DEPOIS DA DEMOLIÇÃO uma história alternativa para o reuso do entulho do hospital universitário do fundão
ARQ1110 PROJETO FINAL, caderno para banca final do Trabalho de Conclusão de Curso Departamento de Arquitetura e Urbanismo / DAU PUC-Rio, julho 2020 Ingrid Uchoa Colares. Orientação Gabriel Duarte
AGRADECIMENTOS À minha família pelo incessante apoio que me permitiu ir e vir e por compartilhar comigo o gosto pelo aprendizado. Ao meu orientador, Gabriel Duarte, pelas tantas vezes que me fez reacreditar no trabalho. À banca, Fernando Minto, Ligia Saramago e Cadu Spencer, por suas leituras e colocações enriquecedoras. À Ana Luiza Nobre pela importância que teve em minha formação, pelo rigor de seu olhar e pelas oportunidades que me confiou antes mesmo que eu me visse pronta para elas. Aos meus amigos, Matheus e Isabela, pelos seus comentários sempre sensíveis sobre o trabalho e por me acompanharem nesse e em tantos outros assuntos. Aos bons amigos que Fortaleza, Rio e São Paulo me deram, com os quais pude trocar e vivenciar o apreço pela arquitetura.
imagem: Demolição da ala sul do Hospital Universitário do Fundão, documentário “Homenagem a MattaClark”, Joana Traub Csekö e Pedro Urano, 2015
DEPOIS DA DEMOLIÇÃO uma história alternativa para o reuso do entulho do hospital universitário do fundão
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apresentação
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demolição do hospital universitário
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dimensão sensível transitoriedade do construído memória dos materiais construção da ilha do fundão
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dimensão prática disponibilidade de recursos edição dos materiais contexto legal do reuso repertório de reusos
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uma história alternativa
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bibliografia
APRESENTAÇÃO “Depois da Demolição” nasce da motivação de explorar uma arquitetura que construa com recursos materiais disponíveis dentro das cidades. Entendendo o estado transitório de uma construção e os processos de transformação formal que os materiais construtivos sofrem ao longo de sua vida útil, o trabalho especula dentro do recorte a possibilidade de reutilização de materiais provenientes de demolição para a construção de arquitetura.
Tendo a demolição da ala sul do HU como uma realidade, este trabalho se coloca como um exercício de imaginar um cenário pós demolição a partir do reuso das cem mil toneladas de entulho naquele local. Propõe-se de maneira especulativa e provocativa uma história alternativa para o reuso deste, aliando seu valor simbólico e material.
imagem: Demolição da ala sul do Hospital Universitário do Fundão, documentário “Homenagem a MattaClark”, Joana Traub Csekö e Pedro Urano, 2015
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APRESENTAÇÃO
Dentro de uma prerrogativa investigativa e especulativa elege-se como aproximação a implosão, em 2010, da ala sul do Hospital Universitário, localizado na Ilha do Fundão, no Rio de Janeiro.
IMPLOSÃO DO HOSPITAL UNIVERSITÁRIO No dia 19 de dezembro de 2010, ocorreu a implosão da ala sul do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, localizado na cidade universitária da Ilha do Fundão (Rio de Janeiro), pertencente a UFRJ. A decisão de implodir a chamada “perna seca” do Hospital deu-se devido o abandono e a falta de manutenção da ala sul do edifício, que nunca teve sua construção completamente finalizada. Em junho de 2010, a metade abandonada que já apresentava riscos estruturais sofreu um abalo que acelerou a decisão de botar abaixo a “perna seca”.
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O local recebeu essa abordagem do abandono por trabalhos artísticos antes mesmo da notícia de que o edifício seria implodido. Em 2001, dez anos antes da demolição, o artista Matheus Rocha Pitta realizou um registro fotográfico intitulado “Lance de Dados” que retratava as condições físicas em que a “perna seca” se encontrava.
imagem: Abandono da ala sul do Hospital Universitário do Fundão, documentário “HU Enigma”, Joana Traub Csekö e Pedro Urano, 2011
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IMPLOSÃO DO HU
Iniciada na década de 50, a construção do hospital só teve finalizada com todas suas vedações e revestimentos a sua ala norte. Desde então, a outra metade vinha sendo motivo de debate por seu estado inacabado e de desuso. A condição de abandono chamava atenção para o estado de obsolescência e descaso para com as instituições públicas de saúde e educação no Rio de Janeiro.
Junto com a falsa promessa de um novo projeto de hospital para o local, a parte sul do HU foi demolida para evitar finais mais trágicos de uma possível queda acidental do edifício. Optou-se pelo processo de implosão, pois a demolição manual de toda a ala sul teria um custo cinco vezes maior de execução.
Após a realização do corte de 20 metros, a implosão foi realizada sem comprometer as estruturas da outra metade do edifício. A empresa Fábio Bruno Construções, especializada em grades demolições como implosões, desmontes e perfurações de túneis, ficou a cargo da implosão da “perna seca” do HU. Com o uso de 900 quilos de dinamite, a estrutura levou 20 segundos para vir abaixo.
imagem: Reportagem jornal O Globo, 20 de dezembro de 2010
Os 20 segundos foram suficientes para transformar o edifício que somava nos seus 15 andares uma área de 110 mil metros quadrados em uma enorme pilha de concreto, tijolos e ferros torcidos – um total de 100 mil toneladas de entulho.
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IMPLOSÃO DO HU
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imagem: “Lance de Dados”, Matheus Rocha Pitta, 2002
Ainda assim, para viabilizar a implosão da metade do edifício, foi preciso fazer primeiro uma demolição manual de um trecho de 20 metros na lâmina principal da arquitetura para desvincular as estruturas das duas alas. Esse processo manual, que durou cerca de dois meses, foi registrado no documentário “Homenagem a Matta-Clark”, de Joana Traub Csekö e Pedro Urano. Os autores, que no momento já trabalhavam no local na realização do filme “HU Enigma” abordando o descaso para com o hospital, foram acometidos com a notícia de que a ala sul viria abaixo e registraram esse processo.
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IMPLOSÃO DO HU
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Demolição manual do trecho de 20 metros da Ala Sul do HU, documentário “Homenagem a Matta-Clark”, Joana Traub Csekö e Pedro Urano, 2015
A história que se traçou daí em diante foi que o entulho permaneceu inerte no local por um ano, sem que achassem soluções para lidar com o acúmulo dos materiais. No final de 2011, a empresa paulistana Britex Soluções Ambientais arrematou sem concorrência as 100 mil toneladas de entulho por um valor de R$ 1. Durante quatro meses o material foi gradualmente removido do local com a promessa de longe dali ser moído para a sua comercialização como brita reciclada para a construção civil.
imagem: Reportagem jornal O Globo, 27 de agosto de 2011
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IMPLOSÃO DO HU
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Com a notícia da retirada dos escombros, o artista Matheus Rocha Pitta realizou um segundo trabalho sobre o local intitulado “Dois Reais”. O trabalho exposto no Paço Imperial, em 2012, alugou temporariamente uma pequena porção do entulho para expô-la ao público. A exposição chamava atenção para a comercialização que viria a ser feita daqueles materiais e levava a pensar sobre a ação de retirada dos escombros daquele local. Se o seu trabalho prévio, “Lance de Dados”, expunha a situação de abandono físico do HU ainda em pé, “Dois Reais” suscitava um abandono da memória que aquela matéria carregava em si.
O que fazer com esse entulho? O que ele carrega de valor simbólico e material para esse local?
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imagem: “Dois Reais”, Matheus Rocha Pitta, 2012
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IMPLOSÃO DO HU
Tendo a demolição da ala sul do HU como uma realidade, “Depois da Demolição” procura debruçarse sobre as possibilidades de construção com o entulho e propor de maneira especulativa e provocativa uma história alternativa para o reuso deste, aliando seu valor simbólico e material. Nesses termos, a aproximação do presente trabalho foi dividida em duas abordagens temáticas – dimensão sensível e dimensão prática – que se fazem aqui importantes de maneira indissociável e que serão combinadas para a especulação de uma história alternativa no último capítulo.
DIMENSÃO SENSÍVEL Transitoriedade do construído
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O ato da demolição ocorre por diferentes motivações, as vezes sob a ação do homem, as vezes sob a ação da natureza; para citar alguns: processos de demolição impositivas (remoções, bombardeios, guerras), acidentais (desastres, desabamentos), manutenções, reformas.
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A demolição promove uma desordem da matéria. Já os processos de construção da arquitetura são aqui sintetizados como processos que organizam e ordenam a matéria em um local por um intervalo de tempo. Este tempo trata-se de um tempo finito, dando à organização formal da matéria um caráter transitório.
DIMESÃO SENSÍVEL
Uma das ideias centrais do trabalho é a dimensão de que a vida útil de uma arquitetura é apenas uma das conformações que o material recebe durante sua vida. Ou seja, a vida útil do material é mais longeva que a da arquitetura. Esta seria a explicação mais pragmática do por que, então, propor outras conformações formais para um material pós ação da demolição.
A discussão de alternativas para a construção com os recursos materiais provenientes de demolição surge como mote deste trabalho paralelamente ao olhar sobre a o tempo transitório das formas construídas e o tempo infinito da matéria. imagem: Amateur Architecture Studio, Museu de Ningbo, China, 2008
KOOLHAAS, Rem; MAU, Bruce. S, M, L, XL. Nova York, The Monacelli Press, 1995. 1
O QUE VEM DEPOIS DA DEMOLIÇÃO? 25
DIMESÃO SENSÍVEL
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“I should now like to prove the irreversibility of eternity by using a jujune experiment for proving entropy. Picture in you mind’s eyes the sandbox divided in half with black sand on one side and white sand on the other. We take a child and have him run hundreds of times clockwise in the box until the sand gets mixed and begins to turn grey; after that we have him run anticlockwise, but the result will not be a restoration of the original division but a greater degree of greyness and an increse in entropy.”1
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DIMESÃO SENSÍVEL
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Robert Smithson, Partially Buried Wood Shed, 1970
Demolição da ala sul do Hospital Universitário do Fundão, foto: Joana Traub Csekö e Pedro Urano, “Homenagem a Matta-Clark”, 2015
Memória dos materiais As matérias carregam consigo uma trajetória de processos de transformação desde sua extração. Para além das condições físicas disso (que serão discorridas na dimensão prática do trabalho), se ater a esta memória evoca as formas, os procedimentos, as finalidades e os locais nos quais essa matéria já esteve. Dar-se luz, então, à uma dimensão sensível do olhar sobre os materiais após a demolição da arquitetura.
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No caso específico da demolição do Hospital Universitário do Fundão, trata-se de um material que nunca recebeu o uso ao qual foi destinado, seja formalmente visto que sua construção jamais foi finalizada, seja quanto à sua função social por nunca ter sido utilizado como hospital. Traçar a história do material é escrever também a história do local, as duas coisas são indissociáveis. Este trabalho entende o local como aquele que abriga o encontro das matérias, e essas por sua vez carregam consigo a memória desse local. imagens: Construção do Hopital Universitário do Fundão, década de 50, acervo Núcleo de Pesquisa e Documentação, FAU UFRJ
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DIMESÃO SENSÍVEL
Com qual finalidade a matéria prima foi extraída? Por quais processos ela passou para ganhar a forma de um edifício, uma casa, um teatro, uma parede? Que uso a forma recebeu? Por que ela foi demolida?
imagens: Amateur Architecture Studio, Museu de Ningbo, China, 2008
Um exemplo relevante que alia a reutilização de materiais depois da demolição com questões de memória é a produção do escritório Amateur Architecture baseado na China e fundado pelo arquiteto Wang Shu, vencedor do Prêmio Prizker de 2012. A arquitetura do escritório se coloca politicamente frente às demolições recorrentes na China, consequente de processos impostos de remoção de moradias.
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“[...] é ao mesmo tempo uma rejeição dos projetos chineses de demolição e renovação e um modo de garantir a continuidade da história da região em suas novas construções.” As obras de Wang Shu são sensíveis à história e ao território. Demonstram a ideia da arquitetura como uma condição formal num espaço de tempo que dar a ver o material no seu potencial construtivo e a memória que ele carrega. O reuso de materiais de entulho surgiu para o escritório a partir incorporação de uma técnica construtiva de vilarejo na China. O local, que sofre recorrentes demolições de suas casas provocadas por fortes ventanias, reconstrói por autoconstrução as moradias reutilizando os mesmos materiais fragmentados pós demolição.
imagem: casas reconstruídas com a técnica do vilarejo de Wa Pan, China
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DIMESÃO SENSÍVEL
Grace Ong Yan a respeito da arquitetura de Wang Shu, na cerimônia do Prêmio Pritzker, 2012. In: YAN, Grace Ong. “The Infinite Spontaneity of Tradition” 2
Construção da ilha do fundão Partindo da relação inerente entre a história do local e a memória do material, revisitar o processo de construção da Ilha do Fundão se faz importante para o trabalho.
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A construção da ilha universitária fez parte de uma utopia de criação de um espírito universitário integrado dentro de um campus, sob moldes importados das cidades universitárias norteamericanas. Chegaram a ser elaboradas propostas de Le Corbusier e Lúcio Costa para a implantação da universidade na Quinta da Boa Vista, no entanto, os projetos não tiveram continuidade.
imagens: Mapas para o projeto de aterramento para construção arquipélago do Fundão, acervo Núcleo de Pesquisa e Documentação, FAU UFRJ
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DIMESÃO SENSÍVEL
Reativar essa história trouxe à tona uma outra demolição que ocorreu para a construção desse território ilhado. A demolição do Hospital não foi a primeira daquele território. Exatamente na mesma área em que posteriormente o HU foi erguido, uma colina de terra foi desmontada para a realização de aterros que reorganizaram a terra ali presente de maneira a construir o território da Ilha do Fundão como se conhece hoje.
A definição da criação da Universidade do Brasil movimentou, entre 1941 e 1944, uma comissão que estudou possíveis localizações para a sua implantação. Foram avaliados em termos políticos, sociais, econômicos e técnicos a possibilidade da implantação em doze terrenos distintos, dentre esses estavam regiões como Manguinhos, Praia Vermelha, Gávea, Vila Valqueire e Niterói. Após idas e vindas, foi eleito o arquipélago que compreendia as ilhas do Fundão, Baiacu, Cabras, Catalão, Pindai do Ferreira, Pindai do França, Bom Jesus e Sapucaia.
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imagens: Hospital Universitário sendo construído sobre a arquipélago planificado, década de 60, acervo Núcleo de Pesquisa e Documentação, FAU UFRJ
Na tentativa de pensar alternativas para a construção com os recursos materiais disponíveis dentro da cidade, a Ilha do Fundão serve para o trabalho como um microcosmo experimental, ilhado. A reorganização de recursos materiais locais é parte intrínseca à construção do local, que teve seu arquipélago de oito ilhas unificado a partir do manejo de colinas de terra das antigas ilhas para o aterramento dos corpos de água que as separavam.
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DIMESÃO SENSÍVEL
Para a realização dos aterros, foram desmontadas porções de terras de alguma das ilhas. A mais afetada foi a que levava o nome original de Ilha do Fundão, mais ao norte e onde foi implantado o Hospital Universitário. No início da década de 50, a antiga colina que atingia a cota de 30 metros foi arrasada e sua terra remanejada para a realização dos aterros. Assim, a área que hoje compreende o Hospital foi planificada.
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DIMESÃO SENSÍVEL
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imagens: desmonte da colina da antiga Ilha do Fundão, acervo Núcleo de Pesquisa e Documentação, FAU UFRJ
arquipélago antes dos aterros
ilha unificada após os aterros COLINA FUNDÃO H= 30 METROS
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DIMESÃO SENSÍVEL
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hopistal universitário antes da demolição da ala sul
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DIMESÃO SENSÍVEL
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DIMENSÃO PRÁTICA Disponibilidade de recursos A aproximação com o ato da construção remete ao que há de mais primitivo na realização da arquitetura. Por mais complexas que possam ser as soluções, a arquitetura dentro de uma lógica construtiva é, por essência, bastante pragmática. Nesses termos, arquitetura é matéria disposta de uma certa forma, e seu leque de possibilidades é ampliado justamente pela infinidade de combinações entre matérias e resultado de formas que elas podem obter.
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“A maneira material de ver enfatiza aquilo que aparece na forma; a maneira formal realça a forma daquilo que aparece.”3 Os conceitos de matéria e forma colocados pelo filósofo Vilém Flusser entendem a “matéria como o preenchimento transitório de formas atemporais” (FLUSSER, 2007). A matéria é amorfa e só se torna mensurável quando toma uma forma. Por sua vez, forma não existe sem matéria.
imagem: Ala sul do HU antes da implosão, documentário “Homenagem a Matta-Clark”, Joana Traub Csekö e Pedro Urano, 2015
A prática da arquitetura a partir dos entendimentos materiais e formais pressupõe uma maior aproximação com os conhecimentos técnicos e construtivos. Dentro desta lógica, desdobra-se um discurso no campo da arquitetura contemporânea que está interessado na reaproximação com os saberes e descobertas construtivas a partir da experimentação das técnicas e matérias.
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DIMESÃO PRÁTICA
FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. Tradução: Raquel Abi-Sâmara. São Paulo: Cosac Naify, 2007 3
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Atrelar uma certa precariedade nesta proposição é mascarar a realidade de uma arquitetura manufaturada, e por vez artesanal, que se é realizada em países como os latino americanos. A ideia de técnicas e materiais hiper tecnológicos é de acesso de uma parcela mínima dessa população. Em meio a isso, tirar partido do que se tem à mão é um êxito da arquitetura. Não coincidentemente, no atual contexto da América Latina emergente, firma-se uma produção arquitetônica baseada na disponibilidade de recursos, tirando partido da exploração inventiva e urgente do que se tem à mão. Esta abordagem está presente, por exemplo, na recente produção de escritórios como o Gabinete de Arquitectura (Paraguai), Al Borde (Equador), Messina Rivas (Brasil). Ela apresenta também uma alternativa de revalorização da profissão do arquiteto recuperada a partir da posse dos saberes construtivos aliados ao pensamento projetual.
Edição dos materiais Trabalhar com o que se têm a mão caminha com o fazer arquitetônico desde sempre. A arquitetura vernacular é marcada por uma utilização de materiais que se encontram numa fase inicial de seus ciclos de vida – a exemplo, terra, pedra, palha – e corresponde ao material que se encontra disponível no local. Atualmente, os materiais para a arquitetura na cidade carregam consigo uma cadeia de procedimentos de edição que sofreram ao longo de sua vida. Ou seja, o que entendemos por arquitetura está ligado a um estado em um espaço de tempo que um material adquire após ser projetado e construído para ser disposto de determinada forma. Antes do tijolo ser empilhado ganhando a forma de uma parede, ele teve a forma de uma rocha, que após o processo de extração virou grão, que com a adição de água se tornou massa, que por sua vez foi moldada em uma fôrma, e este molde ao ser cozido recebeu o nome de tijolo. Todos esses processos dizem respeito a transformação formal da matéria argila. Mas até onde esta matéria é explorada formalmente? Na sequência colocada de rocha, grão, massa, tijolo e parede, o que vem em seguida? O entendimento de que a vida útil da matéria é maior que a vida útil de uma arquitetura desperta o olhar para as possibilidades formais que essa mesma matéria pode adquirir no seu estado pós demolição.
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DIMESÃO PRÁTICA
Na década de 60 e 70, arquitetos como Sergio Ferro, Rodrigo Levrève e João Figueiras (Lelé) deixaram um legado de suas relações estreitas com o canteiro de obra, que podem ser justificadas não apenas por uma ideologia política de democratização desses espaços e das relações de trabalho, como também se traduz em possibilidades de complexificar os saberes técnicos e materiais por parte dos arquitetos. Hoje, a prática de arquitetas e arquitetos na adoção de uma postura de arquiteto-construtor pode ser interpretada não somente pela complexificação desses saberes, como também pela necessidade deles. Ela vira tema central de uma arquitetura que quer e precisa olhar para a escassez de recursos.
Nesse sentido, a observação dos recursos materiais dentro das cidades coloca em pauta aquilo que, em termos gerais, é compreendido como resíduo. Formas que não necessariamente precisam significar o final da cadeia de vida de uma matéria. O desdobramento desta argumentação traz a possibilidade de intuir que esse resíduo pode novamente ser entendido como recurso, aproximando à ideia de sua utilização cíclica. Dentro das cidades, o entulho pode ser visto como um recurso que se tem a mão. MCDONOUGH, William; BRAUNGART, Michael. “Dos princípios às práticas: Criando uma arquitetura sustentável para o século XXI”. In: SYKES, A. Krista (org). O campo ampliado da arquitetura: antologia teórica (1993-2009). São Paulo: Cosac Naify, 2013, pp. 165-171. 4
imagens: terra crua, tijolos secando em olaria e resíduos de tijolos em caçamba de entulho
Um ciclo de vida, que etimologicamente pressupõe uma cadeia fechada, no que diz respeito aos materiais da construção, trata-se majoritariamente de uma cadeia aberta, com início e fim. O reuso de materiais depois da demolição da arquitetura vai de encontro ao conceito cíclico “do berço ao berço” MCDONOUGH (2013).
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DIMESÃO PRÁTICA
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“Não só somos obrigados a incluir o mundo material em nossas considerações de projeto, como também temos que imaginar os materiais de maneira nova. [...] os materiais geralmente seguem o caminho irreversível para o incinerador ou o aterro, e os gerenciadores de resíduos intervêm aqui e ali para retardar a jornada do berço ao túmulo. [...] o pensamento baseado no ciclo “do berço ao berço” os encara como nutrientes que circulam pelo metabolismo biológico ou pelo metabolismo técnico.”
Contexto legal do reuso A questão da volumosa produção desses resíduos provenientes da construção civil foi regulamentada, em 2002, pela Resolução nº 307 do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA. A Resolução estabelece diretrizes, critérios e procedimentos para a gestão dos resíduos da construção civil e passa a considerar os geradores dos resíduos como responsáveis pela destinação dos mesmos.
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imagens: caçambas de entulho nas calçadas
A proposta de utilização desse material triturado ainda não teve ampla adesão, mas já pode ser visto sendo usado em maior escala na execução de pavimentos asfálticos em rodovias. Este trabalho, no entanto, busca outras maneiras de utilização desses materiais depois da demolição da arquitetura, e se propõe em explorar o reaproveitamento in loco da matéria, sendo sensível a questões de território e memória.
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DIMESÃO PRÁTICA
Em termos operacionais, a Resolução incentiva a destinação dos entulhos para centros de reciclagem que os trituram e os comercializam para serem utilizados como agregado graúdo e miúdo na mistura do concreto, podendo substituir a utilização de brita.
Repertório de reusos “Solano inventa [...] Inventa porque tem que inventar, quando o ponto de partida é trabalhar com recursos escassos, com o que se tem à mão. O portão de acesso ao pátio de sua casa é a somatória horizontal das portas que sobram ao remover as paredes dessa mesma casa. Em suas obras, o desenho das janelas se baseia em como utilizar vidros reciclados que não se ajustam ao tamanho dos buracos. Há que inventar, obrigatoriamente. Mas Solano inventa também porque quer inventar. Porque repensa a arquitetura, sua origem e suas possíveis soluções.”5 A prática de Solano Benítez em seu Gabinete de Arquitectura, bem como uma série de outros escritórios que se firmaram na produção recente da arquitetura no Paraguai, tira partido da inventividade para construir com os recursos disponíveis. O entendimento da fragilidade do tijolo maciço paraguaio abriu um campo de experimentação que explora outras possibilidades menos convencionais de trabalhar com o tijolo.
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imagens: experimentações, Solano Benitez, Paraguai
Tendo em vista essa diversidade de processos aos quais um mesmo material pode ser submetido na construção, serão traçadas aqui referências de projetos que exprimem diferentes possibilidades formais de se trabalhar com o material pós demolição.
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DIMESÃO PRÁTICA
SÁEZ, José Maria. “Apresentação”. In: FREITAS, Anderson. HEREÑÚ, Pablo (org). Solano Benítez. São Paulo: Hedra Editora da Cidade, 2012, pp. 7-8. 5
REPERTÓRIO DE REUSOS PROCESSOS
CONTER
AGREGAR A partir de referências de projetos construídos, traçou-se aqui dois processos para se trabalhar com o entulho: conter e agregar.
SUPERFÍCIE
Conter: permite o uso de peças maiores do entulho que são contidas dentro de uma estrutura que o conforma.
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GABIÃO
CAÇAMBA
BLOCO
Agregar: o entulho é triturado em máquinas de moer e é aglutinado com materiais que tem a capacidade de coesão (nos casos apresentados: o concreto).
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DIMESÃO PRÁTICA
MURO
Devido à propriedade inerte do entulho, este assemelhasse à construção com pedra e necessita de outros materiais para ganhar uma forma construída.
REPERTÓRIO DE REUSOS MURO Museu de Ningbo Amateur Architecture Studio China, 2008
As fachadas do Museu foram revertidas com os fragmentos de casas previamente demolidas no terreno e nas áreas vizinhas. O entulho é contido por placas de concreto armado fixadas horizontalmente a cada 3 metros em um muro de concreto na face interna. As placas funcionam como molduras que permitem a contenção e o empilhamento dos fragmentos de tijolos, telhas e cerâmicas. O posicionamento das peças foi feito manualmente por artesãos locais. 55
DIMESÃO PRÁTICA
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REPERTÓRIO DE REUSOS GABIÃO Riverfront Aite Park Atelier Liu Yuyang Architects China, 2015
A construção do parque em Shangai foi pensada de forma a dar uso à grande quantidade de entulho que era despejada no local devido à acelerada expansão imobiliária das áreas vizinhas. Foi utilizada a técnica de gabião para conter o entulho em telas de aço galvanizado, formando blocos de 1mx1mx2m. Junto ao manejo da terra contida no terreno, os blocos foram posicionados de forma a criar uma nova topografia para o parque. 57
DIMESÃO PRÁTICA
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REPERTÓRIO DE REUSOS SUPERFÍCIE Centro de Reabilitação Infantil Teletón Gabinete de Arquitetura Paraguai, 2010
No projeto do Centro de Reabilitação Teletón, as intervenções na construção preexistente foram feitas a partir do uso inventivo e experimental de fragmentos de tijolos cerâmicos. Uma delas foi a execução de uma cobertura curva onde os fragmentos foram aglutinados com concreto. Para a execução, a cobertura foi moldada com uma superfície côncava de madeira.
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DIMESÃO PRÁTICA
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REPERTÓRIO DE REUSOS SUPERFÍCIE Casa Angatuba Messina Rivas São Paulo, 2018
Na reforma da Casa Angatuba, os fragmentos de tijolos maciços provenientes da demolição de paredes existentes serviram de material para construção do mobiliário autoportante que passou a articular as espacialidades internas da casa. Os tijolos cerâmicos foram quebrados manualmente em fragmentos menores e fôrmas de madeira foram utilizadas para conformar a supefície irregular de entulho e concreto. 61
DIMESÃO PRÁTICA
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REPERTÓRIO DE REUSOS BLOCO blocos realizados através da concretagem de fragmentos de tijolos retirados de caçamba de entulho
Como forma de avaliar e testar o reuso de materiais após a demolição, foram desenvolvidas experimentações práticas com materiais obtidos de caçambas de entulho. Utilizou-se fragmentos de tijolos em diferentes proporções na concretagem de blocos que misturaram o concreto e o entulho. Os protótipos foram feitos no canteiro experimental da PUC-Rio.6
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DIMESÃO PRÁTICA
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A parte prática do trabalho foi interrompida por conta do atual momento de isolamento devido a pandemia do Covid-19. 6
UMA HISTÓRIA ALTERNATIVA Tendo a demolição da ala sul do HU como uma realidade, este trabalho se coloca como um exercício de imaginar um cenário pós demolição a partir do reuso das cem mil toneladas de entulho naquele local. Propõe-se de maneira especulativa e provocativa uma história alternativa para o reuso deste, aliando seu valor simbólico e material.
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A proposta é iniciada a partir do momento do primeiro processo de demolição do HU – a demolição mecânica do trecho de 20 metros entre as alas. Em sequencia, o projeto se desdobra como o desenho desse canteiro que se auto constrói e reconstrói. São propostas cinco fases de reorganização dessa matéria. Cada uma das cinco fases traçadas tem como resultado uma forma que exprime diferentes modos de operar com o entulho.
imagem: início da demolição do Hopital Univesitário. foto: acervo digital allmanaque.com
Por fim, a história recontada é concluída sem a premissa de traçar um desfecho cristalizado deste reuso, abrindo possibilidades outras e futuras do uso desses materiais que carregam consigo a capacidade eterna do por vir.
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UMA HISTÓRIA ALTERNATIVA
Esta história alternativa busca traçar uma perspectiva laboratorial da reorganização do entulho no mesmo terreno. Para isso, é proposto um faseamento dos processos aos quais o material será gradualmente submetido dentro do panorama especulativo. Leva-se em consideração o rearranjo logístico desse espaço em paralelo a demolição do edifício.
UMA HISTÓRIA ALTERNATIVA
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UMA HISTÓRIA ALTERNATIVA
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PROPOSTA DE REORGANIZAÇÃO DA MATÉRIA PÓS DEMOLIÇÃO SÍNTESE DA PROPOSTA
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UMA HISTÓRIA ALTERNATIVA
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PREMISSAS DIMENSÃO PRÁTICA •
laboratório da reorganização do entulho
•
explorar formalmente modos de usar o entulho
•
canteiro que se retroalimenta
PROPOSTA DE REORGANIZAÇÃO DA MATÉRIA PÓS DEMOLIÇÃO SÍNTESE DA PROPOSTA
20m
60m |edifício
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UMA HISTÓRIA ALTERNATIVA
30m |colina
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PREMISSAS DIMENSÃO SENSÍVEL •
reorganização da matéria in loco
•
traçado regulador que evoca antigas delimitações
•
dar lugar ao por vir, desfecho não cristalizado
PROPOSTA DE REORGANIZAÇÃO DA MATÉRIA PÓS DEMOLIÇÃO SÍNTESE DO FASEAMENTO
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UMA HISTÓRIA ALTERNATIVA
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AGREGAR
SÍNTESE DAS FORMAS E PROCESSOS
PROCESSOS
01 EMPENA
04 ARCO
(BLOCO)
(SUPERFÍCIE)
03 GABIÃO
05 CAÇAMBA
CONTER
02 MURO
MURO
PÓDIO FORMAS
ARCO
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UMA HISTÓRIA ALTERNATIVA
01 EMPENA
PROCESSOS
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01 EMPENA
DETALHAMENTO
CONSTRUÇÃO
20.00
COBOGÓ DE BLOCOS DE ENTULHO E CONCRETO
0.30
PAREDE DE BLOCOS DE ENTULHO E CONCRETO
0.6
0
0
0.3
VISTA FRONTAL
BLOCOS
UMA HISTÓRIA ALTERNATIVA
79
60.00
78
80
UMA HISTÓRIA ALTERNATIVA
02 MURO
PROCESSOS
81
02 MURO
DETALHAMENTO
CONSTRUÇÃO
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83
UMA HISTÓRIA ALTERNATIVA
ESQUEMA DE ENCAIXE ESTRUTURA EM AÇO CORTEN
7.00 20.00
2.00
VÃOS PARA PREENCHIMENTO COM O ENTULHO
30.00
ESTRUTURA EM AÇO CORTEN
VISTA FRONTAL
CORTE TRANVERSAL
84
UMA HISTÓRIA ALTERNATIVA
03 GABIÃO
PROCESSOS
85
03 GABIÃO
DETALHAMENTO
CONSTRUÇÃO
.20
14
86
87 0 3.2
2.50
20
.0
0
ISOMÉTRICA DO CONJUNTO
0
1.5
0
MÓDULO 1.00
2.50
20.00
CORTE
2.5
UMA HISTÓRIA ALTERNATIVA
11
88
UMA HISTÓRIA ALTERNATIVA
04 ARCO
PROCESSOS
89
04 ARCO
DETALHAMENTO
CONSTRUÇÃO
20.00
8.00
90
91
7.00
113.20 60.00
8.00
CORTE LONGITUDINAL
UMA HISTÓRIA ALTERNATIVA
CORTE TRANVERSAL
92
UMA HISTÓRIA ALTERNATIVA
05 CAÇAMBA
PROCESSOS
93
20 MIL
TONELADAS
100 MIL
TONELADAS
20 MIL
TONELADAS
100 MIL
TONELADAS
20 MIL
TONELADAS
100 MIL
TONELADAS
20 MIL
TONELADAS
100 MIL
TONELADAS
BIBLIOGRAFIA CACCIATORE, Francesco. The Wall As Living Place: Hollow Structural Forms in Louis Kahn’s Work. Siracusa: Letteraventidue Edizioni, 2016. FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. Tradução: Raquel Abi-Sâmara. São Paulo: Cosac Naify, 2007. FRAMPTON, Kenneth. Studies in Tectonic Culture: The poetics of Construction in Nineteenth and Twentieth Century Architecture. Cambridge, London: The Mit Press, 1995. INGOLD, Tim. Materials against materiality. Archaeological Dialogues, 2007. KAHN, Louis. Forma e Design. Tradução: Rachel Peev. São Paulo: Martins Fontes, 2010. MCDONOUGH, William; BRAUNGART, Michael. “Dos princípios às práticas: Criando uma arquitetura sustentável para o século XXI”. In: SYKES, A. Krista (org). O campo ampliado da arquitetura: antologia teórica (1993-2009). São Paulo: Cosac Naify, 2013, pp. 165-171. SEMPER, Gottfried (1860, 1863). Style in the technical and tectonic arts, or, practical aesthetics. Título original: Der Stil in den technischen und tektonischen Künsten; oder, Praktische Aesthetik: Ein Handbuch für Techniker, Künstler und Kunstfreunde. Los Angeles: Getty Research Institute, 2004. SENNETT, Richard. O artífice. Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2009. SIMMEL, Georg. A ruína. In: SOUZA, Jessé; ÖELZE, Berthold (Orgs.). Simmel e a modernidade. Brasília: UnB, 1998. p. 137-144.
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BIBLIOGRAFIA
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