Boletim DCA 23

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23 Ano X • nº 23 • maio de 2009

Publicação do Instituto de Estudos Socioeconômicos - Inesc

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Fortalecimento e a ampliação da legislação e das políticas de direitos das crianças e dos adolescentes

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Projeto Criança e Adolescente: Prioridade no Parlamento é executado pelo INESC, com o apoio financeiro do CONANDA e do UNICEF. Integram o grupo gestor, além das entidades já mencionadas o Fórum DCA, a Frente Parlamentar da Criança e do Adolescente e a ANDI. O Projeto tem como objetivos o fortalecimento e a ampliação da legislação e das políticas de direitos das crianças e dos adolescentes e as ações necessárias para o seu desenvolvimento são: a realização do monitoramento da tramitação das proposições legislativas no Congresso Nacional que impactem nos direitos das crianças e dos adolescentes; o fortalecimento do CONANDA na sua condição de ator estratégico no debate e defesa dos direitos das Crianças e dos Adolescentes no Congresso Nacional; o fortalecimento da

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Frente Parlamentar da Criança e do Adolescente na sua capacidade de articular debates e construir posições dentro do Congresso Nacional e o fortalecimento da sociedade civil para intervir na agenda do Congresso Nacional no que diz respeito aos direitos das crianças e dos adolescentes A partir de janeiro de 2009 começamos a desenvolver nossas ações de mobilização junto ao Congresso Nacional e à sociedade civil, realizando um


mapeamento dos principais temas em pauta, para que esta rede que estamos constituindo possa se mobilizar objetivando preservar e ampliar os direitos das crianças e dos adolescentes. O Projeto prevê o desenvolvimento de um site onde estarão armazenadas as ações desenvolvidas, opiniões, fóruns de discussão e diálogos com a rede de parceiros, além de um software de busca e armazenamento de proposições em tramitação no Parlamento, fazendo a interface Câmara/Senado, para que possamos saber com agilidade o que está em pauta e o que será votado. Dessa forma, poderemos nos mobilizar e manifestar a tempo de fazermos a diferença. O projeto dialoga com outro projeto executado pelo INESC, com apoio da KNH, que é o de formação política em orçamento e direitos com adolescentes de escolas publicas do Distrito Federal. O assunto escolhido para o nosso primeiro boletim é a Maioridade Penal, um dos pontos centrais do ECA- Estatuto da Criança e do Adolescente- e cláusula pétrea em nossa Constituição. O motivo da escolha deve-se ao fato de mais uma vez estarem associando a violência aos adolescentes e jovens. Querendo incriminá-los a qualquer preço, mostrando a eles a força do Estado repressivo, em vez de lhes apresentar os direitos à educação de qualidade, saúde de qualidade, moradia, transporte, lazer, cultura, condições dignas de vida e de futuro. O ECA prevê que aqueles adolescentes que cometem atos infracionais graves devem ficar em instituições educadoras, que mantenham atividades socioeducativas, para que o processo de amadurecimento do jovem não seja comprometido. Mas dizem que isso não é o suficiente, pois querem impu-

tar-lhes penas mais severas e mais cedo, aos 16 anos, como se a parte que cabe ao Estado estivesse cumprida e que a sociedade se preocupasse em fazer o controle social dessas instituições. Nem uma coisa, nem outra, o Estado mantém espaços desumanos que não educam, apenas aumentam a sensação de segregação social; na maioria dos casos as medidas socioeducativas são cumpridas em celas superlotadas, como as dos presos comuns e em condições mais desumanas que nos presídios. A sociedade sente-se aliviada, pois por um tempo ficará livre dos “maus elementos” e controle social é para aqueles providos de “humanidade”. Além disso, sempre que ocorre “algo” com os moradores das zonas nobres de nossas cidades, volta a discussão sobre a maioridade penal, ou o aumento do tempo de internação dos adolescentes, mas nunca se discute que três anos na vida de um adolescente é muito diferente que três anos na vida de um adulto. O adolescente está se socializando, descobrindo o mundo. O tempo flui com outra intensidade, afinal, a perspectiva de tempo de cada um está associada à quantidade de tempo que já viveu. Quando teremos um clamor acerca do que ocorre com a juventude das periferias de nossas cidades? Precisamos ficar atentos às propostas preconceituosas, que têm como objetivo apenas o afastamento do outro, do diferente, aquele que não se quer ver no horizonte próximo, além de ficarmos atentos às falsas estatísticas que não revelam, ao contrário, escondem o descaso a que está submetida a maioria da juventude brasileira, que não precisa de medidas de controle, ao contrário, precisa de medidas que permitam uma formação integral, emancipadora.

Criança & Adolescente: Prioridade no Parlamento - é uma publicação do INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos, em parceria com o Conanda e o Unicef. Apoio Conanda.Tiragem: 1,5 mil exemplares. INESC - End: SCS – Qd, 08, Bl B-50 - Sala 435 Ed. Venâncio 2000 – CEP. 70.333-970 – Brasília/DF – Brasil – Tel: (61) 3212 0200 – Fax: (61) 3212 0216 – E-mail: protocolo@inesc.org.br – Site: www.inesc.org.br. Conselho Diretor: Analuce Rojas, Armando Raggio, David Fleisher, Eva Faleiros, Fernando Paulino, Jurema Werneck, Taciana Gouveia, Luiz Gonzaga, Osvaldo Braga. Colegiado de Gestão: Atila Roque, Iara Pietricovsky, José Antônio Moroni. Assessores: Alessandra Cardoso, Alexandre Ciconello, Cleomar Manhas, Edélcio Vigna, Eliana Graça, Evilásio Salvador, Márcia Acioli,Ricardo Verdum. Assistentes: Ana Paula Felipe, Lucídio Bicalho. Instituições que apóiam o Inesc: Action Aid, CCFD, Christian Aid,Conanda, EED, Fastenoffer, Fundação Avina, Fundação Ford, Fundação Heinrich Boll, IBP, KNH, Norwegian Church Aid, Novib, Oxfam, Solidaridad, e Unicef. Esta publicação utiliza papel reciclado

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Medidas socioeducativas e o adolescente autor de ato infracional O tema A abordagem do tema relativo às medidas socioeducativas leva a uma série de reflexões. Há experiências magníficas em andamento no Brasil, com excelentes resultados, redução de reincidência, comprometimento do Estado e da Sociedade e expressiva eficiência1. A par desAs boas sa situação há fracassos reexperiências, tumbantes, indiferença do Poder Público (Execu- inclusive de privação tivo, como um todo, e Sisde liberdade, tema de Justiça – onde raramente incluo Judiciário, Minisencontram espaço tério Público e Organisna imprensa mos de Segurança e Atendimento) e indiferença da própria sociedade. As boas experiências, inclusive em privação de liberdade, raramente encontram espaço na imprensa para divulgação. Já o contrário é de conhecimento público, em denúncias que se sucedem, constituindo uma situação insuportável e inadmissível; o modelo de atendimento para adolescentes privados de liberdade da antiga FEBEM de São Paulo (agora Fundação CASA), exposta na mídia seguidamente por suas mazelas e violação dos direitos humanos dos adolescentes. É inegável que esses jovens são, em sua esmagadora maioria, antes de qualquer coisa, vítimas de um sistema, do abandono estatal e da família, no mais das vezes. Mas é inegável que também são, ou que também se tornam vitimizadores. Do sucesso no trato da questão infracional, de nossa capacidade de demonstrar o sentido de responsabilização da Lei, que contempla direitos e obrigações, depende o futuro do Estatuto e de toda a proposta magnífica que encerra. Cumpre lembrar que, embora o número de adolescentes autores de ato infracional seja

percentualmente insignificante em face do conjunto da população infanto-juvenil brasileira, a ação desse pequeno grupo tem grande visibilidade. É bom destacar que estamos falando de menos de um por cento da população infanto-juvenil do Brasil, se cotejados os números daqueles adolescentes incluídos em medidas socioeducativas (de privação de liberdade e de meio aberto) com o conjunto da população com menos de dezoito anos. Ainda assim, por conta de uma crise de implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, que resulta de problemas de interpretação do próprio Estatuto (MENDEZ, 2000), as insuficientes ações em face da chamada “delinquência juvenil” acabam sendo contaminadas pela política pública de defesa dos direitos humanos da infância e da juventude brasileira, colocando em risco a proposta de funcionamento de todo sistema. Como as boas experiências não têm suficiente visibilidade, é incutido na opinião pública um sentimento falso de que o modelo de atendimento de adolescentes infratores está fadado a não funcionar. Ao lado disso, os inimigos do Estatuto da Criança e do Adolescente, semeando sofismas e inverdades, propalam aos quatro ventos a idéia falsa de que ele teria se transformado em um instrumento de impunidade, não estabelecendo diferença entre inimputabilidade penal (a vedação de submeter-se o adolescente ao regramento penal imposto aos maiores de 18 anos no Brasil) e impunidade. Por conta de uma série de informações equivocadas que circulam por diversos espaços, em especial pela mídia, é bom que se consigne aqui a experiência européia. Alguns países, como Alemanha, Bélgica, Bulgária, Dinamarca, Espanha (desde o novo Código Penal Espanhol, que revogou a Legislação Penal Franquista), França, Grécia, Holanda, Hungria, Inglaterra, Itália, Romênia, Suécia e Suíça, fixam a idade de responsabilidade penal em 18 anos. Contudo, alguns desses países têm um tratamento diferenciado para o “jovem adulto” (Alemanha, Dinamarca, Espanha e Romênia- 21 anos e Suíça - 25 anos) que poderá, em certas circunstâncias, submeter-se às sanções próprias da adolescência, mesmo já penalmente imputáveis.

1 Suficiente para constatar tal situação as diversas experiências descritas, de norte a sul do Brasil, que se habilitaram ao Prêmio Socioeducando, realizado pelo Governo Federal, ILANUD e diversas organizações em 2008, em múltiplas categorias.

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Esses países prevêem em suas legislações a responsabilização dos inimputáveis (como o Brasil, pelo ECA), com regramentos variados: Alemanha, Áustria, Bulgária, Hungria e Itália a partir dos 14 anos; Bélgica, Portugal e Romênia a partir dos 16 anos; Dinamarca e Suécia a partir dos 15 anos, Espanha e Holanda (como o Brasil) a partir dos 12 anos; França, Grécia e Polônia a partir dos 13 anos e Inglaterra e Suíça, que dão possibilidade de responsabilização de crianças, com sanções especiais, a partir dos sete anos2. O centro do debate remete à situação que MENDEZ definiu como crise de interpretação do Estatuto da Criança e do Adolescente, situando-se na identificação do sistema de responsabilidade que o O Estatuto prevê Estatuto introduziu no soluções adequadas Brasil, em face do adolese efetivas à questão cente autor de ato da chamada infracional. Na medida delinquência juvenil em que se fez a versão brasileira da Convenção das Nações Unidas de Direitos da Criança, pedra angular da Doutrina das Nações Unidas de Proteção Integral dos Direitos da Criança, o Estatuto rompeu o chamado paradigma da incapacidade, para reconhecer na criança e no adolescente a condição de sujeito de direitos, pessoa em peculiar condição de desenvolvimento. Discute-se ainda se o Estatuto contemplou ou não um direito penal juvenil, sancionador do adolescente quando autor de conduta à qual a Lei Penal define como crime ou contravenção3. A certeza que se extrai de todo esse debate é da necessidade de se demonstrar o óbvio. Como diria STRECK, é necessário retirar o óbvio do anonimato, mostrando que o Estatuto prevê soluções adequadas e efetivas à questão da chamada delinquência juvenil. O que nos tem faltado é a efetivação dessas propostas, seguramente por ausência de decisão política, mas não apenas por isso, também pela inação da sociedade, que parece adormecida, especialmente nos centros urbanos maiores, indiferente ao destino de nossas crianças e jovens, prioridade absoluta da Nação brasileira.

Uma reflexão necessária A tese do rebaixamento da idade, em princípio, se faz inconstitucional, pois o direito insculpido no Art. 228 da Constituição Federal (que fixa em 18 anos a idade de responsabilidade penal) se constitui em cláusula pétrea, pois é inegável seu conteúdo de “direito e garantia individual”, referido no Art. 60, capítulo IV, daquele documento, como insuscetível de emenda. Ademais, a pretensão de redução viola o disposto no art. 41 da Convenção das Nações Unidas de Direito da Criança, onde está implícito que os signatários não tornarão mais gravosa a lei interna de seus países. O texto da Convenção se faz Lei interna de caráter constitucional à luz do parágrafo segundo do Art. 5º da CF. Tangenciando a sempre lembrada tese do discernimento - absolutamente descabida, pois é notório que se trata de decisão de política criminal a fixação etária - tal procedimento vem na contramão da história, vide a recente reforma do Código Penal Espanhol que, desde o tempo da ditadura franquista fixava a responsabilidade penal em 16 anos e que foi elevada para 18 anos, com adoção de um modelo de responsabilidade juvenil (semelhante ao do ECA) a partir dos 14 anos. A questão da responsabilização do adolescente infrator e a eventual sensação da impunidade que é passada para a opinião pública decorre não do texto legal nem da necessidade de sua alteração, mesmo se admitindo não ser o Estatuto da Criança e do Adolescente uma obra pronta e acabada, que necessite aprimoramento. A problemática se encontra muito mais na incompetência do Estado, na execução das medidas socioeducativas previstas na Lei, na inexistência ou insuficiência de programas de execução de medidas em meio aberto e na carência do sistema de internamento (privação de liberdade). O modelo preconizado pelo ECA é eficaz e adequado, e estão aí as experiências em que houve uma efetiva aplicação a demonstrar o que afirmo, responsabilizando e recuperando jovens, devendo sim ser efetivado. Em resumo: falhas há e são graves, mas não são falhas de legislação que comprometem essa eficá-

2 Sobre o tema faz-se oportuno que se conheça a realidade européia, consultando, por exemplo, Carlos Vazquez Gonzales (Direito Penal Juvenil Europeo, Madrid: Dykinson, 2005) cuja obra a p. 420 trás atualizada tabela relativa à idade de responsabilização nos países europeus, tabela esta reproduzida neste trabalho ao final. 3 Antônio Fernando Amaral e Silva foi precursor desse debate. Nesse sentido há diversos pronunciamentos na doutrina e na jurisprudência, expresso em súmulas do STJ, e diversas publicações – algumas destacadas na bibliografia mencionada ao final deste trabalho.

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cia; além do mais, é possível aperfeiçoar a legislação, aproveitando a experiência acumulada nesses anos. O erro que subsiste está na execução das medidas, na ausência (ou insuficiência) de investimentos na área e na necessidade de uma organização própria e especializada para o trato de jovens em conflito com a lei, que exigem tratamento diferenciado daquele dedicado a jovens e crianças em situação exclusiva de abandono ou portadores de necessidades especiais. Enquanto se despende energia discutindo redução da idade de responsabilidade criminal, permanecemos ignorando a questão fundamental, qual seja, basta dar meios de execução às medidas que o Estatuto propõe para que os resultados que toda a sociedade afirma desejar O Estado de Direito serão alcançados. se organiza no A natureza jurídica binômio direito/ das medidas dever, de modo que socioeducativas às pessoas em É inegável que o Es- peculiar condição de tatuto da Criança e do desenvolvimento, Adolescente construiu assim definidas em um novo modelo de lei, cumpre ao responsabilização do Estado definir-lhes adolescente infrator. direitos e deveres Quando nosso País rompróprios de sua peu com a vetusta doucondição trina da situação irregular e incorporou a doutrina da Proteção Integral dos Direitos da Criança, promovendo o então “menor”, mero objeto do processo, para uma nova categoria jurídica, estabeleceu uma relação de direito e dever, observada a condição especial de pessoa em desenvolvimento, reconhecida ao adolescente. A sanção socioeducativa, enquanto imposição sem o consentimento do afetado tem, nessa dimensão, evidente natureza de penalidade. O Estado de Direito se organiza no binômio direito/dever, de modo que às pessoas em peculiar condição de desenvolvimento, assim definidas em

lei, cumpre ao Estado definir-lhes direitos e deveres próprios de sua condição. A sanção estatutária, denominada medida socioeducativa, tem inegável conteúdo aflitivo, e por certo essa carga retributiva se constitui em elemento pedagógico imprescindível à construção da própria essência da proposta socioeducativa. Se agir o jovem em legítima defesa, ele, como o penalmente imputável, terá de ser absolvido, mesmo tendo praticado um fato típico. Também não haverá ato infracional, por exemplo, se sua conduta não for culpável (excluindo-se do conceito de culpabilidade o elemento biológico da imputabilidade penal), ou seja, se lhe for inexigível conduta diversa, como legou ao mundo jurídico a doutrina penal alemã4. Poderá o jovem necessitar de alguma medida de proteção, como o acompanhamento e orientação temporários, mas jamais será destinatário de uma medida socioeducativa se o seu agir, fosse ele penalmente imputável, for insusceptível de reprovação estatal. Ou seja, há que ser examinado o cabimento da aplicação da medida socioeducativa ao infrator sob o prisma do Direito Penal, pois é inegável que a medida socioeducativa se constitui em um sancionamento estatal5, tanto que somente o Judiciário pode impôla, mesmo nos casos em que esta venha a ser concertada em sede de remissão - Súmula 108 do STJ. Cabe lembrar que o descumprimento injustificado e reiterado de medida socioeducativa anteriormente imposta pode sujeitar o adolescente à privação de liberdade, nos termos do Art. 122, inciso III, do Estatuto. Mesmo em uma medida socioeducativa em meio aberto, tem o adolescente sobre sua cabeça esta espada do Estado. É inegável, pois, o caráter aflitivo desta imposição. A inimputabilidade penal do adolescente, cláusula pétrea instituída no Art. 228 da Constituição Federal, significa fundamentalmente a insubmissão do adolescente por seus atos às penalizações previstas na legislação penal, o que não o isenta de responsabilização e sancionamento. Não é compreensível a obstinada oposição de alguns ao conceito de Direito Penal Juvenil inserto

4 O tema da culpabilidade, enquanto juízo de reprovação, não pode ser desconsiderado, na pretensão do Estado, na imposição da resposta socioeducativa, sob pena de instaurar um modelo de responsabilização objetiva, inaceitável em face ao estágio de avanço da ciência penal. 5 A jurisprudência de nossas Cortes Superiores são reiteradas no sentido do caráter sancionatório da Medida Socioeducativa, bastando consultar os arestos que deram origem às súmulas do STJ, a saber: Súmula 108: A aplicação de medidas socioeducativas ao adolescente, pela pratica de ato infracional, e da competência exclusiva do Juiz. Súmula 265: É necessária a oitiva do menor infrator antes de decretar-se a regressão da medida sócio-educativa. Súmula 338: A prescrição penal é aplicável nas medidas socioeducativas. Súmula 342: No procedimento para aplicação de medida socioeducativa, é nula a desistência de outras provas em face da confissão do adolescente.

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no Estatuto. Afinal assim o é definido em todos os países da América Latina6 onde houve a recepção em seus sistemas legislativos da Doutrina da Proteção Integral, nos termos da Convenção, cujo modus operandi é idêntico ao adotado no Brasil, assim como na Europa7.

Os Eufemistas e as Crianças no Brasil Quando se pugna pela exigibilidade de um procedimento calcado nas garantias processuais e penais na busca da fixação da eventual responsabilidade do adolescente, o que se pretende é vê-lo colocado na sua exata dimensão de sujeito de direitos. A medida socioeducativa adequadamente aplicada será sempre boa, mas somente se o adolescente se Uma boa rede de fizer sujeito dela, ou seja, atendimento, um somente será boa se nebem estruturado cessária, e somente será programa de necessária quando cabíLiberdade Assistida vel, e somente cabível nos ou de Prestação de limites da legalidade, obServiços à servado o princípio da Comunidade é capaz anterioridade penal. de prevenir a Se não há ato internação infracional, não se pode pensar em sanção. Podese ver o adolescente inserido em programas de proteção, mas não em programas socioeducativos, na forma como se organiza o Estatuto, que faz uma clara e explícita distinção entre medidas de proteção (Art. 101) e medidas socioeducativas (Art. 112). Aquelas são passíveis de terem como destinatários crianças e adolescentes vitimizados, e estas têm como alvo apenas adolescente a quem se atribua a prática de ato infracional, vitimizadores. As Medidas Socioeducativas O Estatuto prevê dois grupos distintos de medidas socioeducativas. O grupo das medidas socioeducativas em meio aberto, não privativas de liberdade (Advertência, Reparação do Dano, Prestação de Serviços à Comunidade e Liberdade Assistida) e o grupo das medidas socioeducativas priva-

tivas de liberdade (Semiliberdade e Internação). A maior parte do debate na questão das medidas socioeducativas tem surgido a partir da permanente crise do sistema de internação. É necessário destacar que há bons exemplos de internação de adolescentes funcionando no Brasil, embora se reconheça que há muito que avançar. O processo de regionalização de atendimento em curso em diversos Estados da federação é um avanço. Nessa questão cumpre mais uma reflexão: em Privação de Liberdade encontram-se, predominantemente, adolescentes autores de atos infracionais sérios, com violência à pessoa e grave ameaça: estupro, latrocínio, homicídio, roubo. O período máximo de internação por até três anos tem sido argumento para afirmar uma suposta fragilidade do Estatuto. O fato é que três anos na vida de um adolescente é muito tempo. Uma boa rede de atendimento, um bem estruturado programa de Liberdade Assistida ou de Prestação de Serviços à Comunidade é capaz de prevenir a internação. Há falha grave no sistema de atendimento em meio aberto e a consequência imediata disso é o inchamento do sistema de privação de liberdade. Este, por seu turno, devido à ausência de investimentos, de decisão política, tem sido causa de violência e atentados aos direitos humanos.

Medidas socioeducativas em meio aberto Enquanto em relação às medidas socioeducativas que importam em privação de liberdade resta pacificado o entendimento de que a efetivação dos programas de atendimento é de competência do Executivo das Unidades Federadas, as Medidas Socioeducativas de Meio Aberto, Liberdade Assistida - LA e Prestação de Serviços à Comunidade PSC devem ser operacionalizadas através de programas Municipais. A advertência, a mais branda das medidas preconizadas pelo Art. 112, alínea I do ECA, esgota-se na admoestação solene feita pelo Juiz ao infrator em audiência especialmente pautada para isso; enquanto a reparação do dano supõe um procedimento de

6 Por exemplo, a legislação da Costa Rica, cujo sistema de tratamento ao adolescente em conflito com a Lei é praticamente idêntico ao adotado no Brasil, com praticamente as mesmas medidas socioeducativas previstas como sancionamento às condutas infracionais, como pode ser visto em Armijo, Gilbert. “Manual de Derecho Procesal Penal Juvenil” – 1ª ed. – San José – Costa Rica: IJSA, 1998. 7 Carlos Vazquez Gonzales disserta sobre o tema em “Derecho Penal Juvenil Europeo”. No Brasil, Sergio Salomão Shecaira oferece um panorama da legislação internacional em “Sistemas de Garantias e Direito Penal Juvenil”

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execução de medida que se exaure na contraprestação feita pelo adolescente, consoante estabelecido em sentença e cientificado o infrator em audiência admonitória. As medidas de Prestação de Serviços à Comunidade – PSC - (Art.117 do ECA) e de Liberdade Assistida (Arts. 118 e 119) têm-se revelado as mais eficazes e eficientes entre as propostas do Estatuto. A exemplo da prestação de serviços à comunidade prevista para o imputável como pena alternativa pelo Código Penal, a medida socioeducativa correspondente pressupõe a realização de convênios entre o órgão coordenador do programa e os demais órgãos governamentais ou comunitários que permitem a inserção do adolescente em programas que prevejam a realização de As medidas tarefas adequadas às ap8 socioeducativas que tidões do infrator . importam em Medidas privativas privação de de liberdade liberdade hão de ser COSTA (2005) nos norteadas pelos ensina sobre os três prinprincípios da cípios fundamentais da brevidade e medida socioeducativa excepcionalidade privativa de liberdade, com raiz na Constituição Federal, em seu Art. 227, § 3º, inciso V, a saber: I. Princípio lógico: o princípio da excepcionalidade, ou seja, a privação de liberdade se constitui na ultima ratio do sistema, sendo acionada como alternativa final em face do interesse público, com interpretação restritiva dos elementos estabelecidos no Art. 112, § 1º do ECA, em combinação com os Arts. 122, 99 e 100, na forma do Art. 113 daquele diploma legal. II. Princípio cronológico: o princípio da brevidade, na medida em que ao adolescente deve ser estabelecido um tratamento mais favorável que ao adulto, limitando-se o período de privação de liberdade ao mais breve possível enquanto caráter retributivo, de modo a não comprometer a finalidade pedagógica pretendida. Dessa forma, pode-se minimizar

os efeitos da inevitável contaminação que a internação acaba por produzir, por mais adequado que seja o projeto pedagógico desenvolvido. III. Princípio ontológico: o princípio da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Rompendo com a lógica da incapacidade, reconhece o adolescente como um sujeito em formação. Tem origem em outro princípio, extraído da Convenção das Nações Unidas de Direitos da Criança, a saber, o princípio da autonomia progressiva, pelo qual a criança e depois o adolescente, avançam paulatinamente no exercício pessoal das prerrogativas próprias da cidadania, enquanto sujeitos de direito, com direitos e deveres próprios dessa condição de desenvolvimento, passando a ser considerados afirmativamente, como seres humanos em crescimento e não mais como meias-pessoas, incompletas ou incapazes. Dessa forma as medidas socioeducativas que importam em privação de liberdade hão de ser norteadas pelos princípios da brevidade e excepcionalidade, consagrados no Art. 121 do ECA, respeitada a peculiar condição de pessoa em desenvolvimento. Cumpre destacar, porém, que a decisão pelo internamento deverá ocorrer “em última alternativa”, como expressamente disposto no § 2º do Art. 122, considerado o princípio da excepcionalidade, de caráter norteador do sistema9. Não será pelo fato de existirem as unidades que se tornará rotineira a internação, limitadas que estão aos expressos casos em que outra solução não houver, observados os critérios objetivos e subjetivos da Lei. Porém, se não existir engajamento e comprometimento de Juízes e Promotores de Justiça para com o Estatuto, tampouco uma defesa técnica atuante e altiva em favor do adolescente, o risco da rotina da internação existirá, em especial se os programas socioeducativos em meio aberto não forem efetivados e disponibilizados. Esse risco se torna ainda maior enquanto não houver consciência de que a medida socioeducativa tem uma natureza sancionadora, pelo que somente

8 Experiência gratificante de cumprimento de Medida Socioeducativa de Prestação de Serviços à Comunidade tem sido possível nas APAEs. Sendo contra o patrimônio a maioria dos delitos praticados por adolescentes, ou seja, o delito do “TER”, a inclusão desses adolescentes em programas que lhe permitem participar do atendimento dos usuários das APAEs tem proporcionando uma nova perspectiva em face do “SER”, com bons resultados ao final. 9 No Rio Grande do Sul, desde a regionalização dos Juizados da Infância e Juventude com competência de Execução de Medidas Socioeducativas privativas de liberdade (Lei Estadual 9.896 de 09.06.1993) vive o Estado interessante experiência. Visa a iniciativa gaúcha garantir que as medidas privativas de liberdade sejam cumpridas pelo adolescente o mais próximo possível de sua cidade de origem, evitando a crônica centralização das internações na Capital, problema de quase todos os Estados Federados, descentralizando a internação em municípios pólo.

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deve ser aplicada nos casos expressos em lei, com observância rigorosa das garantias constitucionais, processuais e penais previstas no sistema legal.

Bibliografia AMARAL e SILVA, Antônio Fernando do. O mito da inimputabilidade Penal do Adolescente. In: REVISTA DA ESCOLA SUPERIOR DA MAGISTRATURA DO ESTADO DE SANTA CATARINA, v. 5, Florianópolis: AMC, 1998 ARMIJO, Gilbert. Manual de Derecho Procesal Penal Juvenil. San José - Costa Rica: IJSA, 1998. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1988. BRASIL. Lei nº8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. 5.ed. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 2005. COSTA, Ana Paula Motta. As Garantias Processuais e o Direito Penal Juvenil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. CURY, M.; AMARAL e SILVA, A.; MENDEZ, E.G. (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado - Comentários Jurídicos e Sociais. São Paulo: Malheiros, 1992. KONZEN, Afonso Armando. Pertinência Socioeducativa: reflexões sobre a natureza jurídica das medidas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. MACHADO, Martha de Toledo. A Proteção Constitucional de crianças e adolescente e os direitos humanos. São Paulo: Manole, 2003 MENDEZ, Emílio Garcia. Derecho de la infanciaadolescencia en América Latina: de la situación irregular a la proteción integral. Bogotá: Forum Pacts, 1994.

___________. Infância e Cidadania na América Latina. São Paulo: Hucitec/Instituto Ayrton Senna, 1998. ___________. Adolescentes e Responsabilidade Penal: Um debate Latinoamericano. Porto Alegre: AJURIS, ESMP-RS, FESDEP-RS, 2000. ___________.Adolescentes y Responsabilidad Penal. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2001. ___________. Infância, Ley y Democracia em América Latina. Bogotá: Editorial Temis: 2. ed. vv.I e II, 2004. SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em conflito com a Lei: da indiferença à proteção integral. Uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. ___________. Compêndio de Direito Penal Juvenil. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. SÊDA, Edson. Os Eufemistas e as Crianças no Brasil. Rio de Janeiro: Mimeo, 1999 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Sistema de Garantias e o Direito Penal Juvenil. São Paulo: RT, 2008. SOTOMAYOR ,Carlos Tiffer. Ley de justicia penal juvenil - Comentada y Concordada. San José – Costa Rica, C.R.: Juristexto, 1996. SPOSATO, Karyna Batista. O Direito Penal Juvenil. São Paulo: RT, 2006. STRECK, Lênio. www.leniostreck.com.br, acesso em abril de 2009. VÁZQUEZ González, Carlos. Derecho Penal Juvenil Europeo. Madrid: Dykinson, 2005. João Batista Costa Saraiva é juiz de Direito, titular do Juizado Regional da Infância e Juventude da Comarca de Santo Ângelo, RS.

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Inclusão social ou inclusão criminal?

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A pergunta que não quer calar é: por que parte da Sociedade e do Estado, em muitas circunstâncias, trata segmentos sociais como sujeitos, especialmente se for para puni-los, e trata os mesmos segmentos sociais como assujeitados, quando se trata da garantia de seus direitos? Para se discutir idade penal é preciso levar em consideração as lógicas que regem nossos olhares e encontrar um ponto de partida para o diálogo. O Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA funda-se em alguns princípios que constituem uma nova abordagem. O princípio A proteção integral que lhe dá sustentação é o considera que paradigma da Proteção Integral. Este exige a articucrianças e lação harmônica entre Esadolescentes são tado, sociedade e família cidadãos e cidadãs para assegurar que crianças hoje, e não de um e adolescentes vivam e cresinatingível depois çam em condições igualitárias, com dignidade e oportunidade para o desenvolvimento integral de todas as suas potencialidades. A proteção integral considera que crianças e adolescentes são cidadãos e cidadãs hoje, e não de um inatingível depois, encontrando-se em uma fase peculiar de sua existência. Assim, segue a nova normativa, que foi construída por milhares de mãos. Uma lei que nasceu do movimento popular, com envolvimento de inúmeros segmentos da sociedade. Foram envolvidos pessoas e profissionais que trouxeram estudos e fundamentos não somente jurídicos, mas também de natureza pedagógica, sociológica, psicológica, econômica e cultural. O que estava em vigor até então, o Código de Menores, não protegia satisfatoriamente. Pelo contrário, responsabilizava a própria criança ou adolescente pelo abandono em que se encontrava. Era necessário, portanto, construir urgentemente um novo modelo para responder às arbitrariedades que permitiam o recolhimento de meninos e meninas pobres (normalmente negras) às masmorras das FEBEM pelo fato de estarem nas ruas à procura de sobrevivência física e emocional,

filhos de pais abandonados que torturavam seus filhos ou que também os abandonavam à própria sorte; colocar um ponto final à matança de meninos pobres que ‘ameaçavam’ a sociedade e às instituições que mais excluíam do que ofereciam cidadania. Problemas que persistem, mas agora com um novo cenário jurídico. O estranho é que, justo os meninos e meninas que viviam cotidianamente a violência em suas próprias peles, de forma direta e extremada; que eram obrigados a assumir o trabalho precoce e árduo; que viviam a falta de oportunidade de acesso à escola de qualidade; que sofriam de doenças em decorrência de alimentação inadequada e da falta de saneamento básico é que eram percebidos/as como ameaça. Permanecemos nadando contra a maré. Por maior que tenha sido a mobilização para a construção de um novo marco legal, a sociedade ainda se alimenta da lógica anterior, na qual o abandono e a negligência são atribuídos às próprias vítimas. É nesse contexto que se dá o recrudescimento do debate sobre a idade penal. A pressão de uma mídia voltada aos interesses de alguns setores de maior poder ajuda a formar e consolidar opiniões sem que seja considerada a extrema complexidade do problema.

Cabe entrar no mérito da lei Aos/Ás adolescentes em conflito com a lei, autores/ as de atos infracionais, são destinadas medidas socioeducativas, que variam conforme a gravidade do ato cometido. Considerando-se a fase do desenvolvimento, a medida tem efeitos pedagógicos capazes de reverter a relação do/a adolescente com a sociedade. Não se trata de um perdão vazio de sentido, muito menos de impunidade. Trata-se de uma lei pedagógica que leva em conta a “adoção de mecanismos de acompanhamento do processo de maturidade e construção de autonomia”, segundo Rudá (2009). Levando em consideração que os/as adolescentes estão em processo de crescimento e formação de identidade, as medidas devem ser educativas, especialmente aquelas que restringem a liberdade. A internação é a medida mais radical, que afasta os/as adolescentes da convivência social por terem cometido atos de maior gravidade. Nesse momento é necessário um empenho pedagógico, que favoreça mudanças no rumo da formação desses/as jovens.

1 Título retirado da fala de um adolescente do Centro de Ensino Médio 3, de Ceilândia - DF.

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No entanto, a internação é a medida mais sujeita à má aplicação, uma vez que, além de estar longe dos olhos da sociedade, não é explícita para a família e muito menos para a população, dificultando, senão impedindo, o controle social sobre o poder público responsável pela medida. A própria população, por sua vez, se afasta pelo temor decorrente da infeliz marca que a instituição carrega e pelo estigma atribuído ao público atendido. A cultura autoritária e policialesca que impera nesses ambientes cala os/as jovens mediante constantes ameaças, quando não torturam com requintes de crueldade, e “a paz sem voz, não é paz, é medo”, como nos lembra a canção do grupo O RAPPA. A intenção é torná-los dóceis, obedientes e conformados ao invés de formar sujeitos conscientes, autônomos e capazes de expressar opiniões. É salutar a inquietação perante o injusto, portanto, nenhum projeto pedagógico deverá abafar o espírito crítico da juventude, mas contribuir para fazer da crítica uma ação transformadora. Além do mais, ao retornar à convivência em sociedade, o/a adolescente não pode ter o seu processo de amadurecimento comprometido por tratamentos desumanos. Longe dos olhos do público, o desrespeito aos direitos humanos dos/as adolescentes nos chega por meio da denúncia corajosa de cidadãos e cidadãs que, indignados, trazem à tona situações inimagináveis. O caso da adolescente presa em Abaetetuba-PA, em uma cela lotada com homens adultos, em 2008, é um dos casos que envergonha o país. Outro exemplo foi noticiado pela revista Carta Capital, em sua edição 541 de 15 de abril de 2009, que denunciou algumas instituições (em substituição às antigas FEBEM), em especial em São Paulo, que burlam o ECA e mantêm adolescentes presos/as após o término do período de internação, alegando que esses/as jovens possuem algum transtorno mental e precisam de tratamento; no entanto, sequer as famílias têm acesso aos laudos médicos que confirmem a alegação. Esses/ as adolescentes em conflito com a lei são submetidos ao que se intitula por “algemas medicamentosas”, pois são constantemente mantidos/as sob aplicação de remédios para se manterem “dóceis”. Não se sabe exatamente o estrago que será causado na formação de jovens expostos/as a tais práticas. Atitudes como essa, mesmo após a aprovação do ECA, que veio com o intuito de regulamentar e garantir os direitos das crianças e adolescentes, nos levam a 10

acreditar que o momento é de retrocesso, até mesmo pelos inúmeros projetos em tramitação no Congresso Nacional, objetivando a restrição de direitos. Os projetos mais extremados pedem a redução da idade penal. Parlamentares conservadores argumentam que os/as jovens são responsáveis pelo aumento da criminalidade, sem base em pesquisas ou em dados concretos da realidade. O objetivo é apenas tirar do horizonte uma quantidade de adolescentes (especialmente pobres e negros/as) que transitam pela vida sem que o Estado e a sociedade cumpram o papel de protegê-los/as, além de faltarem com a obrigação de contribuir para a formação de cidadãos de direitos. Há muito se fala de escola em tempo integral, mas as iniciativas não passam de pequenos pilotos e não se transformam em políticas públicas de Estado, que independem de promessas eleitorais. Também as políticas de erradicação do trabalho infantil não obtiveram sucesso. Continuamos testemunhando crianças sendo afastadas da possibilidade de uma formação integral, pois são obrigadas a entrarem muito cedo no mundo adulto. E é esse mundo adulto que as submetem às situações de violência, e não o contrário. O caminho proposto por parte da sociedade que domina as instituições é sempre invertido. Ou seja, criminaliza a consequência em vez de criminalizar a causa. Impõe deveres rígidos antes de apresentar os direitos. O grande desafio tem sido assegurar que o Estado garanta a aplicação da lei na sua integridade, destinando recursos financeiros suficientes para a sua efetivação, prevendo até mesmo a construção de prédios adequados e recursos humanos para a constituição de projetos pedagógicos diferenciados e eficientes. Outro desafio importante é envolver as comunidades dos/as adolescentes na tarefa de ajudá-los no processo de amadurecimento, garantido um olhar cuidadoso e acompanhamento criterioso, conforme prevê a lei. Há ainda em tramitação o SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, projeto de lei que apresenta normas de acordo com o ECA, para padronizar os procedimentos jurídicos que vão desde a apuração do ato infracional até a aplicação das medidas socioeducativas. Dentre as mudanças, consta uma nova concepção arquitetônica para a medida de privação de liberdade, que seja educativa em si, com espaços destinados à atividades físicas e, fundamentalmente, ao atendimento de, no máximo, 90 adolescentes por vez. maio de 2009


A despeito das adversidades, não faltam bons exemplos para mostrar que o ECA tem razão e é viável. Por todo o país ocorrem iniciativas que investem na valorização de dimensões humanas dos meninos e das meninas em conflito com a lei, que certamente implicam numa nova postura perante a sociedade e numa ampla revisão da própria vida. O que cabe decidir num momento de muita pressão é: queremos um modelo em que cada vez mais jovens envolvidos/as em atos infracionais são conduzidos às prisões, cujas realidades não ensinam nada além da violência, ou queremos a aplicação exemplar da lei que apresenta medidas que educam, que visam mudanças nas relações e oferecem alternativas para sair do contexto e ciclo de violência e violação de direitos?

Bibliografia BRASIL. Lei nº8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. 5.ed. Brasília: Senado Federal, 2005. CRISÓSTOMO, Eliana C. R; NUNES, Irineide da Costa S.; SILVA, José Fernando da; BIERRENBACH, Maria Ignês (org). A razão da idade: mitos e verdades. Brasília: Ministério da Justiça, 2001. RICCI, Rudá. O erro premeditado quando as medidas socioeducativas se transmutam em punição. 2009 (MIMEO) Cleomar Manhas é assessora do Inesc Márcia Acioli é assessora do Inesc

Opinião dos parceiros a respeito da redução da maioridade penal INESC O INESC tem como missão a defesa incondicional dos direitos humanos e de melhores condições de vida para a sociedade em geral e para as crianças e adolescentes em particular. E acredita que esta parcela da população não está carente de medidas repressoras, ao contrário, está carente de cuidados, educação, moradia, lazer, melhores condições de vida para serem felizes e se desenvolverem plenamente, física e emocionalmente. Portanto, o INESC é defensor ferrenho da manutenção da idade penal aos dezoito anos, além de defender a qualidade das medidas socioeducativas, e do cumprimento do que está no texto da Lei, ou seja, na Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente- ECA.

paritariamente, por membros do governo e da sociedade civil, o Conanda tem como missão principal a promoção, a defesa e a garantia integral dos direitos da criança e do adolescente. Nesse sentido, tendo em vista que a Constituição Federal Brasileira de 1988 considerou que a inimputabilidade penal é direito e garantia fundamental de todas as pessoas com menos de 18 anos (crianças e adolescentes), isto significa que o adolescente não responde criminalmente quando comete atos infracionais (crimes ou contravenções), mas responde conforme a legislação especial (ECA). O artigo 60, parágrafo 4, inciso 4, da Constituição Federal dispõe que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais”.

CONANDA

UNICEF

O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) vem a público manifestar-se contra a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que reduz a idade penal de 18 para 16 anos por considerá-la inconstitucional e comprometedora da imagem e da credibilidade do país com relação aos compromissos internacionais assumidos, como a Convenção sobre os Direitos da Criança e do Adolescente da Organização das Nações Unidas (ONU), ratificada pelo país em 1990. Como principal órgão do sistema de garantias dos direitos da criança e do adolescente no país, criado pelo próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e formado,

Pelo direito a oportunidades O UNICEF posiciona-se contrário à redução da idade penal. O Brasil não pode esquecer-se de que a violência é um fenômeno provocado por muitas causas, entre elas as desigualdades sociais, o racismo, a concentração de renda e a insuficiência das políticas públicas. A redução da idade penal não resolve nenhuma dessas causas. O UNICEF está comprometido em apoiar o desenvolvimento de soluções verdadeiras que garantam a vida, a justiça, a paz, a proteção das pessoas e o desenvolvimento de adolescentes e jovens por meio de experiências que fortaleçam as famílias e garantam aos jovens outros caminhos,

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muito diferentes do que o mundo do crime organizado por adultos oferece. Essa é uma das prioridades do trabalho do UNICEF no Brasil.

Fórum Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente Em função da crescente circulação de informações sobre a votação de propostas que reduzem direitos infanto-juvenis, o Fórum Nacional DCA volta a público para reafirmar sua posição contrária à redução da maioridade penal ou ao aumento do tempo de internação de adolescentes envolvidos em atos infracionais. Para o Fórum Nacional DCA, a solução para reduzir a violência infanto-juvenil é a implementação efetiva do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) e o investimento de recursos em políticas públicas que assegurem os direitos da criança e do adolescente.

Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente – Opinião da senadora Patrícia Saboya (PDT-CE), Coordenadora da Frente “No Brasil, o debate em torno da redução da maioridade penal sempre acontece em momentos de comoção nacional – geralmente na esteira de algum crime brutal envolvendo a participação de adolescentes. Nesse cenário permeado pela indignação da sociedade, cada vez mais cansada de pagar impostos e não ter de volta do Estado a garantia dos serviços públicos básicos, é tarefa complexa refletir com maior profundidade sobre a questão da violência e sua relação com

os jovens. Mas é importante destacar que diminuir a idade penal não vai resolver o problema da violência. Lamentavelmente, nossos adolescentes são mais vítimas do que algozes nessa triste guerra. Segundo dados do UNICEF, 16 crianças e adolescentes brasileiros morrem, por dia, vítimas da violência. E as pessoas com idades entre 15 e 18 anos representam 86,35% dessas vítimas. Por outro lado, no universo de crimes praticados no Brasil, os delitos cometidos por adolescentes não chegam a 10%, sendo que a grande maioria é contra o patrimônio e não contra a vida. Portanto, não adianta querer resolver esse problema colocando nossos jovens mais cedo em cadeias superlotadas que são, na realidade, verdadeiras escolas para a criminalidade. Temos que cumprir o Estatuto da Criança e do Adolescente. Em vigor desde 1990, o ECA é um importante instrumento de coerção e prevê o tratamento dos jovens em conflito com a lei como sujeitos de direitos e de responsabilidades. Precisamos também melhorar nossas políticas públicas, investindo em educação, saúde, moradia, saneamento básico, cultura, esporte e lazer. Investindo na adoção da escola em tempo integral; na melhoria do atendimento e da atenção às gestantes e seus bebês; na licença-maternidade de seis meses; na promoção de uma verdadeira cultura de paz com a participação da família, da escola e dos profissionais de saúde e assistência social; na oferta de cursos extracurriculares e profissionalizantes que sejam realmente capazes de preparar a juventude para a inserção no mundo globalizado de hoje; e na melhoria das condições de vida das famílias dessas crianças adotando estratégias de geração de emprego e renda e de atendimento psicossocial”.

Projetos em Tramitação sobre a Maioridade Penal Projeto de Decreto Legislativo (PDC) 1002/2003 Está na pauta da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), da Câmara dos Deputados. O objetivo do projeto é a convocação de plebiscito para consulta popular acerca da redução ou não da maioridade penal. Tramita em conjunto com PDC 1028/2003, PDC 1144/2004 e PDC 1579/2005. Está aguardando para entrar em pauta na Comissão com parecer pela inconstitucionalidade e no mérito pela rejeição.

2000, PEC 321/2001, PEC 37/1995, PEC 91/1995, PEC 301/1996, PEC 531/1997, PEC 68/1999, PEC 133/1999, PEC 377/2001, PEC 582/2002, PEC 64/ 2003, PEC 179/2003, PEC 272/2004, PEC 302/2004, PEC 345/2004, PEC 489/2005, PEC 48/2007, PEC 73/ 2007, PEC 85/2007, PEC 87/2007, PEC 125/2007. Está desde 2007 aguardando para entrar em pauta na Comissão e o parecer, a despeito da inconstitucionalidade da medida, é pela constitucionalidade e admissibilidade.

Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 171/1993 Está na pauta da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), da Câmara dos Deputados. Propõe a alteração da redação do art. 228 da Constituição Federal estabelecendo a imputabilidade penal a partir de dezesseis anos. Tramita em conjunto com PEC 150/1999, PEC 167/1999, PEC 169/1999, PEC 633/1999, PEC 260/

Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 20 de 1999 - Está na pauta da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), do Senado Federal. Propõe a alteração do artigo 228 da Constituição Federal, reduzindo de 18 para 16 anos a idade para imputabilidade penal. Tramita em conjunto com a PEC 3/ 2001; PEC 26/ 2002; PEC 90/ 2003; e PEC 9/ 2004.

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