C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
INFORME
“Dizer que são coisas informes é dizer não que não têm formas, mas que suas formas não encontram em nós nada que permita substituí-las por um ato de traçado ou reconhecimento nítido. E, de fato, as formas informes não deixam outra lembrança senão a de uma possibilidade… “(VALÉRY, 2012, 79) 2
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
edição 20 ano 10, nº 01
artigos C3
3
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
EXPEDIENTE Coordenação Geral: Wagner Ferraz Editores: Wagner Ferraz e Renata Sperrhake Editores assistentes: Elisandro Rodrigues e Gilberto Silva Santos Direção de Arte: Anderson Luiz de Souza e Wagner Ferraz Organização: Processo C3 - Grupo de Pesquisa Estudos do Corpo Projeto Gráfico e diagramação: Wagner Ferraz Edição e arte da capa: Anderson Luiz de Souza Conselho Editorial: Prof. Dr. Alexandre Rocha da Silva (UFRGS/RS); Prof. Dr. Samuel Edmundo Lopez Bello (UFRGS/RS); Prof. Dr. Luis Henrique Sacchi dos Santos (UFRGS/RS); Profª Drª Kathia Castilho (UAM/SP); Prof. Dr. Luciano Bedin da Costa (UFRGS/RS); Profª Drª Marta Simões Peres (UFRJ/RJ); Profª Drª Fabiana de Amorim Marcello (UFRGS/RS); Prof Dr Airton Tomazzoni (UERGS/RS); Profª Drª Marilice Corona (UFRGS/RS); Profª Drª Sayonara Pereira (USP/SP); Profª Drª Magda Bellini (UCS/RS); Prof Dr Celso Vitelli (UFRGS/RS); Profª Drª Daniela Ripoll (ULBRA/RS); Prof. Ms. Leandro Valiati (UFRGS/RS); Profª Ms Luciane Coccaro (UFRJ/RJ); Profª Ms Flavia Pilla do Valle (UFRGS/RS); Prof Ms Camilo Darsie de Souza (UNISC/RS); Profª Ms Eleonora Motta Santos (UFPEL/RS); Profª Ms Giana Targanski Steffen (UFSC/SC); Ms Zenilda Cardoso (UFRGS/RS); Profª Ms Miriam Piber Campos (INDEPIN/RS); Ms Luciane Glaeser (RS); Ms Jeane Félix (UFRGS/RS); Ms Alana Martins Gonçalves (UFRGS/RS); Profª Ms Sabrine Faller (INDEPIN/RS); Ms Luiz Felipe Zago (ULBRA/RS); Ms Carla Vendramin (UFRGS/RS); Prof Esp Anderson de Souza (FEEVALE/RS); Prof Ms. Wagner Ferraz (UFRGS/RS); Profª Drª Luciana Éboli (UFRGS/RS); Profª. Drª. Daniele Noal Gai (FACED/UFRGS); Profª. Drª. Paola Basso Menna Barreto Gomes Zordan (IA-PPGEdu/UFRGS); Profª. Drª. Cibele Sastre (UFRGS/RS); Profª. Drª. Cibele Sastre (UFRGS/RS); Carlise Scalamato (UFSM/ RS); Samira Trancoso (FEEVALE e ESPM/RS); Rossana Della Costa (UFSM/RS).
Informe C3 / v. 10, n. 01 (edição 20), Jan/abr, 2018. Informe C3. – Porto Alegre, RS: Processo C3 e Estudos do Corpo, 2018. On line. 340 p. Disponível em: www.informec3. weebly.com ISSN: 2177-6954 1. Artes. 2. Educação. 3. Corpo. 4. Cultura. 5. Pesquisa. 6. Moda. 7. Saúde. 8. Ensino CDD: 301.2 370.157 793.3 646
Classificação: 18 anos O conteúdo apresentado pelos colaboradores (textos, imagens...) não são de responsabilidade do Processo C3 e da Revista Eletrônica Informe C3. Nem todo opinião expressa neste meio eletrônico ou em possível verão impressa, expressam a opinião e posicionamento dos organizadores, editores e responsáveis por este veículo.
4
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Ano 10- n. 01 - Edição 20 Jan/Abr - 2018 CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
INFORME C3
é um periódico técnico-científico e artístico registrado com Número Internacional Normalizado para Publicações Seriadas (International Standard Serial Number) - ISSN: 2177-6954. Voltado para publicações no campo das ARTES (em geral – dança, teatro, música, performance, circo, visuais, entre outras...) e EDUCAÇÃO com desdobramentos e atravessamentos com outras áreas de conhecimento como Educação Física, Psicologia, Saúde Coletiva entre outras... Publicada semestralmente e disponibilizada para visualização e download gratuitamente. Tem os Estudos na área da Educação e Artes como foco de suas edições dialogando com diferentes áreas de conhecimento envolvendo Dança, Artes Visuais, Teatro, Música, Antropologia, Comunicação, História, Sociologia, Cultura, Moda e outras com o objetivo contribuir para a difusão de conhecimentos e experiências proporcionando espaço para publicações de textos livres, artigos, resenhas, entrevistas, poemas, críticas, crônicas, fabulações, desenhos, fotografias e produção visual em geral. Criado e desenvolvido pelo Processo C3 – Grupo de Pesquisa, que publicou sua 1ª edição em março de 2009, conta com a colaboração de pesquisadores e artistas de diferentes lugares do Brasil que participam voluntariamente enviado suas propostas e trabalhos. Além de convidados que contribuem com números específicos de acordo os temas de cada edição.
CAPA Foto: Wagner Ferraz Arte da Capa e tratamento de imagem: Anderson de Souza Local: Portugal 2018
Porto Alegre/RS
artigos
Contatos: submissao.informec3@gmail.com www.informec3.weebly.com www.processoc3.com
Informe C3 - Periódico Eletrônico Processo C3
Porto Alegre
C3
5
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
6
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
artigos C3
7
Foto: Wagner Ferraz
ENTREVISTA ENQUANTO AS COISAS NÃO SE COMPLETAM DANÇA, TÉCNICA ALEXANDER E PROCESSOS DE CRIAÇÃO Entrevista com Michel Capeletti por Alyne Rehm ....................... 13
ARTIGOS ENTRE DEUS E O DIABO: RELAÇÕES ENTRE NARRAÇÃO E EXPERIÊNCIA Ananda Vargas Hilgert ........................28 BOA PRÁTICA PEDAGÓGICA E O BOM PROFESSOR DE MATEMÁTICA: uma constituição moral através de jogos de verdade Grace Da Ré Aurich .............................44 TRAÇANDO CAMINHOS DANÇANTES NAS RUAS DE PELOTAS Carmen Anita Hoffmann Débora Souto Allemand ......................66 A CIÊNCIA DA VIDA E A NATURALIZAÇÃO DA HISTÓRIA: A CONSTITUIÇÃO DA BIOLOGIA A PARTIR DA PERSPECTIVA DE MICHEL FOUCAULT André Morando, UFRGS Rochele de Quadros Loguercio Aline Ferraz da Silva ............................ 84 O CORPO QUE FALA É O CORPO QUE ESCUTA. Candomblé ketu saber do corpo oralizado. ¨Folclorização¨ do candomblé poder sobre o tradicional Luiz Fernando da Silva Anastácio ... 102 A TECNOLOGIA NO DESIGN DE SUPERFÍCIE EM TÊXTEIS Christie Jaconi Meditsch, UFRGS ..... 120
ESPAÇO LIVRE FALTA DE RESPEITO Gui Malgarizi ............................ 226 O SUCESSO DE REPRISES: UM ESTUDO DE CASO DE “A USURPADORA” E O SBT Jose Luiz Pereira de Arruda, UNIPLAC Ivan Cláudio Siqueira de Moraes Gisele Cristiane Urnau dos Prazeres Luiz Henrique Zart .............................. 140 REVERBERAÇÕES UTERINAS: PROCESSO DE CRIAÇÃO SANTO/PROFANA NO ESPAÇO INCORPORAL DA INSTALAÇÃO PERFORMÁTICA Daniel Aires ........................................ 158 NDO: IMBRICAÇÕES POÉTICAS PARA PENSARMOS UMA DRAMATURGIA DA DANÇA NO/DO TEMPO-GERÚNDIO Thiago Torres ...................................... 178 DANÇA DO VENTRE: O MOVIMENTO DO CAMELO E O CORE Joelene de Oliveira de Lima Carla Vendramin ............................... 198 ARTE, FOTOGRAFIA E MEMÓRIA Cernaide Hubler ................................ 212
LÃ E ÁGUA Aline Daka ................................ 232 MOVIMENTO ENTRE: Documentos de Transição, performance-exposição de Michel Capeletti e Marina Camargo Alyne Rehm ............................. 242 EXPERIMENTOS COM DESENHOS DE MODA Anderson Luiz de Souza .......... 248 SILÊNCIO Carla Vendramin Lu Trevisan ................................ 280 CORPO BRINCANTE Guilherme Cruz ........................ 290 ENSAIO PERFORMÁTICO “REVERBERAÇÕES UTERINAS” Daniel Aires .............................. 294 TRANSTEXTO Dan Porto ................................. 304 CHÁ DA NOITE Guedes Mechisso ................... 316 CORPO FLOR Francine Cezar Bandeira ....... 320
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
ENTREV 10
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Foto: Wagner Ferraz
C3
11
artigos
VISTA
C3
entrevista
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
EN TRE VIS TA 12
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
ENTREVISTA CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
ENQUANTO AS COISAS NÃO SE COMPLETAM
com MICHEL CAPELETTI1 por Alyne Rehm2
entrevista
DANÇA, TÉCNICA ALEXANDER E PROCESSOS DE CRIAÇÃO
1 Michel Capeletti é bailarino e professor de Técnica Alexander formado pela Escuela de Técnica Alexander de Buenos Aires. 2 Alyne Rehm é artista-pesquisadora em dança, doutoranda em Artes Cênicas (PPGAC/ UFRGS) e graduanda em Dança (ESEFID/UFRGS). Contato: alyne.rehm@gmail.com C3
13
C3
entrevista
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Enquanto conversamos, em um sábado chuvoso do mês de agosto de 2016, entre algumas xícaras de chá, Michel Capeletti me conta sobre sua trajetória nas artes cênicas. Do início com o teatro, da passagem por diferentes técnicas de dança, da mudança para Buenos Aires, da formação em Técnica Alexander. Dos processos, das estratégias e das referências para a criação do espetáculo em que está trabalhando. Do que tem feito Enquanto as coisas não se completam. Alyne: Tu poderias falar um pouco de ti, da tua trajetória nas artes? Michel: Me interesso pelo movimento. Cada vez mais. Sempre me interessei pelo movimento. Começo a entender melhor isso assim, dessa forma, porque comecei pelo teatro. Comecei treinando teatro. Em 1996, entrei num grupo de investigação e pesquisa em antropologia teatral, com Roberto Birindelli, onde fiquei até 1999. Foi uma experiência superintensa, ainda mais para um adolescente: todos os dias, de segunda a sexta, de noite... E já lá, buscando a formação de ator, eu identificava algo muito forte em mim em relação ao movimento, pois o que eu mais gostava de fazer era me mover. O trabalho era baseado em princípios e conceitos conhecidos através das práticas do Eugênio Barba, então a noção de treinamento era muito forte. A gente fazia, fazia, fazia, só que não era aquilo em si que a gente estava fazendo, pois existia a preocupação de em como levar aquele treinamento, aquilo que fazíamos, para o texto, o personagem, a máscara. Trabalhávamos muito com a máscara da commedia dell’arte, ou seja, era um treinamento mais voltado para colocar a máscara, para a cena, para alguma ideia de cena. E, já nesse momento, eu me dava conta, sem conseguir formular dessa maneira, obviamente, pois essa é uma formulação recente, de que eu já me interessava muito mais em mover do que em treinar para alguma coisa, me interessava por questões de movimento. Era o movimento em si que me interessava. E me lembro que, lá, com 16 anos, quando comecei no teatro, as propostas eram compradas com muita facilidade. Lembro de uma sensação de me mover com muito prazer, de gostar muito daquilo que estava fazendo. Então, falando de mim, posso dizer que sou uma pessoa que gosta muito de se mover.
14
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Michel: Sabe o que a gente sente quando está improvisando, quando está dançando?! Do que acontece no corpo?! De um movimento que leva a outro?! Essa conexão intensa com algumas ideias, com algumas propostas?! Aí, para mim, está o movimento, pois me lanço para o movimento a partir de ideias, de propostas, ou, simplesmente, entro para me mover e deixo que as ideias aconteçam. Isso começa a ser fácil pela experiência que se está passando. E pelo trabalho técnico que se tem, obviamente. Mas me deixar ser levado por um estado, por um interesse, por uma ideia, por uma proposta, gerando fluxo, faz com que cada vez menos as coisas se separem.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Alyne: Não consigo deixar de observar o quão presente é o movimento, o mover-se, na tua fala. Com isso, te pergunto: tu conseguirias definir o que é movimento, o que é mover-se para ti?
Alyne: Movimento como algo que pode partir de uma ideia assim como pode gerar uma ideia... Michel: Exato! Mas mais do que isso: não existe uma hierarquia, não existe um lugar de começo, não existe um ponto de origem. (Tudo vai ficando meio importante quando tu falas, né?! Não sei se é tudo isso, se é tão assim... Risos).
Alyne: E quando a dança surge, mais pontualmente?
entrevista
Michel: Como comentei no começo, me interesso pelo movimento desde sempre e, por isso, me entendo dançando desde o início. E me entendo muito apaixonado pelo movimento. Passei por muitos lugares nesses vinte anos trabalhando com movimento. Isso porque, ao sair do trabalho com a antropologia teatral, eu já tinha formulado que o que me interessava era o movimento, era a dança, então, eu deveria dançar. Não deixei de fazer teatro. Segui trabalhando como ator, mas com a ideia de dançar, de adquirir habilidades em dança. A minha chegada em aulas de dança foi em 2000, com a Jussara Miranda. Ela tinha um espaço chamado Engenho da Dança, onde tive aulas de diferentes técnicas com professoras incríveis como Lu Dariano, Didi Pedone e a própria Jussara. Depois, nessa mesma época, tive um encontro muito forte com Alexandra Dias e André Mubarack. Desse encontro surgiu o PROJETO MAX, que também foi um espaço
C3
15
de afirmação de uma ideia de dança, de interesse pela dança e, principalmente, de compreensão do meu corpo como sendo o corpo de um bailarino. Trabalhamos de 2003 a 2008, em Porto Alegre/RS, e sinto que trouxemos várias questões importantes para a dança que se fazia naquele momento na cidade. Outros encontros surgiram a partir do PROJETO MAX com pessoas com quem sigo até hoje: Tatiana da Rosa, Helô Gravina, Dani Boff. Passei por muitas disciplinas, por muitas técnicas, mas não posso dizer que tenho uma técnica de dança em especial. A técnica na qual me formei é a Técnica Alexander, que não é uma técnica de dança.
Alyne: Uma provocação: dança e educação somática. Michel: Morei no Rio de Janeiro entre 2000 e 2003 e quando voltei a Porto Alegre o teatro foi ficando em segundo plano em relação ao meu interesse pela dança. E a dança que me atravessou já estava muito mergulhada no universo da exploração somática. Então, entendo movimento e dança a partir desse lugar, pois sempre trabalhei com dança através de uma perspectiva somática. Elas estão coladas. É a dança em si mesma. É a dança que eu sei fazer. Talvez por isso chegou um momento em que senti necessidade de buscar uma formação específica, já que não fazia sentido, para mim, ficar chamando tudo de educação somática.
Alyne: Por que a formação em Técnica Alexander? Michel: Nessas investigações com a dança, trabalhávamos muito com a ideia de movimento que inicia pela cabeça, falávamos muito sobre a relação entre o crânio e a primeira vertebra, e, por alguma razão nesse universo somático, sempre identifiquei nas minhas explorações procedimentos como sendo da Técnica Alexander, como se fosse essa a referência mais forte. Depois, quando comecei a pesquisar melhor a estrutura das formações em algum desses métodos, fiquei muito interessado por como se organiza a formação para professores de Técnica Alexander.
C3
entrevista
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
16
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
entrevista C3
17
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
C3
entrevista
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
Alyne: Por que em Buenos Aires? Michel: Era o único lugar na América Latina que, naquele momento, tinha escola de formação para professores em Técnica Alexander. E, também, eu sentia que não era o momento de ir para os EUA ou para a Europa para me formar. Buenos Aires sempre me fascinou. É uma cidade muito interessante, assim como as pessoas e arte que se constrói por lá.
Alyne: Outra provocação: tu identificas diferenças entre Brasil e Argentina, mais especificamente entre Porto Alegre e Buenos Aires, quando o assunto é justamente esse, dança e educação somática? Michel: Sim, sim. Buenos Aires é um lugar muito favorável para essa articulação, dança e educação somática. Aqui, em Porto Alegre, percebo que a gente tem essa tinta forte “educação somática”... E aí tudo entra nesse caldo. Talvez porque quase todas as formações dessas técnicas acontecem em São Paulo. Já lá, em Buenos Aires, o que acontece é o trabalho com técnicas específicas. Lá, inclusive, não se encontra essa ideia de educação somática como aqui. O termo “educação somática”, lá, é usado por pessoas que trabalham com Técnica Alexander, com BMC, com Feldenkrais, com Antiginástica, com Ginástica Holística, e que se nomeiam educadores somáticos. Ou seja, as pessoas trabalham com técnicas determinadas.
Alyne: Não sei se tu concordas, mas me parece que aqui se dá uma confusão: a educação somática quase como uma técnica, e não como uma abordagem, e que, dentro dessa abordagem, existem técnicas específicas. Michel: Podemos pensar em técnicas de educação somática e a partir disso pensar em um conjunto de técnicas. Existem, aqui, algumas formações em educação somática, e confesso que não tenho ideia do que isso seja. De verdade. Não quero que a minha fala pareça preconceituosa. Não é isso. É mesmo um desconhecimento da minha parte. Então, fica a pergunta: o que é uma formação em educação somática? E (me) pergunto isso porque a minha formação em Técnica Alexander é muito específica e intensa, no sentido de que é preciso transformar muitas coisas em si mesmo para, só então, poder falar
18
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Alyne: Como assim?
Alyne: O que que a gente fala quando fala em dança contemporânea? Michel: A gente fala de uma expansão de disciplinas que talvez entrem nesse nome “dança contemporânea” por falta de um outro nome, ou que talvez entrem nesse nome porque ele basta para dizer justamente dessa multiplicidade de disciplinas em colaboração. E também penso que a gente fala de uma ideia de corpo no espaço, de movimento no espaço.
entrevista
Michel: Eu explico: em algum momento, sim, falamos nelas... para divulgarmos o nosso trabalho, para mostrarmos com o que estamos trabalhando, de que lugar partimos. Por exemplo: estou trabalhando com Técnica Alexandre e improvisação... Vamos citar a técnica com que trabalhamos para situar o público que vem para as nossas aulas. Mas quando entramos em um processo de criação, não existe a necessidade de falarmos na técnica, qualquer que seja. Isso porque estamos em um ambiente que respira isso de uma maneira tão profunda que já não é nem mais dito... (Pausa). E, com isso, comecei a entender – de 6 anos para cá – que não é fácil falar de dança contemporânea, que não se pode falar em dança contemporânea sem se pensar em uma trajetória de muitos cruzamentos dentro da história da dança. Porque... O que que a gente fala quando a gente fala em dança contemporânea? É muito amplo...
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
sobre essa técnica, sobre esse trabalho. É preciso desconstruir muitas coisas para, só depois sair, trabalhar, dar aulas. E essa é uma das características comuns a várias dessas disciplinas somáticas. E, quando vejo essa questão da educação somática apresentada de forma tão ampla, fico pensando como é o caminho que percorre alguém que faz uma formação em educação somática. Me pergunto: Como é a vivência pessoal de um educador em educação somática? O que que ele faz? São perguntas... Coisas que eu não tenho resposta. Mas, basicamente, a diferença que sinto é a de que lá essas abordagens estão muito bem estabelecidas. Tão bem estabelecidas que não se fala mais nelas.
C3
19
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Alyne: E a tua dança, agora falando dos processos de criação do espetáculo Enquanto as coisas não se completam? Michel: Esse trabalho está muito vinculado à minha formação em Técnica Alexander. Mas, ao mesmo tempo que ele tem esse vínculo, também tem isso, que talvez venha justamente da minha vivência com dança e com práticas somáticas em Buenos Aires de que falávamos antes, de eu não querer mais falar em Técnica Alexander. E esse, para mim, é o momento em que o trabalho fica mais forte, pois a técnica está presente no trabalho porque ela está presente em mim. Ou seja, não estou colocando uma técnica dentro de outra, até porque isso seria um esforço desnecessário e improdutivo; estou colocando em convivência a dança e a Técnica Alexander. E essa convivência se dá porque sou eu, porque elas me constituem. Assim de simples e complexo... A convivência entre Técnica Alexander (e cada vez mais desejando a Técnica Alexander e não a educação somática) e improvisação, entre Técnica Alexander e criação em dança para mim já não precisa mais ser dita.
C3
entrevista
Alyne: Tu conseguirias me falar um pouco mais dessa convivência entre Dança e Técnica Alexander? Michel: Tem essa cosia meio estranha no que estou te falando, de que, ao mesmo tempo em que estou lidando com Técnica Alexander não estou sublinhando, marcando isso dentro do trabalho. A minha proposta primeira, a minha pergunta primeira, quando formulei o projeto em 2013, era super ampla: “o que acontece quando eu inibo um movimento e deixo que outro me atravesse?”. Então, passo o tempo todo buscando observar, identificar as possibilidades de dizer não para um movimento, de inibir um movimento e ver o que que acontece, ver que outro movimento surge. E inibir aqui não é travar; inibir é suspender um movimento e deixar que outro movimento me leve para outro lado. Isso está diretamente relacionado com a Técnica Alexander, com a edição que o próprio Alexander propõe: edição como procedimento. O que acontece se não faço uma coisa que me propus a fazer e deixo que outra coisa me atravesse?
20
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
entrevista C3
21
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
C3
entrevista
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
Alyne: Como essa pergunta ganha forma no trabalho? Michel: Teve toda uma questão de atraso na liberação do financiamento que refletiu no andamento do trabalho. Cheguei a ir para a sala de ensaio em Buenos Aires quando soube que o financiamento sairia, ensaiei por mais ou menos um mês e meio, mas não pude sustentar porque tinha que trabalhar. Mas o processo de criação em si vem muito antes disso. Ele vem dessa pergunta central, que é uma pergunta que me acompanhou durante toda a formação em Técnica Alexander, de como me coloco em movimento, de como posso observar esse lugar tão habitual de movimento que, por vezes, me leva a fazer sempre o mesmo do mesmo jeito. Então, como é que consigo encontrar outras nuances praquilo que estou fazendo sempre sem perder o que estou fazendo sempre, já que muito disso sou eu. Ou seja, ao mesmo tempo que dou voz a isso, posso sempre dizer não para isso e, nesse dar voz e dizer não, alguma coisa outra acontece. Talvez meu corpo se amplie, talvez eu fique mais desperto, mais atento... É um processo muito particular e que está em constante mutação. Tem muitas leituras, muitas referências teóricas e artísticas. Coisas que fui buscando através de pistas que o próprio processo foi me dando. E, também, passei três anos praticando Técnica Alexander, em um contexto diferente da dança, claro, mas inibindo alguns movimentos, alguns hábitos, a partir de movimentos cotidianos como sentar, levantar de uma cadeira, caminhar. O movimento da dança, de se lançar no espaço, em queda, é uma outra coisa, mas o treinamento em Técnica Alexander é a ferramentas que tenho. Ainda mais trabalhando sozinho...Vou tentando de tudo.
Alyne: Como é entrar na sala de ensaio sozinho? Michel: É lindo e instigante. Tem dias em que o ensaio é somente estar na sala, habitar o espaço e pensar sobre as imagens com as quais estou trabalhando. E tem dias de muita atividade física em que tudo parece resolvido, em que parece que já tenho a composição do trabalho pronta. Nesse processo todo, tenho permitido que toda informação que encontro possa repousar, tenha tempo, e, nesse sentido, é fundamental, para mim, que o processo seja longo. Entender que tudo que acontece faz parte do processo sem ser indulgente.
22
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Michel: Venho trazendo alguns artistas e algumas técnicas como lugares de referência faz algum tempo. Existe o recorte que é a criação do espetáculo em si, mas sinto que venho com algumas questões e com algumas referências faz algum tempo, antes desse trabalho ter nome. O Alexander obviamente é uma referência forte, assim como o artista visual Dan Graham, que é muito presente na minha vida (falo bastante dele nesse trabalho) e também todo o universo da dança pós-moderna norte americana. Nesses últimos anos, descobri muitos coreógrafos e bailarinos argentinos que me influenciaram bastante, como Fabián Gandini e Federico Moreno. Tudo isso me atravessa na medida em que me interessa, em que me desperta curiosidade. Isso vem sendo uma questão para mim: observar como posso suavizar a ideia de usar uma referência ou uma técnica, observar que isso se dá na medida em que vivencio todo esse material, na medida em que me encanto por tudo isso.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Alyne: Sobre as referências, quais são? Como elas te atravessam na hora da criação? Como elas se materializam no teu corpo, na tua dança?
Alyne: Me fala um pouco da tua prática na sala de ensaio, no que tu tens explorado ultimamente.
entrevista
Michel: Venho praticando algo que é bem objetivo: uma ideia de fluxo e não-fluxo. Me questiono sobre como deixar que a gravidade atue no meu corpo e me dê direções. A minha ideia, então, para entender esse fluxo e esse não-fluxo, é a de seguir essa direção que surge pela atuação da gravidade até esgotá-la. Poderia diferenciar entre ceder à gravidade para permitir um fluxo ou experimentar essa sensação de não permitir que o movimento complete um trajeto. Me interesso bastante por esse não-fluxo, esse corte, essa ruptura, essa inibição, esse dizer não. Outra coisa que tenho observado é que mudo de ritmo quando mudo de direção. Alyne: Essas inibições de movimento causam oposições entre o que tu estavas fazendo e o que tu vens a fazer a partir delas, das inibições? Michel: Não. Não necessariamente. Passo muito por opor, mas espero encontrar outras nuances que não exatamente contrárias àquilo que
C3
23
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
eu estava fazendo. Inibir pode ser sustentar uma pausa por muito tempo, por exemplo. É um movimento que se atravessa. Isso, para mim, está muito ligado ao conceito de Alexander, pois ele diz que inibimos um movimento, retiramos um pouco a interferência da ação, que está sempre carregada de hábito, para que uma boa organização apareça, uma organização mais eficiente da estrutura corporal. E essa boa organização acontece sozinha. Não precisamos fazer alguma coisa, não precisamos produzir. O simples fato de inibirmos um movimento já faz, já produz outros movimentos. Isso porque estamos vivos e estamos em relação à gravidade, então, no momento em que descomprimimos o hábito que nos leva para baixo, que nos faz encurtar, ocorre uma reação de reflexo. E isso eu levo para a sala de ensaio: por vezes, lido com essas coisas, vejo como é que chego em algum lugar, vejo que repito muito algumas posturas que fazem parte das minhas práticas corporais e que não necessariamente quero repetir. Não que elas não possam aparecer, mas, então, tenho que fazer escolhas para modificá-las. Todo o tempo são escolhas.
C3
entrevista
Alyne: Para finalizarmos, nesses três anos de projeto, as escolhas, sejam elas teóricas ou práticas, mudaram? Michel: Esses dias precisei escrever um texto sobre o projeto e a partir dessa escrita fui entendendo melhor o que estou fazendo agora, já que o trabalho já está bem diferente daquele que aparece no projeto inicial. A pergunta “quais as ferramentas para inibir o movimento habilitando que outros movimentos, outros discursos possam atravessar meu corpo imaginário no momento da composição” tem se transformado. Percebo o trabalho se desenhando em direção a um lugar que nunca chega, a um movimento que não se alcança, a uma imagem que não se concretiza. Lanço os estímulos. Defino o movimento. Dou uma forma mínima. Mas não alcanço. E o que se produz nessa derrota é o que fica. Esse resto é o que não se completa.
Um pouco mais sobre Enquanto as coisas não se completam Enquanto as coisas não se completam, segundo Michel
24
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
O espetáculo de dança contemporânea Enquanto as coisas não se completam, de Michel Capeletti, contemplado no Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna 2014 e desenvolvido ao longo do ano de 2016 em colaboração com Marina Camargo, Tatiana da Rosa, Carina Sehn e Pablo Sotomayor, estreou no dia 18 de novembro de 2016, às 20h, na Sala 209 da Usina do Gasômetro, em Porto Alegre/RS, seguindo em temporada durante dois finais de semana e retornando a Porto Alegre entre os dias 5 e 7 de maio de 2017 dentro da programação do 12º Festival Palco Giratório SESC.
entrevista
Fizeram parte do projeto a performance-exposição Documentos de Transição e a oficina Práticas para Observar Movimento. Em meio a vídeos, performances, textos pessoais e teóricos, a performanceexposição Documentos de Transição, apresentada entre as 18h e as 21h do dia 17 de setembro de 2016, na Galeria Península, em Porto Alegre/RS, buscou performar-expor a relação que se estabeleceu entre Michel Capeletti e Marina Camargo durante o processo de criação do espetáculo. Na oficina Práticas para Observar Movimento, ministrada entre as 14h e as 17h dos dias 29 e 30 de outubro de 2016, na Casa Frasca, em Porto Alegre/RS, Michel Capeletti buscou dividir algumas das ferramentas por ele utilizadas na composição do espetáculo, abrindo espaço à observação do movimento como um disparador que coloca o artista em relação a outros corpos, ao espaço e a contextos diversos, possibilitando outras perspectivas para criar.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Capeletti, “atravessa três situações que tensionam corpo, objeto e alteridade pela presença de um espelho e do jogo que esse provoca como imagem e volume, disparando incompletude. Nessa composição, interessa a atualização constante que convoca esse modo de perceber particular do músculo, de uma musculatura profunda capaz de se lançar em diferentes tempos e sentidos, multiplicando essa tensão ao infinito”.
O material referente ao projeto está disponível em https://enquantoascoisasnaosecompletam.wordpress.com/
C3
25
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
26
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA C3
27
Foto: Wagner Ferraz
artigos
ARTIGOS
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
ENTRE DEUS E O DIABO: RELAÇÕES ENTRE NARRAÇÃO E EXPERIÊNCIA
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
Artigo 1
28
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Me. Ananda Vargas Hilgert, UFRGS, Porto Alegre/RS1 Resumo: Este artigo trata-se de um ensaio teórico sobre o conceito de experiência, especialmente pensando nas possíveis relações desse tema com a narração, a linguagem e a presença. Pretende-se, aqui, estabelecer uma espécie de diálogo com três autores: Walter Benjamin, Giorgio Agamben e Hans Ulrich Gumbrecht; respeitando os devidos contextos de cada escritor e considerando que certos apontamentos desses autores podem nos auxiliar a pensar sobre o conceito de experiência no nosso próprio contexto contemporâneo. Além disso, este artigo coloca lado a lado aos autores teóricos, trechos de textos literários e a narração de um episódio da série Black Mirror, pensando que produções artísticas podem complexificar os conceitos filosóficos aqui trabalhados.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
ENTRE DEUS E O DIABO: RELAÇÕES ENTRE NARRAÇÃO E EXPERIÊNCIA
Palavras-chave: Experiência. Narração. Literatura. Linguagem.
AMONG GOD AND THE DEVIL: CONNECTIONS BETWEEN NARRATIVE AND EXPERIENCE
Keywords: Experience. Narrative. Literature. Language.
artigos
Abstract: This paper is a theoretical composition about the notion of experience, especially in regards to its possible relations between narrative, language and presence. The purpose is to establish a dialogue connecting three authors: Walter Benjamin, Giorgio Agamben and Hans Ulrich Gumbrecht, respecting each writer’s context and considering their importance to the notion of experience in our own contemporary context. Furthermore, this paper includes excerpts of literature and an episode of the Black Mirror TV series, reflecting on the potential that artistic productions have in the intrication of the philosophical notions discussed herein.
1 Doutoranda em Educação, mestre em Educação e graduada em Letras pela UFRGS. Trabalhou com o ensino de literatura e cinema brasileiro para estrangeiros, elaborando sua dissertação de Mestrado sobre as relações entre alteridade, educação e cinema. Atualmente, realiza sua pesquisa de doutorado sobre temáticas relacionadas à memória, nostalgia e tecnologia, com um viés voltado à filosofia da educação.
C3
29
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Deitava-me na cama, imaginava a terra no corpo, a água, os passos das ovelhas, nenhuma luz. Muito frio. Estava muito frio. Não podia mexer. Os mortos não se encolhiam, não se aconchegavam melhor, ficavam tal como os tivessem deixado. E eu sabia que devia ter acautelado isso. Devia ter visto se levava um agasalho, se estava puxado até o pescoço, se lhe puseram almofadas ou haverá aquilo de ser apenas um tecido nas tábuas duras. (MÃE, 2014, p. 9)
Alguma coisa também é minha nas palavras de Valter Hugo Mãe. Pode ser porque o livro A desumanização me acompanhou em um momento de luto. Pode ser porque, assim como a personagem narradora do livro, também pensei como os mortos se aconchegam já que não podem se mexer, e, similar a ela, preocupei-me não com o frio, mas com o calor que meu pai sentiria por causa das grossas meias brancas (que nem mesmo combinavam com sua roupa), que ficaram nos pés dele quando precisei me despedir pela última vez. Será que precisamos necessariamente vivenciar algo parecido com o que lemos nos livros para que algo dali nos constitua? Será possível responder como uma cena literária diz tanto sobre nós, tenhamos ou não vivido algo similar? Quais as relações entre experiência e literatura?
artigos
Recorro aos meus livros para pensar nessas perguntas. Que outros autores/livros/trechos/poesias me constituem? Como me constituem? Quais são aqueles livros aos quais eu volto (volto quando, volto por quê?)? Ah, Guimarães Rosa! Sempre retorno ao Grande Sertão: Veredas. O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. (p. 39) Ah, eu estou vivido, repassado. Eu me lembro das coisas, antes delas acontecerem... (p. 47)
C3
Moço: uma espécie (ROSA, 2001)
toda de
saudade velhice. (p.
é 56)
Às vezes penso que Guimarães Rosa ensina tudo que
30
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Onde não há experiência pode haver narração? Acredito que não há possibilidade de falar sobre narração e experiência sem pensar em Walter Benjamin. Nos textos “Experiência
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
precisamos saber sobre a vida. Sobre a complexidade das relações, sobre amizade, amor, travessia, coragem, Deus e Diabo. Algo de Guimarães é tão grande, de tão vasto alcance, que não precisamos ser cangaceiros apaixonados por um amigo no sertão mineiro para sentir profundamente o que significa dizer que “Diadorim é a minha neblina” (ROSA, 2001,p. 40). Parto, portanto, desse encontro com certas literaturas, certos personagens, autores e linguagens, para ensaiar, neste artigo, possíveis relações entre narração, criação e experiência.
e pobreza” e “O narrador”, Benjamin explicita uma de suas mais importantes teses: estamos perdendo a capacidade de narrar, de compartilhar histórias, de ouvir a experiência do outro e fazer dela nossa também. Especificamente em Benjamin, narração é oralidade. O autor analisa o contexto em que vive, as relações que estavam se formando entre arte, criação e alteridade, e destaca a presença forte do romance como um indício do possível término da narração oral de uma história. O autor vê a leitura de um romance como uma ação solitária, o que ressignificaria, naquele contexto sócio-histórico, a narração como uma atividade de escuta e partilha. “A origem do romance é o indivíduo isolado” (BENJAMIN, 2012, p. 217).
artigos
O romance, o retorno da guerra, o cotidiano nas cidades, o trabalho, a lógica de vida que gira em torno de ser necessariamente “produtivo”. Esses são alguns aspectos analisados por Benjamin para pensar sobre o quanto fomos, de certa forma, roubados da faculdade de narrar e trocar experiências. O excesso de informações implica também um exagero de explicações, que acabam matando a possibilidade de narração. “Metade da arte narrativa está em, ao comunicar uma história, evitar explicações” (Idem, p. 219). Em uma vida totalmente preenchida por trabalho, informação, explicação, violências radicais como as guerras, Benjamin prevê a extinção da narração quanto prática oral, partilhada, “artesã” e de alteridade. Giorgio Agamben revisita Benjamin quando diz que “o
C3
31
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
homem contemporâneo foi expropriado de sua experiência: aliás, a incapacidade de fazer e transmitir experiências talvez seja um dos poucos dados certos de que disponha sobre si mesmo” (AGAMBEN, 2005, p. 21). Assim como Benjamin fez alguns anos antes, Agamben também fala da vida extenuante da cidade e do trabalho: (...) o dia-a-dia do homem contemporâneo não contém quase nada que seja ainda traduzível em experiência: não a leitura de jornal, tão rica em notícias do que lhe diz respeito a uma distância insuperável; não os minutos que passa, preso ao volante, em um engarrafamento; não a viagem às regiões ínferas nos vagões do metrô nem a manifestação que de repente bloqueia a rua; não a névoa dos lacrimogêneos que se dissipa lenta entre edifícios do centro e nem mesmo os súbitos estampidos de pistola detonados não se sabe onde; não a fila diante dos guichês de uma repartição ou a visita ao país da Cocanha do supermercado nem os eternos momentos de muda promiscuidade com desconhecidos no elevador ou no ônibus.” (AGAMBEN, 2005, p. 22)
Acredito que para reler Benjamin hoje, tanto em seus próprios textos quanto a releitura dele feita por Agamben, é preciso um certo deslocamento de nosso próprio contexto. Essa figura do homem moderno, pode parecer já um clichê, ou uma existência ultrapassada, não em relação a uma ideia de progresso, de termos de alguma forma evoluído, mas pensando que nos ressignificamos, nos afinamos ou desafinamos, deslocamos as nossas angústias. No entanto, a relevância dos apontamentos de Walter Benjamin para pensarmos em narração e experiência é inegável; mesmo considerando narração não mais necessariamente atrelada a prática oral, o que acredito não fazer mais sentido em uma elaboração contemporânea sobre as relações entre experiência e narração.
C3
artigos
O homem moderno esgotado por seu cotidiano de carros e metrôs, tumultos de gente, buzinas, gritos, compras, notícias sobre as quais não se exerce quase empatia nenhuma. O homem moderno, que volta paracasa transbordado de explicações e excessos, tanto que não sobra nenhuma lacuna, nenhum espaço para elaboração, para narração, para pensamento e, consequentemente, para experiência.
A pobreza da experiência, em Benjamin, está intimamente
32
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
relacionada aque tipo de vivências temos, o que fazemos no nosso dia-a-dia, de que forma nos relacionamos com as pessoas, os objetos, as atividades ao nosso redor. Não conseguir mais narrar, significa não ter também mais experiências. O que nos deixa mudo é o excesso. Diferente da leitura que muitas vezes é feita de Benjamin, que entende a mudez como uma impossibilidade de narrar a experiência, destaco aqui que compreendo os apontamentos desse autor em outra direção: a dificuldade de narrar, ou a própria morte da narração, já indica uma morte da experiência em si. Essa é a primeira relação entre narração e experiência que aqui proponho: a visão benjaminiana de que perdemos a faculdade de narrar, pois perdemos antes a possibilidade de ter experiências.
Experiência, presença e linguagem No final do texto “Presença na linguagem ou presença adquirida contra a linguagem?”, Gumbrecht justifica a sua busca pelo conceito de presença como algo anterior à linguagem como uma possível reação ao seu contexto contemporâneo. Agora sim um contexto mais próximo do nosso, não o do homem moderno de Benjamin. Mais do que nunca, tornou-se um cotidiano de realidades apenas virtuais, um cotidiano em que as tecnologias modernas da comunicação nos deram onipresença e, dessa forma, eliminaram da nossa existência o espaço, presença na tela – de tal desenvolvimento a nova vaga de “reality shows” não é senão o sintoma mais tautológico e hiperbolicamente desamparado. (GUMBRECHT, 2015, p. 32)
artigos
Gumbrecht fala sobre linguagem, não exatamente narração como Benjamin, além de tratar de um contexto sócio-histórico e filosófico diferente, mas acredito que podemos fazer uma relação entre o que nos dizem os autores. Ambos parecem expor suas angústias diante das nossas relações com experiências e a possibilidade de falar delas, de narrar, escrever, ou, mais amplamente, criar a partir de certas linguagens das quais dispomos. Gumbrecht propõe-se a apresentar o que ele chamou de “amálgamas” entre linguagem e presença, diferenciando as “culturas do sentido” e as “culturas da presença”. Não pretendo aqui explicar
C3
33
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
cada uma delas e citar os autores por ele estudados, mas falar, de uma visão geral, quais me parecem ser as questões levantadas por Gumbrecht ao dedicar-se a tal estudo. Exatamente como o próprio autor aponta no fim de seu capítulo, vejo a cultura da presença de Gumbrecht como uma possível reação a certas frustrações das nossas vidas, sendo a principal delas a impossibilidade de chegar na “coisa ela mesma”. Ele diz não ter encontrado “consolo naquilo que gosto de caracterizar como o ‘existencialismo linguístico’ da desconstrução, isto é, o lamento recorrente e a melancolia (...) a propósito da alegada incapacidade de a linguagem se referir às coisas do mundo” (idem). Ao longo de todo o capítulo citado, o autor traça certas diferenças entre a linguagem e “as coisas do mundo”. A presença dessas tais coisas é o que está em jogo nas suas formulações. E a presença aqui é o que parece se relacionar mais profundamente com uma ideia de experiência, pensando experiência como um conceito sempre escorregadio, uma ideia que se transforma dependendoaoque é relacionada. Essa é a segunda relação entre experiência e narração que proponho aqui: a impossibilidade de uma “tocar”a outra, a frustração de narrar uma experiência e ver que a linguagem não dá conta daquilo que acreditávamos ser a experiência.
C3
artigos
Embora extremamente necessária para quebrar uma suposta “supremacia” da linguagem, acredito que a insistência na separação entre linguagem e presença possa nos levar a uma busca por uma essência do mundo, uma verdade que estaria escondida atrás das palavras. O que são essas coisas mesmas do mundo nas quais nunca chegamos? O que encontraríamos na presença e não na linguagem? Seguindo essa linha de pensamento sobre a frustração diante da incapacidade da linguagem em chegar nas coisas e relacionando com experiência e narração, poderíamos perguntar: quais as implicações danarração não dar conta da experiência? Ao narrar, o que estamos tentando fazer é chegar na experiência ela mesma? Se este for o caso, acredito que experiência acaba ganhando um status de essência e verdade, ao contrário da narração, que seria a aparência, a máscara que esconde o que está por trás. De um ponto de vista nietzscheano, e também foucaultiano, tais separações não parecem pensar conceitos filosóficos pela produtividade deles. Colocar experiência e presença numa certa
34
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
ordem do “não-narrável” me parece ainda muito pouco para tratar de conceitos tão complexos e caros à filosofia como esses. A narração não dá conta da experiência na mesma medida em que nada dá, em que nada encerra uma experiência. Se encerrasse talvez nem poderia ter sido chamada de experiência. Se chegássemos nas “coisas elas mesmas”, talvez não tivéssemos espaço para criação. Podemos ver a linguagem como interpretação e fechamento das coisas do mundo, mas isso me parece levar a uma insatisfação que vai à contramão das potências da experiência para criação e elaboração de pensamento.A experiência não está antes da linguagem, não está por trás da palavra, mas é ela que motiva a criação, que aponta uma falta, uma lacuna que nos coloca a necessidade de narrar.
Experiência muda e linguagem Depois da releitura de Walter Benjamin, Giorgio Agamben trilha, no ensaio aqui citado, uma série de complexos caminhos para pensar sobre experiência e linguagem, fazendo, finalmente, uma pergunta que pode aqui apontar uma forma de complexificar tais relações: “existe uma experiência muda, existe uma in-fânciada experiência? E, se existe, qual é a sua relação com a linguagem?” (AGAMBEN, 2005, p. 48).
A ideia de uma infância como uma substância psíquica pré-subjetiva revela-se então um mito, como aquela de um sujeito pré-linguístico, e infância e linguagem parecem assim remeter uma à outra em um círculo no qual a infância é a origem da linguagem e a linguagem a origem da infância. Mas talvez seja justamente neste círculo que devemos procurar o lugar da experiência enquanto infância do homem. Pois a experiência, a infância que aqui está em questão, não pode ser simplesmente algo que precede cronologicamente a linguagem e que,
artigos
Assim como Gumbrecht, Agamben coloca o problema da linguagem como algo central para se pensar a experiência (ou a presença). Agamben também aponta para a necessidade de se atentar ao silêncio, à mudez, a algo que não se dá só em palavra, que se perde no caminho da narração. No entanto, acredito que Agamben ainda vai além dos paradoxos filosóficos de Gumbrecht e afirma o seguinte:
C3
35
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
a uma certa altura, cessa de existir para versarse na palavra, não é um paraíso que, em um determinado momento, abandonamos para sempre a fim de falar, mas coexiste originalmente com a linguagem, constitui-se aliás ela mesma na expropriação que a linguagem dela efetua, produzindo a cada vez o homem como sujeito. (AGAMBEN, 2005, p. 59)
Agamben nos apresenta o problema da linguagem, nos aponta para uma necessidade de pensar a experiência muda “situada aquém da expressão primeira” (Idem, p. 48), para, logo depois dizer que essa separação não é assim tão clara, que não existe a experiência cronologicamente antes da linguagem, e que depois que “virou” linguagem deixa, então, de existir. Não há esse lugar idílico da experiência crua, presente, das coisas do mundo não contaminadas pela linguagem. O que o filósofo nos aponta é para a coexistência entre experiência muda e linguagem. Essa seria, então, a terceira e última consideração que aqui aponto para complexificar as relações entre narração e experiência: a experiência seria algo que fica entre essa possível mudez, ou in-fância da linguagem, e a narração (palavra, criação, elaboração). A experiência não está antes ou depois da linguagem, mas oscila entre esses dois mundos aparentemente contraditórios. Entre Deus e o Diabo, assim como o sertão de Guimarães Rosa. A experiência é e não é da ordem de um certo não-narrável.
Narração e transmissão
C3
artigos
Além da importância de pensar experiência relacionada com uma possível elaboração, criação, narração, acredito que é preciso elucidar ainda outros elementos que podem ajudar a “desenhar” em torno desse conceito tão complexo. Experiência não é da ordem do individual, não é algo que passa comigo e mais ninguém. Aquilo que passa comigo é experiência justamente porque diz algo do outro. A experiência tem algo do mistério, do inexplicável, exatamente por não ser misterioso só pra mim. É o que há de humano, de compartilhado, de relação com o outro que poderia ser chamado de experiência. A intensidade, a singularidade de uma experiência me parece estar intimamente ligada a uma certa característica “pública” da experiência. Aquele estado de epifania de uma personagem de
36
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Esse caráter quase coletivo da experiência é outro indício da importância da narração; narração como partilha, transmissão ao outro, elaboração do que passa comigo, tentativa, mesmo que frustrada, de comunicar, criar a partir do que me toca. Se tratarmos a experiência apenas como algo anterior à linguagem, como algo que se perde no momento em que é versada em palavra, então como será possível uma transmissão, uma relação com a alteridade? Da mesma forma, não podemos dizer que elaborar uma narração seja o mesmo que encerrar a experiência. A experiência é opaca, escorregadia, não plenamente atingível. Mas é a tentativa de pegar sabendo que vamos resvalar que torna possível a criação, a arte que nunca se esgota, que se reformula. A experiência é o que deve nos instigar a essa narração, abrindo lacunas que são eternas possibilidades; possibilidades que são ainda ampliadas pelas muitas reformulações da narração. Como afirma Agamben, as relações entre linguagem e experiência se dão na forma de um círculo: a experiência leva à narração, que, por sua vez, também instiga à experiência.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Clarice Lispector é a narração de uma experiência porque chega em mim, chega no outro, é um sentimento partilhado, uma angústia enigmaticamente humana. A pura tentativa de partilha já é uma narração que se faz experiência ela mesma.
* Uma dada tecnologia permite que todas as pessoas possam gravar tudo que acontece em suas vidas e reproduzir tais eventosna hora em que desejarem. Um personagem faz uma entrevista de emprego e, logo depois, voltando para casa, revê cada momento da entrevista, tentando analisar cada palavra, cada mudança na respiração dos entrevistadores, para talvez localizar algum indício de que será ou não contratado. Em vez de contar a sua esposa como foi a entrevista, ele simplesmente reproduz numa tela a entrevista inteira.
artigos
Black Mirror, episódio 3, primeira temporada:
À noite, amigos jantam juntos e reproduzem um para o outro C3
37
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
as suas histórias. Ninguém “perde” tempo contando nada. Por que narrar se podemos mostrar exatamente como aconteceu? Marido e mulher discutem sobre algo que aconteceu no passado. Ela o acusa, ele diz que não fez. Vamos tirar a prova? É só rever, reproduzir exatamente como aconteceu. O marido desconfia da fidelidade da esposa. Ela jura que sempre foi fiel. A palavra dela não é o suficiente. A forma como ela conta a história não o convence. Para encerrar a discussão é só reproduzir exatamente como aconteceu. Nesse mundo não há mentira, não há a possibilidade de chegar ao fim do dia e contar a um amigo aquele evento inesperado que aconteceu no trabalho. Não há uma reformulação do que nos acontece, não há memória pelo meio das narrativas. Perdemos a capacidade de narrar. A gravação do que aconteceu parece uma forma de chegar “na coisa ela mesma”, de encerrar o nosso medo de “perder” memórias, de não conseguir nunca criar algo que faça jus àquilo que tão intensamente experienciamos. A narração, a mentira, a criação, a potência do falso, fazem falta a esse futuro. Para que serve criar se tenho acesso à verdade?
C3
artigos
* Tanto Benjamin quanto Gumbrecht parecem falar do lugar de uma possível nostalgia, talvez motivados por uma angústia, um medo, como o próprio Gumbrecht justifica no trecho apresentado aqui neste ensaio. Os dois falam sobre os contextos em que vivem. Benjamin sobre a ideia moderna da cidade grande, do trabalho, do princípio do isolamento do homem; Gumbrecht sobre tecnologias e comunicação, sobre telas e virtualidade. Acredito que essa constatação seja um importante dado para pensar experiência e suas relações com: narração, linguagem, criação, partilha, transmissão, tempo, silêncio, intensidades, entre outros elementos que são colocados em funcionamento pelos autores aqui citados. Da mesma forma, uma série como Black Mirror também parece anunciar uma tragédia humana relacionada à narração, transmissão e experiência. Seja olhando para o passado de Benjamin,
38
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Procurei tratar aqui narração não apenas como oralidade, tal como Benjamin aborda, já que não se pode simplesmente transpor seu pensamento, pois corremos o risco de cairmos em um saudosismo romântico do que nem vivemos. Acredito que não podemos apenas pensar hoje em narração como uma contação de histórias oral, mas devemos ampliar este conceito. Quando falei aqui em narração, linguagem e palavra procurei tratar de uma certa elaboração de um pensamento, uma vontade de potência da experiência que nos abre lacunas, espaço para criação, que pode ser literária como os trechos que abriram este ensaio, ou uma série como Black Mirror, como pode se manifestar de tantas outras formas que dispomos para nos narrar contemporaneamente: webséries, webcomics, grafite, performance, cinema, vídeo, blogs, etc. Considerando as três formulações apresentadas aqui sobre as relações entre linguagem, narração e experiência, pergunto: quais formas temos hoje de nos narrar, de narrar nossas experiências? Quais as relações contemporâneas entre novas formas de narratividade e experiência?
artigos
Os anseios de Benjamin, Gumbrecht e dos criadores de Black Mirrornão são apenas medos nostálgicos, mas devem ser levados em consideração quando analisamos o que é necessário para que uma experiência se constitua como tal; ou ainda, para pensarmos o que está em jogo quando nos narramos, quando tentamos transmitir ao outro algo que é tanto meu quanto dele. Talvez pensar em mudez, em silêncio, em tempo para elaboração seja um caminho importante. Acredito que é insuficiente apontar algo como aquilo que “elimina” a experiência e a narração das nossas vidas, tal como o romance, ou uma lógica capitalista de vida, para Benjamin; ou o excesso de linguagem interpretativa para Gumbrecht; ou a tecnologia de Black Mirror. Ainda recorrendo a Benjamin, de que forma podemos constituir
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
onde não éramos isolados e ouvíamos as histórias um do outro; seja para o passado de Gumbrecht, onde não havia tantas telas, tantas “virtualidades”, tanta supremacia da linguagem; seja olhando para um possível futuro onde teremos chips de memória, que substituirão a necessidade da narração e nos darão o contato direto com a “verdade”. Diante desses medos de um possível fim da narração e da experiência, parece-me extremamente relevante pensarmos de que forma nos relacionamos com esses conceitos hoje.
C3
39
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
um tédio hoje, um tempo para criar, um silêncio pré-linguagem que vai alimentar a própria linguagem? “O tédio é o pássaro onírico que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta.” (BENJAMIN, 2012, p. 221).Finalizo este artigo com perguntas em aberto, dúvidas que podem ser produtivas, podem ser potência para ir além quando pensamos nas relações teóricas entre narração e experiência. Perguntas que talvez nunca sejam totalmente respondidas, mas que dizem respeito a certos perigos do nosso tempo. Referências bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. Infância e história. Ensaio sobre a destruição da experiência. In:_________. Infância e história. Destruição da experiência e origem da história. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005, p.19 – 78. BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobreliteratura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012. ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. FOUCAULT, Michel. Sobre a genealogia da ética: uma revisão do trabalho em curso. In: DREYFUS, H. RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense, 2010. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Presença na linguagem ou presença adquirida contra a linguagem? In: ______. Nosso amplo presente. Trad. Ana Isabel Soares. São Paulo: UNESP, 2015, p. 19-32. MÃE, Valter Hugo. A desumanização. São Paulo: Cosa Naify, 2014.
Artigo recebido em: 14/08/2016 Aprovado em: 20/01/2018
C3
artigos
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
40
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
artigos C3
41
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
42
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
artigos C3
43
Foto: Wagner Ferraz
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
A BOA PRÁTICA PEDAGÓGICA E O BOM PROFESSOR DE MATEMÁTICA: UMA CONSTITUIÇÃO MORAL ATRAVÉS DE JOGOS DE VERDADE
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
Artigo 2
44
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
PROFESSOR DE MATEMÁTICA: uma constituição moral através de jogos de verdade Dra. Grace Da Ré Aurich, UFRGS, Bagé/RS1 Resumo: Discute-se a constituição moral do docente em matemática e sua prática pedagógica pela relação com as verdades discursivas pedagógicas através da noção de jogo em Foucault. Analisa-se discursivamente ditos e escritos de estagiários, a partir da pesquisa de Lenzi (2008) acerca dos efeitos das relações de poder e verdade na constituição e regulação de práticas pedagógicas, por meio de discursos, para se pensar possibilidades éticas de ser professor de matemática. Ao fim, sugerem-se modos pelos quais prescrições de caráter moral podem ser tornadas condutas de caráter ético desse futuro docente.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
A BOA PRÁTICA PEDAGÓGICA E O BOM
Palavras-Chave: moral, ética, jogos de verdade, formação docente, educação matemática.
THE GOOD PEDAGOGICAL PRACTICE AND THE GOOD MATH TEACHER: a moral constitution through games of truth
Keywords: moral, ethics, truth games, teacher education, mathematical
artigos
Abstract: It discusses the moral constitution of the mathematics teacher and his/her pedagogical practice by the relation with the pedagogical discursive truths through the notion of game in Foucault. From the research of Lenzi (2008) on the effects of relations of power and truth in the constitution and regulation of pedagogical practices through discourses, it analyzes statements and writings given by trainees to reflect on ethical possibilities of being a teacher of mathematics. Finally, it suggests ways in which prescriptions of moral character can be made ethical conduct of this future teacher.
1 Licenciada em Matemática pela Universidade da Região da Campanha (URCAMP), Mestre e Doutora em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEDu/UFRGS). Professora na Escola Estadual de Ensino Médio Luiz Maria Ferraz (CIEP), bolsista do Ministério da Educação (MEC) como Formadora Regional no PNAIC/PNME pela Universidade da Região do Pampa (UNIPAMPA) e pesquisadora do PRAKTIKÉ – Educação e Currículo em Ciências e Matemática (PPGEDu/UFRGS). C3
45
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
education. PRIMEIRA JOGADA: DO QUE SE TRATA Neste artigo, apresenta-se um recorte da dissertação de mestrado de Aurich (2011) intitulada “Jogos de Verdade na Constituição do Bom Professor de Matemática” e que discutiu a relação estabelecida por licenciandos/estagiários de matemática com determinadas verdades pedagógicas – da Pedagogia, da Psicologia, da Matemática, etc. – que os constituem como sujeitos morais e seus modos de dizerem-se e verem-se como bons professores de matemática. O recorte foca-se nessa referida relação por licenciandos, em situação de estágio de docência na formação inicial de professores, a partir de uma analítica discursiva de seus ditos e escritos produzidos durante as reuniões de orientação com o professor formador dessa disciplina de estágio. Tratou-se de uma pesquisa de viés filosófico e pós-estruturalista na qual foram utilizadas noções filosóficas como ferramentas analíticas, como as noções de jogo de verdade e de ética em Foucault, para olhar diferentemente para questões sobre a formação docente em matemática.
C3
artigos
Não se pretendeu renunciar as verdades discursivas ou negar sua existência, menos ainda verificar esta ou identificar discursos verdadeiros. Apenas dedicar a elas um tempo suficiente para pô-las em suspenso, para munir-se delas, apoiar-se nelas a fim de entender de que modos os sujeitos estagiários estabelecem com elas um determinado jogo através do qual passam a se constituírem-se a si mesmos como bons professores de matemática.
SEGUNDA JOGADA: DAS FERRAMENTAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS Para a análise proposta, trabalhou-se com as noções de moral, ética e jogos de verdade em Foucault e deslocamentos teóricos acerca do entendimento sobre a noção de sujeito e de linguagem. Utilizando a clave foucaultiana tendo a noção de jogos de verdade, perpassada pelo conceito wittgensteiniano de jogos de linguagem, como a principal ferramenta analítica discursiva, analisou-se ditos e escritos olhando para os modos de dizer-se e ver-se como bom professor de matemática, no espaço interinstitucional universidade-
46
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
escola e na educação matemática contemporânea.
[...] essa forma nem sempre é, sobretudo, idêntica a si mesma. Você não tem consigo próprio o mesmo tipo de relações quando você se constitui como sujeito político que vai votar ou toma a palavra em uma assembléia, ou quando você busca realizar o seu desejo em uma relação sexual. Há, indubitavelmente, relações e interferências entre essas diferentes formas do sujeito: porém, não estamos na presença do mesmo tipo de sujeito. Em cada caso, se exercem, se estabelecem consigo mesmo formas de relação diferentes. (FOUCAULT, 2006a, p.275),
Linguagem e verdade são entendidas como jogos: jogos de linguagem no segundo Wittgenstein2 e jogos de verdade em Foucault. O entendimento de linguagem adotado destaca sua função inventiva e instituidora da realidade. Não sendo representativa ou correspondente aos objetos, é composta por regras que, através da maneira como são utilizadas e dos modos pelos quais são seguidas,
artigos
Com isso, o indivíduo estabelece relações diversas com verdades discursivas que lhe posicionam. Esse entendimento afastase da noção de sujeito iluminista, do sujeito centrado, autônomo, dotado de desejos, vontades, intenções que vem a tornar-se humano pela aquisição do conhecimento. Um sujeito no qual sua autonomia e consciência cedem espaço para “[...] um mundo social constituído em anterioridade e precedentemente àquele sujeito, na linguagem e pela linguagem.” (SILVA, 1994, p.248). Um sujeito submetido à linguagem e a história, produzido, fabricado, constituído pelas verdades pedagógicas através das quais se relaciona consigo próprio, movimentando-se por meio de técnicas que lhe promovem processos de subjetivação e incitado a possuir desejos e intenções que lhe fazem reconhecer-se e enunciar-se como um bom professor de matemática.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Adotou-se a noção de sujeito como sendo constituído na e pela linguagem e por verdades discursivas sustentadas por regimes de verdade, um sujeito enquanto efeito do discurso e das relações de poder, o que poderia lhe proporcionar uma mobilidade de desdobramentos e singularizações. Um sujeito tomado enquanto forma,
2 Segundo Wittgenstein ou Wittgenstein das Investigações filosóficas é como o filósofo austríaco é denominado na segunda fase de seu pensamento. C3
47
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
institui modelos e padrões, fabricando sujeitos e não apenas como mero instrumento de comunicação entre sujeitos. Dizer que a realidade é constituída pela linguagem, ou linguisticamente constituída, é assumir que o significado dos objetos, materiais ou não, não estão presente nestes, mas sim na construção linguística que os define. Ao compreender que quando se pensa em algo se está inventando-o, instituindo-o, dando-lhe significado é porque esse algo só pode ser pensado em dependência e coexistência com o que pode ser dito dele. Nada estaria fora da linguagem, nem ações, ou intenções, ou pensamentos, ou vontades, ou sentimentos, até mesmo porque a linguagem não se restringe a atos de fala ou de escrita, mas também, gestos e contextos. Foucault (1987) afirma que não é na mentalidade dos indivíduos que habitam as regras de formação das práticas discursivas, mas nelas mesmas. Essas regras constituem práticas e são impostas àqueles que de um determinado campo discursivo pretendem participar. Logo, exercer uma prática discursiva significa seguir determinadas regras e expressar as relações que ocorrem no interior do discurso, configurando uma prática discursiva como sendo
C3
artigos
[...] um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições de exercício da função enunciativa. (FOUCAULT, 1987, p.136).
Retomando a noção de sujeito adotada, não há, então, um sujeito a ser moldado, mas um sujeito que, pela linguagem e pelas verdades discursivas, se configura e se constitui através de seus jogos e de suas regras. Assumiu-se, como suporte analítico para a investigação, no que se refere ao entendimento da linguagem como organizadora do mundo e das significações, a noção de linguagem no segundo Wittgenstein, entendida como um jogo, como uma atividade organizada por regras, ou seja, uma prática regrada. Por jogos de linguagem entende-se “[...] a totalidade formada pela linguagem e pelas atividades com as quais ela vem entrelaçada [...]” (WITTGENSTEIN, 2008, §7, p.19), ou como “[...] conjunto indissociável, da linguagem e das atividades com as quais interagimos no mundo [...]” (CONDÉ, p.217, 2004).
48
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Em relação à verdade, Foucault, entende como “[...] o conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder [...]” (2007, p.13). Existem verdades nas ciências – pedagogia, matemática, psicologia, etc – que dizem quem nós somos e que podem nos incitar ao desejo de constituir-nos enquanto sujeitos bons professores de matemática. Entre muitas das verdades discursivas pedagógicas que atuam como matrizes de ação, governando, dando a forma-sujeito aos indivíduos que assujeitam, estão as que envolvem o discurso da educação matemática e a psicologia do desenvolvimento, como as do uso de tecnologias, de materiais manipuláveis, do lúdico, da contextualização de conteúdos, da reflexão sobre a ação pedagógica, da interdisciplinaridade, da etnomatemática, entre outras.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Pensando em linguagem como um jogo, devemos considerar que ela possui regras que são padrões de correção que indicam direções e conduzem as maneiras de como se deve proceder. Nessa noção de regra reside a imposição, aos jogos de linguagem, de sua característica como atividade regrada, de prática regulada nas nossas diversas formas de vida, assim como nas ações pedagógicas.
Como em um jogo, uma atividade regrada, os estagiários são conduzidos e orientados a produzirem falas e condutas determinadas. Pelas verdades presentes nos discursos, são incitados, provocados a possuírem desejos, vontades e a tomar como sua a intencionalidade do próprio discurso. É preciso cuidado com o sentido da palavra “jogo” [da verdade], pois
artigos
[...] pode induzir em erro: quando eu digo “jogo”, me refiro a um conjunto de regras de produção da verdade. Não um jogo no sentido de imitar ou de representar...; é um conjunto de procedimentos que conduzem a um certo resultado, que pode ser considerado, em função de seus princípios e das suas regras de procedimento, válido ou não, ganho ou perda. (FOUCAULT, 2006a, p.282)
Nessa perspectiva, o jogo de verdade estabelece uma relação entre os indivíduos e as regras desse jogo o organizam e o legitimam. Para Birman (2002, p.307) “[...] enunciar a existência de uma regra é indicar a existência de algo que é da ordem da invenção e do arbitrário, que seria constitutivo de toda e qualquer regra.” [grifo do C3
49
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
autor]. A produção de verdades como jogo implica a linguagem, mas mesmo necessária, não é suficiente. Birman (2002) salienta que os jogos de linguagem de Wittgenstein seriam remetidos à construção dos jogos de verdade de Foucault pela agregação da produção de certezas e de crenças fundadas na ação de dispositivos de poder que legitimam verdades e as inscreveriam nos corpos dos indivíduos por meio de processos de subjetivação. Assim, o poder, incidindo nos corpos dos indivíduos pela mediação de dispositivos, seria crucial para a constituição de tais jogos. A noção de regra em Foucault não está restrita a questão de significação. A regra não é apenas gramatical, constituitiva de um jogo, operando como um padrão de correção, como para Wittgenstein, pois no momento que representa a possibilidade de produção de uma conduta, evidencia o seu caráter estratégico. Esse caráter das regras constituintes dos jogos de verdade, regras que orientam, conduzem e governam acabam por significar modos de ser e de agir, os esquemas de comportamento dos indivíduos.
C3
artigos
Para se discutir a constituição moral do professor de matemática e a possibilidade de condutas éticas, é preciso esclarecer o entendimento sobre ambas para Foucault. Para Foucault (1984) a moral está compreendida em dois níveis: o do código moral que seria o conjunto de valores e regras propostos aos indivíduos e aos grupos pelos diferentes aparatos prescritivos difusamente transmitidos e o da moralidade dos comportamentos, ou o real comportamento dos indivíduos frente a um princípio de conduta, envolvendo suas condutas morais à medida que se submetem ou não a tal princípio, obedecem ou resistem a uma interdição ou a uma prescrição, respeitam ou negligenciam um conjunto de regras e de valores. As verdades pedagógicas da ciência quando entendidas como máximas, tomam para si um caráter imperativo, tornando-se, portanto, prescritivas e passando a ocupar lugar na ordem da moral. Por sua vez, a noção de ética em Foucault (1984) sofre um deslocamento teórico e passa a ser entendida como a maneira pela qual o indivíduo se constitui como sujeito moral de suas próprias ações,
50
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Na relação estabelecida com as verdades, resultam seus modos de ser e de agir que fazem com que venha a praticar uma ação de caráter ético implicando, segundo Foucault (2006b), uma determinada relação consigo mesmo, uma constituição de si como sujeito de sua moral e não mais como objeto da prática moral. Assim, o sujeito acaba por definir sua posição em relação ao preceito que decidiu acatar, agindo sobre si mesmo, colocando-se à prova, aperfeiçoando-se, transformando-se e determinando para si mesmo um modo de ser para seu próprio cumprimento moral, (re) constituindo sua ética. Uma conduta ética resulta de uma relação de si consigo frente às verdades que são impostas ao sujeito.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
os modos pelos quais vem a conduzir-se, a esculpir-se moralmente tendo como referência os elementos prescritivos constituintes de um código moral. Uma maneira de ser, de conduzir-se, uma forma de ser visível aos outros, ou como para os gregos, um cuidado de si para com os outros.
O professor de matemática entendido como um sujeito dado pela linguagem e por jogos de verdade pode ter possibilidades de tornar-se um sujeito ético com efeitos estéticos, passível de singularizações, afinal, “[...] sempre há possibilidade, em determinado jogo de verdade, de descobrir alguma coisa diferente e de mudar mais ou menos tal ou tal regra, e mesmo eventualmente todo o conjunto do jogo de verdade.” (FOUCAULT, 2006a, p.283). Pois, essas relações de poder são “[...] móveis, reversíveis e instáveis [...]” (FOUCAULT, 2006a, p.276), são relações que podem se modificar e há a possibilidade de “[...] estratégias que invertam a situação [...]” (FOUCAULT, 2006a, p.277).
A investigação deu-se a partir de um recorte do levantamento de dados realizado por Lenzi (2008) para sua pesquisa. Tais dados foram tomados como material investigativo em função de se encontrarem em um lugar privilegiado para a investigação: um espaço escolar estudado, onde os seis estagiários – futuros professores de matemática – do segundo semestre de 2006 do curso de licenciatura em matemática da UFRGS, participantes da pesquisa, possuíam certas
artigos
TERCEIRA JOGADA: DOS CAMINHOS PERCORRIDOS
C3
51
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
falas – durante suas discussões de orientação de estágio, sobre o ato de planejar suas aulas e na elaboração de seus planos de ensino – por estarem naquele lugar, sob influência dos jogos de poder e de verdade considerados legítimos nesse espaço, sob certas atividades regradas que os orientam. Esse material investigativo constituiu-se pela degravação da apresentação de planejamentos dos estagiários referente às aulas que deveriam ministrar, na escola onde desempenharam suas práticas de ensino, para o seu professor formador. Os estagiários apresentam de forma oral e/ou escrita (ditos e escritos) os modos pelos quais pretendiam desempenhar sua ação pedagógica. Destaca-se que o trabalho de Lenzi (2008) não discutiu sobre um professor que reflete sobre sua prática. Percebeu a prática pedagógica em meio a discursos, saberes, experiências e relações de poder que instituem e regulam essa prática, desvinculando a ideia de um sujeito portador de autonomia e problematizando sobre um sujeito professor que está atrelado a tudo isso, através dos instrumentos que os normalizam, os identificam e os classificam.
C3
artigos
No que se refere à busca de discursos que instituem e regulam práticas pedagógicas dos estagiários, Bello (2010) justifica a escolha de Lenzi em utilizar os ditos e escritos produzidos por diferentes meios e sujeitos envolvidos em sua investigação, considerados por ela como a principal ferramenta de acesso aos discursos que circulam nas instituições universidade e escola, afirmando que [...] ao buscar recorrências discursivas em palavras, é pertinente lembrar que a fala se constrói sob a interferência de regras e padrões produzidos em instituições sociais e que as práticas moldam e modelam o que pode ser considerado verdadeiro ou falso. (p.07).
Na perspectiva teórico-metodológica empreendida na investigação, foi realizada uma analítica discursiva. Bello (2010, p.09) caracteriza essa espécie de analítica como aquela em que são escolhidos(as): a. Atos de fala (ditos) que, produzidos e/ou organizados no interior de certos grupos sob dependência de certas formações discursivas, passam a ser entendidos como manifestações linguisticos-enunciativas de uma subjetividade também produzida discursivamente [...];
52
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Com a analítica sobre os ditos e os escritos dos estagiários, que traziam consigo evidências, através da elaboração do plano de aula, das suas formas de vinculações com as verdades que lhes foram propostas nesses espaços institucionais lhes posicionando discursivamente, focou-se o olhar para as relações existentes entre eles mesmos e tais verdades que lhe constituiriam como bons professores de matemática.
QUARTA JOGADA: DO JOGO EM SI
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
c. Narrativas (escritos) que se constituem como unidades de significação articuladas a partir de certos princípios de agrupamentos discursivos.
A constituição do bom professor de matemática, ou seja, a maneira como se dá a constituição desse professor como sujeito moral, pode ser entendida conforme evidenciado anteriormente com o trabalho de Lenzi (2008), ou seja, como resultado de discursos “[...] que constituem as condições de possibilidade de toda a ação [...]” (VEYNE, 1985, p.04). Todavia, não basta apenas a significação, no âmbito coletivo, dadas às palavras que seguem determinadas regras de uso3, mas também os modos de subjetivação – jogos de verdade – onde o professor se reconhece e enuncia-se como um bom professor.
Como uma prática podería-se dizer que pensar no planejamento de ensino, nesta pesquisa, entendido como uma prática constituída de discursos, presente dentro do espaço institucional escolar que envolve saberes e determinam regras que orientam o sujeito (professor) a agir de modo específico, é pensar em
artigos
A partir da descrição do que seria uma boa aula de matemática, pautada por verdades teóricas da ciência pedagógica, o estagiário vincula à sua boa prática pedagógica, a condição de tornar-se um bom professor de matemática. Pelo atendimento a um determinado código de comportamentos, resulta o bom professor de matemática na medida que dá a sua conduta referente a uma determinada prescrição. Nessa medida nomeia sua boa prática pedagógica.
como o conjunto de verdades do que é ser um bom professor de matemática - aquele sujeito autônomo, sujeito do prático, do fazer, da inovação, da tecnologia, 3
Pensando na linguagem como jogo, no segundo Wittgenstein. C3
53
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
da contextualização, entre tantas outras que classificam os “bons” e os “não bons” - se constituiu, implica em pensarmos nas regras desses jogos que ao produzirem verdades criam identidades e impõem condutas aos indivíduos. (AURICH; BELLO, 2011, p.10).
De acordo com as verdades circulantes no ambiente acadêmico, onde se dá a questão da escrita, uma das funções do planejamento seria utilizar essa escrita enquanto técnica para racionalizar, organizar e coordenar o trabalho docente buscando fixar algumas verdades consideradas pelo professor formador4 como aquelas a partir das quais considera um bom planejamento, dele derivando uma boa aula e, consequentemente, constituindo um bom professor. Assim, cabe destacar a valoração dada ao exercício de escrita do planejamento. No material de investigação, destacam-se trechos nos quais alguns estagiários apresentam o planejamento por escrito e outros explicam oralmente como pretendem desenvolver sua ação pedagógica. Feita a apresentação, o professor formador toma o documento do estagiário 2 (E2) como modelo e orienta aos que ainda não fizeram que o façam e ao que fizeram que reelaborem seus escritos.
O planejamento tomado como um “bom” planejamento, para o professor formador, que deveria ser tomado como modelo é dividido em duas partes. A primeira parte traz o relato de como pretende conduzir sua prática vinculando-se a verdades pedagógicas muito comuns no âmbito escolar como o preocupar-se com as lacunas conceituais dos alunos: E2: Bom, eu fiz bem diferente, porque eu ainda não elaborei todas as aulas, então eu fiz um texto do que eu pretendo fazer: “O trabalho a ser desenvolvido com a turma 1B no período da minha prática deveria versar exclusivamente sobre o estudo das funções. Durante o período de observações pude constatar que a maioria dos alunos não tem uma
C3
artigos
Na medida em que se solicita que o planejamento seja um documento escrito, pode-se entendê-lo como uma técnica que faz com o sujeito estabeleça alguma relação com as verdades pedagógicas.
4
Referência ao professor que orienta a disciplina de estágio de docência.
54
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Na escrita do planejamento, um exercício que faz com que o sujeito estagiário seja, de certa forma, “colado” a determinadas verdades, prescrições, dá-se a constituição de um sujeito bom professor de matemática na medida em que vincula e mede a sua conduta ao atendimento de determinado código.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
compreensão adequada dos conjuntos numéricos nem mesmo uma relação de ordem entre os números, estes são conhecimentos necessários para desenvolver o conceito de função, imagem e domínio. Dessa forma venho propor um trabalho que envolva funções, mas que provoque os alunos a necessidade de que certos conceitos sejam revistos e, dessa forma, retomar conteúdos que já deveriam estar dominados e avançar a ponto de podermos, de fato e com propriedade, explorar verdadeiramente os conceitos pertinentes ao estudo de funções.” [...]5
Na segunda parte do plano de ensino, o E2 sistematiza seu plano de ação: E2: [...] Então, escrevendo minha proposta, passo-a-passo, temos o seguinte: 1º Momento: apresentar gráficos envolvendo informações do cotidiano e provocar os alunos para que tentassem elaborar alguma leitura deles, por exemplo: se eles são capazes de visualizar o crescimento e decrescimento em gráficos e se conseguem comparar gráficos e estabelecer relações entre eles.
3º Momento: partindo do processo de divisão serão relembrados conceitos como fração e suas operações, a relação de ordem entre frações, o surgimento de dízimas periódicas e, por fim, aproveitaria para explorara existência de números irracionais e de como estabelecer estimativas para valores de raízes inexatas.
artigos
2º Momento: apresentar gráficos e solicitar que os alunos colham informações e estabeleçam comparações utilizando porcentagem, neste momento os alunos terão a possibilidade de relembrar como usar a regra de três e em função delas necessitarão de operações com números, principalmente divisão.
4º Momento: dado que neste passo, os alunos terão uma compreensão mais abrangente do conceito de números e da 5 Em fonte Arial 10, espaçamento simples e alinhamento justificado, os excertos são assim apresentados para diferirem das citações longas deste artigo. C3
55
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
relação entre eles, seria reconstruído o conceito de intervalo real e suas peculiaridades, principalmente as noções de aberto, fechado e continuidade. Além disso, se os alunos se mostrarem receptivos poderia mencionar o conceito de infinito e suas variações. 5º Momento: Retomaria o conceito de função, imagem e domínio e proporia a leitura de gráficos onde os alunos sistematizariam o uso desses conceitos. 6º Momento: Abordaria as funções de 1º e 2º graus, seus gráficos e suas peculiaridades. Desse modo, os estagiários, para Lenzi, “[...] ao elaborarem seus planejamentos de ensino, relatam suas intenções e a maneira como iriam abordar os conteúdos na sala de aula, deixando transparecer a identidade com a qual ‘pretendiam se vestir’ em suas práticas de ensino.” (2008, p.75). Sobre esse ato de escrever, dessa prática de si dos estagiários, seguem os seguintes excertos:
C3
artigos
E1: Também quero que os conhecimentos matemáticos sejam construídos através da discussão e da participação efetiva dos alunos. Pretendo que os alunos sejam motivados na construção do conhecimento defrontando-se com situações palpáveis, onde o conteúdo possa ser aplicado. A minha intenção é a de, antes de começar a dar o conteúdo, trazer uma questão ou uma situação onde aquele conteúdo se faz necessário. Quero que eles tentem fazer e, ao não conseguir, queiram saber como é que se resolve isso.[...] Não adianta eu pedir que eles façam alguma coisa que eles não estejam motivados a fazer. Para motivar eu vou trazer questões e desafios que interessem eles. Eu acho que a partir de situações que eles se interessem em fazer, eu vou provocar uma discussão, um debate, a argumentação e a construção dos conceitos.[...] A sujeição a uma verdade faz do estagiário seu objeto. Frente ao jogo de verdade da ciência pedagógica, o momento em que o estagiário traz para si uma prescrição, um preceito moral, vincula-se aquela verdade através da escrita e passa, a partir dessa fixação, a entender-se e a enunciar-se como um bom professor. A importância e a necessidade da contextualização do ensino para dar sentido a aprendizagem, como um imperativo do “bom” professor, segundo Bello (2011)6, se dá através da noção de 6
Excerto proferido na palestra “Saberes, Poderes e Práticas escolares: olhan-
56
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
[...] é pela proposição da contextualização, para além dos jogos científicos e teóricos, neste caso do discurso da educação matemática, emergir uma possibilidade de constituição do sujeito bom professor, na medida que a contextualização opera como regra de conduta do seu fazer docente.
Conforme Bampi (1999) e Santos (2011) essa “pretensão” do discurso da educação matemática, em transformar o conhecimento matemático em uma ferramenta que possibilitaria a “transformação da sociedade” e a “formação do cidadão”, lida no trecho a seguir, assujeita os estagiários e colocam como verdade única modos de como ensinar e aprender matemática. Sem um exercício de pensamento sobre tais prescrições, eles não se conduzem de maneira diversa da imposta por tais verdades.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
jogo associada à verdade, uma condição para a produção de subjetivações e assujeitamentos, para a constituição de “eus” através da produção de crenças e certezas que fixam, mantém e transformam identidades. Assim
E3: Quero trabalhar com eles a “auto-estima intelectual”com a matemática.[...] Eles acham que não tem condições de fazer vestibular, que uma coisa muito distante deles, que o negócio deles é ser operário, eles não veem a possibilidade de continuar estudando e fazer com que o ensino melhore suas vidas. Também presente nos ditos do estagiários, prescrições advindas da matemática acadêmica como a que destaca que
artigos
“A Matemática é uma boa escola para o raciocínio demonstrativo”. Esta afirmativa soa bem familiar — algumas formas dela são provavelmente quase tão velhas quanto a própria Matemática. De fato, muito mais é verdade; Matemática tem quase o mesmo significado que raciocínio demonstrativo, o qual está presente nas Ciências na medida em que os seus conceitos se elevam a um nível lógico-matemático suficientemente abstrato e definido. Abaixo deste alto nível, não há lugar para raciocínio verdadeiramente demonstrativo (o qual não tem lugar, por exemplo, nas tarefas do dia-a-dia). Ainda assim (é desnecessário discutir-se tal ponto, tão amplamente aceito) os professores de Matemática devem colocar os seus alunos, salvo os das classes mais elementares, em contato com o raciocínio demonstrativo: Faça-os do para o governo dos sujeitos da educação matemática”, no II Congresso Nacional de Educação Matemática / IX Encontro Regional de Educação Matemática – Ijuí, em 09 de junho de 2011.
C3
57
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
aprender a demonstrar. [em itálico, grifo do autor e em negrito, grifos meus] (POLYA, 1987, p.6).
Como pode-se ser lido no seguinte trecho do estagiário3 (E3):
E3:O objetivo da aula é demonstrar o teorema de Pitágoras e justificar as manipulações algébricas envolvidas na resolução de uma equação. [...] Eles tem uma ideia de que matemática é resolução, fazer contas, essa demonstração ela é pra mostrar que a matemática vai bem além disso, de fazer contas, a matemática se preocupe em porque tu podes fazer aquelas contas. Aqui eu trago uma demonstração. Em algum momento da vida eles tem que ver isso![...] Eu não estou preocupado que eles aprendam essa demonstração, eu tô preocupado em mostrar para eles como é a matemática de verdade, a matemática que não é só resolução de contas, que tem demonstrações.
Valoração à escrita e ao rigor matemático são verdades acadêmicas matemáticas que consideram que o bom professor de matemática deve trabalhar com seus alunos, aulas pautadas pelo rigor matemático, alertando para as simplificações, os reducionismos e as tranposições didáticas. Continua E3: E3: Aí é que está, aqui na escrita eu sou rigoroso, mas lá, como é que eu vou colocar tudo isso no quadro, através de exemplos, através até da resolução da aplicação da fórmula do Teorema de Pitágoras, eu vou mostrar esse axioma aqui, por exemplo, tu podes somar quantidades iguais do dois lados que não altera a igualdade, por isso que um número pode ir de um lado pro outro [...] Mas eu falei lá em cima, lá em cima tá escrito. Mas quando temos um triângulo retângulo e queremos determinar o valor de x, vamos utilizar o Teorema de Pitágoras. Mas o que garante cada etapa da resolução desta equação? Aí é que vem o axioma, entendeu? Ali tá o exemplo 52 = x2 + 32, eu quero determinar o valor de x, aí tem as etapas, mas o que justifica e dá respaldo teórico, que valida cada uma dessas etapas? A repetição das verdades do discurso pedagógico construtivista demonstra o assujeitamento do estagiário à uma verdade, na qual o indivíduo estabelece sua conduta a partir de uma sujeição a ela. A ativação dessa verdade é fixada no estagiário através da prática da escrita do seu plano de aula: E1: Meu planejamento é bem geral. Coloquei meus objetivos: De que os alunos tenham possibilidade de construir conhecimento num ambiente de debate, questionamento e construção de argumentação. Ou seja, quero fazer diferente do que está sendo feito em sala de aula com aquela turma. Quero que
58
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Debate, questionamento e argumentação são ideias também atreladas às verdades discursivas circulantes no meio pedagógico no sentido de se chegar a uma só verdade, no caso, a verdade do construtivismo, uma prescrição desse jogo de verdade dessa tendência metodológica que dita que o processo pedagógico possui essa única via a ser percorrida.
Essa busca por uma única e não por múltiplas verdades, em meio
a uma “[...] disseminação das verdades inquestionáveis [...]” (SANTOS, 2011, p.07) é o que preocupa, pois é justamente ao questioná-la, ao colocá-la em suspenso que estagiário pode vir a transitar por outras verdades e ter um pensamento de caráter ético, um pensamento que problematize as verdades pelas quais está sendo atravessado e venham a se inscrever em sua constituição docente.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
eles participem da aula, que deem suas sugestões para que, depois das argumentações e dos debates, se consiga chegar num consenso do conhecimento que a gente quer construir. [...]
Expressões como “Meu planejamento””, “meus objetivos”, “quero fazer diferente”, “Quero que eles participem” manifestam uma relação de si para consigo, entretanto é possível perceber que a finalidade não é a constituição do “eu”, mas sim da própria verdade científica. Reconhecer o planejamento como algo seu é um primeiro passo no caminho para uma constituição singular, mas não é suficiente. É preciso ainda uma ação, um exercício de pensamento para que o planejamento venha a receber os resultados de uma reflexão ética.
Num primeiro momento, assujeitado à questão do saber e do poder, o planejamento é uma prática. Contudo, há um espaço para a possibilidade desse exercício de pensamento. Assim, o planejamento pode ser um lugar de produção de condutas éticas, de produção de sentidos para si, um espaço para um exercício de pensamento, pois se pensa sobre ações que serão realizadas, sobre as posturas que serão
artigos
Realizar um planejamento específico, ao invés de um geral, é uma prática que possivelmente possibilitaria por em suspenso os discursos pedagógicos até então reconhecidos como verdadeiros, resultando em movimentações éticas, em outras formas de conduzirse, uma possibilidade de constituir-se singularmente.
C3
59
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
tomadas, de modos de agir singulares.
FINAL DE JOGO (?): DOS MODOS DE SER PROFESSOR DE MATEMÁTICA A fim de mostrar como um jogo de verdade pode vir a tornarse um jogo ético, discutiu-se a constituição do bom professor de matemática como efeito de um código de conduta moral e a classificação de uma boa prática pedagógica como sendo vinculada a medida do atendimento de tais prescrições e verdades. Há desejos na intencionalidade dos discursos, incitados nos estagiários, de igualarem-se aos modelos de condutas, entendidos como sendo modos de ser e de agir de bons professores de matemática. Entendeu-se que nesse espaço, entre o estagiário e a verdade que lhe provoca a tornar-se um bom professor, encontramse as possibilidades de jogar com as regras, com as prescrições morais que lhe são ofertadas para que possam, ao munir-se dessas verdades, cuidarem-se de si mesmos, respondendo eticamente ao constituíremse, tornando-se docentes éticos matemáticos com possibilidades estéticas. Essa (re)constituição ética com possibilidades estéticas que está em constante re/de/trans/formação está longe de ser um novo modelo a ser proposto. Mais do que uma relação causa-efeito, se trata de uma possibilidade de postura adotada pelo sujeito de efetuar combinações, de modificar e remodelar sua conduta, de compor modos outros de ser professor na medida em que exercita a sua relação com as verdades dos discursos, convertendo suas regras, exercendo, assim, uma prática de liberdade e produzindo outras possibilidades de ser docente em seus modos de conduzir-se, encontrando formas de (re)inventar-se enquanto professor em meio aos jogos de verdade que se encontra.
C3
REFERÊNCIAS AURICH, Grace Da Ré. Jogos de verdade na constituição do bom professor de matemática. Porto Alegre, 2011. 117f. + Anexos + DVD. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio
60
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.
BAMPI, Lisete. Efeitos de poder e verdade do discurso da educação matemática. Revista Educação e Realidade, Porto Alegre, v.24, n.1, jan./jun. 1999. BELLO, Samuel Edmundo. Discursividades e práticas analíticas: (re) inventando estratégias investigativas em educação matemática. In: Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino. 15, 2010, Belo Horizonte. Anais. CD-ROM. BELLO, Samuel Edmundo. Saberes, Poderes e Práticas Escolares: olhando para o governo dos sujeitos da Educação Matemática. Ijuí: UNIJUÍ, 2011. (Palestra no II Congresso Nacional de Educação Matemática / IX Encontro Regional de Educação Matemática).
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
AURICH, Grace Da Ré; LÓPEZ BELLO, Samuel Edmundo. Jogos de verdade na constituição do bom professor de matemática. In: CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, II / ENCONTRO REGIONAL DE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, IX, 2011, Ijuí. Anais do Congresso Nacional de Educação Matemática. Ijuí: UNIJUÍ, 2011. p.112.
BIRMAN, J. Jogando com a verdade: uma leitura de Foucault. PHISIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 12(2):301-324, 2002. CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. As teias da razão: Wittgenstein e a crise da racionalidade moderna. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2004. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Trad. de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. FOUCAULT, Michel. A ética do cuidado de si como prática de liberdade. In: Ditos e escritos V: Ética, sexualidade, política. MOTTA, Manoel Barros da (org). 2 ed. Trad. Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006a. p.264-287.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: O Uso dos Prazeres. Trad. de Maria Thereza da Costa Albuquerque. 10.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984. FOUCAULT, Michel. Verdade e poder. In: MACHADO, Roberto. (Org.) Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2007. p. 1-14. LENZI, Giovana da Silva. Prática de Ensino em Educação Matemática: a constituição das práticas pedagógicas de futuros professores de matemática. Porto Alegre, 2008. 106f. + Anexos. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008.
artigos
FOUCAULT, Michel. O Uso dos prazeres e as técnicas de si. In: Ditos e escritos V: Ética, sexualidade, política. MOTTA, Manoel Barros da (org). 2 ed. Trad. Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006b. p.192-217.
C3
61
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
POLYA, George. Dez Mandamentos para Professores. Revista do Professor de Matemática, São Paulo, nº 10, p. 2-10, 1987. SANTOS, Suelen Assunção. Formação de Professores de Matemática e a Filosofia da Diferença. In: XIII Inter American Conference on Mathematics Education, 2011, Recife. Anais da XIII Inter American Conference on Mathematics Education. Recife : EDUMATEC-UFPE, 2011. p. 1-12. SILVA, Tomaz Tadeu. O adeus às metanarrativas educacionais. In. SILVA, Tomaz Tadeu (Org.) O sujeito da Educação: estudos foucaultianos. 2 ed. Petrópolis, RJ: Vozes. 1994. p. 247-258. WEYNE, P. O último Foucault e sua moral. Trad. De Wanderson Flor do Nascimento. Critique. Paris, v. XLIL, n. 471-472, p. 9333-941,1985. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Trad. de Marcos G. Nontagnoli. Petrópolis: Vozes, 2008. Artigo recebido em 10/01/2018
C3
artigos
Aprovado em 12/03/2018
62
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
artigos C3
63
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
64
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
artigos C3
65
Foto: Wagner Ferraz
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
TRAÇANDO CAMINHOS DANÇANTES NAS RUAS DE PELOTAS
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
Artigo 3
66
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Drª. Carmen Anita Hoffmann, UFPel, Cruz Alta/RS1 Me. Débora Souto Allemand, UFPel, Pelotas/RS2 Resumo: O presente texto refere-se ao projeto de extensão Caminhos da Dança na Rua, do Curso de Dança-licenciatura da Universidade Federal de Pelotas. O tema central do trabalho é o de propor diálogos entre a cena de dança e o cotidiano da cidade para um grupo de participantes chamados a partir de divulgação nas redes sociais. Como aporte teórico buscou-se subsídios em Jacques (2002), Rancière (2005), Spolin (2005), Strazzacappa (2012), entre outros. Os encontros acontecem em “espaços seguros” e “espaços de risco” (FREITAS, 2011), refletindo em diferentes poéticas e percepções da cidade de Pelotas. A comunidade se envolve direta e indiretamente no processo de experimentação na rua, papéis de espectador e artista se tornam borrados e os participantes têm encontrado outras danças em si mesmos.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
TRAÇANDO CAMINHOS DANÇANTES NAS RUAS DE PELOTAS
Palavras-chave: Cidade. Dança. Arte de Rua. Pelotas. Performance.
MAPPING DANCE WAYS IN PELOTAS’ STREETS Abstract: This text is about the Caminhos da Dança na Rua extension project, from Universidade Federal de Pelotas Dance Course. The work main reason is about dialogues between the dance scene and the city daily to a group guest through social networks advertising. To do the text’s bibliography, we used the autors: Jacques (2002), Rancière (2005), Spolin (2005), Strazzacappa (2012), and others. The meetings
artigos
1 Professora do Curso de Dança-licenciatura da Universidade Federal de Pelotas – UFPel. Arquiteta e Urbanista. Doutora em História - PUCRS. Líder do grupo de pesquisa Observatório de Culturas Populares e membro do Grupo Dança e Educação/ Cidade+Contemporaneidade UFPel. Coordenadora da Câmara de Extensão do Centro de Artes e coordenadora adjunta do NUFOLK - UFPel. Criadora e colaboradora do Projeto de Extensão “Caminhos da Dança na Rua”, coordenadora do projeto de extensão Festival Internacional de Folclore e Artes Populares, do projeto de pesquisa Aspectos Históricos da Dança no RS e do projeto de ensino Valise Cultural . carminhalese@yahoo.com.br. 2 Professora substituta no curso de Dança-Licenciatura UFPel. Arquiteta e urbanista pela UFPel. Licenciada em Dança pela UFPel. Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFPel. Trabalha com intervenções urbanas, relacionando dança e cidade. Vice-líder do grupo de pesquisa Cidade+Contemporaneidade. Coordenadora do Projeto de Extensão “Caminhos da Dança na Rua”. deborallemand@hotmail. com.
C3
67
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
happens in “security spaces” and “risk spaces” (FREITAS, 2011), causing different poetics and perceptions of Pelotas’ city. The community is involved directly and indirectly in the street experimentation process, role of viewer and artist are mixed and the participants are finding other dances in himselves. Key-words: City. Dance. Street Art. Pelotas. Performance.
Em virtude do encontro e compartilhamento de duas arquitetas-bailarinas ou bailarinas-arquitetas, ambas com interesse na interdisciplinaridade das áreas, nasceu o projeto Caminhos da Dança na Rua que, como o próprio nome já indica, é um espaço-tempo que contempla as inquietações e desejos acerca da relação poética das pessoas entre si e com o espaço público – arquitetônico e urbano. O objetivo da proposta, sobretudo, é o de experimentar movimentos corporais a partir do/e com o espaço urbano.
C3
artigos
A cidade contemporânea, em geral, é um lugar de mudança constante e, por isto, de grande potência para a criação artística, abrindo possibilidades de diferentes sensações e movimentos e ampliando as formas de fazer e compreender dança. Assim, diversos grupos de arte utilizam a rua como espaço de afirmação política e buscam na cidade inspiração para suas obras. Além disso, a arte de rua faz com que as pessoas percebam sua cidade, que geralmente é desconhecida pelos cidadãos, fomentando uma participação ativa na vida pública das pessoas. A ginga e a dança parecem diluir os espaços, transformando o espaço em movimento, pois temporalizam o espaço. A arte do tempo, a música, e a arte do espaço, a arquitetura, se casam na dança, arte do movimento (JACQUES, 2002, p. 61).
A partir da divulgação por meio das redes sociais, atendendo ao chamado por interessados(as) em parkour3, performance e intervenções urbanas, um grupo corporalmente diverso se formou. Nessa congruência, alguns queriam movimentos mais artísticos, plásticos, estéticos, enquanto que outros queriam movimentos com maior cunho político, que discutissem sobre o espaço e a sociedade, 3 Parkour é um esporte urbano, cujo princípio é mover-se de um ponto a outro o mais rápido e eficientemente possível, usando principalmente as habilidades do corpo humano.
68
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
ocasionando uma diversidade de demandas e estéticas (figura 1). Assim, a rua foi e é capaz de unir esses dissensos. Os participantes tinham liberdade, também, para propor sobre o que queriam falar, onde queriam ir e seus desejos e necessidades de expressão.
Figura 1: Grupo com diferentes cunhos: político e estético. Fotos: Carmen Hoffmann e Débora Allemand, 2015.
artigos
As ações são trabalhadas por meio de experimentações individuais e contato-improvisação4. Dessa forma, durante o andamento do projeto, o próprio grupo e a rua é quem dão “pistas” para as performances, unindo os desejos do grupo e atentando ao que os espaços utilizados sugerem. Ou seja, o processo e a resposta que a cidade dá aos corpos definem os próximos passos. Isso faz com que se
4 Contato-improvisação é uma técnica de dança criada por Steve Paxton na década de 1970. Consiste em criar movimentos a partir do contato entre dois corpos, utilizando de improvisação, equilíbrio, peso e confiança entre os “contatistas”. O objetivo não era pensar na estética do movimento, mas fazer o que era possível. Além disso, era uma forma de democratizar a dança, “qualquer um poderia começar a praticar quase imediatamente, pois não havia um vocabulário a aprender como há nas técnicas de dança moderna” (LEITE, 2005, p. 94). C3
69
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
desvende e se invente uma Pelotas que surge a partir do contato do corpo dos bailarinos com o corpo da Arquitetura, onde um transforma o outro constantemente, atingindo, inevitavelmente, os transeuntes5 que passam pela rua.
Os Corpos os Espaços O grupo apresenta uma pré-disposição favorável às propostas, o que facilita o cuidado entre seus integrantes, já que a rua é um local de grande exposição e de difícil concentração. Por isso, são trabalhados jogos6 com ênfase na concentração e na percepção corporal dos estímulos que a rua provoca nos sujeitos. Atualmente, os encontros são mesclados entre “espaços seguros” – sala de aula – e “espaços de risco” – cidade (FREITAS, 2011). Nesse processo, os “corpos disponíveis”, com e sem experiências intrinsecamente ligadas às artes, participam tanto dos laboratórios de experimentações corporais (principalmente com preparação corporal), improvisações e jogos, quanto das saídas a campo desempenhadas nas ruas de Pelotas (figura 2).
Figura 2: Espaço seguro e espaço de risco: sala de aula e rua. Fotos: Débora Allemand, 2015.
5 outro.
Aqueles que estão de passagem na cidade, que transitam de um lugar a
6 No jogo, cria-se um ambiente no qual as pessoas sintam-se livres para experimentar, a partir de uma atividade que faça a espontaneidade acontecer. Essa experiência acontece através do envolvimento do grupo no próprio jogo, que é capaz de desenvolver técnicas e habilidades próprias para o jogo através do ato de jogar. Durante o jogo, o jogador é livre para inventar soluções para qualquer problema que o jogo apresente, desde que seja para atingir o objetivo e que obedeça as regras estipuladas anteriormente. Os jogadores tornam-se ágeis, alertas, prontos e desejosos de novos lances ao responderem aos diversos acontecimentos acidentais simultaneamente (SPOLIN, 2005).
70
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Já o espaço da cidade é, para nós, um lugar “desconhecido” e, para conhecê-lo, é necessária uma observação atenta sobre ele e as pessoas e atividades que nele vivem e acontecem. Um lugar de experimentação, de abertura para que o movimento surja a partir da relação do corpo no espaço e não a partir de concepções de movimentos prévios àquele local. Um lugar que muda constantemente e, por isso, a “preparação” também é estar atento às mudanças. O exercício viewpoints8 foi um dos que auxiliou o grupo nessa observação,
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Os espaços de sala de aula, com piso adequado para práticas de dança que utilizam o chão, possibilitam uma breve experimentação das técnicas mais voltadas à educação somática7. Visou-se trabalhar com alavancas corporais, respiração, trabalho de queda e recuperação, contato e improvisação, atenção aos estímulos etc. Esse tipo de técnica é o que mais se adequa ao projeto no momento, por possibilitar a consciência corporal dos participantes.
estimulando o movimento a partir do outro e do espaço (figura 3). As movimentações trabalhadas, neste caso, surgiram, principalmente, do repertório de cada um.
artigos
7 A educação somática vem sendo utilizada por alguns artistas da dança para o tratamento e prevenção de traumas e lesões. Ela é usada também por ser uma técnica capaz de possibilitar a ampliação das capacidades expressivas dos praticantes, desenvolvendo a qualidade da presença cênica e trazendo a consciência do movimento. O principal objetivo da educação somática é fazer emergir formas e posturas mais eficazes, ou seja, máximo de aproveitamento com o mínimo de esforço (STRAZZACAPPA, 2012). 8 Viewpoints é uma técnica de improvisação e composição criada por Anne Bogart e Tina Landau. “A base dessa técnica é a decomposição da percepção, análise e construção de significados, em cena, pelo movimento – portanto, pela relação do corpo com o espaço e com o tempo - a partir de nove perspectivas: tempo, duração, resposta cinestésica, repetição, forma, gesto, arquitetura, relação espacial e topografia” (FERREIRA; FALKEMBACH, 2012, p. 71).
C3
71
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Figura 3: Realização do exercício Viewpoints. Foto: Geovana de Carvalho e Débora Allemand, 2015.
Percebe-se uma linha tênue entre os estados cotidiano e extracotidiano (BARBA e SAVARESE, 1995) durante as performances, fazendo com que a vida esteja muito presente nos exercícios, já que se experimentam espaços onde passam pessoas a todo o tempo e, muitas vezes, se realizam paradas para conversar com algum conhecido ou para falar com alguém que tenha perguntado o que estava acontecendo. Por isso, a ideia é justamente criar uma concentração que não se feche em si mesmo, mas sim uma concentração que se adeque a responder aos estímulos do entorno ao mesmo tempo em que se segue em estado extracotidiano.
A partir do uso dos figurinos no espaço da rua, surgiram ideias que relacionavam o figurino com o espaço, onde o tecido era o motivador para a criação do movimento. Além disso outros artefatos, advindos das ações cotidianas dos espaços públicos, como caixas de embalagens das mercadorias, animais que circulam pela cidade, natureza urbana, entre outros, provocam movimentos diversos e compõem de forma inusitada a cena que se estabelece no momento das ações artísticas (figura 4).
C3
artigos
Relatos... (Per)formando, analisando e (trans)formando
72
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Figura 4: Performances durante o ano de 2015, Pelotas. Fotos: Débora Allemand e Carmen Hoffmann, 2015.
artigos
A ideia de que na rua sempre se está “apresentando” algo não tem definido uma produção e sim experimentações, que são assistidas por algumas pessoas dependendo do lugar onde se performa (figura 5). Percebe-se que os encontros que aconteceram no bairro Porto, próximo à Universidade Federal, exigiram maior quantidade de registro de vídeo e foto, já que poucas pessoas viram o que estava acontecendo, para que o material registrado pudesse vir a ser editado mais tarde. Nos espaços mais centrais da cidade, onde se tinha um público maior, as câmeras muitas vezes “denunciavam” que algo artístico estava acontecendo, já condicionando as pessoas a pensar de certa forma ou confortando-os com aquele evento.
C3
73
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
C3
artigos
Figura 5: Olhares atentos das crianças durante a Feira do Livro, na Praça Coronel Pedro Osório. Fotos: Débora Allemand, 2015.
Durante o ano de 2015 surgiram muitas leituras a respeito da dinâmica do espaço. Em cada local que eram realizados encontros, as pessoas se comportavam de uma maneira e isso influenciava o grupo de formas diferentes, do mesmo modo que modificava os participantes da dinâmica dessa estrutura. Corpo e cidade estão em relação constante e para pensar sobre corpo é necessário pensá-lo junto com o contexto em que ele está imerso, pois esses dois estão em constante troca. Por isso, Miranda (2008), sugere que o corpo do nosso tempo não é mais um corpo próprio e que se tornou corpo-espaço, em eterno vir a ser. Uma das leituras do espaço foi de Helena Lessa, sobre os espaços experimentados nas aulas:
74
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Entretanto, hoje vivemos em espaços previsíveis, sem a possibilidade da surpresa e da experiência. Paradoxalmente, vivemos em meio à multidão de habitantes das cidades e, ao mesmo tempo, não temos troca com o outro, porque não temos tempo de parar para pensar, parar para sentir (BONDÍA, 2002). O espaço público tornouse principalmente espaço de circulação e perdeu seu caráter de socialização (SOUZA, 2011).
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Percebo contrastes na cidade. Ao mesmo tempo em que vejo pessoas correndo sem olhar para os lados (e para a frente e para trás), ou olhando apenas para o celular e tropeçando nas calçadas, percebo também pessoas curiosas que sentam no banco da praça e observam a cidade. Esses contrastes, pelo que percebi até então, estão muito relacionados com os lugares frequentados. No calçadão, a correria é evidente, mas na praça percebi muita gente curiosa com as nossas atividades.9
Os condomínios fechados e os shoppings acarretam obstáculos na cidade e há o aumento do convívio só com os iguais. Criam-se guetos homogêneos. E essa falta de uso do espaço público despolitiza a cidade, pois é no dissenso, segundo Rancière (2005), que está o cerne da política10. Um exemplo que ocorreu em Pelotas, é que muitos reagiram aos nossos movimentos incomuns falando frases como: “tô gostando, mas não entendi” ou, “isso é uma palhaçada”. Para o autor, um lugar onde falta política, é um lugar que sobra polícia, onde se visa excluir tudo o que é diferente e regular a ordem. No Porto de Pelotas, vimos “vidros quebrados, pichação, lugares abandonados” (Geovana de Carvalho)11, lugares que são barreiras,
artigos
9 Na linha de raciocínio de Halbwachs (2013) é que se optou por citar depoimentos dos participantes no decorrer do texto do projeto e estes constam em itálico para diferenciar das citações bibliográficas. Ele defende a ideia da memória tratarse de um “vestígio”, um fato documentado e, no caso aqui, através de depoimentos orais de alguns de seus protagonistas mais significativos. Daí que a escolha pela oralidade entra como elemento-chave no desenvolvimento do registro, uma vez que a diversidade de seus protagonistas resulta em diferentes vestígios de memória, acompanhando a diversidade das experiências vividas nas diferentes situações, caracterizando as interpelações discursivas individuais e coletivas do grupo. 10 A política é “a possibilidade de opor um mundo comum ao outro” (RANCIÈRE, 2005). 11
Escrita de uma participante. C3
75
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
que não se comunicam com o espaço público (figura 6). E o que isso diz sobre a política da cidade? A arte, mesmo sem querer, entra como uma “ampliadora” das características e relações que acontecem no espaço urbano. A proposta era pensar em fazer arte com a cidade e não na cidade, por isso, muitas das ações realizadas trouxeram à tona características do espaço onde estavam inseridas.
Figura 6: Paredes, muros e barreiras no Porto de Pelotas. Foto: Geovana Carvalho, 2015.
C3
artigos
Possivelmente, o individualismo cada vez maior dos cidadãos, “cada um com sua luz esquivando-se pelas arestas frias, protegendo a si mesmo da ordem em desuso que os ronda” (Sarah Leão)12, causa a dificuldade da relação com o diverso. As pessoas, na sua rotina inalterada, cada vez menos olham para o lado, estão impregnadas do trabalho e se mostram indignadas com o fazer artístico, por este não ter caráter produtivo. Revelam, assim, o incômodo com sua própria situação de sujeitado pelo sistema no momento em que verbalmente propõe a aguda agressividade com os artistas, que lhes parecem “vagabundos” (ILDEFONSO, 2012, p. 83).
Assim, a arte de rua deve ter o cuidado em não afastar as pessoas. Ela pode ser uma maneira de atentar para o espaço, mas não rompendo com o que as pessoas estão acostumadas e não fazendo com que as pessoas se sintam oprimidas, mas que fiquem curiosas 12
Escrita de uma participante.
76
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
com o que está acontecendo. Uma das formas de aproximação do público foi a realização de ações engraçadas e lúdicas (figura 7). Estas proporcionaram às pessoas que passavam “entrarem no jogo” e interagirem com os participantes.
Figura 7: Ações lúdicas a partir do movimento dos cachorros na rua. Fotos: Débora Allemand, 2015.
artigos
“É quando o passo vira dança que o espaço em movimento pode ser apreendido. A compreensão desse tipo de espaço se faz através do corpo, através da ginga, uma vez que o próprio espaço é gingado” (JACQUES, 2002, p. 63). Esta autora fala da favela, um lugar diverso do traçado xadrez da cidade de Pelotas, mas, através das falas do grupo, é possível compreender que os espaços por onde passamos também têm movimento, tanto é que cada um encontrou e inventou uma Pelotas diferente. Mas o espaço só se abre ao movimento para quem o percorre com todos os sentidos, para quem está aberto à transformação corporal pelo espaço:
C3
77
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Só não pode cair no vão o cheiro das folhas no chão, a textura das paredes descascadas, o sabor das ruas molhadas. Somos seres galopantes, fragmentos de saberes. Troca o toque e reutiliza o gesto em cada encaixe. Em cada fresta de corpo desocupado. Pode se preencher com o vento ou com o fato (Sarah Leão).13
Então, a cidade proporciona sensações que não só passam pelo corpo como o constituem. Como descrever o sol que toca nossa pele quando estamos de olhos vendados? Como descrever o vento, que nos desestabiliza e influencia diretamente no nosso corpo? Podemos ir até o limite, deixar o vento nos empurrar até cairmos no chão, podemos tirar uma perna do chão e brincar com o desequilíbrio ou não, contraímos o abdômen e vamos em frente, enfrentamos. As aulas na rua ou na sala nos fazem ter discussões sobre essa Pelotas muitas vezes esquecida, abandonada, mas que respira arte, cultura e muitos movimentos. Eu sempre soube dessa parte, mas poder sentir, tocar e estar na rua está fazendo com que minhas memórias corporais se aflorem e eu tenha cada vez mais curiosidade de conhecer outros cantos e ventos dela (Karen Rodrigues).14
Sabe-se que a proposta de intervenção urbana não é inovadora, já que desde 1950 muitos movimentos de arte lutam pelo seu espaço na cidade, discutindo e reinventando o que é coreografia e o que é dança. Entretanto, para o curso de Dança da UFPel, o projeto veio preencher uma lacuna, onde foi possível reunir artistas de diversas áreas e com diferentes objetivos no contato do corpo com a rua, também rediscutindo o que é dança e o que é coreografia. Entende-se que o mais importante para o grupo seja produzir movimentos que tenham relação com o espaço. Esse espaço por vezes é físico e por vezes é uma relação que acontece na cidade, podem ser as pessoas que passam na rua ou as atividades que estão acontecendo ali. Estímulos diversos dos que se têm nos espaços tradicionais (teatros, salas de espetáculo) proporcionam aos participantes encontrarem outras danças em si mesmos.
C3
artigos
Considerações
13
Escrita de uma participante.
14
Escrita de uma participante.
78
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Pode-se pensar que a arte na rua nem sempre aproxima o público do artista, nem sempre forma público, embora estabeleça uma relação diferenciada com os transeuntes da cidade, dialogando de maneira diversa da relação artista-público do teatro. A dança na rua tem que ter um cuidado muito maior para não afastar as pessoas, não criar uma barreira que rompe com o cotidiano das pessoas e sim criar uma linha de fuga a partir daquilo que elas estão acostumadas. Foi possível perceber que as ações engraçadas e lúdicas proporcionaram às pessoas que passavam se aproximarem mais da proposta.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Assim, a comunidade é envolvida direta e indiretamente no processo de experimentação na rua. Muitos questionam o que está acontecendo, outros até “entram na dança” e conversam corporalmente com os participantes e alguns somente observam os caminhos que a dança toma. Mas papéis de espectador e artista ficam borrados, misturados. O simples fato de ter alguém vivenciando a rua de modos não habituais é, em si, uma experiência extracotidiana, com potencial de fazer as pessoas sentirem e perceberem outras vivências poéticas, estimulando a fruição em arte, pela estranheza arrancandoas de um possível estado de inércia. Então, experimentantes e passantes criam, fazem e refazem conexões a todo momento.
Na maior parte dos encontros, se buscou locais possíveis de se relacionar com mais pessoas. Locais mais centrais, mais povoados. Talvez por uma necessidade de divulgar a dança, talvez por uma necessidade de se relacionar com o espaço vivo da cidade, o espaço que se modifica a cada momento em que uma pessoa diferente passa.
artigos
A conexão entre o grupo participante, independente da quantidade de pessoas, permitiu uma exploração abrangente, do corpo que dança em movimento com arte na rua. Os participantes estão motivados e envolvidos com o projeto ao ponto de buscarem possibilidades de participação em eventos, da mesma natureza, já consolidados em outras ruas de outras cidades e de outros Estados. As ações caracterizam-se como desdobramentos desafiantes das práticas do Curso de Dança Licenciatura, pois sugerem algo que se estende para além das “fronteiras” do curso, além dos espaços cênicos tradicionais, abrindo espaços para que a curiosidade alheia
C3
79
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
sirva-se dos conhecimentos que ali emergem, despertando interesses, alimentando inclinações e simpatias. Ou seja, existe para difundir saberes e experiências, até então, novas. Por fim, seja pela curiosidade ou pelo incômodo, o Caminhos tem se mostrado e mostrado outros modos de dança possíveis, que o tempo de (re)descobrimento de si e do mundo não precisam ficar velados. O projeto disponibiliza um acervo visual e audiovisual que pode ser acessado na página de rede social: < https://www.facebook. com/caminhosdarua/?fref=ts>.
Referências BARBA, Eugênio; SAVARESE, Nicola. A arte Secreta do Ator. São Paulo, Campinas: Hucitec/UNICAMP, 1995. BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação. 2002, n.19, pp. 20-28. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/n19a02.pdf>. Acesso em 14/ago/2016. FERREIRA, Taís; FALKEMBACH, Maria Fonseca. Teatro e Dança nos anos iniciais. Porto Alegre: Mediação, 2012.
C3
artigos
FREITAS, Vanilto Alves de. Para Uma Cidade Habitar Um Corpo: Proposições de Uso do Espaço Urbano e seus Acréscimos na Formação do Artista Cênico. Dissertação de Mestrado Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia: UFU, 2011. HALBAWACHS, Maurice. A memória coletiva. 2ª Ed. São Paulo: Centauro, 2013. ILDEFONSO, Élder Sereni. Estudos Cênicos Híbridos E O Corpo Em [Des]Territorialização No Processo De Urbanização. Dissertação de Mestrado Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Estadual Paulista. São Paulo: UNESP, 2012. JACQUES, Paola Berenstein. Quando o Passo vira Dança. In: VARELLA, Drauzio; BERTAZZO, Ivaldo; JACQUES, Paola. Maré, Vida na Favela. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.
80
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
MIRANDA, Regina. Corpo-espaço: aspectos de uma geofilosofia do movimento. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org./ Editora 34, 2005. SOUZA, Gabriel Girnos Elias de. Territórios Estéticos: a experiência do Projeto Arte/Cidade em São Paulo (1994/2002). São Paulo: Annablume; Fapesp, 2011.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
LEITE, Fernanda Hübner de Carvalho. Contato improvisação (contact improvisation): um diálogo em dança. Revista Movimento, v. 11, n. 2. Porto Alegre: 2005. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/Movimento/ article/view/2870. Acesso em 14/ago/2016.
SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. 5. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. STRAZZACAPPA, Márcia. Educação somática e artes cênicas: princípios e aplicações. Campinas, SP: Papirus, 2012.
Artigo recebido em 20/08/2016 Aprovado em 09/01/2018
artigos C3
81
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
82
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
artigos C3
83
Foto: Wagner Ferraz
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
A CIÊNCIA DA VIDA E A NATURALIZAÇÃO DA HISTÓRIA: A CONSTITUIÇÃO DA BIOLOGIA A PARTIR DA PERSPECTIVA DE MICHEL FOUCAULT
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
Artigo 4
84
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Me. André Morando, UFRGS, Porto Alegre/RS1 Drª. Rochele de Quadros Loguercio, UFRGS, Porto Alegre/RS2 Drª. Aline Ferraz da Silva, IFRS, Porto Alegre/RS3 RESUMO: Neste texto, utilizamos o pensamento de Michel Foucault para procurar conhecer a influência da linguagem e das relações de saber e poder que constituíram a Biologia como ciência da vida. Colocamos em análise a relação entre conhecimento científico e a produção de verdades, sobretudo àquelas que dizem respeito a construção do que nesse tempo, conhecemos como Biologia . Consideramos por fim, que a Biologia é escrita e inscrita pelo social, fazendo da natureza ou o conceito de natural uma produção cultural.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
A CIÊNCIA DA VIDA E A NATURALIZAÇÃO DA HISTÓRIA: A CONSTITUIÇÃO DA BIOLOGIA A PARTIR DA PERSPECTIVA DE MICHEL FOUCAULT
PALAVRAS-CHAVE: Ciências da vida. Natural. Foucault. Biologia
THE SCIENCE OF LIFE AND THE NATURALIZATION OF HISTORY: THE CONSTITUTION OF BIOLOGY OF MICHEL FOUCAULT’S PERSPECTIVE
KEY-WORDS: Science of life. Natural. Foucault. Biology
artigos
ABSTRACT: In this text, we use the thought of Michel Foucault to seek to know the influence of language and relations of knowledge and power that constituted the Biology as a science of life. We submitted for review the relationship between scientific knowledge and production of truths, especially those that relate to the construction of that at this time, we know as biology. We consider that the Biology is written and recorded by social, making the nature or the natural cultural production concept.
1 Mestrando em Educação em Ciências pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2
Professora Doutora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
3
Professora Doutora do Instituto Federal do Rio Grande do Sul
C3
85
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
A História Natural(izada) O pensamento sobre o ser humano nas culturas ocidentais entre o século XVII e XVIII produziam o corpo e a alma como um espelhamento da natureza. Nesse sentido o homem mantinha-se ligado às supostas forças superiores e celestiais, em uma relação de natureza ativa e o corpo humano passivo. Portanto, havia uma ligação vital entre o macrocosmo universal e o microcosmo limitado ao corpo, cujo seus humores fluiriam de acordo com os ventos, as tempestades, o frio e o calor. As movimentações do universo, ocasionadas por um suposto poder celestial repercutiam na fisiologia humana, mantendo a harmonia ou a desordem do corpo e dessa forma, o mal ou o bem -estar do corpo e da alma estavam, por exemplo, relacionadas com as mudanças no clima (FOUCAULT, 2000).
artigos
Nesse momento hitórico, entre os séculos XVI e XVII, o saber científico estava em decifrar os códigos divinos que produziam as similitudes, buscando descobrir com o que se assemelham as leis dos signos. Ulisse Aldrovandi, um naturalista italiano de grande destaque na época, produzia seres a partir das lendas e do que os viajantes e os antigos falavam. Por meio dos seus bestiários, materializou seres a partir das palavras que os ligavam ao mundo (fig.1). A forma de constituir a verdade desses seres passava pelo saber narrativo, cuja riqueza de detalhes fortalecia e delineava a existência destes. Assim, Aldrovandi narrava histórias que misturavam a anatomia aos alimentos que estes seres consumiam e às substâncias que poderiam ser retiradas deles a fim de preparar possíveis medicamentos.
bbb
b
C3
Fig. 1. Ilustrações de Ulisse Aldrovandi 4 4
Disponível na página virtual da Biblioteca Nacional da França <http://catalogue. bnf.fr/ark:/12148/cb38457405q> Página virtual da Biblioteca Nacional da França. Acesso:
86
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
O saber científico entre os séculos XVI e XVII, por meio do jogo de similitudes sobrepunha falar dos signos e evidenciar as semelhanças e descobrir as coisas que são semelhantes. Dessa forma, se estabelecia uma descontinuidade, uma fenda entre o que pode ser visto do signo e o que ele indica. Por isso, nesse período da história, o saber cientifico abria um campo infinito para o seu trabalho, pois uma semelhança estabelece outra que irá ligar-se a uma segunda produzindo ligações infinitas de analogias mantendo o saber científico atrelado a um imensurável número de confirmações dessas analogias. De certa forma, será um saber que não permite o novo, mas sim a adição de conhecimento nas ligações anteriores. Podemos pensar que é nesse sentido, que está a falta de limites do microcosmo, que caracterizava o saber científico do século XVI e XVII, que garantia numa escala maior, a possibilidade de confirmar as semelhanças (FOUCAULT, 2000).
artigos
Este saber foi sendo moldado em relações de poder e estratégias econômicas, voltadas para a agricultura, a agronomia, e aos conhecimentos sobre as plantas e animais exóticos, sobretudo em meados do século XVIII. O conhecimento científico nesse período da história, não mais se baseava nas semelhanças, no cosmos e no espelhamento entre macro e microcosmo, mas sim passava a categorizar, classificar e nomear a natureza pela linguagem, fazendo da natureza aquilo que as palavras conseguiam descrever (FOUCAULT, 2000).
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
O olhar de hoje, bestializa a mitologia de Aldrovandi, mas foi a crença na verdade da ciência e a posição ocupada por ele numa rede de saber e poder, que manteve o seu discurso no campo do verdadeiro. O regime de verdades produz discursos que narram e moldam o espaço social, elencando as técnicas e procedimentos que são tidos como referenciais para a obtenção da verdade, e o estatuto para determinar o que é legítimo e ocupa um lugar de poder para narrar o que será aceito como verdadeiro (REVEL, 2005). Dentre as técnicas que padronizam os procedimentos para se chegar à verdade, a ciência vem ao longo da história, aprimorando seus protocolos para produzir conhecimento, concebido por inúmeras culturas como prova irrefutável da verdade.
O esquadrinhamento da natureza por meio da observação, or-
nov. 2016. C3
87
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
denação, nomeação e a busca pelo conhecimento dos fenômenos e das forças vitais (respiração, reprodução, evolução) fizeram a história se tornar a história natural no século XVIII. Por sua vez, a decodificação dos desígnios de Deus, feita pelos taxonomistas, permitiu unir os pontos de uma rede de saberes que estavam afastados. Dessa forma, a perspectiva da continuidade dos pontos, permitiu a legitimação do natural como verdadeiro, por um homem que era pesquisador e sujeito dessa prática discursiva. O saber científico da época clássica [para Foucault período entre século XVI e XVII] foi sendo desacomodado e deixou de ser constituído pela semelhança, passando a ser construído em uma nova forma de pensar, baseado na análise e nas interpretações da linguagem, a qual, nomeia, classifica e procura, por uma ordem progressiva de complexidade, propiciando assim combinações e recortes. O quadro de classificação marca essa época em que a taxonomia se tornou a ordem do discurso, substancializando o produto do visível e do dizível. No entanto, com o passar do tempo, e as aproximações do século XIX, que trazia consigo questionamentos, promoveu novas rupturas no modelo de pensamento da época. O quadro de classificação dos seres que os nomeava em pelo menos três grandes grupos: animal, vegetal e mineral, não dava mais conta de explicar a decodificação dos signos divinos. Uma nova configuração do modelo de pensamento começa a criar uma desacomodação na história natural. A vida começa a ser anunciada deixando de ser uma categoria de classificação como todas as outras e passa a constituir, sobretudo a partir de Carl Linnaeus, um limiar que requer formas inteiramente novas de saber (FOUCAULT, 2000). Foi a crença na verdade sobre os seres vivos, que permitiu o surgimento das ciências da vida séculos depois. Foucault (2000) afirma que para o surgimento da ciência natural, a história precisou se tornar natural, visto que, não poderia existir uma história da biologia, se a vida fosse somente uma categoria e não um limiar de classificação nesse período. Foucault expõe que: Pretende-se fazer histórias da biologia no século XVIII; mas não se tem em conta que a biologia não existia e que a repartição do saber que nos é familiar há mais de 150 anos não pode valer para um período anterior. E que, se a biologia era desconhecida, o era por uma razão bem simples: é que a própria vida não existia.
88
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
De acordo com Foucault (2000), nessa época, a vida ou o estudo dela não existiam, pois a vida estava em intercursos que ligavam o visível ao dizível, sendo assim, se ela não era vista não era descrita, e então não formaria bases para outros saberes. Portanto, “quando a história natural foi dissociada dos seres vivos, eles foram reagrupados em torno do enigma da vida” (Foucault, 2000, p. 418), e a partir do surgimento da vida, novos conceitos e palavras foram criados para descrever os seres vivos. As palavras já não mais limitavam os saberes, mais especificamente, quando o homem se questionou sobre a origem fundante da ordenação dos seres vivos:
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Existiam apenas seres vivos e que apareciam através de um crivo do saber constituído pela história natural. (FOUCAULT, 2000, p.175).
A última “peça” que saltou — e cujo desaparecimento afastou de nós para sempre o pensamento clássico — é justamente o primeiro desses crivos: o discurso que assegurava o desdobramento inicial, espontâneo, ingênuo da representação em quadro. Desde o dia em que ele cessou de existir e de funcionar no interior da representação como sua ordenação primeira, o pensamento clássico cessou, no mesmo movimento, de nos ser diretamente acessível (Foucault, 2000, p. 417).
artigos
Este deslocamento no modelo de pensamento alicerçado nos domínios da razão, é chamado de modernidade, o qual produziu efeitos não só na ciência, mas na sociedade. Nesse sentido, para Hall (2006), a modernidade também produziu um sujeito social, fundado no discurso da interação entre o self e a exterioridade. Partindo do pressuposto que o self ou o “eu verdadeiro” é produzido por meio das imagens da cultura, do lado de fora do corpo, a modernidade trouxe novas formas de pensar o homem e sua natureza, estabelecendo as noções de finitude e novas formas de nomear as coisas. A linguagem então produziu novos seres vivos e novas verdades sobre eles, os ratos, por exemplo, não mais se originavam de “roupas sujas” esquecidas em armários escuros, o suco de uva não mais se transformava em vinho pela “força vital do ar” e os sapos e rãs se originavam de ovos e não mais da lama da lagoa. Infere-se então, a partir de Foucault (2000), que até esse momento, o homem não existia, era apenas o efeito da criação divina. Na modernidade a significação da natureza é feita por um olhar antropomórfico, a nomeação dos seres não mais representa sua identidade, mas as relações estabelecidas com o ho-
C3
89
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
mem.
Ciência da Descontinuidade A pós-modernidade ou a modernidade tardia como referida em Hall (2006), traz consigo os questionamentos sobre os grandes relatos, das histórias totalizantes ou unas. Dentro dos pressupostos da pós-modernidade, não há como se pensar em história da biologia, da matemática e das ciências humanas, mas sim em histórias que foram a seu tempo exaltadas ou interditadas. Nesses pequenos grupos de interdições e exaltações, o discurso produziu eixos que eram então ditos como campos das ciências biológicas, médicas, exatas e entre outras. Foucault (2008b) propunha evidenciar os rompimentos da história linear e contínua das ciências, abandonando a ideia de origem e adotando o método da arqueologia ou genealogia das pequenas histórias para se traçar os vestígios de verdade nas teias discursivas. Para o filósofo, o método da arqueologia procurava romper com a continuidade buscando entender como as forças do poder foram capazes de mobilizar e organizar as produções de enunciados evidenciando os saberes.
O médico e filósofo Georges Canguilhem (1904-1995), de acordo com Foucault (2008b), reivindicou e proporcionou a constituição da história filosófica da biologia ao romper com as disciplinas exatas [obedecem fortemente a dedução] que fundamentavam a epistemologia científica. G. Canguilhem rompeu com a formalização matemática da ciência, “sabendo que a importância teórica dos problemas levantados pelo desenvolvimento de uma ciência não é necessariamente diretamente proporcional ao grau de formalização por ela atingida” (Foucault, 2008c, p.358). Para Canguilhem, a vida não poderia ser explicada pela lógica matemática, sendo assim, os seres vivos não poderiam ser fenômenos reduzidos às explicações científicas que estivessem associadas a tais lógicas. Para Machado (2006), Canguilhem entende a ciência como uma produção cultural que detém os procedimentos, os métodos e os experimentos para produzir conhecimento que se articulam entre si, validando o verdadeiro. Canguilhem (apud Machado, 2006, p.19)
90
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
O conceito é um instrumento de validação interna do discurso científico que permite cognoscere uma ciência enquanto processo. Canguilhem (apud Machado, 2006, p. 25-26) nos possibilita analisar os pontos de contato conceituais das ciências, uma vez que, para o filósofo, os conceitos não possuem limites marcados ou fronteiras. Ao contrário disso; conceitos de uma ciência podem perpassar por outras, como no caso do conceito de reflexo que pode ser o nervoso na fisiologia, ou o da luz na física. Nesse sentido, o conceito de normal, por exemplo, ao transitar de uma ciência para outra pode produzir erros, ou discursos falhos quando observados em uma perspectiva não linear e descontínua (MACHADO, 2006).
artigos
G. Canguilhem analisou as descontinuidades, os deslocamentos e os ideais de validação das ciências (Foucault, 2008b). As análises iam de encontro com as noções de verdade científica da época, balizadas pela noção de contingência e pela lógica. Para Canguilhem as ciências da vida, se constituíram como ciência ao se afastarem das disciplinas formalizantes - a matemática, a física e a astronomia – pois, uma ciência que estuda a vida produz resultados que nem sempre podem ser explicados pela matemática ou pela mecânica, nesse sentido havia várias formas de produzir o verdadeiro. O discurso verdadeiro está intimamente ligado com o método recorrente, que em linhas gerais, analisa o passado de uma ciência, buscando verificar as constantes transformações na produção do discurso da verdade científica, ou nos termos de Machado (2006), da história recorrente, na qual as narrativas históricas são articuladas com a noção de finalidade do presente. Talvez esse seja o ponto chave do método episte-
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
aponta para o fato de o conceito preexistir ao conhecimento científico. É o conceito, por meio de sua normatividade que permitirá ler e interpretar os experimentos. Entende-se que a ciência é discurso, no entanto, ao ler uma revista de divulgação científica em massa, por exemplo, é possível perceber que nem todo o discurso científico está necessariamente no verdadeiro. Canguilhem lança um olhar mais atento para a formulação dos conceitos da ciência, uma vez que, toda a ciência se mantém viva pelas relações entre o falso e o verdadeiro. São os experimentos e o método que serão capazes de separá-los, e o conceito permitirá a análise dessas proposições tornando o discurso científico racional.
C3
91
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
mológico de Canguilhem de não olhar linearmente para aos tempos históricos das ciências, mas sim refletir sobre a formulação dos seus conceitos (FOUCAULT, 2008b). Ao discorrer sobre o método de G. Canguilhem, Foucault (2008b), apropria-se da noção de tempo afirmando que há de sair do processo normativo das ciências e perceber suas descontinuidades, os recortes e ligando os pontos, não sob olhar da erudição, mas da epistemologia. Dessa forma, a biologia recolocada nessa perspectiva histórico-epistemológica apresenta traços específicos em relação às demais ciências, principalmente dentro do pensamento médico, ao tentar traçar os limiares do normal ou patológico. O patológico sempre foi pensado a partir do distanciamento do padrão da normalidade. Neste sentido, o método recorrente produzia, retomava e teorizava novas articulações conceituais. O normal, assim dito, era concebido de acordo com a perspectiva do observador, nesse contexto, o limiar da normalidade não era fixo e poderia ser expandido ou reduzido. O conceito de anormal na biologia está ligado a noção de desviante, já no discurso jurídico, por exemplo, a normalidade está vinculada a coerência e a hierarquização de regras. Na biologia, a normalidade não é individualizada, ou seja, um indivíduo não é normal dentro do seu próprio contexto ou das suas condições. Ele se torna normal. Este é um efeito da naturalização de conceitos dentro de um contexto cultural, constituído num poder disciplinador que cria tais regras (Foucault, 1979; Canguilhem, 2000). De forma similar às histórias epistemológicas e descontínuas de Canguilhem, os caminhos da ciência também se tornam objeto de estudo para Latour (2000). Não o da ciência pronta e lapidada em forma de proposições, mas a ciência em construção, que se desenrola pela descontinuidade e também pela potencialidade do erro. Assim, na biologia, por exemplo, o conceito de anomalia aparece de ponta a ponta, fazendo com que todas as questões que saiam do padrão do normal sejam explicadas como anomalia genética, fisiológica ou mental. Ao observar as descontinuidades da história das ciências da vida, e perceber que o conceito de anormal poderia estar contido no território da normalidade, caso o momento histórico fosse esticado, o erro poderia deixar de ser a contingência que desenrola a história da vida. É a noção de erro que permite estabelecer ligações
92
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Assim, nos termos de Latour (2000), os leigos e até mesmo os cientistas não dão conta do processo de criação das ciências. O que se vê, são os efeitos das ciências como os medicamentos, os satélites, os alimentos transgênicos, a produção de energia e todas as materializações que a ciência produziu durante séculos. Latour (2000) identifica a ciência como uma grande produtora de verdades nas sociedades contemporâneas. Contudo, o autor nos leva a pensar quais são as ações que determinam a construção de uma verdade no laboratório e as transformações que ela sofrerá até chegar aos leigos. As controvérsias ou disputas de interesses são levadas para além das paredes do laboratório como fatos.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
entre a vida e o que dela se sabe, pois é o erro conceitual que coloca em evidencia os problemas filosóficos e os aproxima do verdadeiro, e do conceito de vida (Foucault, 2008b).
De acordo com Machado (2006), a ciência não é natural, pois o fato de naturalizá-la seria como colocar em um mesmo conceito a história, a natureza, as biografias civis e acadêmicas dos cientistas. Seria necessário também colocar nesse conceito os poderes que atravessam as comunidades científicas. Ainda em Machado (2006), dentro da epistemologia de G. Canguilhem, a ciência só pode levantar questionamentos sobre si dentro dos seus próprios domínios territoriais. Exteriorizar os questionamentos sobre a ciência, para além das paredes do laboratório, implica contextualizar com subjetividades. Segundo o autor, não existem critérios exteriores ou universais para se julgar a verdade de uma ciência.
artigos
Para Foucault a história da ciência geralmente é contada e absorvida em totalidade, como se estivesse fora do tempo, supra-histórica, alicerçada por uma verdade eterna e absoluta. Foucault (1979) faz uso da genealogia para evidenciar as rupturas das histórias do passado. Se o saber histórico é feito por pedaços, nada é fixo e constante, a história cumpre com seu propósito, ao permitir, ver o descontínuo. Nesse sentindo, de acordo com Foucault (1979), é possível propor que o saber é feito para cortar.
C3
93
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
Os Entremeios do Discurso Científico Ao analisar a ordem do discurso científico, se faz necessário questionar a vontade de verdade [para Foucault, a vontade de verdade está relacionada a vontade de poder] para a produção de conhecimento científico, visto o seu apelo positivista, há que se duvidar das certezas. A análise da rede em sua temporalidade espacial e topológica é capaz de restituir a aleatoriedade dos acontecimentos, rompendo o plissê da rede, afastando os pontos contínuos os quais abarcaram a construção das significações “lógicas e lineares” do discurso científico. Nos termos de Foucault (1999), o conhecimento préconcebido é uma crença, ou seja, é a vontade de verdade que se faz base fundante da racionalidade científica. Para Foucault (1999), a análise crítica e genealógica do discurso permite ver para além da vontade de verdade, pois o verdadeiro está na possibilidade de verdade, nos entrelaçamentos da rede, na ordem do discurso.
C3
artigos
Nesses termos, o homem não necessariamente venera a verdade, mas busca regozijar-se dos benefícios intrínsecos a ela. As representações da verdade estão ligadas à ficção da garantia de encontrar o que promete ser visto. As convenções do verdadeiro permitem a manutenção da vida, no social (Machado, 1999). O espaço social para Hall (2006) é o lugar onde se estabelecem as relações de pertencimento cultural ou identitário do sujeito, é fundado em crenças de verdade, que produzem e são produzidas nas relações de poder. Dentro das perspectivas críticas e pós-críticas da ciência, os ideais regulatórios que normalizam os passo-a-passos pela busca do conhecimento verdadeiro, ou das possibilidades e convicções de encontrar algo que possa estar no verdadeiro, são impossíveis de serem descritos fora do terreno da ciência, uma vez que, o conhecimento científico ascenderia ao grau de verdadeiro quando fosse ao encontro dos pressupostos estabelecidos dentro de pontos de vistas, parciais e isolados que normalizam, regulam e disciplinam a prática científica (Machado, 1999). De acordo com Veyne (2011), Foucault não generaliza a fabricação da verdade e não a tem como condição humana, como na perspectiva nietzschiana. Para Foucault há formação de um regime
94
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
de verdades que formam um dispositivo de saber-poder. Foucault acredita que: CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
(...) a verdade não existe fora do poder ou sem poder (não é − não obstante um mito, de que seria necessário esclarecer a história e as funções − a recompensa dos espíritos livres, o filho das longas solidões, o privilégio daqueles que souberam se libertar). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (Foucault, 1979, p.12).
A crença na ciência permite que os discursos produzidos de forma verticalizada por ela e criados pelo poder como verídicos, sejam entendidos como verdadeiros e produzam efeitos horizontalizantes na cultura, potencializando as reiterações da norma e da disciplina, corporificando, marcando sujeitos por meio de jogos, entre o verdadeiro e o falso. A partir de Foucault, pode-se inferir que a verdade, nos regimes de verdades ocidentais, está centrada no discurso científico e nas instituições que o produzem, e por sua vez, está intrinsecamente ligada à produção econômica e ao poder político (REVEL, 2005).
Considerações Finais
artigos
O saber-poder na história das ciências inscreve o irreal no território do real, transformando proposições em fatos. Uma das grandes questões da história das ciências da vida é entender que poder é esse que produz disciplinamento e sujeição. Tanto naqueles que pouco sabem sobre a ciência, quanto nos que fazem dela seu ofício, há um conformar-se quase que generalizado, quando o discurso vem assinado pelo “provado cientificamente”. O objeto de estudo da biologia é a vida, e esta, está muito além das explicações vindas de cálculos matemáticos e das reações químicas/físicas, que é o que se espera das ciências ditas exatas. A biologia, ao se constituir como ciência, afastou-se das ciências matematizadoras, dogmáticas e produtoras
C3
95
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
de verdade, tal como a mecânica, a astronomia e a física. Podemos pensar que uma das causas que fez com da biologia a ciência da vida foi o afastamento das ciências exatas. Sendo assim, não seria de se esperar uma ciência não exata? Ou a não exatidão a faria menos legítima? Para a sua manutenção na rede, seria necessário produzir sistematicamente discursos exatos? Ou dobrados com aparência de exatos? A ciência é uma sociedade de discurso com sua história de verdade que se disciplina por princípios próprios por meio das práticas regulatórias. O conhecimento, produzido no âmago das práticas científicas, ao sair do laboratório por meio da divulgação, sofre a ação das histórias de verdades concebidas por práticas regulatórias externas que articuladas na sociedade delimitam subjetividades, jogos de linguagem, objetificações e transitividade do saber. De acordo com Foucault (2000), a biologia surgiu em um momento histórico simultâneo a outras ciências empíricas (filosofia transcendental, economia, linguística) se articulavam na formação do homem como sujeito de estudo. Nos termos de Foucault (1979, p.7), não importam os poderes exteriores que agem na ciência, “mas que efeitos de poder circulam entre os enunciados científicos; qual é seu regime interior de poder; como e por que em certos momentos ele se modifica de forma global”. Em As Palavras e as Coisas, Foucault define os sistemas de simultaneidade que podem ser entendidos como uma série de articulações, necessárias para circunscrever os limites de um novo modo de pensar. Assim, a biologia é contemporânea aos estudos da linguagem e aos estudos que analisam as moedas e as riquezas. Esses saberes engendrados procuravam estabelecer condições para gerir as sociedades (Foucault, 1999). A sociedade percorre terrenos discursivos formados pela imersão e emersão de forças em ação que estruturam o pensamento e são capazes de comandar, modificar, potencializar, reprimir e constituir as ações do indivíduo e da própria sociedade. A forma de pensar é sempre marcada por poderes. Metaforicamente, é como cavar um buraco em areia fofa: por mais que se cave e se tente manter o fundo livre, sempre pequenos grãos de areia estarão chegando ao fundo. A ciência cumpre com a função de empurrar pequenos grãos de poder sobre o pensamento social.
96
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
A biologia surgiu em um momento discursivo da história, no qual se buscavam fundamentos em uma filosofia racional, com o intuito de classificar e esquadrinhar os seres vivos, delimitando o normal e o patológico, a estratificação das raças, a fundamentação da eugenia, os controles da natalidade e as interdições da sexualidade entre outros. No discurso, agora biológico, o sujeito não é pré-formado por substâncias inertes, a abiogênese foi substituída pela historicidade e se há história na vida, se faz necessário governar e disciplinar suas direções. O discurso científico fixa posições e sistematiza proposições de verdade ou que estão no verdadeiro, a fim de trazê-las ao grau de existência. Há que se dar conta que a verdade não existe, mas sim proposições dela.
Referências CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Aula inaugural no College de France. Pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola: 1999. _________. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências hu-
artigos
manas. São Paulo: Martins Fontes, 2000. _________. A vida: a experiência e a ciência. In: MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Ditos e Escritos II: Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Tradução Elisa Monteiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008b _________.Estruturalismo e Pós-estruturalismo. In: MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Ditos e Escritos II: Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Tradução Elisa Monteiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008c _________. Sobre as maneiras de escrever a história. In: MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Ditos e Escritos II: Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Tradução Elisa Monteiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008a. _________. Verdade e poder. In: ________. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução
C3
97
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo, UNESP, 2000. MACHADO, Roberto. Foucault, a ciência e o saber. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. ________. Nietzsche e a Verdade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. REVEL, Judith. Michel Foucault: Conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005. VEYNE, Paul. Foucault: Seu pensamento, sua pessoa. Trad. Marcelo Jacques de Morais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
Artigo recebido em 11/12/2017
C3
artigos
Aprovado em 10/02/2018
98
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
artigos C3
99
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
100
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
artigos C3
101
Foto: Wagner Ferraz
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
Artigo 5
O CORPO QUE FALA É O CORPO QUE ESCUTA. CANDOMBLÉ KETU SABER DO CORPO ORALIZADO. DO CANDOMBLÉ PODER SOBRE O TRADICIONAL
C3
artigos
“FOLCLORIZAÇÃO”
102
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Esp. Luiz Fernando da Silva Anastácio, FCE, São Paulo/SP. 1 RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar a importância da oralidade no aprendizado e sistematização das práticas corporais na religião de matriz africana candomblé- ketu no Brasil. Podemos observar que a legitimação e relevância dos ensinamentos no Brasil estão pautadas a um modo eurocêntrico de contabilizar o que se é aprendizado. O ensinamento no candomblé afirma o conhecimento oral pela vivência da prática corporal, sublinha o aprendizado e o conhecimento integrando corpo e mente, sem separar o ser de suas práticas, mas que ainda no Brasil sofre bastante preconceito sobre sua importância quanto história, cultura, memória, e assim acaba caindo na ¨folclorização¨ da tradição enquanto religião.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
O CORPO QUE FALA É O CORPO QUE ESCUTA. Candomblé ketu saber do corpo oralizado. ¨Folclorização¨ do candomblé poder sobre o tradicional
Palavra chaves: Aprendizado. Candomblé. Corpo. Folclorização. Oralidade.
THE BODY THAT SPEAKS IS THE BODY THAT LISTENS. candomblé ketu know of the oralized body. ¨Folclorization¨ of candomblé power over the traditional.
artigos
ABSTRACT: This article aims to analyze the importance of orality in the learning and systematization of corporal practices in the religion of the African matrix candomblé ketu in Brazil. We can observe that the legitimacy and relevance of the teachings in Brazil are based on a Eurocentric way of accounting for what one learns. The teaching in candomblé affirms the oral knowledge by the experience of the corporal practice, it emphasizes the learning and the knowledge integrating 1 Formado em dança, Professor da cadeira de danças Brasileiras Da ETEC de Artes- Centro Paula Souza. Artigo apresentado para pós-graduação em Cultura Africana FCE-SP. Email: paxacult@ig.com.br. Endereço para acessar este CV: http://lattes.cnpq.br/2044104536903182
C3
103
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
body and mind, without separating the being from its practices, but still in Brazil suffers a lot of prejudice about its importance as history, culture, memory , And thus ends up falling into the “folklorization” of tradition as religion. Key words: Learning. Candomblé. Body. Folklorization. Orality.
INTRODUÇÃO O presente artigo tem como objetivo enfatizar a importância da oralidade como ensinamento corporal, que atribui ao individuo praticante do candomblé ketu a sistematização de seu conhecimento adquirido na religião. Observando que o modo de ensino formal que é pautado apenas em estudos catalogados, onde a compreensão de aprendizado tem como diagnostico muitas vezes o que consegue decorar, não necessariamente aprender, tornando deslocadas a prática da teoria e a realidade do indivíduo em processo de aprendizado.
C3
artigos
Com o objetivo de esclarecer que o candomblé enquanto religião que prioriza o ser nas vivências experienciadas através dos orixás, está intimamente ligada às práticas do corpo. Pois a oralidade que se faz necessário ao aprendizado da religião, afirma a necessidade de integração para o autoconhecimento e as relações de grupos vividas. No qual a transmissão oral é um exercício de legitimação através dos sentidos que se relacionam para que se propaguem conhecimentos. Fazendo que os adeptos consigam ser parte da sua espiritualidade, onde conseguem na importância do se relacionar perceber o exaltar o corpo enquanto necessidade de existência. O presente artigo iniciará com um breve panorama da configuração do candomblé enquanto religião do corpo oral, referenciando a resistência e a necessidade de integração do corpo para a própria existência. Mostrando também que a religião por fatores relacionados à sua origem de matriz africana de raízes marginalizada, sofre a folclorização2 enquanto prática religiosa. É importante problematizar 2 Folclorização- Tal processo consiste em transformar as manifestações culturais dos negros em algo irrelevante ou em recheios ideais para se montarem esquemas de entretenimento para vastas camadas da população, em especial para aquelas que, independentemente da cor, podem usufruir, de forma mais plena, certo tipo de lazer produzido pela sociedade brasileira. (ARAÚJO, 2011, p.3)
104
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Candomblé ketu saber do corpo oralizado. O candomblé é uma religião derivada do animismo3 africano, dependendo da linhagem ou filiação a qual nação pertence, o ser cultuado será apresentado pelo nome de orixás, voduns ou nkisis. É uma das religiões de matrizes africanas mais praticadas, possuindo mais de três milhões de seguidores em todo mundo, onde tem o maior numero de adeptos principalmente no Brasil. Embora seja uma religião de matriz africana, a mesma não existia em África, já que a configuração religiosa é estabelecida pelos escravos advindos de várias regiões do continente africano, onde em cada um cultuava se um orixá. Quando os escravos foram agrupados em senzalas passaram a reunir se ensinar, aprender e louvar seus orixás, aglutinando o culto em um só se relacionar, assim formando o candomblé.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
e discutir questões que elucidam o candomblé enquanto religião do corpo oral, assuntos como esse mostra que a sabedoria do ensinar e aprender faz parte de trazer sentidos vivenciados para a própria vida, discutir o candomblé é uma maneira de minimizar os preconceitos e perceber o quanto nos apropriou daquilo que não temos propriedade.
Os negros escravizados no Brasil pertenciam a diferentes grupos étnicos, tais como: os yorubás, ewe, fon e os bantus. Como o candomblé a partir de sua origem e ramificação, teve diferentes agrupamentos étnicos e se ramificou para distintas regiões do país, ele se diferencia principalmente no conjunto de divindades veneradas, idioma falado, um fator muito determinante para essas diferenças é a propriedade da oralidade em quanto modo de sistematização.
artigos
Com relação ao termo “etnia”, alguns intelectuais, educadoras (ES) e acadêmicas (os) considera seu conceito mais adequado por não carregar o sentido biológico atribuído à raça. Dessa forma, o termo é usado para se referir ao pertencimento ancestral e étnico-racial dos negros e outros grupos em nossa sociedade. Os que partilham dessa visão entende etnia segundo Munanga e Gomes (2006, p. 177).
A lista seguinte é uma classificação simples das principais nações 3 Animismo (do latim animus, “alma, vida”) é a visão de mundo em que entidades não humanas (animais, plantas, objetos inanimados ou fenômenos) possuem uma essência espiritual. C3
105
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
e sub nações, de suas regiões de origem, e línguas sagradas: • Nagô ou yorubá/Ketu ou Queto (Bahia) e quase todos os estados - Língua yorubá (Iorubá ou Nagô em português). • Efon na Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. • Ijexá principalmente na Bahia, mas cultuado também em outros estados como Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. • Nagô Egbá ou Xango no Nordeste Pernambuco, Paraíba, Alagoas, e no Sudeste Rio de Janeiro e São Paulo. • Mina-nagô ou tambo de mina no Maranhão/Xambá em Alagoas e Pernambuco (quase extinto). • Banta, Angola e Congo(Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Rio Grande do Sul), mistura delínguas bantas, quicongo equimbundo. • Jeje: a palavra “jeje” vem do ioruba adjeje, que significa “estrangeiro, forasteiro”. Nunca existiu nenhuma nação Jeje na África. O que é chamado de nação jeje é o candomblé formado pelos povos fons vindo da região de Daomé e pelos povos mahis ou mahins. “Jeje” era o nome dado de forma pejorativa pelos iorubas para as pessoas que habitavam o leste, porque os mahis eram uma tribo do lado leste e Saluvá ou povos Savalu do lado sul. O termo Saluvá ou Savalu, na verdade, vem de “Savé”, que era o lugar onde se cultuava Nanã. Nanã, uma das origens das quais seria Bariba, uma antiga dinastia originária de um filho de Oduduá, que é o fundador de Savé (tendo neste caso a ver com os povos fons). O Abomey ficava no oeste, enquanto os axântis eram a tribo do norte. Todas essas tribos eram de povos jejes,(Bahia, Rio de Janeiro eSão Paulo) - língua ewe e língua fon (jeje).
C3
• Jeje Mina: de língua mina, de São Luís do maranhão. • Babaçuê: Belém (Pará).
106
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Podemos observar que as várias etnias, contribuíram para uma grande ramificação e distinção a partir da oralidade instaurada [...] existe um mito de monolingüismo 4no país [...] esse mito é eficaz para apagar as minorias, isto é, as nações indígenas, as comunidades imigrantes e, por extensão, as maiorias tratadas como minorias, ou seja, as comunidades falantes de variedades desprestigiadas do português (CAVALCANTI, 1999, p. 387). O candomblé ketu trás em seu nicho totêmico o culto aos orixás, divindades que possuem em seu signo representativo o poder de dominar os elementos da natureza, os 16 principais cultuados no candomblé ketu são:
Quando se fala em candomblé, geralmente a referência é o candomblé queto, ou da chamada ¨nação¨queto, da Bahia, vertente em que predominam os orixás e ritos de iniciação de origem iorubá. Seus antigos terreiros são os mais conhecidos e prestigiados do Brasil: a Casa Branca do Engenho Velho, o candomblé do Alaketo, o Axé Opô Afonjá e o Gantois. As mães-de-santo que alcançaram grande prestígio e visibilidade na sociedade local têm sido dessas casas, como Pulquéria
artigos
1-Exu- Orixá mensageiro divino dos oráculos. 2-Ogum-Orixá do ferro.3-Odé ou Oxóssi- Orixá da caça e da fartura.4-Ossaim- Orixá das folhas.5-Omulu- Orixá das doenças de pele e da cura.6-NanãOrixá dos pântanos e da morte, mãe de omulu.7-Oxumarê –Orixá do arco-íris.8-Ewá- Orixá feminino do rio e da virgindade.9-Irôco- Orixá do tempo, a árvore sagrada ( gameleira branca no Brasil).10-Obá- Orixá que rege o encontro das águas rio e o mar.11-Xangô-Orixá que rege o fogo e o trovão. 12-Oyá ou Iansã- Orixá rege ventos, relâmpagos e tempestades. 13Oxum- Orixá que rege os rios e ouro.14-Logun edéOrixá da caça e da pesca.15-Yemanjá ou Yemojá- Orixá rege Lagos, mares e fertilidade.16-Oxala-Orixá da criação.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
A nação jeje-mahin, do estado da Bahia, e a jejemina, do maranhão derivam suas tradições e língua ritual do ewê-fon, ou jejes, como já eram chamados pelos nagôs, e suas entidades centrais são os voduns. As tradições rituais jejes foram muito importantes na formação dos candomblés com predominância iorubá. (PRANDI, 1995, p. 66)
4 Uso fluente de apenas uma língua, por um falante ou grupo. C3
107
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
e Menininha, sua sobrinha-neta e sucessora no candomblé do Gantois; Olga, do terreiro do Alaketo; e Aninha Senhora e Stella, do candomblé do Opô Afonjá. O candomblé queto tem tido grande influência sobre outras nações¨, que têm incorporado muitas de suas práticas rituais. Sua língua ritual deriva do iorubá. Mas o significado das palavras em grande parte se perdeu através do tempo sendo hoje muito difícil traduzir os versos das cantigas sagradas e impossíveis manter conservação na língua do candomblé. (PRANDI, 1995, p.66)
Com recorrência das inúmeras nações, e as similaridades e distinções faladas entre elas, podemos observar que no candomblé ketu, os sentidos das traduções faladas se perderam na rigorosidade dos significados, então o que ficou?Como prosseguir com uma prática religiosa, no qual o que se fala não tem o rigor da propriedade dos significados? É importante salientar que muito se ficou para tanto não conseguiria existir até os dias de hoje, o candomblé como saber do corpo oralizado, prioriza o ser enquanto parte de sua prática. Corpo esse que trás o similar divino ao similar do adepto, trazendo respostas aos diferentes e iguais a partir do panteão dos orixás.
C3
artigos
Sobreviveram marginalmente no novo contexto social e ritual. As divindades mais diretamente ligadas às forças da natureza, mais diretamente envolvidas na manipulação mágica do mundo, mais presentes na construção da identidade da pessoa, os orixás, divindades de culto genérico, estas sim vieram a ocupar o centro da nova religião negra em território brasileiro. (PRANDI, 1995, p. 64)
O candomblé ketu, faz ao adepto perceber que todas as práticas vivenciadas sejam parte de seu próprio ressignificar, como o ensinamento não parte de um escrito sistematizado onde o fazer está grafado em capítulos, o aprender e o ensinar estão inseridos na própria prática, no observar fazendo e fazer observando. Para tanto é muito importante como religião que integra as práticas, ter propriedades sobre seu próprio ser, o alto conhecimento é primordial para que conheça os orixás a serem louvados, e consiga perceber o que deles tem em você, trazendo como diferencial da religião que a ideia sobre certo errado é algo construído a partir de valores da própria condição humana, porém assim dando espaço para que reveja e analise a sua própria condição.
108
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
O ser que não se desloca de seu corpo e do mundo para poder ser o que é. No candomblé ketu percebe se a importância de alimentar os estímulos, onde a vivência estabelecida potencializa o sentido de estar vivo. No candomblé relacionar se é sentir pertencente a partir da aproximação de tudo o que se possibilita viver, é acessar uma única coisa, ou seja, não diferencia a natureza e o homem, todos é a natureza e todos é o homem. A relação de unidade através da genuinidade de ser diferente faz com que todos sejam iguais a partir das diferenças.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
O candomblé ensina, sobretudo, que antes de se louvar os deuses, é imperativo louvar a própria cabeça; ninguém terá um deus forte se não estiver bem consigo mesmo, como ensina o dito tantas vezes repetido nos candomblés; ¨Ori buruku kossi orixá, ou ¨cabeça ruim não tem orixá¨. Para os que se converte, isso faz uma grande diferença em termos de autoestima. (PRANDI, 1995, p.65)
Vivenciar o corpo como conexão do divino, faz perceber através das práticas as necessidades de integrar se com o meio, o colher a folha para tomar banho, realizar oferendas, dançar para o orixá, cantar, cozinhar, alimentar se, tocar, evocar orikis5, realizar rituais, tudo isso faz parte de viver no próprio corpo, ou seja, alimentar o EU. Tornando essas práticas vivenciadas o canal de pertencimento do individuo na organização em quanto coletivo.
artigos
O aprendizado que aqui sublinha a oralidade quanto recorrência, possibilita que o conhecimento adquirido antes de ser passado deve fazer sentido para se incluído enquanto sabedoria. Não se pode deslocar a prática da teoria no candomblé, assim possibilita que a cronologia dos fatos sejam maneiras de se relacionar com os fatos, e não fórmulas onde os resultados obtidos sejam sempre os mesmos para todos. Tratando que, a construção do conhecimento possibilita que algo exista, e a intimidade que se tem com as diferentes formas de observar a mesma situação, inclui o individuo a sua própria existência e em consequência para o próprio grupo, explicado muitas vezes pelas personalidades dos orixás. Tornando o singular no plural no território do 5 A palavra Oriki, é formada por duas palavras, Ori = Cabeça e KI = Louvar / saudar. Então Oriki significa, saudar ou louvar a algo que estamos nos referindo. Sendo as palavras portadoras de força e asè, dá-se aos orikis o poder de invocarem por si próprios a força vital.
C3
109
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
pertencimento. A categoria identidade enquanto pertencimento. Mas pertencimento a quê? A um grupo, a uma família, a um clã, a uma classe ou fração de classe, a um gênero, a uma (neo) tribo? O indivíduo isolado (se pudéssemos achar algum!) não tem necessidade de identidade, nem de nome, nem de uma descrição de si mesmo: ele não se (re) conhece. Ele está. É através de um longo processo (segundo Darwin) que chegamos ao ser que somos, seja em etapas, seja em saltos, seja em continuidade/descontinuidade (não importa aqui o modelo que invoquemos). Mas, acreditamos que identidade deve ser pensada no plural – identidades – considerando suas perspectivas complexas, diversificadas, desiguais e dispostas diante de nós para serem acionadas de acordo com as conjunturas. Assim, o jogo das identidades contempla o eu/nós, o outro/outros, pertencer a x não pertencer a x: em que momento. (BAÍA, MORAES, LOREIRO, 2007, p.07)
Contudo relacionar com a ideia moderna de religião, onde distancia o SER do divinizado, intitulando que a identidade seja oposta do integrar com o sagrado. Diferente, o candomblé no campo das possibilidades exalta o corpo, a vida, que sempre esteve à margem para que se pudesse existir, resistir. A margem não está somente na religião, mas também na origem, e para que exista orixá é necessário que exista o Homem, se o fiel não come o orixá também não come. Sem separação, similar a resistência de afirmação do negro no Brasil, permanece o próprio candomblé, ambos a margem. Observando que a pratica do corpo só faz necessário para aqueles que estão inseridos. Estar dentro da prática legitima o modo de relacionar a própria existência com a dos outros. Acaba tornando se tudo o que vive, ou propõe a viver. [...] Na prática, enquanto grupo de culto, comunidade de fiéis, permitirá o trânsito num espaço em que não há separação entre a intimidade e a publicidade. Onde, portanto não há nada a esconder ou reprimir, com relação a si mesmo e com relação aos demais. Onde também podemos ser o que somos o que gostaríamos de ser e o que os outros gostariam que fôssemos. Há um mesmo tempo. [...] (PRANDI, 1995, P.76). Legitimando a religião que a prática do corpo oralizado é pertencimento dos presentes e não dos ausentes. Ausentes todos esses que afirmam propriedade sobre a prática do candomblé, por aquilo que acham, gestando preconceitos e a folclorização da religião.
110
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
¨Folclorização¨ do candomblé poder sobre o tradicional CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Para entendermos por onde se discorre o termo ¨Folclorização¨ é importante observar a etimologia da palavra folclore, advinda do termo inglês Folk e Lore cuja tradução é: povo e conhecimento, aglutinados forma-se em folklore (conhecimento do povo). No Brasil até 1930 escrevia se folklore, a partir da reforma da língua brasileira a letra estrangeira é eliminada, e passa se redigir folclore. O termo conhecimento do povo Folklore- teve origem em meados do século XIX. Cunhado pelo arqueólogo inglês William John Thoms, que viveu entre 1803 e 1885, foi usado pela primeira vez pelo cientista no dia 22 de agosto de 1846 em um artigo publicado “na revista The Athenaeum (...)”. William John Thoms estendeu a aplicabilidade do termo, fazendo referências aos costumes, lendas, superstições dos tempos da época. Observar sua etimologia e significado introduz uma grande relevância e entendimento para o termo, conhecimento é algo que se constitui pelo reconhecimento e pertencimento, ou seja, ninguém reconhece mais ou menos, ou pertence mais ou menos. O que te faz pertencer não é o que diferencia do outro, más o que te relaciona. Em uma analise simples um macho e uma fêmea se separam pelo seu pertencimento e reconhecimento biológico, o fato da fêmea ter vagina a coloca no grupo de fêmeas e não o de não possuir pênis. Consequentemente a vagina é seu símbolo totêmico 6de pertencimento, relacionando com o conceito totêmico que Emile Durkheim teoriza. Reconhecer e pertencer abarca valores e atributos do que seria fazer parte de algo, tanto positivo quanto negativo. Por isso no candomblé ketu o símbolo totêmico são os orixás.
artigos
O folclore é o conhecimento do povo, a partir da prática do ensino oral, afirmando seu caráter popular, aqui agravamos seu grau de complexidade e relevância para o entendimento social. O conhecimento deve gerar certezas e não duvidas, é comum ouvirmos o termo folclore no Brasil ser utilizado para tudo que não se tem certeza, aquilo que não parte do reconhecimento e pertencimento do povo. O candomblé por sua vez ainda sofre com olhar do colonizador. É habitual escutar no candomblé que bonita aquela dança, 6 Para Durkeim as representações são compostas de símbolos. O conceito durkheimiano de símbolo postula que as representações religiosas expressam o mundo das coisas sociais.
C3
111
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
aquela roupa colorida, aquela musicalidade, aqueles canto, dando para ela o caráter folclorizado há uma tentativa de torna-la tradicional, pois dizer que é folclórico o popular elimina a responsabilidade de entender consequentemente de explicar, falar sobre, ficando apenas nas camadas superficiais imagéticas de captura. Não reconhece não sabe sobre, más se diz: é bonito, é exótico, é colorido, faz parte da cultura do Brasil... . Tirando o peso de ser brasileiro pela breve analise e contato, estando no lugar de observador e confortável para opinar sobre, apropriando da prática que desconhece como alguém de dentro. Na Tentativa de lhe dar um valor tradicional, e não no território do reconhecimento e pertencimento a partir da religião. A folclorização do popular, Isto é, a transformação em tradição foi à estratégia encontrada para reagir às transformações impostas pelo presente. Nesse sentido, seria selecionado do passado um repertório a ser monumentalizado. ¨Museificar¨o popular, obstruir sua perenidade foi à estratégia adotada a fim de evitar fusões e hibridismos que pudessem comprometer sua autenticidade. O morto preservado seria fisgado em suportes e exposto em museus e arquivos, para que gerações vindouras pudessem conhecer a nossa ¨verdadeira cultura¨. (Garcia, 2004, p.9)
Com isso colocar no museu é tentativa de congelar o conhecimento e impedir suas transformações orgânicas, não somente distancia a pratica do seu saber, mas também o conhecimento que o referencia, pois aquilo que não faz parte do meu relacionar, somente poderá ser contemplado, não finda o quanto esquecido esta. Preservar o candomblé não é somente guardar e impedir as volatilidades de relacionar a prática e sua época, más propor que aquele conhecimento seja parte de um saber coletivo ao ponto de não deturpar uma tradição. Não existe nada autentico partindo de um pressuposto que tudo já na sua segunda tentativa já é uma releitura do seu original. E o que faz com que isso perdure é o quanto eu me relaciono a partir do conhecimento adquirido por tal pratica, sem deixar cair na folclorização. Analisando que muitas vezes damos a conotação de folclórico aos desconhecidos e que esses desconhecidos geralmente estão em nichos isolados, quem somente sabem sobre eles são os que estão inseridos em tais práticas. Podemos então dizer que tradicional é tudo aquilo que permite permanecer em seu propósito de existência, sem descaracterizar as necessidades e ocasionalidades de tal coisa existir.
112
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
A prática tradicional não é questionada, ou seja, as pessoas inseridas não questionam o fluxo do seu acontecimento, a organicidade de reconhecer e pertencer às práticas que a circundam, torna se natural à prática, pois tudo aquilo que se faz é parte de sua existência. O olhar antropólogo sobre a prática tradicional vem sempre de fora, embora o tradicional trata-se como o individuo se relaciona com o seu pertencimento, ela não se dar individualmente, para algo ser considerado tradicional precisa dos elos entre as pessoas, no relacionar plural, no entanto se fosse no relacionar singular seria hábito e não tradição.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Por exemplo, o candomblé Ketu sua existência está na necessidade e maneira de fazer os rituais, fazer as comidas, fazer as festividades, fazer as danças... O caráter tradicional é mantido pela própria existência do fazer e somente os que pertencem os praticam e reconhecem, por sua vez são tradicionais das suas práticas, os únicos que conseguem estabelecer relevância e sentidos no que se faz na religião do corpo oralizado.
No candomblé seu pilar tradicional está no culto aos orixás, e como se unem através da qualidade estabelecida pela oralidade do corpo. Os pertencentes da prática estabelece no próprio convívio, o elo que os unem aos deuses, vinculam sua unidade as relações, e aquilo que é praticado a partir do conhecimento sistematizado, louvar os orixás torna se tudo.
Então o tradicional é tudo que não descaracteriza a consciência do existir, se para fazer um ritual para um orixá é necessário colher ervas, fazer banhos, dar lhe oferendas, louvar na frente dos tambores, se um desses elos é quebrado a prática perde naquele momento seu caráter tradicional, pois deixou de ser feito algo imprescindível para sua existência, deixando um elemento fundamental de fora para que tal prática ocorresse. Dando ao tradicional o grau de conhecimento
artigos
Durkheim tem um interesse pela religião porque ela articula rituais e símbolos que têm o efeito de criar entre indivíduos afinidades sentimentais que constituem a base de classificações e representações coletivas. As cerimônias religiosas cumprem um papel importante ao colocarem a coletividade em movimento para sua celebração: elas aproximam os indivíduos, multiplicam os contatos entre eles, torna-os mais íntimos e por isso mesmo, o conteúdo das consciências muda. (HASS, 1999, P. 01)
C3
113
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
e envolvimento e complexidade sobre a própria prática, pois só é tradicional quem está inserido no aprender e reconhecer do corpo, sistematizado pelo ensinamento oral.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Perceber o candomblé como religião do corpo oralizado, não é somente observar a doutrina enquanto modo de sistematização, que não segue um dogma a partir de uma catalogação, más acima de tudo é incluir o fiel a sua pratica não deslocando o indivíduo do divino. Louvar os orixás primeiramente é louvar o a vida, a existência é perceber que os aprendizados sobre algo o aproxima de si próprio, e com isso inclui a todos que se relacionam. O corpo como potência do existir nos seus sentidos, pluraliza as maneiras de poder vivenciar a mesma coisa de forma distintas, no candomblé ketu, o corpo não é somente o transporte para o divinizado, é a oportunidade de se perceber como se é. Através de a natureza poder se incluir como uno naquilo que é ofertado, permitido e experienciando. É fazer que a prática espiritual não fosse tão distante que não possa ser contemplada. O corpo em forma de celebração sem julgamentos de como se é, seria ou fosse. A possibilidade de se integrar com tudo que o faz sentir se vivo, aguçando todos os sentidos como dádiva divina, o comer, o tocar, escutar, cheirar, falar o kinético 7 . Para tanto o fato de integrar o ser ao divino não pode ser um subterfúgio que gerencie formas de represálias e preconceitos para os que não fazem parte da religião. É importante e determinante que respeitem as diferenças, mesmo que não as compreendam. O fato de subjugar, folclorizar ou se apropriar daquilo que não o pertence, somente afirma que é importante ainda nos dias de hoje problematizar e colocar em pauta discussões como intolerância religiosa, racismo, e campos de pertencimento sobre o viés de tudo que se apresenta a margem. 7 A kinética, cinésica, ou significado expressivo de estudos de linguagem corporal significativa denominação ou os movimentos do corpo de comunicação e gestos aprendido somatogénica ou não oral, visuais, auditivos ou percepção táctil sozinho ou em ligação com a estrutura paralingüística e linguística e o comunicativa. 2 situação também é conhecido pelo nome comportamento Kinesico ou linguagem corporal.
114
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
REFERÊNCIAS ARAÚJO,Zezito de.Folclorização e Significado Cultural do Negro. São Paulo,2011 BAÍA, Luiz César dos Santos, MORAES, Nilson Alves de, LOUREIRO, José Alves Matheus. Arte e Artistas Populares: Tradição, identidade e
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
O pertencimento somente pode fazer parte daquilo que conhece e reconhece, para tanto vivenciar estabelece que o aprendizado e o ensinamento faça sentido para qualquer tipo de prática. Pois a vivência de cada um ninguém pode tirar, ou atravessar para poder sentir o que o outro sente, essa experiência é única por mais que tenhamos estímulos e caminhos parecidos com o do outro.
Mercado. VIII ENANCIB – Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação. Salvador ,Bahia , 2007. CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro & VILHENA, Luís Rodolfo. Traçando fronteiras – Florestan Fernandes e a marginalização do folclore. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 3, n. 5, p. 75-92, 1990 CAVALCANTI, Marilda C. Estudos sobre educação bilíngüe e escolarização em contextos de minorias lingüísticas no Brasil. DELTA Volume especial, vol.15, 385 – 447, 1999. GARCIA, Tânia Costa. A Folclorização do Popular: uma Operação de Resistência à Mundialização da Cultura, no Brasil dos anos 50. ArtCultura, Uberlândia, v. 12, n. 20, p. 7-22, jan.-jun. 2010
MONTERO, Paula. A teoria do simbólico de Durkheim e LéviStrauss:desdobramentos contemporâneos no estudo das religiões. Novos estud. - CEBRAP no.98 São Paulo Mar. 2014 MUNANGA, K.GOMES, N. L. O negro no Brasil de hoje. São Paulo: Global, 2006
artigos
HASS, Francisco. Concepção de Religião, Segundo Emile Durkheim. dom total. 1999
PRANDI, Reginaldo. As Religiões Negras no Brasil, Para Uma Sociologia Dos Cultos Afro Brasileiros. São Paulo ( 28) : 64-83, Revista USP. Dezembro/ Fevereiro 95/95.
C3
115
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
________________ ¨Cidade em transe: Religiões Populares no Brasil no fim do Século da Razão¨. In Revista USP no.11, São Paulo, out-dez, 1991(b) PP.65-70
Artigo recebido em 27/05/2017 Aprovado em 12/01/2018
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
________________¨Os candonblés de São Paulo: aVelha Magia na Metrópole Nova. São Paulo. Hucitec &Edusp, 1991 ( a).
116
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
artigos C3
117
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
118
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
artigos C3
119
Foto: Wagner Ferraz
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
A TECNOLOGIA NO DESIGN DE SUPERFÍCIE EM TÊXTEIS
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
Artigo 6
120
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Me. Christie Jaconi Meditsch, UFRGS, Porto Alegre/RS1
Resumo: A pesquisa busca identificar como os avanços tecnológicos estão sendo incorporados pelo design de superfície em têxteis. Para tal entendimento é buscado o estado da arte em uma pesquisa exploratória, considerando experimentos ainda não lançados no mercado e produtos já em fase de comercialização. Com os levantamentos, percebeu-se que os têxteis estão passando por uma mudança radical na sua expressão e na sua funcionalidade. Com isso, o campo de estudos do design de superfície ganha amplitude em seus fundamentos, que ampliam de noções de rapport e módulo para questões de dinamismo e interatividade.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
A Tecnologia no Design de Superfície em Têxteis
Palavras-chave: design de superfície, tecnologia, têxteis.
Technology on Surface Design in Textiles
Keywords: surface design, technology, textiles.
artigos
Summary: Abstract: The research seeks to identify how technological advances are being incorporated by surface design in textiles. For this understanding the state of the art is sought in an exploratory research, considering experiments not yet launched in the market and products already in the stage of commercialization. With the surveys, it has been noticed that textiles are undergoing a radical change in their expression and functionality. With this, the field of study of surface design gains amplitude in its foundations, which expand from notions of rapport and module to questions of dynamism and interactivity.
1 Christie J. Meditsch, UFRGS, Porto Alegre/RS. O presente artigo é um recorte da dissertação de mestrado apresentada pela autora com o título de Design de Superfície: a apropriação criativa de tecnologia em estampas de roupas infantis. Mestre em design, designer de superfície especializada em projetos e pesquisas na área de estampas para estamparia. C3
121
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
Introdução O fundamento básico da criação de uma estampa segundo Rüthschilling (2008), compõe, primeiramente, o pensar em um motivo referente à temática da superfície. Depois estabelecer o módulo, que é a unidade que forma a estampa, onde precisam estar todos os elementos visuais que fazem parte do motivo. E o sistema de repetição determinado pelo designer deste módulo, chamado de rapport, forma o desenho final da estampa. Porém, conforme afirma Rüthschilling (2008), o avanço da tecnologia possibilita que o design de superfície se envolva com projetos que levem em consideração o entorno e a situação de uso. Assim, o design não se esgota na única função de projetar linguagens visuais, contemporaneamente, passa a se ocupar com outras variáveis de projeto, como aspectos táteis, olfativos, dinâmicos e de simbologia mais complexa. Pensar no design de superfície para têxteis no cenário contemporâneo requer ir além do plano imagético e bidimensional. O ato criativo se expande e entrecruza áreas. O caminhar do uso de tingimentos e padrões em têxteis evoluiu de questões decorativas, para relações de pertencimento de grupos, a representatividade de estilos de vida. Atualmente, chega-se ao caminho de uma imagem/ conteúdo que sai do objetivo externo e objetiva-se para o seu usuário,
C3
artigos
com recursos de dinamismo e interação. Este novo cenário fez com que projetos de têxteis, que até então eram apoiados em fundamentos do desenho, artesanato e composição visual - passem a ter como problemas de design questões como interatividade, dinamismo, explorando novos fundamentos, como especificidades de materiais, tipo de ação e novas tecnologias. O progresso tecnológico em química, fibras e polímeros oferece aos designers de superfície materiais novos e expressivos, e através de sua apropriação para a estampa é possível criar padrões dinâmicos, onde diversas expressões e estímulo de diferentes sentidos podem estar presentes em um mesmo tecido (WORBIN, 2010). Com isso, percebe-se que existe uma ampliação de saberes no que envolve projetos de estampas. Para tais processos criativos novos problemas surgem para serem resolvidos dentro de um contexto funcional e/ou simbólico, interativo e/ou dinâmico, decorativos e/ou simbólicos.
122
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Tecnologia
TECNOLOGIA – (a) Método para transformar inputs em outputs; (b) Aplicação dos resultados de pesquisa científica à produção de bens e serviços; (c) Tipo específico de conhecimento, processo ou técnica exigido para fins práticos; (d) Conhecimentos de que uma sociedade dispõe sobre ciências e artes industriais, incluindo os fenômenos sociais e físicos, e sua aplicação à produção de bens e serviços. Identificamse duas grandes categorias de tecnologia: tecnologia de produto (componentes tangíveis e facilmente identificáveis) e tecnologia de processo (técnicas, métodos e procedimentos).
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Estando os têxteis atrelados às questões do tempo sua relação com a tecnologia se torna presente, é possível pensar no aspecto tecnológico como um divisor e marcador de épocas. Para entender melhor o que está implícito no significado de tecnologia, o Sebrae disponibiliza na internet um dicionário em que o conceito de tecnologia é apresentado da seguinte maneira (MELO; LEITÃO, p. 99, 2010):
Conforme o dicionário do Sebrae a tecnologia é desenvolvida a partir de conhecimentos sobre ciências que são destinados à produtos e/ou processos. Segundo Basalla (1998) a tecnologia evolui, parte de um estado simples para outro mais complexo, de acordo com os saberes que vão se somando no seu manuseio. Entende-se, então, que uma tecnologia provém da combinação e experimentação do cruzamento de outras tecnologias.
As variadas tecnologias de matérias que estão sendo incorporadas e experimentadas no design de superfície de têxteis na contemporaneidade tendem a busca por ações que reagem conforme as condições e estímulos ambientais e gestuais, que podem ser a partir de fontes humanas, mecânicas, térmicas, químicas, elétricas, eletrônicas, magnéticas ou outras.
artigos
Na presente pesquisa, quando se fala de tecnologia, não corresponde somente a tecnologia eletrônica, no caso, é abordada qualquer tipo de tecnologia, podendo ser nanotecnologia, biotecnologia, tecnologias antigas com novas apropriações de uso, entre infinitos outro tipos.
Tais tecidos com apropriações tecnológicas costumam passar de um estado para outro, podendo ser manipuláveis e mutantes. Este tipo de desempenho assume características chamadas na pesquisa de “mutáveis”, “dinâmicas” e/ou “interativas”. Que podem ser
C3
123
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
alcançadas de diversas maneiras na superfície do tecido, com ou sem influências de tecnologias computacionais, seja por manipulação da luz (por holografia), através de transferências de luz em fibras ópticas ou em materiais de luminescência como os eletroluminescentes ou fluorescentes. Ainda, tal mutação pode ser oriunda do processo termocromático por luz UV, onde há uma série de fenômenos cromáticos que proporcionam a mudança de cor de acordo com a corrente elétrica, a pressão, o atrito, entre outros estímulos (WORBIN, 2010). Assim como pigmentos cromáticos são encontrados experimentos termocromáticos, fotossensíveis e eletroluminescentes (WORBIN, 2010): Termocromático – ocorre com a mudança de uma cor para outra pela mudança de temperatura. Não é um material emissivo, ou seja, não emite luz. A mudança de cor reage de forma reversível variando conforme a temperatura. Abaixo da temperatura de ativação o tom é colorido e acima da temperatura de ativação atinge um tom claro esbranquiçado. Fotossensível – muda a cor conforme a exposição de luz ultravioleta ou luz solar. Não é um material emissivo. Tal reação ocorre de forma reversível da cor branca a outra cor determinada, que podem ser: amarelo, rosa, azul, turquesa, magenta ou verde. Eletroluminescente (EL) – consiste no fenômeno óptico e elétrico
C3
artigos
durante o qual o material emite luz em resposta a uma corrente elétrica que o atravessa, ou a um forte campo elétrico. Em comparação com outras fontes de luz esta é uma energia elétrica com baixa fonte de luz e de consumo, por isso, não apresentam efeito de aquecimento. Além dos citados que são encontrados mais facilmente em experimentos, existem casos de estudos de pigmentos hidrocromáticos, que exploram as respostas de mudança de cor em contato com a água. E de pigmentos piezochromics, que mudam de cor em resposta à pressão. Segundo Worbin (2010) a transferência para a era digital que ocorre na contemporaneidade também afeta sob fortes influências as expressões têxteis. Mais recentemente, no final do século XX, o entendimento sobre a relação de tecidos, eletrônicos e computação mudou radicalmente e muitos experimentos passaram a surgir da interação e mistura de um com o outro (BERZOWSKA, 2005). Popularmente, a relação entre o tecido e a tecnologia se
124
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Um têxtil eletrônico refere-se a um substrato têxtil que incorpora capacidades de detecção (biométrico ou externo, comunicação (geralmente sem fios), transmissão de energia e tecnologia de interconexão para permitir sensores ou coisas tais como dispositivos de processamento de informação a serem ligados a redes dentro de um tecido). São tecidos que integram elementos condutores, muitas vezes, fios ou fibras. Os tecidos são criados usando técnicas de fabricação de têxteis tradicionais, como: tecelagem, tricô, bordado, costura e impressão com tintas.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
resume nos têxteis eletrônicos, que se dividem em tecidos inteligentes (smart textils) e comutadores vestíveis (roupas wearable). Porém teoricamente, tratam-se de três áreas diferentes, que segundo Berzowska (2005) possuem uma estreita relação que leva a muitos cruzamentos possíveis e divergentes direções de pesquisa.
O que promove a condução de energia são as substâncias contidas nos fios, como o exemplo da tinta eletrônica2. Um exemplo deste tipo de tecnologia no âmbito do design de superfície são os tecidos que tem sua cor programada para mudanças e os com toque programável que também podem ser sensíveis a luz (BERZOWSKA, 2005). Diferente dos têxteis inteligentes que apresentam avanços científicos na pesquisa de materiais, como o caso do nitinol3. E com isso, incluem capacidades como: melhores isolantes ou tecidos que resistem a manchas.
Vivemos em um mundo complexo composto por bits e átomos. A tecnologia junto com os recursos de computação e de comunicação
artigos
Enquanto o conceito de wearables é centrado na ideia de incorporar um computador pessoal em um guarda-roupa diário para permitir o acesso ubíquo ao poder computacional e conectividade universal (BERZOWSKA, 2005). São exemplo de tais relações experimentos que transformam uma roupa em um transmissor de dados, como, por exemplo, o casaco com um capuz que armazena MP3, ou ainda, experimentos que rompem a fronteira entre a estampa e a informação digital.
2 A tinta eletrônica são circuitos extensíveis e laváveis impressos em tecido. Disponível em: http://blogs.estadao.com.br/link/tinta-eletronica/. Acesso em: 15/12/2013. 3 Nitinol é uma liga metálica de níquel e titânio, que exibe a propriedade de efeito térmico de memória e superelasticidade. Disponível em: http://www.nitinol. com/. Acesso em: 15/12/2013. C3
125
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
que integram os objetos físicos está aumentando e avançando rapidamente. Mas também é necessário lembrar que a tecnologia assume a forma de têxtil há milhares de anos, funcionando como proteção, disfarce, e interface para o mundo. Assim, dentro da evolução tecnológica, existem elos de união com tecnologias anteriores. Além das ligações que promovem o avanço tecnológico, outros tipos de variações ocorrem nesse campo. De uma descoberta tecnológica podem ser multiplicadas infinidades de aplicações usadas em diferentes ambientes e com diferentes materiais. Considerando a possibilidade, tanto de avanço e, principalmente de multiplicidade da tecnologia, o designer se encontra no desafio da aplicação ao uso. Para os profissionais que trabalham com problemas de projetos a relação com a tecnologia não se estabelece com a busca pela descoberta, mas sim pela apropriação criativa desta.
C3
artigos
Nessa questão, o trabalho do designer se configura como multidisciplinar, pois o uso de apropriações requer o contato com áreas que não são próprias ao design. Por exemplo: a tecnologia LED já há tempo está difundida no mercado, porém com o avanço das nanopartículas, chegou recentemente um ponto onde é possível criar pequenos dispositivos de LED e estes podem ser molhados. Com isso, o designer se apropria do avanço tecnológico de uma área que não se relaciona com a sua e adapta de forma criativa tal novidade para a estampa da roupa. A roupa ganha aspectos interativos e dinâmicos de uma luz que pode ser acionada e mantém suas características de conforto e pode ser lavada sem problemas. A apropriação tecnológica capaz ao designer pode ser feita em diferentes capacidades. O trabalho de Kim (1993 apud SCHNORR, 2008) apresenta uma forma de medir as capacidades tecnológicas de acordo com as atividades desenvolvidas por designers junto das empresas para as quais trabalham. Tais níveis são classificados da seguinte maneira: - Capacidade de assimilar e utilizar a tecnologia – a empresa apenas mantém em funcionamento e atualiza a tecnologia com a qual trabalha. Isto significa que a empresa não atualiza ou altera os conhecimentos sobre equipamentos, materiais e processos; -
Capacidade de adaptar e modificar a tec-
126
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
-
Capacidade de gerar novas tecnologias –
empresas que estão na ponta do domínio do conhecimento técnico e tecnológico do setor. A partir de constantes atividades de pesquisa e desenvolvimento, conseguem elaborar e implantar inovações que impactam o mercado. Este tipo de desenvolvimento de tecnologia faz com que a empresa seja capaz de lançar novo conteúdo cientifico e como resultado, lançar no mercado novos conceitos de materiais, produtos e serviços.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
nologia – se refere à desenvoltura da empresa em alterar desenhos, usos de materiais, projetos, processos. A empresa tem habilidade para aprimorar conhecimentos, pois possui uma base sólida de conhecimento técnico e experiência. As mudanças são vistas como inovações que melhoram o funcionamento e a produção da empresa;
Estas classificações abordam o entendimento e o valor que as empresas dão para investimentos em tecnologia. A apropriação criativa de tecnologia ocorre em decorrência da busca por um melhor desempenho ou diminuição de custos. E tal objetivo pode ser atingido através do uso de novos componentes ou materiais que melhorem o desempenho.
De acordo com Puerto (1999) toda a empresa deve continuamente ajustar as suas atividades com as mudanças temporais. O mercado sinaliza as necessidade da criação de novos produtos. Por sua vez, o ato de desenvolver tais produtos ou redesenhar antigos, motiva assimilação da busca por inovação dentro da empresa. Como designers, é importante assegurar que as interações entre as pessoas e estampas em roupas com apropriações criativas de tecnologia
artigos
Ainda, a apropriação criativa de tecnologia pode ter níveis de lançamento, podendo ser esta lançada de forma pioneira a nível mundial, mercadológico ou empresarial. Para ser considerada uma novidade a nível mundial, esta deve representar a primeira vez em que o produto aprimorado ou novo é lançado. O nível mercadológico corresponde ao pioneirismo dentro de uma área geográfica que atinge os concorrentes diretos. E quando a inovação é considerada em nível da empresa, esta pode já existir em outras empresas, sendo apenas uma novidade para o núcleo em questão.
C3
127
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
possam ser úteis, agradáveis e, mais importante, significativas. Tecnologia e o Design de Superfície em Têxteis O campo que experimenta o uso novas aplicações de tecnologia no design de superfície em tecidos ainda apresenta certas barreiras – principalmente econômicas - por todos os suportes têxteis. Em maioria, no lugar de produtos consolidados existem experimentos que arriscam e testam caminhos. Entretanto, tais experimentos são fundamentais para o avanço da ciência na área, pois com o manuseio do material se pode aprender sobre as suas propriedades (WORBIN, 2010). Os testes com pigmentos cromáticos foram os mais encontrados na pesquisa exploratória sobre o estado da arte dos avanços tecnológicos incorporados pelo design de superfície em têxteis. A coleta de dados para o seguinte fim foi realizada em livros, anais, dissertações, sites e artigos de revistas nacionais e internacionais. Muitos outros avanços foram encontrados nos campos de modelagem, comunicação e saúde, porém os que não apresentavam relação com a superfície têxtil não foram considerados. Worbin (2010) apresenta o exemplo da tinta termocromática da pesquisadora Marjan Kooroshnia para a empresa Smart Textiles (2013). Este projeto em andamento consiste em tintas à base de corantes leuco reversíveis, à base de água, com as temperaturas de ativação
C3
artigos
de 15 ° C e 27 ° C (figura 01). A textura da roupa modifica conforme a temperatura do corpo. Este projeto indica como a temperatura e a interação do usuário podem influenciar a aparência de uma peça de roupa; mudando constantemente (figura 02).
128
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Figura 02: Vestido com tinta termocromática Fonte: Smart Textiles Body Print (2013)
O movimento é uma questão inerente ao ser humano, pensar em uma estampa que acompanhe em termos cromáticos essa atividade constitui em um grande leque de possibilidades a serem exploradas.
artigos
Por outra designer, Joanna Berzowska (2005), o Shimmering Flor é um projeto desenvolvido que serve como exemplo de apropriação de tecnologia para criar mudanças de cor na estampa. O projeto funciona como um painel não emissivo que muda de cor. Composto por fios macios com componentes condutores e fibras de tecido, tintas termocromáticas e componentes eletrônicos personalizados que permitem a mudança de cor por meio de animação eletrônica. O projeto funciona com um controle que ativa as tintas termocromáticas, pela mudança da temperatura, o que resulta na animação da composição de cores da estampa (figura 03).
C3
129
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
C3
artigos
Figura 03: Painel com estampa que muda de cor por animação eletrônica Fonte: Berzowska (2005)
O experimento ainda não virou peça de roupa, pois os requisitos de energia são elevados e para as tintas termocromáticas funcionarem necessitam de um ambiente com a temperatura controlada. Outro projeto com interação dinâmica é o de um pufe que muda de expressão conforme o seu uso (SMART TEXTIL, 2013). Seu funcionamento consiste em uma estampa brilhante que é gradualmente revelada quando alguém se senta sobre o pufe. Tendo suas luzes apagadas quando novamente ele fica sem que alguém o utilize. Este tipo de estampa com movimento recorrente de cor que acende e desaparece completamente é possível por possuir camadas programáveis. Os tecidos são construídos por quatro partes: algodão tecido com fios condutores embutidos, uma estampa
130
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
impressa em camadas com uma combinação de cor pigmento e cor termocromática (com uma mudança de estado em 27°C), sensores de pressão para detectar quando alguém se senta sobre o tecido, computador programado para controlar os tópicos que aquecem e o tempo de permanência (figura 04).
Figura 04: Pufe com estampa programada que altera conforme o uso Fonte: Smart Textiles Patterns (2013)
Este experimento, se acoplado em pequenas fibras laváveis, que permitam conforto ao uso, poderia ser pensados para a roupa infantil. Algumas boas possibilidades podem se estender do experimento utilizado no pufe.
O conceito desse experimento consiste em um tipo de “broche” com seu formato inspirado em borboleta fixada na roupa que parte do princípio de que o inseto necessita se mover para sobreviver (figura 05). Assim, possui três sensores que captam o movimento do usuário que deve preocupar-se em movimentar-se o suficiente (do tempo
artigos
Além dos testes realizados com tintas termocromáticas, outras formas de diálogos com a estampa e com o usuário foram encontradas. Um exemplo é o projeto de design que lida de forma interativa com a questão do controle do movimento. É um exemplo de roupa Wearable, que possui sua propriedade programada e interligada com programas computacionais.
programado) para que seu “broche inseto” permaneça vivo.
C3
131
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Figura 05: Broche de borboleta controlado por movimento Fonte: Smart Textiles Balance (2013)
Este é um projeto que envolve o jogo, a interatividade e propõe a reflexão sobre o papel de interfaces do usuário têxtil na era digital. Essa apropriação não ocorre especificamente na estampa, mas pode vir a ser uma extensão desta.
Um exemplo de roupa wearable desenvolvido pela CuteCircuit (2013) é a camiseta programável, chamada de T-Shirt-OS. O projeto se assemelha com o aspecto de uma camiseta comum, mas com a funcionalidade que permite compartilhar status no Facebook, Tweets, músicas e fotos. Além da função de compartilhamento, a camiseta possui 1.024 pixels de LED arranjados em uma grade de 32 cm por 32 cm, que é controlada através de um aplicativo no celular que permite transmitir frases e imagens na camiseta como se fosse uma tela de computador. Além disso, a T-shirt-OS inclui câmera, microfone, acelerômetro e alto-falantes acoplados (figura 06).
C3
artigos
No quesito comercial de roupas wearables, a marca londrina CuteCircuit (2013), criada no ano de 2004 é a líder mundial em moda interativa. Seus projetos não ficam apenas em experimentos, são comerciais e unem beleza e funcionalidade através do uso de tecidos inteligentes e microeletrônica.
132
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Figura 06: Estampa com sistema de LED programável Fonte: CuteCircuit (2013)
A camiseta T-Shirt-OS abre um novo paradigma. É um experimento que pode ser tornar muito especial se voltado para crianças que possuam habilidade com computadores e celulares. Estampas podem virar animações, e com isso, a camiseta pode vir a servir como suporte de tela e infinitas possibilidades podem surgir a partir disso. Outra empresa que apresenta grandes avanços tecnológicos com têxteis é a Luminex (2013), empresa de luminárias. Um deles é o tecido LUMINEX ® composto de fibras luminosas capazes de emitir luz própria em cores diversas. O tecido pode ser criado com fios de todo tipo e natureza integrados com as fibras luminosas. Os fios LUMINEX ® são detectores de partículas elementares que correspondem a fibras especiais utilizadas nos experimentos científicos da física sub-nuclear.
O tecido LUMINEX ® (figura 08) ainda pode ter integrado a ele aparatos eletrônicos, o que transforma o tecido em um material inteligente (microchips com dimensões muito reduzidas e peso). Isso possibilita que além dos efeitos luminosos, o tecido seja capaz de processar sinais como batimentos cardíacos ou temperatura do corpo, ou responder de forma consistente aos estímulos ambientais.
artigos
A novidade pode ser usada em diversas aplicações, desde o mais insignificante até os mais úteis, num grande número de áreas ainda não exploradas. A ideia de tornar os tecidos luminosos não é nova segundo Luminex (2013), desde o nascimento de fibras ópticas (no início dos anos 1970) várias empresas tentaram iluminar materiais, mas foram desencorajadas por muitas dificuldades.
C3
133
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Figura 08: Tecido luminoso Fonte: Nirvanacph (2017)
Diante de tantos experimentos, num universo ainda muito mais amplo, ainda são poucos os observados com o cunho comercial, e menores ainda os que têm sucesso de vendas e assim, considerados como inovações. Mesmo que muitos desses exemplos possam ser adaptados ao design de superfície de têxteis, questões como recursos financeiros, preço de venda, conforto e praticidade e acesso a tecnologia, são barreiras para que tais implementações aconteçam. Mas tais experimentos aproximam o uso do avanço da tecnologia, que aos poucos vai sendo incorporada e se tornando mais acessível.
C3
artigos
Considerações Finais De acordo com a pesquisa, os avanços tecnológicos identificados que estão sendo incorporados pelo design de superfície no projeto de têxteis apresentam dinamismo e projetos com diferentes materiais incorporados tecidos. Os exemplos demonstrados na pesquisa visam exibir possibilidade de alguns caminhos de projetos e abrir possibilidades para muitos outros. Além das questões visuais como estampas, tingimentos e tramas; os têxteis com tecnologia apropriada possuem elementos de projeto que envolvem formas tridimensionais, dinamismo, tipos de ação, formas de interatividade e uso de diferentes materiais. Desta forma, surgem novos problemas de projeto e, com isso, a necessidade de aprofundar a compreensão sobre o que significa projetar tecidos com
134
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
apropriações criativas de tecnologia.
informação, entre outras possibilidades. As apropriações criativas de tecnologia têxteis também podem ser suportes ao estímulo de outros sentidos, não somente ao comumente estimulado, a visão. Também podem transmitir valores e questões de ensino, sendo um tecido com uma estampa inclusiva, que estimula uma brincadeira, uma conexão entre pessoas que estão longe, uma incitação à criatividade; assim, podendo ganhar um sentido mais amplo que o visual decorativo.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Quando as características das estampas mudam, papéis de designers e usuários se alteram, assim, como o posicionamento da indústria. O tecido entendido como uma forma de interação e dinamismo, cada vez mais abre leques de caminhos de projeto, de produção e de usabilidade. Muito além da produção da decoração, possibilidades se amplificam, podendo o tecido ser usado para casos inusitados como iluminação, suporte de mídia, transmissão de
Pensando em evolução, pode-se recordar que o desenho feito à mão livre e os processos artesanais de tingimento e trama, passaram para o suporte computacional e produção automatizada. As apropriações criativas de tecnologia nos têxteis representam o continuar e o andamento dessa evolução. A transição para um novo e desconhecido ambiente de projeto e de superfície.
REFEREÊNCIAS
artigos
Nesse lugar que irá se chegar, mas que ainda não se conhece, é possível visualizar primeiros apontamentos. Tecidos começam a ser gerados em conjuntos colaborativos e multidisciplinares, que acompanham os avanços da tecnologia. Com isso, novas metodologias de projetos vão sendo requisitadas. E por consequência, tais reflexos fomentam e fazem surgir novas reflexões, novas buscas por conhecimentos e ressignificações no meio acadêmico e profissional.
BERZOWSKA, Joanna. Electronic Textiles: Wearable Computers, Reactive Fashion, and Soft Computation. United Kingdom: Textile, Volume 3, Issue 1, pp. 2–19, 2005. Disponível em: http://www.xslabs. net/papers/texile05-berzowska.pdf. Acesso em: 13/12/2013. CUTECIRCUIT. Disponível em: <http://cutecircuit.com/>. Acesso em 10 C3
135
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
nov. 2013. MELO, Herbart dos Santos; LEITÃO, Leonardo Costa (orgs.). Dicionário de Tecnologia e Inovação. Fortaleza: Sebrae, 2010. NIRVANACPH. Disponível em: <http://nirvanacph.com/2013/09/ material-of-the-month-luminex/>. Acesso em 10 mai. 2017. PUERTO, Henry Benavides. Design Industrial e Inovação Tecnológica. Bahia: IEL, Programa Bahia Design, 1999. RÜTHSCHILLNG, Evelise. Design de superfície. Porto Alegre: UFRGS, 2008. SCHNORR, Leonardo Afonso. Estratégias de gestão da inovação: o caso de uma empresa do setor do vestuário. Porto Alegre: Dissertação (Mestrado em Administração) – Escola de Administração, Programa de Pós-Graduação em Administração, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008. SMART TEXTILES BALANCE. Disponível em: <http://smarttextiles.se/ balance/>. Acesso em: 10. Dez. 2013. SMART TEXTILES BODY PRINT. Disponível em: <http://smarttextiles.se/letbody-prints-dress/>. Acesso em: 10. Dez. 2013. SMART TEXTILES PATTERNS. Disponível em: <http://smarttextiles.se/ recurring-patterns/>. Acesso em: 10. Dez. 2013. WORBIN, Linda. Designing Dynamic Textile Patterns. Borás: Universidade de Borás. Disponível em: https://www.diva-portal.org/smash/get/ diva2:876942/ FULLTEXT01.pdf. Acesso em: 18. Jul. 2016.
Artigo recebido em 31/07/2016
C3
artigos
Aprovado em 02/02/2018
136
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
artigos C3
137
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
138
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
artigos C3
139
Foto: Wagner Ferraz
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
O SUCESSO DE REPRISES: UM ESTUDO DE CASO DE “A USURPADORA” E O SBT
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
Artigo 7
140
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Me. Jose Luiz Pereira de Arruda, UNIPLAC, Lages/SC 1 Esp. Ivan Cláudio Siqueira de Moraes, UNIPLAC, Lages/SC 2 Gisele Cristiane Urnau dos Prazeres, UNIPLAC, Lages/SC 3 Grad. Luiz Henrique Zart, UNIPLAC, Lages/SC 4
RESUMO: Um dos produtos de maior alcance do imaginário social da população brasileira pela indústria da cultura é a telenovela, que chega aos lares da quase totalidade do país. Ela é reafirmada pela constante reprise de grandes sucessos brasileiros (e de outros países), como uma forma de expressão da vida cotidiana por meio das situações vividas pelos personagens. Este artigo pretende analisar o impacto das inúmeras reprise de “A Usurpadora” pelo SBT. A partir disso, identificar os modos de vida estimulados pelas telenovelas mexicanas, oferecendo um panorama geral da cultura de massa, da representatividade de gênero presente nas tramas, além da chegada da TV no Brasil e do contexto latino-americano no desenvolvimento da narrativa melodramática dos folhetins até ela se transformar em telenovela.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
O sucesso de reprises: um estudo de caso de “A Usurpadora” e o SBT
PALAVRAS-CHAVE: Usurpadora. Reprises. SBT. Melodrama. Telenovela.
Success of reruns: a research study of “La Usurpadora” and the SBT
1
artigos
ABSTRACT: One of the products most far-reaching of the social imaginary of the population by the culture industry is the soap opera that reaches the homes of almost all the country. It is reaffirmed by the constant reprise of great Brazilian successes (and other countries) as a form of expression of everyday life through the images and situations experienced by the characters. This article analyzes the impact of the Professor de jornalismo da UNIPLAC – Mestre em Comunicação Social;
2 Professor de jornalismo da UNIPLAC – Mestrando PPGCAMB-UDESC / Especialista em Comunicação e Semiótica; 3
Graduanda do curso de jornalismo da UNIPLAC.
4
Graduado em Jornalismo na UNIPLAC – Mestrando (especial) UDESC. C3
141
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
reprise of “The Usurpadora” SBT. From this, identify ways of life stimulated by Mexican telenovelas, offering an overview of the mass culture, gender representation present in the plots, plus the arrival of TV in Brazil and the Latin American context in the development of melodramatic narrative of serials until she turn into soap opera. KEYWORDS: Usurpadora. Reprises. SBT. Melodrama. Soap Operas.
Uma introdução ao caso de “A Usurpadora” “A Usurpadora” foi exibida originalmente em 1998, no México, pela Televisa, a maior empresa de comunicações do país. Um ano mais tarde, foi reprisada no SBT pela primeira vez. E em março de 2015, a emissora de Silvio Santos resolveu apostar novamente na velha fórmula pela sexta vez, com grande sucesso e apelo com o público, às 5h30 da tarde durante a semana. Chama a atenção o fato de a trama mexicana ter sido transmitida além da estreia, também em 2000, 2005, 2007 e 2012 na televisão brasileira.
C3
artigos
Antes de chegar a “A Usurpadora”, foi necessária a construção de todo um pano de fundo, um contexto onde se desenvolveu o gênero da telenovela, tanto mundialmente, quanto na América Latina. Só depois disso, e com a consolidação da cultura televisiva em território brasileiro, é que a telenovela pode obter sucesso e ser reprisada mais uma vez, mesmo 16 anos depois da estreia no país onde foi escrita. Muito antes de “A Usurpadora” ser telenovela, a narrativa esteve fortemente ligada ao melodrama: gênero com raízes no teatro, com origem no século XVIII, principalmente na França e na Inglaterra. Os folhetins, surgidos em meados do século XIX também ajudaram a desenvolver o estilo narrativo da novela, em suas principais características. Folhetins que, na raiz do termo, designavam uma parte específica dos jornais, no rodapé da primeira página, onde normalmente se encontravam também resenhas, críticas literárias e anúncios e os fait divers (HAMBURGER, 2011, p. 74; SILVA, 2013) Para Martín-Barbero (1997, p. 157), este gênero surge em 1790 (portanto, apenas um ano mais tarde) como espetáculo popular, oposto ao teatro erudito. Focado na expressividade e no drama da
142
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Entrelaçado com a cultura de folhetim, o melodrama tinha como principais público a pequena e a média burguesia, em jornais franceses. A linguagem era acessível, e serviria de molde para as radionovelas. Esse recurso, aliado à forma de contar a história diariamente, ou seja, em série, recriava o suspense a cada fatia, a fim de manter o leitor curioso e instigálo a acompanhar o desfecho da trama. Isto é, a fórmula gerava o compromisso com o próximo capítulo (FIGUEIREDO, 2003, p. 26) (VIEIRA, 2013, p. 5)
Conforme Thomasseau (2005, p. 14 apud SILVA, 2013) o estilo melodramático segue usando principalmente da linguagem oral, apelando aos aspectos estéticos exagerados, ao excesso de julgamentos morais em torno das situações vividas por personagens antagônicos, que protagonizam um jogo de sentimentos que acaba por exaltar vícios e virtudes de seus intérpretes.
Jesús Martín-Barbero, estudioso da cultura latino-americana, destaca que o melodrama é um “espetáculo total” não apenas como encenação do cotidiano, mas na própria estrutura dramática na qual é composto: Tem por principais quatro sentimentos básicos – medo, entusiasmo, dor e riso -, que são, ao mesmo tempo, situações e sensações – “terríveis, excitantes, ternas e burlescas – encarnadas por
artigos
Neste estilo, a tônica é a de oposição entre as principais características das personagens. O melodrama, como poderia se presumir pelo nome, presa pela arte dramática, comocional, em estórias que tem um toque de realismo fantástico, atravessando as fronteiras do impossível, temperadas com os dilemas do cotidiano. É, portanto, entendido como um gênero carnavalesco, do ponto de vista de uma literatura dialógica (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 319). Nela, espectadores e atores ilustram uma narrativa da vida, aberta a reações e modificações vindas de ambas as partes (SILVA, 2013, p. 4). Age como uma matriz cultural que expressa (com ênfase em determinados pontos) o cotidiano: é deste contexto que a estrutura da narrativa se repete, mas precisa se adequar às novas formas de vida.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
encenação, o estilo tem o primeiro romance publicado em outubro de 1836, no jornal La Presse, escrito por Honoré de Balzac. Foi a partir desta iniciativa que o estilo começou a expandir-se.
C3
143
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
quatro intérpretes, sob as figuras de Traidor, Justiceiro, Vítima e Bobo, respectivamente. Juntas, essas características mesclam quatro gêneros narrativos diferentes: o romance de ação, a tragédia, a comédia e a epopeia, que resultam em uma intensidade só atingida pelo melodrama (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 62 apud VIEIRA, 2013, p. 4). Afirmando esta posição, Thomasseau trata o melodrama como [...] um gênero teatral que privilegia primeiramente a emoção e a sensação. Sua principal preocupação é fazer variarem estas emoções com a alternância e o contraste de cenas calmas ou movimentadas, alegres ou patéticas. É também um gênero no qual a ação romanesca e espetacular impede a reflexão e deixa os nervos à flor da pele [...]. O melodrama, é verdade, pratica em geral um moral convencional e ‘burguesa’, mas não se pode esquecer que ele veiculou, durante uma boa parte do século não só idéias políticas, sociais e socialistas, mas, sobretudo humanitárias e ‘humanistas’, apoiando-se na esperança fundamental de um triunfo final das qualidades humanas sobre o dinheiro e o poder. Ele carreou, de cambulhada, os sonhos e as esperanças dos estratos sociais mais desfavorecidos, mas também criou e manteve a efervescência de um imaginário popular, rico e vigoroso (THOMASSEAU, 2005, p.139-140) (SILVA, 2013, p. 3)
Neste panorama, na América Latina, o melodrama representou uma matriz cultural baseada no reconhecimento popular na cultura de massas (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 152 apud VIEIRA, 2013, p. 4). Tem parte neste processo o surgimento e a popularização do rádio, primeiro nos Estados Unidos, em 1930, já que por lá existiam programas de aproximadamente 15 minutos diários, que dão início à “era moderna” se assim se pode dizer, da soap-opera ou história seriada (MEIRELLES, 2008). Em primeiro lugar, é útil ressaltar que o nome de soap-opera pode ser tratado ao pé da letra, já que os espetáculos eram patrocinados, nos EUA, por empresas fabricantes de sabão (soap, em inglês). Em segundo lugar, a estrutura de história seriada vem da exibição da estória fragmentada por capítulos, assim como o folhetim. Mas a soap opera se define por uma temporalidade quase que real, com histórias que acompanham o envelhecimento do elenco e dos personagens. A soap opera não possui começo, meio e fim; ela dura anos. Já a novela dura alguns meses e dominou o horário nobre de uma das principais indústrias de televisão do
144
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
mundo, alcançando em suas melhores fases 40% de audiência masculina (HAMBURGER, 2011, p. 67).
Com o desenvolvimento das radionovelas na América Latina, o Brasil também teve mudanças. A partir de 18 de setembro de 1950, quando a TV (Tupi) chega ao país pelas mãos de Assis Chateaubriand, empresário das telecomunicações e proprietário dos Diários Associados – que envolvia uma cadeia de jornais impressos e rádios -, a ficção e o teleteatro perdem espaço para a telenovela, que vive um espaço de consolidação até 1969 (MIRA, 1999, p. 30 apud VIEIRA, 2013, p. 7). Até a logo da primeira emissora de TV brasileira, a Tupi, faz alusão a um menino indígena com antenas na cabeça, em vez do cocar. Assim, há uma espécie de apropriação da tecnologia internacional de maneira infantilizada (APPADURAI, 1999 apud HAMBURGER, 2011). Mas o que é, realmente, uma telenovela?
Vale ressaltar que a telenovela surge neste mesmo período no Brasil, mas a veiculação diária só acontece a partir de 1963, com o videotape, que torna a televisão o meio de comunicação de maior alcance e expressão do país. Esta tecnologia permitiu que “lugares diferentes vissem os mesmos programas, mas com atrasos que variavam de acordo com o tempo que a fita demorava a chegar (HAMBURGER,
artigos
Uma história contada por meio de imagens televisivas, com diálogo e ação, criando conflitos provisórios e conflitos definitivos. Baseia-se em diversos grupos de personagens, de lugares e de ação, grupos que se relacionam interna e externamente e, ainda, supõe a criação de protagonistas, cujos problemas assumem primazia na condução da história. Na atualidade, tem uma duração média de 160 capítulos: cada capítulo tem, aproximadamente, 45 minutos de ficção (FIGUEIREDO, 2003, p. 38) (VIEIRA, 2013, p. 7)
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Existe uma diferença entre os dois modelos. Enquanto o folhetim desenvolvia a história em “próximos capítulos”, com o objetivo de chagar a um fim definido, a soap opera se desenvolve ao mesmo tempo que é escrita, produzida e encenada (praticamente como as telenovelas). Desta forma, é mais flexível no sentido de que pode sofrer alterações conforme as reações do público. Outra semelhança entre a soap-opera e a novela é a existência de comunidades, núcleos de personagens em determinado local, que facilita a identificação pela divisão em extratos sociais, como o bairro nobre e a periferia (BORELI; ORTIZ; RAMOS, 1991, p. 19 apud VIEIRA, 2013, p. 6).
C3
145
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
2011, p. 63-64). Também como uma ambição dos militares, em uma tentativa de “integração” do país pelas telecomunicações, com a criação da Empresa Brasileira de Telecomunicações, a Embratel (SILVA, 2013, p. 5-6). A TV age como uma formadora da identidade contemporânea do povo brasileiro, de acordo com Martín-Barbero (2003), pelos aspectos visuais que ela privilegia. Em 21 de dezembro de 1951, Walter Forster começou a delinear a influências que as novelas teriam no Brasil. Escreveu, dirigiu e atuou, ao lado de Vida Alves em “Sua vida me pertence”, ainda em estrutura radiofônica, mas na TV, com 15 capítulos exibidos duas vezes por semana (ALENCAR, 2005 p. 2; MEIRELLES, 2008, p. 3). Entretanto, por um bom tempo, a TV manteve-se em espaços mais restritos da população. Não ocupava o horário nobre, não trazia retorno financeiro, “Em 1960, dez anos depois de inaugurada, ela podia ser vista em 4,6% do território nacional. Em 1991, a televisão já alcança 99% do território e 74% dos domicílios (HAMBURGER, 1998)” (HAMBURGER, 2011, p. 64). Hoje, a TV está em mais de 98% dos lares brasileiros, de acordo com informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010. Em 1969 iniciou-se um processo de transição, onde a televisão deixaria de ser local para ter alcance nacional. Sob a ditadura, os impasses sobre a censura e a repressão eram constantes. O intervencionismo, as prisões e as torturas eram blindados por uma aura magnífica que a televisão causava. Neste período, popularizaram-se os programas de auditório, que costumavam distribuir objetos como geladeiras e carros, além de outros bens de consumo. Mesmo durante a época de repressão, o movimento de abertura da teledramaturgia brasileira em relação aos produtos latinos se iniciou. Inclusive, o modelo de história do dramalhão mexicano tão presente em “A Usurpadora” e outras tramas já podia ser identificado, em um modelo que, segundo o autor, pode ser explorado a exaustão e mesmo assim não tem perdido a validade: “Em 1964, a TV Excelsior ajudou a firmar o gênero, em sua forma diária, com ‘A Moça que Veio de Longe’, adaptação de um original argentino, cuja história de amor
146
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
entre empregada e o filho do patrão” (ROMANCINI, 1999, p. 2). CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Já em 1970, a TV Globo apostava nas tramas melodramáticas, em série, para um público predominantemente feminino. Tudo com base na reescrita de roteiros que funcionaram na América Latina. Depois de certo período, as produções brasileiras começaram a se distinguir do resto do continente, ainda seguindo a estrutura narrativa do melodrama, mas de maneira menos apelativa, mais aberta ao diálogo, realista, e à tensões sociais exacerbadas na década anterior. Também vale o destaque de uma indústria novelista ainda embrionária. Como lembra Jesús Martín-Barbero, (2001, p. 118 apud VIEIRA, 2013, p. 8: “Até a década de 1970, os horários mais rentáveis eram dominados por ficções e seriados norte-americanos. Então, cerca de 40% da programação ocupada por seriados, melodramas comédias e policiais”. Iniciado o desenvolvimento, diz Hamburger (2011, p. 75) que “durante os anos 1970-80, a novela brasileira surpreendeu por sua capacidade, inédita como produto comercial, de atrair público telespectador de diferentes classes sociais, composto de homens e mulheres, das mais diversas gerações e habitantes de todo território nacional”.
artigos
A dinâmica da telenovela começa a aparecer quando é composta uma linha de temporalidade, por exemplo, para a exibição dos capítulos diariamente, além da ambientação das histórias em determinados lugares (HAMBURGER, 2011, p. 70). Esta relação de continuidade permite a criação de laços de afeto e proximidade entre os personagens e os cenários e o público, que identificase com a trama e começa a adequar seus horários em função da novela. A previsibilidade da narrativa comum às novelas mexicanas faz com que o público identifique (apesar do dramalhão) situações que acontecem no cotidiano, e, então, acompanhe a trama e se identifique com determinados papéis. Chegando, inclusive, a tratar os atores (fora das câmeras) como se realmente fossem os personagens que interpretam. Niklas Luhmann (2005, p. 137) aponta que “[...] a televisão parece buscar sugerir ao leitor que certas experiências são dele mesmo. [...] Chega-se a emaranhados indestrinçáveis entre a realidade real e a realidade ficcional.” O que é mostrado numa telenovela, por
C3
147
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
exemplo, é baseado na realidade, que por sua vez, também pode ser alterada pela ficção apresentada. Luhmann (2005, p. 109) conclui que “o entretenimento possibilita uma auto-inserção do mundo representado” (FERNANDES, 2012, p. 4).
Usurpadora é um exemplo do destaque dado aos personagens no melodrama: figura em um quadro de choque entre a pobreza e a ascensão social; trafega nos limites entre o aceitável e o execrável, e mexe com clichês como falsidade, traição e mentira, claramente condutas conflituosas, que temperam a telenovela das Bracho. Assim, “as histórias são centradas em personagens femininos, heroínas que lutam contra diversos tipos de dificuldade até o final feliz do encontro amoroso definitivo e desimpedido dos empecilhos que constituíram por meses a longa trama narrativa” (ALMEIDA, 2007). A novela também atua no sentido de difundir narrativas que veiculam moda, decoração, aparelhos eletrônicos, carros, o hábito de viajar, a novela, além de turbinar vendas, possibilita que, via consumo, o espectador se sinta parte do universo narrativo. Há aqui um embrião da estrutura em rede: espectadores se relacionam entre si e com os personagens através da adoção de certos modismos que fazem sentido enquanto a novela está no ar. Ela acena simultaneamente com a possibilidade de inclusão no universo interno e externo à narrativa ficcional (HAMBURGER, 2011, p. 71-72).
C3
artigos
Thompson ajuda a esclarecer alguns aspectos técnicos, nos enfoques e direcionamentos característicos da teledramaturgia, de maneira geral: Uma das conquistas técnicas da televisão é a sua capacidade de utilizar uma grande quantidade de deixas simbólicas, tanto de tipo auditivo quanto visual. Enquanto a maioria dos meios técnicos restringe a variedade de deixas simbólicas a um único tipo de forma simbólica (a palavra falada ou escrita), a televisão tem uma riqueza simbólica com as características da interação face a face: os comunicadores podem ser vistos e ouvidos, movimentam-se através do tempo e do espaço da mesma forma que os participantes na interação social cotidiana, e assim por diante. Contudo, a variedade de deixas simbólicas disponíveis aos espectadores é diferente das que são acessíveis aos participantes de uma interação face a face. É diferente porque a televisão focaliza a atenção dos receptores para certas características em detrimentos de outras e é capaz de utilizar um conjunto de técnicas (flashbacks, mixagens, o uso de máquina arquivada, etc.) que não são características da interação face
148
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
A conexão entre as produções da América Latina proporcionou a troca de experiências e capital tecnológico e dramatúrgico entre emissoras. Junto à Globo no Brasil, uma das precursoras da TV foi o Texmex, que, no futuro, se tornaria a Televisa: O maior grupo de comunicação do México com 58 canais de TV nacionais, o mesmo número de emissoras locais, cobrindo 85% da oferta televisiva mexicana -, e o primeiro a trazer a telinha para aquele país em 1950 (COSTA, 2000, p. 67 apud VIEIRA, 2013, p. 14). A Globo seria a primeira emissora brasileira a se aproveitar desta situação e a profissionalizar seu setor de dramaturgia, que hoje é referência (até de exportação) do Brasil.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
a face. Mas em alguns aspectos a televisão também estreita a variedade de deixas simbólicas (THOMPSON, 1995, p. 85).
Neste contexto é que aparece um dos personagens que levaram a cultura do dramalhão mexicano ao nosso país: Senor Abravanel, mais conhecido como Sílvio Santos. As tramas amorosas se consolidam como um programa vespertino com a popularização dos aparelhos televisores. Mas não só isso. Como exemplo da explosão da cultura da novela mexicana no Brasil. Em 1994, Silvio Santos já apostava nos produtos mexicanos, quando comprou 52 episódios da série “El Chavo del Ocho”, no Brasil, o “Chaves”; além de 247 capítulos da novela “Os ricos também choram”. Depois, só fez aumentar: com “Chiquititas”, produzida em Buenos Aires e exibida em 16 países; “Pérola Negra”, exibida entre 1998 e 1999, com roteiro mexicano, tradução, produção e mão de obra brasileira.
Também obteve sucesso com Maria do Bairro, Marimar e Maria Mercedes, com média de 12 a 24 pontos no Ibope (COSTA, 2000, p. 78 apud VIEIRA, 2013, p. 14). Depois da trilogia foi exibida pela primeira vez no Brasil “A Usurpadora”, que consolidou a década de 1990 como a de fixação da teledramaturgia mexicana no país. A novela é de
artigos
O Sistema Brasileiro de Televisão – SBT – por exemplo, tem nos enlatados mexicanos, americanos e venezuelanos seu grande forte, com novelas “açucaradas e melosas”, além de diversos seriados americanos que acabam caindo no gosto popular, como ”Chiquititas”, “Carrossel” e, “A Usurpadora”. “Mulher com Aroma de Café”, “Um Maluco no Pedaço”, “Chaves” “Chapolin” entre outras não menos exóticas (BERNO, 2003, p. 2).
C3
149
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
1998 e foi ao ar pela primeira vez no Brasil em 1999 (ALENCAR, 2005). A característica, percebe-se com a reexibição de 2015, é a de que “ainda que os gêneros mantenham suas características basicamente universalizantes, num processo de reapropriação, permitem que sejam dinamicamente recriados (BORELLI, 1994, p. 131 apud SILVA, 2013, p. 4). Da narração, o melodrama de televisão conserva uma forte ligação com a cultura dos contos e das lendas, a literatura de cordel brasileira, as crônicas cantadas nas baladas e nos vallenatos. Conserva o predomínio da narrativa, do contar a, com o que isso implica de presença constante do narrador estabelecendo dia após dia a continuidade dramática; e conserva também a abertura indefinida da narrativa, sua abertura no tempo – sabe-se quando começa mas não quando acabará – e sua permeabilidade à atualidade do que se passa enquanto a narrativa se mantém, e as condições mesmas de sua efetivação (MARTÍNBARBERO, 1997, p. 307 apud VIEIRA, 2013, p. 17).
C3
artigos
Deste modelo melodramático fica a expressividade da América Latina e seus dilemas no dramalhão, justamente porque é um gênero aberto às formas de viver e sentir da população. Se situa no campo do imaginário de uma sociedade pela relação que estabelece entre lazer, entretenimento e sentimento, estimulados pelo clima gerado pela telenovela: capaz de fornecer, de certa forma, pontos de vista sobre como cada um de nós se coloca no mundo. O diálogo sustenta esta tese, fixada pela característica do suspense, só acessível a quem segue a trama e assiste ao próximo capítulo. Entretanto, não se pode esquecer que essa cultura da telenovela é pautada na indústria e que se organiza a partir de um modelo de produção em massa, seguindo os cânones já consagrados, inclusive fazendo uso da tecnologia de ponta. No entanto, não se pode cair no reducionismo de afirmar que a produção determine tudo. Certamente que as condições de produção exercem profunda influência na concepção do produto, entretanto, afirmá-las que são pura e simplesmente ideológicas sem analisar profundamente seus modos de recepção, é ingênuo (SILVA, 2013, p. 10).
A busca por afirmação de padrões como os de casamento (insatisfação com ele, neste caso) e até de beleza (como em Betty, a Feia, sucesso mexicano reprisado pela RedeTV! Com bons índices de audiência. Deste ponto cabe pensar que:
150
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Diz-se que as telenovelas são um gênero que atinge principalmente a população feminina. O potencial de consumo é agente de influência, uma vez que os alvos principais das novelas são donas de casa e pessoas de origem mais humilde, das classes D e E, que tem como principal meio de informação a televisão (ALMEIDA, 2007):
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
As questões fundamentais do feminismo estão focadas na identidade e na posição culturais: o que significa viver como mulher ou como homem? Como aprendemos a ser um ou outro? Até que ponto o gênero – nossas próprias identidades como homem ou mulher, nossas idéias sobre o que isso deve significar – moldam nossa experiência de cultura? Essas questões alteram os problemas fundamentais dos estudos de televisão – o que estamos fazendo quando assistimos televisão? – e nos incentivam a questionar como a televisão trabalha para estabelecer e promover não só identidades de gênero, mas as relações culturais existentes, de modo geral (MUMFORD, 1998: 115 apud MEIRELLES, 2008, p. 2)
A assistência masculina também instigou algumas pesquisadoras, justamente porque os números e pesquisas contradizem o senso comum de que apenas mulheres vêem telenovelas. Os mecanismos de medição da audiência já há algum tempo trazem a público a alta percentagem de audiência masculina, mas tal fato concreto não serviu em nada para desconstruir a certeza de que novela é coisa de mulher. Principalmente para os homens que, de acordo com pesquisa etnográfica de Almeida (2003), demonstram-se defensivos ao falar sobre esse tema e, quando o fazem, denotam sempre que estão se referindo a um programa feminino, pois os seus produtos são o futebol ou o noticiário - ainda que se reportem com interesse e envolvimento às narrativas melodramáticas (ALMEIDA, 2003; HAMBURGUER, 2005 apud MEIRELLES, 2008, p. 12).
artigos
A telenovela mexicana, de certa forma, faz com que o público conviva com conteúdos muitas vezes diferentes do contexto onde está. Vale, mais uma vez, destacar a cultura de massa como fator determinante, já que a produção e difusão generalizada de bens simbólicos favorece que este fenômeno aconteça – neste caso, na transição Brasil-México de “A Usurpadora”. Almeida (2007) também diz que a relação da novela com o dia-a-dia é evidente; tratase de uma narrativa marcada pela cotidianidade. As pessoas assistem às novelas em meio a seu cotidiano; muitos assistem à novela das seis ou das sete ao passo que preparam o jantar, arrumam a casa ou fazem os afazeres domésticos. O público feminino, na média,
C3
151
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
tem maior envolvimento.
Constrói-se, a partir daí, uma “educação de sentimentos”, nos termos de Geertz (apud ALMEIDA, 2007), incorporada geralmente pelas gerações mais novas, que convivem a mais tempo com a TV e são possíveis alvos da reprise da novela. Esta concepção é interiorizada e assimilada no diálogo sentimental e afetivo, de proximidade, estabelecido entre público e personagens “tratados de maneira muito próxima como se fossem pessoas reais que vivem ali do lado, vizinhos, conhecidos, amigos ou parentes, permite a comparação constante com suas experiências individuais” (ALMEIDA, 2007). Muitas vezes, nessas aproximações as pessoas refletem sobre suas vidas, suas escolhas, revêem seus pontos de vista. A novela fornece um panorama que permite ao espectador um relativo “processo reflexivo do eu” a partir das formas de viver e de lidar com os afetos, com as relações amorosas e familiares que vê representadas na narrativa, e a partir das quais discute e repensa as suas experiências no campo dessas mesmas relações (ALMEIDA, 2007).
C3
artigos
Em 2015, na sexta reprise, “A Usurpadora” deu a vice-liderança de audiência ao SBT (FOLHA, 2015). Isso evidencia a formação de um sentimento que faz com que o público siga acompanhando a trama: a nostalgia. Conteúdos que resistem ao cruzamento grande de informações e à descentralização das sociedades modernas (FERNANDES, 2012). Neste panorama, a formação de um imaginário coletivo, como diz Martín-Barbero (2003), é também a criação de personalidades, da constituição do público como sujeito, em uma “construção que se narra” (CANCLINI, 1999, p. 163 apud FERNANDES, 2012, p. 3). Estes dois tipos de representação formam uma comunidade imaginada, que se baseia nas memórias do passado (FERNANDES, 2012, p. 3). De certa forma, esta ideia ajuda a explicar o sucesso das telenovelas mexicanas – especificamente de “A Usurpadora”. A facilidade de assimilação em uma linguagem acessível é outro trunfo, que se baseia nos clichês para atingir as demandas sentimentais e de entretenimento do público (BRITOS; SILVA, 2010; TORRES, 2003). É um divã coletivo da sociedade brasileira. Ao falar da era da globalização e dos novos paradigmas de nações, Octavio Ianni (2000, p. 225) aponta que: [...] esse é o ambiente em que germinam
152
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
REFERÊNCIAS ALMEIDA, Heloísa Buarque de. Consumidoras e heroínas: gênero na telenovela. Rev. Estud. Fem. vol.15 no.1 Florianópolis Jan./Apr. 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104026X2007000100011&script=sci_arttext>. Acesso em 10.ago.2015.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
nostalgias e utopias [...]. São muitos os que ficam com saudade do passado, ou do futuro. Às vezes, apenas negam o presente. Mas outras podem utilizar a nostalgia ou a utopia para refletir melhor sobre o presente (FERNANDES, 2012, p. 10).
ALENCAR, Mauro. A telenovela como paradigma ficcional da América Latina. XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação: 5 a 9 de setembro de 2005. UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/107556379 514525862227919082428423291947.pdf>. Acesso em 10.ago.2015. BERNO, Geovani. Televisão, educação e sociedade: uma visão crítica. BOCC: Biblioteca Online de Ciências da Comunicação. Disponível em: <http://www.bocc.ubi.pt/pag/berno-geovani-televisao-sociedade. pdf>. Acesso em 10.ago.2015. COSTA, Cristiane. Eu compro essa mulher. Romance e consumo nas telenovelas brasileiras e mexicanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
artigos
FERNANDES, Julio Cesar. Memória televisiva na construção do Imaginário nacional: estudo da reexibição da telenovela “Vale Tudo” no Canal Viva. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XVII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Ouro Preto - MG – 28 a 30/06/2012. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sudeste2012/resumos/ R33-1034-1.pdf>. Acesso em 14.ago.2015. FOLHA de S. Paulo. Quinta reprise de “A Usurpadora” garante vice-liderança ao SBT. Folha de S. Paulo: São Paulo – Outro Canal: 31.mar.2015. Disponível em: < http://outrocanal.blogfolha.uol.com. br/2015/03/31/sexta-reprise-de-a-usurpadora-garante-vice-lideranca-
C3
153
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
ao-sbt/>. Acesso em 14.ago.2015. HAMBURGER, Esther. Telenovelas e interpretações do Brasil. Lua Nova, São Paulo, 82: 61-86, 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ ln/n82/a04n82.pdf>. Acesso em 10.ago.2015. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003. MEIRELLES, Clara Fernandes. Telenovela e relações de gênero na crítica brasileira. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Natal, RN – 2 a 6 de setembro de 2008. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/ 2008/resumos/R3-1722-1.pdf>. Acesso em 10.ago.2015. ROMANCINI, Richard. A reescritura do texto melodramático na telenovela “Anjo Mau”. In: XXII Congresso da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares em Comunicação - INTERCOM, 1999, Rio de Janeiro. Anais do XXII Congresso da INTERCOM. São Paulo : INTERCOM, 1999. Disponível em: <http://www.portcom. intercom.org.br/pdfs/9c97b30be135a091a36e8d30b4ba8ee9.PDF>. Acesso em 10.ago.2015. SILVA, Lourdes. Melodrama e telenovela: dimensões histórica de um gênero/formato. 9º Encontro Nacional de história da mídia: UFOP, Ouro Preto, Minas Gerais. 30 de maio a 1º de junho de 2013. ISSN: 21756945. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais1/9o-encontro-2013/artigos/gt-historia-da-midia-audiovisual-evisual/melodrama-e-telenovela-dimensoes-historica-de-um-generoformato>. Acesso em 10.ago.2015. TORRES, Fernando. A novela nossa de cada dia. Qualidade na TV: TV e clichê. Observatório da Imprensa. 23.set.2003. Disponível em: <http:// www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/qtv230920032.htm>. Acesso em: 14.ago.2015. VIEIRA, Leila. Novelas mexicanas e os brasileiros: um estudo de caso sobre a novela A Usurpadora. 2013. Artigo (especialização em Comunicação, Cultura e Arte). Escola de Comunicação e Artes: Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Curitiba: 2013. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/149684026/Novelas-Mexicanas-e-
154
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
os-Brasileiros-Um-estudo-de-caso-sobre-a-novela-A-Usurpadorapdf#scribd>. Acesso em 10.ago.2015.
Aprovado em 05/03/2018.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Artigo recebido em 07/08/2017.
artigos C3
155
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
156
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
artigos C3
157
Foto: Wagner Ferraz
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
REVERBERAÇÕES UTERINAS: PROCESSO DE CRIAÇÃO SANTO/ PROFANO NO ESPAÇO INCORPORAL DA INSTALAÇÃO PERFORMÁTICA
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
Artigo 8
158
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Esp. Daniel Aires, UFRGS, Porto Alegre/RS1
RESUMO: O presente artigo deflagra parcialmente o processo de criação da obra “Reverberações Uterinas”2. Este manuscrito apresenta o relato do autor quanto à sua obra, seus procedimentos de criação e problematização conceitual. Tem como embasamento conceitual/ metodológico a confrontação da figura feminina em uma perspectiva santo/profana bem como a investigação de um útero conceitual como espaço incorporal para a ação performática. A problemática transita na proposição que move esta poética, ou seja, de que maneira o santo e o profano articulam-se para (trans)formar o útero em lugar incorporal? Justifica-se por palpar a interdisciplinaridade da arte contemporânea borrando as fronteiras entre as linguagens que compõe este fazer artístico. Conclui-se nos conceitos de restrição e infinitude.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
REVERBERAÇÕES UTERINAS: PROCESSO DE CRIAÇÃO SANTO/PROFANA NO ESPAÇO INCORPORAL DA INSTALAÇÃO PERFORMÁTICA
Palavras-chave: Instalação; Performance; Dança; Útero; Incorporal.
UTERINES REVERBERATIONS: SACRED/PROFANE CREATION PROCESS IN THE EMBODIED SPACE OF THE PERFORMATIC INSTALLATION
artigos
ABSTRACT: The current article partially sparks the creation process of the artwork named “Uterine Reverberations”. This text presents the author’s report regarding his artwork, its creation procedures and conceptual problematization. It’s conceptually/metodologically based on the “confrontation of the female image in a sacred/profane perspective, as well as on the investigation of a conceptual uterus as an embodied 1 Daniel Aires: Bailarino e coreógrafo, Bacharel em Artes Visuais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Especialista em Dança pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Mestrando em Artes Cênicas PPGAC (UFRGS). 2 Reverberações Uterinas trata-se de uma instalação performática, apresentada como conclusão do curso de Artes Visuais UFSM no período 2015/1, sob orientação de Suzana Gruber.
C3
159
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
space to the performatic action. The study’s problem transits in the proposition that moves this poetics, that is, in what manners the sacred and the profane articulate themselves to (trans)form the uterus in a embodied place? This study justifies itself by reaching/touching the interdisciplinarity of the contemporary art, and by blurring the boundaries between the languages that composse this artistic making. It concludes itself in the concepts of restriction and infinitude. Key-words: Installation. Performance, Dance; Uterus; Embodied space. Introdução O presente artigo revisita o trabalho de Conclusão do Curso de Artes Visuais UFSM, resgatando a imersão sensível nos campos de atuação com os quais o autor se constrói enquanto ‘ser’, em uma motivação de produção prático discursiva que busca transitar pelo terreno da arte da performance, da dança, das artes visuais, de técnicas circenses e de recursos visuais da cena (iluminação, projeção, sonoplastia) servindo de aporte para esta inquietante produção de sentido e de presença. Ancorado na multidisciplinaridade inerente ao processo de construção do artista e ao respaldo que essa multiplicidade confere às produções em arte contemporânea. Deste modo encontra na performance e na instalação a possibilidade de abarcar os elementos que constituem e formulam esta proposta. A obra traz vários elementos díspares (placas estofadas em Capitonê, miniaturas de mantos sagrados, biombos, um sofá, artefatos religiosos, etc.) que funcionam como peças autônomas quando extraídas do conjunto ou ainda como uma grande instalação performática, - uma vez que esses elementos - figuram a proposta/ intenção de revisitar simbolicamente os elementos que processaram as investigações e experimentações dicotômicas santo/profanas nesta pesquisa - buscando estabelecer relações de tensão que inquietem e questionem a inércia do observador quanto aos padrões estético/ conceituais estabelecidos pela fé enquanto cultura de massa. O título “Reverberações Uterinas” busca conferir à obra um estado vibrante, contínuo do “aqui e agora” que se dá em uma esfera (continental) cuidadosamente trabalhada na concepção metafórica do lugar útero, uma vez que esse lugar é vivo, irrigado, pulsante e traz em si a essência do ser humano feminino, capaz de gerar a própria
160
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
vida, de ser colo, de ser gerável, embrionável, abrigável e habitável.
Sobre essa perspectiva de estado vibrátil enquanto corpo e enquanto obra, Fabião (2010) discorre sobre esta possibilidade quanto ao corpo cênico:
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Nessa proposição de um estado latente de vida, espacial e dinâmico, o autor se convida a estar entregue e imerso nesse espaço, atuando como fio condutor, destinado a ser de fato a obra viva e pulsante ao entrelaçar os espaços e situações que a obra pode impulsionar. A presença do “EU corpo” se faz imprescindível para que os espaços fluam nesta ação, perpassem pelo artista/performer, e esse, pelos elementos da instalação, cambiando e reinventando novas possibilidades de situações.
[...] O corpo acontece em densidades cambiantes. Estamos permanentemente vibrando, uma vibração mínima. O adjetivo “vibrátil” nomeia não apenas essa condição de combinarmos e cambiarmos densidades permanentemente, mas também um tremular contínuo, a oscilação entre ser e não ser, entre vida e morte, entre arbítrio e determinismo que encarnamos. A cena exacerba a condição vibrátil do corpo [...] contra a noção de identidades definidas e definitivas, o corpo-campo é performativo, dialógico, provisório [...] o corpo cênico dá a ver “corpo” como sistema relacional em estado de geração permanente. (FABIÃO, 2010, p.322, grifo nosso).
Embora a obra assuma um caráter de espetáculo, devido a organização de seu arranjo (som e luz) e instalação em um ambiente (estrutura) de teatro, procura neutralizar proeminências técnicas ou virtuosismos decorrentes das especificidades das linguagens3 de maneira que esses códigos estarão presentes no corpo (já que o constituem), mas sem que estes se coloquem em detrimento do
artigos
Ainda sobre o estado de corpo cênico para esta abordagem considera-se necessário esclarecer que não há fala, tampouco textos ou encenações preestabelecidas. O “eu atuante” não tenta ser personagem, nem está “representando” algo. Ele de fato busca ser um corpo em troca de sentido, que questione a frieza que os objetos dispostos na composição possam trazer.
3 Por exemplo o virtuosismo técnico inerente ao Ballet Clássico no uso de grandes saltos ou equilíbrios específicos, bem como posições de demonstração pura de força e resistência nos aparelhos aéreos circenses. C3
161
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
estado de presença para o instalação como um todo, para que se potencialize no estado cênico de experimentação. Assim, busca não enquadrar esta abordagem performática como uma apresentação de ballet, por exemplo, menos ainda como um número circense4, neste ponto estas duas linguagens se põe à disposição do conjunto e não o oposto, para evitar que sejam usadas, por exemplo, formações tradicionais de dança ou de números circenses. Deste modo contempla a valorização do corpo. Sob este aspecto concordamos com Fabião: [...] Um corpo cênico porque desautomatiza mecânicas perceptivas, cognitivas e comportamentais; um corpo cênico porque investiga as dramaturgias do corpo e a nervura da ação; um corpo cênico porque em estado de experiência e experimentação. (FABIÂO, 2010. p.224).
Articulações do corpo santo/profano Desestabilizar as distâncias entre o santo e o carnal e recombinar narrativas interiores acerca de uma figura imaculada, reavivar as incertezas das compreensões da vida é nada mais do que inverter-se para a parte das histórias santas em que o santo é gente, é humano. Posicionamo-nos a pensar, a discutir, a questionar, sobretudo no que diz respeito a normatividade, a estaticidade das ideias, a tudo que está frio ou amornado. Nesse movimento o artista se permite a liberdade e segurança de que existem e podem ser explicitados em multiplicidade de pensamento, ambiguidade, representação corporal, a maneira de sugerir novas formas de pensar a cultura, a educação, o conhecimento, o poder e a representação. Acessa a profundidade cultural para diretamente interferir, revelar e desvelar convenções sociais ao reivindicar a existência, permanência e continuação de corpos transgressivos e o “estranho” na vida cotidiana. Sobre este movimento de resistência, subversão e transfigurações desprendidas nas abordagens que suscita, o artista acredita aproximar sua pesquisa ao que essa conversa com a art pop definida por Danto neste contexto:
C3
[...] A pop art como tal foi uma realização propriamente americana, a creio ter sido a 4 Nesse contexto o Ballet e o Circo porque fazem parte da vivência do artista, além disso, porque alguns aparelhos de acrobacias aéreas ajudam a compor a instalação e serão usados em suspensões do corpo.
162
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Nesta vontade inicial de que a instalação performática abrigue algo ou alguém, o artista questiona-se: que lugar era esse? - que quer abrigar, que quer conter algo ou alguém? A partir desse querer, de que maneira faze-lo de fato existir. Nesse contexto Cauquelin (2008) ilumina o propósito de tratar esse lugar de possível abrigo como um espaço incorporal, sugerindo possíveis presenças nestes espaços, inclusive em suas ausências, através de vestígios por exemplo. A próxima citação sugere um esclarecimento ilustrativo para tais proposições:
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
transfiguração de sua posição básica que a tornou tão subversiva no exterior. A transfiguração é um conceito religioso. Significa a adoração do comum, como em sua manifestação original, no Evangelho de São Mateus, ela significava adorar um homem como a um deus... Parece-me agora que parte da imensa popularidade da “Pop” reside no fato de que ela transfigurou coisas ou tipos de coisas que significavam muito para as pessoas alçando-as a condição de temas de arte elevada. (DANTO, 2006 p.86)
[...] como, então, um espaço que, por definição, pode conter, mas não contém corpo algum, pode conter o mundo? [...] é chamado vazio um espaço que não contém corpo algum, mas que é capaz de conte-lo[...] fora do mundo se funde o vazio infinito, que é o incorporal; o incorporal é aquilo que é capaz de conter corpos ou de não conte-los. O incorporal se torna, então, um lugar. Incorporais, o lugar e o vazio são uma mesma coisa, que é chamada ‘vazio’ quando nenhum corpo a ocupa, e ‘lugar’ quando é ocupada por algum corpo (CAUQUELIN, 2008 p.31,32).
Embora Cauquelin (2008) estabeleça relações de lugar, vazio e corpo sob aspectos do Universo como referência, a aplicação que estamos propondo assume ter como universo o próprio ser feminino, enquanto gênero e enquanto corpo, estendendo para a suposição da figura santa (corpo ficcional) a mesma abordagem de lugar, convergindo mais uma vez para as comparações/suposições que cercam o sagrado feminino.
artigos
Além disso, esclarecer conceitualmente a maneira de conter algo por sua ausência levou o autor a estabelecer uma nova relação para com a figura feminina/santa: O útero feminino neste contexto também é em si um incorporal, por sua estrutura biológica é capaz de abrigar um ser humano em fase embrionária/fetal.
C3
163
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
O útero enquanto lugar performático O útero conceitual (instalação) passa a ser o ponto central ao que precede e supõe o desenvolvimento da performance. Neste ponto entender o espaço cênico e como ele pode ser uterino - no sentido de ser receptáculo de vida, de ação, de performance – é darse ao estado de fluxo no espaço tempo. Não se trata de um simples jogo de elementos alegóricos a compor um cenário e sim de um espaço pensado como um todo que de fato gere as atitudes que afetam o corpo cênico, oferecendo ferramentas para que trocas sensíveis possam acontecer. Para formular esta proposição de entendimento do útero enquanto lugar fértil e criativo abordaremos alguns conceitos inerentes a dança contemporânea, uma vez que a dança percorre espaços e os habitam de maneiras mais descentralizadas e menos enquadradas do que a dança clássica por exemplo, em seu acontecimento, se insere, reconfigura os limites cênicos, segundo Louppe (2012) que o disseca em um esmaecimento de fronteiras especiais, tomando-a como um meio relacional entre corpo/movimento/espaço.
C3
artigos
[...] trata-se de um espaço que o corpo encara como outro corpo, um espaço como parceiro, onde o corpo, se souber dominar os seus estados tensionais, pode inventar consistências e esculpi-las. [...] Na sua visão do espaço dinâmico, Laban já havia descrito um intercâmbio activo entre o espaço e o sujeito. A par do movimento dos corpos no espaço, existe o movimento do espaço nos corpos. [...] O espaço tornase um parceiro afectivo, quase com a capacidade de alterar os nossos estados de consciência. (LOUPPE, 2012. p.189)
Esse espaço de trocas contingentes que buscamos mensurar para a instalação “Reverberações Uterinas” consiste em emancipar e expandir a ideia de um útero real - não em como seria sua aparência - mas no que conceitualmente esse útero agrega à essa proposição: um espaço de abrigo, confortável e acolhedor. Seguindo essas características sensoriais, a tradução visual acolhida pelo autor trata-se do uso de estofado capitonês5 para os revestimentos das 5 Capitonê é um tipo de acabamento que fora muito utilizado nos móveis da época Vitoriana, porém ainda é usado em outras relações de mobílias contemporâneas que buscam um toque de sensualidade aos ambientes. Consiste em um estilo marcante, com botões que dão acabamento a superfície acolchoada for-
164
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
artigos
Figura 1: “Reverberações Uterinas”. Foto/Registro do autor. Trata-se da primeira instalação em espaço público, UFSM/2014.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
estruturas que compõe a instalação, uma vez que para ele, carregam características muito semelhantes às do espaço útero, traduzindo acolhimento, conforto, abrigo, além de fortemente suscitarem ao feminino ou mais especificamente a sensualidade feminina. Além disso, a cor que predomina na composição é o vermelho, em diferentes nuances, revivendo a ideia inicial referente a carnalidade e a visceralidade humana, opondo e questionando as características do santo/imaculado. Ver figuras 1 e 2.
mando desenhos geométricos. O mais clássico e famoso móvel criado nessa linha é o icônico sofá Chesterfield, revestido em couro e com acabamento Capitonês. C3
165
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
C3
artigos
Figura 2: “Reverberações Uterinas” (detalhe). Foto/Registro do autor.
As diversas linguagens que são deflagradas pelo percurso do autor compõe uma abordagem complexa para a construção deste trabalho. O envolvimento da dança, das artes visuais e de técnicas circenses configuram uma “afinação” entre esses escopos a dar carne a ação e ao estado de performance. Dá-se assim um estado de transladar por esses escopos guiado pela ideia de soma para talvez assim encontrar um “lugar” coerente aos anseios e buscas do artista. Foi através da performance que o propositor galgou a construção deste lugar de encontros, de afetos constantes entre ele, o espaço e as linguagens. A performance abriga em si toda a liberdade para a fluidez e fruição da arte em movimento à que aqui se propôs, onde o corpo do artista/performer pôde correr pelas diretrizes imagéticas que neste trabalho falam de vida, de ciclo, de santidade, de carnalidade, de visceralidade, que sobretudo falam do (des)velar, onde o conceitual e o representativo podem alfinetar um ao outro, afinal, que corpo
166
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
é esse que mesmo propondo a santidade não deixa de ser corpo? Abriga nele mesmo e na ação a proposição aurática de culto?
Este vibrar, busca garantir a esta construção a verdade dessa poética, onde a presença do corpo cênico não interessa à atuação enquanto representação de um personagem, tecnicamente essa performance traz alguns momentos fixos, coreografados, porém algumas transições ocorrem sob a inconstância do improviso.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
As dúvidas desta construção movem mais do que as certezas, pelo fato de entendermos as certezas como inertes, enquanto a dúvida, a proposição e a subjetivação tendem a convergir ao movimento, uma vez que tomadas as relações entre meio/corpo/observador, as proximidades e distanciamentos oriundas do receptor e das imagens geradas me colocam em estado vibrátil, tornando expandidas todas as torrentes que me trouxeram até aqui.
Posicionamento histórico da linguagem A performance é entendida como linguagem a partir do século XX (Cohem, 2013), demarcado como atividade de ideias organizadas com o movimento futurista italiano na década de 1910, sucessor ao que foi compreendido como o início da modernidade nas artes cênicas com a apresentação de Ubu Rei, de Alfred Jarry, em 1896, no Théâtre de L’Ouvre em Paris que rompeu com os padrões estéticos da época.
artigos
O surrealismo toma a pintura, literatura e teatro de forma a abrigar a tática e ideologia à estética do escândalo, marcada por manifestações que difundiam o questionamento e provocação contra as plateias nos anos 20, neste período além do movimento surrealista é criada a Escola Alemã Bauhaus que desenvolve importantes experiências cênicas e promove workshops de performance. Com o advento do Nazismo a escola é fechada em 1933 e deste modo o eixo de estudos da performance se desloca para a América com a criação da Black Montain College na Carolina do Norte em 1933. Da Black Montain College ascendem dois nomes importantes de seus contemporâneos até a atualidade. John Cage e Merce
C3
167
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
Cunninghan. [...] Cage tenta difundir os conceitos orientais para a música ocidental, incorporando aos seus concertos silêncios, ruídos e os princípios zen da imprevisibilidade. Cunninghan propõe uma dança fora de compasso (não segue a música que a orquestra) e não coreografante, abrindo, nessa quebra, passos importantes para o movimento da dança moderna[...] (COHEN, 2013. p.43)
Na transição de décadas (50/60) os movimentos da contracultura e hippie, mantiveram o caráter do escândalo para chamar a atenção às suas condutas e ideologias que valorizavam a ação, o momento do acontecimento. A partir deste momento a performance se destacava ao happening que também partia da premissa da ação, porém essa ainda mantia sua característica de arte cênica (atuante/texto/ público) enquanto aquela despontava para além do uso de várias mídias, a despreocupação com a tríade estrutural do happening.
C3
artigos
Nas décadas de 70/80 a action painting sobressai às demais produções tendo Jackson Pollock como principal expoente deste movimento que valoriza o gesto, a ação do artista e coloca o corpo como próprio objeto de sua arte. Ainda nesse período de valorização da ação e do corpo do artista, tende-se para a experimentações em performances mais sofisticadas e conceituais, incorporando tecnologias e variados procedimentos estéticos. A performance é entendida como linguagem experimental, onde o artista põe-se a questionar, a esmaecer padrões de normas comumente estabelecidas, é beber de uma fonte que não aceita subestimações do ser, das inteligências e das capacidades condicionantes, que foge dos clichês dramatúrgicos e da linearidade que o público muitas vezes espera, entretanto por esse viés cabe mencionar que uma performance pode ser concebida de inúmeras maneiras, ou seja, pode seguir uma estruturação de espetáculo, ensaiada em sua totalidade, composta pela linearidade aristotélica de início, meio e fim ou ainda se entregar ao improviso, de acordo com o processo e as vivências inerentes a cada artista. Sob o aspecto do improviso, é comum pré julga-lo como o fazer de qualquer coisa, porém cabe a contextualização da poiética do artista, de forma que o fazer improvisado requer sensibilizações para
168
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Os trechos reservados ao improviso em “Reverberações Uterinas” trazem em si movimentos investigados em sala de aula (de dança), onde o artista se propôs a execução de algumas tarefas em laboratórios de criação, seguindo algumas diretrizes de composição como tempo, espaço, posições, transições. Essas lhe deram subterfúgios para transitar com a instalação e na obra como um todo, transitar como se transita na água, a nado, onde a braçada certeira fere cada gota de um modo diferente, sempre novo, em um conjunto de mar que também não se repete, ainda que seja sempre o mesmo.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
o artista e um nível de atenção muito grande para criar parentescos entre cada ação, onde tudo ganhe nexo e possa ser observado como obra.
[...] A improvisação é uma dialética entre os recursos profundos do bailarino, o acontecimento suscitado pela experiência e o olhar que reflete e nos dá novas perspectivas ou que, pelo contrário, desloca e recua as fronteiras do possível com uma força renovada (LOUPPE, 2012, p.236)
Ao falar em renovação, Louppe além de guarnecer às expectativas quanto a improvisação para o presente estudo, ainda inquietaram a rememorar o sentido uterino dessa instalação performática, dialogando com os ciclos, com o fluxo e a santidade, para úteros santos maculados, que se despem de suas camadas, que desprezam suas mucosas quando não habitados. Ao se renovar de improviso, todos os vícios se vão, vícios do movimento, da ação e do próprio eu. Entregou-se o artista a esvair-se em sangue menstrual divino, indócil como o mesmo costuma ser.
“Ouvi de baleias a sereias que me mordiscavam enquanto galgava o mar. Algumas tênues, sinceras, outras agressivas tentando me desviar. Que prumo era esse que me manteve crente à ida? Sonar de arte marítima. Despercebido nas distâncias de tantos cais. Quem me ouve põe-se a deriva do instante, onda de
artigos
Além das características da movimentação (performance) e da construção do espaço (instalação), existe outro elemento compositivo na obra que busca “amarrar” todos os elementos abordados anteriormente: o som.
som, onda de mar” (Relato do artista, grifo nosso)
Para a presente pesquisa o autor trabalhou ainda com as ideias C3
169
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
de apropriação e ressignificação, neste caso foram coletados sons da internet, apropriados de vídeos pornôs, editadas, recortadas e coladas à gravações de outras vozes específicas à compor a problemática da composição que neste momento deveria fazer referência ao sexo, mácula fatal à figura santa. O primeiro som é oriundo de filmes eróticos ou pornô, especificamente o som dos gemidos de uma mulher durante o ato sexual, esse som tem seu sentido rapidamente apreendido, independe de idioma posto que não é fala, traduz e sugere em si a geração de inúmeras imagens mentais referentes ao sexo, deste modo entendemos que o som é gerador de imagens e sensações, age subjetivamente pois não ilustra de fato o ato sexual. O segundo som é o choro constante de um bebê, a reclamar de alguma coisa. Um estridente de reclamações, a única maneira da criança comunicar, inquietando os ouvidos de quem a socorra. Já o terceiro som trás o alento do canto de uma canção de ninar, entoado pela voz rouca de uma mulher de idade avançada. Simbolicamente essa cantiga encerra o ciclo iniciado no primeiro som, a interpretar a passagem do tempo na própria vida. O sexo fecundo, a resposta da natureza ao coito com o choro inquieto do bebê, e o aconchego sonoro de uma avó a cantar para uma criança.
artigos
Os três sons são marcantes para este trabalho e para tudo que o move e por esse mesmo motivo serão “desmaterializados”, mixados para que assim afrouxem as leituras diretas quanto ao som, ressignificando assim, através de cada sensibilidade a identificação e familiarização com o ruído que melhor sobressair ao todo. Vale lembrar que esse novo som é o pano de fundo para abrigar a obra, onde a movimentação performática não segue a música e esta não obedece a literalidades representativas dos sentidos abrigados nas mesmas.
C3
Registros da instalação performática “Reverberações Uterinas”
170
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Figura 3: “Reverberações Uterinas” de Daniel Aires. Registro fotográfico: Juliano Mendes
artigos
Figuras 4 e 5: “Reverberações Uterinas” de Daniel Aires. Registro fotográfico: Juliano Mendes.
C3
171
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
C3
artigos
Figura 6: “Reverberações Uterinas” de Daniel Aires. Registro fotográfico: Juliano Mendes
Figura 7: “Reverberações Uterinas” de Daniel Aires. Registro fotográfico: Juliano Mendes
172
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Figura 8: “Reverberações Uterinas” de Daniel Aires. Registro fotográfico: Juliano Mendes
Considerações finais Ao longo deste processo de pesquisa desenvolvida na Graduação em Artes Visuais, o autor pôde se entregar ao fazer artístico e investigar com afinco e imersão, todas as possibilidades que permearam seu próprio trajeto.
Preferimos nos ater a sinceridade que este trabalho confessa. “Reverberações Uterinas” nada mais é do que o desponte germinado de muitas das polaridades habitam o artista. O santo, o profano, o masculino e o feminino, seus detrimentos, o estudo do corpo ao qual se dedica no lastro do tempo através da dança, da performance e das artes visuais, flexionando quando necessário os padrões que alguma linguagem pode impor.
artigos
Em 2011 quando iniciou a graduação mencionada anteriormente, o acadêmico se encantou em um sem fim de dúvidas que o motivaram a seguir, crente de que algum dia teria um trabalho que pudesse chamar de seu, que não precisaria ser inédito, mas que fosse legitimamente seu.
C3
173
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
O artista acredito que sua pesquisa tenha encontrado na performance o ponto de amarra para o fechamento desse processo, arriscando dizer que esse “fechamento” trata-se na verdade da abertura de um infinito de novas possibilidades para sua arte e para toda manifestação artística na qual possa estar inserido, por possibilitar trazer para o corpo e para a ação tudo que antes estava inerte. Consideramos então as palavras de Caldas (2009) para definir o “encerramento restritivo” deste processo que culminou no trabalho de conclusão de curso (TCC) e na Instalação performática insvestigada até aqui: [...] Apresso-me em esclarecer: restrição e infinitude não se contradizem. Matemáticos diriam muito simplesmente: tomemos o conjunto dos números inteiros – nele há os números pares e os ímpares; limitemonos então apenas ao conjunto dos números ímpares. Intuitivamente, diríamos que seu conjunto é menor, já que está contido naquele. Mas, nós o sabemos, ambos os conjuntos são igualmente infinitos. Assim se passa com os dispositivos restritivos de composição: eles produzem um infinito apenas enganosamente “menor”. (CALDAS, 2009. p.2)
C3
artigos
Que essa infinitude comentada por Caldas, possa ser sempre gatilho para as vivências que se acolhem na arte contemporânea. Onde essas produções, a cada tropeço, possam instigar e inquietar novas abordagens e compreensões de transfigurações do banal. Esperamos ainda que o processo de criação investigado aqui possa de alguma forma ser didático ao pensamento da arte e para as multidisciplinaridades as quais entregamos essa produção artísticoacadêmica.
Referências Bibliográficas BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: Editora Zouk, 2012. CALDAS, Paulo. O Movimento Qualquer. In “Seminários de Dança – O que quer e o que pode se [ess]a técnica?” – Org. Cristiane Woskiak, Sandra Meyer e Sigrid Nora. Joinville, 2009. CAUQUELIN, Anne. Freqüentar os Incorporais – Contribuição a uma teoria da Arte Contemporânea. São Paulo: Martins, 2008. COHEN, Renato. Performance como Linguagem. São Paulo:
174
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Perspectiva, 2013.
LOUPPE, Laurence. Poética da Dança Contemporânea. Lisboa: Guide – Artes Gráficas, 2012. PALUDO, Luciana. O Lugar da Coreografia nos Cursos de Graduação em Dança do Rio Grande do Sul, Brasil. Tese (Doutorado em Educação) Programa de Pós Graduação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015.
Artigo recebido em 13/07/2016
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
FABIÃO, Eleonora. Corpo Cênico, Estado Cênico. Revista Contrapontos – Eletrônica, Vol. 10 – n. 3 (p. 321 – 326), setembro – dezembro, 2010.
Aprovado em 01/08/2017
artigos C3
175
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
176
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
artigos C3
177
Foto: Wagner Ferraz
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
NDO: IMBRICAÇÕES POÉTICAS PARA PENSARMOS UMA DRAMATURGIA DA DANÇA NO/ DO TEMPOGERÚNDIO
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
Artigo 9
178
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
DRAMATURGIA DA DANÇA NO/DO TEMPO-GERÚNDIO
Bel. Thiago Torres, UFC, CE.1
Resumo: Este artigo surgiu a partir de questões dramatúrgicas da criação de um trabalho cênico no curso de Bacharelado em Dança da UFC e trata da relação que se constitui entre a dramaturgia da dança e o que nesta pesquisa chamamos de tempo-gerúndio: um tempo na/da duração. No decorrer da escrita levantam-se questões sobre como a relação entre o fazer dramatúrgico e o tempo, configurandose na duração, pode ser trabalhada como possiblidade poética para um corpo dançante em cena. Neste trabalho, a escrita sobre a dramaturgia da dança não somente reflete as buscas por questões significativas das construções de sentido, mas busca pensar como, em seu próprio fazer, no corpo ao dançar, revela-se também uma construção processual de um olhar sensível à obra através das ações do dramaturgismo em dança.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
NDO: IMBRICAÇÕES POÉTICAS PARA PENSARMOS UMA
Palavras-chave: Cena; Corpo; Dramaturgia da dança; TempoGerúndio. NDO: POETICS IMBRICATIONS TO THINK ABOUT A DANCE OF DRAMATURGY IN THE GERUND TIME
1 Mestrando em Artes pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Bacharel em dança pela UFC e dramaturgista de processo criativos, iniciou sua carreira na dança em 2005. Dedica-se como artista-pesquisador ao estudo e à criação em dança com foco na concepção na/da dramaturgia e suas poéticas do corpo em cena. Atua junto ao UM coletivo Só onde desenvolve trabalhos de Dança-Teatro ao lado de mais oito artistas-pesquisadores. Atualmente investiga os processos ligados à temporalidade do inacabamento e suas relações acerca do corpo e suas dramaturgias inacabadas. Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv. do?id=K4836310J8
artigos
Abstract: This article arose from the dramaturgical issues of the creation of a scenic work in the course of Bachelor of Dance of the UFC and deals with the relation that is constituted between the dramaturgy of the dance and what in this research we call time-gerund: a time in / duration. In the course of writing, questions arise as to how the relation between dramaturgic doing and time, forming in duration, can be worked as a poetic possibility for a dance body in scene. In
C3
179
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
this work, the writing about the dramaturgy of dance not only reflects the searches for significant issues of the constructions of meaning, but seeks to think how, in its own doing, in the body when dancing, also reveals a procedural construction of a sensitive look at Work through the actions of dramaturgismo in dance. Keywords: Scene; Body; Dance of dramartugy; Gerund Time.
Tempo-gerúndio: conceitos acerca do tempo na/da duração. Uma grande parte do mundo pode-se dizer, está regido por uma lógica de pensamento a partir de um tempo cronometrado. Este tempo faz das nossas relações, dos nossos modos de estar no mundo, algo inteiramente dependente de suas variações regulares, a duração precisa de nossas ações marcada numa sequência coerente de sentido. Podemos entender que estamos intimamente ligados a esta variação, à mudança dos segundos, minutos, das horas imbricadas ao entendimento desse tempo cronometrado. A ideia do tempo Khronos está ligada ao deus Cronos da mitologia grega (o deus que gerava e devorava os seus filhos) e traz para a concepção da cronologia, ciência que estuda o tempo,
C3
artigos
uma função de determinar uma ordem de sentido histórica para os acontecimentos. Na nossa atual condição de entendimento sobre o tempo, a ideia de representação da cronologia acaba por tornar essa concepção de tempo como “[...] um senhor impiedoso e impassível, um algoz, que rouba a nossa juventude e nossas alegrias” (SCHÖPKE, 2009, p. 10). Essa representação temporal, atribuída pela sociedade ao tempo, por uma necessidade de organização de sentido, acaba, por sua vez, criando condições de regulamentar os acontecimentos dos nossos cotidianos. Nestas condições, a compreensão de um tempo que passa, marcado pela variação numérica dos relógios, torna o próprio tempo algo pluralizado. Podemos pensar que apesar de existir uma representação de um tempo que rege toda a sociedade, cada pessoa tem a sua percepção temporal que se diferencia da percepção de outra pessoa. Todos nós pulsamos de modos diferentes, vivemos essas variações de modos diferentes. Podemos sim estar em
180
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
É claro que, se o tempo é entendido como algo que não para de passar, é realmente difícil dizer o que ele é (ou dizer que ele tem um “ser”, uma natureza em si). Afinal, pensado como um fluxo contínuo, o tempo tem a sua própria “realidade” furtada pelos instantes que se sucedem, isto é, ele só pode existir à custa de ser sempre o outro, já que cada presente que passa, um novo se segue e, assim, indefinidamente (SCHÖPKE, 2009, p. 12).
Vejamos como isso se deu historicamente. Desde a 1° Revolução industrial, em 1750 na Inglaterra, as máquinas e o ritmo de uma produção em série foram dando, ao longo dos séculos, outro sentido de tempo apreendido à corporeidade. Essa “aprendizagem mecanizada” submeteu o corpo a absorver o tempo como algo que não se pode desperdiçar, cada segundo perdido já não vale mais para uma devida valorização do fazer. Esse modo de apreensão do tempo, construído sócio historicamente, faz do nosso cotidiano um lugar de permanência no tempo apenas como passagem, uma percepção temporal enquanto algo passageiro e que, segundo Schöpke (2009), não deixa (segundo se diz) que nada dure para sempre.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
conexão com o tempo, mas, sabendo que cada relógio, cada corpo irá ter a sua própria noção temporal a partir das condições de seu cotidiano, problematizando o entendimento do que é o tempo.
Apesar desta concepção construída, há outra maneira de apreendermos o sentido de tempo, sentido aqui, que nos interessa principalmente no fazer dramatúrgico da dança2. A concepção e
2 Tomemos a partir daqui o sentido atribuído à dramaturgia na contemporaneidade da dança como uma possibilidade que surge em meados dos anos 80 na Europa e disseminada no Brasil no início do ano 90, com mais influência entre Rio de Janeiro e São Paulo. É pertinente ressaltar que os atributos empregados ao dramaturgista (pessoa que trabalha com a dramaturgia da dança), não somente compete lidar com a narratividade (sentido mais ligado ao texto teatral), porém, com o sentido mais amplo à dramaturgia atrelada ao corpo. Hoje, contamos com esses ofícios: dramaturgo e dramaturgista, sendo que este último ainda questionado sobre suas funções no processo criativo (nem sempre ligados à dança), operando de maneira a questionar como “primeiro crítico do processo” ao lado dos diretores, intérpretes-criadores e coreógrafos, suas obras e os modos estéticos, políticos e éticos de dar-se a ver em cena.
artigos
a compreensão de pensamento acerca do tempo como duração nos impulsionam para um “crescer para dentro”, o crescimento dos acontecimentos, dilatando-se em si próprio, tendo, no caso da dança, a própria investigação dramatúrgica do corpo em movimento como
C3
181
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
a principal fonte de criação. Nesta investigação é preciso estar atento para o porvir, fazer do território artístico em dança um lugar aberto, um lugar do acidente, um tempo do acontecimento na configuração dramatúrgica da própria obra em criação. Desde o início do século XX, as reverberações sobre o tempo já se colocavam em questão nas artes. Podemos citar, dentre os artistas que foram por esse caminho, a obra “Dinanismo di um cane al quinzaglio” (Giacomo Balla, 1912). Atrelado ao movimento futurista, o autor faz de sua pintura uma situação não estática, pintando as imagens do quadro a partir de uma perspectiva da imagem em movimento. Esta produção, talvez já traga em si um questionamento sobre o tempo, apresentando-o não como passagem, mas enquanto duração, refletindo, assim, o tempo do acontecimento. Uma pintura que está acontecendo.
C3
artigos
Nesta escrita reflexiva, a proposta se configura como um modo de pensar o tempo-duração para entender a dramaturgia da dança. Os conceitos filosóficos aqui apropriados interessam-nos tão somente como possibilidade de apreensão desta concepção de tempo enquanto duração, mas na própria investigação de um processo criativo em dança. Não cabe a este estudo fazer um tratado filosófico sobre as questões conceituais a serem tratadas no tema, mas fazer destes conceitos, uma maneira de refletir sobre a criação da dramaturgia da dança, fazendo ligações e interpretações a respeito do tempo-duração como uma ferramenta dramatúrgica para cena. Desde a antiguidade, essas questões já se faziam presentes para os filósofos de modo que os desconcertava (SCHÖPKE, 2009). Ao longo da história da filosofia, alguns pensadores se dedicaram a tal estudo acerca de como esse tempo se dá no mundo em que vivemos. A exemplo deles, podemos citar Heráclito, Platão e Aristóteles, Santo Agostinho, Bergson, Heidegger, Nietzsche e Deleuze, cada um deles problematizando e nos oferecendo caminhos para refletir como o tempo pode ser pensando nessas relações. Algumas reflexões a partir de conceitos sobre o tempo enquanto duração de Henri Bergson (1859-1941) apropriados por Gilles Deleuze (1925-1995) nos interessam como possibilidade de apreensão desta concepção para pensarmos aqui numa dramaturgia da dança
182
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
que dura em seu próprio fazer.
Ainda segundo o autor para apreendermos essa questão do tempo enquanto duração, podemos pensar que nesse Todo existem outras condições de duração que poderão influenciar mudanças de modo qualitativo. Condições essas que Deleuze chama de movimento: “O movimento remete sempre a uma mudança” (DELEUZE, 1983, p. 9) e, no acontecimento dessas mudanças, “[...] as próprias qualidades são puras vibrações que mudam ao mesmo tempo em que os pretensos elementos se movem” (DELEUZE, 1983, p. 9). Então podemos pensar que nesse Todo há acontecimentos que se movem e com eles geramse relações no próprio Todo.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Mas o que podemos entender por esse tempo que dura? O que Deleuze (1983) nos apresenta enquanto duração é que ela pode ser apreendida como um Todo. Este não é dado e nem passível de ser dado. “[...] Se o Todo não é passível de ser dado é porque ele é o Aberto e porque lhe cabe mudar incessantemente ou fazer surgir algo de novo; em suma durar.” (DELEUZE, 1983, p. 18).
Se pensarmos, por exemplo, num espetáculo de dança onde temos os corpos que dançam, a estrutura coreográfica, o cenário, o figurino, a luz e outros elementos, esses, chamaremos de objetos, um conjunto fechado, onde a relação do Todo não pertence a esses objetos, mas ao Todo que aqui podemos pensar como a dramaturgia da dança.
Não se deve confundir aqui o Todo com os conjuntos desses objetos. Esses conjuntos para Deleuze são artificialmente fechados, são sempre conjuntos de partes, ou se pensarmos num espetáculo, podemos chamar de cena. A dramaturgia do/no tempo que dura, assim como o Todo, é aberta “[...] e não tem partes, exceto no sentido muito especial, pois ele não se divide sem mudar de natureza a cada etapa de divisão” (DELEUZE, 1983, p. 19). É como se houvesse um fio de costura e costuramos de modo que, ora viramos ao reverso, ora
artigos
Através do movimento no espaço, os objetos de um grupo mudam suas respectivas posições. Mas, através das relações, o todo se transforma ou muda de qualidade. Da própria duração, ou do tempo, podemos afirmar que é o todo das relações (DELEUZE, 1983, p. 18).
C3
183
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
voltamos ao verso e esse fio ligasse as partes dessa costura. Pensando aqui nesse fio de costura como a dramaturgia, ela estará sempre no entre, nos dois lados da obra, e só se dará a ver pelo próprio movimento da costura e pelos modos como a costura se constituirá na obra. O Todo dessa costura não se pode definir pelos conjuntos, os materiais utilizados, pois o próprio movimento muda na duração. Pensamos então a criação de temporalidades dessa dramaturgia da dança como o Todo “[...] que se cria e não para de se criar numa outra dimensão sem partes, como aquilo que leva o conjunto de um estado qualitativo a outro, como o puro devir incessante que passa por entre esses estados” (DELEUZE, 1983, p. 19). E ainda que pelo movimento, o Todo ou a dramaturgia se divida nos objetos, os objetos se reúnem na dramaturgia: e justamente entre os dois, “tudo” muda.
C3
artigos
Dramaturgizando a dança: a temporalidade poética da duração. Por pensar o tempo como uma constituinte de durações, podemos compreender que, nessa constituinte, criam-se possibilidades dramatúrgicas em dança. Desdobram-se, dessas relações, produções de temporalidades numa dramaturgia que é acolhida por um tempoduração cujas linhas geram, produzem no corpo “[...] um ‘eu’ em formação, um ‘eu’ que se constrói no contato com o mundo” (SCHÖPKE, 2010, p. 224). Enquanto pensamento sobre dança, podemos intuir que esse “eu” em formação surge como corpo a movimentar-se em cena e que faz de si, o tempo na dramaturgia, uma vez que “[...] é o movimento que dá sentido ao movimento” (GIL, 2002, p. 32). O corpo então traz para cena um desdobramento de si em seus modos de fazer dança cuja constituição poética de sentidos no/do tempo se dá de maneira silenciosa e potente em suas movimentações. Para Laurence Louppe (2012, p. 27), “A poética procura circunscrever o que, numa obra de arte, nos pode tocar estimular a nossa sensibilidade e ressoar no imaginário, ou seja, o conjunto de condutas criadoras que dão vida e sentido à obra”. Assim, ao pensarmos uma Dramaturgia no/do tempo estamos tecendo uma linha que é “[...] a continuidade do que não é mais (o passado) no que é (o presente)” (PUENTE, 2010, p. 39). Assim, podemos pensar que
184
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Aqui, o tempo em que a dramaturgia da dança solicita aparecer não é necessariamente cronometrável, não existe um ponto certo ou exato onde ela se fará presente na obra, em corpo dançante. A dramaturgia, o sentido no/do corpo em movimento, está a todo o momento, ora silenciosa ora em estado de efervescência, num tempo que dura no Todo da obra e que compreende não só a obra em si, mas as relações de sensibilidade que esta causa para além do espaço cênico.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
essa poética ou ferramentas das quais o corpo tece a sua criação em dança é atravessada por algo que está, silenciosamente e em seu tempo, pedindo para aparecer e constituir de forma potente a força que este corpo em seu movimento pode, justamente, ressoar neste imaginário que Laurence Louppe cita.
A palavra duração entra nesse contexto da dança contemporânea e dos estudos de poéticas dramatúrgicas como algo que preenche as entrelinhas da obra deixando-a mais consistente e refinada. Subtende-se também que nessa poética da dramaturgia algo está acontecendo no corpo do intérprete enquanto ele experiencia as movimentações em cena e que permite a esse corpo um debruçase junto à dança, no seu estado de presença cênica “[...] um corpo que não é dado mas descoberto, ou que está ainda por inventar’’ (LOUPPE, 2012, p. 73). A dramaturgia a qual permeia o corpo em movimento3
No que se refere ao sentido, sobretudo na dança contemporânea é evidente que nos encontramos longe de uma narratividade que se contentaria em dispensar um referente, sendo o sentido, antes de mais, esse objetivo não nomeado que a dança interroga sem descrever (LOUPPE, 2012, p. 32). 3
artigos
procura lugares para habitar e se presentificar na obra cênica de modo que “[...] é da sua articulação que nasce o sentido; este, invisível, cruza o tempo em que o espetáculo se dá a ver com o espaço que em ele acontece” (PAIS, 2004, p. 89). E dessa articulação em movimento que a dramaturgia tece em cena faz do corpo um acontecimento, dando a ver aquilo que se passa em dança e evocando sentidos, lembrando que
Entenda-se aqui movimento como, também, uma ação de paragem. C3
185
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Para a dramaturgia se fazer presente enquanto dança é indispensável pensarmos sua imbricação com uma das constituintes da dança contemporânea: a temporalidade. Vale ressaltar que a dança é constituída por espaços-tempos: um vai criando o outro ao mesmo tempo em que dança, não havendo assim uma separação entre eles. Mas, vamos deter aqui uma atenção a essas temporalidades que se arrastam na sua própria dilatação, fazendo com que a dança e a dramaturgia andem imbricadas para que, segundo Pais (2004), a duração do material, sua sensação estética, se ofereça à fruição. Podemos pensar nessa duração do material, que aqui chamamos de dança, em linhas sucessivas, um fluxo ininterrupto onde seja “[...] impossível deter a duração” (PUENTE, 2010, p. 41) no qual se desdobram sentidos no corpo que se movimenta. [...] a consistência dramatúrgica que funda um plano de composição se liga sempre à insistência de algo, insistência ora anunciada como projeto pelo regramento, ora silenciosa [...] uma linha abstrata, uma textura recorrente, que variam de duração e se acumulam ritmadamente em nós (CALDAS, Paulo, 2010, p. 14).
C3
artigos
Por isso, existe uma insistência que permeia a temporalidade na duração não apenas “gratuitamente” como diz Caldas (2010), mas se preocupando com o tempo que isso oferece ao corpo em cena. Sendo assim podemos induzir que a dramaturgia constrói na sua própria duração, como cita Schöpcke (2009, p. 230) “[...] Sensações, sentimentos, evolições” e que nesse tempo-gerúndio não há um só estado que deixe de variar enquanto se vive a duração. Podemos pensar que se gera um tempo produzido no/ em corpo, tempo esse em que a duração promove uma potência trazendo para cena a sensação que dura no seu próprio fazer. Assim, o tempo é entendido como uma linha tênue constituinte de durações: Bergson não sustenta que a duração (ou o tempo) seja uma linha reta. Para ele, a linha reta é uma representação matemática. Afinal, a linha que se mede é imóvel e o tempo é mobilidade. Ele não nega que a duração se produz numa espécie de linha sucessiva, una e múltipla ao mesmo tempo, mas não é a linha que é a duração de cada ser, e sim o
186
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
vivido (SCHÖPKE, 2009, p. 226).
A duração faz do tempo uma variante de sentidos, dos sentidos do corpo, das “mutações de sentidos” (LOUPPE, 2012, p. 75, grifo do autor). Estes atravessam o fazer dramatúrgico na cena e se fazem mutantes, constituindo-se como um leque de possibilidades dentro da poética do movimento da qual “Dançar consistiria assim, em tornar legível a rede sensorial que o movimento explora a cada instante” (LOUPPE, 2012, p. 85). Ou seja, tomar presentificado em cena o tempo que se está vivendo.
É tendo esse tempo NDO como possibilidades poéticas e discursivas da dramaturgia que podemos descobrir e acessar estados de corpo para o desdobramento do sentido dando a ver suas mutações em potência, suas mutações em presença, colaborando assim com a dramaturgia como “[...] aquilo que invoca e ativa a dimensão de duração da experiência, a entrada no fluxo das matérias e corpos em co-existencia relacional” (LEPECKI, 2010, p. 45) e que
artigos
A expansão dessa dramaturgia que acontece em cena no corpo do interprete-criador é uma situação que está sempre no verbo gerúndio. A terminação “NDO” permite que a dança teça os seus próprios fazeres fazendo-os; que o corpo possa dançar seus gestos gestualizando-os e a dramaturgia, dramaturgizando-os. Na pesquisa em questão, temos que estar atentos para perceber que esse modo de pensar a dramaturgia apresenta-se enquanto discurso. Atentos que a cada escolha dramatúrgica feita pelo dramaturgista é, segundo Pais (2004), um discurso que se pauta pelo movimento interno de um olhar participante, que se constitui e é constituído à medida das trajetórias e desenvolvido a partir do processo no qual está incluso.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Se seguirmos nessa direção múltipla que se expande e se constitui em cena, suas linhas se modificam no próprio fazer da obra, pois “[...] a obra deixa a sua marca em nós, como uma impressão digital na memória do intelecto e dos sentidos: as linhas invisíveis e únicas da experiência estética” (PAIS, 2004, p. 94). Sendo assim, a dramaturgia na duração no/do corpo que dança “[...] é um fluxo contínuo e incessante do tempo vivido” (PUENTE, 2010, p. 41) e que nesse tempo vivido “[...] não existe duração fragmentada nem duração sem alterações, sem mudanças de estado.” (SCHÖPKE, 2009, p. 227).
C3
187
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
O seu movimento conjunto constitui uma trajetória de participação decorrente da dramaturgia, não só porque esta reside às opções estéticas que compõem os materiais, mas também devido ao facto de o seu discurso invisível participar no visível através das relações de sentido (PAIS, 2004, p. 92). Isso se configura na duração como um corpo que em sua cuja experiência provoca, ao dançar, uma sensação estética e de sentidos que se articulam ali mesmo, na cena. Essa dimensão, podemos pensá-la como um tempo outro que se instaura naquele devido espaço onde acontece a ação. A dramaturgia, em seu tempo durável, vai apresentando, sem nomear, as suas escolhas e o modo como estas vão se articulando em cena, nessa dimensão. Essa possibilidade de pensar o tempo-gerúndio ou a ação do que aqui chamamos de NDO é importante nessa investigação dramatúrgica, ele é um parceiro no que se considera a dança que está sendo construída em cena. É ainda neste território da experimentação em cena que corpos começam a ser gerados e atravessados de durações, pois o corpo é um canal vivo da experiência, não fica inerte às suas intensidades enquanto se movimenta. A dramaturgia, neste caso, prolonga-se dando sentido àquele corpo, preenchendo as lacunas e se construindo em sua estrutura composicional deste que está em cena “[...] consumindo-se no plano temporal do espetáculo [...] como também no tempo durante o qual essas relações de cumplicidade existem” (PAIS, 2004, p. 84). Os estados provocados por essas temporalidades que emergem de uma ação de sentido da cena permitem que surja do corpo que dança [...] então “outra cena” onde se desenrola um drama existencial e onde o movimento já não é suporte mimético de um referente já estruturado mas, muito pelo contrário, uma emanação (se não uma constituinte dessa mesma cena, em que o corpo é simultaneamente agente de abertura e leitura (LOUPPE, 2012, p. 61).
Podemos assim, pensar nessa relação onde tempo constitui sentido e sentido constitui tempo; são processos de pensamentos que permitem essa possibilidade de a dramaturgia adentrar no entre das
188
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
estruturas composicionais para dar a ver aquilo que se passa de potente no corpo dançante.
O peso do corpo propõe estados que corroboram para essa temporalidade no gerúndio, pois, segundo Louppe (2012), é pela transferência de peso que todo o movimento se define, cria estados de atenção na própria percepção do corpo ao dançar. Sentir o peso do corpo e suas articulações de sentido em cena permite uma experiência cinestésica e estética que põe em evidência cada gesto que o corpo realiza. Para Louppe (2012, p. 104), “Contudo, o peso não é somente deslocado: ele próprio desloca, constrói e simboliza, a partir da sua própria sensação”, assim, podemos intuir que o peso do corpo em relação aos estados que provoca em cena acaba que por conduzir a uma sensação de presença onde a dramaturgia na/da dança se constrói em seu próprio fazer do movimento.
Da mesma forma que é possível sentir o tempo através da mudança do peso, a resistência do corpo cria um espaço denso onde o corpo lê as suas próprias marcas, um espaço receptivo com propriedades tácteis diversificadas (LOUPPE, 2012, p. 108).
artigos
A relação entre a duração e o peso do corpo carrega no fazer da corporeidade dançante uma experiência que podemos imaginar como a de um corpo plástico. Este ao dançar permite uma poética onde a situação do corpo é maleável, como se fosse uma massa de modelar com cujas possibilidades de criação de imagens o próprio intérprete ou até mesmo o dramaturgista brinca.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
O tempo-gerúndio ou NDO acaba, por sua vez, imbricado à dramaturgia da dança, evocando esses estados e permitindo que o próprio corpo seja o acontecimento em movimento. A duração dessas temporalidades, evocadas pelos elementos que compõem uma obra de dança, faz emergir mudanças de estados. Vamos aqui ressaltar a importância das mudanças de estado, destacando, para isso, o Fator Peso4 do corpo que dança.
4 O Fator Peso, abordado nesta pesquisa, refere-se à denominação dada por Rudolf Laban (1879-1958) aos quatro fatores de movimentos (Peso, Fluxo, Tempo e Espaço) observados por ele nas atitudes do corpo em movimento. O fator peso para Laban vai de leve a firme, possuindo suas gradações, informando, segundo Rengel (2005), um aspecto mais físico da personalidade, trazendo sua intensão e sensação do movimento. C3
189
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Essas mudanças perceptíveis são da ordem do sensível, são experiências estéticas que a dramaturgia está a todo o momento articulando e dando consistência ao acontecimento da obra. Mas a dramaturgia que está acontecendo em cena não é apenas “produto” de um processo investigativo em dança, o que podemos chamar de uma dramaturgia no gerúndio é justamente o Todo, a relação dos processos investigativos da obra que está acontecendo sendo ela a própria, o próprio processo sendo apresentado no suposto produto. Ao observarmos um trabalho de dança, o que podemos pensar é que ali, enquanto o corpo está dançando, apresenta-se uma dramaturgia cuja escolha é propor “[...] a percepção no seu próprio processo” (LOUPPE, 2012, p. 27). É interessante pensarmos a apresentação de uma obra de dança evitando cair nesse lugar da dualidade Produto x Processo e, até mesmo, pensarmos a dramaturgia da dança no tempo gerúndio como uma poética que “Por outras palavras, revela-nos o caminho seguido pelo artista para chegar ao limiar onde o acto artístico se oferece à percepção, o ponto onde a nossa consciência a descobre e começa a vibrar com ela” (LOUPPE, 2012, p. 27). A função do dramaturgista, neste caso, pode ser até um pouco difícil, pois lhe é próprio articular a relação do Todo de um trabalho de dança para adquirir uma consistência material cujo processo é o que está em cena. É possível aqui pensar que a função do dramaturgismo em seu tempo gerúndio “É um modo de estudar experiências partilhadas e, através delas, a transformação do sensível tanto para o bailarino como para aquele que testemunha a dança” (LOUPPE, 2012, p. 29). Ao nos apropriamos deste pensamento de Louppe o trazemos para um estudo sobre a dramaturgia da dança, podendo, então, conceber essa testemunha, a qual cita Louppe, aqui como sendo o/a dramaturgista. E poder dizer, em diálogo com a autora que, além de ser “a primeira testemunha” ainda no momento da criação da obra, em seu estudo, ele põe em ação, justamente a relação do Todo em jogo como uma dinâmica das atitudes do sujeito dançante.
190
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Considerações para um movimento inacabado. CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
São nessas e a partir dessas relações do tempo-gerúndio como uma abordagem ao conceito de Todo que podemos compreender como a dramaturgia se coloca em relação ao acontecimento do corpo que está dançando em cena. Podemos pensar aqui este acontecimento como uma instauração de uma temporalidade onde “O corpo é, antes de tudo, um acontecimento cuja identidade se faz performativa” (PRIMO, 2014, p. 70). Ainda segundo Primo (2014) é interessante destacar que a construção dessa identidade está em processo, “sem fim”, inacabada e em construção, assim como a dramaturgia no tempo-gerúndio e seu Todo também estão abertos, inacabados. Como um corpo ao dançar está em construção, um pensamento dramatúrgico também se estabelecerá assim. Essa construção, ou, para sermos mais fieis a perspectiva desta pesquisa, esse construindo de uma cena é justamente aquele movimentar da costura e da linha que vai para frente, mas sempre retornando ao já percorrido para assegurar a consistência da costura.
Este desdobramento dramatúrgico possível não traz uma sequência de acréscimos de cena à cena, mas um desdobrar delas. É justamente colocar o corpo que dança, em sua duração, levá-lo a seu possível sem esquecer os resquícios do que, cronologicamente, já passou. Desdobrar dramaturgicamente aqui está se fazendo por elementos de cena que crescem em si, e essa duração não se diz necessariamente por um tempo lento, mas, que pode se apresentar em suas mais variadas temporalidades.
artigos
Nesse tempo da costura que a dramaturgia vai fazendo em cena, ela nos traz desdobramentos da obra coreográfica; desdobramentos do/no corpo em suas imbricações poéticas “[...] um temo que se desprenda da noção de linearidade: instante que se desdobra em ainda-futuro e já-passado” (PRIMO, 2014, p. 70). Vale enfatizar que o que estamos colocando aqui é uma possibilidade poética de uma dramaturgia contemporânea em dança, mas, cada criador possui suas ferramentas de criar desdobramentos possíveis para o seu trabalho, o que é de grande valor para dança.
É nesse desdobramento que pode a dramaturgia “quebrar C3
191
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
sua cabeça” para resolver quais os sentidos que o trabalho está se fazendo, quais são suas escolhas. O que a obra emerge em sua duração e que necessariamente não é para ser esquecido, mas sim, crescer nela mesma em sua constituição de sentidos? Como revela Gil (2002, p. 51), “A dança compõe-se de sucessões de micro-acontecimentos que transformam sem cessar o sentido do movimento”. Estar nesse tempo é constituir escolhas aonde as coisas vão se “dramaturgizando” em cena, ou seja, criando relações que vão ao encontro de outros corpos que naquele espaço também dançam. O corpo que dança em cena faz com que “Nenhum movimento acabe num lugar preciso de uma cena objetiva. Esses limites do corpo do bailarino nunca proíbem os seus gestos de se prolongarem para além da pele” (GIL, 2002, p. 50). O público, nesse caso específico, é também onde a dramaturgia se instaura e se faz constituições de sentidos. Cada pessoa que assiste a uma apresentação irá constituir o seu sentido e não é obrigação do criador, ou do diretor, fazer com que elas entendam a obra numa linha de sentido único de “início, meio e fim”. Este tempo cronológico da obra existe, isso não podemos negar, mas fazer com que o público possa assistir a uma apresentação de dança contemporânea cuja intenção seja apenas experienciar a sua duração é, aqui, poder colocá-lo em outra frequência, a frequência da dança que ali se instaura: “Este diálogo variável, flutuante e profundamente circunstancial, ligado a uma experiência dificilmente generalizável” que “passa por um tecido conjuntivo de relações sensoriais entre a dança e a sua testemunha” (LOUPPE, 2012, p. 32). Quando a dramaturgia consegue agenciar as relações que compõem a cena, não as deixando confusas, ela provavelmente conseguirá intervir no público, de modo a fazê-lo não precisamente “entender” o que está acontecendo na cena, mas sim de pulsar com a obra sentindo-a vibrando no próprio corpo. No momento em que a dramaturgia, em sua relação com o NDO, consegue esta delicadeza ela, tirando partido do que afirma Louppe (2012), instaura a dança como poética do movimento, não pela originalidade nem pela configuração espaço-temporal,
192
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Para este pensamento contemporâneo em dramaturgia da dança, cuja poética está a todo o momento durando em seu próprio fazer dança, as imbricações dessas durações que se veem em cena e que se percebem em outros corpos, nota-se também a importância de estar atento ao que chamamos de “depois que termina a obra”. Em alguns casos, devido a uma refinada pesquisa dos elementos constituintes da obra, das articulações entre seus integrantes e de uma íntima pesquisa dramatúrgica, nota-se a reverberação no corpo mesmo após o seu término.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
mas pela intensidade da experiência que o conduz. Sendo assim, essa poética dramatúrgica está para além de uma relação de sentindo do Todo das reações que duram na própria obra, mas está em estado de atenção para o que acontece ao seu redor, nas suas relações que duram em outros corpos.
É trazendo esta proposta que colocamos a dramaturgia da dança no tempo-gerúndio não apenas como um território instaurado no espaço cênico, mas, atentando que mesmo após o “término cronológico” da obra, existe algo que se reverbera em suas mais variadas manifestações. Sendo assim, podemos dizer que dentro desta possibilidade dramatúrgica de criação de sentidos e sensíveis, é de uma percepção colocar suas reverberações para além de seu tempo de execução onde O olhar e a escuta da obra arrastam-se numa temporalidade que, mesmo posterior a sua finalização, a revisita numa longa meditação desde as suas premissas: o propósito secreto, o nascimento do material, a escolha das ferramentas, os processos de elaboração (LOUPPE, 2012, p. 31).
artigos
Apontar esta poética do tempo-gerúndio como um modo de se pensar dramaturgia da dança coloca em movimento essas relações que observamos em meio a processos de criação em dança, de criação dramatúrgica em dança. Trabalhar com uma dramaturgia que dura em si é optar por fazer do corpo que dança em cena, o corpo estando em cena. A duração é um crescer para dentro, é a costura que avança tendo que voltar para seguir, é a dramaturgia que se desdobra nela mesma para dar suporte aos acontecimentos do corpo que dança. Esta dança está a todo instante, digamos, se dramaturgizando. É colocando o corpo como “[...]
C3
193
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
um infinito aberto pelo próprio movimento que o corpo existe e se situa” (LOUPPE, 2012, p. 77). Dramaturgizar é estar a todo o momento se colocando em situação de observador/observado, articular o Todo que é aberto, infinito, é assumir que nesta duração não há uma colocação de um tempo processual cronológico, regrado. Aqui estamos justamente procurando articular o Todo dos possíveis, o Todo do sentido, do sensível onde quem está dançando na duração provocase criações, volições, não de um eu a dançar, mas um eu que está dançando.
Referências bibliográficas BARDAWIL, Andrea (Org.). Tecido afetivo: por uma dramaturgia do encontro. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2010. DELEUZE, G. Teses sobre o movimento – Primeiro comentário de Bergson. In: DELEUZE, G. Cinema, a imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985. GIL, José. Movimento Total. São Paulo: Iluminuras, 2002. LAPOUJADE, David. Potências do Tempo. São Paulo: N-1 Produções, 2013. LOUPPE, Laurence. Poética da Dança Contemporânea. Lisboa: Orfeu Negro, 2012.
C3
artigos
NORA, Sigrid (org.). Temas para a dança brasileira. São Paulo: SESC São Paulo, 2010. NUNES, Sandra Meyer. “Elementos para a composição de uma dramaturgia do corpo e da dança.” In: XAVIER, Jussara; MEYER, Sandra; TORRES, Vera (org). Tubo de ensaio: experiências em dança e arte contemporânea. Florianópolis: ed. do Autor, 2006. PAIS, Ana Cristina Nunes. O discurso da Cumplicidade: Dramaturgias contemporâneas. Lisboa: Colibri, 2004. PRIMO, Rosa. Desmesuras da composição em dança. Revista Conceição Conception, v. 2, n° 2, p. 43-51. São Paulo, 2012. PRIMO, Rosa. PASSGENS sem TERMO. Periódico Moringa – Antes do espetáculo, João Pessoa, V. 5, n. 1, p. 65-77, jan./jun. 2014. PRIMO, Rosa. Um corpo por inventar. Revista Dança, Salvador, V. 2, n. 2, p. 9-17, juhl./dez. 2013.
194
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
SALLES, Cecilia A. Redes da criação: construção da obra de arte. Vinhedo: Ed. Horizonte. 2006. SCHÖPKE, Regina. Matéria em Movimento - A ilusão do tempo e do eterno retorno. São Paulo: Martins Martins Fontes, 2009.
Artigo recebido em: 25/06/2017 Aprovado em: 20/01/2018
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
REY PUENTE, Fernando. O tempo. São Paulo: Editora WFV Martins Fontes, 2010. (Filosofias: o prazer do pensar/dirigida por Marilena Chaui e Juvenal Savian Filho).
artigos C3
195
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
196
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
artigos C3
197
Foto: Wagner Ferraz
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
DANÇA DO VENTRE: O MOVIMENTO DO CAMELO E O CORE
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
Artigo 10
198
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Me. Joelene de Oliveira de Lima, UFRGS, Porto Alegre/RS1 Me. Carla Vendramin, UFRGS, Porto Alegre/RS2
Resumo: Este trabalho é resultado das pesquisas realizadas na disciplina de Estudos do Corpo I do primeiro semestre do curso de Licenciatura em Dança da UFRGS. Esta disciplina tem como foco principal a prática como pesquisa, o desafio recebido foi escrever sobre uma prática corporal individual, e as possíveis inter-relações com os estudos do corpo. Neste trabalho especificamente, procurarei abordar a anatomia do core e a importância da sua consciência para quem pratica a Dança do Ventre. Irei analisar os movimentos executados e os benefícios para quem dança, e a relação respectiva entre o core e a Dança do Ventre.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
DANÇA DO VENTRE: O MOVIMENTO DO CAMELO E O CORE
Palavras-chaves: referências anatômicas. consciência corporal. Dança. dança do ventre.
BELLY DANCE: THE MOVEMENT OF THE CAMEL AND THE CORE
1 ça/UFRGS
artigos
Abstract: This paper is a result of the researches conducted during Body Studies 1, course from the first semester of the Teaching Degree in Dance at UFRGS. On this course, the focus is on the practice as a research, and the challenge was to write about an individual corporal practice and the possible interrelations with the body studies. This paper, specifically, seeks to approach the core anatomy and the importance of this for those who practice Belly Dance. Thus, the performed movements, the benefits for dancers and the respective relation between the core and Belly Dance will be analysed here. Mestre em Educação/PUCRS, Graduanda de Licenciatura em Dan-
2 Mestre em Coreografia/Middlesex University, Graduada em Fisioterapia/FEVALE e Professora do Curso de Licenciatura em Dança/ESEFID/UFRGS
C3
199
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Keywords: anatomical references. body awareness. Dance. belly dance.
Conseqüências do aprendizado em Estudo do Corpo I Os estudos realizados nesta disciplina são baseados na premissas da prática somática. Segundo Domenici somática é um campo emergente de conhecimento de natureza interdisciplinar que surgiu no século XX, protagonizado por profissionais das áreas da saúde, da arte e da educação. Como se dá o movimento no corpo? Quais as relações entre corpo e mente? O que é a percepção e como ela opera? Quais as relações entre a percepção e o movimento no corpo? Qual a importância das emoções nesse circuito? Essas eram algumas das perguntas para as quais esses pioneiros formularam respostas inovadoras. (Dominici,2010)
Buscando entender os ensinamentos da autora, de que a experiência corporal (sensório-motora) é a base para a construção de qualquer tipo de conhecimento e de que o corpo está diretamente implicado no conhecimento do mundo, passamos a analisar os nossos corpos e de nossos colegas anatomicamente ao executarmos diferentes movimentos. Uma das referências usadas foi Feldenkrais, um método de educação somática que favorece o processo de aprendizagem dos movimentos. Fizemos o exercício do relógio, a proposta era de imaginarmos o centro da região pélvica e considerar o sacro como um relógio imaginário, com ponteiros que criam movimentos no sentido horário ou anti-horário. Posteriormente fomos desafiados a analisar a maneira como experienciamos a dança em nosso cotidiano, para perceber como estas experiências interferem determinantemente no que conhecemos. A experiência é algo individual e pode ser compartilhada apenas parcialmente, ou seja, é impossível uniformizar o conhecimento de cada corpo diante do mesmo objeto ou evento. Entendendo desta forma que estamos em constantes mudanças e adaptações e que nosso corpo é um ambiente ativo, que constrói novos conhecimentos e comportamentos na interação com o mundo, em tempo real.
200
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Através das práticas realizadas na disciplina passei a prestar mais atenção às minhas práticas de dança e, passei a relacionar os conhecimentos adquiridos. Comecei a dar atenção a concentração, a consciência corporal, a respiração a partir das observações feitas em aula. Como, por exemplo, da expansão da caixa respiratória e dos movimentos do diafragma e especialmente aos grupos musculares que são ativados durante a dança e percebi que praticamente todos os grupos musculares são estimulados e trabalhados na modalidade de dança que pratico. Também passei a dar atenção à percepção das articulações e seus movimentos ao realizar os princípios básicos do ballet e da dança do ventre. Identifiquei que as minhas limitações não são articulares e sim de alongamento muscular e passei a trabalhar meu corpo para adquirir um estado de melhor flexibilidade. O que me deu esperança de executar os movimentos da dança com mais precisão e graça buscando aprimorar minha capacidade de alongar e respirar adequadamente.
A função da imagem na aprendizagem do movimento No ensino da dança o uso de subsídios imagéticos, como aqueles disponíveis com a ideokinesis, possibilita a realização de movimentos à partir das suas relações sensoriais com o mundo que o cerca. Como afirmou Gambini,
p. 172)
Relações com objetos, animais, areia, vento e cenários da natureza funcionam da mesma forma que o relógio de Feldenkrais citado no começo do artigo. Estas imagens para os movimentos da Dança do Ventre colaboram para criar a diferenciação dos movimentos pélvicos. A bailarina faz uma relação imagética quando dá referência aos movimentos de seu corpo através da forma de caminhar de um camelo ou de se deslocar de uma serpente.
artigos
“porque a arte é uma antiga e preciosa via de obtenção de novos conhecimentos; realidades não nomeadas, terrenos não mapeados, valores ainda sem contorno e definição, sensações não catalogadas, estados de espírito incomuns, maneiras novas de estar no mundo e de ser humano. A arte leva a essas dimensões, as descobre, as inventa. (...) a arte cria realidades” (2010,
C3
201
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
Quais são os músculos do core? Os movimentos na Dança do Ventre são altamente dependentes do core. Ele serve para estabilizar o tórax e a bacia e, quando pouco desenvolvido, deixa-nos mais propensos a lesões da coluna. Por esta razão a importância de aprender a dançar trazendo consciência postural para essa região.
Os músculos do core encontram-se na zona abdominal, na
metade inferior das costas e na região inferior da bacia, são eles: os músculos do assoalho pélvico, transverso do abdômen, oblíquos do abdômen, reto abdominal e os eretores da espinha e multifídios. O diafragma delimita internamente a parte superior dessa região. Os músculos secundários, ou periféricos, fazem parte do quadril, como o quadrado lombar e o glúteo mínimo e médio.
Figura 1: Músculos do Core Imgem disponível em: http://vidafit.com.br/blog/core-por-que-como-fortalecer/.
C3
artigos
Acesso: 01/06/2016
Os músculos do core estabilizam a coluna vertebral, costelas e pélvis de forma a resistir a uma força específica, seja estática ou dinâmica. “Do ponto de vista funcional, o trabalho para esta parte do corpo deve ser feito com exercícios multiarticulares de forma a estimular os grupos musculares envolvidos de uma forma conjugada, fugindo, assim, aos exercícios mais analíticos e que tratam cada músculo de forma isolada”. (Hass, 2011)
O core pode ser associado como a origem funcional de todo o corpo. É muito importante a consciência desta musculatura
202
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
A Dança do Ventre como expressão de sentimentos e o movimento corporal da região do core. Kaha afirma que o ventre ou cintura são o centro de equilíbrio do corpo. Onde se situa os órgãos de eliminação de toxinas, o que representa fluência para o que não nos serve mais, a capacidade de deixar ir fatos passados. Cita que os movimentos na dança do ventre de contrações, batidas, tremidos e ondulações trazem para a coluna, quadris e abdome concentração e força. Segundo Bencardini:
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
para a saúde física do indivíduo já que é utilizada na execução de praticamente todos os movimentos corporais. Além disso, determina, em grande parte, a postura de uma pessoa.
“A dança do ventre (Raks el Sharq, em árabe) é uma forma de arte milenar, cuja origem é difícil de precisar devido à escassez de registros a respeito. Sabe-se, porém, que esta dança se desenvolveu como parte da cultura árabe, sendo tardiamente incorporada como uma prática corporal pelas ocidentais.” (Bencardini,2002)
Ao dançar as bailarinas expressam a sua emoção e contentamento em fazer parte do deserto e de toda a natureza que o cerca, no caso das ocidentais, é como se vivessem em um Oásis imagético. Também reverenciam o “sagrado feminino”, orgulham-se do grupo feminino que fazem parte e de seu ventre capaz de gerar sua descendência.
Ondulações abdominais
artigos
As ondulações abdominais são chamadas de movimentos sinuosos na Dança do Ventre. As ondulações abdominais, geralmente conhecidas como “camelo” e “serpente”, favorecem a sensação de conforto, e trabalham a capacidade de imaginar um camelo caminhando com movimentos sinuosos ao por do sol no deserto. Os movimentos do camelo exigem da bailarina uma respiração diafragmática. O controle dos músculos abdominais vai sendo desenvolvido na medida em que se percebe o percurso que a forma realiza no abdômen e o controle da respiração acontece.
C3
203
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
“O aprendizado das ondulações abdominais da Dança do Ventre requer tempo, paciência e persistência. A tendência é de trancar a respiração, o que irá dificultar a execução do movimento: Para evitar este desconforto procure imaginar-se na postura sentada, tranquilamente, sobre um camelo e deixe-se levar pelo movimento do animal.” (Kaha, 2011)
A percepção da respiração é de fundamental importância, ela deve ser diafragmática. No início, será um exercício mecânico e, com o tempo, se tornará uma movimentação tão natural, que sua respiração fluirá sem empecilhos durante a realização dos camelos e serpentes. Segundo Kaha: “As ondulações de corpo inteiro trabalham também a coluna vertebral. No sentido metafísico a coluna vertebral representa o suporte estrutural do corpo, sendo assim, associada a um suporte mais flexível para a vida. Quando se trabalha as ondulações da coluna vertebral, indiretamente, está-se trabalhando a habilidade de ser mais flexível na vida”. (Kaha, 2011)
C3
artigos
A ondulação abdominal no camelo ocorre unindo a contração do alto abdômen, seu relaxamento simultâneo e a contração do baixo abdômen, sucessivamente. Cria-se uma ondulação na região abdominal, sem expandir o movimento nem para a região torácica (busto) e nem para a região pélvica. Algumas pessoas relatam desconforto após a realização do movimento. Para evitar esta sensação ressalto a importância de realizar os deslocamentos da forma mais precisa possível. A execução correta do exercício pode até mesmo contribuir para diminuir as crises de dor na coluna, massageando e permitindo diminuir o fluxo de tensões acumuladas na parte inferior (lombar) desta estrutura. As ondulações abdominais podem ser feitas de dentro para fora ou de fora para dentro. Podemos chamar de “camelo” de dentro para fora, também conhecido como “ondulação contrária”, e de “serpente” quando o movimento vem de fora para dentro.
O princípio da movimentação do camelo O movimento do camelo é realizado pela bailarina ou bailarino
204
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
com o ventre, a coluna, braços, tronco e quadril. O corpo forma uma onda, o movimento é pélvico ou ventral de dentro para fora, ou do ventre de baixo para cima. A pelve se encaixa e desencaixa como se fosse cavalgar um animal como o camelo.
Figura 2: Samia Gamal, bailarina e atriz egípcia Imagem disponível em: http://paxma china.nyc/post/129007852920/ ramblingsofanasshole-the-gorgeous-samia-gamal. Acesso: 01/06/2016
O movimento do camelo pode-se dizer que é uma junção, de forma contínua, de cinco movimentos: elevação do busto, contração do alto abdômen, contração do baixo abdômen, contração do assoalho pélvico com relaxamento do mesmo e da pélvis. Ao seqüenciar estes cinco movimentos, cria-se uma ondulação corporal completa.
artigos
A união dos dois movimentos é realizada com flexão de coxo femural, joelhos, tornozelos e com o relaxamento da pélvis, seguidos de contração pélvica, contração do baixo abdômen, contração do alto abdômen, elevação do busto. Este movimento também pode ser quebrado, retirando sua característica sinuosa e executando as cinco etapas separadamente, este é chamado de camelo quebrado.
Aprendendo o Camelo No processo de criação deste trabalho realizei além da pesquisa teórica uma análise prática dos movimentos que meu corpo realiza ao executar o movimento do camelo. Analisei a seqüência prática criada
C3
205
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
por várias bailarinas e cito aqui o interessante trabalho de Kaha(2011). Ela criou uma seqüência prática no chão de preparação para o movimento, para que fosse possível também orientar alguém de forma teórica. Irei discorrer abaixo sobre a forma de fazer essa preparação, como se estivesse orientando alguém para esse movimento. Primeiramente se posicione no chão, de cúbito dorsal, sobre um colchonete ou superfície forrada, com os joelhos flexionados, e os pés separados, para haver um equilíbrio das pernas. As mãos devem estar levemente pousadas sobre o abdome para que possam sentir toda a atividade da região, e o corpo totalmente relaxado. Observe inicialmente sua respiração. Deixe o ar sair e entrar livremente pelas narinas. Só pelas narinas. A boca, os lábios e a língua devem estar relaxados. Acompanhe os movimentos naturais de seu ventre. Imagine que você deseja limpar os seus pulmões. Realize a respiração trazendo atenção para o diafragma. Como preparação para o movimento do camelo, Kaha (2011, p. 113), propõe o seguinte exercício:
C3
artigos
Preparação no chão para o movimento do camelo: 1. Deite confortavelmente de cúbito dorsal; 2. Respire profundamente de forma relaxada; 3. Inspire imaginando que ele entra pela sua pelve e preencha seu corpo expandindo o abdômen; 4. Tente segurar a respiração e conte até 5; 5. Solte o ar lentamente relaxando toda a musculatura 6. Repita o processo. Esta respiração é chamada de diafragmática. O diafragma funciona como uma membrana fazendo com que o abdômen se expanda e se comprima conforme a respiração ocorre. Na inspiração ele desce, expandindo o abdômen e arrastando consigo a base do pulmão, o que aumenta seu volume interno e a sucção do ar. Na expiração, o diafragma vai para cima, comprimindo os pulmões e expulsando o ar. Tente mover apenas o abdômen, o restante do corpo permanece imóvel, o corpo vai ondular naturalmente em conseqüência da respiração O importante é aumentar a sua consciência corporal, observando o que ocorre com seu corpo na medida em a respiração varia. Ao
206
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Fazendo o Camelo e a Serpente em pé Depois que a bailarina experimentou a respiração diafragmática na posição deitada, pode tentar, agora em pé, procurando desenhar uma onda com seu abdome. Para auxiliar nesta compreensão, faça uso de um espelho e o coloque-o ao lado para se observar executando o movimento ondulatório. O sentido da onda, que é desenhada fica ao critério da bailarina: se de baixo para cima ou de cima para baixo. Independente da direção aproveita-se a ação da gravidade para ondular ainda mais. A posição deitada é ótima para o aprendizado das ondulações abdominais.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
realizar esta respiração você vai fortalecer a musculatura da coluna e exercício contribui para definir a musculatura abdominal e manter a saúde de seu corpo.
Considerações finais Os estudos realizados nesta disciplina proporcionaram um conhecimento específico da anatomia do corpo aliado ao estudo prático do movimento para a dança, seja ela através da investigação
Referências:
artigos
do próprio corpo ou dos corpos dos colegas. Estes conhecimentos refletem diretamente no cotidiano dos estudantes que passam a ter modificada a sua consciência corporal e conseqüentemente, seu estado de corpo para a dança. No caso deste trabalho o aprendizado está relacionado à capacidade de estabilizar o Core na Dança do Ventre. O conhecimento de que o centro da força no nosso corpo, em estado de alerta, age para dar segurança ao movimento, faz toda a diferença para uma execução harmoniosa.
BENCARDINI, Patrícia. Dança do Ventre Ciência e Arte. Ed. Texto novo, 2002 CALAIS-GERMAIN, Blandine. Anatomia para o movimento: introdução à análise das técnicas corporais, - Barueri, SP. Ed. Manole, 2010.
C3
207
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
DOMENICI, Eloisa. O encontro entre dança e educação somática como uma interface de questionamento epistemológico sobre as teorias do corpo. Revista Pro-Posições, v 21, n 2 (62), p 69-85. Campinas: 2010. FELDENKRAIS, Moshe - O poder da autotransformação: a dinâmica do corpo e da mente - Editora Summus , 1977. FELDENKRAIS, Moshe. Consciência Pelo Movimento. Ed. Summus, 1977 GAMBINI, Roberto Com a cabeça nas nuvens. In: Proposições, v.21, n.2, ago/2010 HASS, Jacqui Greene. Anatomia da Dança. – Barueri, SP. Ed. Manole, 2011 KAHA, Luciaurea. (Simone Luciaurea Coelho) Dança do Ventre e Geometria Pedagógica. Geometria Corporal Expressiva para Professoras e Alunas. Ed. Clube de Autores, 2011.
Artigo recebido em 25/08/2016
C3
artigos
Aprovado em 26/02/2018
208
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
artigos C3
209
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
210
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
artigos C3
211
Foto: Wagner Ferraz
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
ARTE, FOTOGRAFIA E MEMÓRIA
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
Artigo 11
212
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
B.ela. Cernaide Hubler, Universidade Feevale, Novo Hamburgo/RS1
Resumo: Esta pesquisa no campo das artes visuais tem como finalidade, o estudo da memória a partir do uso de fotografias. Esta pesquisa investiga a contribuição dos retratos de família como ferramenta de significação do tempo e da preservação das recordações. Nesta pesquisa tenciono afirmar a importância do uso de imagens, assim como de elementos sensoriais, na ativação das lembranças. Ressaltando também a necessidade de uma proximidade para um reconhecimento, assim como para o avivamento das recordações. Relacionando as memórias vividas e as memórias construídas. Questionando o objeto fotografia como obra de arte, relacionando as questões emocionais e as lembranças inseridas no contexto.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
ARTE, FOTOGRAFIA E MEMÓRIA
Palavras-chave: Fotografia. Memória. Tempo. Vestígio. Identidade.
FOTOGRAFICA ART AND MEMORY
Keywords: Photography. Memory. Time. Trace. Identity.
artigos
Abstract: This research in the visual arts field aims, the study of memory from the use of photographs. This research investigates the contribution of family portraits as time meaning tool and the preservation of memories. In this research I intend to affirm the importance of using images as well as sensory elements, the activation of memories. Also emphasizing the need for proximity to recognition, as well as the revival of memories. Relating the vivid memories and built memories. Questioning the picture object as a work of art, related emotional issues and memories within the context.
1 Cernaide Hubler, (Ivoti-RS, 1984) Artista Plástica. Realizou exposições coletivas dentre elas: Marcando a Arte, Giro na Arte e encaixando a Arte no Atelier de Arte Plano B, 20x20 e XVIII Salão de Artes Visuais na Universidade Feevale, Participou de Feira de Iniciação Cientifica. Na produção plástica a artista trabalha com fotografia experimental e instalação, a partir da apropriação de fotografias. C3
213
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
1 FOTOGRAFIA, PRIMEIROS PROCESSOS A fotografia, assim como outros meios de comunicação e expressão, sofrem aprimoramentos constantemente. A fotografia tem sua origem ligada a problemas de reprodução técnica, especialmente ao processo de fixação e impressão de imagem. Um processo físico químico capta a luz registrando a imagem, ou podemos ainda definir como um desenho feito com luz. Esse processo surgiu para que se pudesse capturar imagens sem a necessidade de utilizar desenho ou pintura, para registrar. Nas primeiras tentativas de registro as imagens tinham pouca durabilidade, desaparecendo pouco tempo depois. Esse processo foi aprimorado no decorrer dos anos, até alcançar uma duração muito longa (décadas) para as imagens registradas, isso ocorreu no ano de 1826. As primeiras fotografias eram de baixa qualidade, com muitos ruídos que dificultavam a visualização das mesmas. O processo fotográfico evoluiu muito ao longo dos anos até a fotografia colorida e de alta qualidade, que temos a disposição atualmente.
C3
artigos
Com o surgimento da fotografia, surge também uma permanência da ausência. Um registro bem realista e com pouca perda de informação, de pessoas, lugares ou acontecimentos. Possibilitando o guardar de uma memória por um tempo mais longo. André Rouillé nos fala em seu livro sobre o registro fotográfico: “Se nas fotografias o homem não ocupa o mesmo lugar que o pintor em suas telas, se a fotografia harmoniza (bem) rastro e registro, nem por isso ela captura partes do real, como pretende a doxologia.” (ROUILLÉ, 2009, p.76). No ato de fotografar, as imagens são deslocadas no tempo, possibilitando a fotografia um guardar destas imagens assim como de um determinado tempo, que ampliam a memória dos acontecimentos. Possibilita o cultivo das lembranças que facilmente poderão ser esquecidas. Na fotografia encontra-se a ausência, na morte do instante registrado, e em contra partida a vida, preservada na lembrança do momento capturado, ajudando a combater o nada e o esquecimento, sendo uma maneira de prolongar um vínculo entre a imagem da fotografia e a memória de quem a olha.
214
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
A fotografia perpetua o momento, paralisa o movimento, compartilha um sentimento, registra um acontecimento. CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
A fotografia é utilizada em diversas aplicações, distintas entre sí. Armazenamento de dados e identificação são exemplos, com finalidades variadas como análises ou registros científicos, históricos entre outros. De modo geral podemos afirmar que, fotografamos para lembrar. Mesmo quando a fotografia não tem carácter pessoal/ emocional ela ainda traz consigo a função do lembrar e de criar uma marca no tempo. A fotografia permite as pessoas lembrar-se de acontecimentos passados, ficando conscientes de quem são, a qual grupo pertencem e de que tem uma história, isso se torna real através das memórias preservadas ou recriadas, pelas lembranças. Rosangela Rennó nos fala sobre o lembrar: “Esquecer não coincide exclusivamente com não lembrar, mas é também lembrar sem atentar para o processo de individualização. Lembrar-se e negar subjetivamente.” (RENNÓ, 1998, p.140). Há em toda fotografia uma espécie de interrupção do tempo e, portanto, da vida. O momento ao ser registrado, não é vivido, congelamos a ação em uma pose para o registro da fotografia, com a finalidade de eternizar o momento, esquecendo-nos de vivê-lo. Toda fotografia cria um registro que interrompe seu tempo e de certa forma “eterniza” o fato registrado, criando um sentimento de ausência. Ocorre um encontro entre a ausência e a presença, a distância e a proximidade, a lembrança ou reconhecimento em relação a fotografia, gerando uma relação nostálgica entre a fotografia, o passado e o presente.
Procuramos constantemente fugir da ausência. O uso de imagens fotográficas auxiliam em uma retenção maior de informação, apesar de também sofrerem perdas, por sua composição pictórica, as imagens demoram mais para perder totalmente a informação visual, ocorre uma perda maior e mais visível quanto a cor, intensidade
artigos
A imagem fotográfica não é um corte nem uma captura nem o registro direto, automático e analógico de um real preexistente. Ao contrário, ela é a produção de um novo real (fotográfico), no decorrer de um processo conjunto de registro e de transformação, de alguma coisa do real dado; mas de modo algum assimilável ao real. A fotografia nunca registra sem transformar, sem construir, sem criar. (ROUILLÉ, 2009, p.77).
C3
215
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
e vivacidade na fotografia. Porém estas perdas não impedem a reconstituição de uma memória, a perda que temos é quanto a leitura que fazemos desta imagem, e é neste ponto que podemos sentir a melancolia e a nostalgia da morte mais irrequieta. A condição da ausência se apresenta na falta do indivíduo, mas podemos ainda pensar na condição de ausência pela falta de identidade ou de uma identificação. Nas fotografias antigas conseguimos, de forma geral, discernir uma situação, mas nem sempre podemos reconhecer uma pessoa. Isso pode ocorrer por diversos fatores como a deterioração. Considerando essas condições, podemos levar em conta a ausência pela omissão de uma identidade e não somente pela falta de um indivíduo, Samain nos fala sobre as faces ocultas: As demais faces são as que não podemos ver permanecem ocultas, invisíveis, não se explicitam, mas que podemos intuir é o outro lado do espelho e do documento, não mais a aparência imóvel ou a existência constatada, mas também, e, sobretudo, a vida das situações e dos homens retratados, desaparecidos a história do tema e da gênese da imagem no espaço e no tempo, a realidade interior da imagem: a primeira realidade. (SAMAIN, 1998, p. 40).
C3
artigos
1.1 MEMÓRIAS As memórias interligam passado e presente, nos possibilitando ter um real entendimento da nossa identidade individual. Esta ligação entre passado e presente se dá através das lembranças, que podem ser reais, contando os fatos como realmente ocorreram, ou ainda tratar de uma memória construída, criada através de informações adquiridas e passadas de geração a geração, para prolongar um acontecimento ou lembrança. Para podermos lembrar precisamos reter fragmentos. A fotografia é um fragmento e nos possibilita esta retenção de lembranças através dos tempos. Desta forma podemos relacionar a ideia de nostalgia e morte ao ato de fotografar. O instante fotografado acaba no instante do registro, permitindo sentir a melancolia do momento ao olhar uma fotografia e lembrar-se daquele instante, assim como das pessoas registradas.
216
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Fotografar para recordar, porém, podemos recordar enquanto existirmos, a partir da morte das pessoas fotografadas e das que fotografam não há mais como recordar. A partir deste ponto geramos nossas memórias construídas, onde imaginamos os acontecimentos com base em informações recebidas a respeito de uma fotografia, pessoa ou fato transcorrido.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Criamos assim uma seleção do tempo, o tempo da memória e o tempo do esquecimento: “A fotografia moldada é moldada por uma psicologia da memória. Perder a memória não seria, então, avançar na idade, mas perder um rosto. Fora de foco, na sociedade, é estar posto a margem.” (RENNÓ, 1998, p.139). Assim como afirma a autora, perder a memória é perder um rosto, pois este rosto é quem nos permite a identificação da identidade registrada. Sem este rosto a memória não permanece completa, ela torna-se apenas um fato que a partir da morte de quem o retém, ele se estingue. Podemos prolongar sua existência através da memória construída, porém, não seria uma memória concreta e verdadeira, seria apenas uma memória.
A memória é essencial na condição humana, sempre houve uma preocupação com a produção de informações, de transcendência do tempo, servindo de marca da própria existência humana. Desde os primórdios da humanidade, ainda sem uma ferramenta fotográfica o homem teve a preocupação e habilidade de criar marcas(imagens) no tempo, eternizando sua existência, e preservando assim parte de suas memórias. O tempo se mostra impetuoso e sagaz, capaz de apagar toda e qualquer lembrança vivida e constituída, sem o uso de algum recursos que nos ajude a preservar estas lembranças, a conservação das vivências se torna mais penosa.
artigos
Não sabemos da real importância do acontecimento registrado, mas damos importância a eles por terem sido fotografados, pelas emoções que se escondem nestas memórias. As imagens são silenciosas, mas capazes de transmitir emoção e sentimento, claro que de forma muito particular e individual. Cada pessoa reage e vê uma fotografia de uma forma bastante singular. Esta visão também mostra-se diferente toda vez que olhamos para uma imagem, a lembrança será sempre revivida, criando assim uma emoção distinta toda vez que olharmos uma fotografia. As imagens podem ser muito misteriosas, sem pronunciar uma única palavra, podem no entanto, nos provocar
C3
217
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
e conduzir a uma infinidade de discursos internos e em torno delas. Assim Samain afirma que: A imagem fotográfica tem múltiplas faces e realidades. A primeira é a mais evidente, visível. É exatamente o que esta ali, imóvel no documento (ou na imagem petrificada do espelho), na aparência do referente, isto é, sua realidade exterior, o testemunho, o conteúdo da imagem fotográfica (passível de identificação), a segunda realidade, enfim. (SAMAIN, 1998, p. 40).
Em registros de família temos essa emoção aflorada, ao olharmos para uma fotografia. Mesmo não tendo vivido ou estado presente na situação registrada, a emoção de ver aquele acontecimento e senti-lo familiar, é possibilitado pela fotografia e pela nostalgia da situação. Por meio das imagens fotográficas descobrimos uma capacidade de alcançar camadas inteiras de emoção que encontram-se ocultas em nossas memórias. Podemos ainda atingir a novos significados que naqueles momentos não estavam muito perceptíveis. Assim Felipe Chaimovich nos fala sobre a fotografia de família e memórias: Um signo gráfico é sobreposto a imagem para consignar, sobre o retrato de família, que a fotografia é o laço afetivo que atravessara o tempo. O deslocamento é do lugar no cérebro do arquivo da memória visual para a usina do esquecimento. O congelamento do tempo, reiterado nas operações físicas sobre o corpo (desbotamento, cortes, recortes, projeções), aponta para uma lógica também fora da imagem. Onde a fotografia seria agenciamento da morte (como interpreta Roland Barthes 21), fragmentos fotográficos e migalhas de desejo reintegram uma presença e, finalmente, apontam para a construção do sujeito. O fetiche fotográfico incide sobre uma ideia de falta justamente ali onde o Sujeito se constitui. Rosangela Rennó produz, cruamente, identidades melancólicas, imagens que reivindicam a nostalgia de um dia terem sido alguém. (CHAIMOVICH in RENNÓ, 1998, p.127).
Toda identidade registrada já foi alguém em algum momento. Podendo estar preservada e retida em uma fotografia com memórias ou apenas em uma fotografia qualquer, sem lembranças nem histórias. A fotografia de família retém essas memórias por um período maior, pelos laços afetivos existentes entre quem olha a fotografia e a pessoa registrada. Um rosto, em retratos de família, sempre se torna semelhante a outro que conhecemos, ampliando assim está memória afetiva. Assim nos fala Samain:
218
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Utilizamos da memória para ter um reconhecimento facial, a identidade da pessoa registrada. Penso no real interesse que temos ao olhar para uma fotografia. Queremos reconhecer a pessoa registrada. Através de sua identidade, buscamos o reconhecimento e uma proximidade com esta pessoa. Em O Fotográfico o autor Samain fala sobre a relação de identificação e as fotos de família.” Como ao olhar retratos, a pessoa que olha está sempre à procura de uma relação entre ela e a imagem, cada uma vera parcelas e níveis diferentes da fotografia. A câmara funciona como uma extensão do olhar.” (SAMAIN, 1998, p.34).
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Ao examinar uma fotografia, cada observador acaba sempre relacionando-se consigo, procurando discernir em si mesmo o que talvez não percebesse sem a visão daquela imagem. A ânsia de conhecer através de retratos de família, principalmente, obedece a uma busca de identidade ligada aos desafios da metamorfose. (SAMAIN, 1998, p. 37).
Ainda sobre os retratos de família Samain fala: A atração dos retratos de família correspondente, pois, a uma necessidade de identificação com sua imagem. A necessidade de ver como os outros nos veem e procurar as ligações com o eu interior, que se dissocia através da busca de semelhanças e contrastes nos outros e nas metamorfoses que o tempo inscreve naquele presente atual ou transcorrido. (SAMAIN, 1998, p.36).
artigos
Essa busca é natural nos fotografias de familiares pois buscamos uma identificação com algum parente, por algum aspecto de semelhança, pela necessidade de pertencer a algum lugar ou grupo, e assim poder ter uma história pessoal. Algumas lembranças podemos recriar ao ver uma fotografia antiga. Samain nos fala sobre isso em seu livro: “Através das imagens que nos restam e das histórias que nos chegam pelas tramas da rede familiar, construímos uma interpretação da figura e da atuação de nossos antepassados no tecido social e a transmitimos para as novas gerações.” (SAMAIN, 1998, p. 20). O autor descreve de forma bem simples os laços familiares que constituímos, dentro de nosso clã. Essa preservação e transmissão de informações ocorre em partes para preservação das memórias e continuidade desta linhagem. As ações registradas em retratos de família, também são de
C3
219
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
modo geral, semelhantes. O uso da fotografia no cotidiano é relativamente nova. Há décadas atrás a fotografia era um acontecimento importante, não era uma coisa comum e habitual como hoje. Cada vez que um fotógrafo era chamado para registrar uma fotografia, era um evento de suma importância que precisava ser preservado. Os fatos registrados historicamente mudaram para sempre a percepção da fotografia, pois sabemos que a muitos anos, estudiosos relacionam as imagens fotográficas com a manutenção da memória. A fotografia torna-se um fragmento do mundo, no registro de um fato histórico, assim como vestígio pessoal quando registro de imagens de família. Na verdade, a potência da máquina fotográfica induziu as pessoas a crerem que o tempo consiste em acontecimentos importantes, tornando-os dignos de serem fotografados. Criando vestígios para preservar uma lembrança, pelo uso da fotografia. Sabemos que nosso cérebro retém informações referente a situações transcorridas, as quais denominamos lembranças. Nossa memória é a responsável por reter e nos permitir “acessar” estas informações quando julgarmos necessário. Estímulos como música, aromas, lugares, pessoas, sabores ou imagens (fotografias) são muito importantes para aflorar estas lem-
C3
artigos
branças retidas. Estas memórias podem ser revividas sempre que quisermos, mas cada instante será sempre único, a lembrança reconstituída, virá de forma diferente toda vez que ela surgir, por se tratar de uma nova lembrança. Podemos reviver memórias de forma sensorial, criando assim uma associação de significados, considerando este fator como importante, e assimilando com uma memória ou uma lembrança vivenciada, ativando assim nosso cérebro para reviver/relembrar uma memória através dos sentidos.
1.2 FOTOGRAFIA COMO ARTE A fotografia para muitos não é vista como arte, porém o modo de apresentação de uma fotografia, o olhar que determina o corte, assim como o instante em que ocorre o registro, determinam se esta imagem se torna ou não arte. Expor uma fotografia como arte pode
220
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Antes de desempenhar o papel de material da arte contemporânea, a fotografia desempenhou, sucessivamente, o papel de rejeitada pela arte (com o impressionismo), de paradigma da arte (com Marcel Duchamp), de ferramenta da arte (com Francis Bacon e, de uma maneira diferente, com Andy Warhol), e de vetor da arte (com as artes conceitual e corporal, e com a Land Arte). Foi somente por volta dos anos de 1980 (como um eco as experimentações dos vanguardistas do início do século, mas em condições e sob formas totalmente diferentes) que a fotografia foi adotada pelos artistas como verdadeiro material artístico. (ROUILLÉ, 2009, p.20).
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
ser comparado ao ato de Duchamp ao expor um urinol como obra de arte. Marcel Duchamp cria o Ready Made, apropriação de um objeto industrializado e apresentado como arte. Nesta categoria de arte (arte conceitual), o que importa são as ideias, reflexões e pensamentos do artista, muito mais que o próprio objeto em sí. André Rouillé nos conta como ocorreu a instituição da fotografia como arte:
Novas utilizações para objetos cotidianos, esta é a proposta apresentada nesta pesquisa. A apropriação de fotografias de família. Minha pesquisa propõe justamente a ação de apropriação de imagens, registradas por outros fotógrafos, e coloca-los em exposição como obras de arte, por sua forma de apresentação distinta das habituais. Pois apropriação fotográfica torna-se um processo fotográfico a ser reaberto, dando continuidade a fotografia já existente. Assim como Cezar Bartholomeu nos fala sobre a obra Rever de Rochele Zandavalli “A fotografia servira a novo proposito, encontra-se sequestrada de sua utilidade.” (BARTHOLOMEU in ZANDAVALLI, 2012. p.7).
A recontextualização de uma realidade – que no ato fotográfico atual apresenta como característica das imagens a fragmentação e a descontinuidade, a instabilidade de significação e as sequencias aparentemente desconectadas – produz significados dinâmicos com os objetos. Os significados aparecem
artigos
Questiono a relação entre identidade e identificação, pelo uso de retratos de família e a perda ou permanência da memória, relacionada a estes retratos. O tempo que carrega as memórias também é a responsável por apagá-las, podendo gerar um conflito temporal através das lembranças preservadas e criadas. Santos e Dos Santos nos falam em seu livro:
C3
221
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
em procedimentos alegóricos de apropriação e montagem e, ao mesmo tempo que contestam a informação da imagem, subvertendo suas aparências, abrigam algo como um “jogo da memória”, estimulando uma sensação de dejavú. (SANTOS E DOS SANTOS, 2004, p.80).
Fotografias antigas, integram a vida e a cultura contemporânea, a partir de seus novos significados atribuídos por uma nova perspectiva dada pela sua apresentação, não convencional. Ao longo das últimas décadas, a arte tornou-se mais fotográfica e passou a ter uma aceitação maior, de obras compostas por fotografias, após uma reconfiguração das noções de arte existentes. Esta aceitação ocorreu de forma gradual. Muitos são os aspectos comuns entre fotografia e pintura, como, composição, cor, luz, formas. Mas quais seriam as diferenças e semelhanças entre fotografia e pintura? O que torna uma fotografia uma obra de arte? Alguns dos aspectos que julgo importantes e indispensáveis para esta distinção estão ligados a produção e a finalidade da fotografia.
C3
artigos
Em minha pesquisa, a utilização de fotografias convencionais de cenas cotidianas e corriqueiras, que são transformadas em obras de arte, através de um conceito, assim como, por meio, da forma de apresentação destas fotografias. Isso pode extrair as fotografias do padrão cotidiano, transformando-as em obras de arte. O redirecionamento de uma fotografia comercial, para um contexto conceitual e sem alvejar um direcionamento financeiro. Outro fator que torna-se importante, é a emoção, o sentimento envolvido na ação da criação da obra. Um dos fatores que torna um trabalho obra de arte, é a capacidade de transmitir emoções, de qualquer categoria, como raiva, angústia, alegria, saudade..., arte sem sentimento pode tornar-se vazia, e não é o suporte ou a técnica aplicada que determina ou transmite alguma emoção. Nesta situação, a intenção do artista assim como sua visão, é o que torna uma fotografia, arte. A técnica aplicada na produção do trabalho não é o mais importante. Desta forma direciono uma pesquisa onde proponho uma
222
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Quando estas fotografias circulam no meio familiar aumentam as esferas de criação, ao trabalhar determinados conceitos como, memória e relações afetivas. Estes laços de afeto mostram-se mais fortes e duradouro, possibilitando o viés das memórias construídas, vividas e sensorialmente identificadas.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
transformação, de um objeto convencional, criado originalmente com finalidade comercial, para fora de seu contexto. Inúmeros são os fatores que permitem esta transição, posso citar como exemplos fotos danificadas pela passagem do tempo, desgaste na pigmentação original das mesmas, rasgos, iluminação ruim, desfoque, dobras, ampliação, diminuição entre outros. Esses são alguns aspectos que eliminam uma fotografia do âmbito comercial. Um fotógrafo comercial, não poderia vender uma fotografia com uma rasgo, mas por outro lado um artista plástico pode usufruir dessa peculiaridade da fotografia para criar um trabalho.
REFERÊNCIAS RENNÓ, Rosangela. Rosangela Rennó. São Paulo, SP, Editora da Universidade de São Paulo (Artista da USP, 9), 1998. ROUILLÉ, André. A Fotografia: Entre Documento e Arte Contemporânea. Tradução: Egrejas, Constância. São Paulo, SP, Editora SENAC São Paulo, 2009. SAMAIN, Etienne. O Fotográfico. São Paulo, SP, Editora Senac São Paulo, 2005.
ZANDAVALLI, Rochele Boscaini. Rever. Porto Alegre, RS, Imago Escritório de Artes, Santander Cultural, Curadoria: Bartholomeu, Cezar, 2012.
artigos
SANTOS E DOS SANTOS, Alexandre e Maria Ivone. A fotografia nos processos artísticos contemporâneos. Porto Alegre, RS, Editora da UFRGS, 2004.
Artigo recebido em 11/08/2016 Aprovado em 14/01/2018
C3
223
ESPAÇO
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
224
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA C3
225
Foto: Wagner Ferraz
artigos
LIVRE
FALTA DE RESPEITO Gui Malgarizi, Macarenando Dance Concept, Porto Alegre/RS1
Vou contar uma situação ocorrida há poucas semanas, enquanto nós da Macarenando Dance Concept estávamos com todo o gás em duas produções: Abobrinhas Recheadas, obra que mistura dança e comédia, para ser apresentada no Instituto Ling, e Casa do Medo, obra de “terror imersivo” realizada na Casa Cultural Tony Petzhold. Recebi a incumbência de responder às mensagens enviadas por um historiador sobre a Casa do Medo. Em suas análises, ele considerava pouco plausíveis as histórias que estávamos contando, acusava nosso texto de capcioso, hipnotizador e mal escrito e nos ameaçava (!!!) com um possível ajuizamento de ação por falsidade ideológica caso ele não confirmasse os “dados históricos” em suas pesquisas. Finalizou com a frase: “não zombem da História, zombem das histórias”. Tais colocações não vieram sob forma de questionamento ou problematização, mas em tom de ameaça e de superioridade – uma falta de respeito. Ficam aqui trechos da minha resposta: “Caro Fulano, a respeito dos teus comentários, a Casa Cultural Tony Petzhold e o grupo responsável pela Casa do Medo, Macarenando Dance Concept, iremos esclarecer nossos pontos de vista, ainda que saibamos que não há necessidade disso. O maior equívoco, ou ponto de conflito entre as nossas ideias, está em dizeres que foram publicados ‘fatos históricos’. Estamos falando
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
1 Gui Malgarizi é diretor e dramaturgista da Macarenando Dance Concept. Geminianamente renascentista, dramaticamente sensível e racionalmente sarcástico.
226
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre
sobre lendas, mitos, rumores e histórias (essas mesmas que referiste com letra minúscula) que se contam sobre a casa, ouvidas de muitas pessoas, algumas ainda vivas, outras não. Algumas afirmam de pés juntos boa parte dos fatos descritos no texto, mas, por óbvio, um texto que fala sobre fenômenos supostamente sobrenaturais, ‘barulhos de correntes’, não se quer como documento com validade científica ou histórica. Ser hipnótico e fazer as pessoas ‘acreditarem’ em histórias (ainda que ficcionais) faz parte do trabalho de uma categoria profissional também muito massacrada, a dos artistas. Trata-se de um trabalho de um grupo artístico, em uma casa cultural, de modo que, com o mínimo de discernimento e leitura contextualizada, qualquer um é capaz de entender a narrativa como ‘artística’ e não como ‘histórica’. Talvez tenhamos que acusar de falsidade ideológica também Homero, ao contar que a Guerra de Troia teve origem na disputa entre deusas; Alexandre Dumas, ao colocar o Cardeal Richelieu e Luís XIII ao lado de personagens incontestavelmente fictícios; ou até mesmo os autores da Bíblia, que ao tratar de um fato histórico (êxodo do povo hebreu do Egito) nos contam que um homem dividiu o Mar Vermelho com o poder dado por Deus. Toda literatura chamada de ‘romance histórico’ é pautada na mistura entre ficção e História, sem limites definidos, levando o leitor a viajar e acreditar naquele mundo limiar, mas verossímil, sem que para isso tenham que indicar o que faz ou não parte da História comprovada e/ou oficial. Imagina uma criança ouvindo os contos sobre monarquias ficcionais: deixaríamos o ‘era uma vez em um reino distante’ para chegarmos em ‘nada disso que eu vou contar é verdade, e não aconteceu em um reino que não existe’. ‘Vou-me embora pra Pasárgada / Lá sou amigo do rei’ - pobre Manuel Bandeira, que não disse utilizar de licença poética ao afirmar que era amigo de algum rei persa morto há não menos que dois milênios. Poderíamos citar os filmes, novelas e minisséries ‘de época’, se quisermos outros milhares de exemplos. Respeitamos a História e não usurpamos o posto que ela ocupa, ou deveria ocupar, em uma sociedade com memória; de outro lado, a abordagem artística de lendas e contos (ou ‘histórias’) também tem lugar na formação da imaginação do que o mundo poderia ter sido ou poderá ser (ou que nunca será). Não é nosso interesse zombar da História - o que temos consciência em não termos feito - mas é ofensivo nos conclamar a zombarmos das ‘histórias’, ou seja, da Arte.
C3
227
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Poderíamos buscar outras práticas, em vez de nos separarmos e nos odiarmos, processos que a História parece demonstrar serem nocivos à noção de humanidade. Acreditamos que o viés artístico dado à visão popular acerca fatos, locais e fenômenos pode contribuir para o interesse na História, e vice-versa, sem que um se sobreponha ao outro. Por fim, a ameaça de processo judicial de falsidade ideológica é bastante intimidatória a um grupo de artistas, que tem na invenção e na criação de ideias a sua atuação profissional. É a mesma coisa que ameaçar um historiador de não publicar uma descoberta, a fim de preservar uma lenda que vem sendo contada a gerações. Mas não te preocupa, pois já nos informamos: o texto deixa claro que é baseado em tradição oral e rumores, o que afasta o tipo criminal. Também não se cogita em intenção de causar prejuízo a outrem (potencialidade lesiva), elemento indispensável aos delitos de falso. Por fim, o texto, como integrante de obra artística ficcional (evento cênico), não está submetido à chancela da ‘verdade’, estando dentro dos limites da livre manifestação e expressão artísticas. No mais, esperamos que não tenhamos roubado muito do teu tempo com outro ‘texto mal construído’ e desejamos que tua luta pelo respeito, reconhecimento e valorização da História seja bem-sucedida e voltada contra aqueles que realmente querem menosprezá-la. Atenciosamente.” Não se interesse, não consuma, não viva a arte – caso não queira –, mas respeite-a. Se não a entende como campo de produção do conhecimento humano, ao menos a respeite enquanto trabalho de milhares de pessoas. E respeitar significa olhar para a arte a partir dela própria e dar valor a esse ponto de vista, em detrimento de analisá-la apenas a partir de outros campos, como a História. Infelizmente, o caso acima não me parece exceção: todos os dias vejo gente justificando ou detonando as obras artísticas a partir de critérios exclusivamente não-artísticos. Questionam o porquê do investimento público em arte, “já que ela não serve para nada” (sob um ponto de vista econômico – e equivocado). Muitos dos bem-intencionados alegam que tal obra “não acrescentou nada de bom para o mundo”, logo “a obra é ruim”. Prestem atenção nos editais de produção artística, que cobram dos proponentes dezenas de contrapartidas pré-moldadas, muitas vezes alheias ao objeto artístico em si. Com a muito bem-vinda emergência de pautas sociais, fala-se do caráter ou
228
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
espaço livre
A arte não está limitada ao critério de verdadeiro ou falso da lógica; não se pauta pelo bem ou mal da ética; não informa o que é ou não saudável para o corpo humano; não é justa ou injusta, lícita ou ilícita, legítima ou ilegítima, possível ou impossível. Arte “é” – e não “tem que ser”. É terreno de liberdade humana que se constrói em cada obra de cada artista, e é a partir de cada obra e de cada artista que deve ser lida. É um desrespeito dizer que um médico está errado ao receitar um medicamento ao fundamento de que “Deus é quem tem o poder de decidir sobre a vida e a morte”. Assim como é desrespeitoso um gramático dizer para um mecânico que o conserto do carro foi mal feito, pois o profissional não sabe conjugar bem os verbos. Ou ainda um arquiteto dizer que a comida de um cozinheiro é ruim, pois ela não está em afinidade com as linhas da decoração. Que tal começarmos a olhar a arte do ponto de vista da arte, e não da história, da medicina, do direito, da política, da politicagem, da sociologia, da filosofia, da educação, da musculação, do comércio, da economia, da publicidade, do design, da gramática, da farmácia social. Limitar a arte às finalidades de outros campos é limitar a sua própria finalidade.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
dimensão social da obra artística, muitas vezes entendido como “a arte só tem relevância quando se prestar a uma causa, ou tirar alguém da pobreza, ou educar para o pensamento ecológico”. Todos esses objetivos são nobres, não há dúvida, mas não justificam a existência da arte e nem legitimam qualquer expressão cultural como artística.
C3
229
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
230
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
231
Foto: Wagner Ferraz
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Lã e água Aline Daka, UFRGS 1
“Lã e água” é uma HQ esquiza com múltiplas entradas e saídas, e que deve ser lida de forma aberta e em várias direções. É uma recriação baseada no capítulo de mesmo nome do livro “Alice através do espelho” de Lewis Carroll. Esse trabalho foi realizado no curso de extensão “Quadrinhos e artes sequenciais” promovido pela UFRGS e ministrado pela Profª Drª Paula Mastroberti, em 2015. Roteiro e arte criados por Aline Daka.
C3
espaço livre
Links: www.flickr.com/photos/alinedaka/ http://dakhadessin.wix.com/aline-daka-hqcomics www.notadotradutor.com http://pararraioscomics.com.br/ http://meninavudu.wixsite.com/meninavudu http://www.aura.art.br/artistas/aline-daka
1 Aline (Daka) da Rosa Deorristt, UFRGS. Atua como educadora, artista visual, ilustradora e quadrinista. É formada em bacharelado em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2012). Continuou seus estudos na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, em Portugal (2009/2010). Atualmente é graduanda em licenciatura em Artes Visuais, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestranda no Programa de Pós-graduação em Educação, na linha de pesquisa Filosofias da Diferença e Educação, orientada pela Profª Drª Paola Zordan. É ilustradora e curadora da (n.t.) Revista Literária em Tradução. Participa do grupo de pesquisa ARCOE, Arte, Corpo e EnSigno e do M.A.L.H. A., Movimento Apaixonando pela Liberação de Humores Artísticos. Tem exposições coletivas em arte no Brasil, em Portugal e na Espanha, uma individual e ilustrações em livros e revistas de arte e literatura.
232
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
233
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
234
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
235
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
236
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
237
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
238
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
239
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
240
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
241
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
MOVIMENTO ENTRE Documentos de Transição, performance-exposição de Michel Capeletti e Marina Camargo
por Alyne Rehm1
O movimento, qualquer movimento, é a fuga de uma posição, da posição anterior do corpo.
C3
espaço livre
Gonçalo M. Tavares2
Em meio a diferentes materialidades significantes – vídeos, performances, textos pessoais e teóricos –, a performance-exposição Documentos de Transição3, apresentada entre as 18h e as 21h do dia 17 de setembro de 2016, na Galeria Península, em Porto Alegre/RS, buscou performar-expor a relação que se estabeleceu nos dois últimos anos entre Michel Capeletti e Marina Camargo durante o processo de criação do espetáculo de dança contemporânea Enquanto as coisas não se completam. Mas antes de seguirmos, peço que não pensemos em exposição como costumeiramente se organizam as exposições: objetos, quaisquer que sejam suas ordens, disposto em pontos fixos no espaço
1 Alyne Rehm é artista-pesquisadora em dança, doutoranda em Artes Cênicas (PPGAC/UFRGS) e graduanda em Dança (ESEFID/UFRGS). Contato: alyne.rehm@gmail.com 2 TAVARES, Gonçalo M. Atlas do corpo e da imaginação. Alfragide: Caminho, 2013. p. 243. 3 O material impresso que foi distribuído durante a performance-exposição encontra-se disponível em https://enquantoascoisasnaosecompletam.wordpress. com/documentos-de-transicao/ Acesso em 21/11/2016
242
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Lugares enquanto espaço, sim, mas, sobretudo, enquanto movimento. Movimento que, em determinado momento, borra-se, como uma imagem refletida em um espelho embaçado: não se sabe mais onde começa e onde termina a imagem; não se sabe mais onde estão suas bordas, seus limites, suas fronteiras. E, em algum instante, chegou-se a saber?! Tudo se mistura, desfazendo a ilusão de completude. Indistingue-se o dentro e o fora, o direito e o avesso, o que é de um e o que é de outro.
espaço livre
Indistinção essa que pode ser pensada como o atravessamento proposto por Bident (2016)4. O autor apresenta a expressão “teatro atravessado” e argumenta que o “atravessado” é “a visão puramente abstrata de um espaço de representação em que intervêm corpos e linguagens” (p. 51). Desse modo, a performance-exposição Documentos de Transição pode ser entendida a partir desse atravessamento, pois diferentes materialidades significantes, com suas diferentes linguagens, se atravessam, movimentando os sentidos. Sentidos que se dão no momento em que Michel e Marina entram em contato um com o outro e organizam a performance-exposição de uma determinada forma e não de outra. Sentidos que se dão no momento em que o público entra em contato com os vídeos, com os objetos, com os textos, com as performances produzidas/escolhidas pelos artistas e estabelece relação com o espaço e com tudo o que nele opera.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
para que sejam observados, contemplados por quem por ele transita. Também peço que não pensemos em performance simplesmente como apresentação. Pensemos nas relações que se estabelecem entre objetos e corpos expostos e que se expõem, apresentados e que se apresentam, significados e que se significam. Pensemos mesmo na relação que vem a se estabelecer entre. Entre objetos, entre corpos, entre corpos e objetos, entre artistas, entre artes, entre performance e exposição, entre performance-exposição e público, entre movimentos. Pensemos, ainda, em movimento entre, pois, em Documentos de Transição, foi possível visitar os lugares pelos quais o bailarino e a artista visual transitaram, movimentaram-se.
Assim, atravessado, também é o movimento que se estabelece 4 BIDENT, Christophe. “O teatro atravessado”. In: AJR, Brasil. V. 3, n. 1. p. 5064. jan./jun. 2016.
C3
243
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
entre os artistas na medida em que se alimentam um do outro. Se alimentam, se misturam, se afetam, se borram no/do próprio movimento – de troca de correspondências, de referências, de ideias, de dúvidas, de possibilidades. Movimento que se estende ao público: duas telas – cada uma passando um vídeo diferente; algumas peças espelhadas com diferentes recortes dispostas ao longo de uma parede; uma mesa repleta de papéis; algumas intervenções performáticas. A exposição convocava os visitantes ao movimento: era preciso mover-se de uma tela a outra para descobrir o que nelas se passava; era preciso moverse ao longo da galeria para observar as diversas formas espelhadas; era preciso mover-se em torno da mesa para acessar os documentos impressos; era preciso mover-se para assistir às performances. O movimento estava até mesmo no ato de montar, enquanto visitante, como cada um bem entendesse, o seu dossiê, com os textos verbais e imagéticos escolhidos, na ordem desejada. Ou seja, não só o atravessamento entre os artistas informava sobre os sentidos possíveis da performance-exposição, mas os visitantes, a partir daquilo que os atravessava, dentro e fora do espaço da galeria, apreendiam diferentemente aquilo que Michel e Marina propunham, já que seus próprios movimentos se atravessavam nessa constituição de sentidos, nessa relação entre, nesse movimento entre. Entretanto, dado o tamanho da galeria inversamente proporcional ao número de visitantes, nem sempre foi possível moverse na direção escolhida. Era preciso inibir um movimento e escolher outro, ou ser escolhido por ele. Não foi porque eu decidi mover-me no espaço e posicionar-me em frente a uma das telas expostas para assistir ao vídeo em que Michel interagia com uma banda elástica que eu pude fazê-lo. No caminho, entre um ponto e outro do trajeto, alguém decidira a mesma coisa. Não apenas um alguém, mas alguns alguéns. Quando cheguei próximo à tela, o número de pessoas em frente a ela e a disposição em que se colocaram no espaço me impediam de ver qualquer coisa. Movimentamo-nos. Movimentamos o espaço. Meu movimento foi inibido por uma parede humana. Alguém gargalhou. Mudei minha direção sem tê-la escolhido exatamente, em busca da fonte do som que me atravessava. Voltei a mover-me. Desviando. Esbarrando. Decidindo e sendo decidida.
244
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
A performance-exposição, mais do que compartilhar com o público os materiais e os processos trocados entre Michel e Marina na estruturação do espetáculo, permitiu aos visitantes experimentar os movimentos práticos e teóricos de Enquanto as coisas não se completam. Movimentos do olhar, do pensar, do experenciar. E também movimentos entre o olhar, o pensar, o experenciar.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Conforme Yanick Butel (2016)5, nunca falamos do objeto, mas da nossa relação com o objeto: Como ele nos interpela? Como ele nos faz agir e pensar? Desse modo, o que apresento sobre Documentos de Transição não é a performance-exposição em si, mas o que dela ficou em mim a partir da relação que com ela estabeleci, pois, a medida em que constituo sentidos, constituo-me enquanto sujeito. Dizer da performance-exposição, é dizer-me a partir dos lugares sociais e discursivos que ocupo, das formações ideológicas, imaginárias, culturais e discursivas nas quais me insiro, e, sobretudo, das relações que estabeleço com o objeto em análise. Não há como dizê-lo sem dizer-me.
espaço livre
5 Yanick Butel, crítico teatral, em comunicação oral durante o Seminário Olhar crítico sobre a cena contemporânea, realizado entre os dias 16 e 18 de agosto de 2016, no Instituto Goethe, em Porto Alegre/RS. Notas pessoais minhas. C3
245
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
246
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
247
Foto: Wagner Ferraz
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Experimentos com desenhos de Moda Anderson Luiz de Souza, UFRGS/FEEVALE, Porto Alegre/RS1
Do desenho de moda
C3
espaço livre
As definições acerca do que pode vir a ser um desenho de moda são muito dinâmicas e não se tem como fixa-las à modelos de verdade, se for levado em consideração que tais definições vão se adaptando e se modificando com o decorrer do tempo. Ainda mais, se também for considerado, que o próprio termo moda traz em sua etimologia a ideia de mudança. Mudanças que, especialmente no caso da produção de desenhos, se dão em virtude dos incontáveis acontecimentos que podem levar a composição de novos posicionamentos estéticos, que de modo geral, se ligam aos valores culturais, tecnológicos e sociais de uma época. (HOPKINS, 2011). Desde a invenção do que se entende por moda, o desenho vem sendo explorado por inúmeras abordagens, e ao se apropriar de linguagens e técnicas oriundas do universo da Arte, a busca por maneiras de se expressar que evidenciem uma proposta individual e criativa com o desenho, é motivo de atenção, diante do fato de que o entendimento 1 Doutorando e Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação / UFRGS, na linha de pesquisa Filosofias de Diferença e Educação (2015). Especialista em Arte Contemporânea e Ensino da Arte - ULBRA (2011). Graduado em Moda (Bacharelado) CESUMAR (2006) - Maringá/PR e Graduando em Artes Visuais (Licenciatura em andamento) UNIP.
248
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
de criação, é comumente confundido com o fazer cópia.
Da criação Quando me foi apresentada a proposta de integrar a referida exposição, em um primeiro momento eu pensava que sabia o que poderia ser feito, mas durante o processo de criação, percebi que eu não fazia ideia do que eu viria a fazer. As únicas informações que eu possuía bem claras e definidas eram que toda a proposta do trabalho partiria de desenhos de moda, e que a proposta curatorial abordaria a “Moda Brasileira na Bélgica” sendo que o tema a ser explorado por mim seria “Luxo Tropical”.
O processo de criação iniciou com estudos de técnicas e materiais, para definir o que seria efetivamente feito, então foram realizados desenhos de moda diretamente sobre papel branco no tamanho A2, iniciou-se com desenhos mais clichês, com figuras femininas alongadas, de silhueta esguia e representação realista nos detalhes da figura humana, como rosto e membros, e também nos detalhamentos dos tecidos e texturas das vestimentas. Tecnicamente os desenhos poderiam ser considerados bons, mas não apresentavam nada de novidade, eram apenas “mais do mesmo”, representações de estereótipos.
espaço livre
A proposta inicial compreendia a criação de vinte desenhos no tamanho A2, mas no decorrer do processo de criação, as escolhas tomadas e as ideias colocadas em prática foram tomando direções inesperadas, e mostrando que o tempo estipulado não seria suficiente. Os trinta dias que se tinha para a realização de todo o trabalho seriam mais que o suficiente para realização de desenhos de moda convencionais, mas não para os desenhos que efetivamente estavam sendo criados.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
E diante deste posicionamento, ao ser convidado para participar da exposição “Criações: Brazilian Fashion in Belgium”, que ocorreu na Casa do Brasil em Bruxelas/Bélgica, no período de 10/03 a 05/04 de 2016, me coloquei a pensar no que e como desenhar, evitando reproduzir modelos dados e/ou representações estereotipadas.
Mediante a frustração com os resultados iniciais, buscou-se trabalhar C3
249
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
com algum material que pudesse imprimir desafios, que tirasse da zona de conforto. Então, fez-se uso de papéis de molde extraídos de antigas revistas de moda brasileira, material que já havia sido usado uma vez em um outro trabalho com desenho. Tal experimentação foi somada a uma variação do processo empregado nos desenhos produzidos na dissertação de mestrado intitulada “Desenhar com linhas: Criação de Figura corpo” (SOUZA, 2015), processo denominado na pesquisa como experimentação com linhas, o qual consiste em um modo de pensar por imagens compostas por linhas, sejam estas linhas criadoras de desenhos e/ou criadoras de escritas. Partindo de uma proposta de trabalho que possibilitasse a insurgência do erro, do acaso, da incerteza, da surpresa no processo de criação. Assim, ao experimentar com as linhas já traçadas em cada folha de molde, brincando com os diferentes espaços, linhas e formas que cada folha de papel apresentara, é que efetivamente se deu a criação dos desenhos para a exposição.
A temática “Luxo tropical” foi explorada a partir da pesquisa de imagens indígenas de diferentes tribos existentes no Brasil, como os Kadiweu e Guaranis, elementos variados da flora nacional, como as bromélias e orquídeas, além da estrelícia que foi escolhida como referência ao povo africano que muito contribui com a formação da cultura brasileira, por ser uma planta originária da África do Sul, mas muito popular atualmente na paisagem urbana. Ao final dos trinta dias, haviam sido feitos onze desenhos, dos quais nenhum resultou em representações específicas de signos da cultura brasileira nem da cultura de moda, mas foram compostos por informações pictóricas que pudessem remeter a muitos elementos populares na cultura do Brasil, assim como sugerir uma figura vestida em uma forma humana estilizada podendo ser entendidos como muitas possibilidades de vir a ser.
C3
espaço livre
Nenhum desenho foi esboçado antes ou previamente estudado, cada um foi sendo feito diretamente sobre as folhas de papel.
250
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Referências bibliográficas:
SOUZA, Anderson Luiz de. Desenhar com linhas: Criação de Figura corpo. Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Educação PPGEDU/UFRGS, 2015. Dissertação de Mestrado.
espaço livre
Foto: Anderson Luiz de Souza Anderson Luiz de Souza Experimentos com desenhos de Moda 02 (Detalhe) Técnica mista sobre folha de moldes 54cm x 40cm 2015
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
HOPKINS, John. Desenho de moda. Porto Alegre: Bookman, 2011.
C3
251
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
252
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre
Foto: Anderson Luiz de Souza Anderson Luiz de Souza Experimentos com desenhos de Moda (Detalhe do papel utilizado) Técnica mista sobre folha de moldes 54cm x 40cm 2015
C3
253
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
254
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre
Foto: Anderson Luiz de Souza Anderson Luiz de Souza Experimentos com desenhos de Moda 06 Técnica mista sobre folha de moldes 54cm x 40cm 2015
C3
255
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
256
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre
Foto: Anderson Luiz de Souza Anderson Luiz de Souza Experimentos com desenhos de Moda 02 (Detalhe) Técnica mista sobre folha de moldes 54cm x 40cm 2015
C3
257
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
258
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre
Foto: Anderson Luiz de Souza Anderson Luiz de Souza Experimentos com desenhos de Moda 08 Técnica mista sobre folha de moldes 54cm x 40cm 2015
C3
259
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
260
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre
Foto: Anderson Luiz de Souza Anderson Luiz de Souza Experimentos com desenhos de Moda 09 Técnica mista sobre folha de moldes 54cm x 40cm 2015
C3
261
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
262
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre
Foto: Anderson Luiz de Souza Anderson Luiz de Souza Experimentos com desenhos de Moda 01 Técnica mista sobre folha de moldes 54cm x 40cm 2015
C3
263
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
264
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre
Foto: Anderson Luiz de Souza Anderson Luiz de Souza Experimentos com desenhos de Moda 03 Técnica mista sobre folha de moldes 54cm x 40cm 2015
C3
265
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
266
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre
Foto: Anderson Luiz de Souza Anderson Luiz de Souza Experimentos com desenhos de Moda 11 Técnica mista sobre folha de moldes 54cm x 40cm 2015
C3
267
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
268
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre
Foto: Anderson Luiz de Souza Anderson Luiz de Souza Experimentos com desenhos de Moda 04 Técnica mista sobre folha de moldes 54cm x 40cm 2015
C3
269
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
270
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre
Foto: Anderson Luiz de Souza Anderson Luiz de Souza Experimentos com desenhos de Moda 10 Técnica mista sobre folha de moldes 54cm x 40cm 2015
C3
271
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
272
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre
Foto: Anderson Luiz de Souza Anderson Luiz de Souza Experimentos com desenhos de Moda 05 Técnica mista sobre folha de moldes 54cm x 40cm 2015
C3
273
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
274
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre
Foto: Anderson Luiz de Souza Anderson Luiz de Souza Experimentos com desenhos de Moda 07 Técnica mista sobre folha de moldes 54cm x 40cm 2015
C3
275
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
C3
Cartaz da exposição
276
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
277
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
278
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
279
Foto: Wagner Ferraz
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
S c o
i i
l
ê
n
Essas imagens são registros de uma ação que faz parte de uma pesquisa em performance e dança. Em “S
i
l
ê
n
c
i
o”
Artista-docente: Carla Vendramin Fotógrafa-performer: Lu Trevisan Ano: 2015
C3
espaço livre
corpo a dançar e corpo a fotografar sofrem a intervenção do espaço e participam de forma a compor o processo de criação.
280
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
281
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
282
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
283
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
284
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
285
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
286
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
287
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
288
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
289
Foto: Wagner Ferraz
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Corpo brincante Guilherme Cruz, UNILA, Foz do Iguaçu/PR1
De seus pés deformados não havia forma para caber entre as patas dos animais. Nem se pareciam com o nariz do tamanduá. Aquilo, aqueles dois membros estavam desaconjuntados do resto. Em comparação eram pernas, mas em simetria eram a personificação de desenhos feito por uma criança de cinco anos – com sua total percepção para formas, perspectiva e veracidade. Existiam dedos, mas não eram em sua totalidade. Havia unhas, mas eram frágeis e escamosas. Vertia água pelo esporão, e transfigurava feições humanas nas marcas deixadas na primeira casa. Para o tempo que se seguia não podia juntá-las no mesmo espaço, esses dois membros tinham a força de uma intifada que viria arrebentar o céu amarelado. O resto, que alguns poderiam chamar de corpo, não controlaria essa imensa vontade de se equilibrar entre as longevas nuvens, mas ainda era infernal estar ali calculando míseros graus. Pulo dois. Forçosamente atira a pedra com uma das garras que ao mesmo tempo tem a estrutura fibrilada de molusco que expõe os ossos. Como gravetos, em cima de cada antebraço desarticula veias porosas. Em sua volta tudo é vermelho e azul, onde se faz frio e calor – um limbo continental (extraconjungal) entre o matagal – se formos pensar nos deslizes que ocorreram nesses treze anos seria o nosso território preferido.
C3
Agora são duas casas na sua frente. Ímpar e par. De novo uma dualidade. Rabisca um desenho no quadrado par e se joga, 1 Pesquisador da área da Comunicação. Ouve e escreve histórias. Cronista entre as pulsões da vida. Contos em: https://medium.com/@horizontevagant
290
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
O corpo longitudinal serviu para ir até a outra casa. A forma anfíbia do número justificava o tamanho esforço e o perigo abismal que o suor iria acarretar ao se alojar na fonte de seu orifício superior. Sugado, chupado, atravessado, esbugalhou-se ao atingir o infinito. Não mais arriscaria suas facetas em linhas macabras demarcadas de ponta cabeça. Era o grito de niñez. Faria outra vez o mesmo pedido para quem ficou observando. Um passo ameaçador perante ao erro, uniformemente contraindo ombro, pescoço e trapézio. Escarra alguma desculpa, já tomado pelo sangue, porque a movimentação lhe turva as vistas e quem observava já inicia um ritual de tombamento. Agora são todos contra ela, ficou concentrada no milésimo, respirou fundo no segundo cravado, e atingiu o céu no minuto reposto. O projétil brincante lhe atravessaria os pensamentos concretos.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
atabalhoada, pra cima do ímpar. Nessa altura não olha pra trás, mesmo tendo o pescoço protuberante de pele saliente, onde o girar se tornaria força mínima e traria resultados legítimos... Enfim, somente se consome nos afazeres para desbravar outros números aos pés. Pulo quatro.
O que sobrou foi um amontoado numa caixinha branca de alguns centímetros.
A vida se finda na chuva que limpa a calçada do céu escrito em amarelo e vermelho.
espaço livre
Todo o dia doze de outubro, em sua cama depositam-se doces como memória. Muitas visitas acontecem durante todo o mês de seu aniversário. O seu desenho predileto são repetidos em casas e muros inacabados. Os muros viraram seu evangelho. O giz usado para desenhar a brincadeira não resiste muito tempo, mas todos ali teimam em brincar sem o corpo. Um fim de corpo ausente é o indício que a noite chegou e não mais se vê corpos brincantes nas ruas.
C3
291
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
292
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
293
Foto: Wagner Ferraz
ENSAIO PERFORMÁTICO “REVERBERAÇÕES UTERINAS” Daniel Aires-UFRGS-Porto Alegre/RS1
As fotografias a seguir compõe os registros do “Ensaio performático Reverberações Uterinas”. Tratam do processo de investigação corporal para o trabalho conceitual do útero como lugar incorporal. Ancorado no conceito tratado por Anne Cauquelin, o artista visual/ performer/bailarino pretende através do corpo, reverberar as sensações que partem do trânsito entre tempo-espaço no corpo cênico. A problemática transita na proposição que move esta poética, ou seja, de que maneira o santo e o profano articulam-se para (trans)formar o útero em lugar incorporal?
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
1 Daniel Aires: Bailarino/Coreógrafo/Performer/Pesquisador. Bacharel em Artes Visuais (UFSM), Especialista em Dança (UFRGS), Mestrando em Artes Cênicas (PPGAC-UFRGS).
294
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre
Figura 1-Registro/ensaio para performance “Reverberações Uterinas”-2015 de Daniel Aires. Foto de Estevan Garcia.
C3
295
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
296
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre
297
C3
Figura 2-Registro/ensaio para performance “Reverberações Uterinas”-2015 de Daniel Aires. Foto de Estevan Garcia.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
C3
espaço livre
Figura 3-Registro/ensaio para performance “Reverberações Uterinas”-2015 de Daniel Aires. Foto de Estevan Garcia.
298
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre
Figura 4-Registro/ensaio para performance “Reverberações Uterinas”-2015 de Daniel Aires. Foto de Estevan Garcia.
Figura 5-Registro/ensaio para performance “Reverberações Uterinas”-2015 de Daniel Aires. Foto de Estevan Garcia. Figura 6-Registro/ensaio para performance “Reverberações Uterinas”-2015 de Daniel Aires. Foto de Estevan Garcia.
C3
299
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
300
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
301
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
302
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
303
Foto: Wagner Ferraz
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Transtexto Dan Porto1 Santa Cruz do Sul, RS Primeiro surgiu o mistério: trans texto a obra projeta o seu próprio espaço não é mais lugar autor sentido
C3
espaço livre
é o lugar presente potência de mistério
Depois, os entrelaçamentos da teoria. No entanto, devo alertar o leitor de duas coisas. A teoria é apenas teoria, ou seja, limitante e, por assim ser, restritiva. Acredito que a boa teoria é aberta, compartilhada e ininterrupta, pronta sempre a evoluir, porém, só por isso já assusta aqueles habituados às caixas-pretas da regra. E a arte é viva. Cada
1 Dan Porto, 32 anos, é escritor e artista curioso. Publicou Pequeno Manual do Vestibular (2009), Raridades (2011), Viver e ajudar a Viver (2014), Perfil Profissional (2014), Série Poética: Just it, Carménère, Xilema (2015), além de textos avulsos. Site: www.danporto.com.
304
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
artista a seu tempo se encarrega de (ou ao menos deveria) tocar, ou seguir, em frente o que foi construído no passado.
O comerciante, diplomata, poeta e político escocês Caleb Whitefoord (1734-1810), por volta de 1760 passou a ler as notícias do jornal não mais em colunas, mas seguindo a linha e pulando de coluna para coluna. Chamou a técnica de Reading Cross, algo como Leitura Cruzada.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
Porém, antes, devemos observar esta linha histórica de experimentos:
Caleb Whitefoord, by Sir Joshua Reynolds, 1773. National Portrait Gallery.
“O cometa está agora sobre a sua volta ao sol, de acordo com um decreto do alto tribunal da chancelaria.” “Ontem houve disputas violentas no conselho comum. Há algum tempo o vulcão tem sido extremamente turbulento.” “Lady M. Stanhope, filha do conde de H comprometeu-se a comer uma perna de carneiro em uma sessão.”
espaço livre
Sua produção ficou marcada pelo tom de humor que imprimia, ou descobria, especialmente aos assuntos políticos. Embora Whitefoord tenha sido poeta, Giles Goodland, em seu artigo sobre a Reading Cross, não acredita que tenha chamado de poesia o resultado dessa técnica. Fez sim muito sucesso entre seus pares, mas mais como humor do que poesia.
Por fim, Giles também sugere que Whitefoord tenha tomado contato com a receita de Tristan Tzara para fazer um poema dadaísta, que veremos a seguir.
C3
305
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
O poeta romeno e criador do Dadaísmo Tristan Tzara (1896-1963) empregou uma técnica chamada Cut-up, ou découpé, em francês. Em sua Receita para fazer um poema dadaísta, ele registrou o passoa-passo. Receita para fazer um poema Dadaísta Tristan Tzara
Pegue um jornal. Pegue uma tesoura. Escolha no jornal um artigo com o comprimento que pensa dar ao seu poema. Recorte o artigo. Depois, recorte cuidadosamente todas as palavras que formam o artigo e meta-as num saco. Agite suavemente. Seguidamente, tire os recortes um por um. Copie conscienciosamente pela ordem em que saem do saco.
C3
espaço livre
O poema será parecido consigo. E pronto: será um escritor infinitamente original e duma adorável sensibilidade, embora incompreendido pelo vulgo.
Tristan Tzara, 1921. Man Ray.
Tzara chegou a criar um poema durante uma manifestação dadaísta puxando palavras de um chapéu, como demonstração da técnica. Porém, é só com Brion Gysin e William Burroughs que o Cut-up
306
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
torna-se mais popular.
O escritor e pintor William Burroughs (1914 – 1997) também trabalhou com a técnica de Cut-up. Embora o conceito seja atribuído aos dadaístas dos anos 1920, só veio a se tornar popular no final dos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
O pintor e escritor inglês Brion Gysin (1916-1986) descobriu a técnica pelo que comumente chamamos de acaso. Havia posto jornais como forma de proteger a mesa enquanto cortava papéis com uma lâmina. De repente percebeu que os jornais que também iam sendo cortados, formavam camadas as quais, justapostas, criavam imagens e textos interessantes. Brion chegou a publicar um livro com o resultado da aplicação do Cut-up, Minutes to Go. Os primeiros recortes de Gysin nasceram na década de 1950 e influenciaram o trabalho do amigo William Burroughs.
anos 1950 e início dos anos 1960 com o trabalho de Burroughs, o Almoço Nu, de 1959. Em parceria com Gysin, William Burroughs elaborou o livro The Third Mind, uma mistura de ensaio, peças de Cut-up e uma entrevista com o autor.
espaço livre
The Third Mind, capa da edição norte-americana, 1978.
C3
307
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
C3
espaço livre
The Third Mind, Burroughs, 1978.
E da amizade dos dois também nasceu o filme The Cut-Ups (1966), dirigido por Antony Balch, roteiro de Burroughs e Balch e com os dois amigos em cena, cuja montagem segue a mesma orientação da técnica em questão. No entanto, talvez o trabalho mais extenso de remix literário seja o do pintor britânico Tom Phillips (1937 - ). A partir de um romance vitoriano, A Human Document, Tom criou seu trabalho A Humument, ao qual se dedica desde 1966. A Humument já gerou, inclusive, peças de ópera, como Irma: The Score. Tom pinta, cola e desenha sobre as páginas, mas deixa parte do texto à mostra em forma de balão. Personagens do romance original aparecem na nova história, mas o protagonista é um novo personagem chamado Bill Toge. O trabalho resultante de A Humument também serviu para Tom ilustrar sua tradução de O Inferno, primeira parte da Divina Comédia, de Dante. Nesse grupo, aparece o brasileiro Leonardo Villa-Forte (1985 - ),
308
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Mas, neste século XXI, o responsável pelo resgate, pela compilação e divulgação dessas técnicas é mesmo o norte-americano Austin Kleon (1983 - ). O livro de Austin, Newspaper Blackout, de 2010, foi o propulsor para o resgate das técnicas experimentais. Esse olhar para o passado diz muito sobre o processo artístico, a experimentação sempre esteve presente nos círculos criativos, aliás, estes, ausentes neste nosso tempo muito individual. Foi um mergulho proposital, muito embora pudesse, assim como acabo de criticar, ter passado ao largo. Mas, diz o historiador francês Marc Léopold Benjamim Bloch que “a incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado”.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
cujo trabalho de remix literário mais conhecido é o MixLit. Leonardo começou a produzir em 2009 e segue trabalhando e pesquisando sobre remixagem literária.
Pois bem, passemos então à constituição do Transtexto. Lembro-me que os espaços em branco na página sempre me chamaram a atenção, então os busquei no Transtexto e eles trouxeram a canção 20 anos Blues, música de Sueli Costa e letra de Vitor Martins: “O sangue jorra pelas veias de um jornal”.
espaço livre
Transtexto # 51, Dan Porto, 2016. Divulgação.
C3
309
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
A polarização entre luz e sombra, mais que apenas duas dimensões, me remetem aos ciclos naturais da vida. E assim, surgem as cartas do Tarô: A Morte, O Carro, e O Mundo, cujos atributos principais são modificar, direcionar e progredir, respectivamente. À propósito, esta série quase se chamou ReMundo, em alusão ao progresso, mas desisti em função dos múltiplos aspectos associados à ideia de progresso, nem sempre e nem todos positivos. Foi nesse ponto, ou em torno dele, melhor dizendo, que surgiu o poema que abre este texto. Trans texto... Transtexto. Trans, do latim além de, em troca de, através. E se impuseram os aspectos já presentes, iluminaram-se, a saber, o espaço, o momento presente e talvez a dimensão mais importante e mais cara a mim, desde sempre, o mistério. Vamos tomar espaço por papel, livro, jornal ou revista que estou trabalhando, tamanho da página, desenhos, espaço entrelinhas e entre palavras – entrepalavras? O presente, assim, posto por característica, abarca e transborda o caráter orgânico da experimentação. Todas as possibilidades existem naquele momento e, caso passe, o momento seguinte gerará outro processo e outro resultado. E, afinal, o mistério, o pedaço do processo que a razão não corrompe, e não o faz porque não o alcança, o mistério permanece inacessível mesmo quando se mostra. A luz que ilumina o mistério é opaca, difusa, indireta, amarelada, quente. Não trato de inspiração ou musas, quero que fique claro, o mistério é o caráter inexplicável, subjetivo e inalcançável. E como parte do mistério, fluidamente, é mais ou menos por aqui que aparecem Julia Kristeva, chegada de 1966, falando de intertextualidade e, depois dela, Gérard Genette, este mais próximo de mim, de 1982, a propor o termo transtextualidade. Para ele, transtextualidade se refere a um grande grupo de relações possíveis entre diferentes textos, dentre eles, a intertextualidade e a hipertextualidade, aqui sim a parte que nos cabe, o hiper, o hipertexto. Seu livro Palimpsestos – a literatura de segunda mão, ainda é inédito no Brasil. No entanto, as pesquisadoras Luciene Guimarães e Maria Antônia Ramos Coutinho, ambas da UFMG, traduziram algumas partes em 2006. Genette começa desconstruindo o objeto da poética: “o objeto da poética não é o texto, é a transtextualidade, ou transcendência textual do texto: tudo que o coloca em relação,
310
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
manifesta ou secreta com outros textos”.
Não há possibilidade de passar sem citar a influência minimalista, que pode ser vista descaradamente nas peças de palavra única. O sentido e a significância do signo valem mais do que aparentam neste tempo líquido, cuja linguagem se tornou mais imagem do que som.
E, obviamente, não pode haver experimentação poética sem invocar a Poesia Concreta. O Transtexto encarna, assim como os seus antepassados, o experimentalismo, a transformação do poema em objeto visual, o protagonismo dos substantivos e verbos e o sintetismo. Às vezes somos deselegantes, em outras podemos ser esquinas sutis.
espaço livre
Transtexto Brilhar, Dan Porto, 2016. Divulgação.
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
A teoria de Gérard Genette produz eco no Transtexto surgido do mistério, mas não só isso, ampara todos os estudos que geram transformação (hipertexto) a partir do que já existe (hipotexto). Para quem desejar mais informações, recomendo a leitura do material indicado, haja vista que não é o interesse aqui construir teses acadêmicas, pelo contrário, é derrubá-las que é mais interessante.
C3
311
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Tudo isso só é possível por conta da liberação do jogo. O lúdico é fundamental para a transformação do hipotexto em hipertexto. Para Genette, “nenhuma forma de hipertextualidade ocorre sem uma parte de jogo e o verdadeiro jogo comporta sempre um pouco de perversão”. Perversão essa que me valho para manter a desfaçatez de usar, e abusar, de toda a gama de transtextualidade, e não só do hipertexto. Quero chegar, e chego, ao trans-transtexto, numa perversão sem precedentes a misturar livros, páginas, trechos, sem critério, no que se chamaria de perversão literária. Ótimo! Não se faz boa coisa sem prazer.
“O espaço entre as palavras; a sombra; a luz; a refazenda da teia de signos; é o que me seduz nesta técnica. Transtexto é a luz da minha sombra. Quando eu mesmo estava na escuridão, a casa escura, os sentidos borrados, a sujeira e o mofo ameaçavam destruir tudo, como no arcano A Morte, ilumina-se a vida com a luz dos espaços em branco, com o mistério do presente.
Esse mistério do que já foi e morreu e se renova no Transtexto alimenta a luz, ilumina a sombra. Deixei o jornal e venci a resistência de trabalhar com páginas de livros. Foi e segue sendo o rompimento de algo sagrado, porém era preciso desafiar o estabelecido. Busquei não o mistério da poesia, mas da palavra, a ordem orgânica no caos. Trabalhei com livros técnicos, poemas, textos infantis, reportagens de jornal e revista, textos publicitários. A combinação repetida das letras, sílabas e palavras passou a pular do texto no primeiro olhar. Chega um ponto no qual você identifica a linguagem quase como o código binário de programação.” Dan Porto.
C3
espaço livre
A palavra se coloca, quase impõe-se; interpõe-se, ou transpõese, entre as manchas na folha. O papel bebe tinta e, em gargalhadas, devolve a palavra a piscar, atrativa e sedutora.
312
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
313
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
314
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
315
Foto: Wagner Ferraz
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
Chá da noite Chaleira a chiar, Palmas tremulas a volta, Frio no fogo me esquenta, E eu a assobiar Chuva nas chapas Dança da colher no canecão Murmúrios no estomago, Doce açúcar quente apagão
(Poemas de sonhos)
C3
espaço livre
Guedes Mechisso
316
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
317
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
318
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
319
Foto: Wagner Ferraz
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO FLOR Francine Cezar Bandeira, UFRGS, Porto Alegre/RS
O referido trabalho tem a flor como corpo a ser observado. Suas especificidades, belezas, defesas. A flor como corpo sutil que carrega história, que reproduz e seduz. O corpo que envolve, junto ao ar que vagueia, refresca e testa o berço da terra. O corpo que expande e se permite descobrir, se desvela e zela o silfo que veio a conduzir. A fotografia tem um modo sensível de perceber o que não se enxerga, é o olhar daquele tempo guardado no olho.
espaço livre
FOTOS:Francine Bandeira
FOTO 01: Túbulo. Francine Bandeira FOTO 02: Beldroega. Francine Bandeira FOTO 03: Taraxacum officinale. Francine Bandeira FOTO 04: Asas. Francine Bandeira FOTO 05: Grão. Francine Bandeira FOTO 06: Vida vinda. Francine Bandeira FOTO 07: Benção. Francine Bandeira FOTO 08: Boca. Francine Bandeira FOTO 09: Sereno. Francine Bandeira
C3
FOTO 10: Toque. Francine Bandeira FOTO 11: Pax. Francine Bandeira FOTO 12: Vênus. Francine Bandeira
320
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
321
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
322
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
323
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
324
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
325
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
326
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
327
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
328
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
329
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
330
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
331
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
332
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
333
C3
espaço livre
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
334
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
espaço livre C3
335
C3
periódico eletrônico
C3
artigos
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
336
INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.com
artigos
Contatos: E-mail: submissao.informec3@gmail.com www.informec3.weebly.com
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA
CORPO CULTURA EDUCAÇÃO ARTES (todas possíveis) MODA SAÚDE ENSINO
Porto Alegre / RS 2018
C3
337