de 1980, seja dialogando com o governo federal pela luz e pela preservação ambiental na ilha, seja recebendo as tecnologias digitais e a criminalidade que emana da periferia da metrópole, Igarapé Grande sempre esteve conectada e em transformação. Mas sua relação com a colonialidade, ou, mais diretamente, com os núcleos da região metropolitana de Belém, nunca foi passiva, dando margens a diversas continuidades que ainda enganam desatentos sobre a modernidade da comunidade. Em Igarapé Grande, as paisagens supostamente naturais são caminhos que levam para narrativas sobre a Segunda Guerra Mundial e sobre a abertura política do Brasil, por exemplo. A inversão nas práticas de cura, a insuficiência de antigos métodos de trabalho, o advento dos piratas, entre tantas outras mudanças, levaram os moradores a encontrar novas formas de exercer e refazer seus modos de vida. A recorrência de elementos mais recorrentes na História, como a Belle Époque, a Segunda Guerra Mundial, a Fábrica Palmeira e o Curtume Maguary (este com seu lugar garantido na memória institucionalizada de Ananindeua), também dá mostras do grande potencial pedagógico e literário que as narrativas de comunidades como Igarapé Grande têm, iluminando as conexões entre o local e o global. Mas, então por que essas narrativas não estão nas salas de aula? Por que seus personagens não estão nos livros e nos documentários? O pensamento abissal, de que Boaventura de Sousa Santos nos fala, aponta na colonialidade a renegação de saberes como os de Igarapé Grande para fora destes círculos. A imensidão de saberes no transporte, no artesanato, no imaginário, entre outros campos, ainda não estão nas escolas e nas Histórias da região, seja nas ilhas que a cercam, nas demais comunidades-bairros de Ananindeua, ou no centro de Belém. A cartografia que realizei aqui foi um esforço, de apresentar as continuidadestransformações em diversos âmbitos do modo de vida da comunidade, de aproximar suas narrativas de uma Academia que ainda tenta decifrá-las (mas não apenas para 99


a Academia). Como eu disse no início, não se trata de um olhar definitivo, mas de uma contribuição para as leituras e ações que devem continuar a ser feitas em Igarapé Grande, para continuar a renovar e aprofundar suas narrativas. Narrativas que não são apenas suas, são nossas.

100


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Criação

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RAVENA-CAÑETE,

T.M;

RAVENA-CAÑETE,

V.

Populações

Tradicionais

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103


NARRADORES: Nome

Idade/Gênero

Data da

Profissão

Profissão

Produtor rural

Último morador de sua

entrevista Valdir

76 anos /

Gonçalves

Masculino

17/12/2017

família na comunidade, trabalhou com o carvão

Pinheiro

por décadas.

Manoel

77 anos /

Nazareno de

Masculino

07/03/2018

Souza Farias

Carpinteiro naval, pescador

primeiros moradores e

profissional,

hoje é uma referência na

produtor rural e historiador de Ananindeua

Maria

49 anos /

Therezinha

Feminino

21/04/2018

Conheceu alguns dos

Lavradora

memória de Ananindeua. Contribuiu em quase todas as pesquisas sobre Igarapé Grande até hoje.

Testemunha importante sobre a vida na comunidade desde as

Farias Ramos

transformações da década de 1980.

Cristino Bento

58 anos /

Farias

Masculino

21/04/2018

Vigia de escola

Lança um olhar crítico sobre o trabalho e a juventude em Igarapé Grande.

Raimundo

55 anos /

Nonato

Masculino

24/04/2018

Professor

Primeiro professor e diretor da escola, foi um ator fundamental na

Ferreira

reconfiguração da

Pantoja

comunidade a partir de 1986.

Marta Lima da

80 anos /

Cunha

Feminino

29/04/2018

Roceira

Ex-parteira de Igarapé Grande, e talvez a mulher que vive há mais tempo ali.

Maria do

53 anos /

Socorro dos

Feminino

Anjos de Farias

30/04/2018

“Empregada

Artesã e lavradora que

doméstica né...

viveu as

Lavradora”

transformações da comunidade desde a década de 1986.

104


Antônio

77 anos /

Delgado da

Masculino

30/04/2018

Cunha

“Aposentado,

O morador mais antigo

só ganho

do Maritubinha II,

benefício”

exerce práticas de cura que aprendeu com a mãe.

Olanda

67 anos /

Severino da

Feminino

Silva

30/04/2018

Doméstica

Ex-parteira e benzedeira, detalha as festas dos santos.

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APÊNDICES

106


Apêndice 1- Roteiro de Entrevista:

IDENTIFICAÇÃO 1. Nome Completo: 2. Idade: 3. Nasceu na comunidade ou na ilha? / Caso não, há quanto mora lá? 4. Estado Civil: 5. Profissão: 6. Escolaridade: ROTEIRO DE ENTREVISTA 1. ORIGEM DA COMUNIDADE E RELAÇÃO DO ENTREVISTADO COM ELA: 1.1. Como você ou sua família chegou em Igarapé Grande? 1.2. Como surgiu a comunidade de Igarapé Grande? Como ela era há 30-40 anos? 1.3. Como se organizou o espaço da comunidade? A capela, a escola, as casas. 2. TRABALHO NA COMUNIDADE DE IGARAPÉ GRANDE: 2.1. Quais as atividades de trabalho que vocês desenvolve ou desenvolveu na comunidade? 2.2. Tem hortas? Plantam? Ou utilizam produtos comprados da cidade? 2.3. Criam? Se sim, o que? Quais criações são para consumo próprio ou para venda? 2.4. Pescam? Se sim, o que? Consumo próprio ou venda? 2.5. E frutas. Açaí? Farinha? 3. SOCIABILIDADE: 3.1. Quais o papel e a importância do rio para a sua vida? Como ele está hoje em relação ao passado? 3.2. Vocês moradores ainda recorrem ao auxílio da parteira, benzedeira ou das plantas medicinais? Quais dessas plantas há em sua propriedade? 3.3. Como é a relação de Igarapé Grande com João Pilatos? Qual o papel do Círio nessa relação? 3.4. Como a comunidade se diverte ou se divertia [caso não more mais lá]? (Homens, mulheres, jovens, crianças) Quais as principais festas da comunidade? 3.5. Vocês têm artistas na comunidade? Como é produzido o artesanato? 3.6. Tem pessoas ricas e pessoas pobres e ou remediadas na comunidade? 107


3.7. Quais seus sonhos? O que você espera para o futuro da comunidade? 4. ESPIRITUALIDADE: 4.1. Como é ou era vivenciada a religiosidade na comunidade? 4.2. Você tem algum “causo” que vivenciou espaço da comunidade, do igarapé e seus arredores? Estas experiências tornaram-se menos comuns de uns tempos pra cá? 4.3. O que representa Ananindeua ou Belém para você? 5. BELÉM E ANANINDEUA: 5.1. Qual a sua relação com as cidades e os distritos próximos da ilha? 5.2. O fato de a comunidade estar próxima de cidades grandes (Belém e Ananindeua) é bom ou ruim para ela? 5.3. Qual a importância da escola municipal Domiciano de Farias para a comunidade?

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Apêndice 2 TERMO DE CONSENTIMENTO

Valdir Gonçalves Coelho, Manoel Nazareno de Souza Farias, Maria Tereza Farias Ramos, Cristino Bento Farias, Marta Lima da Cunha, Raimundo Nonato Ferreira Pantoja, Maria do Socorro dos Anjos Farias, Antônio Delgado Cunha e Olanda Severino da Silva, depois de conhecer e entender os objetivos, procedimentos metodológicos, riscos e benefícios da pesquisa, bem como de estar cientes da necessidade do uso de seus depoimentos, autorizaram os pesquisadores Inácio dos Santos Saldanha e Prof. Msc. Venize Nazaré Ramos Rodrigues (orientadora), no projeto de pesquisa Viver em Igarapé Grande: Cotidiano e História em narrativas ribeirinhas, a colher seus depoimentos sem quaisquer ônus financeiros a nenhuma das partes. Ao mesmo tempo, liberaram a divulgação destes depoimentos para uso científico, e favor dos realizadores da pesquisa, acima especificados.

Inácio dos Santos Saldanha Pesquisador responsável pelo projeto.

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