15 Ano IV • nº 15 • setembro de 2003
E D I TOR I A L
Uma dívida social
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s questões afetas aos afro-descententes figuram ainda de forma quase invisível quando se trata de políticas públicas, apesar de o país ser uma das maiores nações negras do mundo. O orçamento federal espelha o esquecimento com esta imensa parcela, que corresponde à metade da população brasileira. A recente criação da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, pelo atual governo, não deixa de ser um sinal de que algo começa a mudar, mas certamente, para resgatar a enorme dívida social com os afro-descendentes, há um caminho longo a percorrer. Os negros estão entre os mais pobres, com menor escolaridade e condições de vida mais difíceis. As crianças pardas e negras são maioria nas Febens e no trabalho infantil. Não existem recursos específicos no orçamento, e para se conhecer os programas que contemplam os negros é preciso buscar aqueles voltados aos segmentos mais carentes e em situação de risco social. Falta, portanto, investimento para ações afirmativas e de combate à discriminação e ao racismo. Falta admitir a amplitude do problema para enfrentá-lo de maneira adequada. Para transformar a situação de desigualdade e exclusão social que atinge os negros, e que torna as crianças afro-descententes especialmente mais fragilizadas em relação às demais, é fundamental elaborar políticas públicas estruturantes e garantir recursos orçamentários para sua implementação. Só assim estaremos nos aproximando da garantia de direitos básicos e constitucionais, de forma integral e universal.
Publicação do Instituto de Estudos Socioeconômicos - Inesc
A desigualdade entre as raças Falar sobre direitos da criança e do adolescente, políticas públicas e igualdade entre as raças remetenos a uma frase da “Carta de uma menina escrava”, publicada no Caderno da Abong “Outros 500”: “Eu sou Dandara, que na língua afro-negra significa Liberdade”. Essa liberdade é a tradução de uma vida plena de direitos e, no Brasil, é preciso perguntar: criança negra é diferente de criança branca? A lei diz que não. Segundo a Constituição brasileira, todos são iguais perante a lei e “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão”. O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 5°, diz que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de
Regivan Araújo - MNMMR
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”. No entanto, a realidade vivida por milhões de crianças e adolescentes negros e negras e todos os seus familiares demonstra que existe diferença sim. E não é muito difícil localizar essa diferença; basta percorrer alguns O IDH dos negros dados levantados por instibrasileiros é tuições como o Programa equivalente ao IDH das Nações Unidas para o que fica entre El Desenvolvimento – Salvador e China, na 107ª posição. Já os PNUD, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada brancos apresentam – Ipea e a Datafolha para um IDH equivalente ao do Kuwait: 46ª identificarmos com muita posição facilidade a conivência da sociedade brasileira com o racismo e a incapacidade de enfrentamento do Estado através das políticas públicas. O PNUD divulga anualmente o Relatório de Desenvolvimento Humano de 175 países. No relatório desse ano o país melhorou em termos do Índice de Desenvolvimento Humano - IDH, passando da 69ª colocação para a 65ª. O IDH mede a qualidade de vida de uma população combinando três tipos de indicadores: rendimento per capita, escolaridade (taxa de escolaridade e de alfabetização) e esperança de vida ao nascer. Segundo o professor Marcelo Paixão, da UFRJ, “a
evolução positiva não foi gerada somente pela melhoria dos indicadores sociais da população. Na verdade, desde o ano passado, o PNUD, ao invés de calcular o índice combinado de escolaridade bruta da população, passou a aceitar os dados produzidos pelos governos (...) Antes usava-se a taxa de freqüência aos três níveis principais de ensino de toda a população e dividia-se este número pelo total de pessoas situadas na faixa etária entre 7 e 22 anos. Nos dias atuais, a nova fonte de dados passou a ser a taxa de matrícula escolar da população (...) Não se tratou de uma mudança de metodologia de cálculo, mas sim de uso de fonte de dados. Isto fez com que o nosso país tivesse experimentado um crescimento tão expressivo em termos de IDH em um espaço tão curto de tempo" 1. Na avaliação do professor Marcelo Paixão, essa nova forma de calcular a variável escolaridade dificulta a desagregação do IDH entre cores/raças, uma vez que nos registros do Ministério da Educação não constam informações sobre cor/raça dos alunos e alunas matriculados. O Observatório Afro-brasileiro elaborou o IDH por raça e usou, para o cálculo no ano de 2001, exclusivamente as fontes do IBGE. O IDH dos negros brasileiros é equivalente ao IDH que fica entre El Salvador e China, na 107ª posição, entre 175 nações. Já os brancos apresentam um IDH equivalente ao Kuwait: 46ª posição. É importante salientar que, no Censo 2000 do IBGE, um total de 40,4% da população brasileira se declarou
1 www.observatorioafrobrasileiro.org , UFRJ- IPDH, Notas de Estudo 01/2003
Orçamento & Política da Criança e do Adolescente: uma publicação do INESC - Instituto de Estudos Socioeconômicos, em parceria com o Unicef – Fundo das Nações Unidas para a Infância. Tiragem: 3 mil exemplares - End: SCS - Qd, 08, Bl B-50 - Salas 431/441 Ed. Venâncio 2000 - CEP. 70.333-970 - Brasília/DF - Brasil - Fone: (61) 212 0200 - Fax: (61) 212 0216 - E-mail: protocoloinesc@inesc.org.br - Site: www.inesc.org.br - Conselho Diretor: Jackson Machado, Ronaldo Garcia, Elisabeth Barros, Gilda Cabral, Gisela Alencar, Nathali Beghin, Paulo Calmon, Pe. José Ernani - Colegiado de gestão: José Antônio Moroni, Iara Pietricovsky - Assessoria Técnica: Denise Rocha, Edélcio Vigna, Jair Barbosa Júnior, Jussara de Goiás, Luciana Costa, Márcio Pontual, Ricardo Verdum, Selene Nunes - Jornalista responsável: Luciana Costa Projeto gráfico: DataCerta Comunicação – Impressão: Vangraf
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parda e somente 5,6% preta; “Se a metade da população de um país não gosta de ser como é; e a outra metade não gosta de estar com negros e índios, o que se pode esperar desse país?”2. O Dossiê “Assimetrias Raciais no Brasil: alerta para a elaboração de políticas”, da Rede Feminista de Saúde3, elaborado pela pesquisadora Wânia Sant’Anna e recentemente lançado em Brasília, alerta para a elaboração de políticas públicas e mostra a exclusão a que estão submetidos negros e negras no país, com dados alarmantes: • Em 2001, o rendimento das famílias brancas chegava a ser 2,3 vezes superior (R$ 481,6) ao das famílias Em 2001, o afro-descendentes rendimento das (R$ 205,4); famílias brancas • Em 2001, cerca de chegava a ser 2,3 47% dos negros no vezes superior ao Brasil eram enquadas famílias afrodrados como pobres descendentes. Cerca e 21,2%, indigentes4. de 47% dos negros No caso da populano Brasil eram ção branca, os enquadrados como percentuais são pobres e 21,2%, 22,4% de pobres e indigentes 8,4% de indigentes. Não se pode negar que existem tentativas para mudar a realidade. Muitas foram as pressões e manifestações de segmentos organizados. A década de 90 foi marcada pela luta dos afro-brasileiros contra o racismo e a discriminação. Foi um marco histórico a “Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida” realizada em 20 de novembro de 1995, em homenagem ao tricentenário da morte de Zumbi que, indiscutivelmente, vem impulsionando essas mudanças.
As ações afirmativas trazem uma nova reflexão, contida na carta da Marcha Zumbi dos Palmares, que desenvolve o princípio da promoção de igualdade de oportunidade: “primeiramente, capacitar, e num segundo momento, flexibilizar, facilitar a entrada, facilitar o acesso para que o negro possa disputar em igualdade de condições e dar à sociedade brasileira um caráter de maior justiça”.5 Outros exemplos podem ser citados, como a criação do Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra (1996). Nesse mesmo ano foi lançado o I Programa Nacional de Direitos Humanos, que contém item específico sobre a população negra. A partir de 2000, o debate contra o racismo se intensifica, com vistas à participação do Brasil na “III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Discriminação”, em Durbin, na África do Sul, que resulta na realização da I Conferência Nacional contra o Racismo e a Intolerância, em 2001. Em 2002, a criação do Programa Nacional de Ações Afirmativas, na Secretaria de Estado de Direitos Humanos do Ministério da Justiça; a criação de ações e projetos nos Ministérios do Desenvolvimento Agrário, do Trabalho, da Cultura, da Justiça e da Educação; e o início da titulação de terras de remanescentes de quilombos, etc6 , são iniciativas que absorvem o ideário de promoção da igualdade de oportunidades em contraposição à igualdade formal, a igualdade de direitos. No governo Lula, a partir de 2003, registra-se como avanço o decreto n° 4.738, de 12 de junho de 2003, que promulga a Declaração Facultativa prevista no artigo 14 da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, reconhecendo a competência do Comitê Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial para receber e ana-
2 Caderno Outros 500 - Sugestões para o trabalho com grupos sobre a questão da raça negra, indígena e criança e adolescente, ABONG Amazônia e associadas - Comitê Outros 500, PA, jun/2000 3 A Rede Feminista de Saúde, fundada em 1991, é uma articulação do movimento de mulheres que reúne cerca de 180 instituições. A secretaria executiva da RFS está sediada em Belo Horizonte. 4 PELIANO, Anna Maria Medeiros (coord.) - O mapa da fome: subsídios à formulação de uma política de segurança alimentar - Brasília : IPEA, 1993. Classifica como indigentes aqueles que vivem abaixo da linha de pobreza ou seja, até meio salário mínimo. 5 SANTOS, H. Ações afirmativas para a valorização da população negra, In Sardenberg e Santos. Parcerias Estratégicas, vol 1, n°4, dez/1997. 6 JACCOUD, L.B. e BEGHIN, N.B. IPEA, 2002.
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lisar denúncias de violação dos direitos humanos cobertos na mencionada Convenção. Tivemos ainda a criação da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial e a inclusão do Programa Cultura Afro-Brasileira no Projeto de Lei Orçamentária de 2004. No entanto, o que o Brasil tem é uma igualdade formal que convive com um racismo perverso, visto que escamoteia a realidade a ponto de parecer normal. Por exemplo, em milhares de salas de aula nas universidades, sejam públicas ou privadas, não se vê nenhuma pessoa negra e também não se pergunta o porquê. Vários outros fatos do nosso cotidiano podem ser citados, embora não sejam suficientes para despertar nossa indignação, como por exemplo, freqüentar teatros, palestras, restaurantes ou exposições de arte sem encontrar pessoas negras. Segundo Hélio Santos, do Grupo de Trabalho Interministerial – GTI - para Valorização da População Negra, a pobreza brasileira tem cor e, mesmo que essa população supere a discriminação social através da melhoria da renda, terá que enfrentar a discriminação de cor. O fato é que ainda estamos muito longe de alcançar a cidadania para todos e todas. Essa distância só será diminuída se o Brasil assumir que a metade da população é negra, vítima das desigualdades sociais e de cor, para então enfrentar essa problemática com políticas públicas estruturantes e passíveis de controle social, como o monitoramento do Plano Plurianual 2004/ 2007 e da alocação de recursos específicos na Lei Orçamentária Anual. O que se pode afirmar até agora é que, em 2003, a execução orçamentária do primeiro semestre, mesmo não constando o recorte de cor, não pode ser tomada como exemplo para identificar transformações sociais positivas. A desigualdade no acesso à educação e à saúde O papel da educação como instrumento de transformação é indiscutível. É urgente repensarmos a política educacional de modo que ela possa efetivamente
servir como agente transformador. O fato de apenas 5,6% da população se declarar preta deixa explícito que foi absorvida a “superioridade” da raça branca. Isso vem sendo historicamente repassado e contribui para a continuidade de uma baixa estima de metade da população. Um povo negro que não gosta de ser negro fortalece a permanência da prática de racismo. A educação potencialmente pode acelerar o processo de formação de uma nova consciência social, mas não basta dizer que ela é para todos. Esse é o direito formal. Há que se definir, também na educação, estratégias de inclusão social e racial; investir na formação de professores brancos e negros, de modo a instrumentá-los para uma postura permanente contra o racismo. Professores muitas vezes, mesmo sendo negros ou negras, elaboram manuais e textos utilizando conceitos velhos, racistas e carregados de preconceitos. A figura da professora que tem preferência pela criança loirinha que lhe leva uma flor ainda é uma realidade. As crianças negras sofrem de rejeição dos colegas e dos professores e isso só aprofunda o sentimento de inferioridade e baixa estima. Há que se investir na formulação de novos conteúdos nos livros infanto-juvenis e didáticos, para que contem a verdadeira história do Brasil, na qual deve constar a resistência do povo negro, seus heróis e heroínas7 ; resgatando o respeito à sua cultura e religiosidade. É a história de um povo que lhe dá fundamentação para se sentir orgulhoso de seu país e de si mesmo e esse sentimento está diretamente ligado à auto-estima. Segundo Immaculada Lopez, em “Marcas profundas de racismo e discriminação precisam ser combatidas se o Brasil quiser superar suas desigualdades”, o fato de não valorizarmos a participação dos negros em nossa formação social e cultural tem contribuído para que nosso povo se sinta ainda europeu, ou seja, nega nossa base cultural africana e indígena, negando, dessa forma, a nós mesmos. A educação como instrumento de transformação deve oportunizar o desenvolvimento do potencial de
7 Caderno Outros 500, ABONG Amazônia e associadas - Comitê Outros 500, PA, jun/2000
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todas as crianças e adolescentes independente da raça, crença, etnia, origem, sexo ou orientação sexual; a escola tem que trabalhar diariamente combatendo estereótipos e valorizando uma visão positiva de homens e mulheres, negros, negras e indígenas. A política educacional tem que considerar o fato de que 44% da população afro-brasileira, ou seja, 74 milhões de pessoas se encontram em estado de semi-analfabetismo; que no nível médio apenas 14% dos negros têm de 5 a 11 anos de estudo, contra 25% dos brancos e 41% dos amarelos; que 71% dos negros têm no máximo o primeiro grau; e que apenas 4% concluem um curso superior, contra 13% dos brancos8 . Em 2001, a taxa de analfabetismo para meninas afro-descendentes entre 10 e 14 anos era de 4,5% e para as meninas brancas, 1,3 %9. Uma postura política em favor da cidadania de metade da nossa população implicaria também em uma inclusão de novas rubricas orçamentárias para a alocação dos recursos destinados à educação, de modo a contemplar uma demanda diferenciada da que lá está. Os instrumentos legais que asseguram o processo orçamentário teriam que absorver novos direcionamentos de recursos para a realização de ações afirmativas e continuadas visando ao combate ao racismo e à discriminação. T abela 1
Não é o caso do orçamento em execução no ano de 2003. Essa lei orçamentária teve seus programas e projetos criados a partir do Plano Plurianual –PPAdo governo passado, que ainda está em vigor e que não foi capaz de absorver as especificidades dos segmentos discriminados. Os recursos destinados ao Ministério da Educação para programas que atingem diretamente crianças e adolescentes chegaram a R$ 5,6 bilhões, distribuídos em 7 programas e 47 projetos que teriam um impacto direto na realidade caso fossem executados com maior rigor para o cumprimento dos objetivos. Dos 47 projetos, citamos apenas 9, relativos a 6 programas, a título de exemplo. Os projetos, tal como estão colocados hoje, não permitem identificar o impacto sobre a população negra beneficiada e possuem baixo percentual de execução, conforme pode ser visto na tabela I. Percebe-se que apenas algumas rubricas tiveram execução acima de 20%: são projetos que obrigatoriamente têm que ser executados, como o Fundef, Fundescola, renda mínima e merenda escolar, que recebem repasse direto. Outra política essencial é a da saúde, que está diretamente ligada às condições humanas de de-
Ministério da Educação - Orçamento 2003
PROGRAMA TODA CRIANÇA NA ESCOLA Bolsa-Escola - gerenciamento ESCOLA DE QUALIDADE PARA TODOS Capacitação/Formação DESENVOLVIMENTO DO ENSINO MÉDIO Expansão e Melhoria da Rede de Ensino Médio Acesso à Universidade de Grupos Socialmente Desfavorecidos DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO ESPECIAL Aquisição, Produção e Distribuição de Material Especializado Capacitação de Profissionais para Educação Especial ATENÇÃO À CRIANÇA Aquisição e Distribuição de Material Didático para Educação Infantil Formação Continuada de Professores da Educação Infantil para Implementação dos Referenciais Curriculares Nacionais PAZ NAS ESCOLAS Enfrentamento da Violência nas Escolas
ALOCADOS (em R$ milhões)
EXECUTADOS (em R$ mil)
% EXECUTADO
161,7
383,9
0,24
16,4
500
3,05
5 5
28,2
0 0,56
2,9
211,9
7,29
4,3
364,9
8,44
5,3
-
0
12
-
0
1,4
-
0
8 SILVA, Benedita - A Questão Racial no Brasil, Senado Federal, Brasília, 1998. 9 Dossiê “Assimetrias Raciais no Brasil: alerta para a elaboração de políticas”, da Rede Feminista de Saúde
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senvolvimento, ou seja, ao acesso à alimentação, trabalho, moradia e educação, principalmente. Não se pode falar de condições humanas de vida quando se observa como vive a população negra no Brasil. De cada 100 afro-brasileiros que trabalham, 33% vivem com um salário mínimo. A desigualdade se agrava ainda mais quando se trata da mulher e da criança e adolescente negras. A mulher negra tem salários mais baixos que o homem e a mulher brancos e que o homem negro. Ela é alvo, de forma mais cruel, da desigualdade no acesso ao trabalho, à saúde, à educação, etc., além da desqualificação estética da raça. As meninas negras e pardas ingressam muito cedo no trabalho infantil doméstico, o que significa uma continuidade da exploração do trabalho da mulher negra escrava que servia aos senhores de engenho. No ingresso ao mercado de trabalho, crianças brancas de 10 a 14 anos somam 14,9% e as negras, 20,5%. A Organização Internacional do Trabalho10 realizou uma pesquisa nas cidades de Belém, Belo Horizonte e Recife, com um universo de 1.029 crianças e adolescentes. Desses, 92,71% eram meninas e 7,29%, meninos. Havia 5,29% crianças na faixa etária de 5 a 11 anos; e 53,28% na faixa de 12 a 15 anos. Adolescentes com idade entre 16 e 17 anos somaram 41,43%, e desses 58,57% estavam trabalhando ilegalmente segundo a legislação em vigor. O recorte de raça/cor foi também pesquisado e o resultado apenas confirma o que os nossos olhos acostumaram-se a ver como natural: T abela 2 RAÇA/COR
FREQ.
%
Negro/Preta Parda Branca Amarela Indígena Total
235 521 221 24 11 1012
23,22 51,48 21,84 2,37 1,09 100,00
Lumen - Fumarc -/PUC Minas
As meninas trabalhadoras domésticas, quando estudam, deixam a escola muito cedo. Do total pesquisado, 58,06% estudou até o ensino fundamental II e apenas 9,87% até o ensino médio. Mas os problemas que atingem nossas crianças e adolescentes afro-brasileiros não param por aí. Também são negros e negras adolescentes que superlotam as Febems; são elas a maioria das assassinadas nos grandes centros urbanos vítimas da violência policial, justiceiros ou grupos de extermínio. Morrem também na guerra do narcotráfico porque são elas que habitam as favelas e periferias onde a polícia entra sem pedir licença, “procurando bandidos” e atirando porque “parece óbvio” que é lá que eles moram. São negras as crianças e adolescentes explorados sexualmente. É alta a taxa de mortalidade infantil entre crianças negras - até cinco anos, 76,1 mortes a cada mil crianças, contra 45,7 por mil (um número também preocupante) de crianças brancas11. Em uma situação de desigualdade tão explícita como a nossa, o Brasil não pode mais continuar a ignorar que “é a segunda maior nação negra do mundo, que recebeu 4 milhões de escravos e foi o último a abolir a escravidão”, como afirma Hélio Santos, do GTI para Valorização da População Negra. “O Brasil se permite ignorar a população negra”, diz Edna Roland, presidente da Fala Preta, uma organização de mulheres negras que desenvolve projetos principalmente na área de saúde. Não temos, por exemplo, dados sistemáticos sobre as razões de morte e doença dos diferentes grupos da população. Segundo Immaculada Lopez, “o quesito cor só foi incluído na declaração de nascimento e de óbito em 1997, e os primeiros dados ainda não foram processados. Seria essencial que o quesito também fosse incluído nos prontuários médicos. Pois só podemos combater os problemas se os conhecermos”.
10 Organização Internacional do Trabalho/ HAAS, Francisco - O Trabalho Infantil Doméstico nas cidades de Belém, Recife e Belo Horizonte: um diagnóstico rápido, OIT, Brasília, DF, 2003. 11 Dossiê “Assimetrias Raciais no Brasil: alerta para a elaboração de políticas”, da Rede Feminista de Saúde
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E a questão da saúde se agrava quando se trata da anemia falciforme “causada por uma alteração nos glóbulos sangüíneos vermelhos que, em vez de apresentarem a forma normal, redonda, ganham o formato de foice. Isso faz com que se aglomerem, obstruA questão da saúde indo os vasos, dificultando a circulação se agrava quando se trata da anemia sangüínea e provocando crises de dor. A ane- facilforme. A doença mia ocorre pela des- afeta especialmente truição precoce desses a população negra e a estimativa oficial é glóbulos, o que exige, de 8 mil doentes e 2 em compensação, um milhões de aumento do esforço portadores cardíaco. O baço, que filtra o sangue, também é afetado, favorecendo infeções. Outras complicações comuns são as renais, cardíacas, ósseas, além dos acidentes vasculares cerebrais. Essas manifestações clínicas variam de pessoa para pessoa, e sua evolução depende das condições socioeconômicas e da qualidade de vida do paciente. A doença afeta especialmente a população negra, e a estimativa oficial é de 8 mil doentes e 2 milhões de portadores do traço falcêmico, uma característica genética que, quando simples, não provoca a doença mas pode ser transmitida de T abela 3
Ministério da Saúde - Orçamento 2003
PROGRAMA SAÚDE DA FAMÍLIA Saúde da Família Ações de Saúde da Família ALIMENTAÇÃO SAUDÁVEL Alimentação Saudável e Nutrição SAÚDE DO JOVEM Saúde do(a) Adolescente e do(a) Jovem Publicidade de Utilidade Pública SAÚDE DA CRIANÇA E ALEITAMENTO MATERNO Aleitamento e Banco de Leite Multivacinação Publicidade de Utilidade Pública
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pai para filho. As entidades do movimento negro, porém, chegam a apontar 50 mil doentes e 10 milhões de portadores. Segundo o Ministério da Saúde, estima-se que 80% dos doentes morrem antes dos 30 anos de idade e que 85% das mortes por anemia falciforme não são registradas como tal. Desconhecida por quase toda a população e pelos próprios profissionais de saúde, a doença ainda não conseguiu mobilizar a atenção das autoridades. “A medida mais urgente é o diagnóstico precoce da doença, que pode se manifestar a partir dos seis meses de idade”, explica a médica Sara Saad, coordenadora do Comitê Assessor de Hemoglobinopatias, do Ministério da Saúde. Segundo a especialista, as complicações mais graves podem ser fatais, mas são estáveis. E quanto mais precoce o diagnóstico, maior a chance de prevenção. Apesar de o governo federal ter anunciado o Programa de Anemia Falciforme, em 1996, o mesmo ainda não foi formalizado e não tem previsão orçamentária própria. No orçamento em execução deste ano e de responsabilidade do Ministério da Saúde estão os programas e projetos que atingem diretamente crianças e adolescentes. Além da anemia falciforme, chamam a atenção as doenças que apresentam componentes ge-
(em R$ milhões)
ALOCADOS
EXECUTADOS
% EXECUTADO
3,6 71,8
1,8 24,2
50,8 33,7
365,3
184,6
50,5
2,8 3,5
0 0
0 0
2,8 25 10,3
0 14 3,8
0 56,3 37,6
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néticos manifestados mais intensamente entre os negros, como a hipertensão ou diabete. Sem falar das doenças agravadas pelas condições socioeconômicas, especialmente desfavoráveis para a grande maioria da população negra. Especialistas e governo concordam, porém, que não é o caso de criar um programa especial para essa parcela da população em relação a cada doença. A saída é considerar as características étnico-raciais, comportamentais e culturais no momento de diagnosticar ou tratar qualquer doença, bem como nos programas de prevenção. “A população negra deve saber quais as doenças a que está mais sujeita, Algumas políticas quais são os riscos e o possuem projetos que fazer para evitar os que certamente problemas”, diz Amaro Luiz Alves, represen- atendem à população negra. Não porque tante do Ministério da Saúde no GTI para Va- haja uma destinação específica, mas lorização da População porque são dirigidas Negra. Ele reconhece, à parcela mais porém, que esses avancarente ou em ços não estão ocorrensituação de risco do. A razão é clara: apesocial sar da urgência, o debate da questão racial ainda não é tratado como prioridade no país. Desigualdade social e de cor Algumas políticas possuem projetos que certamente atendem à população negra. Não porque haja uma destinação específica, mas porque são dirigidas à parcela mais carente ou em situação de risco social. Essa conclusão é possível considerando os dados já apresentados que demonstram serem os negros e negras as maiores vítimas da exclusão social. Entre eles, milhões de crianças e adolescentes vivem com suas famílias nos bolsões de pobreza. São vítimas de todas as formas de crueldade, desde a desnutrição e a mortalidade infantil à falta de equipamentos sociais. E quem lhes socorre? 8
O traficante, o pai de rua, o “gato” que os leva junto com suas famílias para o trabalho escravo; o rufião, cafetão ou cafetina. Todos esses tipos criminosos aliciam crianças e adolescentes que, por estarem em situação permanente de vulnerabilidade, terminam vítimas da crueldade humana e social. Essa situação, reafirmamos, vem sendo enfrentada através de iniciativas, tanto governamentais quanto não-governamentais. O problema é que não conseguimos sair do plano formal e legal, onde já avançamos bastante. Somos signatários de vários tratados internacionais de garantia dos direitos humanos, como por exemplo a Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho, que trata da discriminação em matéria de emprego e profissão; a Convenção relativa à luta contra a discriminação no campo do ensino; a Convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial; a Convenção internacional dos direitos da criança e do adolescente; a Convenção 138 da OIT para a eliminação do trabalho infantil; e a Convenção 182 para erradicação das piores formas de trabalho infantil, que especifica a erradicação da prostituição infantil; além de outros tratados que asseguram os direitos sociais, econômicos e culturais. Não se pode, portanto, negar que o Brasil já avançou no sentido de elaborar e aprovar instrumentos para combater tantas violações. A própria Constituição brasileira, no artigo 3°, define como “objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I) construir uma sociedade livre, justa e solidária; II) garantir o desenvolvimento nacional; III) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”; e, no artigo 5°, garante o direito de todos à igualdade perante a lei. O Brasil também já aprovou um Plano Nacional de Direitos Humanos; um Plano Nacional de Combate à Exploração Sexual de Crianças e setembro de 2003
Adolescente e as Diretrizes Nacionais para a Erradicação do Trabalho Infantil. No governo Lula, temos as Secretarias Especiais da Mulher; da Criança e do Adolescente; da Promoção da Igualdade Racial e o Ministério da Assistência Social. Toda essa mudança formal e legal refletiu-se também no processo orçamentário e essas questões foram inseridas no PPA 2000/2003, recentemente no PPA 2004/2007, e também transformadas em programas e projetos na Lei Orçamentária Anual. Sendo assim, por que a situação continua tão grave? É preciso analisar a execução orçamentária. A erradicação do trabalho infantil possui, no Ministério do Trabalho, rubricas orçamentárias num total de R$ 2,5 milhões, mas a execução no primeiro semestre de 2003 ficou em R$ 309,5 mil. No MPAS/MAS, o valor para o mesmo objetivo é de R$ 509,4 milhões, com execução de R$ 179,1 milhões. O projeto geração de ocupações produtivas para famílias de crianças atendidas pelo programa de erradicação do trabalho infantil recebeu R$ 49,1 milhões, mas teve execução zero, assim como o projeto Brasil Jovem, que teve R$ 1,3 milhão alocado, e o projeto Implantação de Centros de Juventude, com R$ 3,9 milhões. No Ministério da Justiça e na Presidência da República estão alocados 31 projetos que viabilizariam o trabalho junto a adolescentes em conflito com a lei e a defesa e garantia de direitos de crianças e adolescentes; todos eles tiveram execução zero no primeiro semestre de 2003 e o governador de São Paulo não pára de reafirmar na grande imprensa que o responsável pela situação dos internos na Febem é o Estatuto da Criança e do Adolescente, pedindo o rebaixamento da idade penal.
Também no Ministério dos Esportes estão localizados projetos importantíssimos, como: • Combate ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes; • Campanha educativa de combate ao turismo sexual; • Publicidade de utilidade pública; • Reinserção social do adolescente em conflito com a lei; • Produção de material esportivo para adolescentes infratores - cidadania ao menor; • Esporte solidário; • Esporte em comunidades carentes; • Capacitação de recursos humanos em esporte; • Promoção de eventos esportivos de identidade cultural e criação nacional; • Implantação de infra-estrutura esportiva em assentamentos rurais. Para o Ministério dos Esportes, a dotação orçamentária foi de R$ 246,7 milhões e a execução semestral foi de R$ 2,06 milhões, correspondendo a 0,84% do total. Uma história curta e tímidos resultados Um olhar sobre a implementação dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil mostra, de forma muito clara, por que os resultados no sentido de combater o racismo parecem não impactar a realidade. Desde o Brasil Império, dado o sistema de escravidão, a visão negativa sobre crianças e adolescentes afrobrasileiros se fortaleceu com as leis da abolição dos escravos, particularmente a Lei do Ventre Livre, que fez da Roda dos Expostos12 seu reduto principal. No Brasil República do século XIX, a questão da criança pobre já era entendida como problema social, dadas as circunstâncias históricas da proclamação da República e de suas causas advindas
12 A Roda dos Expostos era um dispositivo cilíndrico rotativo, instalado numa casa e que tinha duas possibilidades, para fora ou para dentro do recinto, onde eram colocadas as crianças enjeitadas anonimamente e, a partir daí, tornavam-se tuteladas pelas Santas Casas de Misericórdia.
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da abolição da escravatura e da imigração de mãode-obra européia, dentre outras, que geravam um contigente significativo de crianças na rua, o que era objeto de muitas críticas em jornais e crônicas que denunciavam essa situação. Por dó ou por medo, tentavam protegê-las, controlando socialmente a situação, por meio de inúmeras instituições de assistência social ou da repressão. Durante a República Velha, predominava no A proteção integral é um preceito que não escalão dirigente a mense concretiza para talidade de que “problemetade da população ma social é caso de políbrasileira, que é cia” 13 , conforme as panegra e, lavras do próprio presi- comprovadamente, a dente da República à mais excluída dos época. Em 1923, foi benefícios sociais promulgada a Lei Orçamentária 4.242, que autorizava serviços de assistência e promoção à infância abandonada e delinqüentes. Neste mesmo ano, criava-se o primeiro Juízo de Menores do Brasil e em 1927 foi instituído o Código de Menores, também conhecido como Código Melo Matos, que permaneceu todo o restante do século. Nas décadas de 30 e 40, foram criadas inúmeras instituições. Por exemplo , em 1938 , a Casa do Pequeno Jornaleiro para crianças que trabalhavam nas ruas; em 1940, criado o Serviço de Atendimento ao Menor – SAM, junto ao Ministério da Justiça, para atuar no combate à criminalidade e na recuperação de delinqüentes. No período da ditadura militar, os resultados trágicos do SAM demonstram a sua falência mas dão origem ao nascimento da primeira política nacional: a “Política de Bem-Estar do Menor”, executada nos estados pelas Febens, que ainda permanecem em alguns estados como São Paulo, coexistindo contraditoriamente com o que preconiza o Estatuto da Crian-
ça e do Adolescente - ECA . Portanto, a concepção do Código de Menores somente passa a ser questionada com a chegada dos ventos da redemocratização do país, nos anos 80, em prol de uma concepção nova que se consolida no ECA como proteção integral. A proteção integral é um preceito que não se concretiza para metade da população brasileira, que é negra e, comprovadamente, a mais excluída dos benefícios sociais. Um investimento social com inversão de prioridades, como já dizia o atual ministro da educação, Cristóvam Buarque14, no sentido da garantia dos direitos universais de crianças e adolescentes, estaria contribuindo para alterar essa realidade. Somente investindo em direitos como educação, saúde, moradia, trabalho e emprego (para os pais), assistência social e reforma agrária seríamos capazes de abalar a estrutura social injusta e excludente de modo que milhões de afro-brasileiros e brasileiras, crianças e adolescentes, pudessem chegar a uma fase de juventude vivenciando a condição de cidadania plena. O Estatuto da Criança e do Adolescente, se em plena vigência no sentido do cumprimento de suas determinações, funcionaria como um instrumento importantíssimo e contribuiria para acelerar o processo de conquista da cidadania. Mas o ECA entrou em vigor em 1990 e a criação de rubricas orçamentárias com recursos para assegurar o reordenamento institucional vem tendo alocação precária. Durante toda a década de 90, o olhar do Poder Executivo sobre os direitos da criança e do adolescente, expresso nas propostas de lei orçamentária enviadas ao Congresso Nacional, permaneceu impregnado pela percepção de tratar estes direitos como ação de assistencialismo e de justiça, e não de cidadania. Essa concepção alongou-se por toda a década nas propostas do Poder Executivo, sem que o Congresso Nacional a alterasse, respaldado na con-
13 GRACIANI, M.S.S. Pedagogia Social de Rua. In Prospectiva – Instituto Paulo Freire. São Paulo, Cortez, 1997. 14 BUARQUE, Cristóvam – “Da modernidade técnica à modernidade ética: revolução nas prioridades” . Inesc, Brasília, 1993
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cepção de uma nova legislação, o Estatuto da Criança e do Adolescente, por ele mesmo aprovado. Aqui também, antes de se propor a garantia de direitos, o que se fez foi priorizar as medidas socioeducativas para o trabalho com o adolescente autor de ato infracional e a única rubrica orçamentária que tivemos, de 1995 a 1999, visava apenas à medida de internação. Nenhuma rubrica havia que propiciasse o desenvolvimento de uma proposta pedagógica junto a esses adolescentes. Durante quatro anos seguidos, a preocupação foi a construção de unidades de internação e foram alocados recursos somente no Departamento da Criança e do Adolescente do O Fundo Nacional da Criança e do Ministério da Justiça. Coexistindo com o Adolescente – FNCA Fundo Nacional da Cri- só recebeu recursos ança e do Adolescente – em 1998, através de uma emenda da FNCA, sob a gestão do Frente Parlamentar Conselho Nacional dos pelos direitos da Direitos da Criança – criança e do Conanda, no qual foi adolescente, no valor aprovada a inclusão de de R$ 12 milhões, e ações para a “Promoção somente 31,18% e Defesa dos Direitos da foram liberados pelo Criança e do AdolesPoder Executivo cente” e para o “Apoio ao Atendimento de Adolescentes Infratores”, a situação não foi alterada. O FNCA só recebeu recursos em 1998 através de uma emenda da Frente Parlamentar pelos direitos da criança e do adolescente, no valor R$ 12 milhões, e somente 31,18% foram liberados pelo Poder Executivo. O próprio Conanda só teve recursos para seu funcionamento em 1999, também através de uma emenda negociada pela Frente Parlamentar, tendo o deputado Hélio Bicudo disponibilizado R$ 500 mil de suas emendas pessoais. O mesmo se deu com outras demandas sociais para as quais era necessário priorizar recursos e implementar programas visando ao enfrensetembro de 2003
tamento da pobreza como uma questão ética, como por exemplo, a luta pela erradicação do trabalho infanto-juvenil, que só entrou no orçamento da União em 1997, como “Apoio ao Combate ao Trabalho Infantil (bolsa-escola)”. Essa proposta não tinha a concepção de enfrentamento através da política de educação, mas sim da política assistencial, uma vez que o Bolsa-Escola permaneceu no Ministério da Previdência e Assistência Social/FNAS. A partir de 2000, a erradicação do trabalho infanto-juvenil passou a integrar também as ações do Ministério do Trabalho, e para os próximos quatro anos junta-se a esses a Presidência da República. Outro problema grave, a exploração sexual de crianças, somente se tornou uma ação na lei orçamentária a partir de 2000, localizada no Departamento da Criança e do Adolescente do Ministério da Justiça, no Ministério da Previdência e Assistência Social/SAS, no Ministério do Turismo e no Ministério do Esporte. Nesses dois últimos, apenas a ação da Campanha de Combate ao Turismo Sexual. Para os próximos quatro anos, essa ação sai do Ministério do Esporte e passa a integrar, além do Ministério da Previdência e Assistência Social/SAS, o Ministério do Turismo, a Presidência da República e o Ministério da Educação. Mas seria importante que também estivesse no Ministério da Integração Nacional, cuja ação visa ao “desenvolvimento da faixa de fronteiras”, local identificado como de alto índice de exploração sexual tanto pela pesquisa da sociedade civil nessas regiões como pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito - CPMI - que atualmente está investigando o tráfico de mulheres e crianças. Quanto às políticas específicas para a população negra, a proposta orçamentária para 2004, que tramita no Congresso Nacional, possui uma série de programas e ações que as organizações sociais como o Movimento Negro precisam conhecer, se apropriar e monitorar. 11
Na Presidência da República/Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial e no Ministério da Assistência Social foram alocados R$ 18,9 milhões para o Programa Gestão da Política de Promoção da Igualdade Racial, contendo 8 ações que beneficiam diretamente aos afro-brasileiros, como concessão de bolsas de estudo no combate à discriminação, apoio a iniciativas de promoção da igualdade racial e apoio à capacitação de afro-descendentes em gestão pública. No Ministério do Desenvolvimento Agrário temos uma ação prevista para “pagamento de indenização aos ocupantes das terras demarcadas e tituladas aos remanescentes de quilombos”, no valor de R$ 3 milhões; e para a “promoção da igualdade de raça, gênero e etnia no desenvolvimento rural”, com R$ 300 mil. No Ministério da Meio Ambiente encontra-se o programa “comunidades tradicionais”, com uma alocação de R$ 800 mil para “Gestão Ambiental em Terras Quilombolas”. No Programa Cultura Afro-Brasileira foram alocados R$ 9,7 milhões: R$1,4 milhão no Ministério da Educação, para “apoio à produção de materiais didáticos e pedagógicos para escolas situadas nas comunidades remanescentes de quilombos” e “apoio à reestruturação de estabelecimentos públicos nas comunidades remanescentes de quilombos”; e R$ 8,3 milhões no Ministério da Cultura/Fundação Cultural Palmares, para “preservação da cultura afro-brasileira” sendo, desses, R$ 3,3 milhões para despesas com pessoal. Algumas ações gerais poderão beneficiar a população negra, muito embora isso não esteja especificado. No Ministério da Educação, temos o “apoio a grupos socialmente desfavorecidos para acesso à universidade”, com R$ 7 milhões; no Ministério da Assistência Social, o “funcionamento dos núcleos de atendimento integral à família”, com R$ 820 milhões; e no Ministério da Cultura, R$ 10,2 milhões para “fomento a projetos de 12
produção e difusão cultural em áreas habitadas por população em situação de vulnerabilidade social”. Também no Ministério do Esporte, o programa “Esportes de Criação Nacional e de Identidade Cultural” possui R$ 750 mil. É importante chamar a atenção para o fato de que algumas ações importantes, como por exemplo, o tratamento e as pesquisas sobre anemia falciforme, não estão lá especificadas. E ainda, que a Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias aprovou a proposta (PLP 217/01) de criação do Fundo Nacional para o Desenvolvimento de Ações Afirmativas - FNDAA, de autoria do deputado Luiz Alberto (PT-BA), que prevê a utilização do Fundo preferencialmente para o desenvolvimento de ações voltadas à população negra, em especial os segmentos situados abaixo da linha de pobreza indicada pelo Índice de Desenvolvimento Humano - IDH, e que tenham no registro de nascimento a denominação de pretos, negros ou pardos. Para concluir, vale lembrar que a execução desses recursos exige uma mobilização permanente da sociedade. Logo após a aprovação da lei pelo Congresso, e a sanção presidencial, o Presidente da República contingencia parte do total geral aprovado, respaldado pela Constituição, visando assegurar uma reserva para possíveis emergências sociais. Portanto, é muito importante manter uma articulação forte de apoio, de modo que os grupos afro-brasileiros, em especial os quilombolas, tenham colaboração técnica para a elaboração e apresentação de projetos que viabilizem o acesso dos recursos e a sua execução. Jussara de Goiás Assessora de Política da Criança e do Adolescente jussarag@inesc.org.br
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