INFORME C3 - EDIÇÃO 19

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INFORME

“Dizer que são coisas informes é dizer não que não têm formas, mas que suas formas não encontram em nós nada que permita substituí-las por um ato de traçado ou reconhecimento nítido. E, de fato, as formas informes não deixam outra lembrança senão a de uma possibilidade… “(VALÉRY, 2012, 79)


Informe C3, Porto Alegre, v. 09, n. 2 (Ed. 19), Jun/Jul/Ago/set - 2017. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com

Organização: Daniele Noal Gai Elisandro Rodrigues

CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA

edição 19 Dossiê Pequenas Coisas de Escola

artigos C3

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EXPEDIENTE COORDENAÇÃO GERAL: Wagner Ferraz EDITORES: Wagner Ferraz e Renata Sperrhake

DOSSIÊ PEQUENAS COISAS DE ESCOLA [DAS RUAS, DO CAMPO, DA PERIFERIA, ETC]

EDITORES ASSISTENTES: Elisandro Rodrigues e Gilberto Silva Santos

ORGANIZADORES Daniele Noal Gai Elisandro Rodrigues

DIREÇÃO DE ARTE: Anderson Luiz de Souza e Wagner Ferraz

REVISÃO DOS ABSTRATCS (INGLÊS) Lucas Teles

ORGANIZAÇÃO: Processo C3 - Grupo de Pesquisa Estudos do Corpo PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO: Diogo Cassel EDIÇÃO E ARTE DA CAPA: Anderson Luiz de Souza CONSELHO EDITORIAL: Prof. Dr. Alexandre Rocha da Silva (UFRGS/RS); Prof. Dr. Samuel Edmundo Lopez Bello (UFRGS/RS); Prof. Dr. Luis Henrique Sacchi dos Santos (UFRGS/RS); Profª Drª Kathia Castilho (UAM/SP); Prof. Dr. Luciano Bedin da Costa (UFRGS/RS); Profª Drª Marta Simões Peres (UFRJ/RJ); Profª Drª Fabiana de Amorim Marcello (UFRGS/RS); Prof Dr Airton Tomazzoni (UERGS/RS); Profª Drª Marilice Corona (UFRGS/RS); Profª Drª Sayonara Pereira (USP/SP); Profª Drª Magda Bellini (UCS/RS); Prof Dr Celso Vitelli (UFRGS/RS); Profª Drª Daniela Ripoll (ULBRA/RS); Prof. Ms. Leandro Valiati (UFRGS/RS); Profª Ms Luciane Coccaro (UFRJ/ RJ); Profª Ms Flavia Pilla do Valle (UFRGS/RS); Prof Ms Camilo Darsie de Souza (UNISC/ RS); Profª Ms Eleonora Motta Santos (UFPEL/RS); Profª Ms Giana Targanski Steffen (UFSC/ SC); Ms Zenilda Cardoso (UFRGS/RS); Profª Ms Miriam Piber Campos (INDEPIN/RS); Ms Luciane Glaeser (RS); Ms Jeane Félix (UFRGS/RS); Ms Alana Martins Gonçalves (UFRGS/ RS); Profª Ms Sabrine Faller (INDEPIN/RS); Ms Luiz Felipe Zago (ULBRA/RS); Ms Carla Vendramin (UFRGS/RS); Prof Esp Anderson de Souza (FEEVALE/RS); Prof Ms. Wagner Ferraz (UFRGS/RS); Profª Drª Luciana Éboli (UFRGS/RS); Profª. Drª. Daniele Noal Gai (FACED/UFRGS); Profª. Drª. Paola Basso Menna Barreto Gomes Zordan (IA-PPGEdu/UFRGS); Profª. Drª. Cibele Sastre (UFRGS/RS).

Informe C3 / v. 09, n. 02 (edição 19), Jun./Jul./Ago./Set., 2017. GAI, Daniele Noal; RODRIGUES, Elisandro (Orgs.). Dossiê: Pequenas Coisas de Escola. – Porto Alegre, RS: Processo C3 e Estudos do Corpo, 2017. On line. 240 p. Disponível em: http://www. processoc3.com e em www.informec3.weebly.com ISSN: 2177-6954 1. Artes. 2. Educação. 3. Corpo. 4. Cultura. 5. Pesquisa. 6. Moda. 7. Saúde CDD: 301.2 370.157 793.3 646 Classificação: 18 anos O conteúdo apresentado pelos colaboradores (textos, imagens...) não são de responsabilidade do Processo C3 e da Revista Eletrônica Informe C3. Nem todo opinião expressa neste meio eletrônico ou em possível verão impressa, expressam a opinião e posicionamento dos organizadores, editores e responsáveis por este veículo.


Ano 09 - n. 02 - Edição 19 Jun/Jul/Ago/Set - 2017 INFORME C3

é um periódico técnico-científico e artístico registrado com Número Internacional Normalizado para Publicações Seriadas (International Standard Serial Number) - ISSN: 2177-6954. Voltado para publicações no campo das ARTES (em geral – dança, teatro, música, performance, circo, visuais, entre outras...) e EDUCAÇÃO com desdobramentos e atravessamentos com outras áreas de conhecimento como Educação Física, Psicologia, Saúde Coletiva entre outras... Publicada semestralmente e disponibilizada para visualização e download gratuitamente. Tem os Estudos na área da Educação e Artes como foco de suas edições dialogando com diferentes áreas de conhecimento envolvendo Dança, Artes Visuais, Teatro, Música, Antropologia, Comunicação, História, Sociologia, Cultura, Moda e outras com o objetivo contribuir para a difusão de conhecimentos e experiências proporcionando espaço para publicações de textos livres, artigos, resenhas, entrevistas, poemas, críticas, crônicas, fabulações, desenhos, fotografias e produção visual em geral. Criado e desenvolvido pelo Processo C3 – Grupo de Pesquisa, que publicou sua 1ª edição em março de 2009, conta com a colaboração de pesquisadores e artistas de diferentes lugares do Brasil que participam voluntariamente enviado suas propostas e trabalhos. Além de convidados que contribuem com números específicos de acordo os temas de cada edição.

CAPA Foto: Wagner Ferraz Arte da Capa e tratamento de imagem: Anderson de Souza Local: Porto Alegre/RS/Brasil 2017

Contatos: submissao.informec3@gmail.com www.informec3.weebly.com www.processoc3.com Porto Alegre/RS

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Foto: Luiza Ninov


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Apresentação

pequenas coisas de escola [apresentação] Daniele Noal Gai Elisandro Rodrigues

ESTE DOSSIÊ VERSA SOBRE “PEQUENAS COISAS DE ESCOLA”. Narrar escola sendo verso. Isso é possível? Escolhemos um título que é um verso. Podemos pensar na aproximação (por rima ou por simpatia) de algumas palavras em formato de frase: assim se versa. Colocar a língua a brincar e a escola a ser pequena; pra brincar. Intuímos que esse é um bom e um singelo movimento. Querendo animar o contemporâneo, propomos iniciar por pequenas coisas, coisas colecionáveis, coisas narradas por nós e mais alguns de nós. Considerando que temos pequenas pretensões, vamos narrar a escola da rua, a escola do/no campo, a escola da periferia, a escola na praça, a escola da ocupação, a escola do autista. Seria demasiado pretensioso narrar a escola contemporânea, então, reunimos quem a vive radicalmente (cotidianamente, e simplesmente). Organizamos um dossiê que reúne um número considerável de autores e suas pesquisas, autores e suas fotografias, autores e suas ideias potenciais de escrita: pra escola sem mordaças. Nosso gosto é pelas coisas simples que aparecem na poesia, no formato curto do verso, e que abrem possibilidades para pensar o complexo de nossos últimos dias (falamos dos anos 2016 e 2017 -- sobretudo). Que este dossiê sirva para a nossa lição de casa, mundo!

“Paulo: Como também gosto de cantar, não sei se tu sabias disso. Sérgio: Não! Paulo: Ah!, tu sabes que eu adoro! Agora, tu sabes, Sérgio, nisso aí o primeiro mundo ganhou para mim nessa guerra. Eu cantei até o Chile. Eu era o chamado “cantor de banheiro”, não sei se conheces essa expressão no Brasil. (riem) O banheiro te dá a liberdade e o direito de cantar. Quem não quiser que se dane, porque estás no banheiro. No Chile eu fazia isso, porque, olha, eu ninei os meus filhos todos cantando. Sérgio: Você chegou então a sair do banheiro para ir para o quarto, cantando.” (Freire, 2015, p. 54)

FREIRE, Paulo. Lições de casa: últimos diálogos sobre educação. São Paulo: Paz e Terra, 2015.



Foto: Wagner Ferraz


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Artigos

1. A ANDARILHA: ESTUDOS NA/SOBRE/COM A CIDADE DE PALMAS

7. AUTISMO; ESCOLA; FAMÍLIA: NARRATIVAS; POSSIBILIDADES E INCLUSÃO

Renata Ferreira da Silva

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2. IMAGINÁRIO SOCIAL: IDEOLOGIAS RACIAIS, NEGROS E FUTEBOL Vilma Aparecida de Pinho José Tarcisio Grunennvaldt

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3. JUVENTUDE, ESCOLA E DEMOCRACIA: ALGUNS INDICADORES PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA PRÁTICA EDUCATIVA LIBERTADORA

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João Paulo mariano Domingues Walter Ernesto Ude Marques

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Amanda m. P. Leite

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6. TEMPOS DE LUSCO-FUSCO: ARTE, POLÍTICA E CONSCIÊNCIA NA FORMAÇÃO

8. DESENHO INFANTIL: INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA ATRAVÉS DAS TICS Ana Paula Ribeiro de Souza

9. OCUPAÇÃO: JUVENTUDES, LITERATURA E RESIDÊNCIA NA RESISTÊNCIA Aline Miranda

10. COLETIVO TINTA FRESCA: EDUCAÇÃO, FILOSOFIA E SAÚDE

4. A PRAÇA É NOSSA! NARRATIVAS COTIDIANAS E PEDAGOGIAS CULTURAIS 5. UMA COMUNIDADE ESCOLAR EM RECONSTRUÇÃO

Tamara Rosa Daniele Noal Gai Tásia Wisch

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Carmen Regina Deantoni

Tanise Reginato

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Renato Levin Borges | Lucas Teles Andressa Girotto Camilotti Natascha Helena Franz Hoppen

11. GÊNERO, SEXUALIDADES E EDUCAÇÃO: UMA BREVE ANÁLISE CONCEITUAL Julio Cezar Pereira Araujo Dra. Joanice Santos Conceição


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Espaço Livre

1. DIÁRIO DE VER DE COLAR DE CAMPO DE OBSERVAÇÃO DE PESQUISA Conrado Bueno

2. SECUNDARISTAS OCUPAMOS DURANTE 38 DIAS Luiza Ninov Lucas Fagundes

3 – FOTOCARTOGRAFIAS I #OCUPAFACED: O EMPODERAMENTO FEMININO. A EDUCAÇÃO POPULAR. AUTONOMIA ESTUDANTIL Ingrid Talita de Brito Prestes de Oliveira

4 – FOTOCARTOGRAFIAS II FOTOCARTOGRAFIAS E OCUPAÇÃO Aline Miranda Luiza Ninov

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ARTIGOS

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A ANDARILHA: ESTUDOS NA/SOBRE/ COM A CIDADE DE PALMAS

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Renata Ferreira da Silva1 RESUMO Existem estudos com roteiros prontos, destinos traçados e às vezes já cheios de experiências previstas. Nestes quem estuda está seguro na sua caminhada. Outros estudos são forçados a buscar outros lugares, tornam-se refugiados, exilados e emigrantes já que o lugar de origem é insustentável. Neste sentido, tem me interessado pensar em estudos andarilhos. Quais seus roteiros? Que segurança e estabilidade experimentam quando não encontram parada em apenas um lugar? PALAVRAS-CHAVE: Roteiros. Estudos andarilhos. Refúgio. Exílio.

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A ANDARILHA: ESTUDOS NA/SOBRE/COM A CIDADE DE PALMAS

THE HERMIT: STUDIES IN/ABOUT/WITH THE CITY OF PALMAS ABSTRACT There are studies with already-made scripts, already-traced destinies and sometimes already full of experiences. In these, those who studied them is already secure about their paths. Other studies are forced to search other places, becoming refugees, exiles and emigrants since their place of origin became unbearable. With this in mind, I have found interest in thinking about ‘hermit studies’. What are their scripts? What kind of, or lack of, security and stability do they experience when they never find themselves bound to one place? KEY-WORDS: Scripts. Hermit studies. Refuge. Exile.

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Atriz- Professora Adjunta do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Tocantins. E-mail:

renataferreira@uft.edu.br

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Existem estudos com roteiros prontos, destinos traçados e às vezes já cheios de experiências previstas. Nestes quem estuda está seguro na sua caminhada. Outros estudos são forçados a buscar outros lugares, tornam-se refugiados, exilados e emigrantes já que o lugar de origem é insustentável. Neste sentido, tem me interessado pensar em estudos andarilhos. Quais seus roteiros? Que segurança e estabilidade experimentam quando não encontram parada em apenas um lugar? Custei um pouco a entender que eu gostaria de fortalecer, como um personagem conceitual, a figura do andarilho, definida pelo seu modo de andar, andar por aí... Menos interessada num juízo de valor sobre os modos de estudar do que na potência do deslocamento como modo de conhecer retomo a leitura de Friedrich Nietzsche que provoca em um dos fragmentos de Humano, Demasiado Humano que “Quem alcançou em alguma medida a liberdade da razão, não pode se sentir mais que um andarilho sobre a terra” (NIETZSCHE, 2005, p.271). Qual a razão disto? Sentir-se no meio do mundo? Que estudo estaria implícito ao deslocamento constante? Assumir os espaços formativos de forma transitória é um contrassenso para lógicas educacionais fixadas por prescrições. Quanto mais estudo, mais quero estudar e vou, numa lógica-traça, de um texto a outro, transversalizando caminhos que sempre fogem dos planos tramados por mim. Perambular por aí sem rumo é sofrido, constantemente sou expulsa e não tenho pertença. Acho que meus amigos filósofos não me vêm como alguém que está na filosofia, mas que passa. Meus amigos artistas costumam me ver como uma estudiosa, mais filósofa que artista. Estaria na arte ou passaria por ela? De uma forma ou de outra, por seu campo naturalmente aberto por tantos saberes talvez eu esteja é na educação, mas sou constantemente expulsa. Como aquele que emigra sempre, que precisa ir a outros lugares quando a vida no lugar fica insustentável. O andarilho caminha. Caminhar é toda sua verdade. Não tem um ponto final, pois que seria um romeiro. À medida que caminha pode chocar-se com o que vê e vive, pode sofrer, surpreender-se, alegrar-se e perturbar-se nas paradas, encontros e caminhos que faz. Sempre provisório, o andarilho é a própria superfície da vida. Encontro uma beleza aí. O caminhar como lugar de experiência que une caminhada e pensamento, vida e conhecimento. Não, o andarilho não caminha por prazer, para ser feliz. Ele está livre de todo o utilitarismo. Ele caminha para viver, não necessariamente para ser feliz no seu nomadismo. Mas, buscaria ele a felicidade ou a vida? Quem dá conta de tanta intensidade, caos e incerteza? Mas “se a vida mesma é entendida pela metáfora da passagem constante, então é preciso que haja constantes rompimentos e desligamentos. Nada pode ser fixo. Nada deve permanecer ligado de uma vez por todas” (OLIVEIRA, 2014, p.150). Qual a força de um pensamento andarilho? O andarilho quer sempre ir ou ficar? Eu escrevi nomadismo no meio do parágrafo anterior. Impossível não voltar-me para o abecedário de Gilles Deleuze2:

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2 As gravações foram realizadas em 1988, com a condição de serem exibidas apenas postumamente. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wH04aZgPn9o Acessado em: 08/02/2016.

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partir. É por isso que são tão perseguidos [...].

Apegar-se ao conhecimento, ao estudo como uma terra. Agora, num segundo momento, a locomoção não quer dizer, necessariamente intensidade. Estaria à intensidade de uma vida nos lugares externos, na intensa imobilidade entre - lugares? Neste instante penso com Deleuze que a intensidade de um pensamento nômade, que caminha, pode estar na aparente imobilidade de um livro, um texto, uma música, um filme, ou seja, é também a intensidade de acontecimentos que disparam. Mas aqui quero estudar caminhando, quero pensar que uma forma de estudar é

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[...] sim, os nômades sempre me fascinaram, exatamente porque são pessoas que não viajam [...] os nômades viajam pouco. Ao pé da letra, os nômades ficam imóveis. Todos os especialistas concordam: eles não querem sair, eles se apegam à terra. Mas a terra deles vira deserto e eles se apegam a ele, só podem “nomadizar” em suas terras. É de tanto querer ficar em suas terras que eles “nomadizam”. Portanto, podemos dizer que nada é mais imóvel e viaja menos do que um nômade. Eles são nômades porque não querem

deslocar o corpo no espaço-tempo de uma cidade. No ano de 2016, juntamente aos outros integrantes do Grupo de Pesquisa Transver3 , tomamos a cidade de Palmas como laboratório investigando formas de pensar/praticar o local no qual vivemos. Assim, na/sobre/ com a cidade, em deslocamento, ensaio neste texto uma ocupação em deriva, três modos de praticar a cidade. Não estou interessada numa transposição ou reprodução direta de um vivido, mas na criação de índices de singularidades. Haveria debaixo de todo o logos um drama como insiste Deleuze (2006)? O que pode uma vida que escreve, insisto eu? A cidade praticada de automóvel4

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Sigo reto, são sempre três vias, pausa, espero entrar na rotatória, grande curva, retorno. Sigo reto, parece que já passei por aqui, pausa, observo números apagados em placas de sinalização de algumas vias, espero entrar na rotatória, grande curva, retorno. Sigo reto, pausa, para que lado é... Espero entrar na rotatória, grande curva, retorno. Sigo reto, pausa, espero entrar na rotatória, grande curva, qual a saída que devo tomar? Retorno. Não há largos, alfândegas, becos, nomes de plantas, plantas ou poesias nas alamedas, apenas números. Sigo reto, pausa, espero entrar na rotatória, grande curva, tomei a saída errada, retorno. Faz calor. Sigo reto, são sempre três vias, pausa, para que lado está, espero entrar na rotatória, grande curva, retorno. Todos os dias, para onde quer que eu vá eu descubro que o planejamento urbano é estranho a mim. Sigo reto, são sempre três vias. A sensação de dirigir numa cidade logicamente organizada por quadras e rotatórias não deveria ser uma experiência feliz? Pausa, espero entrar na rotatória, todas as vias terminam em rotatórias, quem desenhou estas pistas dirigiu por aqui? Grande dúvida, grande curva, como eu posso me apro3 Atualmente sou líder do grupo de pesquisa Transver: Estudos de fronteira entre educação, comunicação e arte, na Universidade Federal do Tocantins. Site: www.transver.com.br

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4 Esta escrita partiu de uma ação do Grupo de pesquisa Transver realizada no dia 30/08/2016 a partir do seguinte desafio: produzir um texto que revele uma singularidade, um modo de sentir a cidade.


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priar deste espaço? Retorno. Perdi o senso de direção. Eu sou apenas mais uma miniatura humana nesta maquete. Sigo reto, tento contar, seguir a lógica numérica, são sempre três vias. Abro a janela do carro rapidamente, olho para cima, alguém lá em cima deve estar feliz com a vista aérea da cidade. (grito) Ah! É para ver de cima? Sigo reto, são sempre três vias, pausa. (Aumento a intensidade do ar condicionado) espero entrar na rotatória. (resmungo) Eu devo andar de forma disciplinada por todos os caminhos mapeados da cidade de Palmas. Grande curva, retorno. Estacionar? Todos os lados são iguais. Sigo reto, parece que já passei por aqui, pausa, espero entrar na rotatória, grande curva, É difícil criar marcas nesta cidade. Retorno. As fachadas são parecidas. Sigo reto, são sempre três vias. (suspeito) Quem desenhou não circulou, não amou, não viveu. (pausa) A praça é gigante. Estou perdida, espero entrar na rotatória, para qualquer lado a mesma fachada. Grande curva, retorno. Para que lado eu vou? A cidade praticada a pé5 Tomar um ônibus e não saber para onde ele vai. Contar no relógio 15 minutos e descer, num ponto qualquer. Vagabundear pela cidade. Há uma excitação e uma vontade de rir. Olho pela janela. É hora de descer. São quase cem passos necessários para atravessar a Avenida Teotônio Segurado, a grande avenida que rasga a cidade de norte a sul. Olhando para o norte vejo uma distância até a gigantesca praça, ao sul... Onde vai dar? Obviamente a figura do flaunêr me acompanha numa tentativa de sair para passear na cidade e senti-la para além do calor. Já passam das 15h30m e dos 35 graus. Melhor comprar um chá gelado no supermercado em frente. Caminho. Olho um funcionário repondo nas prateleiras caixinhas de chá. Todos os seus gestos me são interessantes. Passeio pela cor de sua camiseta, pela cor de sua pele e imagino sua vida. Ele provavelmente quer sair logo dali. E para que? Para onde vai depois de acomodar tantas caixas na prateleira? Seus gestos se repetem. Pega um caixinha, etiqueta e coloca na prateleira. O que lhe é urgente? Percebo que estou me colocando em deriva nas próximas três horas, que nada, a partir de agora me é urgente. Será que a gente consegue não ter finalidades? Eu sei que a natureza não age com um fim; age com a mesma necessidade com que existe. Como sua existência, sua ação não tem princípio nem fim. Mas o que sigo? Com qual necessidade existo aqui e agora nesta cidade? Saio do supermercado e vejo que no ponto em que estou há muito prédios, talvez nunca os tenha... Penetrado. Estabeleço um jogo, conhecer para além da fachada, buscar diferenças. O que constituiria uma singularidade? Caminho. Observo uma grade que esconde uma escola. Pela grade observo a escola. Um homem pergunta se venho buscar alguém. Respondo que estou conhecendo a escola. Imediatamente os portões se abrem e tenho um cicerone. Penetro. Percebo fotos deste homem espalhadas pela escola acompanhadas de uma sequência de números. Confirmo, ele é candidato a vereador e diretor da escola. Salas de aula com o mesmo ta5 Esta escrita partiu de outra ação do Grupo de pesquisa Transver realizada no dia 16/09/2016 . Neste dia reunimos os pesquisadores na estação central de ônibus – Apinagé, às 15h00min, localizada na área central do Plano diretor da cidade de Palmas- TO, ao lado da Praça dos Girassóis, com o seguinte desafio: cada pesquisador entra num ônibus qualquer, após 15 minutos, inicia uma deriva flanando pela cidade por pelos menos três horas.

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manho. Escadas. Quadra de esportes. Infiro: - Os alunos estudam com apostilas? -Sim todos utilizam aqui a mesma apostila, e em qualquer lugar do Brasil que utilize o sistema positivo temos a garantia do mesmo conteúdo, será sempre tudo igual, orgulha-se. Caminho. Observo um pequeno hotel. Não encontro ninguém para atender. Penetro. Há uma televisão e um ventilador ligados. Chega uma moça. Pergunto se posso conhecer os quartos. Ela me mostra um modesto quarto com duas camas, um pequeno guarda roupas e uma mesa de plástico. Insiste: Todos os quartos tem o mesmo padrão, são todos iguais. O que muda são as camas, ou duas de solteiro ou casa, explica. Caminho. Paro em frente a uma porta de vidro. Parece um sistema de ensino, uma pequena faculdade com mais de trinta cursos superiores. Entro. Pequenos corredores, uma secretaria. No percurso encontro quatro pessoas. Onde estão todos? A distância... Leio em uma pequena placa: biblioteca. Descubro uma sala repleta de livros, mesas. Sento em uma. Um homem e uma mulher conversam na mesa ao lado. Bisbilhoto: O homem pede indicações de livros para a mulher. Está fazendo um trabalho de conclusão de curso. Mais um dos muitos que faz por encomenda, alude. A cidade praticada pela câmera fotográfica6

Arquivo pessoal: errante I Foto: Renata Ferreira

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Arquivo pessoal: errante I Foto: Renata Ferreira

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6 Este exercício fez parte da primeira ação do Coletivo Fotográfico 50º da capital do Estado do Tocantins, filiado a Universidade Federal do Tocantins, do qual faço parte. Nesta ação, realizada dia 30/10/16, a proposta foi brincar com a ideia de releituras fotográficas das fotos de Paris de Eugene Atget na intenção de capturar cenas em Palmas.


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Sobre os modos de ver, praticar a cidade. Que modos são estes? Bernstein (2005) provoca uma apologia às “errâncias urbanas”, experiências participativas de cidade. Percebo que me deixo contaminar por experiências dos sentidos a medida que erro a cidade, me perdendo em suas rotatórias; caminhando sem finalidade numa de suas quadras e capturando imagens nada espetaculares pelo centro urbano. Quem seriam os errantes? São aqueles que “perambulam pela própria cidade grande, a metrópole moderna, e recusam o controle total dos planos modernos” (BERNETEIN, 2005, pág.16). Os errantes experimentam o espaço da cidade e o exprimem a partir de suas produções artísticas outros modos de ver e (por que não) praticar uma cidade. O projeto urbanístico de Palmas7 sempre me pareceu dificultar a experiência física direta com a cidade, um “corpo a corpo”, seja pelo calor intenso durante todo o ano ou pelas chuvas torrenciais experimentadas no “inverno”; tudo isto somado às avenidas largas e imensas, planejadas com rotatórias e grandes bolsões de estacionamento tornam a experiência da caminhada deveras desestimulante. O desafio de inventar modos de ocupação da cidade está ainda em sua fase preliminar, mas, incrivelmente, traz um sabor novo aos estudos. Aqui o risco tem se tornado outro: a busca por uma experiência poética a ativa na relação física com esta cidade para (por que não?) superar a dificuldade de amá-la. Desde que saí por ela ativando diferentes modos de estar nela fui tomada por um entusiasmo pelas questões que são disparadas. É só sair por aí caminhando, por exemplo, na tentativa de nos desorganizarmos que encontramos a semelhança, a homogeneização. Isto está na rua e talvez não só no modelo geométrico cartesiano e repetitivo de um plano diretor, planejado por especialistas, mas que podem nos deixar tontos e confusos ao dirigir na cidade. Isto está na sensação experimentada na caminhada vagabunda pela cidade, nos encontros com sistemas de ensino calcados em apostilas, hotéis com quartos de mesmo padrão, e faculdades que já incluem quem faz o trabalho de conclusão de curso. Isto está no desejo de capturar outros que caminham, o desejo de encontrar as pessoas e

7 O projeto da capital foi encomendado ao escritório “GrupoQuatro” de Goiânia, sob coordenação dos arquitetos Luis Fernando Cruvinel e Walfredo Antunes de Oliveira Filho, com a previsão de abrigar inicialmente 300.000 habitantes, podendo chegar a 1,2 milhões de habitantes. O projeto urbanístico de Palmas, que se estrutura sobre a proposta de um sistema viário hierarquizado e orientado pelos pontos cardeais junto a elementos paisagísticos relevantes como – a serra do Lajeado a leste, e o rio Tocantins a oeste, ambos em paralelo ao sítio plano destinado à cidade – que por sua vez, setorizam quadras organizadas segundo os usos [...] Fonte: Velasques, Ana Beatriz Araújo. ‘A última capital planejada do século XX’: o projeto de Palmas e sua condição moderna. Disponível em: http://www.docomomo.org.br/seminario%208%20pdfs/001.pdf Acesso em: 05/10/2016.

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REFERÊNCIAS DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos. Trad. Luiz B. L. Orlandi, Textos e entrevistas. São Paulo: Iluminuras, 2006.

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tramar (des) caminhos. A cidade, percebida em deslocamento primeiramente desloca a mim mesma. Parei de reclamar do clima quente e do projeto urbanístico sentada na cadeira da sala de estudo para praticá-la, percebê-la por outros modos. Foi preciso deslocar para começar a criar com ela. Descubro que entre a racionalidade de um projeto urbanístico e a existência humana podemos flanar e perder-nos numa cidade. Ou seja, nos modos de deslocamento e ocupação estão implícitos modos de praticar e pensar o espaço que habitamos; modos andarilhos.

JACQUES, Paola Berenstein. Errâncias Urbanas: A arte de andar pela cidade. In: Arqtexto 7, Rio Grande do Sul, n.7, p. 16-25, 1º semestre de 2005. NIETZSCHE, Friedrich. Humano Demasiado Humano. Tradução, notas e posfácio Paulo Cézar de Souza. Rio de Janeiro: São Paulo: Cia das Letras, 2005. OLIVEIRA, Jelson. Filosofia da Viagem. 2 ed. Curitiba: PUC-Press, 2014.

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IMAGINÁRIO SOCIAL: IDEOLOGIAS RACIAIS, NEGROS E FUTEBOL

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Vilma Aparecida de Pinho8 José Tarcisio Grunennvaldt9 RESUMO O objetivo do artigo é analisar os modos como o racialismo se reinventa na sociedade contemporânea, analisando o epíteto “macaco”, termo re-emergente no futebol. Nossa base empírica é o futebol no Mato Grosso praticado entre as décadas de 1950 à de 1970, o qual pesquisamos a partir de uma história oral. O futebol é um dos lazeres favoritos dos brasileiros, mas os processos de racismo no interior dos estádios transparecem o quão etnocêntricos e hierarquizadores são os padrões e parâmetros da nossa cultura e sociedade. É pela cultura que se aprende o racismo, e será pela cultura que desconstruiremos tal preconcepção. A escola, nesse caso, tem papel fundamental na formação de crianças e jovens para a diversidade humana, pois cabe a ela promover conhecimentos e vivências (de corpo encarnado) que transformem as sensibilidades.

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IMAGINÁRIO SOCIAL: IDEOLOGIAS RACIAIS, NEGROS E FUTEBOL

PALAVRAS-CHAVE: Imaginário social. Racismo. Negro. Futebol.

SOCIAL IMAGINATION: RACIAL IDEOLOGIES, BLACK PEOPLE AND FOOTBALL

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ABSTRACT The goal of this article is to analyze the ways of how racialism reinvents itself in the social imaginary of contemporary society, analyzing the epithet “monkey”, a re-emerging term in the field of football. Our empirical basis is the football in the state of Mato Grosso practiced between the decades of 1950 to 1970, which we researched through oral history. Football is one of the favorite leisure activities of the Brazilian people, but the racist processes inside stadiums make evident how ethnocentric and hierarchizing are the patterns and parameters of our culture and society. It is through culture that we learn racism, and it is through culture that we will deconstruct that preconception. The school, in this case has a pivotal role in the formation of children and adolescents in the subject of human diversity, for it is one of its to share knowledge and experiences that change sensibilities. KEY-WORDS: Social imaginary. Racism. Black people. Football.

8 Vilma Aparecida de Pinho é Doutora em Educação. Atua na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Pará, Campus de Altamira, Coordenadora do GEABI – Grupo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas. Email: vilmaaparecidadepinho@gmail.com

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9 José Tarcísio Grunennvaldt é Doutor em Educação e atua Faculdade de Educação Física - FEF da Universidade Federal de Mato Grosso. Email: jotagrun@hotmail.com


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O imaginário social sobre raça – que guarda no racismo sua ideologia – evocado recentemente nos estádios de futebol pelo uso do termo “macaco”, situação de ofensa racial, ampara-se nos valores etnocêntricos de “homem”, desenvolvidos pela “ciência” sobre diversidade humana criada nos séculos XVII e utilizada até o século XIX no Brasil. Permanece, portanto, segundo a concepção darwinista de evolução, imerso no plano primitivo, [e] biológico do desenvolvimento humano. Este artigo aborda as teorias racialistas, sua origem e desenvolvimento no Brasil e o imaginário sobre raça que emerge no futebol brasileiro. Nosso objetivo é analisar os modos como o racialismo se reinventa na sociedade contemporânea, especialmente tomando por base a análise o sentido de “macaco”, termo reiteradamente emergente no futebol. Nossa base empírica é o futebol no Mato Grosso praticado da década de 1950 à de 1970 o qual pesquisamos a partir das histórias de vida, mediante inserção no Programa de Pós-Graduação em Educação Física, estágio Pós-Doutoral. AS TEORIAS RACIALISTAS: ORIGENS No século XIX, período em que a antropologia pretendia ser cientificamente moderna, para classificar, utilizou, em conjunto com a cor da pele, tipos de cabelos, estatura, formato dos lábios, do nariz e o índice cefálico, condição social e cultural, atribuindo elementos hierarquizadores à diversidade humana (PINHO, 2010). Essa autora, fundamentada em Todorov, destaca que o racialismo refere-se a um movimento de ideias nascido na Europa ocidental, cujo grande período vai de meados do século XVIII a meados do século XX. Trata-se de um conjunto de doutrinas sobre a diversidade humana, que se conjuga entre cinco características principais que amalgamadas serviam como parâmetros “científicos” para discutir a humanidade. O primeiro postulado da doutrina racialista preconiza que existem raças humanas. Os grupos humanos, cujos membros apresentavam características físicas comuns, são raças, semelhantes às de espécies animais e seria uma aberração, segundo o racialista, o cruzamento entre diferentes delas. A noção de existência de raça se conjuga com o segundo pressuposto, que preconiza a existência de solidariedade entre o físico e a cultura. Realiza-se um arcabouço de explicações para afirmar que os grupos humanos com aparência semelhante são raças, postulando uma relação de causa entre o físico e a moral. Essa doutrina prega a continuidade entre o físico e a moral com argumentos de que as características culturais são herdadas pela transmissão hereditária prevendo a impossibilidade de modificá-la mediante a educação. É o que comumente denominamos de determinismo racial, dada a relação causal do físico sobre o comportamento (PINHO, 2010). O terceiro postulado racialista indica a ação do grupo sobre o indivíduo. Diz o autor que “O comportamento do indivíduo depende, em grande medida, do grupo racial a que pertence” (TODOROV apud PINHO, 2010, p. 35). A hierarquia universal dos valores é a quarta proposição do pensamento racialista, na qual, baseada na raça e na cultura, realiza-se uma hierarquia única de valores e de padrão de avaliação com o qual se fazem

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julgamentos universais.

Na quinta premissa, o racialismo elabora políticas baseadas no saber. A partir da crença na existência de raças, do determinismo racial, da hierarquia construída na qual o branco fica no tipo de qualidades mentais, morais, estéticas, religiosas, funda-se um ideal político em que as raças consideradas inferiores podem viver sob a ordem do pensamento e das ações europeias. A teoria passa à prática e o racialismo se torna ideologia; “a submissão das raças inferiores, ou mesmo sua eliminação, pode ser justificada pelo saber acumulado a respeito das raças” (TODOROV apud PINHO, 2010, p. 36). As proposições de Buffon defendem que há uma unidade humana pelo fato de

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No plano das qualidades físicas, o julgamento de preferência toma facilmente a forma de uma apreciação estética; minha raça é bela, as outras são mais ou menos feias. No plano do espírito, o julgamento refere-se a qualidades tanto intelectuais, uns são burros, outros inteligentes, quanto morais, uns são nobres, outros, bestiais (TODOROV apud PINHO, 2010, p. 36).

poderem realizar-se fecundações entre brancos e negros. Há, portanto, a pertença de uma só espécie. Como um típico naturalista à época, fundamentava seus argumentos no fator biológico, mas utilizava a sociabilidade como critério para fazer julgamentos de valor e construir uma escala hierárquica no interior dos grupos humanos. Buffon argumentava a existência de grupos humanos inferiores e superiores, e afirmava que, se um determinado grupo humano apresenta-se em pequeno número, é porque não soube utilizar as técnicas de linguagem para chegar à racionalidade e à organização de uma sociedade maior. O racialismo de Buffon, autor francês, aponta a cor da pele, a forma e o tamanho do corpo como particularidades da diversidade humana, para opor a “civilização” ou a “polidez” à “barbárie” e à “selvageria”. Desse modo, correlaciona a solidariedade entre os aspectos físicos e culturais, demonstrando o determinismo racial, comumente utilizado, naquela época, para classificar os povos. Segundo o pensamento de Le Bon:

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Baseando-se em critérios anatômicos bem claros, como a cor da pele, a forma e a capacidade do crânio, foi possível estabelecer que o gênero humano compreende várias espécies claramente separadas e provavelmente de origens muito diferentes. [Na parte inferior da escala, encontram-se] ‘as raças primitivas’; ‘nenhum traço de cultura’ [entre esses selvagens que ficaram num estado] ‘vizinho ao da animalidade’; ‘Não há exemplo na história antiga ou moderna de um povoamento negro ter se elevado a um certo nível de civilização’ (TODOROV apud PINHO, 2010, p. 39).

Nessa citação, estão presentes as proposições que formam a doutrina racialista: a convicção da existência de raças humanas, a hierarquia universal de valores e o cultural subordinado ao biológico. Renan, Le Bon, Buffon, Taine e Gobineau eram “cientistas” que, independentemente de pressupostos sobre a origem humana, defendiam que a raça infe-

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rior é constituída pelos negros da África, pelos nativos da Austrália e pelos índios da América. As elites brasileiras10 conheceram muito bem as correntes de pensamento racialistas que postulavam a inferioridade das raças não brancas e faziam, a partir delas, a classificação hierarquizadora dando “o curso às ideias de diferenças raciais inatas e de degenerescência mulata” (SKIDMORE, 1976, p. 66-67). A base do seu argumento era que a pretendida inferioridade das raças índias e negras podia ser correlacionada com suas diferenças físicas em relação aos brancos; e que tais diferenças eram resultado direto da sua criação como espécies distintas. [...] todas as tentativas dessa natureza repousavam sobre a idéia de que as diferenças físicas podiam de algum modo, provar a existência de outras diferenças. Os vulgarizadores da escola etnológico-biológica usavam os instrumentos de uma nova ciência, a antropologia física, para dar base científica aos preconceitos preexistentes sobre o comportamento social dos não brancos.

[...] assumiu a forma do ‘darwinismo social’ e sua variante francesa, a antroposociologia [...] estas correntes de pensamento racista levaram às últimas consequências o argumento da sobrevivência dos mais aptos e justificavam claramente a dominação imperialista das raças classificadas como inferiores, isto é as raças não brancas (p. 2).

É válido ressaltar que as teorias racialistas caíram por terra com o advento da noção de cultura. Não se pode olvidar que em América Latina: males de origem (1905), Manoel Bomfim desenvolve um pensamento ousado que contrapõe as ideias correntes sobre as teorias racialistas11 que se baseavam na frenologia e no determinismo geográfico para julgar as “raças” como superiores ou inferiores na escala de desenvolvimento quando asseverava que não há razões científicas, nem outras que autorizam declarar um povo, qual-

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A partir desse mesmo embasamento teórico, faziam-se testes buscando discernir níveis de inteligência entre brancos e negros, sempre tendo em mente “provar” que os brancos eram superiores. Uma das linhas de pensamento racistas no Brasil se embasava no darwinismo social. Postulava a evolução das espécies e a sobrevivência dos mais aptos a partir das classificações e hierarquizações dos grupos humanos. O que era apenas “diferente tornou-se desigual; e a crença subjetiva na inferioridade biológica e cultural de certas raças desqualificou socialmente aqueles que são identificados por características pressupostas como ‘inferiores’” (SEYFERTY, p. 1). Raça, para além de ser símbolo de diferenciação e hierarquização entre os grupos humanos, no século XIX, no Brasil, afirmou-se como conceito científico. Segundo essa autora:

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Ver as produções de Nina Rodrigues.

11 A teoria da desigualdade inata das raças defendida por teóricos como Gobineau e Le Bon, e repetida por intelectuais brasileiros, era na virada do Século XIX, uma verdade plenamente aceita, principalmente pelos seus pressupostos científicos. “A tese do parasitismo social (formulada por Bomfim em contraposição ao discurso que atribuía ao fator raça as causas profundas dos “males de origem” da América Latina desnudava a lógica do processo de dominação externa (pelo colonialismo) e interna (pelas elites dirigentes) a que os povos latino-americanos estavam submetidos (AGUIAR, 2000, p. 49).

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O NEGRO NO FUTEBOL No futebol brasileiro, o negro enfrentou barreiras raciais e sociais (negro e pobre) para adentrar no esporte, mas, ao entrar, se torna símbolo e herói pela competência no

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quer que ela seja, incapaz de progredir. No Brasil, a raça/cor é utilizada como abordagem sociológica e antropológica para compreender as desigualdades sociais e os diferentes impactos de políticas para as populações negras e indígenas; assim como no estudo de modos de vida, processos de identificação e estratégias de inserção social de negros. Mas as ideias sobre raça permanecem no imaginário social, pois que saíram dos centros culturais e se tornaram senso comum; assim, influenciado pelos estímulos culturais, o brasileiro busca esconder suas origens negras e indígenas para se livrar do preconceito e da discriminação racial. Tomaremos o futebol para discutir sobre o negro e o imaginário social sobre raça pelos seus significados e efeitos na alocação social e cultural do negro.

jogo (Rodrigues Filho, 2003). Para muitos homens negros, sofridos com as barreiras raciais no pós-abolição, “dar um chute na bola era um ato de emancipação”, o jogo, o lúdico, tornou-se trabalho (ROSENFELD, 2013, p. 85). Afirma Murad (1996) que havia uma conjuntura pós-alforria, que compunha a estrutura discriminatória da formação social brasileira: Nos primeiros clubes de futebol brasileiros impuseram critério de cor e classe. Barreiras sociais rígidas, intransponíveis, nas primeiras décadas, verdadeira violência contra negros, mulatos e brancos pobres. Esta sim a primeira forma de violência do futebol brasileiro. [...] perfeitamente bem enquadrada naquele zeitgeist estigmatizante. (Idem, p. 96).

A regulamentação do profissionalismo aparecia, nesse contexto, como uma solução perfeita para essa crescente tensão racial. Ao diferenciar claramente jogadores de sócios, ele permitiria que fossem respeitados os critérios técnicos de escolha das equipes sem que se dissipassem o preconceito e as discriminações raciais que se faziam presentes em torno de jogadores como Leônidas e Grandin (PEREIRA, 2000, p. 325).

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Pereira (2000) afirma que, no sistema de profissionalização, houve oportunidade de diluir as barreiras de raça/cor, por volta de 1933, quando jogadores negros como Domingos e Leônidas se projetavam, a despeito da discriminação racial, no futebol nacional e internacional. Havia garantia de jogadores negros nos clubes brasileiros brilharem, mas a igualdade de oportunidades em outras esferas da vida, como acesso à educação, trabalho, saúde e moradia, estava longe de ser uma realidade. Mas no futebol, significativo esporte no país, as tensões raciais, aparentemente, deixaram de fazer sentido a partir dos anos de 1930.

O brasileiro começou a ter orgulho do negro no futebol, quando o esporte se inter-

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nacionalizou e foi correlacionado ao sentimento de patriotismo. Leônidas e Domingos são quase venerados, mas foi o futebol e seus significados que canalizaram as emoções para o sentido de nacionalidade. Nesse aspecto, o futebol ajuda na superação do racismo, no campo, especialmente, como afirma Wisnik (2008), mas essa democracia racial não se estende para a sociedade mais ampla, na qual o próprio jogador negro campeão pode ser discriminado, conforme Pinho e Grunennvaldt (2014) constatam em Mato Grosso. Eu sei que o futebol tem dessas coisas, vou dizer pra você que eu sempre evitei sair assim, nos clubes que era mais frequentado por pessoas que eram da elite, pra evitar certas coisas porque eu sou negro né? Mas, através da bola a gente era convidado e a gente ia meio receoso, mas sempre tinha um outro negro junto comigo, Glauco, eu acho que você vai falar com ele, Glauco é meu compadre (Accácio, agosto de 2014).

A narrativa evidencia que ser jogador negro campeão tornava mais leve a condição racial. Mas não era o suficiente para se sentir totalmente confortável nos grupos sociais, pois, embora fossem bem recebidos, frequentavam com receio as festas da elite. “O ser negro exigia uma vigilância constante para se resguardar de situações constrangedoras. Havia um processo de aceitação e negação dependendo do espaço social, uma vez no clube, era herói, mas, uma vez na sociedade, era negro, estando passível de ser discriminado” (PINHO & GRUNENNVALDT, 2014, s/p).

Foto: Equipe do Mixto, Campeão de 1959 Fonte: Pinho e Grunennvaldt (2014).

Os jogadores entrevistados pelos autores foram Accácio e Marcelo, ambos na parte de baixo da foto. Accácio é o primeiro da esquerda para a direita, Marcelo o terceiro. Nesse certame de 1959, no qual o Mixto foi campeão, houve participação de dez equipes. Os jogadores negros no Mato Grosso apresentavam, em um contexto de futebol “amador” entre as décadas de 1950 e 1970, práticas e hábitos que permeavam a seriedade do profissionalismo. Esses jogadores se dedicavam ao máximo visando conquistar os campeonatos,

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apesar de certa precariedade material, faziam treinamentos e concentração. Além disso, cuidavam do “corpo” com hábitos de alimentação e sono saudáveis Pinho & Grunennvaldt, (2014). O estudo destaca que, embora o Mixto Esporte Clube tivesse passado por inúmeras crises de gestão, inclusive ficando de fora dos campeonatos nos últimos anos, foi grande a importância dessa geração de jogadores, especialmente dos negros, pela força no desenvolvimento de subjetividades com o esporte, pois o sentimento de amor pelo futebol ficou enraizado no imaginário social dos mato-grossenses. Afirmam os autores que “as configurações dos sujeitos criaram uma estrutura tangível de materialidade e subjetividade no esporte. Ou seja, [...] desenvolveram o aparato cultural (simbólico) para o crescimento do futebol que se constitui importante atividade de lazer no estado de Mato Grosso” (PINHO & GRUNENNVALDT, 2014, s/p). Uma das hipóteses com a qual começamos flertar ao ler “Veneno remédio” (WISNIK, 2008), a respeito do negro no futebol, seria a representação simbólica da vitória do negro no futebol. O significado seria o contrário do “sentimento de vira-latas” cunhado por Nelson Rodrigues quando atribuíram a raça/cor dos jogadores à derrota brasileira. O cronista fez menção ao profundo sentido de inferioridade do brasileiro. A figura do negro campeão simbolicamente apazigua o mal-estar psíquico (profundo complexo de inferioridade do colonizado também discutido por Frantz Fanon), porque ele era a figura de nossa representação de inferioridade como nação, segundo o imaginário racista. No Brasil, a importância do negro no futebol manifesta-se pelas ações de Garrincha que leva a um extremo espetacular as possibilidades do drible que se coloca na dinâmica do jogo pelo corpo que é uma construção social. O drible no futebol é um fundamento de finta: “negaceio, movimento que se dá e não se dá, em fração de segundo, confundindo a expectativa do adversário e explorando essa confusão instantânea. Nesse sentido, ele é uma perturbação da linearidade que produz um efeito poético; é chiste, produzindo uma prazerosa e desconcertante suspensão do recalcado um instantâneo do inconsciente” (WISNIK, 2008, p. 230).

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Nas Copas do Mundo de 1958 a 1970, Garrincha apresentou um desempenho que o aproximava de seres míticos (como o currupira de pés virados para trás da cultura popular brasileira), pois “era astuto, ágil, impossível de pegar e, por causa de seu alinhamento, capaz de se mover em direções imprevisíveis, capacidade potencializadora pela sua extraordinária aceleração” (WISNIK, 2008, p. 276). E Pelé, o rei, tinha uma capacidade de ver e adivinhar o lance em movimento “[...] salta assim, nessa formulação, para o pulo-do-gato; o campo é uma entidade total, mental e tátil, que desemboca no gol. A percepção dinâmica de todos os elementos envolvidos no espaço-tempo, bola-homem-campo-meta, é extensão da pele e intelecção do momento vivo”. Pelé quebra a dicotomia campo e bola,

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pois, como afirma o autor, “os dois são o mesmo, quando gravitam num espaço que é um corpo através de um corpo que atrai consigo o espaço” (Idem, 2008, p. 290). Até a década de 1970, o futebol brasileiro já havia desenvolvido uma linguagem poética com as jogadas de Garrincha, Pelé, Leônidas, Domingos etc. Essa linguagem se torna cultura no esporte e será amplamente utilizada por futebolistas negros e brancos nas gerações seguintes Murad (1996); Wisnik (2008). Embora o negro tenha contribuído sobremaneira no futebol e em outras instâncias da sociedade brasileira, o imaginário social sobre raça se ampara ainda no racialismo, ou seja, no conjunto de teorias raciais, mas agora não mais como ciência, mas como mito, estereótipo. O MITO NEGRO NO FUTEBOL: ASPECTOS SIMBÓLICOS DA VIOLÊNCIA RACISTA

Souza (1983) afirma que o mito é uma fala, um discurso ─ verbal ou visual, uma forma de comunicação. Mas o mito, segundo a compreensão da autora, é uma fala que objetiva escamotear o real, produzir o ilusório, negar a história. É “instrumento formal da ideologia, que pode entender-se como resultante da convergência de determinações econômico-politico-ideológicas e psíquicas”. É um conjunto de representações que resulta do “funcionamento do psiquismo em que predomina o processo primário, o princípio do prazer e a ordem do imaginário” (1983, p. 25). O mito negro configura-se em variáveis que produzem singularidade do problema negro: 1) pelos elementos que entram em jogo na composição desse mito; 2) pelo poder que tem esse mito de estruturar expectativas e exigências, ocupado e vivido pelo negro enquanto objeto da história. O mito negro é uma figura do insólito, do diferente. O diferente do negro tem na figura do branco a sua referência, pois o negro se associa à figura de inferior e subalterno. O irracional, o feio, o ruim, o sujo, o sensitivo, o superpotente e o exótico são as principais figuras representativas do mito negro. É uma mensagem ideológica. A representação do negro como elo entre macaco e o homem branco é uma das falas míticas mais significativas de uma visão que o reduz e cristaliza à instância biológica. Esta representação exclui a entrada do negro na cadeia dos significantes, único lugar de onde é possível partilhar do mundo simbólico e passa da biologia à história (SOUZA, 1983, p. 28).

Isso quer dizer que, ao gritar “macaco” nos estádios de futebol12 não evoca as teorias racialistas, ela evoca um mito, cuja narrativa, em cumplicidade com as simbologias atribuídas a ele pela cultura, funciona como arquétipo. O “macaco” atribuído ao negro é arquétipo, pois eis que muito revestido de simbologias, que organiza o imaginário (individual e coletivo) e se estrutura por uma linguagem que torna visível o invisível e seus efeitos 12 Os gritos de “macaco” direcionados por alguns torcedores do Grêmio ao goleiro Aranha, do Santos, no jogo do dia 28 de agosto de 2014. Grafite foi xingado de “negro de m...” pelo zagueiro Desábato, que jogava no Quilmes, da Argentina, em uma partida pela Libertadores de 2005.

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O ESPORTE, O FUTEBOL, AS EMOÇÕES E AS TENSÕES RACIAIS

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Norbert Elias (1992), ao estudar os processos sociais de longa duração, mais marcados pela lentidão que pela velocidade, afirma que o desenvolvimento do esporte se iniciou no período medieval com a caça às raposas, no qual se organiza um quadro de animais, pessoas e ferramentas em interdependência para o sucesso da caçada. À época, o prazer se situava na emoção da morte e subsequente ingestão do animal caçado. Entretanto, desapareceu a emoção de caçar para comer e houve um deslocamento na ênfase do prazer para o puro excitamento da busca. Matar a raposa era fácil, mas o sentido do entretenimento estava em prolongar o processo de busca. Elias quis dizer que a excitação da busca é real e é o que vale. O esporte moderno, “realidade” de jogo é uma atividade mimética que decorre de ações humanas com certo nível de controle nas condutas, ainda que em situação de excitação. O fundamento básico das atividades de lazer é o repouso, o descanso, o entretenimento. Não há sociedade que exista sem lazer, ainda que sejam rituais, promovem emoções e prazer. Desde que os impulsos passam a ser controlados, o lazer se destaca como a atividade de equilíbrio das emoções humanas que vivenciam tensões no cotidiano do mundo do trabalho. O esporte se constitui nesse processo como uma das facetas da sociedade para viver emoções e restabelecer as tensões criadas pelo rígido, sério, sem riso. Os sentimentos de alegria são necessidades humanas bastante reprimidas nas atividades sérias (trabalho) desenvolvidas na modernidade Elias (1992); Rodrigues, (1999). Para Norbert Elias, o futebol faz parte do arcabouço de atividades de lazer inventadas pelo homem moderno. Trata-se de um confronto mimético (não real) que permite o sentimento coletivo e manifestações intensas de emoções. Mas, como jogo, se compõe de normas que conduzem as movimentações corporais sob controle e, com a modernização, foi inventado com técnicas e táticas que de certa forma não incorrem em risco ou perigo para os participantes. As evocações da torcedora no futebol e outros casos de racismo no esporte não

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são múltiplos e duradouros. Traçando a estrutura antropológica do imaginário racial brasileiro, o macaco é um arquétipo “substantivo”, integrado ao mundo dos animais, a natureza. Lembra o homem primitivo, o qual, segundo as leis das correntes racistas, nasceu em centro diferente. Essa concepção tem suas origens no pensamento poligenista, não sendo possível a “evolução” nem via educação no contato com o branco. Essas ideologias raciais remontam a um processo de desqualificação que não pertence ao cientificismo dos séculos XIX e início do XX, embora tenha suas origens nele. Na arena do esporte, especialmente futebol, a mídia cumpre o papel de registrar e divulgar as atitudes racistas e essa publicização remexe na ferida do brasileiro que a essa altura já desenvolveu uma consciência mais apurada e crítica sobre as relações raciais no Brasil, não tolerando esse tipo de atitude considerada natural à época de Pelé e outros jogadores negros que atuaram da década de 1950 à de 1970 entrevistados por nós.

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podem ser vistos como algo isolado, pois na verdade encarnam e expressam um sentimento, cujas origens estão nas tensões das relações vivenciadas na sociedade brasileira. Afirma Norbert Elias que é difícil discernir o que é real e o que é jogo no futebol, mas que o esporte perde seu valor humanizador e de lazer quando se imprime nele as tensões reais. O futebol fornece um quadro imaginário que se destina a autorizar o excitamento (as emoções). Mas quando expressa com sentimentos de ódio racial, ainda que seja inconscientemente ou por ignorância, carrega um traço de descivilização que aflige o grupo maior. Ainda que esteja em um universo simbólico de expectador/torcedor de uma atividade de lazer que permite evocar sentimentos de amor, ódio, tristeza, alegria, é proibido denominar um futebolista negro de “macaco”, porque desloca o imaginário do lazer (mundo mimético) para um mito, que uma vez evocado tem validade por causa dos sistemas simbólicos que engendram seus significados. As atitudes racistas não colocam em dúvida o valor do negro como guerreiro na arena do futebol. O que está em evidência é uma necessidade tremenda de desequilibrar o controle do jogador, mas essa atitude tem a cabo uma desqualificação do negro como humano, pois o coloca, ainda que seja pela força do mito, no mundo determinado pelas heranças biológicas, sem o pleno poder de desenvolvimento. O simbólico é o que importa, o real está no significado do mito (macaco), sem história, sem cultura, porque é animal. Daí o racismo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS O resultado de nossas pesquisas indica que, apesar da importância do negro no desenvolvimento do futebol, o racismo se manifesta por uma ativação do arquétipo “macaco” cuja figura encarna os princípios do racialismo e, na hierarquia dos valores, adquire concepção de inferioridade. O futebol é o lazer favorito dos brasileiros, mas os processos de racismo no interior dos estádios se configuram em uma descivilização que marca o quanto nossas condutas são controladas em uma sociedade, cujos referenciais culturais são etnocêntricos e hierarquizadoras da diversidade humana. É pela cultura desenvolvida no plano social que se aprende o racismo, é pela cultura que se desconstroem tais aprendizagens. A escola, nesse caso, tem um papel especial na formação de crianças e jovens para a diversidade humana, pois cabe a ela promover conhecimentos e vivências (de corpo encarnado) que transformem as sensibilidades. A Educação Física, entre “o não mais” e o “ainda não”, busca modos de legitimação no contexto escolar com o objetivo de formar alunos “dotados de capacidade crítica, capazes de lidar autonomamente na esfera da cultura corporal de movimento e auxiliar na formação de sujeitos políticos, munindo-os de ferramentas que os auxiliem no exercício da cidadania” (GONZÁLEZ & FENSTERSEIFER, 2010, p. 12). Nesse intento, emerge nosso desafio, ou seja, o de buscar “meios” de formação em Educação Física que problematizem a cultura corporal com os processos ideológicos que se manifestam nos grupos sociais, como a inclusão e exclusão de gênero, raça/cor, religião, etnias, que aparentemente parece

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pouco, mas que na estrutura mais profunda da fundação social brasileira aparecem para desqualificar o outro.

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artigos Foto: Wagner Ferraz

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JUVENTUDE, ESCOLA E DEMOCRACIA: ALGUNS INDICADORES PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA PRÁTICA EDUCATIVA LIBERTADORA

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João Paulo Mariano Domingues13 Walter Ernesto Ude Marques14 RESUMO Este artigo buscou compreender se a escola poderia se constituir como um espaço democrático por meio da organização de um território propício para construções coletivas implicadas com a diversidade dos sujeitos que a frequentavam. Para isto, estabeleceu diálogos com estudos acerca da educação popular e educação social, democracia e juventude. Trata-se do resultado de uma pesquisa realizada em 2015, com jovens estudantes do ensino médio de uma escola pública da cidade de Ribeirão das Neves, na região metropolitana de Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais. Partimos do pressuposto que para consolidar uma organização coletiva e democrática é necessário que se estabeleça anteriormente o diálogo entre os envolvidos no processo de construção coletiva da realidade educativa. Os estudos analisados permitiram compreender e problematizar sobre as possibilidades, limites e desafios da construção de relações dialógicas, democráticas e participativas no espaço escolar. Além disso, nos aproximou da compreensão de como as experiências de diálogo se efetivavam neste espaço com o objetivo de analisar se, realmente, as perspectivas de uma organização coletiva eram materializadas junto aos jovens estudantes.

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JUVENTUDE, ESCOLA E DEMOCRACIA: ALGUNS INDICADORES PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA PRÁTICA EDUCATIVA LIBERTADORA

PALAVRAS-CHAVES: Juventude. Escola. Democracia. Educação Libertadora.

YOUTH, SCHOOL AND DEMOCRACY: SOME INDEXES FOR THE CONSTITUTION OF A LIBERTARIAN EDUCATIONAL PRACTICE artigos

ABSTRACT This article attempts to comprehend how schools could constitute themselves as democratic mediums through the organization of a territory that fosters collective constructs stemming

13 Mestrando pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG e Pedagogo pela mesma universidade. Membro do coletivo MOVAUT - Movimento Autogestionário / núcleo Belo Horizonte. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Ciência da Educação. Atua principalmente nos seguintes temas: Juventude, Praticas Culturais, Contestação Política e Social, Educação Popular e Educação Social.

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14 Possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1981), mestrado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (1993) e doutorado em Psicologia pela Universidade de Brasília (2000). Pós-Doutorado na Universidade Federal Fluminense (2006-2007); Pós-doutorado na Universidade Federal de Juiz de Fora (2013). Atualmente é Professor Associado da Universidade Federal de Minas Gerais, no Programa de Pós-graduação Promestre, e professor da Faculdade Universo.


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from the diversity of subjects that attended them. To do so, it established dialogues with studies on the subjects of popular and social educations, democracy and youth. It concerns the results of a field study that occured in 2015, with young high school students from a state school in the city of Ribeirão das Neves, in the Belo Horizonte, MG metro area. We followed the precept that to consolidate a collective and democratic organization it is necessary to establish a dialogue between those involved in the process of collective construction of an educational reality previously. The studies analyzed allowed us to comprehend and problematize on the possibilities, limits and challenges of the construction of dialogical, democratic and participatory relations on an educational medium. Beyond that, it brought us closer to the comprehension of how the experiences of dialogue effectivated themselves in this medium with the objective of self-analysis and if the experiences of a collective organization were truly materialized together with the young students. KEYWORDS: Youth. School. Democracy. Libertarian Education Este artigo buscou compreender se a escola poderia se constituir como um espaço democrático por meio da organização de um território propicio para construções coletivas implicadas com a diversidade dos sujeitos que a frequentavam. Para isto, estabeleceu diálogos com estudos acerca da educação popular e educação social, democracia e juventude. Trata-se do resultado de uma pesquisa realizada em 2015, com jovens estudantes do ensino médio de uma escola pública da cidade de Ribeirão das Neves, na região metropolitana de Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais. Embora o princípio democrático esteja garantido por lei, através da Constituição Federal Brasileira de 1988, no capítulo III, da Educação, da Cultura e de Esportes, Seção I, da Educação, no inciso VI e apesar da relevante produção acadêmica acerca de práticas democráticas em contextos escolares, consideramos prudente questionar a materialidade dessas propostas em uma escola pública de uma região periférica, frequentada por jovens do ensino médio. Para essa compreensão consideramos como pressuposto para a construção coletiva, o diálogo analisado pelos principais sujeitos do ensino médio, o jovem estudante. No que se refere ao diálogo, a partir de pesquisa realizada com autores de relevância no cenário brasileiro, como Dayrell (2007), Corti e Souza (2005), pesquisadores que se dedicam a estudos acerca das “juventudes”, é possível constatar a presença do diálogo como pré-requisito para a participação e interação do jovem com o ambiente educativo. Embora o diálogo seja uma palavra bastante usada nas pesquisas sobre “Juventudes”, “Gestão Democrática”, “Autogestão”, poucas apresentam análises relativas às nuances dos diálogos desenvolvidos dentro do ambiente escolar. Neste sentido, esse estudo se propôs a compreender o diálogo em si mesmo, como uma forma de contribuir com outros estudos na área, bem como para a revisão de práticas escolares rígidas e fragmentadas que caracterizam o cotidiano escolar atual. Desta forma, partimos do pressuposto que para consolidar uma organização coletiva e democrática é necessário que se estabeleça anteriormente o diálogo entre os envolvidos no processo de construção coletiva da realidade educativa.

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AFINAL, É POSSÍVEL UMA ESCOLA DEMOCRÁTICA? Essa pergunta suscitou todo o percurso da pesquisa, a qual representou a produção de importantes indicadores para a compreensão do fenômeno pesquisado. Portanto, são abordados alguns estudos e problematizações acerca das possibilidades e limites na construção de uma organização escolar democrática. A partir da perspectiva dos jovens estudantes, foram encontrados pontos compro-

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Os estudos analisados permitiram compreender e problematizar sobre as possibilidades, limites e desafios da construção de relações dialógicas, democráticas e participativas no espaço escolar. Além disso, nos aproximou da compreensão de como as experiências de diálogo se efetivavam neste espaço com o objetivo de analisar se, realmente, as perspectivas de uma organização coletiva eram materializadas junto aos jovens estudantes. No tópico a seguir, são abordados alguns elementos levantados pelos próprios jovens acerca da organização escolar.

metedores das ações comunicativas e importantes para a discussão da temática proposta, como: aspectos da arquitetura, os tempos e espaços escolares; o distanciamento entre as ferramentas tecnológicas e os sujeitos da comunidade; a precariedade da condição docente; as restrições e potencialidades do lazer; as práticas mecânicas; a limitação dos órgãos representativos; a falta de investimento em educação e fatores externos. Sendo assim, as referências apresentadas em diálogo com as análises dos dados da pesquisa, expõem a cultura escolar, no sentido de questionar, as tensões que podem acarretar em desafios e/ou potencialidades para a construção de uma organização democrática permeada por relações dialógicas, bem como, a participação dos jovens como sujeitos ativos nesta construção. DA ARQUITETURA, DOS TEMPOS E ESPAÇOS ESCOLARES

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Embora não seja possível generalizar, existe um padrão na construção das escolas, bem como alguns elementos que a constituem na configuração da sua arquitetura e na regulação dos seus tempos e espaços. Nesse sentido, foi notório observar que a escola pesquisada era cercada por muros altos, sendo que em toda sua extensão se verificou rolos de arame. Havia portões em todas as partes da escola, e nos corredores e áreas externas observamos a presença de câmeras de segurança. Em cada ambiente, nos diferentes tempos da escola, notamos um responsável por fiscalizar o local. No que se refere à arquitetura e aos espaços escolares, França (1994) nos oferece um panorama histórico. Nesse percurso apresenta concepções das construções em uma perspectiva macro (sociedade), e em uma perspectiva micro (escola), apontando que as estruturas eram e são construídas sem imparcialidade. Neste aspecto, a autora afirma que a arquitetura e os espaços escolares sempre tiveram relação direta com a concepção de uma sociedade voltada para o modelo industrial. No aspecto disciplinar, constata-se es-

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treita relação com uma prisão, a qual produz modos de submissão favoráveis ao contexto de uma sociedade capitalista que fomenta a produção de processos de alienação e massificação da classe subalternizada para engendrar seus lucros a baixo custo operacional. Esse modelo padrão de arquitetura escolar, rígida, pouco interativa, com salas e espaços extremamente parecidos, dificulta a organização de espaços favoráveis para o fomento de diálogos interativos. Em outras palavras, essa arquitetura inibi as possibilidades de encontro e experiências coletivas, tão necessárias à construção do diálogo. Este aspecto se agrava quando observamos os tempos e os espaços escolares. Que por sua vez, também possui um padrão entre as diversas escolas do Brasil. O quadro de horários é composto por 5 (cinco) aulas por dia, cada uma com 50 (cinquenta) minutos de duração. Há um pequeno intervalo de 20 (vinte) minutos entre a 3ª (terceira) e a 4ª (quarta) aula. A quebra excessiva dos tempos escolares, apenas contribui para afetar a função comunicativa do ambiente (FRANÇA, 1994) e também para a precarização do ensino. Esse modo de organização reduz e compromete o aprofundamento dos conteúdos disciplinares, bem como as relações entre os docentes e os estudantes. Além da quebra excessiva dos horários, as aulas acontecem sempre no espaço destinado para esse fim, a sala de aula. Outros espaços dentro da escola são pouco utilizados ou definitivamente não são utilizados, revelando uma tradição “aulista” e transmissiva características da escola tradicional. Esse aspecto revela também que os jovens são impossibilitados de se apropriar de determinados espaços escolares, indicando a baixa comunicação entre os estudantes e a instituição escolar. Salas superlotadas, espaços restritos para outros tipos de sociabilidade vivida no interior da escola, chegam mesmo a inibir e até impedir a movimentação tanto dos alunos quanto do professor dentro de sala de aula. Neste sentido, a sala de aula apresenta baixas possibilidades de comunicação, uma vez que, o pouco espaço faz com que as pessoas não tenham acesso umas as outras. Nesse ponto, fica evidente que uma boa comunicação entre os sujeitos escolares está diretamente relacionada com a melhoria da qualidade das condições escolares, já que propicia interação, tempos disponíveis para o diálogo e espaços suficientes para o desenvolvimento de atividades coletivas. A diversidade de opiniões e modos de ser exigem possibilidades de escuta e diálogo para tratar as diferenças e as semelhanças entre os sujeitos escolares. Essa configuração remete para as subjetividades que caracterizam as singularidades de cada grupo e de cada sujeito participante da comunidade educativa (BOHM, 2005). Essa rotina escolar que envolve a arquitetura, os tempos e espaços da escola pesquisada, compõe um quadro de repetição característico desse modo de organização, que pretende garantir uma ordem local, a partir do controle e da disciplina. Sendo assim, percebemos que a gestão dessa escola, com o intuito de tentar manter a ordem no ambiente escolar, procura evitar conflitos, por meio de posturas que fiscalizam os tempos e espaços da escola, como também reduzem os contatos entre professores, direção e estudantes, tornando as relações efêmeras. Esse formato escolar revelou uma preocupação permanente com o controle dos

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DAS FERRAMENTAS TECNOLÓGICAS

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cas na escola, a qual representa uma instituição formadora de cidadãos e cidadãs que, numa sociedade capitalista, não encontram possibilidades de expressão das inquietações. Diante disso, a ação comunicativa se torna comprometida sem possibilitar uma efetiva participação dos estudantes na construção coletiva da organização escolar. Em nome de uma disciplina punitiva, a convivência se tornava restrita ao modelo imposto, apesar das resistências verificadas no contexto escolar observado. Desta forma, pode-se afirmar que a arquitetura da escola, seus tempos e espaços não são neutros frente ao modelo capitalista de sociedade que a constitui, o qual impõe relações hierárquicas entre a gestão e os subordinados ao sistema. Entretanto, outro paradigma poderia nortear a organização do contexto escolar, tendo em vista a distribuição do tempo e dos espaços observados na pesquisa, os quais funcionavam de forma restritiva e pouca explorada para distintas práticas educativas. Por que não se estende o tempo das aulas para, pelo menos, para 90 minutos? Por que não se utiliza outros espaços escolares além da sala de aula? Por que não se explora outros territórios que estão disponíveis além do âmbito escolar? Como salienta França (1994), a arquitetura escolar, desde os seus primórdios, acompanhou uma lógica panóptica para conter as mentes e os corpos dos seus frequentadores, os quais foram vistos como potenciais forças de trabalho a serem docilizadas para o sistema capitalista.

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estudantes por meio desse mecanismo de manutenção da ordem sem abertura para o imprevisível e, desta forma, se exime de situações inusitadas e propõe a eliminação das possíveis desordens. Esses indicadores demonstram uma indisponibilidade para discutir possibilidades de reconstrução nas relações cotidianas. Sobre estes aspectos apresentados, França (1994) em sua obra aponta um marco importante, que consideramos como aspecto determinante para a constituição dessa organização, que é posterior à revolução industrial e tem suas implicações entre os séculos XVIII e XIX, quando então a escola passou a incorporar “valores” provenientes do regime capitalista, muito semelhantes ao modo de funcionamento de uma fábrica como: pontualidade, obediência, trabalho mecânico e repetitivo. Este modo parece se arrastar até os dias atuais. Nesse ponto, foi possível observar que a arquitetura da escola, seus tempos e espaços, associados ao mecanismo de manutenção da ordem e para “prevenir” conflitos, neutralizavam possibilidades de diálogo entre os atores da comunidade escolar. Esse cenário revelou como a manutenção da disciplina oculta o impedimento de relações democráti-

Os equipamentos da escola permanecem completamente ultrapassados, sem correspondência com a realidade dos atores da escola. Este aspecto representa um distanciamento cultural entre a tecnologia utilizada pela escola e os atores inseridos naquele contexto. Neste sentido, apontamos uma reflexão sobre a era da informação que, ao contrário da era Industrial, o poder não se restringe ao conhecimento, é necessário saber

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como chegar até o conhecimento (GADOTTI, GUTIERREZ; 2001). Trata-se das tecnologias utilizadas para cumprir o percurso até o conhecimento, essa tecnologia pode ser exemplificada por livros, jornais, periódicos, mas por sua centralidade na atualidade, apontamos para o computador, a televisão, o celular. Neste sentido, uma escola em defasagem com os mecanismos utilizados para chegar às informações que constroem o conhecimento negam uma cultura predominante, uma vez que esses sujeitos já nasceram tendo acesso a essas tecnologias. Com isso, reproduzem de forma naturalizada à alienação desejada pelo capitalismo para o controle social. Para este estudo foi importante destacar que, as tecnologias da informação estão diretamente relacionadas aos processos de comunicação, sejam eles globais, locais, intersetoriais e interpessoais, por isso, uma vez negada a utilização das tecnologias necessariamente se precariza as relação comunicacionais. DA CONDIÇÃO DOCENTE Os professores possuíam jornadas duplas e até mesmo triplas de trabalho na mesma escola e em outras instituições. Isso nos remete aos baixos salários e precários planos de carreira para esse profissional. Neste aspecto, cabe indagar se: a carga horária real vivenciada por estes profissionais possibilita uma ação democrática e transformadora? A formação desse profissional é condizente com a realidade vivenciada? No quadro docente da instituição pesquisada, 52% são designados pelo estado e 48% são efetivos, com isso foi possível inferir que o número superior de designados retrata a lógica neoliberal adotada pelo setor de educação, no sentido de que a partir da falta de políticas de investimento em professores da rede pública, causa ao profissional insegurança em sua permanência na posição de professor desta instituição. Essa característica não permite que o professor crie uma relação com a comunidade escolar, o que dificulta também a elaboração de projetos e a construção de uma perspectiva democrática. Ou seja, degrada a criação de vínculos entre os atores da comunidade escolar, além de contribuir para o não pertencimento deste profissional à instituição, porque está condicionado a um período incerto de trabalho. Desta forma, este tipo de vínculo institucional contribui para a baixa comunicação no âmbito escolar, ou melhor, este aspecto compromete as potencialidades do diálogo, uma vez que, os vínculos estavam suscetíveis a contratos temporários. DAS RESTRIÇÕES E POTENCIALIDADES DO LAZER Pensando no contexto desta escola, foi possível perceber que ela possuía uma forma de organização dos tempos escolares, divididos em tempo de dedicação ao estudo das disciplinas, delimitado pela estrutura rígida dos horários das aulas e o tempo conquistado para o lazer, delimitado pelas feiras de cultura, recreio, convivência, e brincadeiras. Além disso, dentro dessa estruturação escolar observada, identificou-se outras lógicas e

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dialógicas de complementaridade e contradição simultâneas, as quais geram tensões que produzem novas significações e sentidos no movimento dinâmico de interações entre os sujeitos. O lazer, portanto, foi compreendido neste estudo como fonte para o diálogo, pois permite a criação de vínculos entre os atores deste ambiente, sendo esse considerado como um elemento necessário para uma organização coletiva que estabeleça vínculos com a diversidade. Nesse processo, torna-se importante ter o cuidado para que os tempos e espaços dedicados a pretensas atividades de lazer se tornem condicionados a uma perspectiva competitiva que possa comprometer as relações entre os jovens e os demais atores da comunidade. Todavia, os estudantes apresentavam críticas a esse modelo que reforça práticas individualistas e corporativistas que são primordiais para o sistema capitalista. O lazer, neste sentido, pode ser utilizado com finalidade de troca, reproduzindo a lógica capitalista (FOUCAULT, 1987; FRANÇA, 1994) e, com isso, deixar de contribuir para a construção de espaços de interação e de criação de vínculos entre os atores da comunidade educativa. Contudo, esse campo se mostrou fértil para a produção de diálogos no seu contexto. As experiências de lazer e cultura apresentaram indicadores importantes para o desenvolvimento de conteúdos educativos e políticos que poderiam ser explorados pela comunidade escolar. Todavia, o modelo de sociedade que estão inseridos estaria mais voltado para o controle do tempo, a competição e a segregação dos indivíduos.

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formas de apropriação dos estudantes que atravessavam a espacialidade e a temporalidade compartilhadas no âmbito escolar (MALTA, 2015). Frente a esse cenário, não foi possível afirmar que o lazer não acontecia no contexto escolar, pois os jovens estudantes construíam uma contracultura escolar a partir de práticas como, por exemplo: as rodas de truco, os círculos de oração, as rodas de música. Todavia, nem sempre a escola reconhecia essas atividades como práticas educativas que produziriam sociabilidade e processos de participação coletiva. Os tempos e espaços de lazer e sua construção coletiva foram apresentados pelos jovens como mobilizadores de relações mais próximas entre os jovens estudantes e também com outros atores. O lazer, neste sentido, rompe com a estrutura rígida estabelecida pela escola. Malta (2015, p. 24, apud Melo, 2013) afirma, ainda, que não há fronteiras absolutas e rígidas entre o trabalho e o lazer, tampouco entre o lazer e as obrigações diárias, sendo que esses aspectos se misturam, dinamicamente, na vida cotidiana. Nesse sentido, não compreendemos o lazer em oposição ao trabalho, mas como dimensões que estabelecem relações

DAS PRÁTICAS MECÂNICAS Os jovens desta escola, se mostraram decepcionados com as práticas mecânicas utilizadas para aplicação dos conteúdos disciplinares, uma vez que, provocavam nos estudantes desinteresse e desanimo. Uma educação libertadora (FREIRE, 1987) adota o diálogo

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como pressuposto básico para que haja a emancipação do sujeito e, para isso, defende a necessidade de uma boa comunicação entre os atores escolares. O reforço das práticas mecânicas, verificado no contexto pesquisado, apareceu como confirmação de um ambiente pouco comunicativo. O ensino tradicional produz desinteresse entre os jovens já que não encontram nenhum elo entre o conteúdo exposto na lousa e as experiências compartilhadas na vida cotidiana. Aqui, a pedagogia libertadora defendida por Paulo Freire (1987), remete para uma ruptura com essa lógica mecanicista ao propor sua ênfase na valorização dos saberes produzidos pelos sujeitos como ponto de partida para a construção de um conhecimento pertinente. Esse olhar político-pedagógico de caráter emancipatório representa um indicador para o fomento de práticas dialogadas no âmbito escolar. Por outro lado, não se pode negar as condições de trabalho do corpo docente enfrentadas neste contexto delineado por um tempo reduzido e prescritivo. Nesse sentido, foi evidente verificar que as dificuldades encontradas pelos professores comprometiam a possibilidade de propor aulas mais dinâmicas.

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DOS ÓRGÃOS REPRESENTATIVOS Para Bobbio (2000) democracia representativa se refere às deliberações coletivas, no sentido de estabelecer deliberações que envolvam a coletividade inteira, as quais são tomadas por pessoas eleitas para esta finalidade. O autor apresenta duas possibilidades de representação, a primeira caracteriza-se por um embaixador, um porta voz, que tem seus poderes limitados. A segunda tem o poder de agir com liberdade e por conta dos representados, podendo interpretar com discernimento próprio os seus interesses. Chauí (2004) diz que o essencial da democracia representativa é que o poder não se identifica com os ocupantes, não lhes pertence, mas tornando-se sempre um lugar vazio, no qual os cidadãos preenchem com um representante. Contudo, para Bobbio (2000, p. 5) “a democracia é um método de gestão composto por um conjunto de regras que colaboram para a construção e formação das decisões coletivas, onde os sujeitos do ambiente democrático tenham ampla participação”. O conjunto de regras procedimentais de uma ação democrática apenas estabelecem “como” se deve chegar as decisões e não “o que” decidir afirmam Bobbio, Mateucci e Pasquino (2004). Ou seja, para que um espaço ou órgão seja considerado democrático, é necessário mais do que formas representativas de participação. Neste contexto, a gestão democrática escolar pode apresentar formas parciais de apropriação do termo, ou seja, conferir a escola uma identidade democrática a partir de ações isoladas, como, por exemplo, a participação de jovens estudantes em órgãos colegiados, caso da escola pesquisada (CARDOSO, 1995). Embora a participação dos estudantes nestes espaços sejam um importante instrumento democrático, é impossível determinar o caráter democrático a partir apenas de uma ação. Desta forma, o conselho escolar, o colegiado escolar, o colegiado comunitário, as associações de pais e mestres, o

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DAS AÇÕES NÃO LINEARES E CONSTRUÇÃO DE VÍNCULOS Tendo em vista a perspectiva dos jovens desta escola, foi possível perceber que em diversas ocasiões requeriam a implicação dos atores da escola no que se refere ao

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processo de consolidação da educação. De forma que, pudessem contar com pessoas comprometidas para atuar junto com eles na construção de uma escola que seja, de fato, transformadora. Nesse aspecto, Paulo Freire (1989) é veemente na defesa de uma clareza do educador na relação entre autoridade e democracia, em contraposição ao autoritarismo e à licenciosidade. Ou seja, a democracia depende de uma liderança que integre os anseios da coletividade de uma forma acolhedora e firme. Para esse educador, a educação não pode abrir mão de limites, pois tanto a ausência de limites quanto o excesso estabelecem experiências despóticas. Além disso, a autoridade constitui liberdade responsável, tanto no nível pessoal quanto social, produzindo um coletivo regulado por relações éticas. Neste sentido, Freire (1989, p.20) afirma que, educadores necessariamente são diferentes de educandos, desta forma servindo como parâmetro de liberdade para os jovens. Isso não anula a postura de aprendizagem que o educador pode adotar frente aos jovens, na medida em que os escuta, tornando-se, desta forma, um educador “substancialmente democrático”. No que se refere a não linearidade deste espaço, apontamos uma personagem identificada na escola pesquisada, a coordenadora pedagógica que, nesse emaranhado consegue tecer diálogos de maneira interessante. Freire (1989) afirma que, o educador deve ser essa figura em que os educandos possam confiar, e possam procurar para conversar. Isso se dá justamente pelo fato da educadora assumir sua autoridade junto aos jovens, ao mesmo tempo em que reconhece a liberdade deles. Essa postura dialógica compreende a ação democrática. Embora seja uma ação isolada, era extremamente necessária para que houvesse a extensão dessa postura, uma vez que era reconhecida por outros educadores dentro da comunidade educativa. Mais uma vez, ficou evidente que as perspectivas autoritária ou permissiva não eram adotadas por todos educadores da escola, não sendo praticada de forma linear entre os funcionários desta instituição.

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grêmio estudantil, podem não garantir o caráter democrático do ambiente escolar mesmo que estes órgãos deliberativos estejam todos presentes em uma mesma escola. Segundo Souza (2009), a escola ao colocar em prática os processos de gestão baseados na lógica da maioria, corre o risco de tornar seus processos de tomadas de decisões uma ação padronizada e fragmentada da realidade escolar em um movimento mais violento e autoritário do que democrático. As práticas verticais, características da forma representativa de participação, colaboram para o enfraquecimento das relações dialógicas dentro do ambiente educativo, uma vez que, diversos atores da comunidade tem condições precárias ou não tem condição para participar das decisões que envolvem o coletivo escolar.

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DOS JOVENS O jovem na escola, em diversos casos, é ignorado enquanto sujeito ativo na construção da organização escolar. Isso é justificado pelos estereótipos assinalados por diferentes mídias e a imagem histórica de que o jovem representa apenas uma etapa de transição, ou seja, a passagem de uma etapa inconstante e incompleta para uma etapa “constante e completa” (DAYRELL e CARRANO, 2014). Dayrell e Carrano (2014, p. 107) afirmam que, “enxergar o jovem pela ótica dos problemas é reduzir a complexidade desse momento da vida. É preciso cuidar para não transformar a juventude em idade problemática, confundindo-a com as dificuldades que possam afligi-la”. Com isso, não queremos apresentar uma imagem romantizada da juventude, associada à liberdade e prazer sem fronteiras. Neste sentido, durante a pesquisa observamos relevante número de proposições dos jovens da escola pesquisada. Um dos objetivos deste estudo foi compreender a organização escolar a partir da perspectiva juvenil e os jovens não só demonstraram grande conhecimento acerca da instituição como se mostraram bastante propositivos, descaracterizando possíveis apontamentos de que o jovem não é capaz de debater sobre determinados assuntos inerentes a este meio, a escola. Como afirmam Corti e Souza (2005, p. 19) em relação a escola, “por não ter participado e se envolvido em sua construção, o jovem possui mais condições para estranhá-la e questioná-la”. Este trecho tem a intenção de demonstrar não só essa articulação juvenil dentro da escola, mas também de explicitar a capacidade que esse jovem estudante tem em dialogar de forma contundente com a realidade vivida. No que se refere à organização escolar entendemos que a participação dos jovens estudantes não é só importante, mas fundamental para a construção do ambiente educativo, uma vez que, esse jovem se mostra totalmente implicado com os diversos conflitos que se estabelecem nesse meio, sendo fonte primordial para a construção do diálogo e a organização coletiva.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir dos dados analisados consideramos que o diálogo acontecia entre os sujeitos da comunidade educativa, contudo, na maioria dos casos, apresentava-se de forma limitada e ocorria de forma intersticial. Elementos levantados pelos jovens, como: a arquitetura, os tempos e espaços escolares; o distanciamento entre as ferramentas tecnológicas e os sujeitos da comunidade; a precariedade da condição docente; as restrições ao lazer; as práticas mecânicas; a limitação dos órgãos representativos; a falta de investimento em educação e fatores externos se mostraram comprometedores das ações comunicativas e interativas da escola. Mas como foi possível perceber, o espaço escolar não era rígido e linear, portanto, se percebeu o diálogo em uma forma mais complexa a partir de alguns atores da comunidade educativa, especialmente, os jovens estudantes. Contudo, os diversos sujeitos necessitavam estabelecer um diálogo em sua forma mais ampla, caso contrário, o diálogo se

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apresentava sempre de maneira limitada. Através dos tópicos apresentados foi possível inferir que a escola não adotava o diálogo como fonte de reflexão e mudança, tão necessária para a construção de uma organização coletiva coerente. Desta forma, as ações - mesmo que apresentassem algumas nuances necessárias para que o diálogo ocorresse -, eram neutralizadas e os sujeitos acabavam naturalizando o problema, sem qualquer questionamento ou apropriação dos fatos. As necessidades cotidianas para a construção de uma organização coletiva não eram enfrentadas nos seus conflitos, de maneira a gerar, uma reflexão da comunidade escolar com vistas a transformar essas necessidades em ações alternativas e transformadoras. A partir da concepção de organização escolar adotada e com base no principal pressuposto analisado, consideramos que essa escola não pode ser considerada democrática em sua forma mais complexa. Acompanhando as potencialidades do diálogo, a escola apresentava apenas alguns traços democráticos. Contudo, entendemos que há um interesse mais amplo que interfere diretamente nas possibilidades de transformação desse espaço, ou seja, consideramos que o projeto capitalista neoliberal tem contribuído muito para que a escola seja levada por uma corrente de naturalização de suas ações, fazendo com que projetos alternativos sejam dificultados, desta forma, produzindo escolas apáticas às possibilidades de mudança (WACQUANT, 2008). Neste sentido, a partir do exposto sobre a juventude consideramos que os jovens são fundamentais para a mobilização dos agentes educativos na transição de uma ação opressiva e permeada muitas vezes pela inação, para uma ação transformadora/libertadora. Ou seja, os jovens estudantes apresentaram potencial para conferir à escola esse caráter democrático, baseado nos princípios da autogestão. Contudo, é necessário que seja confiado ao jovem parte da responsabilidade da construção do ambiente educativo. Para isso, é necessário que todos os atores da comunidade educativa se desloquem de uma postura estática para as novas possibilidades de atuação.

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artigos Foto: Wagner Ferraz C3

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A PRAÇA É NOSSA! NARRATIVAS COTIDIANAS E PEDAGOGIAS CULTURAIS

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Amanda M. P. Leite15 RESUMO Quando a aula de Didática acontece na praça, o que ela pode provocar? Neste artigo procuro pensar a importância das Pedagogias Culturais a partir de aulas realizadas na Praça dos Girassóis, entre monumentos e símbolos arquitetônicos da paisagem urbana da cidade Palmas/TO. Tal exercício de pensamento só é possível por entender que as Pedagogias Culturais acontecem também fora das salas de aulas escolares e acadêmicas, e que os espaços de ensino e de aprendizagem podem surgir em diferentes lugares, como é o caso da ocupação da praça como cenário de aulas para estudantes de Pedagogia, da Universidade Federal do Tocantins (UFT).

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A PRAÇA É NOSSA! NARRATIVAS COTIDIANAS E PEDAGOGIAS CULTURAIS

PALAVRAS-CHAVE: Pedagogia Cultural. Aulas moventes. Ocupação. Praça dos Girassóis

THE PARK IS OURS! EVERYDAY NARRATIVES AND CULTURAL PEDAGOGIES

KEYWORDS: Cultural pedagogy, moving classes, occupation, Praça dos Girassóis

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ABSTRACT When didactics classes happen in the field, what can they provoke? In this article, I seek to think on the importance of Cultural Pedagogies based on the classes performed on the “Praça dos Girassóis” (lit. “Park of the Sunflowers”), between monuments and architectonic landmarks of the cityscape of Palmas/TO. Such an exercise of thought is only possible to understand if one understands that Cultural Pedagogies also occur outside classrooms, and that places of teaching and learning can occur in different places, such as in the case of the occupation of the park as the scape of the classes of education students from the Federal University of Tocantins (UFT).

Quando a aula de Didática acontece na praça, o que ela pode provocar? Neste artigo procuro pensar a importância das Pedagogias Culturais a partir de aulas realizadas na Praça dos Girassóis, entre monumentos e símbolos arquitetônicos da paisagem urbana da cidade Palmas/TO. Tal exercício de pensamento só é possível por entender que as Pedagogias Culturais acontecem também fora das salas de aulas escolares e acadêmicas, 15 Fotógrafa. Pedagoga. Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade da UFT. Professora do curso de Pedagogia da UFT. Contato: amandaleite@uft.edu.br / Site: http://amandampleite.wixsite.com/amandaleite C3

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e que os espaços de ensino e de aprendizagem podem surgir em diferentes lugares, como é o caso da ocupação da praça como cenário de aulas para estudantes de Pedagogia, da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Desejo pensar também a invenção da última capital brasileira. O que proponho é um exercício de olhar: olhar e ver/ver e pensar. Convido você leitor a passear pela Praça dos Girassóis, um dos principais atrativos da cidade. No percurso vamos identificar as transformações ocorridas no cerrado tocantinense e questionar o modo como percebemos a invenção da cidade, seus espaços, sua rotina, suas narrativas, seus eventos e acasos. Um pensamento que se desdobra de pesquisas realizadas junto ao grupo Transver: estudos entre Educação, Comunicação e Arte16, assim como de diálogos forjados no encontro com acadêmicos do 4º período do curso de Pedagogia/UFT. Ocupamos a praça como lócus de investigação e partilha. Ao tomar a cidade e perceber as suas narrativas é possível observar que a questão do ensino e da aprendizagem está entrelaçada a cultura, a vida e ao próprio cotidiano da cidade, daí que quando mediadas pela Pedagogia (e neste caso pelos debates didáticos) podem construir conhecimento. Uma investida decorrente dos Estudos Culturais (EC) ou uma possibilidade de compreender os processos educativos que nos constituem por outras vias. Um modo de explorar diferentes saberes na busca por outras pedagogias. Para Costa (2015, p. 61) os Estudos Culturais configuram “um profícuo espaço de análise sobre a produtividade das Pedagogias Culturais na constituição de sujeitos, na composição de identidades, na disseminação de práticas e condutas [...] no delineamento de formas de ser e viver na contemporaneidade” (COSTA, 2015, p. 61). Assim, além do pensamento articulado aos Estudos Culturais, proponho pensar o (des)aparecimento de certas paisagens na produção do cotidiano ou, mais precisamente, na invenção do espaço urbano. Qual é a identidade que Palmas anuncia como sua? O que vemos nas mesclas entre o cerrado e a invenção desta cidade? O que revelam seus momentos e símbolos históricos?

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PALMAS E A PRAÇA DOS GIRASSÓIS Nas margens do Rio Tocantins nasce a “caçula das capitais” brasileira, Palmas/Tocantins. Com apenas 27 anos, a cidade tem pessoas vindas de todos os lugares do Brasil e hoje contabiliza em torno 228.332 habitantes. Os dados do IBGE mostram que é a cidade que mais cresce geometricamente no país, cerca de 2, 91% correspondente ao período de 2013-2014. Palmas é uma cidade planejada à moda de Brasília. As enormes fazendas que margeavam o Rio Tocantins, as pequenas vilas, as praias sazonais parecem terem sido “engolidas” pelas águas ou pela promessa de futuro para a região norte. Surge a “capital das oportunidades” instalada estrategicamente no coração selvagem do Brasil. Bioma: Cerrado. Inaugurada no ano 2000, a Praça dos Girassóis é um dos orgulhos tocantinenses. Considerada a maior praça das Américas e a 2ª Maior do mundo, está localizada no Centro Geodésico do Brasil17. Sua dimensão impressiona turistas e moradores ao registrar a área de 571.000 m², pouco mais de 3 km de extensão (que corresponde a uma volta completa na praça). Está no cruzamento das principais avenidas da cidade, a Av. Theotônio Segurado e Av. Juscelino Kubitschek (JK). Embora a praça receba o nome de uma flor tropical

16 www.transver.com.br 17 Curiosamente sobre isto há controvérsias, pois a capital do estado de Mato Grosso, Cuiabá, também anuncia que o Centro Geodésico do Brasil passa por lá.

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[...] projetada para abrigar o centro das decisões dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário do Tocantins, a Praça dos Girassóis, em Palmas, é a maior praça da América Latina e a segunda maior do mundo, perdendo em tamanho apenas para a Praça Merdeka, na Indonésia. Aos palmenses a importância da Praça dos Girassóis vai mais além, afinal, foi nesse grande espaço que teve início a história da construção da capital mais jovem do País. Passear pela Praça é conhecer um pouco mais sobre a história e a cultura da cidade e do Tocantins.

Praça dos Girassóis, cartão-postal do cerrado. No chão, temos símbolos desenhados com pedras portuguesas coloridas, que fazem referência às etnias indígenas do estado do Tocantins, sendo: Apinajé, Khahô e Xambioá. Também encontramos as sedes administrativas dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário além de outros marcos arquitetônicos de Palmas presentes na praça. Por ser de grande extensão os habitantes da cidade usam este espaço para shows, apresentações culturais e práticas esportivas. A praça é também um museu aberto em que é possível percorrer parte da história da criação da capital através de monumentos e símbolos, dentre os quais destaco: o Palácio Araguaia, o Cruzeiro, a Súplica dos Pioneiros; a Cascata, o Monumento 18 do Forte de Copacabana, o Relógio de sol, A Rosa dos Ventos, o Monumento à Bíblia, a Praça Khahô e o Memorial Coluna Prestes. Diante das transformações ocorridas no cerrado norte-central, é curioso observar a “pressa” da cidade em alcançar um ar de metrópole e/ou uma identidade (quase) cosmopolita. A região que antes era majoritariamente constituída por pessoas vindas do Pará, Maranhão, Goiás, Piauí, Mato Grosso e Bahia (estados que fazem fronteira com o Tocantins) e ainda por comunidades indígenas e quilombolas, hoje faz outro percurso, move-se por traços urbanísticos taticamente marcados. O que nos é visível nos faz questionar e desejar pensar os sentidos e significados históricos que as transformações da/na cidade sugerem especialmente, as narrativas contemporâneas tecidas da/na/pela/com a praça. Gostaria de explorar aqui todos os monumentos presentes na praça, mas como são muitos e neste artigo não terei espaço para tanto, elejo os que tenho abordado nas aulas de Didática e que, em minha compreensão, merecem um exercício de pensamento mais denso e especial leitura.

A cidade, suas manifestações e expressões artísticas fomentam uma determinada narrativa sobre a construção de capital mais jovem do Brasil. Palmas/TO nasce ligada à figura de um herói, Siqueira Campos, o desbravador do norte-central. Siqueira aparece nas falas dos habitantes mais antigos ou mesmo na fala de acadêmicos de Pedagogia, como um líder que lutou avidamente para dividir o norte do estado de Goiás e criar o estado do Tocantins. É interessante observar que, embora geograficamente o Tocantins fique no mesmo alinhamento dos estados centrais do Brasil, por ser a “antiga” região norte do estado de Goiás, considerada desprivileigiada em termos de recursos financeiros e investimentos em

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MONUMENTOS E SÍMBOLOS

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- o girassol - quase não encontramos girassóis plantados na praça (exceto em ocasiões festivas na cidade). Na página oficial do governo do estado do Tocantins temos a seguinte definição:

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relação aos estados do sudeste e do sul do país, ao criar o novo estado, foi mais estratégico demarcá-lo como região norte ou como o Portal da Amazônia Legal, para assegurar questões políticas e financeiras. Sem mencionar o fato de que a construção de uma cidade/capital no cerrado se configuraria também como um marco, uma promessa histórica de mudança para a região norte, em nível local, nacional e internacional uma vez que se almejava estreitar as relações com o Peru, a Venezuela, as Guianas e a Bolívia. Nasce a cidade e com ela nasce o mito de um herói. Esta narrativa se propaga tanto no imaginário popular quanto nos monumentos e símbolos presentes na Praça dos Girassóis e nos museus da cidade. E não seria nenhum exagero encontrar quem defenda Siquera Campos como o “construtor do Tocantins”. Desde 1988, quando o estado passou a existir na Constituição Federal, o lendário Siqueira Campos fundou também a esperança de um povo esquecido no coração do Brasil. Palmas/TO foi criada no centro geográfico do estado do Tocantins. Mesmo existindo cidades mais estruturadas que pudessem vir a ser a nova capital do estado, optou-se (propositalmente) por construir a capital em uma região “neutra”, mais central, à direita do rio Tocantins, na intenção de fortalecer questões políticas e administrativas. Se a escolha do centro não foi ao acaso, seria coincidência a Praça dos Girassóis ter sido construída justamente na região central de Palmas?

A cidade é inventada aos “moldes” de Brasília/DF. Uma cidade planejada, com ruas largas, arborizada, onde o comércio e progresso podem transformar a paisagem do sertão. (A história se repete?) Se analisar fotografias da construção de Brasília e de Palmas, veremos que a figura dos personagens Juscelino Kubitschek e Siqueira Campos estão em situações muito semelhantes. (Coincidência novamente?). Com a ausência de referentes na cidade, inventa-se uma narrativa/memória a partir da criação de espaços, monumentos e símbolos. A Praça dos Girassóis é um dos principais lugares que compõe a identidade do povo palmense e que é sempre referendada pelos estudantes de Pedagogia como um lugar a ser descoberto (eu acrescentaria um lugar a ser redescoberto).

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O CRUZEIRO O cruzeiro foi o primeiro monumento histórico da capital. Está localizado na ala norte da Praça dos Girassóis. Feito de madeira Pau-Brasil, pelo artesão Arnildo Antunes. Foi instalado na praça no dia 20 de maio de 1989 e marcou a celebração da 1ª Missa em Pal-

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mas/TO. Curiosa passagem que nos faz lembrar a descoberta do Brasil a mais de 1500 anos. Na ocasião Frei Henrique Coimbra realizou a 1ª missa do país. Temos no Cruzeiro um símbolo que inaugura não apenas à cidade, mas cria a memória popular do povo tocantinense. Nas fotos18 abaixo podemos comparar a primeira missa realizada em Palmas, a primeira missa realizada em Brasília e a primeira missa realizada em Goiânia.

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18 As imagens foram retiradas da tese de doutorado intitulada: Modernidades tardias no cerrado: discursos e práticas na história de Palmas-TO, (1990-2010), de autoria de Patrícia Orfila Barros dos Reis

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Foto: Amanda Leite – Escultura (exterior do Palácio do Araguaia)

Foto: Amanda Leite – Painel da Conquista (interior do Palácio do Araguaia): Amanda Leite – Painel da Conquista (interior do Palácio do Araguaia)

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O monumento Cruzeiro foi tombado como patrimônio histórico no ano 2000. Na 1ª missa de Palmas, estiveram lado a lado representantes indígenas da etnia Xerente e o desbravador Siqueira Campos. O que chama a atenção é essa sensação de algo que nos remete de novo à figura do índio e do colonizador... talvez seja por isso que esta imagem estampe um dos painéis externos do Palácio do Araguaia. A PRAÇA KRAHÔ Trata-se de uma praça pequena dentro da praça maior que é a Praça dos Girassóis. Embora a Praça Krahô seja uma importante homenagem às etnias indígenas tocantinenses recebe pouco destaque na praça, muitas pessoas da cidade não sabem da existência deste espaço, não conseguem localizá-lo na grande praça, até os estudantes indígenas do curso de Pedagogia se surpreendem quando descobrem a homenagem. Além disso, a Praça Krahô se mistura a outros símbolos cristãos como, por exemplo, O Monumento à Bíblia e O Cruzeiro. Há também desenhos indígenas dispostos em outros lugares da Praça dos Girassóis, próximo à Rosa dos Ventos.

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O PALÁCIO DO ARAGUAIA CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA

O principal prédio da praça recebe o nome de palácio. Curiosamente (ou por ser uma cidade planejada) Palmas carrega esta característica, ou seja, a de apresentar prédios imponentes, rotatórias amplas, estacionamentos espaçosos... O Palácio do Araguaia é a sede do governo do estado do Tocantins. Tem 4 pisos e cerca de 14 mil m². Estrategicamente foi construído no centro da cidade. O projeto das ruas do Plano Diretor Sul e Norte da cidade partem dele. O majestoso palácio tem arcos que homenageiam a igreja de Nossa Senhora do Rosário, localizada em Natividade/TO, para fazer menção às raízes históricas do estado. A tonalidade avermelhada dos arcos corresponde aos tons da terra e do cascalho do cerrado tocantinense. Além de exibir uma arquitetura moderna para a capital recém-inventada. O Palácio do Araguaia é outro cartão postal de Palmas. Enquanto Siqueira Campos era governador do estado, construiu no sentido LesteOeste do palácio, um pórtico de entrada que se relacionava com os arcos e outro pórtico no sentido Norte-Sul. Cada pórtico tinha 5 metros de altura e 30 metros de largura. Siqueira também encomendou do artista visual carioca Maurício Bentes, dois frantipícios no formato de globo que faziam referência ao sol e ao Tocantins como promessa do futuro. Os globos foram feitos de “aço, em estrutura metálica dourada, medindo 50 metros, com diâmetro de 3,50 metros”. Os globos refletiam a luz do sol e de qualquer ponto da cidade podia-se identificar o Palácio do Araguaia. O sol também aparece no centro das bandeiras de Palmas e do Estado do Tocantins, como símbolo de energia. Quem chega recentemente a Palmas não sabe e nem mesmo encontra os globos na estrutura do palácio, pois, quando Marcelo Miranda venceu Siqueira Campos nas eleições para governar o estado do Tocantins, autorizou a retirada dos globos da fachada do Palácio. (Seria em decorrência de disputa política? Estética? Simbólica?) Como o governo geralmente se alternava entre Siqueira Campos e Marcelo Miranda, ora estava presente na praça, os girassóis, que dão nome ao local e os globos dourados, ora autorizava-se a retirada desses símbolos da praça para “arejar” a memória do povo.

artigos O palácio abriga painéis em alto-relevo que contornam sua estrutura externa. São 144 placas de fibras de vidro esculpidas que narram a história da criação do estado do Tocantins desde o período geológico á 1ª missa - marco da implantação da capital. As placas revelam cenas do povoamento do estado, a vinda dos bandeirantes, a pedra fundamental, a relação com os indígenas, o discurso político esculpido de acordo com quem

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as encomendou. As placas são obras de Maurício Bentes. Há ainda dois painéis localizados no Hall de entrada do edifício - o Painel das Lutas e o Painel das Conquistas, ambos feitos pelo artista plástico DJ Oliveira, em pintura no estilo moderno, que mescla elementos do expressionismo e do cubismo, nas dimensões de 20x20 cm. Há outro símbolo religioso - o vitral – que representa os Reis Magos, o menino Jesus e o Batismo de Jesus feito por João Batista no rio Jordão. Da entrada do palácio avistamos o Centro Geodésico do Brasil e o símbolo da Rosa dos Ventos. O discurso político hegemônico está presente nos painéis da entrada do palácio. Siqueira não precisou proclamar, mas os artistas por ele contratados conseguiram de algum modo evidenciar que as lutas e as conquistas reforçavam as promessas de um futuro melhor para o cerrado do Brasil. A questão é: como isso compõe o imaginário dos moradores de Palmas e dos estudantes de Pedagogia? Como os monumentos e símbolos continuarão a ser narrados? Surge um herói no cerrado! Um herói que luta, que desbrava, que faz greve de fome para a criação do estado! As cenas estampadas nas placas do exterior do palácio e também nas pinturas do Painel das Lutas e das Conquistas mostram a saga deste herói e a construção da capital. Se quisermos pensar a invenção desta cidade precisamos olhar com cautela o mito Siqueira Campos, “o construtor da identidade oficial do Tocantins”, aquele que idealizou muitos dos aspectos sociais, políticos e culturais de Palmas/TO. O personagem que escreveu sua própria epopeia em destaque nas principais narrativas históricas, em materiais turístico, em museus, em cadernos didáticos, em propagandas sobre a cidade e o estado. Símbolo da fé e da persistência. Homem-guerreiro-desbravador-do-norte. Figura emblemática de livros que contam a história do Tocantins. Nas aulas que acontecem na praça, muitos acadêmicos se surpreendem com o legado lendário de Siqueira Campos: – Professora, eu nunca tinha observado estes painéis! – Nossa! Quanta coisa que a gente não percebe! – professora, eu não acho que o Siqueira quis contar assim... – Eu que nunca tinha entrado aqui no palácio! Olha tudo isso!

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MONUMENTO À BÍBLIA

Localizado na ala norte da Praça dos Girassóis, o Monumento à Bíblia está construído bem no centro da Rosa dos Ventos. A escultura mostra um homem de braços estendidos até o céu, sustentando nas mãos a Bíblia Sagrada Cristã. Para mim é um dos símbolos mais fortes e que causa mais polêmica no encontro com estudantes de Pedagogia. Digo isto, por causa da questão religiosa. Hoje no curso temos a presença de muitos estudantes

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indígenas, evangélicos e católicos. O monumento causa polêmica por parecer colocar o cristianismo acima de outras religiões, ou seja, enquanto as homenagens às etnias indígenas estão presentes em desenhos feitos por pedras portuguesas no chão da praça, o Monumento à Bíblia é feito em mármore e a escultura assume três degraus acima do chão. Esta mensagem também aparece esculpida nos painéis que cercam o exterior do prédio. Para que você entenda melhor, o palácio tem dois lados iguais. Na ala Sul, existe um imenso portão dourado que está sempre fechado e no chão, em baixo do portão está escrito o lema do estado em língua tupi “Co yvy ore retama” que em português significa “esta terra é nossa”, a frase também aparece no desenho do Brasão de Armas do Estado de Tocantins. Do outro lado, na ala norte, alinhado à porta de acesso principal do palácio localiza-se o Monumento à Bíblia. Ali, não há nenhuma barreira, nenhum portão. Do palácio se avista a escultura com o símbolo cristão. Na placa de entrada do Palácio do Araguaia temos a seguinte frase: “Daqui se pode olhar de frente o amanhã de uma terra despertada pelo ânimo dos que edificaram a obra que o tempo e a história consagraram com nervo das aspirações e centro da irradiação das decisões do povo”. Um palácio aberto ao norte e fechado para o sul. Simbologia que nos faz pensar...

AULA NA PRAÇA: PEDAGOGIAS CULTURAIS E PENSAMENTOS CRÍTICOS

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Como anunciei anteriormente, o termo Pedagogias Culturais se mostra como uma possibilidade conceitual para desenvolver pesquisas na área da Educação. Sei que muitas correntes epistemológicas adotam o termo e exibem percepções distintas. A definição com a qual me identifico é a proposta de Steindberg (1997) que parte do campo dos Estudos Culturais para pensar a Educação. Assim, na medida em que aproximo diferentes temas da Educação posso articular, por exemplo, educação, comunicação, arte, cultura e distintos campos teóricos. Isto me interessa, especialmente ao pensar a formação em Pedagogia. Trago a noção de Pedagogia Cultural não para me referir a uma pedagogia vinculada a escolas e/ou instituições de ensino, mas um movimento que aproxima a Educação dos Estudos Culturais do final do século XX e coloca a Pedagogia para pensar sentidos e significados nas relações de poder políticas e culturais que nos cercam. Um pensar que

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ultrapassa a noção de uma didática pedagogizante para produzir diferentes leituras nos processos educativos. Uma pedagogia que trabalha com artefatos culturais e produz subjetividades. Andrade e Costa (2015, p. 49) apontam que “a articulação entre pedagogia e cultura que embasa e nomeia este conceito foi assumida para tornar este reconhecimento mais explícito e salientar a qualidade cultural dos processos pedagógicos e das relações”. Não posso deixar de mencionar o importante trabalho de Henry Giroux (1999) que começou a adjetivar a pedagogia em relação à cultura e que também contribuiu com a proposta dos Estudos Culturais. Assim como o conceito de EC é aberto, o conceito de Pedagogias Culturais também está em construção, sendo constantemente investigado, inclusive nas pesquisas acadêmicas em Educação. Se os espaços sociais são também espaços de aprendizagem e de ensino, a Pedagogia pode propor a reflexão sobre Pedagogias Culturais como possibilidade de expandir a própria formação humana, oportunizando diálogos multidisciplinares, interdisciplinares e/ ou transdisciplinares. Aulas realizadas em parques, museus, teatros e outros lugares sociais, assim como a Praça dos Girassóis, são alternativas que podem encontrar eco em discussões de áreas distintas. No caso da perspectiva proposta pela aula de Didática, encontramos ressonância na disciplina de Metodologia do Ensino de Geografia, por exemplo, outra disciplina regular do curso de Pedagogia, em que se objetiva trabalhar também questões acerca das categorias geográficas, com especial atenção à categoria, lugar, cidade, paisagem e memória que, juntas, adensam o debate conceitual sobre a praça como dispositivo didático e pedagógico para a educação além de possibilitar pensar as relações que nos constituem neste espaço. A Pedagogia (ou as pedagogias) articula(m) encontros e sugere(m) exercícios de pensar a produção de conhecimento. Conhecimento que se faz em movimento, algo diferente de qualquer definição pronta e acabada. Quando percorremos a praça e observamos os seus monumentos, o percurso revela uma pedagogia que produz efeitos e que também educa. Caminhamos pela praça, pensamos sobre ela, temos sensações, movemos nosso corpo, nossa mente, aprendemos e ao mesmo tempo construímos a aprendizagem no encontro com outros sujeitos. A praça, sua arquitetura moderna, suas narrativas simbólicas produzem em nós (moradores, estudantes e professores) interfaces com a educação. A “ponte” entre a proposta educativa que a praça apresenta e as possibilidades de explorar suas perspectivas de ponto de vista das Pedagogias Culturais, somos nós quem iremos propor, pois talvez nem existiria aproximação pedagógica com este espaço social se não fosse forjado pela ocupação da praça como sala de aula. Tentamos responder a nós mesmos: qual é a nossa relação com a praça? Se fossemos destacar um de seus monumentos e desenvolver um texto analítico a partir de nossas impressões considerando a relação com invenção e a narrativa sobre o Estado do Tocantins, o que teríamos a dizer depois de observar a praça com “outras lentes”? As Pedagogias Culturais criam possibilidade para que o sujeito pense e aprenda com a própria experiência. Em nosso caso, buscamos ver a potencialidade pedagógica

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história de um povo que uma vez fora esquecido no norte deste país e que na atualidade ressurge como a capital da prosperidade e das conquistas. O estudo de artefatos culturais nos ajuda a extrapolar o campo das pedagogias institucionalizadas (escolares) para pensar o sujeito numa dinâmica mais híbrida, que se deixa contaminar por diferentes concepções. O hibridismo provoca debates sobre as pedagogias que hoje estão dispostas na formação do sujeito. Assim, não apenas os materiais didáticos e/ou paradidáticos são interessantes de serem analisados, mas também o cinema, a televisão, a Internet, as redes sociais, revistas, jornais, programas de rádio, publicidade e outros dispositivos que conectados à comunicação atravessam o sujeito contemporâneo e que, compõe também as suas identidades e narrativas. No percurso que fazemos na Praça dos Girassóis, o consumo de imagens fotográficas, por exemplo, é de certa forma um tipo de Pedagogia Cultural que ensina coisas ao mesmo tempo em que gera nos participantes um sentimento de pertença (pela imagem) da/na paisagem urbana. Fotografias tiradas e postadas nas redes sociais quase que instantaneamente à aula dão-nos pistas para explorar estas paisagens por infinitas leituras. Se as Pedagogias Culturais acionam em nós outros modos de perceber o processo de ensino e aprendizagem, nas aulas que acontecem na praça os sujeitos se relacionam com a cidade e com as questões cotidianas que não necessariamente estão conectadas a educação escolarizada. Uma coisa é entender que as Pedagogias Culturais podem explorar outros modos de pensar o processo educativo (para além das pedagogias escolares), outra coisa é compreender que as Pedagogias Culturais também são dispositivos pedagógicos que educam o sujeito, produzem discursos e subjetividades. (E não é isto que vemos na praça o tempo todo?) Enquanto dispositivo as Pedagogias Culturais podem nos conduzir a diferentes leituras e percepções. No exercício aqui proposto pensamos nossa experiência na relação com a cidade e suas narrativas. Nosso olhar se transforma diante da paisagem urbana. Este

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que a praça tem e que torna esta vivencia mais atraente. Girox entende que a pedagogia crítica é aquela que se refere também a uma prática cultural. Assim acreditamos nos aproximar dos Estudos Culturais ao entender que estudantes e professores ocupam o lugar de pensadores públicos, ou seja, são figuras intelectuais que podem promover a articulação entre poder, cultura e aprendizagem. Este desafio contemporâneo nos permite reescrever a narrativa da praça, de seus símbolos e significados ou a narrativa de nós mesmos. A praça é um artefato cultural presente no cotidiano da cidade que carrega em si (ao mesmo tempo em que denuncia) a presença de um herói lendário, a ideologia de um governante, discursos dominadores. Podemos até dizer que a praça produz uma pedagogia política que nos desafia a olhá-la sob muitas perspectivas, com um olhar mais crítico, na tentativa de perceber relações entre cultura, politica, poder, espaço urbano, aprendizagem e educação, na busca por novos ares, mais narrativas. Assim, entendemos que o ensino e a aprendizagem acontecem, em espaços sociais que ultrapassam os limiares das escolas, que chegam até as praças e monumentos da cidade. A praça é pedagógica e educativa, expõe os louros de uma época, as marcas da

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modo de operar o conceito de Pedagogias Culturais nos interessa, especialmente porque “o conceito se expressa e ganha significado mais pela materialidade daquilo que consegue mostrar empiricamente acerca de seus modos de operação do que pelo desenvolvimento ou reafirmação de uma teorização” (COSTA, 2015, p. 57). Ou seja, o percurso da praça forja subjetividades e a própria formação do sujeito. As Pedagogias Culturais nos aproxima ainda de outros materiais de pesquisa: revistas, materiais turísticos e cartões postais que forjam a subjetivação dos sujeitos ou mais precisamente, a noção de uma cidade que se deseja “vender/comprar” (a ideia da capital da alegria19)... Um investimento que aciona discursos, relações de poder e que transforma o modo como nos constituímos sujeitos neste espaço. Ao trabalhar com imagens de materiais turísticos ou fotografias feitas pelos estudantes de Pedagogia, podemos encontrar diferentes possibilidades pedagógicas para a noção de paisagem/cidade. Qual é o viés educativo destas imagens? Qual é a mensagem que os materiais (produzidos por órgãos governamentais ou mesmo pelos estudantes de Pedagogia) desejam passar? O que consumimos? Estas imagens modelam em nós certas formas de pensar? Não importa aqui procurar definir o conceito de Pedagogias Culturais a luz de determinada corrente de pensamento teórico, ao contrário, interessa dizer que as Pedagogias Culturais são potentes meios para investigar como produzimos conhecimento por meio de artefatos culturais. Encontramos aí alternativas para pesquisar imagens, monumentos e símbolos bem como articular estes pensamentos com a área da educação. As Pedagogias Culturais são conceitos inventados, que seguem em construção e investigação. Isto por si só já nos diz de sua potência. Os materiais turísticos produzidos pelo governo do estado, as imagens exibidas pela mídia local ou por representantes da construção civil, mostram a cidade de Palmas como um lugar exuberante pelo potencial natural, como também um lugar novo, próspero para empreendedores além de muito agradável aos turistas. Não é por acaso que a prefeitura municipal tem usado e reforçado o slogan: “Palmas capital da alegria!”. A narrativa sobre a construção desta cidade surge com a Praça dos Girassóis e segue reverberando leituras, olhares e pensamentos. O que apreendemos com estes encontros? Permita-me voltar então à questão inicial deste texto e perguntar: quando a aula de Didática acontece na praça, o que ela pode provocar?

REFERÊNCIAS

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ANDRADE. Paula D. de. COSTA. Marisa V. Usos e possibilidades do conceito de pedagogias culturais nas pesquisas em estudos culturais em educação. Revista Textura, v. 17 n.34, mai./ ago.2015.

19 Capital da Alegria slogan usado pela Prefeitura Municipal de Palmas/TO em materiais publicitários. Palmas também é conhecida como: “A Caçula das Capitais”; “Princesinha do Brasil” e “Capital Inovadora do Tocantins”.

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GIROUX, Henry A. Cultural studies and the politics of public pedagogy: Making the political more pedagogical. Parallax, 10 (2), 73–89, 1999.

FIRMINO Eugenio Pacelli de Morais. Ensino de História, Identidade e Ideologia: a experiência do Tocantins. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Goiás. Goiânia: 2003. VILLAS BOAS, Marcos Antony. Projeto Frisa, A História do Tocantins contada em alto relevo nas vigas do Palácio Araguaia. Academia Tocantinense de Letras. Acadêmico Desembargador Marco Villas Boas, Palmas, 20 de dezembro de 2002.

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STEINBERG, Shirley R. Kindercultura: a construção da infância pelas grandes corporações. In: SILVA, Luiz Heron da; AZEVEDO, José Clóvis de; SANTOS, Edmilson Santos dos (Orgs.). Identidade Social e a Construção do Conhecimento. Porto Alegre: SMED, 1997. p.98-145.

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UMA COMUNIDADE ESCOLAR EM RECONSTRUÇÃO

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UMA COMUNIDADE ESCOLAR EM RECONSTRUÇÃO

RESUMO Na busca das respostas é preciso questionar-se da importância das perguntas. Em uma discussão sobre as relações entre escola, aluno e comunidade é necessário indagar-se quanto tempo um aluno precisa para descobrir ou não se sua escola interage com sua vida, com seus anseios e aspirações de trabalho; mas também cabe se perguntar o quanto cada professor conhece e identifica os saberes que esta comunidade poderia ou deveria dividir com o espaço formal da escola. E se o processo de construção do currículo deveria ser coletivo e assim registrar a importância que a escola e suas ações possam ter para a valorização do campo e de quem nele trabalha.

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Carmen Regina Deantoni20

PALAVRAS-CHAVES: Relação Escola-Comunidade. Campo. Currículo. Aluno.

AN EDUCATIONAL COMMUNITY IN RECONSTRUCTION ABSTRACT In our search for answers it is imperative to question ourselves about the importance of queries. In a discussion about the relations between school, student and community it is necessary to ask how much time a student needs to find out if their school interacts or not with their life, with their hopes, with their work aspirations; but it is just as important to ask how and how much each teacher knows and identifies the knowledge that their community could or should share with the formal space of the school. And if this process of construction of the syllabus and curriculum should be collective, to register the importance that the school and its actions could have for the destigmatization of the rural life and of those which live in it. KEYWORDS: School-Community Relations. Rural Life. Syllabus. Curriculum. Student.

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“Quando a gente acha que tem todas as respostas, vem à vida e muda as perguntas” Luís Fernando Verissimo Na busca das respostas é preciso questionar-se da importância das perguntas, em uma discussão sobre as relações entre escola, aluno e comunidade é necessário indagar-se quanto tempo um aluno precisa para descobrir ou não se sua escola interage com sua vida, com seus anseios e aspirações de trabalho, mas também cabe se perguntar o quanto cada professor conhece e identifica os saberes que esta comunidade poderia ou deveria

20 Professora da Rede pública de ensino, estudante de Licenciatura em educação do campo – ciências da natureza, Universidade Federal do Rio Grande do Sul C3

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dividir com o espaço formal da escola? E se o processo de construção do currículo deveria ser coletivo e assim registrar importância que a escola e suas ações possam ter para a valorização do campo e de quem nele trabalha. Gohn(2006) pesquisadora na área de movimentos socias no Brasil define os conceitos de educação formal, informal e não formal: Quando tratamos da educação não formal, a comparação com a educação formal é quase que automática. O termo não formal também é usado por alguns investigadores como sinônimo de informal. Consideramos que é necessário distinguir demarcar as diferenças entre estes conceitos. A princípio podemos demarcar seus campos de desenvolvimento: a educação formal é aquela desenvolvida nas escolas, com conteúdos previamente demarcados; a informal como aquela que os indivíduos aprendem durante seu processo de socialização - na família, bairro, clube, amigos etc., carregada de valores e culturas próprias, de pertencimento e sentimentos herdados: e a educação não formal é aquela que se aprende “no mundo da vida”, via os processos de compartilhamento de experiências, principalmente em espaços e ações coletivos cotidianas.

Ao analisarmos a importância da escola, como instituição na qual passamos em torno de 25 anos das nossas vidas como educadoras e 18 como alunos, num paralelo de educação no espaço formal , não formal e informal podemos nos indagar, ao mesmo tempo em que transmitimos, dividimos, orientamos os conteúdos, desenvolvemos em nossas aulas, de fato, uma aprendizagem? Há necessidade de se criar novos meios, novas buscas, novo jeito para que essas relações se fortaleçam e o ensino aconteça na sua integra. São ações relacionando tempo e ambiente escolar que nos descobrem sujeitosalunos, iguais e diferentes, são questões que nos levam a discutir quem idealiza, integra e gerencia uma ação pedagógica, uma ação de aprendizagem, de vivência e trabalho. Quando o professor se permite modificar, permite-se observar e com meio relacionar-se, torna-se integrante do lugar onde vive e/ou trabalha. Este passa também a entender que o currículo vai além dos conteúdos programáticos já estabelecidos e direcionados. Se a vida acontece fora dos bancos escolares cabe ao professor inter-relacionar, buscar, interagir, informar, dialogar esses acontecimentos. Em Pedagogia Social, Martins (2009) fica claro o processo que esta escola começa a construir. O “casamento” da escola com a vida é que torna possível a efetivação de diversas práticas educativas aqui relatadas. A ampliação da rede escolar rural é um exemplo emblemático da afirmação. Se o olhar da educação do campo permanecesse fixo na escola, a rede não seria ampliada e sim diminuída, pois o projeto hegemônico de ruralidade brasileira não contempla a manutenção da vida na terra, mas sim a concentração demográfica no perímetro urbano. Somente um projeto de campo, pautado na valorização da cultura camponesa, na reprodução da existência da vida no campo se

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articula com a ampliação das redes escolares em tais localidades.

Pode-se caracterizar educação do campo como um movimento, constituído pelos sujeitos sociais que integram as realidades camponesas, e que, almeja vincular o processo de vida no campo com os pressupostos educacionais, aliando assim escola e vida, os pressupostos da cotidianidade rural e os processos educativos formais. A diferenciação dessa proposta reside na sua construção, que é idealizada, operacionalizada pelos sujeitos do cam-

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Buscando atividades curriculares onde os modelos científicos dialoguem entre pesquisa, teoria e prática relata-se a seguir a caminhada desta comunidade escolar onde a uma professora tornou-se pesquisadora e incentivadora de ações que integrassem escola e comunidade. Como nada acontece sozinho aos poucos novos colegas foram se integrando a este processo que caminha a passos lentos, porém firmes e decididos. Começamos por esse artigo- Educação do Campo-processo de ocupação social e escolar-Fernando José Martins

po. A proposta da Educação do Campo, não é meramente pedagógica, ao buscar relacionar escola e vida, também se almeja a veiculação de uma determinada concepção de campo, na qual esse seja um lugar de vida. Essa compreensão de distingue da concepção de campo hegemônico, na qual o campo é apenas um espaço de produção.

LOCALIZANDO-TE NO ESPAÇO E NO TEMPO

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A escola localiza-se a 17 km da sede do município e é cercada por grandes latifúndios e pela Lagoa dos Patos. A cultura do arroz e a pecuária são o carro chefe da economia do município que também investe no turismo ecológico e na opção de praia de água doce. O nome da escola é E.E.E.F. Lauro Silva Azambuja, fundada em 20 de janeiro de 1940, onde sou professora desde 2002, nas séries iniciais do ensino fundamental, sendo ela a única a receber a classificação de Escola do Campo na região. Sabemos que as escolas do município recebem também alunos originários do campo, porém tanto Estado com Município até junho de 2016, segundo a 12 CRE reconhecem somente esta como tal. A escola tem 76 anos e fica localizada na Vila Santa Rita do Sul, 2º distrito de Arambaré. Possui Educação Infantil a partir dos 4 anos, Ensino Fundamental até o 9º ano e EJA, no total de 197 alunos, funcionando nos três turnos, de segunda a sexta. Trabalham na escola duas merendeiras, duas agentes de manutenção, uma secretária (CIEE) e dez professores, todos com 40 h ou 60h. Assim muitos professores estão em sala de aula em um turno e em outro são diretores, supervisores, coordenadores e bibliotecários. A escola é referência de ajuda a toda a comunidade, visto que ela possui acesso à internet, telefone e realiza cópias. Muitos projetos realizados na comunidade já aconteceram na escola, pois esta cede espaço físico ou colabora na aplicação. A própria Câmara de Vereadores realiza algumas sessões

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na escola dentro do seu projeto de ir até a zona rural. Mas conhecer a história desta localidade, buscar conhecimento e os saberes de um povo, passa por ouvir relatos e escrever memórias. Assim é escrito o primeiro texto sobre o desenvolvimento da Vila Santa Rita do Sul por professores. No projeto LEITURA E FAMÍLIA cada aluno leva para casa uma sacola onde consta um livro de literatura infantil, revistas de artesanato, jornais, folders e folhetos informativos que são trocados após a leitura de todos. É nesta sacola que o texto informativo de resgate da história da localidade é enviada para as famílias para a leitura em março de 2015, mês da emancipação do município que hoje tem 14 anos de atividade própria e independente. Nele há relato da criação do vilarejo e sua organização. Moradores resgatam dados históricos não encontrados em documentos, mas sim na memória dos mais antigos. Entrevistados com idade entre 70 e 80 anos contaram casos pitorescos e fundamentais na colonização. Neste processo a escola também começa a identificar-se como escola do campo e baseia-se no artigo1º dos Marcos Normativos da Educação do Campo pág. 81 onde se descreve como escola do campo aquela situada em área rural e que atenda predominantemente a população do campo e entenda- se população do campo trabalhadores assalariados rurais. Para muitos professores ainda é difícil entender a escola como sendo do campo, e a necessidade de um currículo que respeite característica dessa região. Identificar a diferença entre uma escola rural e do campo não se torna fácil quando a concepção de muitos colegas ainda é que o objetivo dos alunos é formarem-se e irem embora do campo, na busca de um futuro melhor, de ¨ser alguém na vida¨ expressão comum de se ouvir na localidade e nas famílias da escola. Trabalhar este conceito foi fundamental na arrancada de valorização e modificação de nossa linha de trabalho, visão de escola e de currículo. Há muito que se fazer para que esses homens do campo e seus filhos, muitas vezes explorados e sem acesso a escola possam entender realmente suas relações de trabalho e de valorização econômica. Mas também há de se fazer muita leitura e discussão para que os professores consigam entender, conceituar e identificar a diferença entre uma educação rural e uma educação no e do campo. Nóvoa (2008, p.533) nos fala que são duas as grandes finalidades do trabalho escolar. Transmissão e apropriação de conhecimento e cultura, o que a escola sabe fazer e o faz muito bem, por outro lado também o encontro da arte, da vida e da compreensão e isso a escola precisa fazer melhor. Encontrar-se nas suas prioridades. É nesta somatória que a cidadania se conquista. Freire (1986, p.21) nos diz que a “educação é controlável quando o professor segue o currículo padrão e os estudantes atuam como se só as palavras do professor contassem”. Começava ai o movimento da escola em ouvir saberes, em discuti-los em sala de aula, mas acima de tudo passava a valorizar o que aos poucos descobria. É claro que este processo não se dava e nem se dá no mesmo ritmo para todos da escola. Depende de cada professor e de sua linha de trabalho.

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sobre adubação e agrotóxico. Como idealizar, plantar e cuidar de uma horta. O importante é incentivar em cada aluno o gosto pela terra, o conhecer sobre o solo em que vive e o que dele e com ele pode produzir. Sendo nosso solo muito arenoso o uso de produtos para fertilizar é imenso. Abria-se ai um conjunto de perguntas a serem feitas e descobertas junto aos grupos de plantadores de arroz e soja. Parece neste momento que novos ventos circulavam pelos corredores da escola e a 1º MOSTRA DE SOLOS E ARTE é montada com a participação da Pré-escola até as turmas do EJA. Experiências, registro escrito e criatividade deveriam estar presentes nos trabalhos que também seriam avaliados por cada professor na sua área como também por uma comissão julgadora. Certificados seriam dados aos cinco trabalhos mais votados. Começava ai o grande movimento de buscar conhecimento, de interagir com colegas, professores, pais e comunidade. A biblioteca e o laboratório de informática passam a ficar a disposição para este trabalho que teria culminância em um sábado diferente. Convites são impressos onde cada aluno fazia sua ilustração, estes depois eram misturados e entregas aleatoriamente para as famílias. Brinquedos infláveis foram locados, jogos na quadra e entrega de medalhas, certificados e lanche especial nos dois turnos. Os alunos que desejassem também poderiam almoçar na escola. A escola estava aberta o dia inteiro para visitação de todos que assim desejassem. Se a educação é movimento, se aprender traz alegria, a 1º Mostra trazia conhecimento, sons e risos a escola. Freire (1986, p.25) diz além de um ato de conhecimento a educação é também um ato politico. É por isso que não há pedagogia neutra. O conhecer a terra em que vives, o que nela pode e deve-se produzir, a formação do solo e rochas e identificar os tipos de solo tornava-se uma ação revolucionaria, porque algumas turmas em paralelo a este conhecimento discutiam a questão dos donos da terra, quem produz ,o que é trabalho assalariado e de comissão por colheita, por rendimento a locação de terra e suas relações de trabalho e pagamento, passam a ser tema de debates e entrevistas.

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Professores da UFRGS-Educação do Campo-curso Ciências da Natureza (2015) elaboram um questionário para os alunos responderem e nesta pesquisa dados foram coletados e representados através de infográficos onde as questões respondidas pelos alunos da escola sobre alimentação, plantio e cultivo de hortaliças deixam a professora de Ciências, Matemática e Português indagando-se o porquê em meio a tantos pátios grandes, e famílias numerosas poucas possuíam uma horta e porque estas preferiam comprar a plantar? Como mudar essa cultura? Por onde começar? Os dados pesquisados eram alarmantes e era impossível para esses professores não planejar uma ação que pudesse em longo prazo atingir essas famílias numa reeducação interna, de plantio, alimentação saudável e de produtos orgânicos. Passo a passo essa ação é planejada e outros professores aceitam participar de diferentes etapas, nem sempre de todas, mas se mostravam abertos ao diálogo e a interagir com o meio em que a escola está inserida. Convidou-se assim para realizar palestras, conforme o nível escolar dos alunos uma técnica em agropecuária que fala sobre solo, os tipos e cuidados, sobre plantio, e colheita,

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Era a escola aprendendo e atuando em sua comunidade. A escola que acreditava na neutralidade e de ser esse o seu papel, começava a entender e a repassar esses conhecimentos aos alunos buscando acima de tudo uma tomada de consciência do que via, vivia e entendia. O livro de Pozo e Crespo (2009) nos fala da falta de motivação, colocando a necessidade de mudar as atitudes dos alunos perante o ensino de ciência, mas neste caso, nesta escola, a transformação também acontecia com cada professor que se integrou a esta tarefa. Era fácil observar quem, alunos e/ou professores, estavam envolvidos no projeto (ainda em andamento) que recebeu o nome de Hortas na Comunidade- Meninos dos Dedos Verde, que tinha como objetivo mapear na comunidade 36 canteiros, em residências catalogadas e que definiriam o que seria plantado, cuidados, época de colheita, adubos e aguação. Sistemas deveriam ser criados para melhor entendimento das ações naturais na área escolhida. Cada aluno da EJA e do 6ºano era responsável por semanalmente visitar cada propriedade para o incentivo do andamento do projeto, limpar, orientar e se necessário ajudar no replantio. Todos os dados são catalogados e registrados em gráficos na disciplina de Matemática, em Ciências abria-se uma rede de conteúdos a serem desenvolvidos. Na disciplina de Português relatórios são escritos e o livro de literatura O menino do dedo verde (Mauricie Druon, 1957) Um mapa conceitual é confeccionado pelos professores e fica exposto no Laboratório de Ciências e tecnologia, que esta sendo organizado pelos professores interessados. Essas ações que modificaram o olhar desta comunidade também abria espaço para a discussão da necessidade de reformular a grade curricular da escola, mas também percebia que este processo é coletivo e não iria acontecer sem que etapas da caminhada fossem respeitadas. A escola abre novamente suas portas e realiza reuniões com alunos, pais, professores, setores e conselho tutelar. Era um momento de discutir a educação e participação de todos. O que de fato queríamos como fazer, quais as regras de convivência que todos achávamos importantes. Essas reuniões são registradas e assinadas por todos os presentes visando um comprometimento de cada segmento. Paralelo a este movimento professores reúnem-se semanalmente e passam a discutir, pelo menos como inicio os conteúdos programáticos e o uso dos livros didáticos. Por ser um processo discutido, coletivo, refletido e de ação ele trazia resultados diários e também por tudo isso ocorrer ao mesmo tempo, novas indagações vão sendo feitas. Novos caminhos são questionados, novos saberes são identificados. Não há uma escola pronta. Nunca haverá. Há uma escola preocupada em conhecer o que sua comunidade vivência, suas necessidades e ânsias e com o conhecimento específico para valorizar a mesma. Uma escola que vê em seu aluno o futuro do campo como alternativa de modernização, de valorização do trabalho e do espaço, de uma agricultura sem agrotóxico, com cooperativas, associações e buscando ate mesmo uma sustentabilidade consciente de fato e o que esta significa no mundo atual. São reflexões éticos - políticas teóricas sobre o cotidiano e os problemas que podemos encontrar nesse caminhar. Como trazer essas percepções para a sala de aula? Articulá-las com os demais conteúdos? Qual concepção

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REFERÊNCIAS ARROYO, Miguel. Gonzalez. Escola Cidadania e Participação no Campo. Em Aberto. Brasília: nº 9, Set., 1992. BRASIL. MEC/CNE. Diretrizes Operacionais para Educação Básica nas Escolas do Campo. Parecer CNE/CEB nº 36/2001, aprovado em 4 de dezembro de 2001.

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de planejamento curricular?¨ Caminhada longa. Passos firme. Olhar a frente. Respondendo perguntas, mas aprendendo a fazê-las e tendo a certeza que a escola não pode, não deve nunca fechar-se em um plano pedagógico por que ela é feita de gente, gente que vai e vem e por isso mesmo precisa ser sempre repensada, reconstruída e principalmente que se torne um lugar onde as perguntas são importantes não porque levam a respostas corretas, mas porque podem transformar respostas em novas perguntas.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 12ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. FREIRE, Paulo. Medo e Ousadia: cotidiano do professor. 5ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. MACHADO, Erico Ribas. Pedagogia social no Contexto Brasileiro. 2010. MARTINS, Fernando José. Educação do Campo: processo de ocupação social e escolar. Congresso Internacional de Pedagogia Social. Mar. 2009. Disponível em: http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?pid=MSC0000000092008000100006&script=sci_arttext. Acesso em 22 de junho de 2016.

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TEMPOS DE LUSCOFUSCO: ARTE, POLÍTICA E CONSCIÊNCIA NA FORMAÇÃO

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Tanise Reginato22 RESUMO Este artigo trata de uma reflexão acerca da formação de professores da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É também um registro e acompanhamento do contexto social e político que envolveu o movimento de ocupação estudantil ocorrido na Universidade durante o 2º semestre de 2016. Após a proposta de exibição de uma produção audiovisual, foram coletados os registros dos estudantes e estabeleceu-se a escuta e interação entre os participantes. À luz de Paulo Freire se dá o apoio para interpretar os registros utilizando conceitos de consciência. A subjetividade dos estudantes posta em diálogo com a objetividade das práticas concretas, traz consigo a capacidade de criticidade do sujeito, é a movimentação da consciência, da experiência individual para a experiência coletiva. São as relações mediadas pela arte, atravessando processos políticos no constante exercício da pergunta como possibilidade emancipadora e de resistência. Os grupos se constituem de indivíduos que elaboram de diferentes formas sua subjetividade, os quais se encontram em diferentes estados de consciência. O diálogo como parte do processo para a concretização de um tipo de formação (humana, política), de sociedade, é ferramenta fundamental para realizar ações educativas transformadoras.

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TEMPOS DE LUSCO-FUSCO: ARTE, POLÍTICA E CONSCIÊNCIA NA FORMAÇÃO21

PALAVRAS CHAVE: Formação. Política. Diálogo. Consciência. Arte.

TIMES OF TWILIGHT: ART POLITICS AND FORMATIONAL CONSCIENCE

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ABSTRACT This article is concerns itself with a reflection about the formation of teachers on the College of Education at the Federal University of Rio Grande do Sul. It also serves as a register and accompaniment of the social and political context that movement of occupation that occurred in the University throughout the second semester of 2016 found itself in. After an audiovisual presentation, data was collected from the students and a medium of listening and interaction was established between the participants. With Paulo Freire as a metaphorical spotlight, we interpreted our annotations using the concepts of conscience. The subjectivity of the students , which was evidenced in their speech, with objectivity of the proven practices, brings along the capacity of criticism of the subject - the exercise of conscience, of experience, from personal to collective. Those relations, mediated by art, cross political processes in a constant exercise of the question as a possibility of emancipation and of resistance. The groups are composed of individuals that develop their subjectivities in different ways, which brings them to different states of conscience. The dialogue as part of the process for substantiation of a type of formation, be it human or political, about society

21 Artigo desenvolvido a partir de recorte do Trabalho de Conclusão apresentado à Comissão de Graduação do Curso de Pedagogia – Licenciatura, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul no 2º semestre de 2016, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Carmen Lucia Bezerra Machado.

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22 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul


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KEYWORDS: Formation, Politics, Dialogue, Conscience, Art.

Vivemos uma fase de intensa instabilidade política e econômica no país, momentos de transição que tem gerado toda sorte de Emendas e Projetos de Lei. E também resistências a tais medidas, que desfavorecem exatamente as pessoas mais atingidas pela crise, estudantes, trabalhadores, pessoas em vulnerabilidade social e os povos tradicionais. São propostas de cunho neoliberal que pouco estão sendo discutidas com a sociedade civil ou com especialistas e que se contrapõem aos princípios democráticos de respeito à diversidade, laicidade, liberdade. Ainda, a maioria das manifestações populares contrárias às propostas, tem sido ignoradas pelos governos e/ou sofrido forte repressão policial. Muitos desses projetos, são direcionados à educação e valorizam ideais positivistas como a “neutralidade” para ensinar. São políticas conservadoras que limitam e reduzem os investimentos na educação pública, comprometendo todo o sistema educacional do país, desvalorizando o trabalho do professor e direcionando os estudantes para o mercado de trabalho, impossibilitando a formação de cidadãos mais críticos e autônomos. Em contrapartida a esta série de ataques, que teve início com o processo de impeachment da então presidenta eleita Dilma Rousseff e que acelerou a tramitação dos retrocessos, desencadeou-se uma série de manifestações por parte de movimentos sociais, sindicatos, coletivos, estudantes e profissionais das áreas mais afetadas. Assim, sob nuvens espessas, ocorreu o movimento de ocupação de escolas, institutos federais e universidades. O movimento que, apesar de muito ignorado pela grande mídia, apontou-se como a maior mobilização estudantil da história do Brasil, teve um primeiro momento em 2015, no estado de São Paulo, quando estudantes secundaristas ocuparam suas instituições após o governador Geraldo Alckmin anunciar o fechamento de 94 escolas23. O movimento seguinte, ocorreu no primeiro semestre de 2016 no Rio Grande do Sul, onde também os estudantes secundaristas ocuparam escolas estaduais, posicionando-se contra os PL 44/2016 e PL 190/2015. No segundo semestre de 2016, as ocupações foram retomadas em diversas escolas por todo o país. Os estudantes mobilizados colocaram-se contra a Reforma do Ensino Médio MP 746/2016 e a PEC 241/55 que congela investimentos públicos em saúde, educação e seguridade social pela vigência de 20 anos. As ocupações se espalharam, chegando também nas universidades públicas, privadas e institutos federais. A Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul foi ocupada no dia 31 de outubro, depois de votação favorável em assembleia estudantil. As aulas foram suspensas e a rotina de atividades do “prédio azul” mudou24. Tal acontecimento reafirma a necessidade de pensar a formação de professores

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is a pivotal tool to perform educational actions which will change the world.

23 Disponível em: http://www.redebrasilatual.com.br/educacao/2015/10/sao-paulo-fechara-94-escolas-para-reorganizar-rede-estadual-de-ensino-393.html . Acesso em: 30 nov. 2016. 24 Página em rede social da Ocupa Faced: https://www.facebook.com/Resist%C3%AAncia-UFRGS-Ocupa-FACED-1805906429623311/?fref=ts . Acesso em 30 nov. 2016.

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CAMINHOS

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em uma perspectiva de conscientização política e participação coletiva, voltadas para uma práxis em que autonomia, emancipação e cidadania ganhem forma concreta em nossas escolhas e ações do dia a dia, como estudantes, cidadãos ou educadores/professores comprometidos. Mas em tempos de deslocamento, instantes de lusco-fusco (transição para um novo dia ou para uma longa noite?), em que o exercício da dúvida é posto em questão, o que faz com que alguns estudantes sigam se envolvendo, protagonizando, resistindo? Por que, com tantos ataques à educação, há tanta ausência de estudantes de Pedagogia nas mobilizações? Na curiosidade de conhecer e investigar hipóteses, compartilhando impressões acerca de uma produção audiovisual é que se deu o diálogo que possibilitou aproximações da pesquisa com o ensino, de visões políticas com a experiência estética, do olhar atento com a escuta sensível.

A proposta da atividade de pesquisa dar-se ia primeiramente, com alunas de etapas diferentes (1º e 6º semestre) do curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porém a proposta foi atravessada pela causalidade do momento que vivemos. No dia da realização e conversa com as alunas do 6º semestre, ocorreu a assembleia dos estudantes da Faculdade de Educação, sendo que durante a exibição do vídeo o prédio da faculdade foi oficialmente ocupada25 e a atividade foi cancelada. Com a ocupação efetivada, eis que surge um outro espaço para vivenciar o estudo: a Ocupa Faced, termo utilizado pelos estudantes para designar o movimento. A proposta se tornou uma atividade dentro da programação da Ocupa, aberta a quem desejasse participar. O uso do audiovisual, neste caso a videoarte Muto, como suporte para estabelecer esse diálogo se deu pela relevância de estudos em torno da leitura de produções audiovisuais da arte contemporânea26, e por sua contribuição em contextos educativos. Greice Cohn, em sua tese de doutorado, ajuda a pensar tal abordagem:

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25 Disponível em: http://www.sul21.com.br/jornal/estudantes-ocupam-predio-da-faculdade-de-educacao-da-ufrgs/ . Acesso em 29 nov. 2016. 26 Sobre leitura de produções audiovisuais ver: PILLAR, Analice Dutra. REGINATO, Tanise. Os efeitos de sentido na videoarte Muto: tempo e espaço no discurso audiovisual. Anais 25º Encontro da Anpap, 2016. Disponível em: http://anpap. org.br/anais/2016/simposios/s6/analice_dutra_pillar-tanise_reginat.pdf

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A videoarte traz mais perguntas do que respostas a seus espectadores/participadores, convidando-os a rever conceitos anteriores a partir da confrontação com novas situações que desestabilizam modos apreciativos habituais. Jacquinot adverte que “a verdadeira liberdade é ter a oportunidade de refletir, de trabalhar com o que lhe dão a ver e a entender” (JACQUINOT, 2012, p. xiv). Se as imagens, de uma forma geral, já permitem ao aluno mais liberdade de leitura do que a palavra, como defende a autora (ibid, p. 16), as imagens da arte, ao operarem poeticamente com processos imaginativos e perceptivos potencializam a reflexão e o pensamento criativo e autônomo, objetivo essencial de toda formação (ibid, p. xiii). (COHN, 2016, p. 51).


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Lançar mão de meios artísticos que provocam, que levam a refletir, a sentir de diferentes jeitos a experiência estética, é fundante para perceber a capacidade de instigar a “saber olhar” e compartir os sentidos com o outro na relação entre arte e educação. Nos registros das estudantes surgiram diversas expressões como “desacomodar, estranhamento, ansiedade, satisfação, agonia, confusa, aflita, desagradável, silenciamentos, medo, questiona, forte, perturbação, vazio, encantadora”, as quais evidenciam a dimensão que as produções audiovisuais da arte têm, de confrontar e promover olhares que desestabilizam os modos convencionais de ver. A arte, ademais do que está em galerias ou museus, como teoria e método de mediação nos proporciona essa possibilidade: [...] a arte pode ser também o que está posto nos muros, nas paredes das cidades e que nos provoca. Esta provocação pode ocorrer de forma prazerosa ou não. Segundo as ideias kantianas, a arte precisa promover e causar uma sensação, seja ela boa ou ruim. Provocar pode gerar incômodo e, principalmente, desacomodação. Assim, a letargia a que estamos acostumados dá lugar à dúvida, que é o primeiro passo para gerar reflexão. (LOPES, 2011, p. 253).

No dia 07 de novembro foi realizada a exibição na sala 102 da Faculdade de Educação. Haviam treze adultos e uma criança que estava acompanhada de sua mãe. O objetivo foi coletar registros por escrito e estabelecer um diálogo com os estudantes, dando espaço para que expusessem seus pensamentos, imaginação e reflexões, a partir da mediação da própria arte. Os participantes assistiram ao vídeo e escreveram suas impressões, foi aproximadamente uma hora de conversa e escuta, que apenas não se prolongou pela chegada de alguns professores que tinham reunião na mesma sala em seguida. Foi um momento bastante rico e necessário, pois à medida que cada um falava e refletia sobre o que viu, reelaborava sua própria significação, como foi possível perceber em alguns comentários. Um dos participantes disse: “Com certeza ele suscita diferentes interpretações né (o vídeo). Ele tem essa coisa de poder analisar coletivamente os espaços e da mesma forma essa coisa nossa de poder... do nosso interior comunicar alguma coisa que a gente percebe. Eu fiquei mais na questão dos homens que se reproduziam e ao mesmo tempo se desfaziam e aí eu escrevi assim ó”:

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SOBRE A EXIBIÇÃO NA OCUPAÇÃO

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Imagem 1 (frente e verso) – Registro de estudante acerca da apreciação do vídeo. Fonte: Banco de dados da Pesquisa. 2016

Através da fala e dos escritos deste estudante, que em sua interpretação do vídeo cria poesia, percebe-se a força transformadora que tem o diálogo e a escuta quando postos em prática nas relações humanas mediadas pela arte. Que consciência é esta que se dá conta dos avanços e desencontros do homem, das relações de dominação, mas também das possibilidades de colorir e enfeitar a vida? É certamente uma consciência crítica, que se permite a busca “entender quem são” e ao mesmo tempo se permite a criação, não estando, portanto, num estado de acomodação. Sua fala seguiu depois do texto usando palavras como consciente, inconsciente, construção, transformação, fragmentada, resistência, elementos da memória também ganharam a palavra. Isso reforça a potencialidade da experiência “à medida que estabelece a relação da singularidade à universalidade, entre a própria experiência e a palavra e a experiência e a palavra do outro, entre texto e contexto, entre sujeito e mundo”, escreve Machado (2011, p.112) e reitera:

Outro estudante fez um interessante esquema que o espelha como sujeito do seu conhecimento, refletindo sobre sua existência, construindo sua consciência crítica na busca, na pergunta e de forma criativa. Cabe aqui lembrar do pensamento de Freire (1996, p.65) quando escreve que “Este é um saber fundante da nossa prática educativa, da formação docente, o da nossa inconclusão assumida”. Eis o que o estudante registrou:

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É pelo diálogo que nos permitimos conhecer; eis, portanto, o esforço da pedagogia, em orientada pelo diálogo, construir processos inovadores que, enquanto dialógicos, permitam a construção de homens e mulheres autônomos. Sujeito e diálogo: os dois princípios de uma pedagogia libertadora (MACHADO, 2011, p.112).

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Imagem 2 (frente e verso) - Registro de estudante acerca da apreciação do vídeo. Fonte: Banco de dados da Pesquisa. 2016.

Quando ele escreve “Quem sou eu comigo? E com o mundo?”, “Conflitos internos”, “Ressignificação do mundo”, O que vamos deixar?”, mostra a consciência de si, como ser inacabado, em permanente busca, tal qual a educação como processo permanente de aprender e de ensinar. “Deu-se vida”, vida da arte, vida ao muro, vida aos personagens. Vida como possibilidade, ainda que apenas possibilidade de imaginar. Vida é também ocasião de criação e através desse espaço de mediação com processos artísticos, tornase lugar de recriação de novos olhares, sobre a arte, sobre a sociedade e sobre si. Um olhar vivo, um olhar que pensa e pensa junto. Como nos incita Eduardo Galeano (2016), em sua crônica:

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Imagem 3 - In: GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços (2016, p. 15).

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TEMPOS DE SABER E CONSCIÊNCIA CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA

Segundo Paulo Freire, existe a consciência acrítica, intransitiva. É aquela em que o ser humano apresenta uma percepção limitada da realidade, onde o presente opressivo o deixa impotente para agir, não se faz sujeito protagonista, se resigna e não vê no futuro perspectiva de mudança. Este tipo de consciência é garantida no fatalismo e assujeita-se à ordem social vigente de maneira acomodada, alienada e oprimida em sua extrema condição. O registro da estudante abaixo não estaria pois, relacionado com este estado de consciência, quando ela diz que “Deixa um vazio uma impotência diante dos acontecimentos” e que “as pessoas atropelam umas às outras por fins fúteis, violentos e desnecessários.”? Em seu relato não vemos nenhuma perspectiva de mudança, de superação, o que ela captou do vídeo foi uma realidade opressora:

Imagem 4 - Registro de estudante acerca da apreciação do vídeo. Fonte: Banco de dados da Pesquisa. 2 016.

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Na consciência ingênua o sujeito apresenta certa capacidade de questionar a realidade vivida, identifica-se com a classe a que pertence e começa a rejeitar estruturas opressoras, a existência da exploração e a presença de dominantes e dominados. É uma consciência “em fase de transição para a consciência fanatizada ou para a consciência crítica, dependendo da maneira como ela é admitida, assumida, encarada e trabalhada em processos educativos e fora deles” (CORREIA, 2008, p. 58). O tempo da transição vai resultar em opções onde o indivíduo vai ficar preso a velhos valores ou partir em busca de possibilidades de reconstrução, do novo. Nessa consciência transitivo-ingênua, se faz fundamental o lançamento ao diálogo e o debate, pois mesmo que o sujeito perceba as oposições das estruturas sociais, ainda não vê modos de superação, está presente no registro da estudante abaixo:

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Imagem 5 - Registro de estudante acerca da apreciação do vídeo. Fonte: Banco de dados da Pesquisa. 2016.

O estado de consciência seguinte, pode ser a consciência fanatizada, marcada pela incapacidade do sujeito de práxis. O portador dessa consciência impõe a verdade pessoal sobre os demais, inclusive de forma violenta, não há lugar para diálogo ou consenso e o que prevalece é uma acomodação ao status quo e a manipulação de ideias. Os opressores capitalistas são exemplo disso, com suas visões fechadas e condicionadas em torno do lucro, acumulação, competividade e consumismo. Depois de passar pela consciência ingênua, se o indivíduo escapa ao fanatismo, é possível que alcance a consciência crítica, que possibilita uma profunda percepção da realidade, compreensão das relações de poder e a existência de dominantes e dominados, com isso o sujeito se vê comprometido a agir para transformar. O sujeito crítico está aberto ao diálogo e à reflexão e nesse processo de aquisição da criticidade, que envolve ensino e aprendizagem, a curiosidade deve ser uma ação. É a curiosidade indagadora e rigorosa de que Paulo Freire fala: O exercício da curiosidade a faz mais criticamente curiosa, mais metodicamente ‘perseguidora’ de seu objeto. Quanto mais a curiosidade espontânea se intensifica, mas, sobretudo, se ‘rigoriza’, tanto mais epistemológica ela vai se tornando (FREIRE, 1996, p. 97).

O estado de consciência seguinte, pode ser a consciência fanatizada, marcada pela incapacidade do sujeito de práxis. O portador dessa consciência impõe a verdade pessoal sobre os demais, inclusive de forma violenta, não há lugar para diálogo ou consenso e o que prevalece é uma acomodação ao status quo e a manipulação de ideias. Os opressores capitalistas são exemplo disso, com suas visões fechadas e condicionadas em torno do lucro, acumulação, competividade e consumismo.

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O exercício da curiosidade a faz mais criticamente curiosa, mais metodicamente ‘perseguidora’ de seu objeto. Quanto mais a curiosidade espontânea se intensifica, mas, sobretudo, se ‘rigoriza’, tanto mais epistemológica ela vai se tornando (FREIRE, 1996, p. 97).

Nesse exercício de ser curioso, encontra-se no pensamento da estudante registrado na imagem abaixo, suas impressões sobre a videoarte, expressadas em questionamentos. Ela não se limitou ao figurativo ou ao simbólico das imagens e sons, avançou. Através de

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Depois de passar pela consciência ingênua, se o indivíduo escapa ao fanatismo, é possível que alcance a consciência crítica, que possibilita uma profunda percepção da realidade, compreensão das relações de poder e a existência de dominantes e dominados, com isso o sujeito se vê comprometido a agir para transformar. O sujeito crítico está aberto ao diálogo e à reflexão e nesse processo de aquisição da criticidade, que envolve ensino e aprendizagem, a curiosidade deve ser uma ação. É a curiosidade indagadora e rigorosa de que Paulo Freire fala:

suas indagações nota-se a presença do sensível se relacionando com a realidade concreta, com o mundo contemporâneo em que vive. “Ocupar determinado espaço é torná-lo vivo? ” Assim, perguntando, ela produz e atua de si, para si e com os Outros:

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Registro de estudante acerca da apreciação do vídeo. Fonte: Banco de dados da Pesquisa. 2016.

Problematizar o vivido, na educação, é compreender os motivos históricos, políticos e sociais que contribuíram para o quadro conjuntural que nossa sociedade vive hoje. É vislumbrar formas criativas e transformadoras de agir para construir uma nova história. A ampliação da busca por uma consciência crítica, através da curiosidade, possibilita a superação do estado de senso comum. Assim, é fundamental conceber a consciência como algo em constante movimento, não de forma ascendente, regular ou simétrica, mas

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como um processo que hora é de superação, hora é de contradição. Ao perguntar, o que faz com que algumas estudantes de Pedagogia participem e se envolvam nos problemas políticos da educação, valorizando e reconhecendo espaços como o da Ocupa Faced, encontro nos cinzas e degradês da consciência as respostas. São relações focadas nos indivíduos, que se ampliam ao coletivo. Quem se envolve e protagoniza, faz parte desse “algo em movimento”, que é inacabado e sempre possível, pois está comprometido com o fazer. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao unir a concretude das vivências, os estudos e a reflexão para realizar este diálogo, a crítica, que implicitamente joga suas luzes ao longo deste trabalho, reside na própria formação de professores, na qual boa parte dos docentes e discentes não faz a reflexão política, deixando de apropriar-se, portanto, das relações entre o desenvolvimento e superação dos processos de consciência e o contexto social mais amplo. As imagens dos registros recolhidos evidenciam que os grupos se constituem de indivíduos que interpretam de diferentes formas a mesma produção audiovisual. Os quais também se encontram em divergentes estados de consciência, ainda que compartilhem de causas em comum. O diálogo como parte do processo para a concretização de um tipo de formação (humana, política), de sociedade, de mundo, é ferramenta fundamental para conhecer as subjetividades, que postas em ação coletiva, são capazes de atuações transformadoras. Diálogo para questionar e construir. É relevante considerar ainda, que apesar das limitações de tal proposta, é possível perceber a necessidade desses espaços de mediação, de escuta, de livre expressão, onde possam aflorar as inquietações, os medos, os saberes, os pensamentos poéticos e as potencialidades de cada indivíduo, aproximando-os como coletivo. A apropriação coletiva do saber, através de relações de horizontalidade dialógica como um meio que possibilite a construção desses espaços de participação na formação acadêmica e para além desta, acontece no desenvolvimento da emancipação do sujeito, que tem por extensão a emancipação política. Ambas, propulsoras de mudança. A formação de professores não pode ter equivalência apenas com as teorias e técnicas de ensino, mas precisa ser uma formação de práxis, de reflexão e escuta, de uma constante inquietação que estimule o desenvolvimento das consciências, e que, através das vivências, resgates de memória, observação, mediação da arte e tantas outras possibilidades de interação com a aprendizagem, possibilite compreender significativamente os mais variados processos e práticas educativas. A arte unida ao diálogo e à crítica, tornam potentes os sujeitos dispostos e para estar disposto é preciso consciência. Quem resiste e se envolve, fica por que está sensibilizado, está indignado, está curioso. Ainda que as motivações pessoais sejam subjetivas e os estados de consciência distintos. Todavia, quem fica, não está passivo, não está indiferente, não está submisso. Está presente. É um movimento que leva à dúvida, à pergunta

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REFERÊNCIAS: COHN, Greice. Pedagogias da videoarte: a experiência do encontro de estudantes do colégio pedro ii com obras contemporâneas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2016. 397 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

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e, o exercício da curiosidade, somado ao exercício da pergunta, remete à indignação da resistência. A resistência como parte do processo precisa de uma potência, do contrário, desaba, por que não é fácil. A arte mediando o diálogo entre os sujeitos, sensibiliza, provoca e impulsiona os sujeitos à luta, à renitência dos que participam e reagem. Por que tem que ser forte e propositor senão esvazia. Se faz necessário o pensar em educação/formação para consciência, consciência para a dúvida, duvidar para imaginar/criar, criar para resistir, resistir para seguir, seguir para mudar e buscar uma formação emancipadora acrescida de novos saberes e fazeres, acreditando no alvorecer de um novo dia.

CORREIA, Wilson. Práxis pedagógica na filosofia de Paulo Freire: um estudo dos estádios da consciência. Trilhas Filosóficas, Rio Grande do Norte, ano 1, n. 1, p. 55-66, jan/jun. 2008. Disponível em: http://periodicos.uern.br/index.php/trilhasfilosoficas/article/viewFile/15/15. Acesso em: 25 nov. 2016. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2016. LOPES, Ivana Maria Nicola. Você tem sede de quê? Você tem fome de quê? A urdidura que sustenta a construção de uma ideia. In: RIBEIRO, Jorge Alberto Rosa; RIBEIRO, Marlene (orgs.). Redes de pesquisa: trabalho, movimentos sociais e educação. – Porto Alegre: Itapuy, 2011. P. 251-256.

artigos

MACHADO, Rita de Cássia Fraga. Pedagogia do sujeito coletivo: o diálogo como princípio metodológico e o sujeito como princípio epistemológico. In: RIBEIRO, Jorge Alberto Rosa; RIBEIRO, Marlene (orgs.). Redes de pesquisa: trabalho, movimentos sociais e educação. – Porto Alegre: Itapuy, 2011.

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artigos Foto: Wagner Ferraz

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AUTISMO; ESCOLA; FAMÍLIA: NARRATIVAS, POSSIBILIDADES E INCLUSÃO

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Tamara Santos da Rosa27 Tásia Wisch28 Daniele Noal Gai29 RESUMO O presente trabalho se encontra na área da educação especial e inclusão escolar com vistas a atender a requisitos para obtenção de grau em Licenciatura em Pedagogia. Essa escrita é resultado de uma experiência vivida durante o período de estágio de prática docente em uma escola de Ensino Fundamental durante o primeiro semestre do ano de 2016. Sendo que um importante aspecto dessa prática docente foi o estabelecimento das relações que se desenvolveram a partir da revelação de mãe para filha a respeito da constituição do autismo como parte integrante da identidade dessa aluna. Essa descoberta provocou uma série de comportamentos os quais aliados às atitudes das colaboradoras da pesquisa revelaram parte do processo de inclusão escolar da aluna. Por isso essa pesquisa visa compreender que elementos compõem o processo de inclusão escolar de uma estudante com autismo considerando as narrativas sobre esse percurso. Para que esse objetivo geral fosse contemplado, foi necessária a elaboração de dois objetivos mais específicos, dos quais um, busca evidenciar os elementos constitutivos dos processos inclusivos na escola regular através das narrativas dos envolvidos nesse processo e o outro visa problematizar a inclusão escolar a partir da experiência narrada por uma estudante com autismo em fase de escolarização nos anos iniciais do ensino fundamental. E para melhor compreender esse processo, apresento a metodologia que tem sua base no estudo de caso, mais precisamente através das narrativas da aluna, mãe, professora, educadora especial e pedagoga estagiária (narrativa descritiva de um momento), como importantes sujeitos envolvidos nesse contexto. A partir das narrativas foi possível compreender a importância do relacionamento entre escola e família para o estabelecimento comum de atitudes contribuindo assim na educação do sujeito da pesquisa. Identificou-se ainda a importância de um currículo diversificado a fim de promover tanto as habilidades quanto as potencialidades da estudante, sendo ainda, que se destacou a importância do olhar das professoras para além de um diagnóstico de autismo. Todos esses elementos possibilitaram um vislumbre de elementos pertinentes ao conceito de uma educação inclusiva.

ABSTRACT The following work deals with matters pertaining to the area of Special Education and Academic Inclusion so as to meet requirements for the completion of a Bachelor’s of Education in Early Childhood Studies. These writings are a result of a practical experimentation and teaching experience during the internship in an Elementary School during the first

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PALAVRAS-CHAVE: Autismo. Narrativas. Inclusão escolar. Ensino Fundamental.

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AUTISMO; ESCOLA; FAMÍLIA: NARRATIVAS, POSSIBILIDADES E INCLUSÃO

27 Pedagoga graduada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul; professora da educação básica na cidade de Porto Alegre/RS. E-mail: tamara.santos@ufrgs.br. 28 Educadora Especial, doutoranda em educação na Universidade Federal de Santa Maria; professora no Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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29 Professora do Programa de Pós-graduação Ensino na Saúde, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Educadora Especial, doutora em educação; professora adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


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semester of 2016. One of these aspects experienced during this study was the relation established between a mother, an autistic daughter and her neuroatipicty as a constituent of her identity. Such an exercise provided valuable data in the form of behaviours and patterns identified by the researchers, and as to how they mattered in her academic inclusion. With this in mind, this research aims to comprehend what elements are pivotal in the greater narrative of this educational journey. To meet these ambitions, we aimed to explore two specific processes: one being the observation of the constitutive elements of special education in basic academia, and the other being the problematization of the academic inclusion experienced by an autistic student during her grade school years. To better comprehend this commotion, I demonstrate that this methodology has its basis in the narratives of the mother, the daughter, the teacher, the special educator and the intern as important subjects enveloped in this context. Through these narratives it became possible to visualize how important the relation between school and family is for the establishment of approaches on how to comprehend and understand the subject of this research. A multidisciplinary curriculum that develops both the skills and “wills to live” also proved invaluable to comprehend the student beyond her mere autistic diagnosis. All of these elements evidence an array of matters belonging to the concept of an “inclusive education”. KEYWORDS: Autism. Narratives. Academic Inclusion. Elementary School.

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NAVEGAR Esta pesquisa é um desafio, pois foi no encontro com o que é inerente a todo e qualquer ser humano, a humanidade, é que encontramos Gabriela30, ou melhor, ela nos encontrou. Esse encontro ocorreu especialmente quando ela contou que tinha Asperger, perguntando também o que sabíamos o que isso significava e dando a seguinte explicação: “São pequenos gênios com dificuldade de socialização”. Essas conversas se desenvolveram durante um período, exatamente quando a mãe de Gabriela lhe contou sobre o autismo. Em seguida Gabriela apresentou a necessidade de contar também para os colegas essa descoberta. E a partir dessa necessidade da menina é que a educadora especial, a professora regente e a pedagoga estagiária buscaram, do melhor modo, contar para a turma. Perguntávamo-nos como deveria ser desenvolvido o processo de informação aos colegas sobre o autismo, sobre a Síndrome de Asperger, pois essa era uma emergência para a menina. Buscamos o diálogo com a Gabriela primeiramente, pois a informação deveria ser passada aos colegas da turma de sala de aula comum de um modo que não deixasse a aluna desconfortável. Após essas análises e diálogos é que se optou pelo recurso audiovisual, mais especificamente a apresentação de um filme. Após a apresentação da narrativa visual, a professora de educação especial, que acompanha Gabriela frequentemente, desenvolveu uma conversa com os alunos daquela turma sobre o filme. A colega deles, a 30

Nome fictício em respeito ao sigilo ético da pesquisa.

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Gabriela, ao final do filme “identificou-se” para a turma dizendo: - “Eu tenho Asperger! ”. Acredito que esses momentos foram tanto um reflexo do que foi se construindo ao longo de sua trajetória de vida, ao longo de sua escolarização em escola comum, como do apoio familiar. Situações particulares e relevantes, essas vividas com a aluna Gabriela, que fazem pensar nos resultados de uma inclusão escolar efetiva. Por isso tudo é que buscamos responder a algumas inquietações: Quais aspectos podem ser relevantes para uma efetiva inclusão escolar? Esses aspectos envolvem o indivíduo, sua família e a escola? Como a escola dialoga com os seus alunos com deficiência e com suas famílias, de modo a compreender os processos de desenvolvimento, de escolarização e de inclusão? Como considerar as narrativas de uma aluna com deficiência, suas necessidades de diálogo e o seu desejo de interação a partir da sua deficiência? Explico ao leitor que utilizo a expressão navegar, pois esta me remete aos antigos navegadores que partiam em direção a outros continentes e um dos maiores desafios desses navegadores (acredito eu) era o de planejar rotas seguras para que suas caravelas pudessem chegar de forma segura a seus destinos. No entanto, não se poderia dissociar a rota do tempo, pois as caravelas dependiam diretamente do tempo para poder planejar a quantidade de alimentos necessários para se passar os dias. O navegador deveria saber “ler” a natureza também, a fim de que pudesse reorganizar as velas para ter um melhor desempenho da caravela. Este navegador é que guiava seus tripulantes para que juntos pudessem chegar à meta, ao continente desejado. APRONTANDO AS VELAS

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A partir do momento em que a viagem está prestes a iniciar não há mais como falar na primeira pessoa, mas principalmente o pronome nós, pois essa pesquisa-aventura é constituída por muitas vozes. Considerando o importante papel das velas em uma embarcação, pois com elas mal postas pouco podem ajudar na progressão de uma viagem, é que buscaremos aqui aprontar as velas de modo a nos guiarem até o final do nosso destino, ou próximo dele, de forma mais eficiente e segura. Por isso escolhemos trabalhar através de uma pesquisa qualitativa, que possui o estudo de caso em educação como metodologia, pois acreditamos assim como Godoy (1995. p. 21) que “[...] um fenômeno pode ser melhor compreendido no contexto em que ocorre e do qual é parte, devendo ser analisado numa perspectiva integrada”. Este trabalho visa problematizar a educação especial e o processo de inclusão escolar, contudo, a intenção não é somente provocar uma discussão sobre os processos de inclusão escolar no país, mas sim, dialogar com os sujeitos de um contexto específico onde o processo de inclusão está em desenvolvimento. É necessário destacar que tanto o contexto, quanto os sujeitos dessa pesquisa não são estranhos a nós autoras, pois foi através da docência que nos conhecemos. Por isso, foi utilizada a narrativa meu diário de campo reflexivo31 sobre o período de estágio docente.

31 Escrita reflexiva produzida durante o estágio curricular de licenciatura em pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. C3

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As colaboradoras da pesquisa são: a professora regente Juliane, a educadora especial Márcia, a Gabriela e sua mãe Paula32 por acreditar que esses sujeitos representam, cada um, uma perspectiva sobre o processo inclusivo de Gabriela. E para iniciar o trabalho com os sujeitos da pesquisa acreditamos na relevância do papel do pesquisador para os entrevistados, pois o papel dele [...] deve ser claro para aqueles que prestarão informações, não devendo ele ser confundido, com elementos que inspecionam, avaliam e supervisionam atividades. A compreensão inadequada dos objetivos da pesquisa e do papel do pesquisador deverão influenciar e dirigir as respostas daqueles que serão entrevistados, e os comportamentos observados poderão não ser os usuais, distorcendo os dados obtidos. (GODOY, p. 27).

Por isso, apresentamos aos envolvidos na pesquisa um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, explicando o objetivo da pesquisa e seus instrumentos, indicando também, claramente, qual será a sua contribuição para o estudo, a importância do estudo e dos sujeitos da pesquisa. O tempo é de suma importância nesse trabalho, por isso em função de determinado tempo que possuíamos para desenvolver essa viagem em busca do continente, optamos por escolher viajar de forma segura através da rota das entrevistas, onde os tripulantes que embarcaram conosco contribuíram de forma singular, apontando cada um, ao seu modo e tempo, uma possível rota para se chegar ao continente. A colaboração se desenvolveu através da entrevista episódica (JOVCHELOVITCH E BAUER apud HABERMAS, 2002), a qual aglutinou-se à entrevista semiestruturada e às narrativas de experiência, para que juntas pudessem expressar de forma clara, mesmo que divergentes ou diferentes entre si se comparadas, as diferentes visões sobre o mesmo processo de inclusão escolar. Ainda nesse sentido Paiva e Oliveira apud Clandinin e Conelly (2008. p. 96): definem pesquisa narrativa como “uma forma de entender a experiência” em um processo de colaboração entre pesquisador e pesquisado. A pesquisa narrativa mais comum pode ser descrita como uma metodologia que consiste na coleta de histórias sobre determinado tema onde o investigador encontrará informações para entender determinado fenômeno.

Não há como dissociar o processo de inclusão de uma estudante com Asperger das experiências ocorridas nesse meio, elas, as lembranças, falam do que “nos toca”, e é exatamente isso que é importante ao se falar em processos, a descrição está intrinsicamente relacionada ao âmago de cada indivíduo. Cremos que essa metodologia possui potencialidade para que possa se fazer visível

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Foram utilizados nomes fictícios para garantir o sigilo ético da pesquisa.

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DEFININDO O QUADRANTE: A LEGISLAÇÃO A natureza e a bússola são ótimos guias para a navegação, mas é necessário, antes de tudo, um navegador que as saiba “ler”, e para saber ler é necessário, antes de tudo, estudar a fim de ajustar o quadrante para melhor poder compreender esse contexto e situação. Por isso nos detemos no início desse trabalho a buscar tanto referenciais das políticas para uma educação inclusiva, como de pesquisadores da área da inclusão escolar. Foi a

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as diversas engrenagens que compõem o processo de inclusão escolar da estudante e a partir dele se possa ter uma compreensão mais aclarada sobre os aspectos fundamentais que compõem um processo inclusivo. Essa pesquisa toma seu rumo, sem dúvida, pelo meu desejo de narrar um encontro, que por sinal foi com uma aluna que queria dizer mais sobre a síndrome de Asperger, ou seja, narrar-se. A rota é marcada pela oralidade, as vozes de diferentes protagonistas que conduzem a embarcação, mas Gabriela tem destaque.

partir deles que passamos a olhar com lentes específicas para esse contexto, para esses sujeitos, tripulantes que embarcaram nessa viagem, nessa produção de conhecimentos. A educação como direito de todas as pessoas é apontada desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) onde é salientado que “todo o ser humano tem direito à educação”, mas é somente anos mais tarde que a educação para pessoas com deficiência passa a ser discutida efetivamente no Brasil, indicando a partir das Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961(Lei Nº 4.024): Art. 88. A educação de excepcionais, deve, no que for possível, enquadrar-se no sistema geral de educação, a fim de integrá-los na comunidade. Art. 89. Toda iniciativa privada considerada eficiente pelos conselhos estaduais de educação, e relativa à educação de excepcionais, receberá dos poderes públicos tratamento especial mediante bolsas de estudo, empréstimos e subvenções.

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Ainda que os artigos acima citados refiram-se à educação dos excepcionais, incluindo-os nos parâmetros da educação nacional, percebe-se que não há um efetivo investimento no que tange à inclusão no cenário escolar, pois ainda que afirme a importância de uma integração, ressalta-a com a expressão se possível. E ainda no artigo 8 efetivam um incentivo financeiro à educação dos excepcionais paralela à escola. É a partir da Constituição de 1988 que o Estado assume a responsabilidade de prover uma educação de regime universal, sem exclusão de pessoas, destacando ainda, o papel da escola como uma ferramenta para a cidadania. Com isso a educação passa a ser direito de todo cidadão brasileiro. A Declaração Mundial de Educação para Todos (1990) e a Declaração de Salamanca (1994) passaram a influenciar a formulação das políticas públicas da educação inclusiva. E a partir desse movimento mundial o Brasil começa a voltar os olhos para propo-

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sições políticas cada vez mais claras de inclusão escolar como a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996 e a Resolução 02/2001 do Conselho Nacional de Educação (CNE/CEB) na qual dispõe as “[...] Diretrizes Nacionais para a educação de alunos que apresentem necessidades educacionais especiais, na Educação Básica, em todas as suas etapas e modalidades.” (p.1), evidenciando uma clara intenção de incluir os alunos nos diversos níveis que compõem a Educação Básica. Entretanto, é em 2008 que o Ministério da Educação apresenta uma política de educação especial voltada para uma educação inclusiva denominada Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, o qual tem como objetivo: [...] assegurar a inclusão escolar de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, orientando os sistemas de ensino para garantir: acesso ao ensino regular, com participação, aprendizagem e continuidade nos níveis mais elevados do ensino; transversalidade da modalidade de educação especial desde a educação infantil até a educação superior; oferta do atendimento educacional especializado; formação de professores para o atendimento educacional especializado e demais profissionais da educação para a inclusão; participação da família e da comunidade; acessibilidade arquitetônica, nos transportes, nos mobiliários, nas comunicações e informação; e articulação intersetorial na implementação das políticas públicas. (p. 14)

Esse documento transfere o foco de atenção dedicado antes, na história da educação brasileira, ao aluno com deficiência, para voltar-se às condições estruturais de acesso e permanência no contexto escolar, destacando este investimento como forte potencializador de uma educação efetivamente inclusiva. Certamente transferir esse olhar para a escola a fim de que ela possa se repensar é um desafio. Brizolla (2015, p. 34) nesse sentido, afirma que

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[...]o cenário de implantação de políticas públicas de educação inclusiva no Brasil tem exigido mudanças profundas nas concepções e estruturas das comunidades escolares, remetendo a um exercício de revisão e ressignificação da modalidade de educação especial[...].

Em 2009 o Ministério da Educação apresenta a Resolução nº 4, a qual institui diretrizes sobre o modo de funcionamento do Atendimento Educacional Especializado nas escolas, destacando e esclarecendo ainda mais essa proposta de atendimento, que visa atender os alunos em turno inverso ao turno escolar em que estuda. Em 2012 entre em vigor a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista a qual visa promover a proteção das pessoas com esse transtorno. A partir dessa política a pessoa com autismo é amparada perante lei no que se refere à saúde, educação e trabalho. Assim pode-se perceber que o pensamento político

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para a inclusão foi se desenvolvendo gradativamente na história educacional brasileira.

A ciência médica mostra-se cada vez mais “definidora” dos conceitos ao indicar especificidades cada vez mais determinantes dos sujeitos com autismo. As características do Transtorno do Espectro Autista de acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais- DSM- versão 5 organizam-se assim: Déficits persistentes na comunicação social e na interação social em múltiplos contextos; padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades, conforme manifestado por pelo menos dois dos seguintes, atualmente ou por história prévia; prejuízos na comunicação social e em padrões restritos ou repetitivos de comportamento.

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AUTISMO: ALGUNS MODOS DE OLHAR

Esse manual é utilizado na área médica a fim de caracterizar e categorizar os diferentes tipos de transtornos mentais conhecidos na área da saúde. Esse manual (DSM-5) engloba transtornos antes chamados de: autismo infantil precoce, autismo infantil, autismo de Kanner, autismo de alto funcionamento, autismo atípico, transtorno Jjlobal do desenvolvimento sem outra especificação, transtorno desintegrativo da infância e transtorno de Asperger.

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Se para a ciência o autismo possui algumas características determinadas, para as políticas públicas brasileiras não poderia ser diferente, pois perante a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista: “A pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais”. O viés médico possui sua potencialidade no que se refere ao diagnóstico precoce do sujeito, pois “Atrasos desnecessários no diagnóstico têm implicações práticas importantes, já que o desenvolvimento de estratégias de comunicação efetivas, ainda que simples, em um estágio precoce da vida auxiliam a prevenir o comportamento diruptivo” (BOSA, 2006.p.51), favorecendo assim, a condição de transformação desse sujeito, para que possa melhor viver e conviver em sociedade. No entanto, quando há somente o viés médico para dar sentido ao que a criança é, se torna nocivo, pois a partir de uma categorização de características, se corre o risco de não mais ver o sujeito, mas sim, o rótulo de sua condição, ou seja, “o indivíduo não é alguém com uma dada condição, é aquela condição específica e nada mais do que ela” (AMARAL, 1998, p.15). UMA ESCOLA

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A escola atende um público que em geral reside nas periferias da região metropolitana de Porto Alegre, envolvendo as cidades de Viamão e Alvorada. O ingresso na escola se dá através de sorteio público. Oferece Ensino Fundamental, Ensino médio e Educação de Jovens e Adultos disponibilizados através de três turnos. O currículo é constituído a partir dos projetos que oferecem um trabalho de variadas oficinas nas diversas etapas do ensino, privilegiando as diversas áreas das múltiplas inteligências como artes, linguagem, matemática, educação física, etc. Essas oficinas se desenvolvem durante todo o período letivo. COMPANHEIRAS DE NAVEGAÇÃO Gabriela tem dez anos e estuda atualmente no quinto ano de uma escola pública. Ingressou na escola a partir do primeiro ano, no entanto, é a partir do ano de 2015 que inicia seu atendimento com a educadora especial. Sua mãe atua como professora durante dois turnos, por isso seu principal meio de locomoção para transitar entre escola e a casa é a van escolar. Paula é mãe de Gabriela e Fernando. Trabalha como professora em duas escolas estaduais no estado do Rio Grande do Sul. É uma mãe que está frequentemente em contato com a escola através tanto da educadora especial, quanto da professora regente. Márcia é a educadora especial da escola e inseriu-se nesse quadro de professores no ano de 2015. É formada em Educação Especial, licenciatura plena pela Universidade Federal de Santa Maria. Especialista em gestão educacional, tendo Mestrado em educação, e sua pesquisa foi voltada para a área da formação de professores no contexto da inclusão. Atualmente está fazendo doutorado em educação direcionado à área de formação de professores e processos inclusivos. Juliane é a professora regente da turma de Gabriela. Formada em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Especialização em psicopedagogia institucional e Mestrado em educação direcionado à inclusão escolar na área dos Estudos Culturais.

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A NOSSA JORNADA JUNTAS A fim de convidar os tripulantes para partirem em viagem, elaboramos um contrato, no qual explicava suas atribuições, o que esperava-se deles nessa aventura, e destacando a importância de cada um para que esta pudesse ser empreendida. Estabelecemos as relações, as jornadas, a partir de locais diversos. Paula viajou através de sua sala de estar, enquanto seus filhos brincavam com um jogo virtual no quarto. A Professora Ju narrava, em um espaço à parte na sala dos professores, na qual podia se perceber através de sons, alguns deles transitando próximos ao local. Gabriela narrou seu processo de navegação e percurso em um espaço do laboratório de informática da escola, no qual podíamos ouvir sons externos de crianças saindo para o refeitório. Com a educadora especial Márcia as narrativas se desenvolveram através de uma conversa

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CASA E ESCOLA: ESFERAS EDUCATIVAS Este tópico foi elaborado a partir das narrativas de Paula, a qual rememora a infância de sua filha através das experiências vivenciadas em casa e da primeira escola de Gabriela. As relações vividas em casa assumem um importante papel na vida escolar de Gabriela, pois se percebe um investimento da mãe em relação aos comportamentos e atitudes de sua filha que acabam revertendo em um modo de ser sujeito, na escola. Ao final dos quatro anos, a vida de Gabriela é marcada por situações que evidenciam as fragilidades escolares em lidar com as diferenças, pois com o passar do tempo a

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virtual, cada uma em sua casa. A partir das experiências dessas tripulantes foi possível elaborar alguns pontos importantes no processo de inclusão de Gabriela. Sendo que a partir desses pontos foi possível elencar alguns tópicos importantes para compreender o processo de inclusão escolar de Gabriela: Trajetória escolar inicial e Processos Inclusivos.

professora de Gabriela começa a contar para a mãe sobre o brincar de sua filha na escola: “[...]ela brincava com a corda do balanço... nunca o junto, o coletivo, nunca aquele social, brincava com as cordas, brincava com as coisas... menos com os colegas, nunca interagia. ” (Paula- mãe)

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Paula destaca dois pontos na primeira experiência com a escolarização de sua filha: um que a impeliu a procurar um auxílio para Gabriela e outro que, em contrapartida, não investiu na inclusão dela nas atividades desenvolvidas na turma em que estava frequentando. A partir da narrativa acima citada é possível inferir que a escola ainda não compreendia o significado de inclusão escolar, acreditando que a sua inserção no ambiente já garantiria sua inclusão naquele espaço. Essa narrativa remete a reflexões que tange os processos inclusivos nas escolas, pois percebe-se o investimento em descobrir a especificidade da criança, no entanto, há lacunas nas práticas cotidianas. Valle e Connor (2014, p. 78) discutem que a ação pedagógica de professores infunde efetivamente nas crianças uma “[...] prática da segregação baseada na capacidade[...], (pois) ensinam nossos futuros cidadãos que é “correto e natural” viver em uma sociedade para alguns, mas não para outros”. Isso demonstra o desafio do trabalho de inclusão escolar, pois este trabalho não compreende somente o aluno que está sendo inserido naquele espaço, mas educa modos de ser e estar no mundo. Aos seis anos, Gabriela é sorteada e entra para a escola que atualmente está frequentando. E o fator de permanecer na mesma escola pode ter contribuído para que as memórias, às quais se remetem frequentemente, se desenvolvam entre os anos de 2015 e 2016, suas memórias mais recentes. O ingresso de Gabriela nos anos iniciais do ensino fundamental é marcado por diferentes aprendizagens, pois além das interações, as questões motoras são um grande

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desafio. Isso se pode observar na fala de sua mãe: [...] Gabriela falou: [...] meu texto deu 4 folhas inteiras”, ela escreve bem né, ela escreve muito bem [...]. Então em compensação tem outras coisas que ela não... O ano passado ela aprendeu a amarrar o tênis, com 10 anos[...], ela fez aniversário dia 24, e a gente ficou acordada até às três horas da manhã, eu e ela, e ela disse: “mãe eu vou amarrar o meu cabelo” aí eu pego, abro (mostra com as mãos como faz com o rabicó para ajudá-la e a Gabriela não consegue fazer o movimento). Eu já tinha até desistido... pra ti ver[...]. Me dava até um nervosismo, a gente ia e voltava... E aí ela aprendeu. O ano passado foi uma alegria, quando ela aprendeu a amarrar o calçado. E agora amarrar o cabelo também é outra festa... (Paula-mãe)

No que se refere ao bom ofício de um aluno33 Gabriela apresenta um bom desenvolvimento intelectual, sendo que as questões cognitivas não apresentam déficit, a sua convivência com os colegas e professores. A menina tem acordo com as regras e rotinas escolares, então não são as principais preocupações tanto de sua família, quanto da escola, pois Gabriela geralmente não age em desacordo com as normas, com as combinações ou propostas dos professores para os estudantes ou dos seus colegas para ela. [...]ela é para mim uma aluna muito tranquila também de lidar. (Juliane-professora)

No entanto, em casa, ela apresenta comportamentos que causam uma comoção, entrando em conflito com sua mãe. Nessas situações ela relata que senta com Gabriela para retomar algumas atitudes que a desagradaram como

Através desse relato se percebe que há um investimento familiar no que se refere ao diálogo, na relação com o outro, na empatia. Sendo que através do diálogo estabelecido entre Paula e Gabriela, a mãe vai lhe mostrando certos modos de comportamentos. Ainda nesse sentido, a prática do sentar-se e explicar para sua filha, acaba incentivando sua filha, na prática, a importância de explicar para os outros o que ela mesma está sentindo, o que não está entendendo... Esse entendimento vem ao encontro das discussões que versam sobre o autismo, ao passo que simples comportamentos necessitam ser ensinados, principalmente em relação aos ajustes sociais.

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“[...] não gostei do que tu fez com o teu mano, eu não gostei do que falou da tua vó...”, busco frequente trabalhar o colocar-se no lugar do outro. [...] “Eu consigo me colocar... Eles não... É um exercício diário[...]. Mas eu e ela, a gente está aprendendo muita coisa juntas”. (Paula- mãe)

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Ver mais em: Ofício de aluno e sentido do trabalho escolar de Philippe Perrenoud.

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ESCOLA INCLUSIVA CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA

Este tópico foi elaborado a partir da incidência e importância que as narradoras destinam a esse espaço institucional. Em 2011 Gabriela é sorteada e entra na escola onde atualmente está estudando. A lembrança de Gabriela sobre esse dia resume-se ao sentar em roda e dizer seu nome aos colegas. Afirmou ainda que se deu de forma tranquila. No terceiro ano essa turma foi mesclada com outra turma do mesmo ano, formando uma nova configuração de cada turma. Gabriela participa das diversas disciplinas oferecidas pela escola, assim como oficinas e Atendimento Educacional Especializado, o qual tem por dinâmica de trabalho a elaboração do Jornal dos primeiros anos. Com isso Gabriela tem contato com diferentes professores e atividades ao longo da semana. A menina demonstra gostar das disciplinas em que apresenta destreza, afirmando assim Eu gosto mais de artes. Porque está bem na cara né?!(risos). Polivalência também eu gosto, eu gosto bastante de matemática. Simplesmente odeio educação física, porque eu não consigo fazer nada direito. Não gosto muito de música não sou nem um pouco boa nisso. Espanhol tanto faz. E também gosto de história. (Gabriela)

Essa narrativa destaca a percepção de Gabriela em relação às atividades cotidianas, a fala da menina vem ao encontro das narrativas da mãe ao tratar sobre as questões motoras. Ao comentar sobre as coisas que gosta de fazer na escola, aponta o grafismo, os trabalhos em grupo e os jogos desenvolvidos em aulas como atividades prazerosas, afirmando: Gosto quando a gente faz as capas, essas coisas do primeiro trimestre, segundo trimestre, porque é só desenho. [...] gosto quando a gente faz trabalho em grupo, essas coisas são bem legais. Joguinhos das matérias, essas coisas bem legais. (Gabriela)

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Ao destacar o prazer em fazer trabalhos em grupo Gabriela corrobora em sua atitude o que Bosa apud Trevarthen (2002, p. 34) já afirmavam: “nem todos os autistas mostram aversão ao toque ou ao isolamento.” É possível observar, a partir dessa cena, uma certa fluidez no que se refere ao comportamento em relação à sua condição de pessoa com autismo. Com indicativo de altas habilidades nas questões gráficas, de desenho, Gabriela prefere inserir-se geralmente nas oficinas que contemplem sua habilidade. Contudo, nem sempre é colocada nas que deseja, o que acaba ocasionando seu descontentamento, o que pode ser evidenciado na fala da mãe: Um dia ela chegou muito triste das oficinas e disse que queria ficar na ofici-

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na de desenho. Ela queria ficar naquilo que ela é boa e eu digo minha filha sabe porque tu não está na oficina de desenho? É porque tu é muito boa no desenho e talvez tenham outros que precisem.... Me botaram na dança mãe... Pois é, mas é nessa aí que tu precisa mais e aí ela conseguiu entender né. Então eu acho que isso aí é um desafio né?! Tu colocar em coisas que não é sempre que ela vai fazer aquilo ali, mas pelo menos algumas vezes... De vez em quando vão dar um desafio para que ela consiga saber que consegue. Não vou ser tão maravilhosa quanto eu seria na oficina de desenho, mas eu consigo naquilo ali. Ela foi na do Balé, mas tinha que ver né, coisa mais linda, ela dançou até com o João depois. Nunca tinha feito balé, mas os movimentos.... Porque quando eu vou eu vou né.... Os movimentos precisos, corretos, tudo direitinho. Então eu acho que ter um desafio de vez em quando é importante. (Paula- mãe)

Em contrapartida ao desgosto que Gabriela apresenta pela sua inserção na oficina, Paula reforça a escolha da escola em colocá-la naquela e não em outra, e observa por uma perspectiva positiva essa escolha, com o intento de mostrar à sua filha o quanto ela pode se beneficiar com esses desafios, bem como mostrar que nem sempre os desejos podem ser atendidos Atualmente está frequentando uma oficina chamada Reinventando histórias a qual narra suas atividades, descrevendo com mais precisão, a ilustração do personagem que criou nela:

Pode-se perceber nessa descrição o quanto ela se utilizou sua habilidade gráfica com prazer a fim de enriquecer sua história. Ainda nessa oficina, sua professora Juliane lembra que: Semana passada nós tivemos a festa à fantasia e ela chegou para mim e disse [...] assim: hoje é o dia mais feliz da minha vida aqui na escola. -que aconteceu! eu vou ter aula com os Minions e eu vou ter aula com a Arlequina34! [...] eu fui olhar [...] e as professoras estavam fantasiadas e ela disse de novo: ai que legal! [...]é o dia mais feliz da minha vida e eu disse: então aproveita! [...] muito alegre, rindo e todo mundo se divertindo. Ela veio fantasiada de estudante assassina (risos) [...] (Juliane- professora)

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A aula inteira a gente só desenha, coisa mais legal do mundo!! A gente faz dedoche, fazemos teatro, fazemos tudo. Tem ainda o personagem muito louco, da hora, que se chama Garbanzo! Tipo um dragão de três cabeças, uma tem um olho só, a outra tem 2 e outro não. Tem chifres meio sei lá, meio torto, tem asas, tem quatro braços, dois bem pequenininhos, os outros dois, bem gigantes, tem as pernas bem pequenininhas e uma cauda enrolada. Poderia até fazer pelúcia disso. Eu criei sozinha! (Gabriela)

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Personagens de animação.

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Basicamente é fazer um jornal, [...] eu trabalho com várias coisas, tipo eu faço joguinhos, às vezes eu faço as matérias do jornal. Só fizemos dois até agora, o que é o da dengue e o outro que a gente ainda tá fazendo um pouco, que é das Olimpíadas. Eu faço as matérias, eu pesquiso, vou lá no Word colocar as coisas[...] ajudei a fazer o texto da dengue da Zika e da Chikungunya, fiz junto com a Isabela, o João fez as charadas, ele é do quarto

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Essa narrativa ilustra o quanto a criatividade e a diversificação de experiências contribuem para o processo de escolarização das crianças, Gabriela expressa encantamento e imaginação nas vivências. Paralelo a sala de aula comum a escola também oferece o Atendimento Educacional Especializado, que tem sua dinâmica voltada para as especificidades dos alunos atendidos. Para isso a educadora especial elaborou uma oficina para um grupo de alunos dos 4º de 5º anos, os quais necessitam elaborar um jornal. Esse jornal é elaborado e destinado aos alunos dos anos iniciais. Gabriela conta como se desenvolve a oficina:

ano[...]. (Gabriela)

Através desse atendimento Gabriela compartilha suas habilidades com um grupo de crianças da mesma faixa etária, e ao mesmo tempo desenvolve um relacionamento com elas. No sentido da potencialidade de currículo diferenciado, especialmente para Gabriela, a professora Juliane afirma que Eu acho que a escola oferece uma questão, uma organização curricular, uma variedade, que eu acho que pode ajudar ela, porque ela tem muita facilidade com questões de desenho e ela tem o que surpreende né, alguns colegas que estudam bastante sobre esse tema, uma facilidade na linguagem, ela escreve bastante, ela escreve bem, ela tem potencial para a escrita assim[...]. (Juliane - professora)

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O currículo da escola privilegia as diversas áreas da linguagem, trabalhando diversos idiomas, artes cênicas, artes visuais e oficinas diversas. Pode se perceber que além de um currículo que potencialize as habilidades de Gabriela esse currículo a desafia também nas mais diversas áreas. Ao se discutir os desafios pode-se observar alguns, particulares a Gabriela. Um deles é a prática da educação física, sendo que ainda relembra um momento específico de alguns anos atrás Jogar algum jogo que tenha a ver como educação física, é simplesmente impossível. Se o jogo tem tipo uma bola só eu já desisto de jogar. Eu não sei a regra de nenhum jogo da minha vida. (Pergunto para ela então: Se ele explica a regra tu acha que consegue jogar?) Sim, mas com muita falta de...sem potencialidade. Eu jogo muito mal as coisas. Faço todo mundo perder. Todo

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mundo fica tipo gritando com a minha cara porque um dia, eu acho que no quarto ano, era pega-pega eu acho, ou queimada. Eu sei que eu tinha que acertar alguém, não sei, não lembro quem era, aí eu errei, depois os colegas ficaram brigando comigo, mas eu falei para eles que era só um jogo, não ia entrar para história, nem nada, mas eles brigaram comigo... parece que ninguém entende. (Gabriela)

De acordo com o relato de Gabriela nota-se que o desafeto com a matéria da educação física está para além de uma relação com o esporte e o corpo em si, pois a reação dos colegas de desentendimento com ela parece que tem um importante papel na sua desavença com esta prática. Pode-se inferir que sua frustração se dá não por causa do jogo, mas sim, por causa das relações que se estabelecem entre os pares e suas limitações motoras. A frustração de Gabriela também ocorre quando apresenta algumas dificuldades no que tange à execução das atividades escolares. Sendo que um dia reclamou da dificuldade em fazer uma prova, a qual sua mãe justifica apresentando como justificativa a pressão de respondê-la. Nessa ocasião saiu da sala e fez a prova acompanhada de uma assistente de turma 35. Essa situação permite perceber tanto as contingências impostas pelos processos inclusivos necessitam a flexibilidade desse ensino, que deve ter como propósito a promoção plena e qualificada da participação de todos os alunos. RELAÇÕES ENTRE COLEGAS E AMIGAS

Eles são legais[...]. Quando eles me notam pelo menos. E quando tem brincadeiras legais essas coisas assim. [...]. No lanche eu só gosto de ficar ali comendo no meu canto, ficar em paz, sem nenhuma distração na minha vida e no recreio eu fico com os meus amigos lá brincando. Só nunca sobra lugar para mim na mesa. Eu fico sozinha. Mas está tudo bem, eu já estou acostumada a acontecer isso. No recreio eu sempre peço para as pessoas que querem brincar comigo, só que

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O tópico das Relações entre pares foi construído considerando tanto a frequência de incidência nas narrativas apresentadas pelos colaboradores da pesquisa quanto por sua potencialidade de revelar indícios de como a escola pode estar trabalhando a questão da inclusão escolar do sujeito da pesquisa. As narrativas se desenvolvem a partir do olhar de Gabriela, sua mãe e professora. Para Gabriela os relacionamentos entre os colegas se desenvolvem ora na forma de brincadeiras e conversas prazerosas, ora na forma de um sentimento de exclusão, sendo que ela afirma assim:

35 Há duas assistentes de turmas nos primeiros anos, com vistas a atender os alunos que necessitam de uma atenção mais específica.

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Através de seu relato pode-se perceber que apesar de afirmar algumas vezes que brinca com seus amigos, as vezes que estes não brincam com ela tem um forte peso, incutindo-lhe a sensação de estar à margem nesses intercâmbios sociais. Contudo, ao narrar suas experiências, investe na tentativa de demonstrar o quanto essas situações não lhe causam impacto, dizendo que “está tudo bem, tudo se relacionando bem”, dando a impressão de que sua fala quer demonstrar uma escolaridade bem-sucedida. Isso pode ter ocorrido pelo fato de querer corresponder a uma expectativa que criou sobre o objetivo da pesquisa. Paula ao mesmo tempo que corrobora esta ideia do sentimento de exclusão de Gabriela ao narrar a fala de sua filha que afirmou não se inserir em grupo nenhum dentro da turma, relata surpreender-se com o grupo de amigas que ela tem preferência, convidan-

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daí eles não me ouvem e eu desisto de perguntar para eles. Está tudo bem agora, está tudo se relacionando muito bem. [...]eu gosto de brincar. Eu gosto de conversar com eles. (Gabriela)

do-as até para irem à sua casa, na festa de seu aniversário. Paula discorre sobre a amizade de sua filha comentando assim: [...]a amizade dela é um grupo restrito[...], todas as suas amigas são do social. [...] ‘que coisa boa!’. Para alguém que é uma autista que não consegue se socializar, quem ela convidou para vir? Uma do quarto, uma do sexto e duas da turma dela”. (Paula- mãe)

A fala da mãe explicita a surpresa nas escolhas e amizades da filha, demonstra ainda sua satisfação em perceber a capacidade da menina de se relacionar e estabelecer vínculos com colegas de diferentes faixas etárias. Sua mãe afirma ainda no que se refere às amizades feitas com duas colegas em especial: Deus o livre tirar as [duas colegas] (risos) ... Elas vão ter que acompanhar a Gabriela até o terceiro ano[Ensino Médio]. (Paula- mãe)

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Ressalta através dessa afirmativa a importância de se manter os vínculos, especialmente para sua filha, destacando um relevante aspecto para os processos inclusivos, pois as relações entre pares favorecem o desenvolvimento e aprendizagem dos estudantes. A relação com o outro também é relatada pela professora da turma a qual destaca o seu desenvolvimento na relação com o outro, descrevendo-o do seguinte modo: Ela não fica só com as coisas dela e eventuais contatos como ela fazia antes. Ela tinha, mas era muito pouco assim como é que vou dizer...ampliava muito pouco o grupo de amigos dela. Ela tinha poucos contatos com os colegas. Agora ela está assim, senta, ri, se diverte sabe, tu vês que ela está

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se divertindo com uma brincadeira e tem mais de uma pessoa nessa brincadeira... antes ela ficava com uma outra colega, até uma colega que está no sexto ano, que era da turma do quinto ano do ano passado, ela ficava muito com aquela menina e hoje não. Hoje ela circula por um maior número de grupos, conversa com todo mundo e todo mundo também: “Ah! A Gabriela... Sabem das coisas que está se passando com Gabriela, sabe. A Gabi não terminou ainda, a Gabi tá no banheiro, e ela também sabe dos colegas então ela tá se dando conta desse entorno e os colegas também. Então isso eu vejo que como muito positivo. (Juliane- professora)

Essa narrativa aliada a narrativa em que Gabriela afirmou que aprecia fazer trabalhos em grupo apontam para uma prática da professora que possivelmente incentiva a interação entre os alunos, pois estes [...]são mais propensos a conversarem uns com os outros se tiverem a oportunidade de interagir em situações de sala de aula criadas pelo professor. Potencialmente, há um grande benefício social e acadêmico ao pedir que os alunos trabalhem em duplas, trios, grupos pequenos e grupos grandes. (Valle e Connor, 2014. p. 102)

Sendo assim, a estratégia quando utilizada frequentemente pode possibilitar a qualificação das relações entre os alunos, pois pode promover a percepção, do olhar o outro, percebendo como o outro se coloca nesse espaço. Isso se pode verificar também a partir do cuidado, o qual é descrito pela professora do seguinte modo:

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[...]o que eu percebo deles é o cuidado com ela, mas eu percebo deles com outros colegas também, com os colegas que têm ritmos diferentes, de cópia ou de resolução de tarefas, outro tá precisando de um tempo maior para se acalmar assim, em alguma situação de conflito. Eu percebo que eles já têm esse olhar, essa postura de acolhida com a Gabi não é diferente. (Juliane- professora)

Percebe-se a partir dessas situações, que os alunos assumem essa posição de cuidado com o outro, especialmente na sala de aula, onde talvez apareça mais claramente os desafios relativos aos diferentes modos de aprender. Com isso evidencia-se que a questão da diferença tem destaque sobretudo, no que tange ao aprendizado dos conteúdos das áreas do conhecimento. Ainda a partir do destaque que a professora dá aos alunos que apresentam elementos de diferenças se pode perceber a premissa da inclusão, pois “as práticas inclusivas abordam as necessidades acadêmicas e sociais de todos os estudantes. A diversidade é o coração da inclusão”. (VALLE E CONNOR, 2014, p. 72). Ou seja, a inclusão escolar se desenvolve quando deixa de ser pensada e destinada a apenas uma parcela de alunos com características específicas para abrir-se a todas as

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diversidades e torná-las elegíveis de investimento pedagógico e social.

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VALLE, Jan W.; CONNOR, David J.. Selecionando abordagens e ferramentas de ensino inclusivo. In: VALLE, Jan W.; CONNOR, David J. RESSIGNIFICANDO A DEFICIÊNCIA: Da abordagem social às práticas inclusivas na escola. Porto Alegre: AMGH, 2014. Cap. 5. p. 94-121. Tradução: Fernando de Siqueira Rodrigues.

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artigos Foto: Wagner Ferraz

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DESENHO INFANTIL: INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA ATRAVÉS DAS TICS

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Ana Paula Ribeiro de Souza36 RESUMO O presente trabalho insere-se na modalidade estudo de caso de abordagem qualitativa e teve como principal objetivo analisar como as tecnologias da informação e comunicação – TICs podem auxiliar o desenvolvimento do desenho da criança. Como referência teórica utilizou Alicia Fernández e Sara Paín para dialogar com a Psicopedagogia; Suzana Rangel Vieira da Cunha e Analice Dutra Pillar para as artes e o desenho infantil. A metodologia baseou-se na expressão pela arte, foram planejadas e realizadas três intervenções psicopedagógicas com uma criança de seis anos. A partir dessas intervenções percebeuse que as TICs podem ser um instrumento de grande relevância tanto para professores como para psicopedagogos no auxílio do desenvolvimento do desenho infantil. PALAVRAS-CHAVE: Psicopedagogia. TICs. Desenho Infantil. Aplicativo FreshPaint.

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DESENHO INFANTIL: INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA ATRAVÉS DAS TICS

CHILD ART: PSYCHOEDUCATIONAL INTERVENTIONS THROUGH ITS ABSTRACT The following work fits in the mold of case studies of qualitative scope and had as its main objective analyzing how information and communication technologies can be pivotal to the development of art in children. Using as theoretical references the work of the researchers Alicia Fernández and Sara Paín to dialogue with psychoeducation, and Suzana Rangel Vieira da Cunha and Analice Dutra Pilla with arts and child art, the metholdology based itself in expression through art - three psychoeducational interventions were staged with a 6-year old child, and through these interventions it became evident how ITs can be a great asset for teachers and psychoeducators in the development of child art. KEYWORDS: Psychoeducation, ITs, Child Art, FreshPaint App

A arte faz de conta. Crianças, artistas, fazem de conta que um rabisco, um objeto, um fragmento, um pensamento se transforma em uma outra coisa. Tanto as crianças quanto aqueles adultos que insistem em deslocar a ordem estabelecida do mundo compartilham de um pensamento similar no sentido de que ambos propõe simulacros ou fingem que uma coisa é outra coisa. Artistas e crianças percebem o mundo e dão sentido a ele através de formas

artigos

INICIANDO OS RABISCOS...

36 Ana Paula Ribeiro de Souza, Pedagoga especialista em Psicopedagogia e TIC’s (UFRGS), Professora de Educação Básica na Rede Municipal de Canoas/RS. E-mail: anna_paullah@hotmail.com C3

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singulares. Utilizam seus sentidos de forma mais aguçada do que a maioria dos adultos que deixaram para trás esta capacidade humana de ver, imaginar e simbolizar (Cunha, 2013, p. 31).

Tenho me dedicado a estudar o ensino das artes para crianças, em especial para a faixa etária de quatro a seis anos. Através da busca de bibliografias sobre o tema encontro autores em que compartilho os modos de pensar a arte na vida das crianças. Além disso, tenho estudado ultimamente a Psicopedagogia e as tecnologias da informação e comunicação – TICs aliadas à educação em decorrência do Curso de Especialização em Psicopedagogia Institucional e TICs cursado. Penso que através das artes e das tecnologias as crianças podem ampliar seus conhecimentos, pois, a arte, de acordo com Pillar (2012, p. 232), “é uma forma de construir conhecimentos, é uma atividade que envolve a inteligência, o pensamento, a cognição”; além disso: “O trabalho artístico é importante para que as crianças aprendam a explorar o mundo à sua volta” (Gomes, 2001, p. 109). Dessa maneira, através das tecnologias e das artes, as crianças poderão evoluir em seus desenhos e posteriormente nas suas escritas, pois estarão em contato com essas linguagens desde cedo desenvolvendo a criatividade e a inteligência, pois, de acordo com Stephen Kosslyn (2014): “os estímulos mútuos em ambientes sociais são o combustível para a expansão da inteligência”. Compartilho do pensamento de Pillar (2012, p. 43) quando aponta que desenho é “o trabalho gráfico da criança que não é resultado de uma cópia, mas da construção e da interpretação que ela faz dos objetos, num contexto sociocultural e em uma época”. O presente estudo torna-se importante neste momento de vida da criança pesquisada, pois a mesma iniciará o primeiro ano do ensino fundamental em breve e segundo Pillar (2012, p. 214) desenho e escrita tem relação entre si, pois os resultados de sua pesquisa revelam que “para a criança chegar a construir o sistema alfabético de escrita ela necessita ter estruturado o sistema do desenho no nível do realismo intelectual. A construção do sistema de escrita mostrou-se, então, consequente à do sistema do desenho”. Em função desse interesse pelo ensino das artes para crianças que pretendo unir as artes – através do desenvolvimento do desenho pela criança, a Psicopedagogia e as TICs para responder a seguinte questão problema “como as TICs podem auxiliar no desenvolvimento do desenho da criança?”. Pablo37: o Artista

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“Toda criança é um artista. O problema é o como manter-se artista depois de crescido” Pablo Picasso

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Para preservar a identidade da criança usarei este nome fictício para o participante da pesquisa.

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todos sabem, pois cada um faz do seu jeito. Segundo Paín (1985, p. 77): “No tratamento psicopedagógico, procura-se devolver ao sujeito a dimensão de seu poder (poder escrever, poder saber, poder fazer), para que dê crédito às potencialidades de seu ego (yo)”. Paín traz uma abordagem de cunho terapêutico, mas acredito que possa ser transposta para o nível escolar na sala de aula, pois se trata de relações de aprendizagem. Então, ele começava a realizar seu trabalho e se envolvia na proposta, finalizando-a por completo. Ao longo deste ano em que sou sua professora, percebo seu crescimento e observo que ele vem mudando sua postura frente a essas situações, pois, algumas vezes, após a atividade ser explicada ele diz sorrindo: “Essa é fácil!”. As produções artísticas de Pablo são coloridas e geralmente apresentam formas circulares abstratas, tem preferência por usar as cores azul e verde. Ao representar a figura humana desenhava um círculo com olhos, nariz e boca, traçando os braços e pernas do mesmo. De acordo com Paín (1985, p. 62): “O corpo é um instrumento de ação sobre o mundo e, quando o sujeito o desenha, representa este instrumento por esse meio. A criança desenha a si mesma sozinha porque é o seu corpo que ela desenha”. Pablo reconhece seu nome por escrito e no início do ano letivo identificava suas produções com todas as letras que compõe seu nome, mas não da forma convencional (na horizontal, da esquerda para a direita), escrevia as letras espalhadas pela folha, colocando-as aleatoriamente. Após algumas intervenções onde explico a ele que para aquelas letras formarem seu nome elas teriam uma ordem que não poderia ser aleatória, em meados de setembro observo que já compreende a sequência de letras de seu nome, porém, algumas vezes, precisa consultar seu nome escrito para conseguir escrevê-lo. Nos momentos livres em sala, preferia brincar no tapete, com bonecos e animais de plástico ou empilhando blocos de madeira, junto com alguns colegas. Também gostava de fantasiar-se de super-herói, principalmente de Homem-Aranha. Mais para o meio do primeiro semestre escolhia, de forma espontânea, jogos de memória e, também, procurava

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Compartilho do pensamento de que “toda criança é uma criança criativa, repleta de potencial, com o desejo e o direito de tirar sentido da vida dentro do contexto de relacionamentos ricos, em muitos sentidos, e usar muitas linguagens” (Gandini, 2012, p. 18). Dessa forma, acredito que a criança é a protagonista de suas aprendizagens e por isso nomeio assim este subtítulo, porque considero Pablo o Artista desta pesquisa. Pablo é uma criança com seis anos de idade, mora com os pais, não tem irmãos e frequenta uma escola de educação infantil pública desde o berçário, atualmente está na turma de Jardim B onde atuo como professora. Pablo há algum tempo tem tido atendimento com psicopedagoga e com fonoaudióloga o que tem contribuído para os avanços em seu desenvolvimento e aprendizagens. A seguir destacarei os principais pontos que caracterizam o sujeito protagonista de meu estudo em vários momentos da rotina na escola de educação infantil. Em sala de aula, durante atividades artísticas, Pablo, na maioria das vezes, precisava ser incentivado, pois após a proposta ser explicada, ele se recusava a realizá-la, afirmando: “Eu não sei fazer”. Nessas ocasiões, eu sempre motivava Pablo explicando que

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desenhar na companhia dos colegas. Geralmente seus desenhos contam histórias, certa vez desenhava as “Beyblades38” e, fazendo espirais na folha, disse: “As beyblades estão na batalha!”. Durante o tempo de pátio, Pablo continua explorando todos os cantos: gostando de estar nas casinhas, no trepa-trepa fazendo acrobacias e na caixa de areia, cavando junto com os colegas ou enterrando algum brinquedo. No entanto, mostra preferência por correr na companhia de seu melhor amigo e brincar de “Tartarugas Ninjas”, seja com os colegas ou até mesmo sozinho, algumas vezes observei Pablo aplicando vários golpes de luta no ar. EXPRESSÃO PELA ARTE... Temos que nos convencer de que a expressividade é uma arte, uma construção combinada (não imediata, não espontânea, não isolada, não secundária); que a expressividade tem motivações, formas e procedimentos; conteúdos (formais e informais); e a capacidade de comunicar o previsível e o imprevisível. A expressividade encontra suas fontes no lúdico, assim como na prática, no estudo e na aprendizagem visual, assim como em interpretações subjetivas que vêm com as emoções, com a intuição, com o acaso, e com a imaginação racional e as transgressões (Gandini et al, 2012, p. 24). Optei por realizar três intervenções psicopedagógicas com Pablo com intervalo de um dia entre cada uma, cada encontro teve duração de uma hora. De acordo com Paín (1985, p. 13): “a intervenção psicopedagógica volta-se para a descoberta da articulação que justifica o sintoma e também para a construção das condições para que o sujeito possa situar-se em um lugar tal que o comportamento patológico se torne dispensável”.

Escolhi planejar dentro de cada intervenção psicopedagógica uma motivação prévia , após um momento com o uso do computador, no caso um notebook, e outro mais concreto “fazendo arte” utilizando diversos materiais, ou seja, oferecendo a Pablo a possibilidade de expressar-se através da arte, pois concordo com Valente quando afirma que: 39

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[...] somente o trabalho com o computador não é suficiente para propiciar uma educação completa. É necessário suplementá-la com outras atividades pedagógicas que fazem parte de uma educação mais ampla, como ler, interagir com outros objetos educacionais e com outras crianças (2003, p. 378, 379).

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Em todas as intervenções foram utilizados os seguintes recursos: folhas de cartolina; papeis tamanho A3 e A4; retalhos de papel colorido; tintas têmpera; colas coloridas; pin-

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Brinquedo parecido com um pião, porém mais tecnológico.

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Atividade introdutória que tem por objetivo motivar a criança para a aprendizagem.

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FreshPaint é um aplicativo gratuito para Windows Phone e Windows 8, que simula o ato de pintar de forma extremamente realista. [...] dentre os diversos aplicativos para desenho, o diferencial do FreshPaint é sua simulação do ato de pintar, muito próxima da realidade. [...] Para usar o FreshPaint, basta tocar a tela e fazer com o próprio dedo a pintura que quiser. (TechTudo, 2014).

Planejei a primeira intervenção psicopedagógica de acordo com o que eu já conhecia sobre Pablo e também buscando que ele pudesse explorar o aplicativo FreshPaint. As demais intervenções foram sendo planejadas de acordo com as anteriores. Destaco que, de certa forma, considero que Pablo participou desse planejamento, pois ele me

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céis; lápis de cor; giz de cera; canetas hidrocor; cola; tesoura; lápis cara pintada40; computador. O computador que utilizei durante as intervenções tem a função touchscreen, esta função possibilita que comandos sejam selecionados a partir do toque na própria tela do computador possibilitando também desenhar com o dedo sobre a tela. Pesquisando sobre aplicativos que explorassem o desenho encontrei o FreshPaint:

apontava os caminhos que eu deveria seguir na busca por explorar a questão problema apresentada para a realização deste estudo. A primeira intervenção psicopedagógica teve como motivação prévia o livro de literatura infantil Como começa?41. A proposta foi planejada da seguinte forma: disponibilizados materiais para fazer arte/desenhar, Pablo seria convidado a escolher o que gostaria de fazer. Em seguida seria questionado se acha que podemos fazer arte usando o computador; se já fez arte/desenho em algum meio tecnológico (computador, tablet, celular...); se já viu alguém usando um meio tecnológico para fazer arte/desenhar; entre outras questões que surgiriam. Então apresentaria a ele o aplicativo FreshPaint e ele poderia explorá-lo com meu auxílio. A segunda intervenção psicopedagógica teve como motivação prévia uma caixa surpresa com quatro imagens de obras de pintores de arte abstrata: Joan Miró, Paul Klee, Wassily Kandinsky e Hans Hartung.

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Figura 1 - O Carnaval de Arlequim – Joan Miró Fonte: site O Globo

Figura 2 - Hot Pursuit – Paul Klee Fonte: site Harvard Art Museums

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Um tipo de lápis para pintura facial que pode ser passado na pele.

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TAVANO, Silvana. Como começa?. São Paulo: Callis Ed., 2009. Ilustrações de Elma. C3

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Figura 3 - Quadro Negro – Wassily Kandinsky Fonte: site Arcas de Arte

Figura 2 - Hot Pursuit – Paul Klee Fonte: site Harvard Art Museums

Inicialmente Pablo poderia pegar a caixa nas mãos e tentaria adivinhar o que havia nela. Após pediria que Pablo observasse as imagens e enquanto isso diria de quem são e perguntaria: qual ele mais gostou; se ele já conhecia; se achou parecido com seus desenhos ou com algum desenho que já tenha visto. A proposta seria de iniciarmos com o computador, pediria que ele desenhasse o que quisesse inspirado nas obras observadas anteriormente. Após ele escolheria o que gostaria de fazer usando os materiais de artes. A terceira intervenção psicopedagógica teve como motivação prévia a Janelinha42 escondendo um desenho de Pablo feito no computador no encontro anterior para que o mesmo pudesse tentar descobrir o que tem por trás da cortina, visando a valorização da sua produção. A proposta seria de iniciarmos com desenho no computador, num primeiro momento livre, mas aos poucos eu iria dirigindo para que ele tentasse desenhar-se novamente, para que ele se desenhasse em outro lugar, ou que desenhasse a família. No segundo momento com arte concreta pediria que ele reproduzisse algum desenho que fez no computador no papel.

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INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA: ARTE E TECNOLOGIA É na interação da criança com os objetos de conhecimento (desenho, pintura, modelagem, etc.) que o processo expressivo se constitui. Para que esse processo seja desencadeado, para que tenha significado para as crianças e para que possibilite leituras e expressões plurais sobre o mundo, são necessárias intervenções pedagógicas desafiadoras (Cunha, 2012, p. 18).

Esta pesquisa contou com o planejamento e a realização de três intervenções psicopedagógicas. Cada intervenção foi planejada a partir das interações da criança em cada encontro, ou seja, a criança participou de certa forma do planejamento das mesmas, pois cada intervenção gerava um novo planejamento. Todas as intervenções ocorreram no espaço da sala da Ludoteca da escola, ambiente já familiar para Pablo. Segunda-feira: nosso primeiro encontro ocorreu na sala da Ludoteca. Previamente 42

Abas que ao serem levantadas revelam a imagem escondida.

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cara pintada e pediu ajuda para abri-lo, neste momento expliquei a ele que aquele tipo de lápis era para desenhar no corpo, então desenhou em cima de sua mão formas circulares um pouco pontudas parecendo a copa de uma árvore, tampou o lápis. Pegou uma caneta hidrocor azul e desenhou dois bonecos. Perguntou se poderia usar as tintas, então abri os potinhos para que ficasse a vontade para usá-las. Disse: “vou fazer o azul claro” misturando o azul com branco, elogiei: “ficou bem bonito o azul”. Pablo respondeu ao meu elogio: “esse é o mar!”. Então perguntei quem eram os bonecos que ele havia desenhado, ele disse apontando: “esse é o capitão e o guarda”, perguntei: “onde eles estão?”, Pablo respondeu: “no mar, eles tão no mar navegando, agora eu tenho que fazer o tubarão, esse é o corpo, essa é a barriga (desenha com tinta vermelha), eu ainda não usei o amarelo (pincelando com amarelo em cima da tinta azul),é a bandeira, não! É um tornado que tá no barco”. Nos momentos enquanto não estávamos conversando ele fazia sons que pareciam um cantarolar (hum, hum, hum...), demonstrava-se feliz em realizar a proposta, dizia também a próxima cor que iria usar. Apontando para seus desenhos me relatava: “é um tornado”; “esses são tornado também”; “esse é o rei dos tornados, muito grande!”. Pintando com tinta branca por cima dos bonecos Capitão e Guarda ele diz: “eles tão dentro de uma proteção”. Então pedi que fosse finalizando a obra para passarmos a outra parte da proposta. Em seguida ele diz: “terminei!”. Iniciei com ele uma conversa: Pesquisadora:“onde mais tu já desenhaste?” Pablo:“na cama, com tinta colorida numa mesinha” Pesquisadora: “onde mais dá pra desenhar?” Pablo: “na cama, e também na mesa, na cadeira”

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organizei os materiais em uma mesa juntamente com o livro e o Termo de Assentimento para Pablo assinar43. Conversei com Pablo sobre a pesquisa e perguntei se ele gostaria de participar, se ele poderia me ajudar em meu trabalho. Ele aceitou e demonstrou-se satisfeito ao assinar seu nome no Termo de Assentimento. Assinou sem hesitar e sem perguntar qual letra seria a próxima, parecia seguro do que estava fazendo e escreveu corretamente. Pablo sentiu-se valorizado por fazer parte da pesquisa, penso no quanto esse sentir-se é importante na sua constituição como sujeito, pois ao ser convidado a participar da pesquisa percebe que também tem algo a oferecer, que também tem um saber. Então, mostrei a ele o livro e disse que iríamos começar ouvindo a história e que eu gostaria que ele prestasse bastante atenção às ilustrações da mesma. E assim foi, ele mostrou-se concentrado durante esse momento. Apresentei os materiais que dispus anteriormente na mesa e perguntei o que ele gostaria de fazer. Disse: “vou desenhar uma árvore”. Escolheu a cartolina azul e em seguida pegou o lápis de cor verde. Pegou o lápis

A mãe de Pablo autorizou sua participação na pesquisa e assinou o Termo de Consentimento.

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Pesquisadora:“tu acha que dá pra desenhar no computador?” Pablo:“não” Pesquisadora: “já viu alguém desenhando no computador?” Pablo:“desenhando não, só escrevendo” Pesquisadora: “o que mais dá pra fazer no computador além de escrever?” Pablo: “fazer os números, fazer as letras” Pesquisadora: “dá pra jogar no computador?” Pablo: faz movimento afirmativo com a cabeça;“escrevendo, eu queria o jogo do ‘the flash’ e minha mãe escreveu” Pesquisadora: “desenhar no computador nunca desenhou?” Pablo: fez movimento negativo com a cabeça. Pesquisadora:“gostaria de desenhar no computador?” Pablo: “mais ou menos” Então apresentei a ele o aplicativo FreshPaint e expliquei que ali poderia desenhar, mostrei suas funcionalidades e ele demonstrou bastante interesse, explorou todas as funções do lápis de cor à aquarela. Perguntei a ele: “o que está pensando em desenhar?”; ele me respondeu: “um rio”; levantou-se da cadeira em alguns momentos para desenhar, usou mais as cores preta e azul, selecionou o pincel mais grosso e disse: “ual! Esse aparece!”; desenhava e apagava com a borracha e também selecionava o botão voltar para refazer algum traçado, gostou de ampliar e diminuir a folha do desenho, usou bastante o misturador de cores, usou as cores verde e laranja mais no final, disse:“vou apontar” falando sobre o recurso de afinar e engrossar a ponta do lápis. Ao final, fez dois desenhos abstratos explorando os recursos do aplicativo. Conseguiu salvar, com meus comandos, os desenhos escrevendo seu nome neles, para salvar o segundo desenho expliquei que teria que ter algo a mais no nome do desenho porque não poderia ter dois desenhos com o mesmo título, então sugeri que ele colocasse o número da sua idade depois de seu nome, ele me mostrou seis dedos das suas mãos para me dizer sua idade e contou do um ao seis nos números do teclado para depois selecionar o número seis. Considero que este primeiro encontro foi bem produtivo, percebo que Pablo sentiu-se motivado com as propostas e se familiarizou com o aplicativo FreshPaint.

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Figura 5 - Primeiro desenho de Pablo no FreshPaint Fonte: elaborada pela autora

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Quarta-feira: novamente o encontro ocorreu na sala da Ludoteca. Organizei tudo antecipadamente e iniciamos a intervenção.

Mostrei a ele a caixa surpresa e pedi que ele tentasse adivinhar o que havia dentro. Pablo disse: “coisas”; analisando melhor, disse: “dinheiro”; espiou uma fresta na caixa e então:“revista”. Nós dois sacudimos a caixa para ver se havia barulho, perguntei: Pesquisadora:“tem barulho?” Pablo:“tem, acho que é revista” Pesquisadora: “revista inteira ou recorte?” Pablo:“acho que é um recorte de uma revista”

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Então abrimos a caixa. Pablo exclama: “foto!”; pergunto o que parecem aquelas imagens e ele responde:“desenho”; “alguém atirando flecha, parece” (se referindo a obra de Paul Klee). Pesquisadora:“quem tu achas que fez esses desenhos?” Pablo: “não sei, um pintor? Eu só não sei o que está escrito aqui” (apontando para a legenda das obras) Pesquisadora: “tu achas que é um pintor adulto ou criança?” Pablo:“um artista adulto” Pesquisadora:“mas uma criança não poderia ter feito essas obras?” Pablo:“acho que é uma criança” Expliquei de quem eram as obras e fomos ao FreshPaint. No aplicativo, Pablo iniciou usando o pincel com tinta verde, logo disse: “eu vou usar o misturador”;“o misturador eu preciso”. Enquanto selecionava dizia o que ia escolher: “giz de cera”, “lápis”, etc. Novamente utiliza o recurso de ampliar e reduzir a tela, desta vez amplia e preenche os espaços em branco da tela, em seguida pediu para selecionar outro tipo de tela, então dei a ideia de salvarmos e fazermos um novo desenho e ele aceitou com um entusiasmo contido, novamente pedi que ele escrevesse seu nome para salvar. Na nova tela inicia novamente explorando as cores, usa a borracha e apaga quase todo o desenho, de repente diz: “eu acho que vou escrever meu nome desenhando”, nesse momento usou muitas vezes o recurso de voltar para arrumar/aperfeiçoar o traço das letras de seu nome, voltava e dizia:“vou começar tudo de novo, eu acho”. Explorando algumas funções, de repente Pablo diz: “ufa! Agora achei o caminho”; “usar cores diferentes para desenhar”. Encontrou o recurso de fazer novas cores, fez um tom de azul, de vermelho e de verde diferente do que existia. Disse: “aqui é pra testar as cores” (referindo-se ao meio da paleta de cores).

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Ampliar o repertório das imagens e objetos também implica disponibilizar às crianças elementos produzidos em outros contextos e épocas como as imagens da história da arte, fotografias e vídeos, objetos artesanais produzidos por culturas diversas, brinquedos, adereços, vestimentas, utensílios domésticos, etc. (Cunha, 2012, p. 24).

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As vezes selecionava algo e dizia: “o que que é isso?”, como se conversasse consigo. Explorou bastante a borracha apagando quase toda a produção: “olha! Tá apagando tudo”. Tentando desenhar as letras de seu nome diz:“acho que vou usar o lápis”. Mas logo desistiu. Neste momento resolvi propor que ele tentasse se desenhar, ele aceitou. Desenhou-se de azul, perguntei onde ele estava, respondeu: “agora preciso de verde, eu tô na grama”; e foi narrando o que iria fazer: “preciso fazer o céu, preciso de azul para fazer o céu”; perguntei a ele o que mais precisava: “preciso de nuvens”. Perguntei: “o que mais?”; ficou pensativo, então eu disse: “o que tem no céu é redondo e amarelo?”; Pablo responde empolgado: “o sol”; então perguntei se estava pronto, ele: “não”. Questiono: “o que falta?”; Pablo:“não sei, o que?”, expliquei que ele decidiria quando estava pronto, então apontando para os lápis cara pintada disse: “posso usar isso?”. Ele desenhou em seu braço praticamente o mesmo desenho do computador, então me perguntou: “será que minha mãe vai gostar?”; respondi que achava que sim, mas não sabia se a pintura do braço duraria até o final da tarde. Pablo: “eu vou mostrar pra todo mundo que eu pintei no meu próprio braço!”; e chega a conclusão: “acho que não dura até o final da tarde”. Após perguntei se ele gostaria de fazer mais alguma arte, ele aceitou e escolheu uma folha azul, usou cola colorida; propus que escrevesse seu nome e novamente aceitou, depois ficou jogando as cores no papel, pediu pincel, ao misturar as cores da cola colorida com o pincel diz: “olha! Tá ficando colorido”; ele não misturou a parte que estava com seu nome. Como a folha ficou com muita tinta perguntei se ele gostaria de pegar outra folha, escolheu a verde, nesta folha ficou pegando as tintas e colocando o pincel na tinta e na folha, repetidas vezes e em várias cores. Então propus que ele tentasse reproduzir o desenho de si, que ele havia feito no computador e no seu braço, no papel. Ele aceitou, escolheu uma folha amarela. Inicialmente fez um círculo grande com pincel, mas não gostou e disse: “que pena que aqui não tem o botão de voltar”, pegou pincel maior: “mais maior e mais poderoso!”, ao desenhar diz: “uma cabeça, um corpo, um braço, outro braço, uma perna, outra perna e o cabelo”; desenhou o céu com uma pincelada branca com azul, o chão com verde e quando ia desenhar o sol quase fez outra figura humana, mas parou pensativo, então perguntei se naquele desenho ele gostaria que o sol tivesse corpo, braços e pernas; ele respondeu que não e fez o sol com uma bolinha e quatro pinceladas/raios em formato de cruz. Ele quis colocar seu nome, pegou canetinha azul, tentou escrever, mas sempre se enganava, deixei ele tentar algumas vezes até que o ajudei dizendo a ordem das letras.

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Figura 6 - Desenho de Pablo com materiais concretos Fonte: elaborada pela autora

Pablo em alguns momentos esquece algumas letras do seu nome, algumas vezes escreve começando com uma letra que é parecida com a inicial de seu nome e então começa de novo e consegue fazer PA, algumas vezes pede ajuda e pergunta a letra que vem depois, ele sabe que a última letra é a “O”. Neste encontro observo que ele demonstra mais familiaridade com o aplicativo e lamento que só tenhamos mais um encontro de intervenção. Pablo mostra o desenho que fez em si a uma professora, mas já não está mais com o sol, pois este havia sido desenhado na mão e ele havia lavado, eu digo à professora que anteriormente ele havia desenhado um lindo sol na mão e então ele diz: “é que já tá de noite!” e sai sorridente. Sexta-feira: na sala da Ludoteca organizei tudo com antecedência e iniciamos a intervenção. [...] quanto mais uma criança pintar e interagir com diferentes tintas e instrumentos (buchas, pincéis, esponjas, rolhas, rolos, etc.), que marcam um suporte (papel, madeira, pedra, tecido, argila, etc.), mais possibilidades essa criança terá de evoluir em seu vocabulário pictórico (Cunha, 2012, p. 31-32).

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Iniciei mostrando a ele a Janelinha, abri a primeira parte: “é um desenho”; “é o céu e a grama”; fechei essa parte e abri a do meio: “sou eu”; fechei e abri a última parte: “o sol”; “é o desenho que eu fiz no computador! Como aconteceu isso?”; expliquei que imprimi e fiz aquela colagem para ele. Pablo demonstrou-se bastante entusiasmado e feliz por ver seu desenho impresso.

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Figura 7 - Desenho produzido no FreshPaint que virou Janelinha Fonte: elaborada pela autora

Logo iniciou um desenho no FreshPaint. Primeiramente com verde e azul e depois branco: “tá tudo congelando”; pintando com branco por cima de tudo, diz:“congelou”. Quis salvar em seguida. Salvamos com o nome dele e a palavra NEVE. Iniciou outra tela, descobriu que poderia escolher uma cor de fundo: “ual! Eu não sabia que dava pra pintar tudo”; escolheu tela azul. Já está conseguindo voltar para a paleta de cores após construir uma cor. Enquanto desenha conta uma história: “faz de conta que eu tava no frio”; voltando o que havia desenhando com o botão de voltar diz: “vou começar tudo de novo”. Retorna com a história: “eu tava no frio”; “eu tava lá no Pólo Norte”; cantarolava (uh, ru rum, rurum...); pinta a tela azul de branco: “eu tava lá no Pólo Norte”; “vou testar a cor agora”; “bah! Mas aqui tem todas as cores”. Referindo-se que ia se desenhar:“tá, agora eu”; mas não desenhou-se. Novo desenho, proponho desenhar a família. Primeiro desenhou a mãe, depois o pai e depois se desenhou, relatando: “a mamãe, e agora, a mamãe, o papai e eu”; pergunto: “onde vocês estão?”, desenhando a neve com a cor branca ele responde:“na neve”; então começou a desenhar outras pessoas da sua família explicando quem eram: “a Vitória, minha prima”; “a Joice, a irmã da minha mãe”; “e o Rogério”; “ah, esqueci o vovô, aqui é a barba dele”; “agora o dindo”; “agora a Isa, Isabeli”; “agora o Diogo, o meu primo que eu quase nunca vejo”; “agora a Tauana, a mãe do Diogo”; “olha só quanta gente!”; perguntei se ele queria salvar, ele se pergunta:“eu conheço alguém mais?”; ficou pensativo e em seguida disse: “o Jack, ele é filho do vovô”. Antes de dar por terminado o desenho da família Pablo perguntou se poderia usar os lápis cara pintada, então combinamos que salvaríamos o desenho da família primeiro. Desenhou nos dois braços o mesmo desenho do encontro passado falando: “o céu, a nuvem, o sol, a grama e eu”. Perguntei se ele gostaria de fazer mais arte, ele concordou e então propus que ele desenhasse a família, mas somente as pessoas que moram junto com ele em sua casa, pois nosso tempo já estava se esgotando.

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Figura 9 - Desenho da família de Pablo com tinta Fonte: elaborada pela autora

Desenhou iniciando pelo céu, depois desenhou-se como de costume: círculo com braços e pernas; com o intuito de que ele se desse conta, perguntei: “cadê a tua barriga?”. Neste momento olhou para sua barriga e a desenhou a partir das pernas já feitas antes e colocou as pernas depois, no desenho da mãe e do pai já aparece o corpo. Desenhou a mãe de verde, o pai de preto e ele de azul. Quando foi escrever seu nome novamente iniciou pela letra parecida com sua inicial, então o ajudei.

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Figura 8 - Desenho da família produzido no FreshPaint Fonte: elaborada pela autora

DESCOBRINDO E DESVENDANDO OS TRAÇOS...

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Destaco que “Expressar não é responder a uma solicitação de alguém, mas mobilizar os sentidos em torno de algo significativo, dando uma outra forma ao percebido e vivido” (Cunha, 2012, p. 43). Assim foram se desenrolando nossos momentos. Penso que Pablo durante as intervenções conseguiu se expressar através da arte tanto no computador quanto com materiais concretos, pois o tempo todo ele foi construindo seus desenhos a partir de seu imaginário. Observo que é visível o crescimento de Pablo durante esses três dias de intervenção. Foram poucos os encontros, mas foram intervenções de qualidade. Intervenções que garantiram alguns avanços na aprendizagem do desenho de Pablo, pois ele pôde ter contato e experimentou novos recursos tecnológicos no computador, além dos jogos que já fazem parte de sua rotina, e pôde deslocar o que desenvolveu no FreshPaint para o papel e para o corpo, e segundo Alicia Fernández (1991, p. 59): “a aprendizagem passa pelo corpo”. Considero que esse deslocamento teve avanços em especial no desenho da figura humana, pois ao passar seu desenho para o papel percebe que existe um corpo nessa figura, ele mesmo relata: “uma cabeça, um corpo, um braço, outro braço, uma perna, outra perna e o cabelo”. Fernández (2009, p. 182) revela que: “O aprender, sem duvida, nos conecta com a necessidade de “perder” algo velho, mas a sua energia tem a ver, principalmente, com a possibilidade de utilizar o velho para criar o novo”. Em diversos momentos das intervenções fui convidando Pablo a refletir, fui desafiando-o, pois: “Se não houver desafios para que as crianças continuem elaborando outras estruturas, elas se contentarão com aquelas já descobertas, fixando-as como modelos únicos

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que originarão os estereótipos” (Cunha, 2012, p. 49). Através da pesquisa pude perceber que as TICs auxiliam no desenvolvimento do desenho da criança. As tecnologias, além de motivar os sujeitos, têm outra lógica, é uma nova linguagem. Pode ser um aplicativo de desenho como o FreshPaint, mas a criança estará desenhando de forma diferente do que faz no papel, ela estará experimentando outros recursos, como exemplo o botão de voltar, o qual Pablo se dá conta que não existe na atividade com materiais concretos de arte. Penso que as TICs podem ser aliadas ao ensino e a construção de novas aprendizagens, seja na escola ou de forma terapêutica no consultório psicopedagógico. A sugestão que deixo aqui para o caso de Pablo é que ele possa continuar experimentando aplicativos de desenho no computador e que possa continuar se expressando através das artes para aprimorar suas aprendizagens e conhecimentos. Esses três momentos de intervenção psicopedagógica junto a Pablo foram muito ricos para ele e para mim. Pude perceber o quanto Pablo se surpreendeu com os novos recursos tecnológicos e o quanto pôde aprender com suas descobertas. Esses momentos me fizeram refletir, investigar e, principalmente, apostar nesse sujeito, como sujeito autor, artista, criativo, dono de um saber. Isso tudo foi e está sendo muito valioso e potente para futuras aprendizagens, pois os desenhos, ou melhor, os traços feitos no papel, na tela, no corpo estão presentes no conhecimento do corpo de Pablo, na constituição da noção de corpo tão importante para as demais aprendizagens que ele poderá conquistar.

REFERÊNCIAS CUNHA, Susana Rangel Vieira da. Como vai a arte na Educação Infantil? In: RODRIGUES, M. B. C.; DALLA ZEN, M. I. H. Tópicos Educacionais I. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2013. Série Graduação. P. 31-40. CUNHA, Susana Rangel Vieira da. As artes no universo infantil. Porto Alegre: Mediação, 2012.

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Aline Britto Miranda44 RESUMO Este trabalho final da Residência em Saúde Mental Coletiva é um texto narrativo à partir de um exercício de cartografar uma experiência de parte de um percurso de uma residente, em um contexto político nacional caótico. Encontro com o ethos de ocupar. A partir de uma história literária infanto-juvenil uma conexão de histórias que versam sobre as juventudes e os conflitos com o Estado. Como principal referência à história, utilizei a história infanto-juvenil de Machado, e para pensar sobre a Cartografia utilizei como apoio preciosos escritos de Guattari.

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OCUPAÇÃO: JUVENTUDES, LITERATURA E RESIDÊNCIA NA RESISTÊNCIA

PALAVRAS-CHAVE: Ocupação. Juventudes. Literatura. Saúde mental coletiva. Educação. Cartografia.

OCCUPATION: YOUTHS, LITERATURE AND RESISTANCE IN RESIDENCE/RESIDENCE IN RESISTANCE

KEYWORDS: Occupation. Youths. Literature. Collective mental health. Education. Cartography.

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ABSTRACT This term paper of Residence in Collective Mental Health is a narrative text that goes through an exercise of cartographing an experience of a part of a journey of a resident,during a chaotic national political context. It is a meeting of the ethos of occupation.. Through a child’s story, a collection/connection of tales about youth that verse about the youths and the conflicts with the state. As the utmost reference to children tales, I used the child’s stories of Machado, and to think on cartography Guattari was used as an invaluable pivot through his insights and writings.

Do dicionário Aurélio, 2017: O.CU.PAR v.t.d. 1) Estar ou ficar na posse de. 2)Tomar Posse de.3)Tomar (um lugar) à força; 44 Pedagoga graduada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Especialista em Saúde Mental Coletiva. Email: ab_miranda@hotmail.com. C3

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invadir, conquistar. 4)Habitar. 5) Preencher: “A arte ocupa a sua vida.” 6)Empregar, aproveitar. 7)Dar trabalho ou ocupação a. 8)Tomar (tempo); levar. Td; 9) Ocupar (6 e7) P. 10) Dedicar-se a; cuidar de: ocupar-se com (ou de leituras). 11) Tratar. O.CU.PAN.TE adj S2g Aqui estou eu, sentada em frente a este computador, tentando reunir forças para começar a escrever este texto. Um texto necessário e obrigatório, que quer ser simples, literário, apontando uma conclusão de um estado de residente. Texto que requer ser lido e revisado muitas vezes. Texto que nunca estará pronto. Texto que tem defesas de concepções políticas. Texto narrativo a partir de um exercício de cartografar experiências dentro de uma experiência, que parte do percurso de uma residente em saúde mental coletiva, em um contexto político nacional caótico. “Aqui, pesquisar não tem mais a ver com saber sobre, pois se trata de saber com. Habitar um estado de coisas, seus trajetos possíveis, seus incompassíveis, subtrair o que insiste e produzir com. Operar por subtração, cortando da folha em branco as palavras já cansadas de tanto dizer o mesmo, produção de um som menor que coabita o território dos sons, fazendo com que este território abra novas combinatórias, insistência no retorno da potência de diferir. Busca-se o que é menor, aquilo que agita um estado de coisas, que faz problema, deste modo, ouvidos, narizes, bocas, mãos se põem a vasculhar um acontecimento. [...] Escrever, filmar, fotografar, dança, encenar, pintar, pensar com o que acontece: dar corpo a um acontecimento se relacionando com este através da ciência, da arte e da filosofia. A linguagem ajudando a dizer aquilo que lhe ultrapassa, traçados sempre provisórios e frágeis de um ‘sempre em processo’, o inacabado de um como.” (ANGELI; COSTA; FONSECA, p. 45 e 46, 2012. Grifo do autor).

Vivemos tempos de tirania, tempos que temos de lutar para manter direitos básicos, já garantidos na Constituição Federal de 1988. São tempos difíceis de viver, até o ar parece mais pesado de respirar. Momento em que se acentua a precarização dos serviços públicos para tentar justificar privatizações, em que se explora ao máximo os trabalhadores deixando-lhes sem receber salário, em que se corta recursos - que já eram baixíssimos - que subsidiavam a saúde, a assistência social e a educação. Parece-me que as políticas públicas não tem feito sentido, não tem sido sustentadas de nenhuma forma pelo Estado. Tentativa de Estado Mínimo. A comida está mais cara, a luz elétrica está mais cara, a água encanada está mais cara, a moradia está caríssima! O povo paga impostos caríssimos sob tudo. Em Porto Alegre, na distância de um quilometro encontra-se no mínimo cinco pessoas em situação de rua, encontra-se pessoas pedindo dinheiro principalmente para comer, encontra-se crianças e adolescentes vendendo balas de goma/mandolate/pano de prato, muitas delas deficientes físicas. A miséria aparece a cada passo que damos na cidade, basta olhar ao redor... Estamos em guerra civil! Estamos em guerra civil faz muito tempo, nas favelas au-

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menta a cada dia o número de jovens negros mortos. Mortos pelo conflito entre seus grupos do tráfico, mortos por cobranças de dívidas, mortos (e torturados) pela polícia militar, mortos de bala perdida, mortos de fome, mortos de frio, mortos! Mortes que são legitimadas pelo Estado, e que se sustentam socialmente. Durante as manifestações contra Projetos de Emendas Constitucionais em 2016, a juventude branca, da classe média, pergunta-se onde está “a periferia” para lutar também pelos seus direitos? Mesmo em crise a indústria bélica não para de crescer! Mesmo em crise a industria de psicotrópicos não para de crescer! Mesmo em crise há bombardeiros de gás “de efeito moral”, nos quais cada bomba custa o salário base dos Policiais Militares. Mesmo em crise os governantes aumentam os seus salários. Mesmo em crise seguimos pagando uma dívida aos grandes empresários e banqueiros. Que dívida? Dentro deste contexto resiste a produção de vida, a luta por uma existência digna, a alegria, o sonho de uma transformação social em que possamos dividir as riquezas e não as tristezas da pobreza. “Mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos. Sendo tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem, dele se espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecem elementos possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias. O cartógrafo é antes de tudo um antropófago”. (ROLNIK, 1989, p.15-16).

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É no encontro com a juventude que me percebo em um ethos. O ethos de ocupar. Falamos juventude assim, no singular, entretanto são muitas as juventudes. Resistem as juventudes! Que lugares estas juventudes ocupam? Tenho me perguntado nestes últimos dias, frente a tudo isso que estamos vivendo, o que é realmente ocupar-se de algo? De que tenho me ocupado ao longo destes dois anos de residência? Com o que me ocupei? O que ocupei? Por que ocupei/ocupo? Nos próximos trechos do texto tentarei responder estas perguntas com algumas histórias que realmente aconteceram durante este tempo, quando estive ocupando o lugar de residente em saúde mental coletiva. São histórias de encontros com jovens, de encontros de jovens com a literatura, de encontros de jovens com as políticas públicas, de encontros de jovens com... Vou contar a vocês a história do Grande Menino, que pude conhecer quando trabalhei em um Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil, na região metropolitana de Porto Alegre, no ano de 2015. ... Era uma vez um grande menino, que era grande por muitos motivos. Ele era bem gordo, alto, inquieto e, sobretudo muito curioso. Ele tinha treze anos de idade. Logo que

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cheguei para trabalhar no CAPSi a equipe falava muito dele: - Nós não sabemos mais o que fazer com o Valentín, ele não nos respeita! - Sabia que uma vez ele agarrou a psicóloga pelo pescoço?! - Ele mexe em todos os armários da nossa sala, quer ler até os prontuários! - A gente deixa ele mexer no computador, e ele coloca música muito alto! - Não aguentamos mais o Valentín, não sabemos o que fazer com ele! - Ele cheira mal... - Ele mora em abrigo... - A vó dele não quer ele... - Ele já foi abusado no abrigo onde mora... - Ele é drogadito... - Ele é gay... - Ele já se prostituiu várias vezes para comprar droga... Às vezes contavam estas coisas com raiva aos gritos – que todos os vizinhos podiam escutar -, às vezes era com vergonha sussurrando, às vezes era de um jeito mais cansado... Sempre era muito pesado. Antes que eu pudesse olhar nos olhos de Valentín, já havia sido avisada de todas as precauções que eu deveria tomar. Para a equipe ele era um grande tirano... Ele não tinha mais jeito. Convivi com Valentín durante muitas manhãs e tardes, nós conversamos, ouvimos músicas juntos, jogamos UNO e outros tantos jogos, lemos livros, passeamos pelo bairro, lanchamos juntos... Nunca tive medo do grande Valentín! Houve um dia em que tive uma grande tristeza, dessas que duram semanas... Dessas que doem quando lembramos. Era uma quinta-feira - quando eu ficava no CAPSi o dia inteiro - de muito calor, bem cedinho da manhã, quando encontrei O Grande Menino sentado na calçada esperando que a porta da casa do CAPSi se abrisse para ele. Ele trazia uma mochila de roupas, alguns livros e papeis nas mãos. Todos da equipe se perguntavam: - Por que Valentín está aqui neste horário? - Não é o dia, nem o horário dele! Concluíam de antemão: - Ele deve ter aprontado alguma! Vale havia sido expulso da casa de seu tio, estava morando lá fazia poucas semanas, antes disso ele estava em um abrigo, conveniado com a prefeitura daquele município, que o violentava cotidianamente. A equipe dividiu-se para dar conta da situação de Valentín... Sua técnica de referência fez os contatos telefônicos que achou necessários: família, Conselho Tutelar, Juizado e Acolhimento Institucional. Eu, junto de uma colega também residente, conversamos com Vale. Ele nos conta que foi expulso da casa do tio sem entender muito o porquê, e que este familiar havia o

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estava com uma audiência marcada e que sua avó havia sido chamada para comparecer. Aos sussurros me contam, sem que Vale escute, que o menino teria roubado o cartão de crédito do tio e gastado um alto valor durante a noite, e este teria sido o motivo da expulsão. O Grande Menino fica nervoso com a notícia da audiência, fazia tempo que ele não via sua avó. Já haviam sido feitas várias tentativas para que Valentín pudesse ficar na casa desta senhora, porém nunca foi desejo dela tê-lo em sua casa. Valentín se percebe imundo, e pede para tomar banho. Mas onde? Naquele CAPSi além de alimentação, também não havia chuveiro... Saímos então, minha colega da residência e eu, em busca de um local para que ele pudesse tomar banho, e se preparar para a importante audiência. Ligamos para o CAPS AD III da cidade, onde certamente teria chuveiro, e combinamos com a coordenação de lá para que Vale pudesse tomar banho. Valentín nos guia pela cidade que mal conhecíamos, e neste caminho nos conta a história desta noite que passou na rua. Junto desta contação de história ele fuma, um cigarro atrás do outro... Mal termina um cigarro, o atira na calçada e acende outro... Chegando ao CAPS AD III ele consegue tomar banho, troca a roupa e tomamos o rumo de volta ao CAPSi. Na volta, seguem as histórias de violência, detalhes desta noite... Vale fala da relação difícil que tem com sua avó, que duvida que ela vá à audiência... Com brabeza ele nos diz que não quer que ela vá. Ele fala também repetidas vezes: - Estou com sono! No CAPSi, minha colega conversa com o restante da equipe que está muito assustada, com medo de que Valetín faça alguma coisa contra eles. Eu fico bem perto de Vale, falamos dos livros que ele carregava, Don Quixote era um deles. Olhamos vários livros que estavam bagunçados em uma pequena estante da casa... O Grande Menino segue com sono. Convido-o a dormir várias vezes, mas ele não

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xingado muito dito coisas horríveis sobre a sua orientação sexual. Sendo assim Valentín ficou vagando nas ruas da cidade durante toda a madrugada de quarta para quinta-feira, e amanhecera na calçada em frente ao CAPSi. Nesta andarilhagem ele teve de vender seu corpo em troca de cigarros e comida. Ele serviu aos prazeres de muitos homens adultos, jovens e velhos. Usou bebidas alcoólicas, usou crack, conseguiu uma carteira de cigarros... Comprou refrigerante e salgadinho. Quando o encontramos, Vale cheirava muito mal, suas roupas estavam sujas e molhadas. Ele estava com muita fome! Foi então que decidi ir com ele até a padaria que ficava muito próxima ao CAPSi, paguei com o meu dinheiro o café da manhã de Vale... Porque essa instituição de saúde, na qual eu trabalhava, não recebia recursos para alimentação, e não havia nenhum tipo de refeição neste serviço. Esta foi uma das muitas vezes em que tive de pagar com o meu salário por coisas que são de direito das crianças e dos adolescentes, e o Estado nunca me ressarciu por isso! Depois do café voltamos para casa do CAPSi, somos informados de que Valentín

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quer... Estava muito ansioso, e deitaria em um colchonete na garagem suja. enho uma ideia! Peço licença a Valetin e solicito a chave da sala da Médica, esta sala era proibida para outros atendimentos. Abro a sala e preparo lá um cantinho com colchonetes, escureço o ambiente... Convido Valentín a ocupar a sala da médica junto comigo. Vamos para lá, ele aceita deitar na cama que eu preparara e me pede que o acorde, porque ele tem medo de não acordar para a sua audiência. Além dos colchonetes, algumas almofadas e bichos de pelúcia que eu encontrei espalhados pelo CAPSi compunham aquele mini mundo, aquele cantinho onde Valentín podia confiar o seu sono a mim. Vale abraça uma girafa de pelúcia, e deita-se me olhando. Eu sentada em uma cadeira ao lado de sua cama, conto a ele a história do Grande Tirano... “Era uma vez um tirano”... O Grande Menino adormece abraçado em uma girafa de pelúcia. Era no final do outono de 2016, quando soube que os estudantes secundaristas estavam ocupando uma escola próxima a minha casa, bem pertinho, no mesmo bairro. Eu já sabia que isto estava acontecendo em todo o Brasil, como um fenômeno ainda à ser entendido... Um processo aberto e complexo. Os adolescentes reivindicavam a qualidade na educação, preocupavam-se, com estas ocupações, não somente com a estrutura física de suas escolas, mas com o ensino, sobretudo com o exercício de suas autonomias. Tomavam nas mãos os seus espaços de aprendizado, lugares nos quais passaram grande parte de suas infâncias sendo condicionados à ocupar um lugar socialmente de trabalhador. Lembro-me de ir sozinha à escola, chegar ao portão já trancado por barricadas e entregar o meu documento de identidade para os meninos que estavam na portaria. Uma dupla de estudantes me guiou pela escola, mostrando como estava organizada a ocupação: alojamentos, sala de reuniões, refeitório, banheiros... Falavam nas escalas, nas comissões, das reuniões diárias. Perguntei: - Como posso ajudar? Vocês precisam de quê? Ouvi então os relatos de que haviam pessoas que estavam propondo oficinas dentro da ocupação. Que eu poderia procurar a Luiza, que estava na comissão de comunicação, para agendar uma oficina. Ao mesmo tempo em que acontece este diálogo, ouço uma chamada... Um grito na porta do alojamento: - Pessoal, vamos lá que vai começar a atividade! Não é pra ficar dormindo! Logo concluí: - Acho que eles não estão muito afim de oficinas neste momento. Eles estavam em um número muito pequeno de estudantes naquela ocupação, estavam cansadíssimos. Alguns não dormiam há três dias, vários não haviam voltado pra casa. Além de dar conta da gestão da ocupação, com todas as tarefas que isto implica,

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Voltei em uma outra noite à escola, ainda sem saber as respostas para aquelas perguntas, participei de uma assembleia... Antes de me apresentar os jovens já sabiam que eu era “a guria da UFRGS”. Engraçado que sempre que nos apresentamos, logo depois de dizermos o nosso nome revelamos qual a nossa profissão. Observei os olhares curiosos, de estranhamento, quando disse que era pedagoga e estava trabalhando com saúde mental... Disse que estava ali para apoiá-los no que precisassem, deixei o meu número de telefone e o Facebook. Durante a assembleia pude perceber a exaustão daquela galerinha, o quão difícil estava sendo resistir. Eram muitos conflitos: com a direção, com os familiares, entre colegas que não eram ocupantes e sobretudo com algumas organizações políticas específicas. Uma principal pergunta ecoava sem resposta: - Até quando ficaremos aqui? Volto para casa novamente, pensando em como iria oferecer apoio para aquele grupo. O fenômeno das ocupações secundaristas estava sendo discutido em todos os espaços em que eu estava frequentando, inclusive em reuniões de colegiado da Residência fazíamos naquela época um amplo debate sobre como poder incluir em nossos planos de trabalho o apoio a estas ocupações. - Apoiar como? Era a nossa maior questão. Depois de já ter me aproximado, tomado a posição de observadora e rememorado muitas sensações do Movimento Estudantil... Tomei minha decisão. Entrei em contato com a Luiza, menina responsável pela comunicação e agendei um horário à noite. Chamei pessoas queridas por mim... Amigas, colegas de profissão, nosso Grupo de Extensão Geringonça.

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ainda teriam de participar de muitas atividades que as pessoas de fora estavam propondo. Agendavam, realizavam a sua oficina, e iam embora com a sensação de dever cumprido. Atividades para dar visibilidade, atividades para mostrar que não estavam lá para fazer bagunça, atividades que eram demanda mais dos de fora e do que dos de dentro, naquele momento... Veio em minha memória, enquanto assistia aquela cena - podendo sentir no meu corpo - a lembrança dos vinte e três dias que eu havia passado em uma ocupação dentro da Universidade, enquanto eu fazia a graduação, em junho de 2013. Lembrei que precisávamos de apoio: GENTE! Precisávamos de gente para dormir na ocupação, para estar conosco, um apoio presencialmente. Precisávamos descansar! Diante disso, agradeci a atenção do pessoal e voltei para casa. Fiquei durante uma semana refletindo sobre como poderia realmente ajudar em algo... O que eu gostaria que tivessem feito por mim enquanto eu era estudante-ocupante? Como poderia contribuir para aquele movimento, sem interferir no processo de construção de autogestão daquele grupo?

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Convidei para fazermos um Momento de Cuidado, como chamamos na Saúde Mental Coletiva, com os integrantes da Ocupação. Era planejamento do Momento de Cuidado: - Levar coisas gostosas de comer e chá; - Fazer uma roda de conversa livre que partisse das apresentação de todos; - Fazer uma roda de massagem mútua; - Conversar sobre como os ocupantes estavam se sentindo. - Contação de história – “Era uma vez um tirano” da Ana Maria Machado. Eu havia decidido que iria dormir na escola naquela noite, e de surpresa Dani (a orientadora deste Trabalho de Conclusão de Residência) e eu iríamos proporcionar o jantar de todos: pizza! Após o jantar, fizemos a assembleia do dia. Eles contaram como estavam acontecendo as ocupações dos espaços internos da escola, cuidados que estavam tomando. Dentro deste relato, falam a respeito das chaves: - Temos a chave de todos os espaços da escola, até dos laboratórios, a única chave que não temos é a da biblioteca. Logo em seguida desta fala, alguns demonstram a sua insatisfação em não poder ter acesso aos livros. Muitos ali estavam no último ano, e iriam prestar vestibular precisavam realizar as “leituras obrigatórias”. Perplexa com este fato simbólico, não me contenho e pergunto: - E porque vocês ainda não arrombaram a porta da biblioteca? Impulsionados por esta questão, inicia um burburinho... - Quem vota em arrombar a biblioteca essa noite? - Vou pegar o pé de cabra, quem me ajuda? - Lá tem câmeras! - Foda-se, a escola é nossa! - Eu posso fazer a função da bibliotecária, vou anotando todos os livros que nós pegarmos... Foi assim que participei de uma ocupação dentro de uma ocupação! Todos entraram fascinados, olhando para os moveis novos que eles desconheciam, analisando os livros... Me mostrando que histórias gostavam mais. Alguns diziam: - Esta é a primeira vez que entro na biblioteca da escola! Durante o Momento de Cuidado, não havia sobrado tempo para contar a história do Tirano, da Ana Maria Machado. Decidi então, contar ali, dentro da biblioteca em plena madrugada. Hora do conto na biblioteca ocupada! Todos eles se sentaram em uns sofás, com vários cobertores de lã... Me olhavam atentamente. Amaram a história que eu trouxera! Logo depois uma observação: - Nossa! Fazia muito tempo que eu não ouvia uma história assim lida por alguém... Me lembrei de quando eu estava no pré e a professora contava histórias pra nós. Me senti

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na hora do conto. Pensei sobre isso durante muitas semanas, me emocionei e ainda me emociono com esta fala. Lembro dos olhos brilhantes da menina que podia ler os livros que precisava para o Vestibular. Conheci adolescentes fantásticos, com coragem e vontade e mudar o mundo. Adolescentes que me impulsionaram para seguir acreditando em uma transformação social. Onde já se viu os alunos não terem a chave da biblioteca da própria escola? Onde já se viu alunos nunca terem entrado em uma biblioteca? Onde já se viu alunos chegarem ao Ensino Médio e só se lembrarem de terem ouvido uma contação de história na pré escola? Segui apoiando a ocupação, em contato com frequente com a Luiza. Visitei a escola outras vezes, fui assistir ao debate que ela participou na Faculdade de Educação da UFRGS. Depois que terminou a ocupação do Colégio segui em contato com a Lu, pude a reencontrar em ocupações dentro da UFRGS reivindicando as Cotas, em ocupações da rua, em protestos... Luiza me fez lembrar de quem eu fui, da adolescente do grêmio estudantil do Colégio de Aplicação da UFRGS, da estudante de Licenciatura em Pedagogia da UFRGS que foi da gestão do Diretório Acadêmico durante toda a graduação... Fez eu enxergar que militância exerço no mundo hoje, a partir de sua prática. Com a Lu eu tive outra relação, não era nem terapêutica nem pedagógica, era/é uma relação que não cabe em uma palavra, não condiz com nenhum papel socialmente estabelecido... Preferi deixar que ela pudesse falar da relação que tivemos/temos, e principalmente dizer do processo de ocupação que viveu.

Eis o trecho da canção: [...] Era tudo mentira, sonhei pra valer Com você, eu ali, nós dois, cê vê tê A alma flutua à leite, a criança quer beber Lázaro, alguém nos ajude a entender

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O trabalho dos revolucionários não é ser portador de voz, mandar dizer as coisas, transportar, transferir modelos e imagens; seu trabalho é dizer a verdade lá onde eles estão, nem mais nem menos, sem tirar nem por, sem trapacear. Como reconhecer este trabalho da verdade? É simples, tem um troço infalível: está havendo verdade revolucionária, quando as coisas não te enchem o saco, quando você fica a fim de participar, quando você não tem medo, quando você recupera sua força, quando você se sente disposto a ir fundo, aconteça o que acontecer, correndo até o risco de morte. (GUATTARI, 1987, p.16).

Acha que tá na mão, tá bom, tá uma festa

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Menino no farol cê humilha e detesta Acha que tá bom, né não, nem te afeta Parcela no cartão essa gente indigesta [...] Lázaro é um homem negro de origem humilde, filho de Célia Maria. Nesta entrevista ele estava tentando nos ajudar a entender a desigualdade social, e é citado por Criolo. Utilizei estes pseudônimos relembrando as cenas das canções, que também fizeram parte deste acompanhamento. Tenho certeza de que o Lázaro desta escrita nos ajuda a compreender não somente a desigualdade social, mas a dura realidade de muitos jovens negros que hoje vivem nas enormes favelas de Porto Alegre. Invocando paradigmas éticos, gostaria principalmente de sublinhar a responsabilidade e o necessário ‘engajamento’ não somente dos operadores ‘psi’, mas de todos aqueles que estão em posição de intervir nas instâncias psíquicas individuais e coletivas (através da educação, saúde, cultura, esporte, arte, mídia, moda etc.). É eticamente insustentável de abrir, como tão frequentemente fazem tais operadores, atrás de uma neutralidade transferencial pretensamente fundada sobre um controle do inconsciente e um corpus científico. De fato, o conjunto dos campos ‘psi’ se instaura no prolongamento e em interface aos campos estéticos. Insistindo nos paradigmas estéticos, gostaria de sublinhar que, especialmente no registro das práticas ‘psi’, tudo deveria ser sempre reinventado, retomado do zero, do contrário os processos se congelam numa mortífera repetição. A condição prévia a todo novo impulso da análise – por exemplo, a esquizoanálise – consiste em admitir que, em geral, e por pouco que nos apliquemos a trabalhá-los, os Agenciamentos subjetivos individuais e coletivos são potencialmente capazes de se desenvolver e proliferar longe de seus equilíbrios ordinários. Suas cartografias analíticas transbordam, pois, por essências, os Territórios existenciais aos quais são ligadas. Com tais cartografias deveria suceder como na pintura ou na literatura, domínios no seio quais cada desempenho concreto tem a vocação de evoluir, inovar, inaugurar aberturas prospectivas, sem que seus autores possam se fazer valer de fundamentos teóricos assegurados pela autoridade de um grupo, de uma escola, de um conservatório ou de uma academia... Work in progress! Fim dos catecismos psicanalíticos, comportamentais ou sistemistas. (GUATTARI, 1990, p. 22).

Talvez estas histórias possam ser as minhas pistas, com elas tanta experiência. Tanta vida! Ocupei tantos lugares, físicos e simbólicos. Me ocupei de juventude, de fazer saúde com a juventude, de aprender com eles a resistir. Um se ocupa de sobreviver, de implorar por acolhimento, por seus direitos em um serviço de saúde. Outra se ocupa da sua própria educação, ocupa o lugar de protagonista na construção do fazer político na vida e na escola (agora na Universidade). O terceiro se ocupa de poder se reinventar, é ocupado

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pela resiliência, consegue ir inventado novos modos de existir. Todos se ocupam dos seus DIREITOS!

El Sueño de Valentín. Direção: Alejandro Agresti. Distribuidora: Miramax, 2003. 1 DVD (85 min). GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução Maria Cristina. São Paulo: Papirus, 1990. GUATTARI, Félix. Revolução molecular: Pulsações políticas do desejo. Editora Brasiliense: Rio de Janeiro, 1987.

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REFERÊNCIAS CRIOLO. Convoque seu Buda. Intérpretes: Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral. Oloko Records Copyrigh, 2014. 1 CD.

FONSECA, Tania Mara; NASCIMENTO, Maria Lívia; MARASCHIN, Cleci org. Pesquisar na diferença: um abecedário. Editora Sulina: Porto Alegre, 2012. MACHADO, Ana Maria. Era um vez um tirano. Editora Salamandra, Rio de Janeiro, 1982. ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Editora Estação Liberdade: São Paulo, 1989.

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artigos Foto: Wagner Ferraz

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COLETIVO TINTA FRESCA: EDUCAÇÃO, FILOSOFIA E SAÚDE

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Coletivo Tinta Fresca: Educação, Filosofia e Saúde

RESUMO: A partir da perspectiva da filosofia como exercício de saúde, e compreendendo a tríplice agência ensino-pesquisa-extensão como indissociável, o projeto de extensão Tinta Fresca visa desenvolver, através do estudo e ensino da Filosofia da Diferença, aumento de potência do ser pelo exercício da leitura e interpretação de autores como Nietzsche, Spinoza e Bergson. Composto por profissionais e acadêmicos de diversas áreas incluindo – mas não limitado – Ciências Sociais, Linguística, Filosofia e Biomedicina, o grupo consegue, por sua caleidoscópica visão interdisciplinar, compreender as obras de uma maneira extremamente abrangente, não se restringindo à uma leitura individual de qualquer um dos membros. Conceitos como Sobre-Humano (além-humano, übermensch), Potência e Espírito Livre de Nietzsche, Conatus de Spinoza, Elã Vital e Duração de Bergson foram e são minunciados, decompostos e agenciados em situações, sejam elas sensíveis ou teóricas, durante o trabalho exercido junto ao texto do autor. Além do que está escrito, sobrescrito e inscrito à obra, são debatidas atribuições equivocadas quanto ao trabalho explorado, tanto quanto revelam-se contextos inesperados por trás e por diante da obra. Para além da universidade, o grupo desenvolve oficinas na Olimpíada de Filosofia do Rio Grande do Sul, assim como ações integradas ao Projeto de Extensão Geringonça. Assim sendo, podese afirmar que o coletivo desenvolve acuradamente uma Grande Saúde.

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Renato Levin Borges45 Andressa Girotto Camilotti46 Lucas Teles47 Natascha Helena Franz Hoppen48

PALAVRAS-CHAVE: Filosofia da diferença. Saúde. Interdisciplinaridade. Educação.

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ABSTRACT: Following a perspective of philosophy as an exercise of health, and comprehending the trinity of teaching-research-extension as indissociable, the Extension Programme Tinta Fresca aims to develop, through study and exercise on the Philosophies of Difference, an increase in the will to power through the reading and interpretation of the work of authors such as Spinoza, Nietzsche and Bergson. Through having in its composition professional and academics of multiple areas, including but not limited to Social Scientists, Linguists, Philosopher and Biomedical Scientists, the group displays, through its kaleidoscopically diverse perspectives, the group manages to interpret and comprehend our materials in a diverse and extensive fashion, without one member’s voice overcoming another’s. Concepts such as übermensch (“superman” or “overman”), will to power and free spirit from Nietzsche; conatus from Spinoza,

45 Professor na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre, bacharel e licenciado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), mestre e doutorando em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), professor no Tinta Fresca 46

Licencianda em Pedagogia pela UFRGS, bolsista no Tinta Fresca

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Licenciando em Letras - Português/Inglês pela UFRGS, bolsista no Tinta Fresca

48 Bibliotecária na UFRGS, bacharela em Biblioteconomia, mestra e doutoranda em Comunicação e Informação pela UFRGS, técnica-administrativa no Tinta Fresca C3

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élan vital (vital links) and duration from Bergson were and are decomposed to their basest parts and applied to a variety of situations, be they practical or theoretical, over the course of our author analysis. Beyond what is written, inscribed or overscribed to the work, there are also discussions on misattributions from, as well as arcane contexts behind, between and beyond the work. Beyond purely academic work, the programme has made its presence in events such as the Philosophy Olympics of Rio Grande do Sul, as well as actions by its sister programme Geringonça. Such as it is, it is safe to say that the project conforms itself to the concept of great healthiness. KEYWORDS: Philosophies of Difference, Health, Interdisciplinarity, Education

Através do diálogo entre Educação, Saúde e Filosofia da Diferença, o coletivo/grupo/projeto de extensão Tinta Fresca: filosofia nômade como saúde iniciou sua ação e atuação no segundo semestre de 2014 na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com a coordenação compartilhada entre Daniele Noal Gai49, Renato Levin Borges e, recentemente, Natascha Helena Franz Hoppen. O grupo surgiu como dispositivo aberto de discussão e aprendizado de Filosofia à comunidade de modo dinâmico e livre, sem demandar conhecimentos filosóficos prévios. Tem no professor de Filosofia Renato o orientador e facilitador dos estudos, que busca trazer à tona questões e/ou conceitos filosóficos relevantes que subjazem os textos e que possam potencializar leitura e debate, diferenças, deslocamentos. Nas suas forças constituintes, Tinta Fresca tem a filosofia nômade como devir para a compreensão de novos envolvimentos e desenvolvimentos quanto a rótulos atribuídos, por exemplo, aos tão chamados “loucos”, “especiais”, “deficientes”, “desprovidos”, “coitados”... Em busca de uma noção mais próxima e verossímil da vida como um todo, o Tinta Fresca atua no contexto educacional atual, trazendo e fomentando discussões relevantes ao ambiente onde se encontra, quaisquer sejam eles.

Com o embasamento teórico da filosofia de Nietzsche, Spinoza e Bergson, o Tinta Fresca mantém em sua interinidade um olhar crítico e reflexivo sobre o desenrolar das nuances sociais contemporâneas, tais como questões de gênero e sexualidade, opressão e medicalização/mecanização em diversos estratos de nossas existências, com o dialogar com as dúvidas, desejos e inquietações dos sujeitos que compõem o grupo. O Tinta Fresca é uma ação entre unidades interdisciplinares, que atua na formação de coletivos de Filosofia, tais como o projeto de pesquisa Cabeça de Criança e as Olimpíadas de Filosofia do Rio Grande do Sul, assim como o embasamento teórico de ações extensionistas, tal como no Projeto Geringonça: pedagogias da diferença e filosofias da

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ATIVIDADES

49 Professora adjunta na área de Educação Especial do Departamento de Estudos Especializados da Faculdade de Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Mestra e Doutora em Educação pela UFRGS.

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vida, e em eventos político-sociais como as ocupações de escolas e universidades que ocorreram em 2016. Intensivamente extensionista, suas ações promovem a inclusão social e a inclusão na universidade de corpos moventes, sejam estes limitados ou não. Entende-se que ir a espaços nômades, espaços da rua, perambular pela cidade, visitar instituições, fazer contato com o que é comum na comunidade, favorece a aprendizagem dos corpos envolvidos e presentes no projeto que fluirão e experimentarão as produções e discussões promovidas em nossas ações, atuando principalmente na criação de modos de vida, inflexionando sobre questões existenciais tais como o refúgio, isolamento, exclusão e exílio. Ao não se preocupar somente com o que se quer desenvolver, o Tinta Fresca busca trazer a Filosofia como movente não somente relevante, mas necessária ao espaço onde se insere. Além de questões viciadas como “bem e mal”, “bom e mau”, “fé”, “metafísica” e “moralidade”, busca trabalhar com as potências presentes não somente no espaço e na comunidade, mas também naquelas do indivíduo: o Conatus, ou seja, a força que tudo que existe opera para perseverar no ser (SPINOZA, 2014); o Elã Vital, intuição e duração (BERGSON, 2001); o Espírito Livre, aquele que toma suas próprias rédeas (NIETZSCHE, 2005; 2008). São exemplos de conceitos que até para os mais eruditos acadêmicos podem quedar abstratos, mas que o Tinta Fresca encontra como atos quase-unanimemente presentes na vida, estejam eles encarnados em um morador de rua, paciente de manicômio, professora universitária ou de um estudante autista. A questão de fundo sempre posta no Tinta Fresca, independente da filosofia estudada em determinado momento é sempre a mesma: ainda é possível criarmos novos modos de vida? É possível extrairmos do que antes era visto como repreensível a potência para fazer, transparecendo vínculos, hábitos, motivações, sonhos – afirmando o postulado ético inerente ao Eterno Retorno nietzschiano da afirmação plena do existir? Algum plano existencial mais ou menos estável (platô movediço essencial para se lançar em outras direções), que por mais anômalo ou caótico que seja, afigura-se fundamente ao ser para que não submerja aos universais que orientam o existir sob o biocapitalismo: afirmar e descobrir tudo o que é possível ser, tudo o que podemos nos tornar, tudo o que nos torna potentes. DISCUSSÃO

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O modo de ser e de perceber que se desenvolvem, a maneira em que se trouxe tais decorrências, absurdidades e desvios de pensamento, o potencial na miséria, na tristeza, na loucura, na saúde, na doença, no prometido e o não cumprido – qual a utilidade delas? Qual não a utilidade delas? Qual a utilidade do útil na vida? Há três anos o Tinta Fresca mostrou e demonstrou que por mais absurdos, anárquicos e perturbadores que sejam não somente os conceitos que estuda, as pessoas que o compõem e que o expectam, o coletivo consegue desmistificar, esclarecer e potencializar aquilo e aqueles que antes eram muitas vezes considerados “empecilhos”, “problemas”, “obstáculos”, trazendo à tona que tudo que vive é prenhe de forças. A indignação, a ver-

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gonha, a fome, o luto – tudo pode servir de combustível para quem souber utilizar, e o propósito do Tinta é ensinar a utilizar quaisquer substâncias como fonte de energia, por mais bizarra e tangencial que seja. Sempre em frente, à potência máxima por mais difícil que seja, por mais tenso que seja, por mais pesado que seja, o grupo conseguiu chegar onde está e não irá retroceder. FINALIZANDO Em sua história nômade, selvagem e caótica, o Tinta Fresca é de importância à diversas ações tendo atuado – e atuando – em e com diversas entidades como o jornal Boca de Rua, o projeto Geringonça, o Chalé da Cultura GHC e o extinto projeto Parafernálias. O Tinta Fresca visa continuar sendo um abre-alas e uma porta aberta à comunidade sul-rio-grandense à Filosofia Nômade e da Diferença - independente do status ou formação de quem desejar frequentá-lo. Além disso, tem o anseio de continuar se fazendo presente em eventos como as Olimpiadas de Filosofia do Rio Grande do Sul, assim como em outras diversas causas sociais e educacionais, formais ou informais.

REFERÊNCIAS BERGSON, Henri. A evolução criadora. Lisboa: Edições 70, 2001. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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SPINOZA, Baruch de. Ética. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

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GÊNERO, SEXUALIDADES E EDUCAÇÃO: UMA BREVE ANÁLISE CONCEITUAL

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Julio Cezar Pereira Araujo50 Dra. Joanice Santos Conceição 51

Resumo: Este artigo tem como objetivo, apresentar uma breve análise conceitual acerca dos movimentos históricos nos campos dos estudos de gênero e das sexualidades, que posteriormente será usada para embasar as discussões dos movimentos feministas e LGBTs, e ainda refletir sobre o conceito queer na perspectiva do campo da educação. Para embasar as discussões e análises da pesquisa, nos debruçamos nos constructos de Louro (2013), (Scott, 1995, 2012), Meyer (2013), Connel (2015), entre outros/as. Palavras-Chave: Gênero, Sexualidades, Educação, Queer.

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GÊNERO, SEXUALIDADES E EDUCAÇÃO: UMA BREVE ANÁLISE CONCEITUAL

Abstract: This article has, at its core, the intention of presenting a brief conceptual analysis on the historical movements in the field of gender and sexuality studies, which will be further on retaken as the basis to discussions about feminist and LGBT movements, as well as the reflection on the concept of queer in the educational medium. On these discussions and research analyses, we base ourselves on the constructs of authors such as Louro (2013), (Scott, 1995, 2012), Meyer (2013) and Connel (2015), among others. Keywords: Gender, Sexualities, Education, Queer

GÊNERO: ENTENDENDO O CONCEITO.

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As discussões sobre as questões de gênero e sexualidades tornaram-se recorrentes ao longo do século XX, suscitando diversos estudos que aprofundaram teorias e conceitos sobre o tema. Os movimentos feministas começaram a utilizar o termo gênero a partir de meados da década de 1970 (LOURO, 2013; SCOTT, 2012). A categoria gênero provém do latim “genus” e refere-se ao código de conduta que rege a organização social das relações entre homens e mulheres. No início da propagação do termo, acreditava-se que seus estudos possuíam ênfase nas mulheres. O termo gênero virou sinônimo de mulher e o seu uso atribuído na forma neutra/genérica. Nesta propagação o homem ficou invisibilizado nas discussões, vista a necessidade de atribuir legitimidade acadêmica à luta das feminis-

50 Graduado em Licenciatura Plena em Pedagogia pela Universidade Federal Fluminense no Instituto do Noroeste Fluminense de Educação Superior. Realizou por um semestre, Mobilidade Acadêmica na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2016). Foi bolsista de Iniciação à Docência/CAPES (2014 - 2017). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Azânia, com ênfase em Cultura, Gênero/Sexualidade, Raça/Etnia, Classe, Performance e Religião - CNPq/UFF, orientado pela Profa. Dra. Joanice Conceição. Desenvolve pesquisas e extensão nas áreas de Gênero, Sexualidades e Formação Docente. E-mail: juliocezar.p.araujo@gmail.com

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51 Professora Adjunta na Universidade Federal Fluminense; Pós-Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia - PPGANT da Universidade Federal do Piauí; Doutora em Ciências Sociais/Antropologia e Mestre em Ciências Sociais/Antropologia, ambos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia (1997). Coordena o AZÂNIA - Grupo de Estudos e Pesquisas em Cultura, Gênero∕sexualidade, Raça∕Etnia, Classe, Performance e Religião – CNPq/UFF. E-mail: joaniceconceicao@gmail.com


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tas. Para Scott (1995, p. 72) “as feministas começaram a utilizar a palavra “gênero” mais seriamente, no sentido mais literal, como uma maneira de referir-se à organização social da relação entre os sexos”. As mulheres trouxeram ao termo uma notoriedade, garantida pelas suas lutas e através da emancipação feminina, contra a opressão. Suas articulações tinham como objetivo perceber a relação existente entre os sexos, que era influenciada pela desigualdade e o poder. Scott assim argumenta: A ideia foi que gênero aplicava-se a todos, que era um sistema de organização social, que não havia ninguém fora disso. Gênero era sobre mulheres e homens, sobre como os traços atribuídos para cada sexo justificavam os diferentes tratamentos que cada um recebia, como eles naturalizavam o que era fato social, econômico e desigualdades políticas, como eles condensavam variedades da feminilidade e masculinidade em um sistema binário, hierarquicamente arranjado. (SCOTT, 2012, P. 333)

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Durante a década de 1980, o termo mulher começava a ser substituído pelo termo gênero que foi denominado enquanto categoria analítica. A diferenciação do termo gênero, para o termo sexo, de cunho biológico, foi um dos avanços do movimento. Logo, os homens foram “incluídos como uma categoria empírica a ser investigada nesses estudos e uma abordagem que focalizava a estrutura social mais do que os indivíduos e seus papéis sociais foi favorecida” (HEILBORN, SORJ, 1999, p. 4). A OIT (Organização Internacional do Trabalho) definição o termo gênero como: Um conceito que se refere ao conjunto de atributos negativos ou positivos que se aplicam diferencialmente a homens e mulheres, inclusive desde o momento do nascimento, e determinam as funções, papéis, ocupações e as relações que homens e mulheres desempenham na sociedade e entre eles mesmos. Esses papéis e relações não são determinados pela biologia, mas sim, pelo contexto social, cultural, político, religioso e econômico de cada organização humana e são passadas de uma geração a outra... Gênero são as valorizações e definições construídas pela sociedade para moldar o perfil do que é ser homem ou ser mulher nessa sociedade. (RABELO, 2008, p.154 apud OIT/MTb, 1998, p. 12-3 citado por Yannoulas, 2001, p. 70).

Portanto, podemos compreender que o gênero é a produção social de traços a serem utilizados por homens e mulheres durante a vida que normatiza as relações existentes entre os sexos. Para Scott (1995) o termo gênero foi criado para se opor-se ao uso biologizante e naturalizante entre os sexos, dando-lhes um caráter social. Almeida (1998, p. 43) argumenta que “sendo o sexo determinado antes do nascimento por processos biológicos naturais, o gênero é um produto cultural adquirido e transmitido nas estruturas sociais”. No que tange a análise do termo gênero, enquanto uma categoria de análise, Joan

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Scott (1995, p. 86) é uma das pioneiras na discussão. Para a autora, o gênero é “um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder”. Segundo a autora, a primeira parte do conceito de gênero é constituída por quatro elementos: 1) os símbolos fornecidos pela sociedade, enquanto exemplo de homens e mulheres a serem seguidos; 2) conceitos normativos que moldam modelos de masculinidades e feminilidades; 3) o reforço do binarismo de gênero (masculino e feminino), evidenciado por instituições sociais; 4) as identidades subjetivas nos mostram, que os homens e as mulheres não recebem as imposições da mesma maneira. Já na segunda parte do conceito, ela evidencia que as relações de gênero, estão entrelaças com as relações de poder. Neste sentido, podemos supor que o homem é um sujeito privilegiado em todas as sociedades. Sua relação de poder sobre as mulheres está atrelada, por exemplo, à diferença salarial, à divisão sexual das tarefas, bem como ao prestígio social, tais como: político, futebol, cargos de chefias e a suposta inferioridade feminina, como reitera o fragmento abaixo: Pode-se, pois, detectar, ainda uma vez, o processo de naturalização de uma discriminação exc1usivamente sociocultural. A compreensão deste processo poderá promover enormes avanços na caminhada da conscientização quer de mulheres, quer de homens, a fim de que se possa desmistificar o pretenso caráter natural das discriminações praticadas contra os elementos femininos. (SAFFIOTI, 1987. p. 15)

A filósofa feminista Simone de Beauvoir, revolucionou pensamentos ao publicar no final dos anos de 1940 o seu livro “O segundo sexo”. A famosa frase “ninguém nasce mulher, torna-se mulher” (Louro, 2008, p. 17), estendeu as discussões sobre o feminismo no mundo. Para os homens, mesmo não exercendo posições afins, podemos dizer que não nascemos homens, mas nos tornamos homens. Décadas seguintes, Raewyn Connell52 retoma as discussões de Beauvoir, reforçando a crítica ao modelo de construção da identidade de gênero.

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Não podemos pensar o ser mulher ou o ser homem como experiências fixadas pela natureza. Mas também não podemos pensa-los apenas como uma imposição externa realizada por meio de normas sociais ou da pressão de autoridades. As pessoas constroem a si mesmas como masculinas e femininas. Reivindicamos um lugar na ordem de gênero – ou respondemos ao lugar que nos é dado –, na maneira como nos conduzimos na vida cotidiana. (CONNELL, 2015, p. 39)

Sustentada nos raciocínios dos autores acima, Saffioti (1987) reforça a ideia de que

52 Connell alterou seu nome de Robert William para Raewyn. A autora submeteu-se também ao tratamento hormonal e à cirurgia de readequação sexual, por isso, o pronome de tratamento para esta autora será utilizado, considerando o ano da publicação e a forma como ela se identificava na época.

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ser ou homem ou ser mulher baseia-se em um processo de aprendizagem, no qual, os sujeitos aprendem a agir como homem ou como mulher, segundo a socialização que os rodeiam, e não de acordo com seu sexo. Considerando isto, Ferreira (2013, p. 180) afirma que os “nossos corpos são moldados aos papeis de gênero, raça e classe que nos são destinados”. Segundo o imaginário produzido no meio social, o ser feminino, deve dispor principalmente da mulher enquanto reprodutora, “prendada”, doce, sem ambição profissional, “recatada e do lar”. Já a trajetória masculina, deve ser voltada para a competitividade, liderança, força bruta, sendo impedido de mostrar suas fraquezas, derrotas ou até mesmo chorar. Este imaginário se concretiza através da reprodução de imaginários/estereótipos/ estigmas produzidos nas sociedades. Disputa entre o estável e o dinâmico, emerge-se o imaginário social que é a teia de significados acumulada pelo homem durante a história, este seria filtrado pelas representações hegemônicas constitutivas da visão de mundo (episteme) de uma determinada época, porém estas são sempre reinterpretadas pelo grupo. (RABELO, 2008 p. 133)

Como salienta a citação acima, as fundamentações nas diferenças estão diretamente ligadas à produção de hierarquias de gênero (Meyer, 1996). Portanto, desempenhar papéis de menino/a ou homem/mulher são atributos construídos socialmente perante a vivência sociocultural que estabelecemos com o meio em que vivemos. A construção desses papéis no cotidiano revela que homens e mulheres não ocupam as mesmas posições nas sociedades, isto é, as diferenças são usadas para dominar, excluir mulheres e as pessoas que estão fora dos padrões heteronormativos.

Os estudos de gênero surgem através da forte atuação do movimento feminista que consegue maior visibilidade no final dos anos de 1960, principalmente em países como França, Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha. (LOURO, 2013). Com a chegada do século XX, as mulheres protagonizaram inúmeras manifestações, contra a discriminação feminina. Estas manifestações produziram no contexto histórico feminino, o que chamamos de ondas. Igualmente debateram, de forma ampla, o lugar da mulher na sociedade, as questões trabalhistas, os estereótipos femininos que a mídia, a escola e a religião veiculavam, entre outros temas. Ou seja, as mulheres tornam público que, se elas foram oprimidas durante séculos pelo regime patriarcal, chegou a hora de ocupar espaços públicos exigindo igualdade de direitos com os homens. (SAYÃO, 2005, p. 49)

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BREVES APONTAMENTOS SOBRE O MOVIMENTO FEMINISTA

A citação acima está pautada nas discussões do espaço público e privado. Em

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que, naturalmente consideramos a casa enquanto o espaço da mulher e a rua como espaço do homem. Desta maneira, estamos produzindo uma desvalorização ao espaço doméstico e naturalizando este espaço, como “natural ao feminino” como se existissem funções determinadas pela natureza para o homem ou para mulher. Mediante ao posicionamento contrário a estas ideias é que a primeira onda, denominada “sufragismo” (LOURO, 2013; MEYER, 2013). Este surgiu e teve como principal objetivo garantir às mulheres o direito ao voto, além de reivindicações ligadas à família, a inserção nos estudos e o acesso a diferentes profissões. O movimento, à época era liderado por mulheres brancas e de classe média que objetivava a garantia dos direitos das mulheres. Salienta-se para que as mulheres brancas estivessem à frente do movimento elas contavam com o apoio das mulheres negras que ficavam em suas casas, cuidando do lar, das crianças e de toda parte doméstica. Ainda que as negras possuíssem experiências anteriores que diziam respeito à participação em movimentos feministas no Brasil, tais como organização de irmandades, trabalhos administrativos, cuidado com os doentes, entre outras tarefas. Diferentemente da realidade da população feminina branca, para a mulher negra africana a rua tornou-se lugar de trocas materiais e simbólicas, como acontecia nas grandes feiras do continente africano; por conseguinte, o termo feira deve ser entendido de forma ampliada, não significando apenas complemento econômico ou acúmulo de recursos, mas, sobretudo, como possibilidade de encontros, permutas e estratégias para reorganização de núcleo familiar. (CONCEIÇÃO, 2015, p. 93)

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53 O regime ou ditadura militar no Brasil foi o regime autoritário que governou o país de 31 de março de 1964 até 15 de março de 1985, levando os militares ao poder. Naquele momento o mundo encontrava-se dividido entre duas áreas: a ocidental capitalista e a oriental socialista. O Brasil, um país promissor economicamente, logo foi alvo dos EUA, que passou a intervir economicamente e politicamente no país. Toda esta influência significou muito para o país, principalmente com a continuidade do sistema capitalista, um modelo econômico que visa à utilização da força repressiva e que priva as necessidades da classe trabalhadora a favor de um crescimento econômico e exclusão social.

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Contrapondo os dados não divulgados sobre a atuação da mulher negra, no Brasil, a primeira onda iniciou-se, praticamente com a Proclamação da República, em 1889 e prolongou-se até o dia 24 de fevereiro de 1932, onde o então Presidente Getúlio Vargas, assinou o Decreto nº 21.076, que dizia no Art. 2º “E’ eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na fórma deste Código”. Com a amplitude do movimento, “a luta pelo direito ao voto agregou muitas outras reivindicações, como por exemplo, o direito à educação, a condições dignas de trabalho, ao exercício da docência” (MEYER, 2013, p. 14). De acordo com Meyer (2013, p. 14), a segunda onda do movimento feminista, nos países ocidentais, iniciou-se entre os anos de 1960 e 1970 em um contexto de fortes debates e dúvidas “desencadeados pelos movimentos de contestação europeus que culminaram, na França, com as manifestações de maio de 1968”. No Brasil, o movimento estará associado “à eclosão de movimentos de oposição aos governos da ditadura militar53 e, depois, aos movimentos de redemocratização da sociedade brasileira, no início dos anos 80”. Considerando esta questão, SAYÃO (2005, p. 50) apud GROSSI, (1998, p.2) afirma que os estudos de gênero:


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[...] são uma das consequências das lutas libertárias dos anos 60, mais particularmente dos movimentos sociais de 1968: as revoltas estudantis de maio em Paris, a primavera de Praga na Tchecoslováquia, os black panters, o movimento hippie e as lutas contra a guerra do Vietnam nos EUA, a luta contra a ditadura militar no Brasil [...].

Este período foi extrema relevância para os movimentos, que naquele momento, começavam a discutir a teorização do conceito de gênero. A segunda onda veio reconhecer a necessidade da produção científica, explicar os modelos de subordinação, a qual as mulheres sofriam e qualificam as possíveis formas de intervenção, contaminando o meio intelectual. É, portanto, neste período que o movimento feminista, além de ir para as ruas em manifestações, marchas e protestos, começa a se expressar através de livros, jornais e revistas (LOURO, 2013). Obras clássicas como, por exemplo, Le deuxième sexe, de Simone Beauvoir (1949), The feminine mystíque, de Betty Friedman (1963), Sexual politics, de Kate Millett (1969) — marcaram esse novo momento. A partir destes acontecimentos as mulheres começaram a ser “sujeitos visíveis”, perante a sociedade. Louro nos explicará este momento histórico:

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É preciso notar que essa invisibilidade, produzida a partir de múltiplos discursos que caracterizaram a esfera do privado, o mundo doméstico, como o “verdadeiro” universo da mulher, já vinha sendo gradativamente rompida, por algumas mulheres. Sem dúvida, desde há muito tempo, as mulheres das classes trabalhadoras e camponesas exerciam atividades fora do lar, nas fábricas, nas oficinas e nas lavouras. Gradativamente, essas e outras mulheres passaram a ocupar também escritórios, lojas, escolas e hospitais. Suas atividades, no entanto, eram quase sempre (como são ainda hoje, em boa parte) rigidamente controladas e dirigidas por homens e geralmente representadas como secundárias, “de apoio”, de assessoria ou auxílio, muitas vezes ligado à assistência, ao cuidado ou à educação. As características dessas ocupações, bem como a ocultação do rotineiro trabalho doméstico, passavam agora a ser observadas. Mais ainda, as estudiosas feministas iriam também demonstrar e denunciar a ausência feminina nas ciências, nas letras, nas artes. (LOURO, 2013, p. 21)

Depois de reconhecerem que assumiam um papel social secundário, os movimentos feministas, lutaram pelos seus direitos e pela igualdade perante os movimentos de cunho libertário. Além disso, entre os anos 60 e 70 do século XX, começariam a questionar o pensamento hegemônico/dominante, portanto, o movimento pretendia também problematizar/ divulgar a ideia de uma mulher universal, entendendo que isso as aproximaria entre si na luta contra o androcentrismo e contra o patriarcado ainda tão presentes (SAYÃO, 2005). A partir do movimento feminista, novos movimentos de gênero foram constituídos, tais como os de gays e lésbicas, que vieram a se unificar ao movimento queer, que abrange os bissexuais, os transgêneros, os transexuais e outras minorias.

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MAIO DE 1968: REBELDIA E CONTESTAÇÃO

[...] A manifestação deu um chega pra lá na intolerância. O que se queria dizer, nas entrelinhas, era “deixa eu ser diferente, deixa eu ser do jeito que eu quiser”. [...] Entramos num novo século, não existe raça pura, nem o homem ideal, existe a diferença, era a mensagem subliminar. [...] O movimento gay é um dos movimentos da sociedade civil que mais crescem, no mundo. (FACHINNI, 2003, p. 83 e 84 apud PAIVA, 2000, s/p)

No Brasil, o movimento teve início na segunda metade dos anos 1970, e gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais foram alvo da violência e perseguição em todos os

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A mesmo tempo em que o movimento feminista ganhava força, o movimento LGBT, também se organizava, contra as discriminações e reivindicações de direitos aconteceram na Europa como reação às legislações que criminalizavam atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo, combatendo às autoridades e aos valores sociais e morais estabelecidos.

Estados brasileiros durante a ditadura civil-militar. Assim como em outras partes do mundo, o movimento LGBT foi reprimido e sufocado, tentando barra-los de se desenvolver. Mesmo assim, os movimentos se mobilizavam e se intensificavam nas lutas. Mas com o Ato Institucional nº 5, AI-5 (que dava poder aos governantes de punir os que fossem contra o regime), baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e Silva, qualquer tipo de possibilidade de formação de novos movimentos sociais, foram abafados. O termo homossexual denominado pela construção da homossexualidade, construída por determinados manifestações culturais e que possuem o objetivo “de defender e garantir direitos relacionados à livre orientação sexual e/ou reunir, com finalidades não exclusivamente, mas necessariamente políticas, indivíduos que se reconheçam a partir de qualquer uma das identidades sexuais tomadas como sujeito desse movimento” (FACHINNI, 2003, p. 84). O mês de Maio de 1968, deixou rastros culturais e introduziram novos interlocutores. O movimento LGBT e o feminista foram/são os pioneiros na discussão sobre a sexualidade. Nos anos 60, a ideia de uma revolução contra os elementos da sujeição e dominação. Constituía um dos objetivos levar o corpo e a sexualidade a patamares elevados.

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As ideias sobre a sexualidade. A politização da sexualidade. Sexo como desejo. Separação entre copulação e reprodução: o sexo por prazer. Liberação sexual das mulheres: o sexo antes do casamento, parceiros múltiplos. Igualdade no seio da família entre homens e mulheres. Questionamento à família patriarcal. Uso de métodos contraceptivos, aborto. A pornografia como arte (comercialização e mercantilização da sexualidade). Tratamento das doenças sexualmente transmissíveis. Mobilização dos homossexuais: visibilidade e crítica do preconceito. A homossexualidade entre homens e a liberação sexual das mulheres estavam postas na esfera pública como posições contestatórias. (FILHO, s/d, p.4)

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Questionar o ideal binário posto para uma sociedade e uma visibilidade social estava sendo posto pelo movimento LGBT que, além do respeito enquanto ser social exigia que os direitos também fossem respeitados e de fato concedidos. Sem o período de Maio de 1968, os movimentos feministas e LGBTs não seriam os mesmos. A partir daqueles momentos as abordagens realizadas seriam diferentes. Infelizmente, ainda se perpetuam preconceitos nas discussões em torno da homossexualidade. Há algumas décadas atrás a homossexualidade era entendida como um “desvio e transtorno sexual”. A orientação sexual era tida como objeto de estudo da Medicina que a via como uma doença. Depois de anos de lutas, os movimentos LGBTs começam a possuir visibilidade, representatividade, se aproximam da política e dos partidos. Entretanto, essas iniciativas de aproximação entre os atores sociais, ganha visibilidades, conquistas e projetos de combate à homofobia, isto é, um olhar de sujeitos de direitos. Atualmente, percebemos os avanços que já tivemos durante algumas décadas. Os movimentos sociais a frente de lutas e pautas socais, que visam um público que se via excluído de uma sociedade injusta e homofóbica.

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Vários foram os avanços realizados no Brasil em relação à conquista de direitos aos homossexuais: Atualmente, encontram-se regularizados diversos direitos tidos como essenciais para a garantia de uma vida digna aos cidadãos homossexuais, quais sejam: (a) a possibilidade de realização da cirurgia de mudança de sexo através do Sistema único de Saúde – SUS; (b) a adoção por casais homossexuais; (c) direito ao uso do nome social; (d) inclusão do(a) companheiro(a) na declaração do Imposto de Renda; (e) direito de homossexual receber pensão pela morte de seu cônjuge; (f) reconhecimento da União Estável de casais homossexuais; (g) possibilidade de constar o cônjuge homossexual na identidade militar; (h) licença-maternidade a pai adotivo gay, e; (i) o casamento civil gay. (WENDT, 2015, p. 25)

Pensando nisso, os movimentos feministas e LGBTs são representações de grande relevância no contexto mundial. Os esforços destes movimentos, aos poucos, têm conseguido gerar uma transfiguração no contexto social, tradicionalmente conservador e controlador. Infelizmente, o conservadorismo e modo individual de enxergar as ações cotidianas, faz com que a sociedade demore a alterar-se e a entender determinados processos que são construídos na vivência social. Por isso, é necessário que a luta destes movimentos, se intensifique de forma corajosa, política e social.

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A PERSPECTIVA QUEER EM GÊNERO E SEXUALIDADE Em todos os processos de construção os sujeitos estão expostos aos padrões normativos, estabelecidos na sociedade. São desafiados a permanecer e seguir padrões produzidos pela ordem religiosa, familiar, social, escolar, entre outros. Ao pensarmos na escola, poderíamos pensá-la enquanto um espaço normativo e do controle. Nossas instituições

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desenvolvem dispositivos opressores e que não privilegiam discussões acerca da diversidade sexual e dos gêneros. Contrapondo a este sistema, existem pessoas que não se ajustam aos padrões produzidos e fixados por determinados padrões culturais. É o caso da teoria queer, que busca reunir todos/as aqueles, que possuem suas identidades sexuais e/ou de gênero em diferença com as normas hetero/homossexuais, elevando uma crítica ao binarismo masculino/feminino. Mesmo não possuindo uma tradução exata em português, “queer pode ser traduzido por “estranho”, “ridículo”, “excêntrico”, “raro”, “extraordinário”, diz Louro (2004, p. 38)”. De acordo com Santana (2014), o termo e/ou/a teoria queer foi originalizado no artigo Queer Theory: Lesbian and Gay Sexualities, escrito por Teresa de Lauretis e publicado em 1991 na revista Differences. A autora se fundamentou nas teorias pós-críticas de Michael Foucault e Jacques Derrida, que estudam e compreendem questões de gênero, raça, etnia e sexualidade. No entanto, a autora decidiu renunciar ao conceito, por julgá-lo sem significado. Em 1994, a autora publica o artigo intitulado Habit Changes, no qual esclarece a sua ótica. Quanto à ― teoria queer, a minha insistente especificação lésbica pode ser encarada como um distanciamento daquilo que, desde que a sugeri enquanto hipótese de trabalho para os estudos gays e lésbicos nesta mesma revista, cedo se transformou numa criatura conceitualmente vazia da indústria editorial. (SANTANA, 2014. p. 93 apud LAURETIS, 1994, p. 297)

É a partir do final dos anos de 1980, que a termo queer é utilizado, através do avanço da epidemia HIV-Aids, nos Estados Unidos. Segundo Santana (2014) o senso comum apelidou o termo de “câncer gay”. O uso pejorativo do termo contribuiu para a propagação social da homofobia, que por sua vez, foi assumido por vertentes do movimento homossexual, para demonstrar sua oposição e contestação ao controle social normativo que se impunha. “Neste sentido, queer pode também designar alguém ou algo desestabilizador, num sentido mais amplo” (MISKOLCI; SIMÕES, 2007, p. 9). Logo, os estudos queer,

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Representam então uma crítica e uma transgressão à sociedade heteronormativa, destacando a realidade social e cultural de uma minoria excluída de lésbicas, gays, transexuais e transgêneros. Vale ressaltar que esta minoria lutava – e porque não dizer – ainda luta contra a condição de marginalizados sociais e o faz geralmente de forma radical, exagerada e até mesmo excêntrica. Assim, ser queer é pensar na ambiguidade, na multiplicidade e na fluidez das identidades sexuais e de gênero, mas, além disso, também sugere novas formas de pensar a cultura. (SANTANA, 2014, p. 94)

A citação acima esclarece que o movimento queer se opõe ao modelo da heternormatividade, no qual os sujeitos normalizados são benquistos. Agora, se analisarmos o todo, dentro do movimento gay, este modelo segrega e exclui as travestis, transexuais,

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transgêneros e o não branco. Qualquer deslocamento não normativo era mal visto. Colling (2016, p. 11), esclarece que em 1990 grupos pertencentes ao movimento queer, realizavam nas ruas de Nova York, diversas intervenções, além de externar o descontentamento com movimento gay da época que na “busca de aceitação, defendia que LGTBs se comportassem como os heterossexuais [...] ou até mesmo alegando que nascemos heterossexuais ou homossexuais”. Dessa forma, percebemos que os estudos queer possuem divergências com os estudos de gênero, vistos que estes estudos, tendem a focalizar na composição/ reforço do binarismo e ao pressuposto heterossexista como explicita os estudos de Miskolci (2009). Para nos debruçarmos sobre a teoria queer, poderíamos criamos diálogos com diversos/as autores/as: Teresa de Lauretis, Judith Halberstam, Paul Beatriz Preciado, entre outros/ as, que deram um novo significado ao termo, explorando a teoria queer enquanto práticas que se opõem a normatividade construída socialmente. Judith Butler54 retoma a proposta de Foucault, ao analisar a sexualidade enquanto um dispositivo histórico, acrescentando ao conceito um olhar sobre “a performatividade que deve ser compreendida não como um “ato” singular ou deliberado, mas, ao invés disso, como a prática reiterativa e situacional, pela qual o discurso produz os efeitos que ele nomeia” (Butler, 2013, p. 154). Pensar na teoria queer dentro do ambiente escolar é ajudar a escola a enfrentar as violências e a propagação dos papéis de gênero, atribuídos aos estereótipos produzidos socialmente.

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DIÁRIO DE VER DE COLAR DE CAMPO DE OBSERVAÇÃO DE PESQUISA

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DIÁRIO DE VER DE COLAR DE CAMPO DE OBSERVAÇÃO DE PESQUISA Conrado Bueno55

Diários de bordo são percursos de narrativas que passam e perpassam por nossas vidas durante momentos, espaços, tempos, períodos em que algo que nos afeta e se destaca enaltecidamente e que nos produz afetos, e com esses afetos pensamos para com os mesmos e manifestamos as coisas, o mundo das coisas das mais diversas linguagens, das mais diversas escritas. Fotos, rabiscos, traços, linhas, riscos, palavras, papéis, dobraduras, dizeres, canetas, cartolinas, frases, murais, parágrafos, desenhos, imagens, vídeos, audiovisuais, virtualidades, hipertextos, textos, tessituras, artesanatos, parafusos, brinquedos, brincadeiras, jogos, rodas, cadeiras, paredes, ruas, esquinas, encruzilhadas, tambores, cordões, cordas, pensamentos, imaginações, sonhos, pesadelos, livros, poemas, poesias, músicas, cantos, contos, pontos, danças, pinturas, costuras, posturas, compostagem, composteira, núcleos, muralhas, guerras, conflitos, consensos, críticas, polêmicas, maracutaias, politicagem, universidades, sementes, feijão, arroz, lentilha, reivindicações, desabafos, manifestos, admirações, experiências, insperiências, inspirações, expirações, respirações, esquadros, quadros, alguém que se foi, alguém que vai vir, alguém que está, alguém que atravessou, algo que perpassou, alguma coisa de um sei lá o quê, dejetos, animais de estimação, tatos, contatos, encostos, jeitos, maneiras, envolvimentos, ressentimentos, afetações, artesanias, artes?, educação física?, filosofia?, sociologia?, do campo!, em suma, ou seja, enfim, a vida. Compartilhar tudo isso e mais tudo disso em coletivos, com as turmas da licenciatura do campo, e não somente claro, para nossas ressignificações e reflexões em conjunto e assim nos (des)organizarmos em outros territórios de nós-outros, nosotros, nós, eu, você, tu, eles, elas, nós, vós, ela, ele. Compartilhar é uma oportunidade, uma permissão que o espaço acadêmico nos oferta, mas que não se dá como questão de benevolência, mas sim como direito, dever e devir de um percebimento de outros mundos de ser e estar com e assim, em realidades utópicas e utópicas realidades, uma (im)?possível transformação da ordem das coisas, as coisas em ordenamentos, percebimentos, conhecimentos e entendimentos de o que nos é dado e colocado. Desastre. Mudança de astros. Uma formatação diferente das constelações num céu invertido, só que as estrelas caminham, se deslocam, percorrem. Tentam flutuar, voar. O céu não é feito de ar, mas de barro, cimento, terra, grama, gotas de suor em encon-

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55 CONRADO ALENCASTRO BUENO. Licenciado em Educação Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bacharel em Educação Física pela UFRGS. Ex-residente da Residência Integrada Multiprofissional em Saúde Mental Coletiva pela UFRGS. Especialista em Educação em Saúde Mental Coletiva pela UFRGS. Especializando em Mídias na Educação pelo IFSUL. Especializando em Educação: Espaços e possibilidades para a Formação Continuada. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, atuando principalmente nos seguintes temas: práticas corporais, lazer, educação e saúde mental. Integrante do Projeto de Extensão intitulado Geringonça [Pedagogias da Diferença. Ecologias da Vida] coordenado pela Profª Drª. Daniele Noal Gai.

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Grato e Atenciosamente Quando um outro alguém

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tros impactantes gravitacionais com os planos terrenos. A nuvem é de fumaça, ácida. Os prédios são de não sei o que. E eu alguém que está aqui a ler esse texto, se possível, nesse exato instante.

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SECUNDARISTAS OCUPAMOS DURANTE 38 DIAS

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SECUNDARISTAS - OCUPAMOS DURANTE 38 DIAS Luiza Ninov56 Lucas Fagundes57

RESUMO Durante as ocupas vivi tempos bons, estressantes, extenuantes, mas se precisasse, passaria por tudo novamente. No Brasil hoje se fala sobre organizar a resistência, realmente, há essa necessidade, e os secundas mostram o caminho. “Transformar a educação é urgente! Reformá-la com urgência e via MP é inconsequente!” Precisamos debater sobre o MP, precisamos debater sobre a reforma da educação, precisamos estimular jovens a pensar e questionar, precisamos ter pensamento crítico. Somos aqueles que resistem, aqueles que lutam, estamos aqui, seremos ouvidos e não desistiremos até conquistar todos os nossos direitos! PALAVRAS-CHAVES: Resistência. Medida Provisória. Educação. Ocupação.

SECUNDARISTAS - FOR 38 DAYS, WE OCCUPIED, FOR 38 DAYS, WE

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ENGAGED ABSTRACT Throughout the occupations I lived good moments, stressed, extenuating, but if I needed to, I would do it all again, with no hesitation. Nowadays in Brazil we talk about organizing a resistance, and in truth we have that necessity, and the secundarists show us how it should be done. “To change education is urgent! To reform it urgently and through provisory amendment is inconsequential!” We need to debate about provisory amendment, we need to debate about the educational reform, we need to incite the youth to think and question, we need to have critical thought. We are those who resist, those who fight, we are here, we will be heart and we will neither falter nor give up before we claim all of our rights! KEYWORDS: Resistance. Provisory Amendment. Education. Occupation. Sou Luiza, hoje tenho 17 anos e sou aluna do Colégio Estadual Florinda Tubino Sampaio. No dia 14 de maio de 2016, com 16 anos eu ocupei minha escola, na época o Colégio Estadual Paula Soares, eramos cerca de 40 jovens determinados, indignados, dispostos a derrubar um sistema educacional falido, um governador corrupto e irresponsável e revolucionar a história da educação pública, salvar nossa escola, salvar a educação pública e de qualidade não somente para nós, mas principalmente para as futuras gerações. 56 Egressa do Colégio Estadual Florinda Tubino Sampaio, estudantes de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 57 Estudante secundarista, 17 anos e cursando o 3º ano de Ensino Médio. Ano passado, ocupou o Tubino e fez parte do Cômite das Escolas Independentes, que representou o interesse dos estudantes que eram contra a burocracia das entidades e defendiam a horizontalidade dentro das escolas e como novo método pro sistema educacional.

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e alegrias de maneira muito intensa com pessoas que em maioria tinhamos acabado de conhecer. Adolescentes de 13, 14, 15, até 18 anos ensinaram ao país uma nova forma de fazer política e de reivindicar seus direitos, tomar de volta o que é nosso que por muito tempo o governo nos tirou! O movimento dos secundaristas revelou a demanda por participação dos alunos na vida escolar. Nós somos os maiores afetados quando se trata de mudanças e reformas na educação, temos muita a dizer sobre nossa a escola e queremos ser ouvidos! Inspirávamos na Revolução dos Pinguins de 2006, mas construímos nossa própria história! Saímos do movimento mais experientes, exaustos, porém mais contestadores e desobedientes! Organizados, mobilizados e dispostos a não deixar que o incêndio apague e que a luta canse, dispostos a conscientizar ainda mais estudantes sobre a realidade que o governo nos submete e a unificar cada vez mais forças para lutar contra isso. Hoje, outubro de 2016 existem mais de 500 escolas ocupadas no Paraná contra a Medida Provisória 746 de 23 de setembro de 2016, anunciada pelo Governo Temer que vai reformar o Ensino Médio sem que haja diálogo algum com a comunidade escolar começará a ser implementada já a partir do ano que vem em todo o país. O ministério da Educação afirma que a reforma do Ensino Médio irá aumentar o número de escolas em período integral e oferecer uma formação voltada aos interesses dos alunos, que poderão optar por uma das cinco áreas: ciências humanas, ciências da natureza, linguagens, matemática e formação técnica profissional. As polêmicas envolvem a desobrigatoriedade das disciplinas de Artes, Educação Física, Sociologia e Filosofia, disciplinas que estimulam o pensamento crítico. Essa reforma deve ser pensada e muito bem debatida com quem vive dentro do sistema educacional atual no Brasil, pessoas que conhecem a realidade das escolas brasileiras, professores, estudantes e coordenadores. A partir da implementação da MP 746 carga horária anual saltará de 800 horas aula por ano, o que equivale a cinco horas de aula por dia, para 1.400 horas aula por ano, ou

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Com nada além de muita vontade e muito debate ocupamos durante 38 dias, 38 dias convivendo com o constante desconhecido, sem ter a menor ideia do que esse ato viria a se tornar, nós nos organizamos, estudamos, discutimos e depois que percebemos que o que estava sendo feito era um ato político que ficaria para história nós resistimos, resistimos à repressão, à violência mental e física, à fome, ao frio, ao desconforto, ao medo, às ameaças, resistimos ao Estado de repressão! Aqueles colegas que para muitos de nós nunca existiram, hoje alguns eu tenho o orgulho de chamar de irmãos, aquele prédio que antes nao passava de uma estrutura velha que eu passava algumas horas da semana por imposição, passou a ser minha casa, nós éramos mais no que nunca parte daquela instituição, que muito além de um prédio velho, era uma instiuição que contava uma história. Tivemos a oportunidade de por em pratica tudo o que futuramente iriamos estudar, construímos ali uma mini sociedade auto gestionada, cada um de nós colaborava com o que sabia, ensinava e aprendia, crescemos uns com os outros em poucos dias o que não crescemos em anos dentro da escola, vivemos momentos de tensão, medo, paixão, odio

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sete horas aula por dia. O Governo Federal espera que tenhamos que ficar sete horas por dia em uma sala de aula sem a menor infraestrutura com a justificativa: “para educação na há verba”. Sete horas para um estudante que hoje passa dias sem almoçar pois o intervalo entre a saída da aula e a ida para o estágio é muito curto vai consequentemente aumentar a evasão das escolas o que para um governo que tenta nos transformar em operários alienados é excelente, educação e pensamento crítico derruba o estado. “Transformar a educação é urgente! reformá-la com urgência e via MP é inconsequente!” Precisamos debater sobre a MP, precisamos debater sobre a reforma da educação, precisamos estimular jovens a pensar e questionar, precisamos ter pensamento crítico. Somos aqueles que resistem, aqueles que lutam, estamos aqui, seremos ouvidos e não desistiremos até conquistar todos os nossos direitos!

#OCUPA

Muitas pessoas já me questionaram sobre o legado que a ocupação deixou, sobre o aprendizado, a maturidade e acima de tudo a consciência política. É importante ressalvarmos que sim, muitas pessoas ocupavam por modismo, desleixo ou quem sabe por se sentir revolucionário. Revolução é muito mais do que só 30 dias dormindo na escola, é muito mais do que comer massa com salsicha durante 1 semana, isso é ainda muito pouco. Por mais que seja pouco, esse pouco foi o começo, foi o gatilho pra uma renovação na militância estudantil. Durante as ocupas vivi tempos bons, estressantes, estenoantes e, se precisasse passaria por tudo novamente. No Brasil hoje se fala sobre organizar a resistência, realmente, há essa necessidade e, os secundas mostram o caminho. Existe uma frase que marcou minha época pós ocupação e é exatamente assim: “O Estado não dá educação porque educação derruba o Estado.” É interessante refletirmos sobre o que nós vivemos alguns meses atrás, interessante notar o que fez com que ocupássemos as escolas e lutássemos por mais direitos. Se a reflexão for a nosso favor, nunca, descarte uma nova onda de ocupação. Se for contra, também não descarte, secundas são imprevisíveis.

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#SECUNDAS

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Espaço Livre 3 CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA

#OCUPAFACED: O EMPODERAMENTO FEMININO. A EDUCAÇÃO POPULAR. AUTONOMIA ESTUDANTIL

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FOTOCARTOGRAFIAS II CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA

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59 Pedagoga graduada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Especialista em Saúde Mental Coletiva. Email: ab_miranda@hotmail.com.

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60 Egressa do Colégio Estadual Florinda Tubino Sampaio, estudantes de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


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Informe C3, Porto Alegre, v. 09, n. 2 (Ed. 19), Jun/Jul/Ago/set - 2017. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com

Foto: Wagner Ferraz

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