Leonardo Da Vinci
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As Notas de Cozinha “O Códex Romanoff” de Leonardo da Vinci Design e Ilustração Inês Dias Projecto Académico ESAD 2013, Março UC Projecto II Proposta 05 “As Notas de Cozinha” Prof. Margarida Azevedo Software Adobe InDesign CS6, Photoshop CS6 Tipografia: Moonshiner, Courier
nota introdutoria doutor marino albinesi promotor de justiça em Roma e presidente do Circolo Enogastronomico d’Italia
Causou sempre uma certa estranheza o facto de alguém tão curioso em relação a tudo, como era o caso de Leonardo da Vinci, ter deixado um espólio tão reduzido em termos de referências relevantes acerca da comida e da culinária. Isto, num homem cuja maior e mais conhecida realização pictórica, essa representação de parcimónia culinária denominada A Última Ceia, em que gastou três anos da sua vida, abordava tanto questões de comida como valores espirituais. Isto num homem que no seu testamento deixou uma parcela considerável dos seus bens a um ser muito particular: a sua cozinheira, Battista de Villanis. Isto num homem que, durante toda a sua vida, se interessou tanto por alimentação e culinária como por projectos de pinturas e fortificações, além de investigar inúmeros outros assuntos que despertavam a sua curiosidade. Realmente, o seu interesse pela culinária foi mais activo do que em outro domínio qualquer. Teve mesmo de o ser. Não apenas quando ainda pouco mais era do que um rapazinho e conseguia algumas dispensas das obrigações que o retinham no estúdio de Verrochio, trabalhando, para realizar algum dinheiro de
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bolso, nas cozinhas de um botequim florentino; não apenas na altura em
texto genuíno de Leonardo da Vinci esta cópia de um manuscrito Italia-
que, de parceria com Sandro Boticelli, tentou abrir o seu próprio bo-
no, que trata quase exclusivamente de comida, e que parece ter surgido
tequim; mas, muito especialmente, nas suas aptidões como mestre das fo-
vinda de parte nenhuma.1
lias e banquetes na corte dos Sforza – e convém recordar que desempenhou
Que sentido deveremos atribuir à breve nota que encabeça esse manus-
esse cargo durante mais de treze anos – o que implicava um conhecimento
crito, e que diz: “Este é o texto que eu, Pasquale Pisapia, copiei
vasto, e muito próximo, dos assuntos de alimentação. Todavia, o núme-
por extenso a partir do manuscrito de Leonardo da Vinci, que agora se
ro de referências à comida e à bebida nos cadernos de apontamentos de
encontra no Ermitage, em Leninegrado”? Quem era, ou quem é, Pasquale
Leonardo conhecidos até hoje é por assim dizer, mínimo – meia dúzia de
Pisapia? Como se explica ser ele a única pessoa a ter tido conhecimento
generalizações e alguns aforismos, mas nem uma só menção ou receita,
do manuscrito? E, tendo os funcionários do Ermitage negado que tal obra
depois de todo o tempo que viveu na corte dos Sforza.
de Leonardo existia no seu museu, é tarefa complemente inglória procu-
Hoje, numa tentativa para preencher esta lacuna, é-nos apresentado fi-
rar fundamentar a sua autenticidade, para já não falar da sua própria
nalmente aquilo a que um número cada vez maior de pessoas, incluindo
existência. (Ainda que não me custe nada reconhecer que, ainda não há
os presentes autores, designam por Codex Romanoff e até a minha velha
muito tempo, os Russos “negaram” muitas outras coisas).
amiga, Shelagh Marvin Routh, que, juntamente com o marido Jonathan, passou muitos anos em busca desta pista culinária de Leonardo, tem de
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admitir que não há absolutamente nenhuma forma de de autenticar como
1.falo aqui em termos metafóricos, mas até ao momento em que aristocrática família do Piemonte (alegadamente avessa a toda a forma de publicidade e em cuja posse, segundo consta, o dactiloscrito se encontra desde a última guerra) vier a público fornecer uma explicação satisfatória, “de parte nenhuma” continua a ser a expressão que prefiro usar.
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Reconhecido como um dos maiores génios da humanidade em função de seu inigualável talento artístico e de sua grande capacidade inventiva, Leonardo da Vinci tinha um lado menos conhecido, mas igualmente interessante e curioso, o de chef de cozinha e inventor de utensílios culinários. Ele trabalhou como cozinheiro em alguns restaurantes de Florença, cidade na qual foi sócio de Sandro Boticelli numa cantina. ‘Os Cadernos de Cozinha de Leonardo da Vinci’ recupera os apontamentos feitos pelo grande mestre renascentista que foram escritos durante sua estada no palácio de um de seus mecenas, Ludovico Sforza, Senhor de Milão. O livro reflete os diferentes interesses do grande pensador renascentista. Nele foram compiladas receitas culinárias, com a inclusão de comentários sobre a preparação dos pratos. Apesar de muitas receitas serem destinadas a banquetes, saindo, assim, do alcance da cozinha doméstica, o leitor encontrará uma grande quantidade de pratos de fácil preparo, como o Caldo de grão-de-bico e a Chuleta.
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Em 1980 foi descoberto o codex romanoff ou, para simplificar, os “cadernos de cozinha” de leonardo da vinci. não há, evidentemente, comprovação total de que os registos anotados nesse documento tenham sido produzidos pelo gênio maior do renascimento. Entretanto, existem vários indícios nos escritos que nos permitem supor que essa relíquia seja autêntica. Entre eles poderíamos citar nomes de personalidades da época com as quais Leonardo teve contato, locais nos quais viveu ou pelos quais passou, hábitos típicos do período renascentista, alimentos próprios da região onde vivia o artista e inventor,... uma outra informação que nos coloca em sintonia com a descoberta dos “cadernos” refere-se ao fato de que da vinci anotava sistematicamente tudo aquilo que acontecia em sua vida. Mantinha total regularidade em relação a seus apontamentos e tinha como prática detalhar todos os acontecimentos, mesmo aqueles que faziam parte de um cotidiano que a maioria das pessoas parece viver, mas não perceber e saborear. A partir da descoberta desse precioso arquivo pessoal de Da Vinci está sendo possível perceber que seus conhecimentos avançaram não apenas na área das artes plásticas e da ciência, da engenharia ou da filosofia. Atingiram também as artes da mesa. Essa passagem de Leonardo pela gastronomia foi significativa. Nos legando desde alguns artefatos considerados básicos (e essenciais) na área, como os guardanapos e as tampas de panelas e repercutindo também pelo fato do artista ser vegetariano, numa época em que as carnes eram consideradas essenciais para a composição de uma alimentação farta e um indicativo de posição e status social. Leonardo não parecia muito interessado em firmar-se dentro desse universo social das elites de Milão e Florença a partir de concessões que lhe fizessem ser reconhecido como parte do grupo. Por isso, pouco parecia se importar com a idéia de que comer carne era como um quesito fundamental para participar desse seleto “clube”. Privilegiava os legumes e as verduras por acreditar se tratarem de alimentos mais leves e saudáveis, numa época em que poucas pessoas pareciam se importar com a relação
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entre alimentação e saúde.
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Um outro dado esclarecedor dessa relação de proximidade entre Da Vinci e a Gastronomia refere-se ao fato de que o inventor (em sociedade com o amigo Sandro Botticelli) chegou a abrir um restaurante. Foi um verdadeiro e retumbante fracasso comercial, especialmente pelo fato de que não se serviam pratos com carnes. O estabelecimento, antecipando-se aproximadamente 500 anos, era vegetariano. Além de trabalhar com verduras e legumes numa época em que as pessoas estavam mais interessadas em saborear um bom e suculento filé, Da Vinci e Botticelli preparavam pratos ornamentados, uma tendência que se celebraria no período contemporâneo, para a qual as pessoas comuns do Renascimento não estavam preparadas. Outro feito de Leonardo na área gastronomica foi trabalhar como mestre de cerimonias para os banquetes do poderoso Ludovico Sforza, governante da poderosa cidade italiana de Milão. Não tinha como incumbência a organização do cardápio, mesmo por conta de suas preferências vegetarianas, cabendo-lhe ordenar os banquetes quanto aos serviços, os instrumentais utilizados, a programação artística, a ornamentação dos locais onde se realizariam as refeições,... No período renascentista a alimentação tinha o intuito de definir as bases sociais, especialmente na Itália, das poderosas e ricas cidades que controlavam o acesso de especiarias provenientes do Oriente, através do Mar Mediterrâneo. Por isso, as tradicionais e poderosas famílias que reinavam em Florença, Milão, Veneza ou Gênova organizavam as suas refeições quotidianas, e especialmente suas grandes recepções, com o intuito de comprovar sua riqueza e seu poder. Outra informação importante refere o facto de que, a composição básica da alimentação quotidiana era feita com produtos típicos de cada região. Especialmente no que se refere aos alimentos que estragam com maior rapidez. Por isso, os produtos importados do Oriente eram caros demais para o povo e, dificilmente atingiam os pratos daqueles que estivessem longe das cidades.
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Nos cadernos de cozinha de Leonardo da Vinci, Ludovico Sforza é uma das figuras mais citadas. No entanto, as referências do artista a esse personagem não são positivas, visto que ele é tratado como exemplo de comportamentos reprováveis: Parece-me indigno dos tempos presentes o costume de Meu Senhor Ludovico de amarrar coelhos à cadeira de seus convidados para que estes possam limpar a gordura das mãos nas costas (DA VINCI, 2005, p. 189) (DA VINCI, 2005, p. 77)
dos animais. O que o Meu Amo Ludovico tem na sua mesa fere a minha vista. Todos os pratos são monstruosos... é tudo abundância. Assim comiam os bárbaros. Essa reprovação aos actos de Ludovico Sforza demonstram como o artista foi influenciado pelo ideal ciceroniano de virtu5, o qual foi retomado no Renascimento. Nesse momento, assuntos como educação, retórica e conhecimento filosófico passaram a ser pauta de uma discussão que pretendia estabelecer os principais âmbitos que deviam compor a instrumentalização de um verdadeiro cavalheiro. A idéia de que todo homem pode alcançar a excelência impulsionou uma busca contínua por virtudes que eram consideradas essenciais à vida pública. Como todo homem é filho de seu tempo6, Da Vinci não poderia fugir desse ideal. Para ele, Sforza, como governante de Milão, deveria ser um homem virtuoso, com boas maneiras. Suas atitudes à mesa não eram condizentes com a de um cavalheiro, o qual deveria ter como objetivo principal na sua vida a busca pela sabedoria e eloquência. Da Vinci chegou ao ponto de comparar seu senhor aos bárbaros, evidenciando, assim, seu horror ao presenciar aquelas cenas que ofendiam os valores humanistas, nos quais as boas maneiras à mesa faziam parte de um conjunto de comportamentos necessários a um governante possuidor da virtu.
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- convidado algum se deve sentar em cima da mesa, nem de costas voltadas para ela, nem ao colo de outro comensal. - nem deve pôr as pernas em cima da mesa. Há hábitos impróprios que um convidado à mesa do meu Amo, não deve contrair, sendo o catálogo que se segue baseado nas observações que fiz daqueles que tomaram assento junto do meu Amo, o senhor Ludovico Sforza, durante o ano que passou:
- nem se deve sentar debaixo da mesa por qualquer tempo que seja. - não deve pôr a cabeça em cima do prato para comer. - não deve tirar comida do prato do vizinho, sem primeiro lhe pedir autorização. - não deve colocar no prato do vizinho partes desagradáveis ou semimastigadas da sua própria comida, sem primeiro lhe pedir autorização. - não deve limpar a sua faca às vestes do vizinho.
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- nem usar a sua faca à mesa para trinchar. - não deve limpar à mesa as suas armas. - não deve retirar comida da mesa, colocando-a na bolsa ou na bota para consumo ulterior. - não deve dar dentadas nos frutos que se encontram na fruteira, voltando depois a colocá-la na mesma. - não deve cuspir na frente do meu Amo. - nem ao seu lado. - não deve dar beliscadelas ou palpadas ao vizinho.
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- não deve emitir ruídos resfolegantes ou dar cotoveladas. - não deve revirar os olhos ou fazer caretas assustadoras.
ainda menos lançar adivinhas lascivas quando a seu lado se encontrar uma dama.
- não deve meter o dedo no nariz ou no ouvido durante uma conversa.
- não deve conspirar à mesa (a menos que seja com o meu Amo)
- não deve fazer maquetas, nem acender fogos, nem treinar-se na arte da
- não deve fazer propostas obscenas aos pajens do meu Amo, nem retoiçar
pantomina em cima da mesa (a menos que o Amo o solicite).
com os corpos deles.
- não deve soltar os seus pássaros em cima da mesa.
- nem deve pegar fogo ao vizinho enquanto se encontra à mesa.
- nem o mesmo fazer com cobras ou escaravelhos.
- não deve agredir um serviçal (a menos que seja em defesa própria).
- não deve tanger alaúde ou qualquer outro instrumento que possa impor-
- e se sentir vontade de vomitar, que abandone a mesa.Tal como se tiver
tunar o vizinho (a menos que o meu Amo o solicite).
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- não deve cantar, nem fazer discursos, nem proferir impropérios, e
de urinar.
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No Verão de 1478, na sequência de uma escaramuça entre dois bandos florentinos rivais, a famosa Taberna dos Três Caracóis incendiou-se e ardeu por completo. Leonardo da Vinci, desistindo da encomenda mais importante que recebera até então, um retábulo para a capela de São Bernardo, no Palazzo Vecchio, decidiu imediatamente abrir, de parceria com o seu amigo Botticelli, uma taberna provisória no mesmo local da antiga, usando para esse efeito velhas telas da oficina de Verrocchio. Deram-lhe o nome de “A Marca das Três Rãs de Sandro e Leonardo”. Leonardo da Vinci pintou um dos lados da tabuleta pendurada do lado de fora da casa, Boticelli pintou o outro. O estabelecimento não foi propriamente um sucesso. Mais uma vez se provava que a clientela florentina não morria de amores por quatro rodelas de cenoura e uma anchova, pesasse embora a forma artística como eram dispostos no prato (aliás, lamentava-se Boticelli, quem é que conseguia perceber uma ementa escrita da direita para a esquerda?). As telas de Verrochio foram retiradas das molduras e devolvidas clandestinamente ao estúdio do Mestre. Nenhuma taberna empregava Leonardo da Vinci como cozinheiro ou lhe dava
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A experiência adquirida por Leonardo da Vinci nas cozinhas da Taberna
qualquer outra tarefa na cozinha, dados os terríveis efeitos que a sua
dos Três Caracóis teve um efeito profundo no seu espírito inquisitivo.
excêntrica gastronomia exercia sobre a clientela. Não mostrava incli-
Revelou-lhe como era primitiva a preparação dos alimentos nos tempos em
nação para voltar aos seus retábulos ou para continuar qualquer outra
que vivia, originando um enorme desperdício de tempo e de trabalho. E,
das suas encomendas. Sentava-se onde calhava, fazendo rabiscos, tocan-
daí em diante, começou a imaginar “aparelhos que permitem poupar tempo”
do alaúde e inventando novos nós. A coisa mais positiva que fez nesta
na cozinha. Foi por esta altura que começou a escrever nos seus cader-
altura foi enviar alguns desenhos de arietes e de complexas escadas de
nos de apontamentos, e é assaz surpreendente a quantidade de desenhos
cerco a Lorenzo de Médici, o senhor de Florença, que nessa altura estava
que, de acordo com o que os intérpretes das suas obras têm dito durante
envolvido numa pequena guerra com o Papa. O envio destes desenhos deve
os últimos quatrocentos anos, se trataria de máquinas de guerra e que
ser interpretado como um gesto de boa-vontade da parte de Leonardo da
exprimem, afinal, uma intenção oposta à de Leonardo da Vinci. Trata-se
Vinci, que assim contribuía para o esforço de guerra; mas, apesar de
de máquinas de paz: picadoras de carne, máquinas de lavar, quebra-no-
os ter acompanhado de maquetas em maçapão e em massa de pasteleiro, as
zes mecânicos e afins. Mas, nesta altura, ainda teria de esperar algum
intenções de Leonardo da Vinci não foram bem compreendidas por Lorenzo,
tempo até poder transformar o desenho em realidade. Havia encomendas
que as encarou apenas como bolos excêntricos e as serviu aos convidados
de retratos e de retábulos e uma reputação de pintor que tinha de ser
durante a ceia.
adquirida.
Sem reconhecimento, sem salário e sem vontade de regressar à monotonia
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dos retábulos, Leonardo da Vinci sentia-se cada vez mais incompreendido. Na fase de depressão que se seguiu a este segundo grande fracasso culinário, reuniram-se todas as condições para o levar a fazer as malas e a partir de Florença. E quando Lorenzo de Médici ouviu dizer que Leonardo da Vinci ia partir, entregou-lhe uma carta de apresentação para Ludovico Sforza, Il Moro, governador de Milão, compensando-o assim, parcialmente, por ter dado a comer as suas maquetas em maçapão. Só que, quando Leonardo da Vinci abriu a carta, não encontrou qualquer referência às suas competências de pintor ou de cozinheiro; Lorenzo recomendava-o meramente como excelente tocador de alaúde. Em 1482, Leonardo da Vinci partiu para Milão, acompanhado pelo músico e amigo Atlante Migliorotti e por uma carta de recomendação dirigida a Il Moro, desta vez escrita pela sua própria mão, e que assim dizia: A minha excelência a construir pontes, fortificações e catapultas não admite comparação, e o mesmo se pode dizer de muitos outros aparelhos secretos, que não ouso descrever nesta carta. A minha pintura e a minha escultura são superiores às de qualquer outro artista. Sou superlativo a contar anedotas e a meter-me em sarilhos. E faço bolos verdadeiramente inigualáveis. Ao ler a “modesta” carta de auto-recomendação de Leonardo da Vinci, Ludovico Sforza ficou intrigado. Concedeu-lhe audiência, e foi tal a impressão provocada, que Leonardo da Vinci saiu da sala com os títulos de “Conselheiro de Il Moro para as fortificações” e de “Mestre de festas e banquetes” da corte dos Sforza. Finalmente, era alguém: não um mero artista excêntrico. Foram-lhe entregues criados para o seu serviço, foi-lhe cedida uma oficina, encontrando-se à sua volta a grande corte de Milão: cortesãos, conselheiros, mercenários, representantes de potências estrangeiras, homens de grande erudição. Por causa de uma simples carta, toda a sua vida mudou. Foi então que deu início aos apontamentos inscritos nos cadernos de apontamentos que hoje constituem o Codex Romanoff.
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- Outra anchova, disposta em espiral à volta de uma erva. - Uma cenoura finamente trabalhada. - Um coração de alcachofra. - Duas metade de pepino de conserva por cima de uma folha de alface. - Um peito de pequena ave canora. - Um ovo de pavão. - Um testículo de carneiro envolto em natas (frio). - Uma perna de rã sobre uma folha de dente-de-leão. - Um pé de carneiro cozido e desossado. Como se pode calcular, Ludovico respondeu a Leonardo da Vinci que aquilo não era propriamente uma refeição que estava nos seus planos. Explicou laboriosamente a Leonardo da Vinci que aquele não era o tipo de banquete que os Sforza costumavam servir aos seus convidados, nem era banquete que se apresentasse a convidados que teriam de fazer uma cansativa viagem para vir à festa. Graças aos livros de contas dos Sforza, temos hoje conhecimento de que, em vez daquilo que fora proposto por Leonardo É um facto que Leonardo da Vinci conseguia ocupar-se de assuntos mais
da Vinci, Ludovico Sforza deu ordens para encomendar:
adequados ao seu intelecto. Mas era com relutância que se dedicava a trabalhar nalguns retratos de damas da corte. Começava muitos, mas eram
- 600 salsichões com miolos de porco de Bolonho.
poucos os que acabava. Insistiu fortemente na edificação de uma estátua
- 300 Zampone (pernas de porco recheadas) de Modena.
do pai de Ludovico, uma escultura de grandes dimensões quatro vezes
- 1200 empadas de Ferrara.
superiores às reais. E quando surgiu um banquete especial para celebrar
- 200 vitelas, galinhas e patos.
as bodas de uma sobrinha dos Sforza, aproveitou para, de novo, fazer
- 60 pavões, cisnes e garças.
publicidade à sua arte culinária, que tantos problemas lhe trouxera
- Maçapão de Siena.
em Florença. Levou Ludovico a sua proposta para a ementa da ocasião.
- Queijo Gorgonzola com o selo da Guilda dos Queijeiros.
À frente de cada convidado, explicou Leonardo da Vinci a um Ludovico
- Carne picada de Monza.
reticente, seria posto um prato com o seguinte repasto:
- 2000 ostras de Veneza. - Macarrão de Génova. - Esturjão.
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- Uma anchova enrolada sobre uma rodela de nabo, esculpida na forma de
- Trufas.
uma rã.
- Puré de nabo.
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Outras iguarias semelhantes deveriam ser encomendadas diariamente en-
outros quatro homens e oito cavalos necessários para accionar e ali-
quanto durassem os festejos que Leonardo tinha de organizar para Lu-
mentar a serra circular e o tapete, no exterior). Projecta igualmente
dovico. No entanto, pelo menos, Ludovico reconhecera o vivo interesse
um assador automático, com a intenção de libertar um moço de cozinha
(ainda que excêntrico) de Leonardo da Vinci pelas artes da cozinha.
da tarefa de passar o dia inteiro a voltar o espeto por cima do lume.
Pouco tempo depois, encarregou-o de fazer um projecto de alteração das
Instalado dentro da chaminé, por cima do lume, um hélice é movimentado
cozinhas do grande palácio dos Sforza, no centro de Milão. A partir
pela corrente de ar quente que sobe e está ligado a uma engrenagem que
dessa altura, e durante os seis meses seguintes, Ludovico e as várias
faz girar o espeto. “O assado girará no espeto de uma forma mais lenta
centenas de pessoas que faziam parte da corte e que habitavam no palácio
ou mais rápida conforme o fogo for mais brando ou mais forte”, escreveu
viveram provavelmente o maior caos das suas vidas. Leonardo da Vinci fez
Leonardo da Vinci sob o desenho que fez para este projecto (que está no
imediatamente uma lista do que lhe pareciam ser os requisitos básicos
Codex Atlanticus, e de que existe um modelo em funcionamento no Museu de
de uma cozinha:
Ciência e Técnica, em Milão). Entretanto, Leonardo da Vinci não especi-
Em primeiro lugar é preciso um lume permanente. Depois, um fornecimen-
fica em que é que o criado libertado da cozinha irá ocupar o seu tempo.
to constante de água a ferver. Depois, que o chão esteja sempre limpo. Depois, ainda, dispositivos para limpar, esmagar, cortar, moer e pelar. E ainda um dispositivo para manter a cozinha livre de cheiros e pesti-
O projecto de Leonardo da Vinci para um assador automático: as pás da hélice ou o propulsor, na chaminé, são movimentados pelo ar quente que vem do fogo, accionando o espeto colocado em baixo.
lências, dotando-a de uma atmosfera limpa e sem fumos. E música, pois os homens trabalham melhor e com mais alegria quando há música. Por fim, um engenho para eliminar as rãs dos barris de água potável. Leonardo da Vinci recolhe-se então nas gigantescas oficinas do Corte Vecchio (hoje, Palácio Real), onde normalmente se fabricavam os cenários e palcos para os divertimentos do palácio, e dedica-se aos seus inventos (sabe-se isto devido a Matteo Bandelli, que detinha o cargo de cronista da corte). Começa pelas coisas absolutamente básicas. Pergunta a si mesmo se um pedaço de lenha de forma e comprimento particulares arderá melhor e fornecerá mais calor do que o outro. Dia após dia, estuda fornos onde ardem achas diferentes, medindo quanto tempo cada uma demora a arder, avaliando a quantidade de calor produzida. Por fim, acaba por chegar à conclusão de que é a quantidade e não o formato da lenha que importa; inventa então um tapete rolante em que a lenha, cortada por uma serra circular colocada no exterior da cozinha, é levada directamente para perto dos fornos, declarando que assim eliminava a neces-
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sidade de um rachador de lenha dentro da cozinha (embora esquecesse os
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Há quem afirme que as folhas de nabo e repolho, em qualquer de suas formas, são comida apropriada apenas para aqueles de forte compleição (lavradores, carregadores de pedras, açougueiros) e que os inválidos, bibliotecários, pessoas pequenas ou de digestão delicada deveriam manter-se afastados deles. Eu, por outro lado, afirmo que as folhas de nabo e os repolhos tornam forte uma digestão fraca, por causa da propriedade de suas folhas, as quais já vi reviver uma vaca moribunda e alegrar uma vaca doente. Aqueles que crêem na primeira dessas teorias devem provar a sopa. Deve-se fazer molhos com as folhas de nabo e os repolhos e amarrá-los com crina de cavalo. Em seguida, mergulhe-os em água fervente e sal e deixe-os ali por uma hora. O líquido obtido pode ser um prato leve para a Quaresma.
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(Esta receita foi-me dada pelo meu amigo Atalante Miglioitti, o músico). Remover a pele e as espinhas a sete peixes brancos grandes, reduzir a carne a uma pasta que se mistura com o miolo de sete pães não Moa amêndoas descascadas e sem pele junto com um pouco de flores de sabu-
muito tostados e uma trufa branca ralada. Ligar tudo com as claras de
gueiro e passe tudo pela peneira. Cozinhe lentamente por meia hora, jun-
sete ovos de galinhas e cozer ao vapor, num saco de pano rijo, durante
te peito de capão cozido com um pouco de mel e moa tudo. Regue a mistura
um dia e uma noite. Na hora de o comer, tomar cuidado para não haver
com água de rosas e sirva de imediato. Este prato é de digestão muito
engasgadelas com uma qualquer Santa relíquia que tenha sido escondida
lenta e não aconselhável para aqueles que têm a Peste e para aqueles que
no seu interior.
querem saber por que tem este nome, questão à qual não posso responder.
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Se Leonardo da Vinci nunca tivesse inventado a máquina a vapor. Todos os factores necessários estavam ao seu alcance, incluindo o pistão, mas, por uma razão ou por outra, nunca os pôs a funcionar em conjunto.
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durante o tempo de cozedura, para que não se deformem com o calor. Quando a ave estiver cozida – o que irá demorar duas a três vezes mais do que no caso de um capão, porque a sua carne é muito mais rija – tira-se Cozinhar pavões envolve muito tempo e desapontamento. Para matar um pavão, adopta-se o mesmo procedimento usado para matar uma cabra – corta-se a garganta e leva-se a ponta de uma faca até ao cérebro para fazer sair o sangue. Pendurase depois o animal numa figueira, durante uma noite, para lhe amaciar as carnes, depois de lhe ter enchido o corpo vazio com urtigas e atado pesos a ambas as pernas.16 Agora é a vez de cortar a pele à superfície, desde o pescoço até à cauda e removê-la juntamente com as penas e as pernas que ainda estão ligadas ao resto do corpo. Conservá-lo cuidadosamente à parte. Colocar no fogão a carcaça do animal, tendo recheado o interior com sementes de cravo, salpicado a sua superfície com ervas aromáticas e – aquilo que é mais importante
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– envolvido o pescoço e a cabeça em pano branco, mantido sempre húmido
do espeto, envolvendo-a depois na sua própria pele, que se conservou. Para fazer com que o pássaro pareça estar de pé, é conveniente montar pernas de ferro sobre o tampo da mesa, colocando sobre elas o pavão: o ferro deve atravessá-lo da cabeça à cauda, permanecendo, contudo, invisível. Neste comenos, pode-se introduzir lã e cânfora no bico da ave e pegar-lhe lume. (Gallio não gosta de o fazer porque tem realmente medo do fogo). É altura de fingir que se está a trinchar o pavão para os convidados, mas o que na realidade vós lhes ireis servir é carne de pavoas, cozinhadas em segredo e ao mesmo tempo que o macho, cuja carne é, porém, mais macia e por isso mais aceitável para os nossos convidados. Não é aconselhável o consumo de pavões a quem sofra do fígado ou do baço. A carne é pesada e não muito nutritiva.
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- Uma para depenar patos - Uma para cortar um porco em cubos - Uma para fazer puré - Uma para triturar um porco - Uma para extrair os sucos a um carneiro Como devo, porém, accioná-las? A vento ou a água? Rodas dentadas e manivelas? Bois ou camponeses?
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os pobres alimentavam-se de Polenta, ou nalguns casos, de sopas espessas e de papas de trigo. Quase tudo salpicado por grandes quantidades de especiarias (ou melhor, de ervas aromáticas) incluindo a polenta. A maior parte dos legumes e tubérculos já era conhecida – embora ainda não a batata, o tomate, qualquer das outras plantas e frutos descobertos no Novo Mundo, e que só se tornariam, populares na Europa no século XVII. Havia sal, pimenta e especiarias, queijos e pão (embora o pão branco fosse uma verdadeira raridade), o adoçante era o mel, como sempre, e não o açúcar (embora houvesse cana de açúcar na Sícilia). Quase sempre, o vinho era misturado com água ou com mel, ou até com ambos. Era vulgar a água potável ser um bem raro, apenas acessível a partir de aquedutos ou aguadeiros. A aguardente, destilada e vendida nas boticas, servia com medicamento para os que apanhavam a peste. O chá, o café e o chocolate não eram ainda conhecidos. Os utensílios de cozinha mais vulgares eram o pilão e o almofariz: praticamente toda a carne, peixe e criação eram esmagados até atingirem a consistência de uma pasta fina, que depois
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Os apontamentos de cozinha redigidos por Leonardo da Vinci e compilados
era passada por uma peneira e, por fim, misturada com mel e arroz (para
de modo a constituírem o Codex Romanoff estão longe de abordar todos os
render mais). Os alimentos eram dispostos sobre uma base de pão ázimo
alimentos e pratos disponíveis no seu tempo. Tudo leva a crer que apenas
que, no fim, também era comido ou, como acontecia em algumas das casas
apontava, arbitrariamente, aquilo que despertava o seu interesse. As
mais abastadas, dado aos cães ou aos pobres. Os pobres só comiam uma
“suas” receitas são de outros, não foram inventadas por ele – excepto
vez, a meio do dia. Os ricos tomavam uma refeição leve entre as nove
no que toca à causa, totalmente perdida, da Nouvelle Cuisine. A maior
e as dez da manhã e deixavam o repasto principal para o fim da tarde.
criatividade é revelada pelas suas observações sobre cozinhar e o comer
Entretanto, se quisermos ver as coisas pelo lado positivo, o esturjão
e, sobretudo, pelos projectos de alterações às cozinhas. A comida em
era, nessa época, o peixe mais vulgar no Mediterrâneo e, assim sendo,
Milão e, na verdade em toda a Itália, durante os anos em que Leonardo
nunca faltava caviar aos pobres.
da Vinci registou estes apontamentos nos seus cadernos (e cuja maioria
Considerando as funções desempenhadas por Leonardo da Vinci quando re-
se situa entre 1481 e 1500), só pode ser descrita como absolutamente
digiu estes apontamentos (“Mestre de Festas e Banquetes” na corte dos
execrável. Os dias das “línguas de rouxinol”, dos “ovos de avestruz
Sforza) é perfeitamente compreensível que tenham um tom de superiori-
mexidos”, dos “porcos recheados com chouriço de sangue e tordos vivos”,
dade, que lhe era conferido por uma casa imensamente rica. Assim, não
os dias de gula do Império Romano, há muito que pertenciam ao passado.
é de espantar que, sendo caviar um alimento tão “vulgar”, não apareça
A alimentação era “gótica” (querendo isto dizer que fora introduzida em
mencionado nas suas receitas. A consideração que Leonardo da Vinci de-
Itália pelos Godos). Os ricos comiam uma profusão de carnes e de aves,
monstra pelo caviar é ainda menor do que pela polenta.
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As principais pessoas que Leonardo da Vinci refere nos seus apontamentos são: - O Meu Senhor Ludovico: Ludovico Sforza, Il Moro, governador de Milão, patrono de Leonardo da Vinci de 1481 a 1499 e, após a morte do inepto irmão mais novo, Giancarlo, em 1495, também Duque de Milão. - A Minha Senhora Beatrice: Beatrice D’Este, que casou com Ludovico Sforza em 1493. - Salai: Discípulo-criado de Leonardo da Vinci a partir de 1490 (cujo verdadeiro nome era Gian Giacomo Caprotti di Oreno). - Battista: Cozinheira de Leonardo da Vinci.
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