Inês Lima | Estrategias Urbanas em Lisboa, Luanda e Macau

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Estratégias Urbanas em Lisboa, Luanda e Macau através de modernos “Caixotes e Prateleiras Habitáveis” para muita gente

Estratégias Urbanas em Lisboa, Luanda e Macau através de modernos “Caixotes e Prateleiras Habitáveis” para muita gente Inês Lima Rodrigues Inês Lima Rodrigues - ESTAB-UPC, rodrigues.ineslima@gmail.com, Rua Fernão de Magalhães, n.27 3.esq., 1170-124 Lisboa, Portugal

Resumo Esta apresentação pretende abordar os antecedentes e os legados da habitação coletiva moderna, através de experiências realizadas em Lisboa, Luanda e Macau. O fio condutor é justamente a cultura arquitetónica portuguesa e a utopia do Movimento Moderno transformada em realidade através do habitar coletivo à escala da cidade. Com o epicentro na Europa, os princípios modernos foram implantados tardiamente em Portugal, e projetaram-se em Angola e Macau quando já não era esperado pela crítica internacional. A partir de 1950 assistiu-se ao protagonismo do bloco de apartamentos como interveniente no processo de construção da cidade, integrado em amplos espaços verdes e numa estrutura viária eficaz. Influenciada por Le Corbusier e pela arquitetura moderna brasileira, a primeira geração moderna portuguesa movia-se entre os ideais dos CIAM. Reconhecemos a supremacia da forma linear que prevalecerá na ordem do traçado urbano e no triunfo de muitos conjuntos habitacionais. Em Lisboa, são exemplo: os vários casos da avenida EUA e o conjunto Montepio na avenida Brasil em Alvalade, as propostas de Martins e Melo, a Unité de Abel Manta nos Olivais ou o conjunto da avenida Infante Santo. Na década de 60, os fundamentos modernos e a influência brasileira foram perdendo o seu protagonismo em Portugal continental e em simultâneo, foram projetados com pujança nos contextos tropicais. Luanda foi transformada num laboratório urbano de experimentação da modernidade ocidental, que se refletiu quer em visões globais de transformação urbana e territorial, quer em séries de obras isoladas e dispersas pela cidade. Evidenciamos as Unidades de Vizinhança de Simões de Carvalho à luz da Carta de Atenas e da regra das 7V de Le Corbusier ou os edifícios isolados de Vieira da Costa, Pereira da Costa, entre outros.

Traçamos o percurso do edifício em Torre, desde as experiências de Pereira e Portas no bairro Olivais às torres macaenses do Leal Senado de Ramalho e do projeto-tipo de

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Vicente como um modelo a ser aplicado em diferentes pontos de Macau e ainda em Luanda. São respostas que não se esgotam e que apareceram em décadas e lugares distintos para fazer cidade dentro e fora do tecido urbano consolidado, como forma de extensão, ou para facilitar operações de descentralização. Destacamos a modernidade dos programas residenciais a nível arquitetónico, urbano e social, mas também a investigação formal e tecnológica que a fundamentou. Valorizam-se espaços ajardinados coletivos, desenvolvem-se sistemas entre universalidade e a adaptação, a funcionalidade e a economia, a veracidade dos materiais e a sinceridade da estrutura. Estes projetos, suscetíveis de ser entendidos como modelos gerais, têm implícitos na sua proposta urbano-arquitectónica elementos de análise e de racionalidade num contexto particular. A clareza das fórmulas compositivas, sistemas de ordem e uso que se traduzem numa determinada estrutura viária, na organização dos bairros residenciais e na forma de incluir os espaços verdes. São obras que justificam a transversalidade do Movimento Moderno entre Lisboa, Luanda e Macau, e que sem dúvida, tiveram uma importância que a crítica contemporânea ainda não valorizou na sua justa medida.

Palavras-chave: Habitação Coletiva; Movimento Moderno; Lisboa; Luanda; Macau;

1. Quando a Habitação Coletiva Moderna fez cidade Esta apresentação parte duma investigação mais extens85 e procura identificar os fundamentos modernos da habitação coletiva lusa e a sua capacidade para «fazer cidade» em Lisboa, Luanda e Macau. O elo de ligação é justamente a cultura arquitetónica portuguesa e a utopia do Movimento Moderno transformada em realidade através do habitar coletivo à escala de três cidades lusas: Lisboa, Luanda e Macau. A arquitetura moderna tinha como pretensão criar um mundo no qual os homens vivessem melhor. Levava implícito a intenção de proporcionar ao homem uma «habitação digna». “O problema da casa” –escrevia Le Corbusier em 1923– “é o problema de uma época. O equilíbrio das sociedades depende atualmente dele. O primeiro dever da arquitetura, numa

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RODRIGUES, Inês, (2014), “Cuando la vivenda coletiva era moderna. Desde Portugal a otros países de expresión portuguesa. 1948-1964”, Tese de Doutoramento do Departamento de Projetos, ESTAB, Barcelona.

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época de renovação, consiste em rever os valores e os elementos constitutivos da casa”.86 O mundo aberto e global já está aqui e veio para ficar. “Os novos tempos são um facto: existem, indiferentes ao nosso «sim» ou «não»”, dizia Mies van der Rohe em 1930.87 O binómio casa– cidade ganha um novo sentido com a inter-relação que a cidade começa na casa do homem. Le Corbusier afirma em Précisions: “Uma cozinha? Dás-te conta que é um problema de urbanismo, circulação e lugares de trabalho”.88 Com base nestas premissas a habitação moderna, e o caso português não foi uma excepção, abandona o carácter unifamiliar e passa a ser entendida como parte do planeamento da cidade, onde os bairros residenciais são os grandes responsáveis da expansão do tecido urbano. “O problema da habitação é antes demais um problema de urbanismo” – foi uma das conclusões do 1º Congresso de Lisboa em 1948. Ali reuniram-se e apresentaram-se pela primeira vez teses baseadas em princípios modernos e concluiu-se por unanimidade, que “a arquitetura deve exprimir uma linguagem internacional que, pela mão do urbanismo moderno, deve encontrar uma solução para o «gravíssimo» problema da habitação”.89 Reivindicou-se outra escala, não a do edifício isolado, mas da cidade.

Dava-se inicio à idade de ouro das obras públicas na Metrópole e das

estratégias políticas para definir o espaço continental e também o colonial. Ainda que sob contextos muito diversos, conseguimos encontrar alguns paralelismos (por aproximação ou por distância) entre as três cidades aqui em questão. Pela primeira vez, as cidades lusas alcançavam uma escala moderna através da habitação em massa para muita gente. “As funções chave, habitar, trabalhar e recrear-se, desenvolvem-se no interior dos volumes edificados, submetidos a três necessidades imperiosas: espaço suficiente, sol, ar. Estes volumes não dependem somente do solo e das duas dimensões, mas, sobretudo, duma terceira, a altura”.90 Desde o seu papel frente à tipologia, as obras de habitação coletiva questionaram as relações territoriais e da estrutura urbana. No entanto, será que a implantação urbana dos edifícios de habitação lusa em lugares estratégicos de expansão da cidade originou, por si só, novos modelos tipológicos? Apesar da claridade dos dados arquitectónicos, cabe destacar que não se tratam de soluções particulares, mas duma ideia geral. Isto é, ainda que cada bloque constitua uma solução

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LE CORBUSIER, [1923] 2002, Por uma arquitetura, Editora Perspectiva, São Paulo. VAN DER ROHE, MIES, (1981), ”Los nuevos tiempos”, in Escritos, diálogos y discursos, Colegio oficial de Aparejadores de Madrid, p. 41, Madrid. 88 LE CORBUSIER, (1978), Precisiones, Edições Poseidón, p. 247, Barcelona. 89 TOSTÕES, ANA (coord.), (2008) [edição fac-similada], “1º Congresso Nacional de Arquitetura, Relatório da Comissão Executiva, Teses, Conclusões e Votos, maio-junho de 1948”, in 1º Congresso Nacional de Arquitectura, Edições Ordem Arquitectos, Conselho Diretivo Nacional, Lisboa. 90 AYMONINO, CARLOS, (1973), Orígenes y Desarrollo de la Ciudad Moderna, Editorial Gustavo Gili, S.A., p. 193, Barcelona. 87

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singular, não é na singularidade onde está a sua grande lição, mas na difusão da sua aplicação. Estes projetos, suscetíveis de ser entendidos como modelos genéricos, têm implícitos na sua proposta urbano-arquitectónica elementos de análise e de racionalidade num contexto particular, nos quais interessa realçar as referências positivas e os modelos com qualidade urbanística. O universo é o da arquitetura expandida à cidade e não reduzida ao objeto, pois parte-se da premissa de que a habitação coletiva é uma manifestação própria da modernidade.

1.1 O factor tempo na definição da modernidade da habitação coletiva lusa A forma e a estrutura urbana resultaram naturalmente, do discurso dos factos urbanos ao longo do tempo. No quadro internacional da arquitetura moderna, Portugal Ibérico viveu em 1948, uma condição particular, também resultado da sua estrutura política e que se transmitiu a todos os níveis da sociedade. Constituindo, com a vizinha Espanha, uma das últimas ditaduras europeias que resistem ao final da guerra, manteve intacto o seu império colonial alargado aos continentes africano e asiático. Em Portugal Continental, a cultura arquitetónica ressente-se das estratégias que favorecem o foco nacionalista com vista à coesão imperial. Face a esta particularidade, um moderno apadrinhado pelo Internacional Style arranca já tarde no final da década de quarenta, lucrando, por ironia, do terminar da guerra. Efetivamente, no pós-guerra a linguagem e as ideias modernas já se tinham convertido num «estilo internacional» que já não se identificava exclusivamente às sociedades com processos de modernização mais avançados. A qualidade da arquitetura moderna mostrava que não dependia em absoluto nem das áreas de superfície construídas, nem dos conteúdos sociais dos programas, nem das técnicas utilizadas para resolvê-los. Dependia, sobretudo do desenvolvimento e maturidade dum conjunto de valores e códigos partilhados; a inteligência e o talento de utilizá-los na hora de os submeter às avaliações, na contingência de cada realidade. Para entender o ímpeto da habitação moderna lusa nos anos 50-60 temos que comtemplar as experiências alemães e holandesas, mas também as cidades inglesas, os novos bairros suecos e a reconstrução de algumas cidades soviéticas. Foi também decisiva a celebração dos primeiros quatro Congressos CIAM,91 nos quais se debateu em profundidade a habitação coletiva, sob diversas escalas arquitectónicas. A Carta de Atenas, o documento teórico que representava estes critérios e colocava a função da habitação num primeiro plano. Os seus 91

I Congresso CIAM: “Fundação dos CIAM”, Sarraz, 1929; II Congresso CIAM: “Unidade mínima da habitação”, Frankfurt, 1929; III CIAM: “Divisão racional do solo”, Bruxelas, 1930; IV CIAM: “A Ciudade Funcional”, Atenas, 1933.

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enunciados adquiriram e o carácter de princípios necessários, mas não suficientes para orientar as experiências do pós-guerra. Muitos foram os arquitectos que exploraram os princípios do documento, superando nalguns casos excepcionais inclusive a Le Corbusier. Podemos mencionar, como referências da historiografia internacional, a esplêndida série de projetos de Bakema e van den Broek em Rotterdam; alguns centros residenciais norteamericanos como Lafayette Park em Detroit, de Mies van der Rohe e Hilberseimer. Existem também algumas iniciativas sul-americanas influenciadas por Le Corbusier, como o bloco Presidente Alemão de Pani em México ou Pedregulho de Reidy no Rio de Janeiro, entre muitos outros. Arquitectos, aos quais temos que acrescentar alguns nomes como: Simões Carvalho, Castro Rodrigues, Viana de Lima, Vieira da Costa, Chorão Ramalho. Nomes que deixaram uma obra de qualidade arquitectónica singular e que, por motivos desconhecidos, foram ignorados nas histórias canónicas da arquitetura moderna. O legado moderno luso leva impresso as influências periféricas e tardias das vanguardas europeias, a forte aproximação a Le Corbusier, mas também sem dúvida a ação da potência moderna brasileira. Efetivamente, podemos confirmar que a história da habitação moderna lusa desenrola-se com identificação dos pontos visíveis da transmissão inequívoca da cultura moderna brasileira em território continental e nos demais territórios lusos. No entanto, com intensidades e tempos diferentes. Ao longo dos anos 50 assistiu-se ao período de maior fascinação e aproximação da cultura brasileira, que entrava em Portugal com uma enorme aceitação e naturalidade (ainda que totalmente contrária à arquitetura proclamada pelo Estado Novo) e que contudo ainda não tinha chegada às colónias. Poderíamos citar inúmeros exemplos, dos quais realçamos em Lisboa a linguagem plástica das fachadas do bairro Estacas, dos conjuntos da avenida EUA ou do conjunto da equipa de Gandra na avenida Infante Santo. Esta influencia é também visível na definição dos espaços coletivos do conjunto de Segurado com a inserção de pérgulas, palas ondulantes e brise soleis com sotaque nitidamente tropical. Na década seguinte, quando as correntes críticas do estilo internacional põem em causa precisamente a universalidade que caracteriza a modernidade, em Portugal reconhece-se uma atitude próxima aos temas do último Congresso CIAM,92 em torno do binómio identidade-modernidade. Definia-se um tempo da recusa universal às regras unificadoras do Movimento Moderno, onde naturalmente os fundamentos modernos e a influência brasileira foram perdendo a sua celebridade em Portugal continental e ao mesmo tempo atingiam uma enorme projeção nos territórios tropicais de expressão portuguesa. Era uma arquitetura que se adaptava duma 92

CIAM X, foi organizado pelo Team X, realizado em Dubrovnik, em 1956, sob o tema Habitat.

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forma natural ao clima e à sociedade. Em Luanda, é visível no trabalho de Simões de Carvalho, Vieira da Costa, Pereira da Costa entre tantos outros, muitos deles anónimos. Desenvolve-se uma cultura arquitectónica autónoma da Metrópole que em nada influenciava o acerto da arquitetura moderna em Portugal. nos anos 60 a Portugal, já não interessava o moderno betón-brut explorado pelos arquitectos lusos que trabalhavam em países tropicais; 93 e a estes, tão pouco lhes interessava o que se estava a fazer no Continente. Há que realçar que com o desencadear da Guerra Colonial em 1961 e contrariamente ao que se poderia pensar, as cidades africanas foram dotadas de grandes equipamentos públicos: aeroportos, mercados, piscinas, teatros, cinemas de grande visibilidade e modernidade, e simultaneamente desenvolveram-se as principais vias de comunicação. O Estado português, entre os desafios europeus e a Guerra Colonial, estava mais preocupado com a repressão política do que com a censura estilística. As ações de luta pela libertação das populações africanas crescem e agitam o poder local. De facto, em 1974-1975, com o súbito mas inevitável período de descolonização, todo este processo urbano-arquitectónico sofre um corte brusco e brutal, devido em grande parte, e na maioria dos casos, ao posterior estado de guerra, sobretudo em Angola e Moçambique,94 do qual ainda hoje em dia as cidades se ressentem.

1.2 A habitação moderna lusa entre a supremacia da forma linear e a originalidade dos edifícios em torre

O argumento moderno tinha que encontrar soluciones rápidas e pragmáticas para o problema do alojamento dos homens nas cidades e não só em relação à esfera familiar da habitação, como também em relação à dimensão social, coletiva e urbana inerente ao sistema do habitar urbano. As cidades necessitavam do estímulo duma forma de edificação planeada em si mesma e adequada ao seu organismo vital, que reunisse as melhores condições em relação ao vento, sol e vegetação, com o menor número possível de vias de comunicação e de gastos de gestão. O bloco de habitações de grande altura podia satisfazer estas exigências e por ele a arquitetura esforçou-se por favorecer o seu desenvolvimento. As construções altas e medias deviam ampliar-se conjuntamente, de acordo com as exigências reais. Esta realização constituiria um progresso. No arranque da década de cinquenta, assiste-se em Portugal ao 93

Este facto é justificado pela ausência de publicações sobre a produção lusa tropical nas duas principais revistas de arquitetura portuguesa da época: a Arquitectura e a Binário. 94 A Guerra Civil angolana teve início em 1975 e, continuou com alguns intervalos, até 2002. Em Moçambique, o conflito armado iniciou-se em 1977 e só terminou em 1992 com o Acordo Geral de Paz e as primeiras eleições multipartidárias foram realizadas em 1994.

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protagonismo do bloco de apartamentos como interveniente no processo de construção da cidade, integrado em amplos espaços verdes e numa estrutura viária eficaz. Surgem diversos projetos residenciais que significaram a primeira grande oportunidade de materializar os novos métodos de estandardização e produção em série. Ao largo do processo urbano e arquitectónico, assistiu-se à supremacia da forma linear. Dita forma, possui uma longa tradição histórica associada à ideia do percurso e deslocamento humano: distâncias mais curtas fazem-se más rápido. Esta ideia ganhou um significado especial no mundo moderno, caracterizado pela mobilidade e a inter-relação, onde a tendência da forma lineal prevalece na ordem geométrica do traçado urbano. O esquema lineal resulta o mais coerente com o princípio de repetição dum elemento, com a procura duma seriação regida uma lei constante e com a capacidade de crescimento indefinido. A partir de 1955, foram implantados perpendicularmente ao longo da avenida EUA, em ambos sentidos (norte-sul), vários conjuntos residenciais que procuravam definir um maior número de habitações para a classe média com a melhor orientação solar possível. O conjunto residencial de Manuel Laginha com a colaboração de Vasconcelos Esteves e Pedro Cid é um desses exemplos. Ao lado deste conjunto, Joaquim Areal seguiu a lógica urbana para implantar outro núcleo residencial. Ambos conjuntos denunciam os princípios racionalistas para a construção da residência moderna, baseado num sistema de pilotis nos bloques más altos (5 a 8 plantas) implantados perpendicularmente à avenida EUA, suficientemente espaçados entre eles e de fácil acesso (protegido dos perigos do trânsito rodado). Prolongaram-se os espaços coletivos entre blocos com cerca 60 m, que se sucedem e acompanham a inclinação da avenida, proporcionando perspectivas muito distintas. Os edifícios mais baixos (4 pisos) foram implantados paralelamente recuados à avenida principal, limitando assim o espaço ajardinado e consolidando os limites do conjunto. Mais tarde, Castro Freire deu continuidade urbana a estes dois conjuntos com a implantação de outro projeto residencial de acordo com as diretrizes existentes.

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FIG. 1 Conjuntos residenciais da avenida EUA: A. Areal (1955); B. Laginha, Esteves, Cid (1955); Freire (1967), Lisboa

Na parte oeste da avenida EUA, encontramos o conjunto de Croft de Moura, Enrique Albino e Craveiro Lopes com uma implantação oblíqua em relação à avenida, que recorda o conjunto residencial de Wannsee, realizado por Gropius em 1931. A unidade do conjunto fica garantida pela continuidade das plantas térreas elevadas sobre pilotis, proporcionam fundamentais espaços verdes. Deste modo, ainda que projectados por equipas de arquitectos diferentes, conseguiu-se pela primeira vez alcançar a escala urbana que a cidade necessitava, através duma volumetria alta totalmente equilibrada com os espaços abertos. Em Portugal a meados dos anos 50, debatia-se o eterno debate entre moderno e tradicional com o inicio do Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa, que tentava definir as especificidades da arquitetura popular do país. Em efeito, depois da reafirmação universal da cultura moderna do pós-guerra, em Portugal seguiu-se um período de dúvidas e divergências que conduzia à procura de novos caminhos. No entanto, continuavam a desenvolver-se projetos dominados pela linguagem internacional generalizada sem nenhum tipo de 107


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compromisso com a tradição lançada no Inquérito (1955), como por exemplo aconteceu com o conjunto paradigmático da avenida Infante Santo (1955), onde Hernâni Gandra, Alberto Pessoa e Abel Manta uniram duma maneira sublime a cidade tradicional com una imagem solidamente moderna. Numa plataforma suspensa introduziram cincos blocos de oito pisos perpendicularmente à avenida principal. Abriu-se assim, a una cota superior da cidade, um enorme parque verde que se estende entre os edifícios, concretizando a ligação da cidadania com o ar e a natureza. Com as fachadas giradas a nordeste e sudoeste, os diversos blocos foram elevados sobre pilotis, o que acentua ainda mais a sensação de suspensão do conjunto. Uma representação do olhar o céu de Le Corbusier? Os princípios da Carta de Atenas e das influências modernas brasileiras estiveram una vez más representadas em Alvalade através de Jorge Segurado.95 Em 1958, implantaram-se oito barras paralelas entre si e perpendiculares à avenida Brasil, elevadas em relação à rua, unidos por palas e pérgulas entre os espaços coletivos. Resultou, efetivamente, numa proposta que procurou a melhor orientação para as diferentes habitações em altura e que, de forma simultânea, revelou uma atitude verdadeiramente moderna ao utilizar um material de revestimento tradicional –o azulejo– para cobrir por completo os edifícios dum amarelo vibrante. Um regionalismo crítico ou uma forte visão moderna dum material tradicional? Em paralelo, a cidade de Lisboa assiste ao planeamento do paradigmático bairro Olivais, onde o sector norte (1955) foi definido de acordo com a linha moderna mais radical. A fim de consolidar a imagem da Lisboa Moderna, Pires Martins e Palma de Melo construíram quatro grandes bloques residenciais na zona mais alta do sector, completando o sentido urbano do bairro e imprimiu, em 1957, a escala vertical que todavia lhe faltava. Entre os pilares dos quatro edifícios estende-se uma enorme plataforma verde que se molda à topografia do lugar duma maneira natural. O conjunto visava criar 128 habitações para cerca de 1.024 habitantes, com uma solução arquitectónica baseada na modulação celular, como una película formada pela estrutura.

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FERREIRA, FÁTIMA; ALMEIDA, PEDRO VIEIRA, (1989), “Jorge Segurado: Arquitecto do Modernismo em Portugal” in Jornal Arquitectos, n. 76, , pp.15-18, Abril, Lisboa.

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FIG. 2 Plano Diretor Olivais Norte; Conjunto Residencial de Melo e Martins (1955), Lisboa

Além das obras realizadas, devemos realçar a proposta não construído de Celestino Castro, Hernâni Gandra, João Simões, Francisco Rodrigues e José Lobo, apresentada entre 1950 e 1951, pois “trava-se, no seu pragmatismo e ortodoxia, da primeira solução funcional e formalmente internacional da habitação social em altura”.96 A intenção era mudar o registo que até então limitava o habitar urbano, tanto a nível urbano- arquitectónico como a nível conceptual e formal. O programa residencial distribuía-se por oito edifícios, compostos por cerca de 467 habitações económicas para aproximadamente 1.420 pessoas. Estas complementavam-se com os serviços inerentes ao sistema do habitar urbano moderno: infantário, escolas pré-escolares, dois pequenos núcleos de comércio de primeira necessidade, biblioteca, garagem, café-restaurante e, principalmente, amplos espaços verdes. Dos oito bloques propostos, cinco estavam implantados com uma direcção oblíqua em relação à avenida EUA (tipos A e B), o que lhes imprimia uma situação ideal para receber os ventos predominantes e orientar as principais peças da casa ao sol do sul. Os outros três blocos que completavam o conjunto (tipos A1 e B1) com uma implantação perpendicular à avenida principal, cujas fachadas ficavam giradas a E-O, de maneira que cumprissem a economia e a eficiência pretendida num projeto residencial. A projeção duma planta térrea urbana, totalmente aberta entre os pilotis dos diversos blocos permitia estruturar um jardim contínuo 96

TOSTÕES, ANA, (1997), Os Verdes Anos na Arquitetura Portuguesa dos Anos 50, Edições FAUP, p. 73, Porto.

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dum lado ao outro do conjunto. Até então, e inclusive depois, nenhuma proposta no âmbito nacional tinha levado tão longe e com tanta radicalidade os princípios do sistema da habitação coletiva moderna.

FIG. 3 Concurso para a avenida EUA de Castro, Gandra, Simões, Rodrigues, Lobo, (1950-1951), Lisboa: Modelos tridimensionais A-B

Luanda é sem dúvida um caso paradigmático do urbanismo e da arquitetura moderna lusa. A capital angolana foi transformada num laboratório urbano de experimentação da modernidade ocidental, que se refletiu quer em visões globais de transformação urbana e territorial, quer em séries de obras isoladas e dispersas pela cidade. Tomando por exemplo as Unidades de Vizinhança de Simões de Carvalho à luz da Carta de Atenas e da regra das 7V de Le Corbusier, temos consciência dimensão da herança moderna em território africano. São exemplos que aplicam fielmente nos modelos corbusianos com uma dimensão –urbana, arquitectónica e social- que dificilmente se podem encontrar na Europa. As propostas urbanas de Simões de Carvalho para as Unidades de Vizinhança visavam implantar na cidade outra visão sobre o habitar urbano. Talvez o caso mais representativo –e um dos casos de estudo deste Congresso- seja a Unidade de Vizinhança nº1, o bairro Prenda. Baseado na hierarquia do sistema da regra dos 7V

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de Le Corbusier, Carvalho organizou a

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circulação de toda a Unidade. Com a intensão de incrementar o espaço aberto, Simões de 97

Doutrina dos transportes e ocupação dos territórios. “A regra dos sete V”, estabelecida em 1948 a petição da UNESCO. A propósito ver: LE CORBUSIER, Los tres establecimientos humanos. 98 Directamente relacionados com os dois eixos principais da cidade (V2), as ruas V3 delimitam o perímetro da unidade. As V3 eram vias rápidas reservadas exclusivamente à circulação mecânica, praticamente sem passeios e não davam directamente a nenhuma porta de casa ou edifício. As V3 tinham, como consequência, uma criação

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Carvalho com a colaboração de Pinto da Cunha e Alfredo Pereira, organizaram ao longo da rua comercial (V4) os blocos de habitação mais altos (12 pisos), enquanto que nos extremos norte e sul da rua pedonal por excelência, implantaram-se os edifícios mais baixos (5 pisos). Todos os edifícios estão apoiados sobre pilotis, libertando a planta térrea para a criação de generosos espaços coletivos ajardinados de acordo com a vivência da cada população. No interior do sector, existiam percursos internos (viários e pedonais) adjacentes ao edifícios que ordenavam e hierarquizavam as áreas de uso coletivo, as zonas de acesso às habitações e ao entorno imediato. Infelizmente, nenhum equipamento público foi construído, o que fez que se perdesse o sentido urbano e social projectado para o bairro. A disposição dos «7V» permitiu a Simões realizar aglomerados residenciais do tipo «cidade verde», cumprindo assim um dos seus objetivos principais.

FIG. 4 Unidade de Vizinhança nº1, Prenda de Carvalho (1965), Luanda: Planta de implantação; Modelos tridimensionais dos conjuntos residenciais tipo B e A

moderna do urbanismo: e o sector. No centro encontravam-se os equipamentos, com acesso directo à rua comercial (V4), onde se podia circular com facilidade pelos passeios largos. As V4 vinculavam-se com as V5 que serpenteavam o sector até às habitações, articulando a continuidade da rua comercial. Estas penetravam no sector e conduziam os veículos e os peões às portas das suas casas, com o auxilio além disso das V6 que terminavam nas pequenas praças de convivência. As V7 contornavam a franja verde, onde se encontravam as escolas e parques desportistas. Mais tarde, apareceram as V8 para as bicicletas.

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São exemplos que testemunham a supremacia da forma linear que prevalecerá na ordem do traçado urbano e no sucesso de diferentes conjuntos habitacionais lusos. Converteu-se num dos fundamentos da arquitetura residencial do Movimento Moderno, permitiu associar as distintas partes do conjunto urbano num desenho unitário e alternar situações de alta e media altura, junto aos espaços livres vinculados aos equipamentos. Foi uma resposta à vida difícil nas cidades, uma tentativa de encontrar soluções para evitar a exploração caótica das mesmas. No entanto, não podemos deixar de realçar a singularidade dos chamados edifícios torres, definidos como blocos isolados de grande altura e perímetro livre. Resultado do desenho, é a possibilidade de agrupar os núcleos de acesso, optimizar as redes de serviços e economizar os sistemas estruturais. Em qualquer caso, nunca perderam o carácter de edifício de excepção, com o aproveitamento máximo da superfície útil e da entrada de luz natural nas quatro fachadas que o compõem. Macau mostra-nos alguns dos casos mais notáveis. Um deles, é a paradigmática torre Leal Senado (1962-66) de Chorão Ramalho na avenida Sidónio Pais, una artéria fundamental no sentido nordeste-sudoeste da cidade. A implantação foi definida em função da montanha que a enquadra, assumindo uma enorme relação com o medio circundante, ao qual Chorão nunca foi indiferente. O bloco, está recuado 35 m em relação ao passeio da rua, definindo uma bolsa de ar na fachada urbana compacta da avenida. O núcleo central dos acessos verticais está recuado em relação às fachadas, o que enfatiza a autonomia dos dois corpos que definem o bloco. De maneira natural na obra de Chorão Ramalho, surge uma arquitetura moldada em betón brut e conjugada com padrões de azulejos tipicamente portugueses.

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FIG. 5 Torre Leal Senado de Ramalho (1962-1966), Macau: Planta de implantação; Alçado Norte

O legado moderno de Manuel Vicente –curiosamente o menos divulgado de toda a sua obra– resulta de extrema relevância na história da arquitetura moderna macaense. Vicente realizou diversas obras residenciais, entre as quais se encontra a torre para os Funcionários CTT. Em 1962, realizou o projeto torre-tipo para habitação coletiva cujo objetivo seria a sua repetição diversos pontos da cidade. No entanto, apenas uma foi construída. Ao observar as fotografias de época, constatamos que os edifícios excessivamente altos ainda não tinham chegado à cidade. A torre assumia o carácter de bloco isolado com uma modesta altura de onze pisos com importantes áreas destinadas ao espaço coletivo. O programa inseria-se numa planta quadrada com 22,30 m de lado e incluía 44 habitações. Com una volumetria simples, prismática, recortada pelas ventilações verticais e acentuada pelas persianas metálicas que marcam o ritmo de fachada ao longo de quase 40 m, altura total do bloco. A torre moderna não resistiu à especulação imobiliária e foi demolida. No entanto, a inserção do modelo tridimensional prova a vigência moderna totalmente compatível com a azafama de Macau.

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FIG. 6 Torre Funcionários CTT de Vicente (1962), Macau: Fotografia de época; Modelo tridimensional, Alçado Norte

Com pelo menos seis projetos para a torre-tipo do Plano de Urbanização do Porto Exterior, que deram pé ao desenvolvimento de outros projetos. Um dos exemplos data de 1970 com a proposta em torre para os CTT de Angola, obra que nunca chegou a construir-se. Em 1976, Vicente recebeu um novo encargo para um conjunto de torres destinadas aos funcionários do governo. Vicente retomou a investigação tipológica iniciada nos anos e propôs um conjunto de três torres na zona da Barra. O arquitecto considerou este projeto como uma “releitura” da torre original, que reduzia “os acidentes do desenho que agora já não se referem em exclusiva à racionalidade do objeto isolado, mas sobretudo ao conjunto e às relações possíveis que se podem nele estabelecer (…)”.99 As diversas obras citadas, se bem limitadas e fragmentadas, contribuíram à difusão moderna e à utilização generalizada das inovações tecnológicas para solucionar a problemática da habitação em massa. Hoje não há dúvidas que de facto a vivenda coletiva moderna participou na expansão e construção das cidades lusas.

1.3 As variantes da Unité Também a geração dos arquitectos modernos portugueses foi profundamente marcada pela célebre, icónica e paradigmática Unité de Marseille de Le Corbusier. Se existe uma obra do maestro suíço que pudesse referir toda a sua produção, tanto no terreno urbano como no 99

VICENTE, MANUEL, “Memoria descritiva, 29 março de 1977”, in AFONSO, JOÃO (coord), (2011), Manuel Vicente, Trama e Emoção, p. 85, Edições Caleidoscópio, Lisboa.

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arquitectónico, essa seria sem dúvida a Unité. Ensaiou finalmente os princípios de ville radieuse ou da “cidade-jardim vertical”, mas também da “máquina de habitar” como conceito. Construída ente 1947-52, a unité constituiu um lugar obrigatório e de estudo para muitos dos jovens arquitectos portugueses. De facto, a unité de Le Corbusier foi plasmada por muitos arquitectos internacionais amplamente reconhecidos pela história moderna, às quais falta acrescentar a compilação sucinta da sua reprodução, mais ou fiel, realizada no contexto luso. Da Unité Mediterrânea à Unité Tropical de expressão portuguesa produziram-se obras que dotam de identidade as diversas cidades a partir das suas próprias inclusões como «objetos de poética». Em Portugal continental este tipo de edifício adquiriu formalmente e funcionalmente grande magnitude, como é exemplo lisboeta o edifício Águas Livres de Teotónio Pereira e Costa Cabral (19531956), uma obra formalmente inovadora, que propôs uma original organização interna dos fogos sem perder o foco principal nos núcleos de encontro, como as lavandarias coletivas, jardins e ateliers para artistas localizados, muito ao gosto corbusiano, como volumes soltos na cobertura. Mas neste contexto, sobressaem sem dúvida, as 4 Unités de Filipe Figueiredo e José Segurado no cruzamento das avenidas EUA e Roma (1951-1955), cujo programa funcional apontava para uma solução típica da vida moderna: planta térrea elevada sobre pilotis, ruas interiores, habitações duplex de diferentes tipologias, galerias comerciais cobertas e transitáveis, pequenos ateliers para artistas na cobertura. O sétimo piso, bem marcado e recuado em relação ao plano de fachada, tinha originado uma galeria comercial e de serviços se tivesse sido realizada. Por falta de investimento, ou talvez devido a uma mentalidade retrógrada, o resultado final transformou o projeto num programa residencial mais convencional. A presença destas quatro unidades de habitação foi no seu tempo um grande paradigma de inserção do modelo moderno e um dos primeiros casos decididamente em altura na cidade de Lisboa. No entanto, foi com uma expressão tropical que este tipo de edifício residencial ganhou uma forma de expressividade e plasticidade que de todo são inigualáveis na metrópole. Exemplo desta afirmação são os casos do bloco Cirilo de Pereira da Costa (1953), com comércio no piso térreo de dupla altura, escritórios no primeiro piso e nos outros andares as habitações coletivas, apresenta não só similitudes funcionais e formais, como também constituiu uma aproximação de modelo urbano.

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FIG. 7 Unidade de Habitação de Marselha, Le Corbusier (1946-1962); Edifício Cirilo de Pereira da Costa (1953), Luanda

Vasco Vieira da Costa, muito próximo a Le Corbusier ao longo da sua formação,100 realizou em 1965 o bloco Servidores do Estado em Luanda. Foi um projeto de habitação de baixo custo, desenvolvido com tipologias de dimensões mínimas sem perder o máximo conforto na vivência da habitação. Assume-se como um bloco residencial autónomo que vai mais além da simples forma do edifício e afecta um série de questões, nas quais intervêm a estrutura de acessos e a sua relação com a rua.101 As longas galerias (80 m de comprimento e 2 m de largura) dão passo às diferentes habitações e funcionam como lugares intermédios de colectividade pois afastam-se cerca de 1,5 m do volume principal, conferindo certa privacidade à entrada das casas. Cada um dos cinco pisos está composto por uma sequencia de 5 habitações T3 (166 m2) e uma habitação T1 que remata o topo norte do bloco (82 m2), que se desenrolam entre módulos de 7 m. A sequência fluida dos espaços garantem a ligação duma hierarquia quase urbana: as escadas, as galerias de acesso, as entradas coletivas, o hall de entrada e, por último, a habitação.

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Vasco Vieira da Costa colaborou com Le Corbusier entre 1946 e 1948, período no qual participou por exemplo no projeto da Unidade de Habitação de Marselha. 101 RODRIGUES, INÊS, (2011) “Cuando la Vivienda Coletiva Hizo Ciudad. El caso de la Luanda Moderna”, in Modernidad Ignorada Arquitetura Moderna en Luanda, p. 141, Alcalá de Henares, Madrid.

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FIG. 8 Bloco Servidores do Estado de Vieira da Costa (1965): Fotografias, Alçado Este, Alçado Oeste, Planta

O edifício Livro de Alberto Pessoa resolve a compatibilidade de diversos pequenos equipamentos (infantário, comércio, sala de reuniões, serviços públicos) numa unité 18 andares de habitações, com um implantação em “V” como se fosse um livro aberto, no bairro Maianga (Luanda). Dos diversos equipamentos previstos, só resistiu um infantário no primeiro piso e a qualidade das galerias coletivas esta muito ameaçada pelas grades sucessivas que interrompem o que outrora foi um movimento constante. Com estes exemplos, subsiste a dúvida de como se criaram e aplicaram estes mecanismos de importação cultural, afirmando os valores da liberdade democrática da expressão moderna num regime dum Estado opressivo e colonial? Se é verdade que em África vivia-se um ambiente de maior liberdade -uma ideia dada pelos testemunhos de vários arquitectos- também é um facto que as condições climáticas, funcionais e de economia construtiva, dadas pela falta de recursos materiais e humanos, faziam com que imperara um pragmatismo evidente. Todas estas questões eram muito más importantes que qualquer pretensão de celebração dos valores nacionais, tal e como se vivia em Portugal continental. 117


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Entendemos que a dimensão do legado moderno luso se deve, em grande parte, a que a entrada da arquitetura moderna nos países tropicais (como tinha acontecido no Brasil) tenha sido um processo natural. Por um lado, a modernidade dava resposta à necessidade de progresso e por outro punha em prática modelos formais importados do Brasil que se adaptavam de maneira natural às condições climáticas nos países tropicais. Parafraseando Castro Rodrigues fazia-se moderno, gostava-se e ficava. Na verdade, a preocupação com a arquitetura intelectual significava pouco em comparação com o clima, o tempo, as pessoas, a sociedade. Realçamos uma produção homogénea, onde o espírito de missão da classe superava a necessidade de afirmação do autor. A visão futurista a nível cultural, técnico e artístico duma geração que trabalhando em muitas situações em contextos da administração oficial, conseguiu delinear «novas cidades», plenas da nova arquitetura residencial moderna no ímpeto da situação colonial.

1.4 A Expressão da lógica construtiva Destacamos a modernidade dos programas residenciais a nível arquitetónico, urbano e social, mas também a investigação formal e tecnológica que a fundamentou. Valorizam-se espaços ajardinados coletivos, desenvolvem-se sistemas entre universalidade e a adaptação, a funcionalidade e a economia, a veracidade dos materiais e a sinceridade da estrutura. Duma maneira geral, identificamos uma estratégia de projeto elementar baseada no uso das dimensões e proporções provenientes da estrutura, em que se evidencia o trabalho dos arquitetos em conciliar as dimensões modulares com a estrutura às especificidades dos espaços interiores. No entanto, são obras que não foram projetadas a partir de esquemas preestabelecidos, mas com princípios de sustentabilidade e de prática do bem estar na formalização de objetos mais ou menos grandiosos, potentes na sua proposta do habitar urbano. De algum modo, os modelos modernos trataram de controlar a geometria livre e submetê-la à disciplina no possível. Denota-se a inquietação pelo método, pela definição da célula ideal, independentemente da forma da tipologia. A partir destes pontos, existe a preocupação pelo rigor, que os traçados não resultem excessivos nem arbitrários. Existia, além disso, uma grande relação e contribuição dos engenheiros por um lado, e artistas por outro. Os arquitetos lusos referem com frequência a importância das diferentes colaborações e que, somente o respeito e inter-relação entre as profissões permitiu atingir soluções tão inovadoras e apropriadas em relação ao clima. A ideia de uma adequada solução funcional e estrutural

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sobrepunha-se naturalmente às reminiscências «artísticas» a que facilmente podíamos associar os arquitectos. De facto, a questão tectónica aparece justificada e o uso do betão é tratado “intencionalmente e como técnica deliberada, definitiva no processo de expressão e de verdade construtiva”.102 Muitos são os casos em que a estrutura se vê desde o exterior, quando aparecem as lajes e os elementos verticais marcados nas fachadas, como por exemplo nas quatro unités de Segurado ou nas cinco barras suspensas sobre a avenida Infante Santo em Lisboa, mas também no bloco Cirilo em Luanda, fazendo sobressair o módulo. Outras vezes, prevalece visualmente na fachada somente as linhas horizontais das lajes como no bloco CTT de Vicente ou na torre Leal Senado de Ramalho, ambos em Macau. Seja qual for a solução adoptada, configuram-se edifícios com fachadas homogéneas e abstratas.

FIG. 9 Sequência de fachadas: Unités Av. EUA, Av. Infante Santo em Lisboa; Cirilo em Luanda

Conceitos como a superfície mínima, a habitação para pessoas de rendimentos mínimos, os acessos em galeria como solução económica e os espaços coletivos entre os edifícios elevados sobre pilares fossem interpretados como metas adquiridas e inerentes ao projeto da habitação

102

RODRIGUES, FRANCISCO CASTRO, (1964), “O Betão Nú e o Lobito”, Texto fotocopiado do Arquivo pessoal de Francisco Castro Rodrigues, p. 3-9, Azenhas do Mar.

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coletiva.103 A racionalização e industrialização coincidiam com a casa como máquina de habitar, com a flexibilidade do novo espaço doméstico a partir da construção em esqueleto. Em suma, o espírito dos novos tempos. Os arquitetos portugueses pretendiam construir uma arquitetura sustentável, onde a economia da construção fizesse com que o preço fosse mais acessível. Há que acrescentar a notoriedade da qualidade e quantidade da habitação lusa moderna, de autor ou de arquitectos anónimos que souberam absorver a introdução dos valores modernos nas especificidades de um clima mediterrâneo ou tropical, onde o recurso à estandardização do modelo se deve entender para além de uma simples estratégia de controlo da forma urbana num contexto disperso e caótico.

1.5 O visão urbana futurista da modernidade da habitação coletiva lusa O espaço próprio das três cidades –Lisboa, Luanda, Macau– e a fusão das raízes portuguesas com a cultura local definiram o enclave do moderno na habitação coletiva. A análise realizada permite constatar que as diferentes atuações partiram da revisão das constantes urbanísticas do seu tempo e da proposta de novas soluções para afrontar as carências urbanas. São respostas que não se esgotam e que apareceram em décadas e lugares distintos para fazer cidade dentro e fora do tecido urbano consolidado, como forma de extensão, ou para facilitar operações de descentralização. Por outra parte, o legado moderno aportou a claridade nas suas formas compositivas, sistemas de ordem e uso que se traduziram numa determinada estrutura viária, na organização dos bairros residenciais e na forma de incluir os espaços verdes. A experiência dos modelos tridimensionais aplicada a três situações diferentes: um concurso não aprovado em Lisboa, um projeto incompleto da unidade de vizinhança Prenda em Luanda e uma torre em Macau já demolida permite-nos confirmar que foram projetos concebidos para alcançar o equilíbrio urbano entre o construído e o espaço livre e coletivo. Além disso, um olhar atento para as imagens virtuais leva-nos a ter uma ideia do que poderiam ter sido, ou inclusive poderiam ser, projetos que por motivos diferentes não viram sua realização terminada ou simplesmente já foram destruídos. Partindo dos factos, através da interpretação do projeto, sem injustas interpretações apriorísticas talvez se possa proporcionar uma verdadeira esperança de poder fazer da tradição um trampolim para o progresso.

103

RODRIGUES, INÊS, (2010), “Permanencia del tipo” in Documentos de Arquitetura Moderna en América Latina 1950-1965. Volumen Cuarto, Vivienda social en Argentina, Brasil, Chile y México. Colección Documentos de Arquitetura Moderna en América Latina, Grupo Form, UPC, Casa América de Catalunya, p. 40, Barcelona.

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Bairro Prenda, Carvalho (1965), Luanda: Modelos tridimensionais dos diversos conjuntos residenciais

A vigência dos princípios sociais, coletivos, económicos e arquitectónicos enquanto modelo urbano completo convertem a habitação moderna num dos principais objectivos do debate arquitetónico actual. Hoje em dia, mais de meio século passado, estamos em condições de interpretar os factos ocorridos, os seus pontos positivos, mas também reconhecendo os negativos como um processo normal de evolução e progresso. Aprender da história dos últimos cinquenta anos, ativá-la com as tecnologias de hoje para eventualmente ser aplicada amanhã. São obras que justificam a transversalidade do Movimento Moderno entre Lisboa, Luanda e Macau, e que sem dúvida, tiveram uma importância que a crítica contemporânea ainda não valorizou na sua justa medida. Efetivamente, estas arquiteturas, entendidas como um corpo de ideias e de realizações de valor «revolucionário», permite-nos valorizá-las em bloco como uma alternativa real e possível à cidade especulativa. Através do estudo da forma dá-se a conhecer a casa moderna do século XX e ao mesmo tempo, regista-se o quadro histórico e teórico deste património no século XXI.104

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104

RODRIGUES, INÊS, (2011) “Cuando la Vivienda Coletiva Hizo Ciudad. El caso de la Luanda Moderna”, in Modernidad Ignorada Arquitectura Moderna en Luanda, p. 161, Alcalá de Henares, Madrid.

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