Livro, Livro Indígena, Livro de Artista: um recorte sobre a linguagem visual dos ikpeng

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE ARTE E COMUNICAÇÃO SOCIAL PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA ARTE

LIVRO, LIVRO INDÍGENA, LIVRO DE ARTISTA: UM RECORTE SOBRE A LINGUAGEM VISUAL DOS IKPENG

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

ORIENTADOR: PROF. DR. WALLACE DE DEUS BARBOSA

NITERÓI, MAIO DE 2011

INGRID LEMOS COSTA

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INGRID LEMOS COSTA

LIVRO, LIVRO INDÍGENA, LIVRO DE ARTISTA: UM RECORTE SOBRE A LINGUAGEM VISUAL DOS IKPENG

Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do titulo de Mestre em Ciência da Arte, pela Pósgraduação em Ciência da Arte da Universidade Federal Fluminense.

Linha de Pesquisa: Análise Crítica.

Orientador: Prof. Dr. Wallace de Deus Barbosa

Niterói, 2011

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C837 Costa, Ingrid Lemos.

Livro, livro indígena, livro de artista : um recorte sobre a linguagem visual dos Ikpeng / Ingrid Lemos Costa. – 2011. 197 f.; il.

Orientador: Wallace de Deus Barbosa. Dissertação (Mestrado em Ciência da Arte) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e Comunicação Social, 2011. Bibliografia: f. 145-151.

1. Livro. 2. Arte indígena. I. Barbosa, Wallace de Deus. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Arte e Comunicação Social. III. Título. CDD 704.03981

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FOLHA DE APROVAÇÃO Ingrid Lemos Costa

LIVRO, LIVRO INDÍGENA, LIVRO DE ARTISTA: UM RECORTE SOBRE A LINGUAGEM VISUAL DOS IKPENG

Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do titulo de Mestre em Ciência da Arte, pela Pósgraduação em Ciência da Arte, da Universidade Federal Fluminense.

Linha de Pesquisa: Análise Crítica.

Aprovada em 9 de junho de 2011.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Wallace de Deus Barbosa (PPGCA-IACS-UFF) Prof. Dr. Luiz Guilherme de Barros Falcão Vergara (PPGCA-IACS-UFF) Profa. Dra. Isabela Nascimento Frade (PPGARTES–IART–UERJ)

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Agradeço...

Aos meus Pais, Ludmila e José Roberto, sempre presentes. Aos amados Allan e Fernanda, sempre no coração.

A Januária Mello que me apresentou o universo indígena. A Ingrid Weber, Angela Chagas, Rosana Gasparini, Letícia Camargo, Mara Santos,Simone Melo e Renata Curcio que me inseriram neste universo. Aos índios Panará que me trouxeram o primeiro livro. Aos índios Ikpeng que me acolheram e me apresentaram Imeré. Em especial: Cacique Araka, Cacique Managu, Airé, Tomé, Paykuré, Oyopé, Tapipkó, Kumaré, Korotowï, Maiuá, Pomekempo, Bebeto, Awarepï, Kay, Karané, Kamatxi, Oremé, Doni,Teresa, Maté, Renan, Natuyu, Tsilit, Yakuma, Tutuma, Yakawi, Awiara,Tomka e Montoya.

Ao meu orientador Wallace pelos ensinamentos. A Tatiana Xerez por seu companheirismo.

A Sérgio e Leilá por sua contribuição fundamental com as ideias. A Lilian, Lúcia, Lana, Glória e Jucinéa pela proteção que me dispensam. Aos bem humorados Cláudio e Maurício pelo apoio de sempre. A Valmir, Zilda, Diva, Eurídes, Clóvis e Susi que de longe zelam por mim.

A Lila, Afonso, Enrico, Ezio, Laura, Lívia, Tuni, Brás, Luiza, Carlos André, Léo, Dani, Pedro e Guilherme por existirem na minha vida Aos queridos: Carim, Ju Rosa, Vivian, Rafaella, Serginho, Paola, Tatiana, Vanessa, Dayene, Ana Cristina, Júnior, Léo Leal e Dani Castelani pela amizade.

As companheiras de sonhos Juliana Maroto Juliana Schober Kátia Duarte

E a Todos que de alguma forma estiveram comigo nessa jornada de pesquisa.

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Resumo Está é uma dissertação que perpassa diferentes áreas do conhecimento e pesquisa o objeto que há séculos é o portador dos saberes da humanidade: o livro. Discorremos sobre o que é um livro, o que seria um livro indígena e o que pode se tornar o livro que conhecemos. Estudamos as linguagens que permeiam o livro, o livro indígena, o livro contemporâneo e o livro de artista. O objetivo principal deste trabalho é analisar o livro em suas diferentes facetas, com foco no livro indígena e ampliar os estudos da linguagem visual indígena baseando-se nos livros do povo Ikpeng. Isso reaviva na sociedade a discussão, sempre em voga, sobre suas raízes indígenas desprezadas e a discussão sobre as mudanças que advém do contato com as novas formas de comunicação que surgem com a tecnologia. E, também, abre espaço para uma reflexão sobre a influência da linguagem visual na formação do pensamento e da cultura nas sociedades, sejam elas indígenas ou não.

Palavras chave: livro, livro indígena, livro de artista, arte indígena, linguagem visual, povo Ikpeng.

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Abstract Book, Indigenous Book, Artist’s Book: a look about visual language of Ikpeng tribe This is a thesis that runs through different fields of knowledge. The research object is the one that is the bearer of knowledge of mankind for centuries, the book. Discourse about what is a book, what is an indigenous book and what could become the book we know. We studied the languages that permeate the book, the indigenous book, the contemporary book and the artist's book. The main objectives of this paper are to present an analysis of the book`s different aspects, with a focus on the indigenous book; to draw a study of the indigenous visual language, based on the books of the Ikpeng tribe. This revives the discussion, always in vogue in society, about our neglected indigenous root and discussion of the changes that comes from contact with new forms of communication that arise with technology. It also opens a space of reflection about the influence of visual language in the shaping of the way thinking and culture in societies, whether indigenous or not. Key-words: book, Indigenous book, artist`s book, Indigenous art, visual language, Ikpeng tribe.

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Sumário Introdução ................................................................................................................ 20 1. O Indígena.......................................................................................................... 31 1.1 O pensamento indígena............................................................................................35 1.2 O indígena Ikpeng .....................................................................................................41 1.2.1 As viagens a campo ...........................................................................................48 1.2.2 A oficina sobre livros ..........................................................................................49

2. O Livro................................................................................................................ 55 2.1 A escrita indígena ......................................................................................................57 2.2 A escola indígena ......................................................................................................62 2.3 O livro indígena versus não-indígena .....................................................................67 2.4 O livro contemporâneo..............................................................................................73 2.5 O livro de artista .........................................................................................................77 2.6 O livro indígena hoje .................................................................................................80 2.7 O espaço do livro indígena.......................................................................................82 2.8 O desenho indígena ..................................................................................................86 2.8.1 O desenho no papel ...........................................................................................92 2.8.2 O papel do desenho ...........................................................................................95 2.9 O lugar do livro ...........................................................................................................97 2.10 O livro Ikpeng .........................................................................................................100 2.10.1 Os livros selecionados...................................................................................102

3. Linguagem Visual .............................................................................................. 105 3.1 Alfabetização visual ........................................................................................................111 3.2 Linguagem Visual Ikpeng ...............................................................................................115 3.3 O Processo de Criação...................................................................................................117

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3.4 Análises do Material Visual.............................................................................................119 3.4.1 O livro-forma......................................................................................................121 3.4.1.1 Formato ..............................................................................................................122 3.4.1.2 Tamanho, peso, número de páginas, encadernação e tipo de papel .......123 3.4.1.3 Outros Aspectos da forma ...............................................................................124 3.4.2 O livro-conteúdo................................................................................................125 3.4.2.1 Capa e miolo ......................................................................................................126 3.4.2.2 Mancha gráfica e espaço branco....................................................................127 3.4.2.3 Tipologia .............................................................................................................128 3.4.2.4 Cor.......................................................................................................................130 3.4.2.5 Conteúdo de ideias ...........................................................................................131 3.4.3 Aspectos da mensagem visual.......................................................................132 3.4.3.1 Livros Didáticos .................................................................................................133 3.4.3.2 Livros de Conteúdo ...........................................................................................135 3.4.3.3 Livros de etnias do Xingu.................................................................................138

Considerações Finais............................................................................................ 141 Referências Bibliográficas.................................................................................... 153 Referências Bibliográficas Indígenas .................................................................. 159 Anexos I .................................................................................................................. 159

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Para Ananda e Nicholas ...que me trazem inspiração...

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Para Roberto Pureza (in memorian) ...que nos trouxe alegria...

Â

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Agora, livro meu, vai, vai para onde o acaso te leve. Paul Verlaine

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Introdução A escultura na pedra aguarda que o mestre venha lhe tirar os excessos. Estas letras, palavras, pontos e espaços em branco já estavam por aqui, só necessitavam que a pesquisadora lhes desse forma. A partir de questionamentos que surgiram na prática da pesquisadora como designer de livros indígenas, em leituras e viagens a campo, e também devido a algumas provocações do mundo da arte, do universo indígena e da sociedade em que se encontra, a pesquisadora modelou, e também, foi modelada por esta pesquisa. Após provocações, por que não apresentar um trabalho sobre livros, em formato de livro? E se não pode ser indígena, que seja então um livro de artista, para provar, talvez, à Ciência da Arte que a Arte deve sim quebrar algumas regras da Academia, ou quem sabe reformulá-las. Buscamos nesta pesquisa, construir um olhar etnográfico diante de um objeto familiar, em um contexto não familiar. O livro impresso, objeto familiar no mundo ocidental, circulando na sociedade indígena Ikpeng, contexto não familiar, comunidade indígena do médio Xingu (MT), que preserva sua cultura apesar de viver em intenso contato com a sociedade nacional. Após pesquisas, muitas novas questões dominaram o rumo deste estudo, e uma delas era descobrirmos se era correto usar a palavra alfabetização, referindo-se a alfabetização visual, e, se não o fosse, existiria uma palavra para substituí-la? Lembramos que o termo surgiu nesta pesquisa advindo do livro de Donis A. Dondis, Sintaxe da Linguagem Visual. A hipótese inicial deste trabalho era a de provar que os índios são visualmente alfabetizados, dentro de seu repertório cultural. Mas, ainda seria relevante esta questão? Donis apresenta em seu livro formas de “educar” o olhar através do estudo de elementos básicos da composição visual. Fariam sentido esses elementos em outras culturas que não a ocidental? Poderiamos utilizar o mesmo termo? Que termo então poderia substituir a palavra alfabetização?

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O que pretendíamos era apresentar um panorama da questão da linguagem visual dos livros indígenas. Não seria um ensaio etnográfico, e sim um traçado em linhas gerais mostrando a situação dos livros indígenas no país com foco nos livros da etnia Ikpeng, sua produção, circulação e linguagem visual. E, é claro, corroborar a hipótese de que os Ikpeng eram alfabetizados visualmente. Ao refletirmos novamente sobre a questão da alfabetização, acabamos por compreender quão abrangente é o termo: alfabetização letrada, alfabetização visual, alfabetização digital e alfabetização audiovisual, porém todas essas formas de compreensão têm como premissa principal, porém não única, o ato de ver. Pensar esses elementos: a escrita, a representação através da imagem, a tecnologia, o cinema e o vídeo, como foram reconhecidos e assimilados nas sociedades indígenas, pode esclarecer as questões sobre alfabetismo e linguagem visual indígena que propomos. Todos estes elementos têm, também, a visão como principal ferramenta. Esta proposta não é arte contemporânea nem é uma etnografia ou trabalho antropológico. Buscamos trabalhar em uma linha que percorre a temática da linguagem visual focada nos livros indígenas, e acabamos por transformar esta pesquisa em um objeto livresco, contendo informações visuais que não poderiam ser expressas apenas através da linguagem escrita. Uma dissertação sobre o livro, em forma de livro, utilizando uma metalinguagem, contém um “para além do objeto livresco”1, o comum, o contemporâneo, o de artista e o indígena, dando ênfase ao que este último expressa através de sua linguagem visual. Esta pesquisa carrega uma difícil missão: a de escrever a diferentes interlocutores. Escrevemos aos indígenas, pois eles poderão fazer algum proveito deste trabalho ao refletirem sobre sua sociedade e suas futuras publicações, e principalmente porque poderão ser os principais colaboradores para o enriquecimento deste trabalho. Escrevemos aos pares, artistas e designers, e tam 1

Aspas nossas.

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bém aos educadores, antropólogos e historiadores, isto porque trata-se de um tema transversal. Acima de tudo, escrevemos para a Academia. Devido à diversidade de leitores, ás vezes as palavras poderão parecer simplistas, ou em alguns casos aparecerão jargões desconhecidos para alguns e familiares a outros. Porém, percebemos que é a maneira mais interessante de gerar frutos, através de diálogos que poderão surgir e que serão tão diversos quanto os olhares de cada um destes interlocutores. Sendo assim, imaginar que escrevemos para que o próprio sujeito da pesquisa leia e contribua de forma ímpar, cria uma proximidade que pode vir a facilitar o diálogo. Esperamos, portanto que este trabalho possa proporcionar modificações na fruição - objetivo da relação “observador-obra de arte” - “leitordissertação”2. Neste contexto, a realidade diferenciada pode ser a tentativa de falar diretamente ao leitor sem meandros, apresentando a cultura indígena brasileira, tão pouco difundida, focada na temática da linguagem visual dos livros indígenas do povo Ikpeng. Os métodos foram de um aprendiz em território distante. Lá nos aproximamos das pessoas, dos rituais, das imagens e do imaginário: o material e imaterial Ikpeng se apresentava. A pesquisa de campo ocorreu concomitante ao trabalho na coordenação de audiovisual no Projeto de Documentação da Língua Ikpeng (Karib) que faz parte do Projeto de Documentação de Línguas Indígenas (Prodoclin), no âmbito de um Programa de Documentação de Línguas e Culturas Indígenas Brasileiras3. Foi um período de observação constante, os olhos da arte buscando apreender um olhar etnográfico de forma pragmática. Antes de introduzir o contexto da pesquisa é necessário destacar alguns termos que serão recorrentes ao tratar de questões indígenas. Os termos mais utilizados cotidianamente são: “índio” e “branco”, termos estes que podem vir carregados de preconceitos, mas que muitas vezes podem ajudar a diferenciação de sociedades, com o risco de desvalorizar alguma delas. 2

Aspas nossas.

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Projeto do Museu do Índio e Funai (Fundação Nacional do Índio) em parceria com a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), Fundação Banco do Brasil e Sociedade de Amigos do Museu do Índio.

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“Para muitos brasileiros brancos, a denominação tem um sentido pejorativo, resultado de todo o processo histórico de discriminação e preconceito contra os povos nativos da região. Para eles, o índio representa um ser sem civilização, sem cultura, incapaz, selvagem, preguiçoso, traiçoeiro, etc. Para outros ainda, o índio é um ser romântico, protetor das florestas, símbolo da pureza, quase um ser como o das lendas e dos romances.” (Luciano, 2006:30)

Podemos ler, como exemplo, uma música que descreve poeticamente as qualidades de um índio romântico, ela exalta o indígena, porém nos mostra essa visão atemporal. Não expressamos aqui uma crítica a música em si, apenas uma constatação de um pensamento explicitado por ela. (anexo 1) “Nasci índio. Foi aos poucos, no entanto, que me aceitei índio”, escreve Daniel Munduruku (2009:13), porém, justifica em seu livro que utilizará a terminação índio apenas naquele capítulo e posteriormente empregará o termo indígena que é o mesmo que nativo ou natural da terra. Tal qual o autor, adotaremos o termo indígena para referir-nos ao natural da terra e não-indígena para os demais habitantes da sociedade nacional. Mesmo assim, ainda não encontramos termo satisfatório, visto que não podemos retratar o restante da sociedade como não-habitantes ou não-naturais desta terra. E sim apenas como não-autóctones, mas sempre lembrando que o que se busca é destacar a diferença e não qualificá-la, aferindo-lhe juízos de mais ou menos valia. De acordo com Gallois, as trajetórias particulares destas sociedades em questão podem nos trazer conhecimentos e interpretações a respeito dessas diferenças culturais e da convivência com a nossa sociedade. Poder focar neste contexto de intercâmbio, observando as peculiaridades sinalizadas por essas sociedades, consiste em abandonar a perspectiva da distância cultural para privilegiar a da aproximação (2000:4). Ao tratar do livro na sociedade Ikpeng, pretendemos fazer a abordagem a partir deste aspecto: da aproximação cultural. Ao mesmo tempo, existe o perigo de uma armadilha dicotômica: porque para tratar antropologicamente de um objeto de pesquisa deve haver uma distância, um afastamento. Então, como trabalhar diante de uma perspectiva de aproximação? Deste ponto de vista a proposta de abordagem seria: ora o afastamento, distinguindo o que é

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externo a cultura Ikpeng e ora destacar a aproximação cultural a qual não se pode mais negar a existência. Aproximando e distanciando, um conjunto de ações foi proposto: revisão bibliográfica, observação participativa durante viagens a campo, além de entrevistas formais e informais e uma oficina para os Ikpeng com a temática do livro que foram o meio encontrado para suscitar a reflexão sobre suas produções. O contexto externo ao trabalho apresentado é um Brasil nos anos de 2009 a 2011, que abriga uma rica sociodiversidade composta por 220 povos indígenas, que falam 180 línguas e dialetos conhecidos e habitam todos os estados do país, ocupando cerca de 650 terras4, organizados em comunidades, além de habitarem as cidades. Estes povos encontram-se em diferentes situações de contato com a sociedade envolvente. Todos os indígenas são parte integrante da sociedade brasileira enquanto cidadãos, porém em algumas situações por habitarem territórios de fronteira algumas etnias vivem em um limiar. Por isso, usa-se a terminologia “povos indígenas no Brasil” e não do Brasil. Como exemplo: os Wajãpi que habitam o Amapá, Pará e a Guiana Francesa, os Yanomami em Roraima e na Venezuela e os Ashaninka no Acre e no Peru. A localidade do estudo será o Parque Indígena do Xingu (PIX), localizado no nordeste do estado do Mato Grosso, onde vivem cerca de 5 mil indígenas de 16 etnias (Ministério da Educação, 2002:7), com línguas e culturas diferentes. Na maior parte dos relatos será feita referência, quando generalizando os indígenas, a realidade do PIX, apesar de em certos momentos, esta ser a mesma em outras comunidades do país. Em outras situações, o termo ameríndio pode se fazer presente, quando referenciando de uma maneira mais abrangente às similaridades ou diferenças dos povos das Américas. (Consulte o mapa - anexo 2) Lembramos ainda que o PIX, parece ser atualmente uma exceção no território nacional. Apesar dos diferentes problemas que enfrentam as etnias que o habitam, é um lugar onde a assistência e os projetos chegam com mais facilidade do que em outras localidades do país. Além disso, dos grupos que lá 4

Instituto Socioambiental. Disponível em: <http://www.socioambiental.org/>. Acesso em: 1 ago. 2010.

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vivem nenhum deles passou pelo processo de “etnogênese5”, apesar de alguns povos terem quase sido extintos. A etnogênese é o processo de viver como “assimilado” à sociedade nacional durante um período para então, reconhecer e reivindicar seus direitos de legitimidade, sua identidade étnica indígena. O leitor pode então se perguntar por que em um universo tão amplo a escolha dos Ikpeng? A facilidade de acesso à aldeia, devido ao trabalho junto ao Projeto de Documentação da Língua Ikpeng e a diversidade de títulos publicados por eles corroborou para a decisão. A relação com os Ikpeng e seus livros ocorreu durante duas viagens a campo por ocasião da documentação audiovisual do projeto, incluindo oficinas de capacitação audiovisual para dois bolsistas indígenas e uma oficina sobre livros e ilustração ministrada para nove jovens Ikpeng com o intuito de organizar um livro de histórias tradicionais, trabalho que está em andamento, e deve ser concluído em 2011. O processo de contato com os livros indígenas ocorreu em 2004, em uma parceria da pesquisadora com Januária Pereira Mello, antropóloga, que a cada novo livro ensinava um pouco da antropologia e da cultura indígena. E, sem saber era praticado o que é conhecido como design participativo6. Entretanto é necessário esclarecer que a pesquisadora, uma artista não tão contemporânea, atuando em diversos segmentos, como artista plástica e artista gráfica, do audiovisual ao artesanato, trabalha com livros indígenas há sete anos, 5

Desde a última década do século passado vem ocorrendo no Brasil um fenômeno conhecido como “etnogênese” ou “reetinização”. Nele, povos indígenas que, por pressões políticas, econômicas e religiosas ou por terem sido despojados de suas terras e estigmatizados em função dos seus costumes tradicionais, foram forçados a esconder e a negar suas identidades tribais como estratégia de sobrevivência – assim amenizando as agruras do preconceito e da discriminação – estão reassumindo e recriando as suas tradições indígenas. Esse fenômeno está ocorrendo principalmente na região nordeste e no sul da região norte, precisamente no estado do Pará. (Luciano, 2006:28)

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Alguns conceitos de design participativo: a) O design participativo é tido como uma nova forma de atuar, mas não passa de uma maneira mais coesa e inteligente de se obter projetos de sucesso, sejam eles de quaisquer segmentos. Entendemos por design participativo a participação ativa do consumidor final (seja ele um cliente, um usuário da internet ou o leitor de um livro), em todos os momentos da manufatura de um produto, desde o projeto até a sua utilização. É como se o consumidor fosse parte da equipe e não um mero consultor quando uma equipe tem dúvidas se suas elucubrações acerca de algum aspecto daquele produto estão certas ou não. O produto será elaborado em conjunto com quem o utilizará, e o indivíduo poderá detectar erros antes que a cadeia de produção seja completada. b)

Segundo o Instituto Faber Ludens: a proposta do Design Participativo é valorizar a participação de usuários durante o processo de desenvolvimento de produtos e serviços. Através de oficinas e ferramentas colaborativas, os usuários participam ativamente da definição das características do que está sendo projetado. Design Participativo é parte da transição das Sociedades de Massa rumo às Sociedades Civis. O consumidor assume seu papel de cidadão, participa da criação de bens culturais, exercita a crítica e atua politicamente. (Instituto Faber Ludens, 2011)

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tendo executado o projeto gráfico de sete livros e assessorado o processo de dois, sendo que, nenhum deles pertencente ao povo Ikpeng. Desconhecia a produção dos livros desta etnia até a presente pesquisa. Fez os livros dos povos: Panará, Mebengokré, Tapajúna, Matses, Yawanawa e Shawadawa (Arara). Pretendemos apresentar uma análise dos nove livros Ikpeng sob o ponto de vista da linguagem visual, principalmente através da abordagem de Donis A. Dondis em seu livro Sintaxe da Linguagem Visual, passando por questões relacionadas ao processo de confecção dos livros desde a concepção da ideia até a chegada na aldeia, a sua circulação na comunidade e seu papel como novo objeto na sociedade Ikpeng. Como hipótese, apresentamos a ideia de que as sociedades indígenas, originalmente ágrafas, são comunidades alfabetizadas visualmente através de seu repertório social, imagético e cosmológico. Destaco o caso da etnia Ikpeng que ao produzir seus livros reflete a ideia de compreensão de um repertório das representações de imagens. Apresentamos o contexto da pesquisa e o perfil de quem a escreve. Nos próximos capítulos olharemos para: o sujeito da pesquisa, O Indígena; o objeto da pesquisa e a relação objeto-sujeito e sujeito-objeto, O Livro; e por fim a análise do material visual e a relação sujeito-objeto-hipótese, A Linguagem Visual. Para falarmos de indigenismo e arte indígena nesta pesquisa recorremos a Lux Vidal, Els Lagrou, Berta Ribeiro, Dominique Gallois e Antony Seeger, e especificamente sobre a questão da escrita Jack Goody e Jacques Derrida. Para o debate sobre arte e cultura Jacques Rancière, Walter Benjamin e Cliford Geertz e Eric Hobsbawm. Quando foi preciso abordar a temática do livro de artista recorremos à obra de Paulo Silveira e na questão específica da linguagem visual Donis A. Dondis e novamente, Berta Ribeiro. Recorremos a diversos autores devido à transversalidade deste tema e também devido ao ineditismo do trabalho. Não existem obras específicas sobre a linguagem visual de livros indígenas. Fez-se então necessária esta consulta a diversos autores e também a ferramenta da internet que nos preencheu com notícias atuais sobre a temática do livro e do que está acontecendo com os povos indígenas no exato momento da escritura desta pesquisa.

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Encontramos uma pesquisa de mestrado em desenvolvimento na Universidade Federal de Minas Gerais, na Faculdade de Letras, intitulada “O Livro Indígena e suas Múltiplas Grafias” de Amanda Machado Alves de Lima, orientada pela professora Maria Inês de Almeida. A dissertação irá abordar a temática dos livros indígenas, focada na questão da grafia, fará uma relação entre literatura e projeto gráfico. A ideia é lançarmos um olhar sobre a estética de um novo objeto social que é o livro nas sociedades indígenas, por meio do estudo de caso da comunidade Ikpeng. Sua linguagem visual e seu lugar social, abrindo espaço para análises de outras sociedades indígenas, e comparações entre elas, buscando compreender a consolidação do livro como algo que foi, e ainda está sendo, conquistado por esta e outras comunidades. “Porque assim como o conceito de incorporação da alteridade, enquanto processo de construção da identidade, o conceito de transformação tem grande centralidade na visão de mundo e práxis ameríndia: coisas e pessoas podem ser transformadas, domesticadas, pacificadas e incorporadas.” (Lagrou, 2009:56)

Ou seja, os hábitos ameríndios de incorporar o inimigo e trazer o que era dele para si, ou como afirma Lagrou “adquire-se poder sobre o outro ao incorporar e domesticar esteticamente a matéria-prima por ele produzida.” (2009:59) Através desta dissertação pretendemos oferecer ao leitor um espaço para refletir um pouco sobre o universo indígena, com foco nos Ikpeng, percebendo através de seus livros um pouco de suas relações cosmológicas, ancestrais e sobrenaturais. No pensamento de Louis Sullivan, em parte, entendemos o porquê da necessidade de analisar o contexto Ikpeng antes de abordar o objeto livro:

Você não pode expressar-se, a menos que tenha um sistema de expressão, a menos que tenha um sistema anterior de pensamento e percepção; não pode ter um sistema de pensamento e percepção, a menos que tenha um sistema básico de vida. (Sullivan apud Dondis, 2007:166)

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Por mais que se tente olhar para os livros Ikpeng com olhos mais limpos, a tendência é um olhar etnocêntrico. Um olhar não-indígena sob um objeto que é ao mesmo tempo livro indígena com os parâmetros básicos do que seria um livro não-indígena. Portanto, compartilharemos as observações sobre o sistema básico da vida Ikpeng para, então, adentrarmos na visualidade7 dos livros com um pouco mais de informação. Se por vezes, algum devaneio poético se irromper no texto, não levará a nenhuma perda teórica, pois as margens do papel cerceiam as palavras necessárias a uma aprovação, mas ainda estamos no universo da arte, ciência da arte! A poesia pode ser permitida. (A música, quando é lida, torna-se poesia anexo 3) Saber quebrar as regras é uma qualidade fundamental para se mudar o mundo. Se nunca, jamais, nenhuma regra fosse quebrada, muitas invenções não existiriam. E se, parte das regras são quebradas para mostrar que nem todas elas são imprescindíveis e que não houve perda no todo, que diferença poderia fazer então neste caso específico? Apresentamos então, um “livro-não-indígena-dissertação”. Esta não é uma apresentação comum, a dissertação foi adaptada às várias formas de leitura que cada interlocutor pode criar e possui elementos para instigar diferentes leituras. É um hipertexto8 reduzido, um texto dilatado, desconstruído, no qual o leitor pode navegar da maneira que melhor lhe aprouver9. É quase como navegar na internet sem um computador, através de objetos e palavras. A cada novo passo o leitor pode ir a infinitos lugares através do computador, aqui, os lugares são finitos e definidos pelas páginas impressas, porém infinitos nos links10 da imaginação de cada um. Leitor, tome posse do leme e boa viagem.

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Visualidade abrange o ato de ver e compreender códigos culturais. (definição nossa).

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Hipertexto segundo o dicionário Michaelis: sistema de organização da informação, no qual certas palavras de um documento estão ligadas a outros documentos, exibindo o texto quando a palavra é selecionada. (Michaelis, 2011)

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Lembramos apenas que aprouver trata-se da conjugação na terceira pessoa do futuro do subjuntivo do verbo “aprazer”, que significa agradar, dar prazer.

10

Link é uma palavra advinda do uso da internet que acaba por ganhar significado no cotidiano, utilizada amplamente sem tradução no português, significa as conexões entre assuntos, entre sites, entre palavras. Quando se encontra entre palavras acaba por tornar-se um hipertexto (definição nossa).

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No xingu, o velho é dono da história e a criança é dona do mundo. Orlando Villas-Bôas

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1. O Indígena Os primeiros habitantes autóctones do continente americano foram chamados de índios ou indígenas como resultado de um mero erro náutico. Em 1492, o italiano Cristóvão Colombo, em nome da Coroa Espanhola, fazia uma expedição rumo às Índias. Sua frota ficou à deriva por muitos dias devido ao mau tempo. Então, avistaram terra na região continental, que era o que hoje conhecemos como continente americano, porém Colombo imaginou que fossem as Índias. Por tal motivo colocou o apelido genérico nos habitantes destas terras de “índios” ou “indígenas”, nomenclatura que é utilizada até os dias de hoje. (Luciano, 2006:29,30) E o que é ser indígena hoje? Não seríamos, nós os brasileiros um pouco indígenas, diante da miscigenação de nossa pátria? “As pessoas sabem que os índios são ‘os verdadeiros donos da terra’ e conseguem até se identificar com sua cultura, mas não assumem sua indianidade logo de início, talvez por ainda pensarem no nativo como sinônimo de selvagem. Nelas está incutida uma imagem que, na verdade, foi sendo construída aos poucos.” (Munduruku, 2009:20)

Ser indígena então seria um significado atribuído pelo outro, uma vergonha. Uma definição do ano de 1986 publicada pelas Nações Unidas, esclarece (ou tenta esclarecer) o que é ser indígena: “...As comunidades, os povos e as nações indígenas são aqueles que, contando com uma continuidade histórica das sociedades anteriores à invasão e à colonização que foi desenvolvida em seus territórios, consideram a si mesmos distintos de outros setores da sociedade, e estão decididos a conservar, a desenvolver e a transmitir às gerações futuras seus territórios ancestrais e sua identidade étnica, como base de sua existência continuada como povos, em conformidade com seus próprios padrões culturais, as instituições sociais e os sistemas jurídicos. Entre os povos indígenas existem alguns critérios de autodefinição mais aceitos, embora não sejam únicos e nem excludentes: continuidade histórica com sociedades pré-coloniais; estreita vinculação com o território; sistemas sociais, econômicos e políticos bem definidos; língua, cultura e crenças definidas; identificar-se como diferente da sociedade nacional e vinculação ou articulação com a rede global dos povos indígenas.” (Luciano, 2006:27)

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Pedro Álvares Cabral nos idos de 1500, ao aportar nestas terras, hoje conhecidas como Brasil, encontrou, segundo estimativas demográficas, no mínimo 5 milhões de indígenas. Para contextualizar apresentamos dados de 2001 do IBGE11, os indígenas hoje, não passam de pouco mais de 700 mil em todo Brasil. Já de acordo com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) seriam pouco mais de 300 mil. Essa grande diferença entre os números acontece devido a métodos distintos de coleta de dados. As duas últimas instituições levam em consideração apenas as populações reconhecidas e registradas por elas (Luciano, 2006:27), desconsiderando o fenômeno da etnogênese, cada vez mais comum. Após um panorama histórico é importante refletirmos sobre outras questões concernentes ao mundo indígena. “O processo de reafirmação das identidades étnicas, articulado no plano estratégico pan-indígena por meio da aceitação da denominação genérica de índios ou indígenas, resultou na recuperação da auto-estima dos povos indígenas perdida ao longo dos séculos de dominação e escravidão colonial. O índio de hoje é um índio que se orgulha de ser nativo, de ser originário, de ser portador de civilização própria e de pertencer a uma ancestralidade particular.” (Luciano, 2006:32,33)

A afirmação de Gersem dos Santos Luciano é correta, porém, não podemos deixar de lhe fazer certas ressalvas. Sim, hoje passa a existir um orgulho ufanista dos povos indígenas e uma maior percepção do que isso significa. Isso se deu em função do outro, de se reconhecerem uns aos outros como indígenas e de compartilharem dificuldades e costumes. Além disso, não podemos esquecer que a sociedade brasileira tão preconceituosa, ainda carrega a ideia do índio selvagem, índio preguiçoso e índio romântico. E quando em contato com a sociedade nacional, os indígenas enfrentam todo tipo de preconceito e muitas vezes não são considerados cidadãos e sua cultura é ridicularizada. Podemos citar um exemplo grave, do indígena Pataxó queimado vivo na cidade de Brasília no ano de 1997.

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Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

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“Os estereótipos disseminados no imaginário social, as caricaturas veiculadas em programas humorísticos, tudo isso implica processos culturais complexos que repercutem fortemente na educação, tanto na escola quanto na família” (Munduruku, 2009:11)

Ainda segundo Munduruku, parte desse estereótipo indígena é construído através de conceitos que “descaracterizam o outro como possuidor de interesses próprios, vida e conceitos” (op. cit., 2009:21). Essa descaracterização está implícita em livros didáticos e apostilas e reserva ao indígena um dia no ano, onde de maneira generalizada sem qualquer conhecimento sobre as especificidades étnicas, se comemora o dia do índio. (E todo dia era dia de índio anexo 4) Ou seja, o indígena no Brasil vive uma situação extremamente delicada, por um lado, setores da sociedade passaram a estimular as identidades étnicas, de outro, o preconceito e a cultura não-indígena invadem as aldeias, e, além disso, eles convivem com desmatamento, invasão e disputa de terras, alimentação escassa em certas épocas do ano devido à exploração desenfreada de suas terras entre outros problemas de ordem similar. O que lhes daria força para manter sua comunidade diante de tantas adversidades? Concordamos com Munduruku quando explica que “as sociedades tradicionais são filhas da memória e a memória é à base do equilíbrio das tradições.” “Para compreender a sociedade tradicional indígena é preciso entender o papel da memória na organização da trama da vida.” (op. cit., 2009:28) E o que poderíamos entender por memória? Podemos fazer uma distinção com relação às sociedades indígenas e a sociedade nacional, a memória não tem um papel preponderante na atualidade brasileira, enquanto que nas sociedades indígenas ela é um pilar de sustentação da identidade e do auto reconhecimento comunitário. E quando, Hobsbawn se refere às tradições inventadas desde a revolução industrial, definindo-as como se fossem “o contraste entre constantes mudanças e inovações do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira imutável e invariável ao menos alguns aspectos da vida social...”

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(1997:10) podemos sim, entender este movimento definido por ele como uma busca de fôlego dos indígenas para manterem suas memórias, suas raízes. Não cabe aqui, discutir o teor de possíveis “tradições inventadas” em decorrência de seu contato com a sociedade nacional e com outras sociedades indígenas. Hobsbawn entende por tradição inventada “...um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição. O que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado (1997:9)

Apenas se faz necessário destacar esse movimento que ocorreu desde o contato e ainda ocorre. Trata-se da busca de equilíbrio entre os padrões sociais internos e externos e que foi fundamental para que alguns costumes sobrevivessem até os dias atuais. (Uma história sobre tradição familiar - anexo 5) Entretanto não devemos confundir a adaptação que os povos autóctones de tradições genuínas possuem com as tradições inventadas. “Não é necessário recuperar nem inventar tradições quando os velhos usos ainda se conservam” (op. cit.,1997:16). E, não podemos esquecer que a noção de passagem do tempo é diferente para os povos, principalmente quando falamos de povos ágrafos que não trazem a memória representada através da escrita. “Salvaguardar seu passado é uma responsabilidade inerente a cada povo, não somente para consigo mesmo, mas com a humanidade inteira. Nenhum povo, pode deixá-lo perecer antes de haver tomado consciência, inteiramente, de sua originalidade e de seu valor, e antes de tê-lo memorizado. Isto é uma verdade geral, porém mais ainda no caso desses povos que se encontram na situação privilegiada de viver seu passado no momento exato em que, para eles, um futuro diferente se delineia.” (Levi-Strauss apud Ribeiro, 1989:10,11)

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1.1 O pensamento indígena Entendemos que, ainda usamos, implicitamente, nessa pesquisa a separação, nós, não-indígenas e eles, indígenas. E, é preciso focar no aspecto dos livros indígenas, que são uma produção conjunta, com uma roupagem nãoindígena que passa a tomar forma indígena a partir do momento no qual as comunidades tomam posse desta ferramenta, uma publicação híbrida. Apesar de buscarmos uma forma de pesquisa baseada na aproximação, ainda podemos incorrer em deslizes etnocêntricos. “O que há de perturbante nas categorias é o seu enraizamento numa divisão nós/eles simultaneamente binária e etnocêntrica, já que estas características são limitativas à sua maneira. Por vezes, empregamos ainda as categorias simplistas da nossa taxonomia popular e, quando elas são abandonadas, substituímo-las por algum sinônimo polissilábico. Falamos em termos de primitivo e avançado, como se as próprias mentes humanas diferissem na sua estrutura, da mesma maneira que as máquinas de concepção mais recente ou mais antiga.” (Goody, 1988:11)

Há bem pouco tempo atrás, o pensamento era, eles são primitivos, nós somos avançados, eles selvagens, nós domesticados, eles... O fato é que temos que partir de algum ponto e se vamos falar de diferenças, é mais fácil situarmos o leitor desta forma e também é mais simples pensar assim da perspectiva de um outro, porém novamente enfatizamos que buscamos não aferir menos valias a essas diferenças. “Classificar (oposto a não classificar) possui pois um valor próprio, seja qual for à forma que a classificação possa tomar.” (LeviStrauss apud Goody, 1988:15) “... as dicotomias devem, quanto a mim, ser tratadas como variáveis, quer em relação às sociedades, quer em relação às suas características. Uma dicotomização constitui muitas vezes uma etapa preliminar útil para fins descritivos; mas, uma vez aceite, torna-se necessário ir mais longe, procurando elucidar os eventuais mecanismos que estão na origem das diferenças, fase que geralmente envolve modificar ou até rejeitar, a dicotomia original.” (Goody, 1988:51)

Existe uma forma dual de se referir as sociedades indígenas. Usualmente como primitivas em contraponto as avançadas, ou frias (quentes), ou selvagens (domesticadas). Muitos autores se utilizam destas ou de outras dua

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lidades, tais como: Levi-Strauss, Durkheim e Lévi-Bruhl, e estas são terminações que foram úteis a diferenciação, bem como levantaram aspectos que foram, ou são, fundamentais ao entendimento de tais sociedades e de suas formas de pensamento. Mas, não podemos simplesmente, conferir juízos dicotômicos ao que seria o pensamento indígena brasileiro da atualidade. Não existem fórmulas, porém, delinear o que seria o pensamento de uma sociedade não é tarefa fácil, mas a partir do que já foi construído, e, baseando-se na obra de Jack Goody, Domesticação do Pensamento Selvagem, podemos falar um pouco sobre o pensamento Ikpeng. Notamos que, entre as informações levantadas por ele e a pesquisa atual, há um lapso de tempo no qual a relação com a sociedade envolvente e outros povos indígenas se acentuou e as formas de comunicação foram se modificando radicalmente. Os Ikpeng têm a característica de um contato efetivo tardio, que ocorreu em 1964, ocasião em que estavam quase dizimados por guerras e doenças. Os 40 indígenas foram levados ao posto Leonardo nos limites do Parque pelos irmãos Villas-Bôas. Lá conviveram com outras etnias até serem transferidos para o posto Pavuru. Não foi uma convivência fácil devido às guerras travadas anteriormente. Atualmente, somam cerca de 400 indivíduos divididos em duas aldeias, possuem sua própria escrita, possuem uma escola em cada aldeia e tem acesso a internet, saúde e a itens fornecidos pela sociedade nacional, como televisão, filmes e músicas e toda sorte de artigos. Os Ikpeng, assim como os demais indígenas no Brasil, passaram a tomar posse de diferentes ferramentas de aprendizado e comunicação fortalecendo suas comunidades e sua identidade étnica. E, ainda, fortalecendo uma identidade indígena nacional a partir da reverberação de outros povos indígenas que chega através dos meios de comunicação aos quais os indígenas passaram a ter acesso. Não podemos esquecer que sempre existiram intercâmbios entre os povos ameríndios. Alguns eram de apropriações relacionadas diretamente a guerras, outros a trocas entre comunidades próximas. E, Goody menciona que “se quisermos, analisar as modificações que afetaram o pensamento humano, somos forçosamente obrigados a abandonar as dicotomias.” (1988:19) Para ele o nosso ponto inicial deve ser a aquisição

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da língua, por ser um atributo exclusivamente humano e por ser crucial no que se refere a todo o comportamento normativo e a constituição de instituições. “Os fundamentos de noções científicas tão gerais estão muito mais difundidos nas sociedades humanas do que as nossas dicotomias habituais poderiam levar a pensar,isto independentemente de essas dicotomias implicarem ou não uma noção de evolução (da magia para a ciência).” (op. cit., 1988:50)

O autor faz uma ligação direta à relação da escrita com as formas de pensamento, e, mais ainda, das formas de comunicação com a cognição. Refletindo sobre o pensamento Ikpeng, encontramos um trecho que explica um pouco da criação do tesauro12 da cultura Ikpeng. Projeto que está ainda em processo, e que acompanhamos algumas das discussões sobre a construção da ideia do que seria essa ferramenta, apesar de não estarmos presentes nas reuniões. “Os mecanismos de busca foram construídos primeiro na língua Ikpeng para depois serem traduzidos para o português. Os tesauros são construídos a partir de uma norma internacional. Meu trabalho foi explicar a metodologia de construção e fazer o papel de facilitador – sem dominar, à época, uma só palavra em Ikpeng. O tesauro foi intitulado Ukpamtowonpïn: ugwa witpot, que numa tradução literal significa ‘Origem do Mundo: encontre as palavras’. Em português ficou: ‘Origem do Mundo: Tesauro da Língua e Cultura Ikpeng’, conta Osvaldo Gomes.” (Instituto Catitu, 2011)

As discussões sobre quais palavras em Ikpeng iriam preencher os principais mecanismos de busca eram longas, e apesar de não participarmos delas, soubemos que em certo dia demoraram uma tarde inteira para escolherem a palavra que significaria tempo. Ou seja, tradicionalmente, este conceito não era necessário até o momento, já que não existia palavra para designá-lo. A ideia da equipe composta por sete Ikpeng e dois membros do Instituto Catitu era que esse banco de dados, o tesauro, expressasse a visão de mundo Ikpeng, por isso, foram eleitos sete grandes temas para iniciar a construção da ferramenta. 12 O tesauro será um banco de dados da cultura Ikpeng. Buscam agrupar tudo o que foi produzido sobre eles e unir ao conhecimento que está em produção atualmente, escrito e audiovisual, sobre si próprios.

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Kawo: Relativo ao tempo (cronológico e meteorológico); Naplïngo: Relativo às coisas (de uso individual); Orem: Relativo aos rituais (festivos, de pesar ou de guerra); Otxit: Relativo à aldeia e ao território; Poryan: Relativo aos alimentos e hábitos alimentares; Ugwawïtpot: Relativo ao povo Ikpeng e as funções sociais dentro do grupo ou em relação ao grupo; Wonkinom Mïran: Relativo à mitologia Ikpeng, especialmente aos mitos de origem. (op. cit., 2011)

Também acompanhamos durante nossa estadia na aldeia os jovens Ikpeng reunindo materiais, junto aos mais velhos, para compor o banco. Além disso, no momento, estão solicitando formalmente a pesquisadores e instituições que disponibilizem documentação acerca de seu povo para compor a base de dados. Podemos perceber, assim como Goody comenta em seu texto, a importância dos procedimentos concretos nas sociedades sem escrita, (1988:23) e que, o que ocorre quando o alfabetismo e os processos de educação passam a fazer parte destas sociedades é uma mudança orientada para uma maior abstração no pensamento e descontextualização do conhecimento. (Bruner apud Goody 1988:23) A partir do momento em que são construídos os conceitos para a criação de sua própria educação, tais como currículo escolar e materiais didáticos, incluindo os livros, percebemos que essas comunidades passam a transitar entre a ciência do concreto e a ciência do abstrato. Goody acha desnecessário fazer do homem prisioneiro dos conceitos por ele forjados, porque eles não dariam conta dos aspectos generativos de sua cultura. (1988:20) Porém, sugere que examinar os meios de comunicação e as tecnologias do intelecto pode ajudar a compreender um pouco melhor o pensamento humano. (Ibdem)

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Citamos, algo que pudemos compreender acerca do pensamento atual Ikpeng, de acordo com nossas observações. Primeiramente sua percepção acerca de sua própria cultura e sua valoração, os incentiva a serem mais flexíveis na recepção do que chega de fora, não apenas no sentido da posse do conhecimento mas de uma instrumentalização para a utilização de novas formas de comunicação. O autor ao falar sobre a mudança de um padrão social, explica que sua sobrevivência ocorre devido à utilidade de tal mudança para a comunidade. (Goody,1988:21) Poderíamos trocar a palavra por usabilidade, que recorre não só ao uso, mas a facilidade no uso de determinada coisa. “Não se trata de uma questão menor, o que aqui se passa é uma parte e uma parcela da tendência das culturas orais para a homeostase cultural. As inúmeras mutações de cultura que emergem do curso cotidiano da interação verbal ou são adotadas pelo grupo em interação ou eliminadas no processo de transmissão de uma geração a outra. Se uma mutação é adotada, a assinatura individual (é difícil evitar a metáfora da escrita) tende a apagar-se, ao passo que, nas culturas escritas,o fato de se saber que uma obra perdura no tempo, apesar das pressões comerciais e políticas, contribui freqüentemente para estimular o processo criativo e encorajar o reconhecimento da individualidade.” (Goody, 1988:24)

Essa homeostase cultural13 nos parece apenas aparente. Na verdade é um meio de controle das sociedades ditas simples para a turbulenta entrada de padrões que podem modificar instâncias sociais e que são caracterizadas como fundamentais ao modo operante de tais sociedades. Normalmente, tais padrões considerados são ligados diretamente às formas de comunicação. Por isso, percebemos uma grande regulação por parte de anciãos, e o que nos parece estático, na verdade é “uma forma de sobrevivência ao novo” 14. Não percebemos diferenças significativas de cognição durante nossa convivência em campo. As barreiras linguísticas foram transpostas e sentimos estar diante de uma sociedade que está em uma fase de mudanças significativas ligadas diretamente as formas de comunicação, tal qual a sociedade en 13 Podemos entender a homeostase cultural como um tipo de estabilidade cultural que ocorre a despeito de alterações exteriores. (Michaelis 2011) 14

Aspas nossas.

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volvente que modifica padrões baseando-se na era da internet. A sociedade Ikpeng assimila quase que ao mesmo tempo, a escrita, a escola, o vídeo, o livro, a internet, todos num espaço de tempo de cerca de vinte anos. Que mudanças cognitivas trarão e quais transformações já estão enraizadas no cotidiano? “Algumas das diferenças gerais registradas nas abordagens binárias podem efetivamente ser atribuídas às novas potencialidades da cognição humana criadas pelas transformações verificadas nos meios de comunicação.” (Goody,1988:27)

As comunidades indígenas são diferentes e se configuram como tal exatamente por exaltar essas diferenças. Apropriam-se de suas histórias através do vídeo, do livro, da escrita e da escola, chegando a modificarem suas denominações e operando com a escolha do nome que se identificam. Como exemplo o povo Ikpeng que antigamente era denominado Txicão. Muitos outros povos também modificam suas denominações que na verdade lhes foram impostas por outros povos. Além dos Ikpeng, temos os Suiá, hoje em dia Kisedje, os Kaiabi que atualmente se autodenominam como Kawaiweté. A partir do que expusemos, podemos demonstrar que o pensamento indígena está em constante transformação, não somente no momento após o contato com a sociedade envolvente, afinal, chega a ser egocêntrico ao invés de etnocêntrico pensar que uma coletividade pudesse ficar parada no tempo sem modificar quaisquer aspectos sociais. Porém, infelizmente, este pensamento de atemporalidade com relação aos grupos indígenas é um dos mais consolidados no imaginário brasileiro, que ainda acredita que ser índio é apenas andar sem roupas e viver na floresta.

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1.2 O indígena Ikpeng

Os Ikpeng da aldeia Moygu15 são cerca de 254 indivíduos, o restante vive em outra aldeia, a Tupará, distante mais ou menos 3h de barco. Sua principal festividade é a Moyngo, o ritual de iniciação masculina onde os meninos entre 8 e 10 anos recebem a tatuagem no rosto. O desenho possui 3 linhas paralelas inclinadas e duas perpendiculares acima e abaixo, levemente arredondadas. Tal padrão evoca as dobras cutâneas eriçadas das penas negras que cercam o olho da arara (ISA, 2010). (Foto de um jovem tatuado - anexo 6) Durante muito tempo os Ikpeng carregaram a condição de atacantes e temíveis guerreiros entre os povos do Xingu. A tradução da palavra Ikpeng é marimbondo. Dizem eles, que é porque atacam em bando durante a guerra. Essa condição se modificou, mas não completamente. As artes da guerra ainda têm um papel predominante na cultura deste povo. Seu primeiro contato data de 1964, mas o processo de pacificação começou com a sua mudança para o PIX que ocorreu em 1967. De acordo com o Instituto Socioambiental a pacificação representa uma ruptura determinante na história desse povo, contribuindo para instaurar uma nova relação com as outras etnias da região (ISA,2010). Chegaram ao PIX trazidos pelos irmãos Villas-Bôas. Eram em pequeno número e estavam debilitados devido a muitas guerras e doenças dos nãoindígenas. Deixaram para trás sua terra ancestral às margens do rio Jatobá, território valioso para a etnia. E, segundo o ISA o principal objetivo dos Ikpeng ultimamente, tem sido a reconquista de seu território anterior à transferência para o Parque. O Jatobá está localizado a sudoeste do PIX e fora dos seus limites. Organizaram duas expedições ao local e foram filmadas e fotografadas para que toda a comunidade pudesse assistir. Segundo Almeida, os Ikpeng querem cerca de 270 mil hectares onde a soja já avançou. Segundo imagens de satélite, 30% do território estão ocupados por lavouras do grão. A batalha judicial com agricultores e fazendeiros é iminente. (Almeida, 2011)

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Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Relatórios Demográficos; dados referentes a 1º de julho de 2009. Disponível em: <http://www.funasa.gov.br/internet/desai/sistemaSiasiDemografiaIndigena.asp>. Acesso em: 20 ago. 2010.

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"Eu preciso retornar lá. Eu quero morrer naquele lugar. Eu quero ser enterrado no túmulo da minha família. Eu não quero morrer aqui. Eu quero morrer lá, discursou o cacique em um sábado ensolarado, sob tradução do jovem líder da Associação indígena local, Kumaré Ikpeng.” (Almeida, 2011)

Para Fenélon “os Mehináku concebem a existência como luta sem trégua contra a morte, destruidora das vidas animais e vegetais” (1988:15) Seria descuidado de nossa parte, tentar reduzir a concepção de vida dos Ikpeng, igualando-a a dos Mehináku. Porém, parte desta concepção se aplica aos Ikpeng. Mas podemos perceber mudanças significativas neste modo de enxergar a vida devido ao acesso às tecnologias e benfeitorias não-indígenas. A morte e o cotidiano difícil ainda permanecem, mas esta concepção de luta sem trégua parece em alguns momentos se sutilizar, em outros, como no caso da luta para reconquistar o território do Jatobá parece nunca deixar de estar presente no modo de vida Ikpeng. Os Ikpeng apesar de terem assimilado festas e costumes de outras etnias do Xingu, valorizam muito tudo que é genuíno de sua cultura, e distinguem objetos, crenças e costumes que não lhes pertencem originalmente, seja através da fala, seja no tratamento diferenciado que aplicam a estes. A comunidade social Ikpeng é um grupo moralmente solidário em relação ao exterior, que fala uma só língua (tximna mïran) e costuma ser valorizado através da designação tenpano “gente” (ugwontowo), “conjunto dos homens”, sobretudo em contextos cerimoniais e solenes, em que a humanidade essencial do “nós” se opõe à ambígua humanidade do estrangeiro-inimigo. (Taffarel, 2010)

A aldeia Moygu nos surpreende pela sutil ocupação diante do todo; quase como se pedissem licença à floresta para ocupar aquele espaço. Podemos distinguir “três grandes níveis de organização na sociedade Ikpeng: o povo, a casa e o fogo.” (Ibdem)

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As malocas pertencem ao segundo nível da sociedade Ikpeng, o grupo doméstico. São em forma de elipse e compõem também uma linha elíptica com a casa de convivência (conhecida como mungnie ou mïngye16, que, para outros povos xinguanos é a casa dos homens) e a aldeia é no formato circular. (Fotos das casas - anexo 7) Cada uma das várias famílias nucleares ou unidades domésticas coresidentes estão agrupadas em torno de um fogo, que serve para cozinhar e aquecer nas noites frias. Os que compartilham esse “fogo” constituem o terceiro nível reconhecível da sociedade Ikpeng, geralmente composto pelo marido, esposa e os filhos (biológicos e eventualmente adotivos). (Taffarel, 2010)

Ao centro, no local do fogo, na direção da porta, monta-se o que podemos entender como cozinha ou local dos afazeres. Lá, as mulheres colocam o tacho para a feitura do biju e passam o tempo descascando, ralando e beneficiando a mandioca, que é à base da alimentação Ikpeng juntamente com o peixe. O centro da casa e as laterais próximas às portas são os locais preferidos ao trabalho devido à iluminação farta, já que as ocas são escuras e em sua maioria não possuem janelas. “Nos círculos cerimoniais os itinerários da dança rodam entorno de dois pontos, dos quais um é o centro da casa e o outro é envolta do mïngye (casa dos homens ou do conselho). Mesmo quando a aldeia é constituída de várias casas e o mïngye fica a quarenta metros da casa da festa ou do cacique (como acontece na aldeia atual), cada casa compõe com ele um circulo de dança.” (Supracitado, 2010)

Nas casas Ikpeng não existem divisões, são improvisadas quando necessário ou quando as meninas púberes menstruam e precisam ficar em regime de reclusão. Normalmente prende-se um pano ou plástico isolando uma área da casa, local onde a jovem ficará até que termine o período de reclusão. Porém, para a compreensão do espaço, podemos imaginar uma divisão da casa em três partes, com uma parte ao centro. Nas duas extremidades dispõemse as redes presas às madeiras que alicerçam a maloca, e, nas paredes organizam-se pendurados quaisquer tipos de utensílios. Por vezes, percebíamos 16

Espaço atualmente denominado de mïngye kurotxiranpot casa de conselho.

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alguma mesa, normalmente alta, que servia a objetos maiores e era usada para a televisão e aparelhos eletrônicos. Encontramos, também, bancos de madeira pequeninos e baixos que servem a adultos e crianças. A privacidade não é comum na casa Ikpeng. Todos circulam livremente nesta construção, sem divisões, e com apenas uma porta, às vezes com duas, uma em frente à outra. São sempre povoadas por muitas crianças brincando e aves de estimação tais como gaivotas, papagaios, galinhas, entre outros animais. Detalhe curioso que chama a atenção são as pequeninas pulseiras que adornam as patas das aves para identificá-las e enfeitá-las.

“A casa não privilegia um tipo de relação social, antes contém todos os laços sociais existentes também entre habitantes de casas diferentes, embora de modo mais denso. Assim, é mais comum que as mulheres de uma casa vão colher os tubérculos de mandioca e preparar o beiju juntas. Do mesmo modo, os homens co-residentes costumam caçar e pescar em conjunto.” (ISA, 2010)

O espaço Ikpeng abrange a aldeia Moygu e o Posto Pavuru. As divisões sociais que compõem o espaço territorial Ikpeng observadas durante o trabalho de campo foram: a comunidade, a associação, a escola, a área de saúde e atualmente a casa de cultura Mawo, divididos entre aldeia e posto. (Foto da Mawo - anexo 8) A comunidade é composta por todos os cidadãos Ikpeng, sejam eles jovens, crianças, adultos ou idosos. As decisões de importância são acertadas em reuniões na casa de convivência. Normalmente duram o dia inteiro e tratam de diversos assuntos. Delimitada a pauta, a fala é sempre na língua materna, traduzida para o português quando necessário. (Reunião na Mïngye - anexo 9) A Associação cuida de todos os assuntos relacionados com a sociedade externa. É um órgão fundamental, porque funciona como elo entre todas as outras instâncias sociais: a comunidade, a escola, a área de saúde, a Mawo e a sociedade nacional. A saúde, a escola e casa de cultura Mawo estão instaladas no espaço do posto Pavuru e a saúde e a escola possuem arquitetura de alvenaria, já a Mawo é uma casa de madeira com telhado plano de duas águas. A escola e a saúde ocupam um espaço paralelo ao rio Xingu. No entorno, com uma res-

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guardada distância temos casas do tipo kaiabi que abrigam alguns professores, o chefe do posto e funcionários da saúde. Em uma pequena sala da escola fica o local de acesso a internet e em uma sala pertencente ao conjunto da saúde encontra-se a sala do rádio, ambos relacionados a comunicação externa. (Fotos escola - anexo10) Pela divisão espacial entre posto e aldeia, percebe-se que o posto se presta a assuntos externos a comunidade ou que possuem relação na direção interno-externo, enquanto o território da aldeia trata do que é inerente a comunidade ou dos assuntos direcionados de forma externo-interno, ou simplesmente internos. (Foto de jovens meninas no Pavuru - anexo 11) Os Ikpeng moldam e constroem a aldeia e ela molda os Ikpeng; o território possui regras naturais e sobrenaturais, fronteiras visíveis e invisíveis, que podem até influenciar a compreensão e formação das hierarquias sociais. Neste território, a escola, a saúde e a casa de cultura Mawo são construções nos moldes não-indígenas, não seguem a arquitetura Ikpeng ou sequer xinguana. Segundo Hall, uma diferença entre as culturas é a criação de extensões de diferentes traços comportamentais e anatômicos do organismo humano no território. E por isso, para ele, quando ocorrem “empréstimos” transculturais os itens devem ser adaptados, caso contrário podem entrar em contradição (2005:134). Nos Ikpeng é interessante perceber que essas construções não alcançam a aldeia, e mesmo compondo o cotidiano não entram em choque por pertencerem ao posto. O território natural e sobrenatural da aldeia Moygu fica, assim, preservado. Ainda de acordo com Hall, a relação entre o homem e a dimensão cultural é tal que tanto o homem quanto seu meio ambiente participam de um modelamento mútuo (2005:10). Pensando o espaço como uma construção cultural que molda e é moldada, entendemos o território Ikpeng como algo em constante transformação. O cotidiano e as tarefas possuem uma clara divisão social e de gênero. As mulheres cuidam da casa, da comida, dos filhos e das roças, normalmente das colheitas, mas também trabalham em projetos de coleta de sementes para reflorestamento e produzem objetos e tinturas corporais. Alguns podem ser comercializados em pequena escala (a maioria, parece-nos que provém o uso

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pessoal e familiar). Além disso, tem voz nas reuniões comunitárias. (Fotos de mulheres separando sementes - anexo 12) Já os homens têm um papel provedor: caçam, pescam, constroem e consertam. Também vão para a roça plantar e confeccionam armas, adornos e utensílios. Tornam-se professores, agentes de saúde, cineastas indígenas e trabalham em funções do Posto cozinhando e fazendo a limpeza. São eles que acessam a internet e que possuem o acesso às tecnologias e às viagens com mais facilidade do que as mulheres. O cotidiano feminino é mais interno com atividades relacionadas à comunidade, salvo algumas exceções que são cozinheiras ou cineastas entre outras funções. (Uma poesia de Manoel de Barros anexo 13) Com relação à organização social, os Ikpeng praticam a poliginia e a poliandria, ou seja qualquer um dos cônjuges pode ter mais de um marido ou esposa. Porém, as mulheres podem ter mais de um cônjuge desde que este seja irmão de seu marido, e no caso dos homens aplica-se a mesma regra. Apenas, podem casar-se com irmãs de sua esposa. Ambos os cônjuges também partilham do fogo. Os casamentos se dão somente com primos de segundo grau sanguíneo. Freqüentemente, os parentes de sangue e os de aliança não são diferenciados, por isso o parentesco dos Ikpeng não implica necessariamente ancestralidade, apesar de todos serem parentes. (Mito Kamaiurá anexo 14) Não há entre os Ikpeng uma noção de linhagem, pois um filho descende sempre de seu pai e uma filha descende sempre de sua mãe. A concepção propriamente dita resulta da cópula, mas o feto masculino (ugwon) compõe-se unicamente da substância espermática. Por isso, é necessário alimentar continuamente o crescimento do embrião por meio de relações sexuais durante a gravidez. (Taffarel, 2010)

A criança é criada livre e só é cobrada em seu discernimento do que é certo e errado a partir de sua iniciação (entre 8 e 10 anos). Os meninos passam pelo ritual da tatuagem com esta idade, a festa Moyngo. Porém, de acordo com o professor Ikpeng Korotowï Taffarel (2010), em sua pesquisa sobre a festa, antigamente este ritual era comum também a meninas. Os mais velhos têm a faculdade da sabedoria como destaque. São eles que atualmente trazem todo tipo de conhecimento aos mais jovens, que em

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suas pesquisas escolares, os entrevistam. São sempre solicitados em diversas situações que necessitam de informação e, também, são fundamentais nos processos decisórios da comunidade. Os Ikpeng possuem uma tradição de mudar de nome em diversas situações durante a vida, chegam a carregar cerca de quinze nomes. (Os nomes em Ikpeng - anexo 15) Estas informações advêm da nossa observação participativa, em curtos períodos de tempo na aldeia. E, como o processo de conhecimento da vida social sempre implica um grau de subjetividade e que, portanto, possui um caráter aproximativo e não definitivo. (Geertz apud Velho,1981:129) As informações adquirem um caráter de aproximação proporcional ao tempo de dois meses de convivência em campo e pouco mais de um ano de contato.

A anciã Airé com netos e bisnetos que acompanhavam uma das sessões filmadas com ela.

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1.2.1 As viagens a campo

As duas pesquisadoras percorreram um trajeto de cinco horas de carro por uma estrada de terra que cruzava algumas grandes fazendas, navegaram por mais cinco horas pelos rios Suiá Missu e Xingu em uma voadeira até avistarem a beira da aldeia Moygu, que na verdade era beira do posto Pavuru. (Fotos do rio Xingu - anexo 16) Foram duas viagens a campo, cada uma com estadia de aproximadamente um mês. A pesquisadora viajou em companhia da linguista Angela Chagas e ficaram hospedadas na maloca que era usada para hospedar pesquisadores e onde normalmente ficava a equipe do Instituto Socioambiental. Esta casa ficava no posto Pavuru distante dez minutos a pé da aldeia velha e uns quinze ou vinte minutos da aldeia nova que estava quase terminada quando as pesquisadoras visitaram os Ikpeng em 2010. A casa não diferia das malocas nas quais os Ikpeng moravam a não ser pelo fato de possuir um fogão e uma mesa. Dormiam na rede e o banheiro pertencia à casa da saúde, que ficava bem próxima a maloca das pesquisadoras. (Foto da casa - anexo 17) Os primeiros dias da primeira viagem foram mais difíceis porque era o primeiro campo da pesquisadora e porque aguardavam a aprovação do projeto pela comunidade. O que foi importante para a pesquisadora foi poder contar com a experiência das educadoras do ISA que no dia-a-dia ensinavam a ela como se portar na aldeia e lidar com alguma desconfiança inicial, e completamente natural, que poderia existir. Aos poucos as pesquisadoras foram entendendo como era o dia-a-dia da sociedade Ikpeng, apesar de precisarem ainda de muito tempo para compreendê-los. E, devagar, se adaptaram ao espaço do posto e da aldeia e começaram a trabalhar diretamente com os indígenas. Eles falavam português fluente e somente os mais velhos não falam a língua fluente e utilizam mais a língua materna. Os Ikpeng possuem um bom humor invejável que os ajuda a enfrentar as dificuldades cotidianas. (Fotos da festa e de pinturas no rosto anexo 18)

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Diariamente a rotina era: acordar cedo, banhar, fazer café e começar a trabalhar. Parar para o almoço e um pequeno intervalo, banhar e voltar a trabalhar até o fim do dia, banhar novamente e cozinhar, conversar e organizar o material documentado e dormir. Muitas vezes as conversas eram informais sobre os acontecimentos da aldeia, as histórias, os perigos, as diferenças dos sistemas de vida. As onças era um tema recorrente. (História Kaiabi “A coruja e a onça” - anexo 19) Trabalhar em uma aldeia, significava trabalhar 24 horas por dia: cozinhar de manhã, no almoço e a noite, cuidar da casa, do lixo, lavar roupas, tomar banho no rio, andar ao sol, dormir na rede, andar de barco, pescar (ou observar), se pintar para as festas e ver o nascer do sol e as estrelas. Anotar, filmar, fotografar e anotar, anotar... Perceber, olhar e intuir e elucubrar e perguntar e anotar e anotar. (Foto de pintura corporal – anexo 20) e (Poesia de Manoel de Barros – anexo 21)

1.2.2 A oficina sobre livros

Era julho de 2010 e logo na chegada encontramos a aldeia cheia de não-indígenas. Eram alguns dentistas, um grupo de Belgas com uma brasileira e uma equipe de quatro pessoas do Instituto Catitu17. Logo, descobrimos que havíamos escolhido uma época ruim para ir a aldeia. Em julho os Ikpeng estão ocupados com o plantio de suas roças, e no primeiro dia descobrimos que seria uma disputa pelos professores que normalmente desenvolviam o trabalho conosco, já que estavam ocupados com seus afazeres e com todos os não-índios que estavam trabalhando na aldeia, e assim foi até o final do nosso período de trabalho.

17

Para informações acessar: http://www.institutocatitu.org/

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Logo nos primeiros dias também soubemos que haveria outra oficina de desenho, e houve um “burburinho” 18, porque a oficina da professora Tânia Anaya já estava acontecendo e como haveria outra oficina igual, eles ficaram se perguntando. O fato é que eram oficinas distintas, mas como ambas tinham foco no desenho acabaram por provocar dúvidas acerca do trabalho que seria desenvolvido. As aulas começaram dia 19 de junho, nove alunos designados pela comunidade frequentaram a oficina, e sempre apareciam muitos ouvintes querendo participar esporadicamente ou apenas buscando observar os trabalhos desenvolvidos. A idade dos alunos variava entre os 16 e 20 anos, porém tínhamos um aluno de 12 anos. Todos eram estudantes, mas alguns também eram apicultores ou tinham alguma outra ocupação na aldeia. A proposta da oficina era apresentar um pouco sobre o objeto do livro, história, modos de confecção, livros digitais. Tentar saber o que eles sabiam sobre isso, explicar como era feito um livro, e, nos prepararmos para confeccionar o livro de histórias tradicionais Ikpeng. Discutimos as questões estéticas que envolvem a confecção do mesmo: cores, formas, tipologias entre outros temas. Além destes conteúdos, trabalharíamos a ilustração, incentivando a experimentação de materiais. As aulas eram diárias, nos períodos matutino e vespertino e durariam uma semana. A cada dia era uma apresentação multimídia dos temas descritos e, o restante do tempo era dedicado a exercícios, a produção de ilustrações e também a discussões acerca do projeto do livro, formato do livro, das histórias que iriam compô-lo, se seria somente na língua materna ou bilíngüe, quantas páginas teria e quantas ilustrações por história. O processo de ilustração era uma rica interação, onde a história era narrada em português por um dos alunos, geralmente pelos mais velhos da turma, enquanto a pesquisadora anotava frases-chave e haviam interrupções e discussões em certos momentos para completar ou corrigir o que estava sendo contado, algumas palavras eram em Ikpeng e eles explicavam ou traduziam 18

Aspas nossas.

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para a pesquisadora. Depois, as frases-chave eram lidas e cada aluno escolhia qual delas iria desenhar, esse era um momento de muita empolgação, e a pesquisadora apenas propunha materiais e/ou técnicas para os desenhos ou pinturas sobre aquela história e ficava auxiliando os alunos na produção quando solicitavam. Depois de concluídas as ilustrações, elas eram dispostas nas mesas, colocadas em ordem (cada um deveria numerar e escrever na língua materna a frase que correspondia a sua parte) e a história era re-contada. Cada aluno contava apenas àquela parte que ilustrou. Eles mostravam alegria ao verem todas as ilustrações em conjunto e riam dos desenhos uns dos outros. Os materiais oferecidos foram: giz de cera, hidrocor, lápis de cor, guache, giz pastel oleoso, folhas comuns e folhas de papel vergê, com textura e gramaturas mais altas, papéis coloridos e cartolinas em tamanhos maiores. Também utilizamos urucum, jenipapo e carvão, óleo de pequi e leite de yepkui. Muitos alunos já possuíam familiaridade com o desenho, porém todos mostravam insegurança ao trabalharem com diferentes materiais. Foi o caso do giz pastel oleoso, que após aprenderem a utilizá-lo minimamente, apaixonaram-se por ele. Destacamos como interessante o incômodo ao utilizar no papel os materiais que são dispensados a pintura corporal, depois, alguns deles ficaram muito satisfeitos com seus resultados. Foram decididas questões acerca do formato e do conteúdo do livro. Sobre o conteúdo, decidiram que o livro será bilíngüe e que desejam que a tradução deve acompanhar o texto em língua materna na página oposta; desejam que todas as histórias transcritas façam parte do livro, e será coletada a história da Mawo para complementar o conteúdo. Para cada história pretendem utilizar em média 10 ilustrações que serão produzidas pelos alunos da oficina. As cores que sugeriram para predominar no livro são: verde, azul e preto e o formato seria 23cm por 19cm costurado, contendo 20 histórias tradicionais do povo Ikpeng.

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No último dia, no período da manhã, os alunos terminaram algumas ilustrações que faltavam e ajudaram a pesquisadora a finalizar o arquivo da apresentação dos desenhos e os textos na língua materna foram corrigidos. Os alunos limparam a Casa de Cultura Mawo, organizaram o espaço e montaram o projetor multimídia. Tudo estava pronto a espera dos convidados: a comunidade. A apresentação foi conduzida pelos próprios alunos enquanto a pesquisadora apenas controlou o projetor multimídia, tudo foi apresentado por eles em língua materna para os membros da comunidade. Foi apresentado o projeto do livro de histórias tradicionais Ikpeng, explicaram o formato mostrando um livro parecido, disseram quais histórias seriam incluídas e falaram da oficina que participaram. Depois cada aluno apresentou um conjunto de desenhos referente a uma história e o último apresentou desenhos de grafismos. No final, leram os agradecimentos. Após a apresentação, ao lado de fora da casa de Cultura foram entregues os certificados em clima de muita alegria, com muitas fotos e aplausos. Por fim todos foram convidados para uma festa de encerramento.

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Os alunos apresentando o projeto e as ilustrações para a comunidade

Os alunos e seus certificados

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Alguns momentos da oficina.

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Os antigos bem diziam: habet sua fata libelli, os livros têm seu próprio destino.

Leonardo Boff

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2. O Livro A necessidade de expressão é algo inerente ao ser humano e se manifesta em diversas formas e níveis. O que é um livro se não um objeto que é fruto da necessidade do homem de armazenar e distribuir informações codificadas em símbolos (linguagem) e imagens (representativas, abstratas ou simbólicas). O livro foi um dos primeiros objetos que possibilitaram armazenar e transportar “a ideia” para as gerações futuras; é claro que esta peculiaridade sempre pôde ser transmitida através da oralidade, dos objetos de uso cotidiano, da arquitetura, da arte e de outros meios. Como exemplo a Gruta de Lascaux com seus desenhos que chegaram até os dias de hoje com representações de animais. Ela é considerada Patrimônio Mundial da Unesco19 desde 1979, mas não possui o caráter de transportabilidade conferido ao livro. Esse caráter de permanência e transporte confere poder ao livro, tornando-o um marco inegável nos processos sociohistóricos, ao lado da imprensa. Para falar sobre este objeto caro na Academia e imbuído de um poder de verdade desde os primórdios de sua criação, preferimos começar a partir da escrita, que o antecede, apesar do desenho também ser antecedente a ele. Foi à necessidade de expressão, comunicação e organização que impeliu o ser humano a se comunicar de outras formas que não a oralidade e a expressão corporal. Surgia o desenho, depois o desenho se transformaria em signo e surgiriam os hieróglifos e então, os vários tipos de escrita que foram se aperfeiçoando até os dias de hoje. Isso não aconteceu assim ordenadamente, ocorreu em diferentes períodos e em diferentes partes do globo; simultaneamente ou não, o homem foi descobrindo maneiras de se expressar, reproduzir e preservar suas expressões culturais e artísticas.

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Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura.

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Por isso, não se pode falar do livro sem mencionar a escrita (e a escola), ambas se instalaram nas comunidades com a finalidade de assimilar os indígenas à sociedade, e hoje possuem um novo papel, de salvaguardar suas culturas. Para os indígenas, o acesso a escola, a escrita, aos livros e materiais audiovisuais existe atualmente em diferentes níveis de aceitação, apropriação e criação sobre os processos de ensino e aprendizagem.

2.1 A escrita indígena A escrita surge anteriormente ao livro como forma de comunicar e de facilitar as relações comerciais e posteriormente passou a atender outras necessidades do homem. Aos indígenas ela foi imposta, assim como o aprendizado da língua do colonizador e o abandono de sua língua materna e costumes. Alguns povos foram mais invadidos sob o aspecto da escrita do que outros, devido à região a qual habitavam ou as matérias-primas as quais tinham acesso. O fato é que todos os povos indígenas sem distinção deveriam ser assimilados, e a língua era a principal porta de comunicação e desestabilização das comunidades. “A escrita possibilitou o acúmulo de conhecimento humano. Antes dela, tudo o que um homem aprendia durante sua vida morria com ele. Depois da invenção da escrita, o conhecimento passou a se acumular e a não se perder, assim, ao nascer o homem tem a seu dispor toda a experiência e as descobertas de seus antecessores.” (Horcades, 2004:16)

Desde o contato, os povos indígenas lutaram contra a escrita e a escola que lhes fora imposta como forma de domínio. E, assim como os gregos prezavam a oralidade, o discurso, os indígenas também o faziam. Não vemos melhor associação para a definição do conceito de escrita entre os indígenas do que a expressão phármakon, a qual Sócrates usou para definir a escrita frente ao discurso.

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“O phármakon seria uma substância com tudo o que esta palavra possa conotar, no que diz respeito a sua matéria, de virtudes ocultas, de profundidade críptica, recusando sua ambivalência à análise, preparando, desde então, o espaço, da alquimia, caso não devamos seguir mais longe, reconhecendo-a como a própria anti-substância: o que resiste a todo filosofema excedendo-o indefinidamente como não-identidade, não-essência, não-substância, e fornecendo-lhe por isso mesmo, a inesgotável adversidade de seu fundo e de sua ausência de fundo.” (Derrida, 2005:14)

Entendemos, em uma definição simplista, o phármakon como uma substância que pode ser considerada veneno ou remédio, e que na verdade pode ser as duas coisas ao mesmo tempo. Imaginamos a escrita imposta aos indígenas, ora como uma forma de subjugar seu povo, ora como uma conquista que lhes traz facilidade ao lidar com o inimigo. Destacamos o caso dos Kaxinawá do Acre, a escrita como meio de se proteger dos patrões. Para eles a aquisição da escrita desde os primeiros anos de contato esteve intrinsecamente relacionada à produção econômica da borracha (Monte, 1996:73). Nós queremos aprender a fazer conta, tirar nossos saldos, não queremos mais ser explorados pelos patrões dos seringais. Queremos ler os nossos talões de mercadoria para saber o valor de nossa pro20 dução de borracha. (op. cit., 1996:28, grifo nosso)

Mas, como o texto escrito é usado para auxiliar a memória, e como destaca Platão, a memória é finita, a escrita acabaria por implicar em uma redução da capacidade de memorização do homem, podendo ser entendida como a cicuta, neste caso, porque abriria as portas para o esquecimento. Ao mesmo tempo, ele acredita que: “tal é a origem da lua como suplemento do sol, da luz noturna como suplemento da luz diurna. A escrita como suplemento da fala.” (Derrida, 2005:34) No depoimento transcrito da índia Xavante Wautõmonhini’õ podemos perceber uma fala que exemplifica o modo de vida dos ameríndios no que diz respeito ao aprendizado tradicional, sem utilização da escrita. 20

Jornal A gazeta do Acre, 21/11/82 in Monte, Nietta L. Escolas da floresta: entre o passado oral e o presente letrado;

diários de classe de professores Kaxinawá. Rio de Janeiro: Multiletra, 1996.

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“Eu aprendi olhando as mulheres fazendo fiação do algodão com fuso de barro (wató). Eu vi de olho mulher praticando fiando algodão com fuso feito de pedaço de barro. No começo foi difícil aprender a fiar o algodão.O algodão é muito sensível. No início, para praticar fazer o fio de algodão, usa-se uma imitação de um pedaço de cabaça igual o wató. Então, desde criança comecei com essa atividade e depois passei a usar o wató. Primeiro é necessário treinar com um pedacinho de cabaça. A gente ficava perto da nossa avó, olhando como ela fazia, então a gente já praticava. Ao olharmos, aprendíamos e praticávamos sozinhas. Foi assim que aprendemos a fazer o fio de algodão, que serve para fazer flecha, usada na caça e para pegar peixe.Então, é para isso que a gente aprende a fazer linha de algodão.” 21 (Wautõmonhini’õ apud Funai, 2010:11)

Ao assistirmos um vídeo22 de um ancião Wajãpi dizendo algo como: se eles pensam que irão aprender alguma coisa escrevendo, olhando para o quadro, estão enganados, percebemos que ele reafirmava o modo de aprendizagem dos povos indígenas através da fala e audição, desconsiderando a aprendizagem através da escrita. Porém ao mesmo tempo, os anciãos abriram as portas, tanto para a escrita, como para os livros e demais tecnologias. Talvez por saberem que ora podem beber cicuta do não-indígena e ora podem ter nas mãos um remédio. Por isso existe um cuidado extremo com o que chega do outro. Ao mesmo tempo o pensamento ameríndio permanece: adquire-se poder sobre o outro ao incorporar e domesticar esteticamente a matéria-prima por ele produzida. Ganha-se poder sobre o outro ao imitá-lo, incorporando seus poderes (Lagrou, 2009:59). É importante refletirmos sobre o papel político da escrita nas aldeias. Que pode ser entendido tal como Platão coloca a escrita e o teatro como as principais formas de manifestação estética de um povo. Ao teatro e à escrita, ele opõe uma terceira forma, uma boa forma de arte, a forma coreográfica da comunidade que dança e canta sua própria unidade. Afirma ainda que eles, a escrita e o teatro, definem como as obras ou performances “fazem política”, quaisquer que sejam as intenções, tipos de inserção social dos artistas ou o 21

Depoimento da índia Xavante Wautõmonhini’õ publicado no Informativo do projeto Danhiptetezé: Iniciativa de Cultura Alimentar Xavante.

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Vídeo pertencente ao Dossiê Iphan 2 Wajãpi - Expressão gráfica e oralidade entre os Wajãpi do Amapá. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

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modo como as formas artísticas refletem nas estruturas ou movimentos sociais (Rancière, 2005:18,19). A partir desta perspectiva, pensar nos indígenas, em seus rituais, em suas regras sociais, e em que espaço político se insere a escrita, visto que estamos falando de sociedades de natureza ágrafa é também compreender se o phármakon agiu como veneno ou remédio, ou na verdade em que momento ele age como cicuta, porque na verdade não perde a sua natureza dual. Na comunidade Ikpeng a escrita não foi imposta da mesma forma que em outras sociedades, não houve necessidade da escrita tão cedo quanto em outras comunidades, talvez por sua natureza guerreira não fizeram contato satisfatório antes da década de 60, e devido a uma história de contato díspar e a transferência para o PIX, a escrita foi um fenômeno tardio. Em 1994, quando professores Ikpeng e linguistas se uniram no contexto do Projeto de Formação de Professores do Parque Indígena do Xingu foi elaborada a grafia na língua Ikpeng (ISA, 2010). Desde então têm sido aplicada na escola e em documentos da comunidade. Temos que levar em consideração, sempre que pensamos no livro Ikpeng, que sua escrita é algo recente, com apenas 16 anos de uso corrente. Elaborar uma escrita para uma língua que não a tinha antes é resultado de um longo trabalho. Professores e comunidades indígenas aprendem muitas vezes com a ajuda de um linguista, como as letras podem representar os sons de sua língua (Fausto e Franchetto, 2008:81).

A televisão, o teatro, o cinema e até a internet, nenhum deles está desvinculado da escrita, em todos, a escrita e a imagem são o foco. Cada um, a sua medida possui influência política na sociedade. No Brasil a escrita (através da escola), a televisão e o acesso ao conteúdo dos cinemas já são realidade nas sociedades indígenas, bem como as tecnologias de filmagem, e em algumas comunidades a internet. Esse acesso ao mundo externo é observado de perto pelas lideranças e possui um caráter de phármakon tal qual a escrita, por isso, é dosado com todo cuidado.

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O conceito de alteridade, sempre presente nas comunidades ameríndias, conceito esse que trata da existência do eu-individual baseado no outro; se modifica com a chegada de diferentes meios de conhecer o outro (escritos, sonoros e audiovisuais), de interagir e se comunicar com o outro (escrita, televisão, cinema e internet) e meios que funcionam como espelhos para se ver com outros olhos (o primeiro deles foi o próprio espelho e posteriormente, a fotografia, o gravador, a escrita, televisão, cinema e a internet).

“Porque assim como o conceito de incorporação da alteridade, enquanto processo de construção da identidade, o conceito de transformação tem grande centralidade na visão de mundo e práxis ameríndia: coisas e pessoas podem ser transformadas, domesticadas, pacificadas e incorporadas.” (Lagrou, 2009:56)

O que enfatizamos com relação à aquisição da escrita dos povos indígenas é sua diversidade em tempos, espaços e contextos variados. Os processos foram ocorrendo sendo que alguns deles estão agora se consolidando e outros ainda engatinhando. Mas em qualquer estágio em que se encontre uma comunidade, é possível perceber que a aquisição da escrita foi algo imposto pelas necessidades de contato. Os povos indígenas que vivem no Brasil são considerados tradicionalmente ágrafos, por desconhecerem e não fazerem uso da escrita, repassando seus conhecimentos por meio da oralidade, ao longo de sucessivas gerações... Hoje, a escrita está presente em praticamente todas as aldeias do país. Não se trata de uma opção, se é que um dia o foi, de algo que se possa escolher ter acesso ou não. Por variados caminhos a escrita se impôs como uma necessidade ou como algo a ser conquistado e se disseminou ampla e irreversivelmente. (Grupioni, 2008, p.11)

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2.2 A escola indígena

A escritura, como um phármakon, chegou aos indígenas através da escola e principalmente através da catequese. Era imperativa a assimilação do indígena a sociedade nacional, e existiam duas frentes que trabalhavam para isso, o governo e a igreja. Os objetivos escolares eram civilizar e converter através da catequese os indígenas, conhecidos por “gentios”.

“A educação indígena no Brasil Colônia foi promovida por missionários, principalmente jesuítas, por delegação explícita da Coroa Portuguesa, e instituída por instrumentos oficiais, como as Cartas Régias e os Regimentos. Assim, em todo aquele período, compreendido entre os séculos XVI e XVIII, é praticamente impossível separar a atividade escolar do projeto de catequese missionária.” (Luciano, 2006:150)

Em 1822 com o advento do Império, nada muda na educação escolar indígena, e permanece inalterado até 1834, quando a competência da oferta da educação escolar indígena foi atribuída às Assembléias Provinciais, porém, com o mesmo objetivo, o de promover “a catechese e a civilização do indígena e o estabelecimento de colônias”. E assim permaneceu até o início do século XX. A dominação territorial, política e cultural dos povos autóctones têm sido desde o século XVI resultado de práticas que sempre aliaram métodos de controle político a algum tipo de atividade escolar civilizatória. (op. cit., 2006:150) A escola indígena era apenas uma cópia das escolas não-indígenas da sociedade envolvente. Sua política era transformar o indígena em “cidadão”. Sua cultura e diversidade não eram sequer consideradas. Pensamento que corroboramos com as palavras de Caiafa: o indígena, as demais etnias estranhas tendem a ser excluídas da experiência nacional, salvo se convertidas a um desejo de não mistura - ou seja, quando não oferecem perigo, quando não são um outro (1992:57). Era essa a posição nacional: “civilizar” os indígenas. Importante percebermos duas atitudes opostas, o não-indígena deseja eliminar o outro, e qualquer vestígio “do diferente” que possa existir, enquanto o indígena apreende o outro através da assimilação e transformação.

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Na promulgação da constituição de 1988 foi concedido aos povos indígenas o direito a manifestar e preservar sua cultura, língua, origens e religiosidade e a educação escolar diferenciada, ou seja, o direito a serem diferentes e a não imposição de assimilação da cultura brasileira. Segundo Luciano, sua política de educação escolar indígena busca atender a uma demanda de tais sociedades, que anseiam por processos educacionais que proporcionem conhecer melhor o mundo no qual estão inseridas, domínio de valores e códigos da sociedade envolvente, além de constituir uma educação que vise à valorização, o resgate e a revitalização dos conhecimentos tradicionais e a sistematização de saberes e práticas ancestrais (2002:17).

Educação Escolar Indígena Diferenciada Específica Bilíngue Intercultural”. Este é o nome completo com todos os adjetivos, da proposta de educação voltada para as populações indígenas no Brasil nas duas últimas décadas. Qual é o sentido de cada um desses atributos? Segundo as definições de um senso já comum, “escolar” refere-se à chamada educação formal no sistema da sociedade nacional e excluiria a chamada educação “nativa” ou “tradicional”, ou seja os sistemas autóctones de socialização e transmissão de conhecimentos; “diferenciada e específica” apontaria para uma adaptação substancial às particularidades de cada grupo indígena; “bilíngüe” parte do princípio de que o ensino deve se pautar tanto na língua indígena quanto na língua nacional, colocando-as em equilíbrio como veículos de comunicação e de ensino-aprendizagem escolares. E “intercultural”, a que se refere, qual seu significado? A resposta seria: a integração entre culturas. Mas de que forma? Através de quais princípios? E o que está se definindo como cultura? (Collet apud Weber, 2006:32)

Tal como Weber a ideia não é responder a estas questões, e sim destacar o fato de sua existência e complexidade porque em contextos tão específicos como as comunidades indígenas, pensamos que caberia uma resposta diferente para cada realidade, para cada etnia. Estamos falando de comunidades com diversos níveis de contato e diferentes níveis de relação com a escrita, algumas ainda possuem vínculos com sua língua materna, outras os perderam, e outras não possuem mais a língua materna. Neste contexto diversificado, onde algumas comunidades falam sua língua materna e outras não, a escola atua como uma nova instituição social. Foi introduzida como instrumento de subjugação e agora busca ser uma ferra

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menta de apropriação e preservação culturais. Muito está por fazer no contexto da Educação Escolar Indígena Diferenciada Específica Bilíngue Intercultural, porém os primeiros passos já foram dados em muitas comunidades brasileiras. Para contextualizar apresentamos os números da escola indígena no Brasil, de acordo com dados do Censo Escolar Indígena de 200523: existem atualmente 2.324 escolas indígenas de Ensino Fundamental e Médio funcionando, atendendo a 164 mil estudantes indígenas. Destas, 72 oferecem o Ensino Médio, mas a grande maioria não trabalha com os princípios da educação escolar indígena específica e diferenciada. Dos 164 mil estudantes indígenas que estão no Ensino Fundamental e Médio, 63,8% estão entre a 1ª e a 4ª série do Ensino Fundamental e apenas 2,9% cursam o Ensino Médio. Nessas escolas, trabalham aproximadamente 9.100 professores. Desses, 88% são indígenas. (Luciano, 2006:136,137, grifos nossos) A Escola Indígena Estadual Central Ikpeng – Amuré possui o maior número de alunos (107) do PIX. Além disso, adquiriu um papel central dentro do Projeto de Formação de Professores do Parque (do Instituto Socioambiental), sendo responsável pela aquisição de materiais escolares e sua distribuição para as demais aldeias do Médio Xingu (ISA, 2010). Nas palavras de Korotowï Taffarel, professor e liderança atuante na aldeia Moygu, podemos perceber, em parte, a visão sobre a escola Ikpeng:

A escola formal está contribuindo para reforçar a importância da manutenção das tradições e da relação homem-natureza. Também tem apresentado um papel importante na consolidação dos preceitos da educação ambiental e da sustentabilidade por meio de atividades, seminários, aulas de campo, entre outras ações. (Taffarel, 2010)

É importante salientar que a escola Ikpeng atende em parte aos princípios da educação escolar indígena específica e diferenciada. Entretanto, já foi formulado um planejamento e submetido ao MEC24. Percebe-se a cada dia a adequação da escola Amuré aos preceitos de educação da comunidade, porém, em alguns aspectos ainda segue o modelo do MEC, que em algumas si 23

Dados divulgados pelo Ministério da Educação (Luciano, 2006).

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Ministério da Educação.

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tuações pode não oferecer brechas para que as escolas possam se adequar as suas próprias realidades educacionais. (Foto escola Amuré – anexo 10) São muitas as realidades escolares no Brasil como explicitamos, no caso da escrita e da escola dos Wajãpi do Amapá, Gallois salienta que:

Estão particularmente interessados em se apropriar da escrita, considerando o poder que nossa sociedade atribui a essa forma de registro e de transmissão de saber. Para um melhor entendimento dos desafios em jogo na escolarização indígena, é importante difundir os acervos culturais dessas sociedades, em particular, suas variadas formas de linguagem não escrita, entre elas, o sistema gráfico Kusiwa. (2002:66)

Apesar de existirem exemplos de escolas que trabalhem com os princípios da educação escolar indígena específica e diferenciada, que respeitem, incentivem a cultura das comunidades, elas não são a maioria. E, segundo Gersem dos Santos Luciano em um livro do próprio Ministério da Educação, é perceptível que a instituição escolar continua ignorando e sufocando os sistemas de ensino indígenas e, ela acaba por contribuir para enfraquecer ou extinguir as culturas indígenas. (2006:134) Já destacamos o papel dual que todo o tipo de contato, transformação ou assimilação possui dentro das sociedades ameríndias; São administrados diferentes tipos de phármakons em dosagens distintas. A escola é um deles. A escola pode ser o caminho para o individualismo, mas pode acontecer o contrário. Os professores indígenas, aqueles engajados, que possuem consciência crítica, passam a dispor da escola como o lugar em que nascem os movimentos de resistência e de reivindicação de direitos sobre a terra e contra a discriminação. O espaço da escola passa a incentivar a reafirmação das identidades e da construção permanente de autonomia e alteridades. (op. cit., 2006:136) A criação de um sistema diferenciado de educação exige a abertura do olhar para a busca da construção de um sistema que atenda as necessidades do Outro, o indígena. Mas que por sua vez acabará, de alguma forma, seguindo algum padrão não-indígena. Uma busca por alteridade. Criar um novo modelo que não se prenda aos paradigmas do antigo, a educação não-indígena, não é tarefa fácil, visto que as realidades indígenas no Brasil são muito díspares.

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“Enquanto na tradição ocidental a cópia tende a ser de uma natureza diferente do modelo, no universo ameríndio a cópia é muitas vezes considerada como sendo da mesma natureza que o modelo, e se utilizam as mesmas técnicas para a sua produção.” (Lagrou, 2009:39)

Para o Ministério da Educação, através das palavras de Luciano, os desafios atuais da educação indígena no Brasil giram em torno de duas grandes questões: a de implementar programas adequados baseados em metodologias específicas de aprendizagem, através de pesquisas e de acordo com os interesses das comunidades, o que necessariamente inclui a capacitação de recursos humanos e, garantir a autonomia dos projetos educacionais, tendo em vista as características e as necessidades definidas pelos povos indígenas. (2006:155) Porém, devemos ampliar o entendimento desta questão. Antes de vencer estes dois grandes desafios, é imperativa a inserção dos povos indígenas na sociedade brasileira, a aceitação do outro, o indígena, como pertencente à sociedade, independentemente de sua diversidade. Nesta dissertação, ao falar de escola, educação e escrita, o foco é informativo para contextualizar o espaço primordial do livro indígena. Não serão aprofundadas questões acerca das realidades atuais relacionadas à educação escolar indígena, não que estas sejam irrelevantes, mas sim por não fazerem parte do foco do objeto de estudo. Não devemos esquecer de mencionar que tanto a escrita quanto à escola são instrumentos de controle social que podem ser progressivamente conquistados. São considerados como bens de contato de alto valor por possibilitarem mudanças nas condições de vida dos grupos indígenas (Monte,1996:76). Para Mindlin o trabalho de escrita nas línguas indígenas está ligado ao ato de educar que envolve preparo para a vida na sociedade brasileira, além da reafirmação da cultura original. Isto é, a escrita aparece como afirmação cultural e também como um instrumento de defesa de interesses e participação na cidadania brasileira. (1997:60)

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2.3 O livro indígena versus não-indígena É necessário distinguir os tipos de livros, os livros indígenas, os livros sobre os indígenas e os livros publicados por autores indígenas (que podem ser indígenas ou não), esta pesquisa trata dos primeiros. Os indígenas conheceram o livro em sua fase “madura”25, já consolidado como objeto portador de saberes. O livro, um objeto do não-indígena, precisava possuir significado junto às comunidades para iniciar sua relação como objeto de valor para elas. Seu significado passa a existir através da transposição da oralidade e das imagens sociais para o papel.

A literatura indígena, assim como qualquer literatura oral, nasce da voz e dela se alimenta, e o deslocamento desta literatura para um novo suporte, como o livro, tem a possibilidade de traduzir sua marca, sua voz, uma vez que a oralidade seja levada em conta. (Lima, 2010:2)

O cacique Araka. Da oralidade para o audiovisual. Do audiovisual para a escrita. Desenho e escrita formam o livro.

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Aspas nossas.

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Os egípcios foram aqueles que introduziram no mundo clássico a forma material do livro, quando utilizaram o papiro em forma de rolo, empregaram a tinta e fizeram uso da ilustração como complemento explicativo ao texto. Mas, em tom informal podemos dizer, que Moisés ao receber as tabuletas com os dez mandamentos, poderia estar recebendo um livro, e então, encontraremos em todas as religiões exemplos de livros que foram entregues pelo Divino, nos tempos primevos e em diferentes formatos. Será que os indígenas nunca tiveram livros? Ou será que estes existiram em formatos diferenciados e nomes em língua materna? Será que nós, não-indígenas, os reconheceríamos? A história do livro como o conhecemos hoje, se confunde com a história dos tipos móveis de Gutemberg (1439) e com o desenvolvimento da imprensa. Antes disso os livros eram feitos inteiramente a mão, por calígrafos e ilustradores de grande maestria. Nesta relação dos povos indígenas com o livro, primeiramente podemos esboçar uma sequência de fatos sobre a história social do objeto. O livro, na antiguidade era “apenas um”, caro para se reproduzir, conhecimento que ficava restrito a poucos. Posteriormente iniciou-se a era da reprodutibilidade, que proporcionou tanto a reprodução do objeto quanto o aumento de seu alcance através também das traduções. Para o não-índio, o livro é um objeto ancestral, ele escreve sua história e faz parte dela. Para o indígena, o livro e a escrita aparecerem juntos e eram os instrumentos de poder do inimigo fora as armas de fogo. Eram a imposição cultural do não-indígena, colonizador ou detentor de poder. O livro possuía uma aura de verdade, e a partir da criação dos tipos móveis atravessou horizontes disseminando essas verdades, mas perdendo sua aura através da reprodutibilidade técnica que se instaurava. Para o design gráfico, a industrialização e a produção em série começaram em meados do século XV, com o desenvolvimento do tipo móvel, e seu grande momento foi assinalado pela impressão da Bíblia de Gutenberg. Pela primeira vez no mundo ocidental, em vez da penosa cópia manual de livros, foi possível produzir simultaneamente muitos exemplares. Para a comunicação, as implicações são enormes. A alfabetização foi uma possibilidade prática estendida não apenas aos privilegiados; as ideias deixam de ser uma exclusividade dos poucos, que até então controlavam a produção e distribuição de livros. (Dondis, 2007:205)

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Ser letrado e possuir livros, eram indicações de poder, e são ainda hoje, com certas ressalvas. O meio digital, a internet mais precisamente, trouxeram uma transformação significativa a essa relação com o objeto do livro em nossa sociedade. E principalmente com relação à produção e disseminação da informação. Porém, sinalizam um agravante: se ser analfabeto era ser desprovido de poder, por não ser letrado; atualmente existe a necessidade de ser alfabetizado não só nas palavras, mas também nos meios digitais. Para o indígena, sua construção de valor deu-se ao mesmo tempo em que a da escola, da escrita e do vídeo. Ele passa a tornar-se significativo na medida em que os indígenas fazem parte de seu processo de produção e conseguem se identificar com o que o livro tem de importante para eles.

“Esses materiais de escrita e leitura, confeccionados sob a forma de livros, vêm sendo elaborados, editados e publicados como parte do processo de formação dos professores indígenas, favorecendo as relações de ensino-aprendizagem desses professores com seus alunos. Constituem o resultado de processos de construção de conhecimentos e pesquisa realizados pelos professores indígenas de forma individual e também coletiva sobre diferentes campos de interesse do currículo escolar indígena. Assim elaborados, esses materiais registram, sistematizam, valorizam e divulgam aspectos culturais próprios ou apropriados na dinâmica das relações interculturais, sendo escritos nas línguas indígenas e ou em português, com as ilustrações preparadas pelos próprios professores indígenas” (Ministério da Educação, 2002:11).

O livro como representante da escrita e do desenho Ikpeng é um objeto novo na comunidade. Estima-se que os Ikpeng já tinham relação com os livros não-indígenas após o contato, que data da década de 60, e isto deve ter ocorrido na década de 70. Porém, os livros onde se reconhecem em língua e imagens, livros feitos pelos Ikpeng só surgiram, a partir de 2001, quando “Ikpeng Orempanpot” (livro de estudos Ikpeng), usado na alfabetização, foi publicado. Podemos entender a chegada do livro e também do vídeo, como dois instrumentos, que os Ikpeng tomam posse e que tem um grande valor, na medida em que fazem uma ponte: permitem que se vejam como sociedade, que se apresentem ao outro e permitem a busca por seus direitos enquanto indígenas pertencentes a sociedade brasileira, com todas as dificuldades que esse fato representa.

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Os indígenas não se recusam a ser ‘cidadãos brasileiros’. Tampouco estão alheios, por incapacidade cultural, as técnicas e conhecimentos que lhes permitam melhorar suas condições de vida, em acordo com padrões culturais e formas de organização social que eles não pretendem abandonar. Mas, costuma-se negar aos indígenas o direito a modernidade, sob a pena de serem taxados de ‘aculturados’. Acontece que suas formas de apropriação, seletivas, de elementos culturais externos não tem, forçosamente como resultado, a perda de identidade. Nossa civilização nem ‘desbota’ nem representa uma escolha exclusiva. (Gallois e Carelli, 1999:57)

Ao mesmo tempo em que pensamos a relação livro indígena e livro não-indígena, é necessário neste momento fazer o paralelo, livro-vídeo porque ambos são portadores de saberes, ou seja, podem armazenar conhecimentos e ideias, e podem ser transportados, levando consigo esse conteúdo. Também, devido às observações em campo, podemos perceber o quanto a ferramenta do vídeo proporciona uma comunicação direta, uma visualização de si e do outro, um reconhecimento, uma aproximação. Parece-nos que o livro proporciona essa aproximação através do desenho, mas é um caminho mais solitário, enquanto no vídeo isso é partilhado, é direto, talvez por possuírem a qualidade do som. No caso do livro temos a escrita como mediadora junto à imagem, em alguns casos dificultando uma aproximação mais direta. Porém, o livro possui uma vantagem, por ser um objeto que pode ser portado, não dependendo de equipamentos extras, aproxima.

Ao confrontar através do vídeo, suas próprias experiências, com uma gama variada de situações, adquirem novos parâmetros para entender sua inserção específica no contexto nacional e para a descoberta de novas perspectivas de relacionamento com a sociedade e o estado brasileiros. Nesse duplo movimento de manipulação de elementos de sua própria imagem e da comparação com outros, envolvem-se num processo de criação, que gera reflexão e ampliação dos seus horizontes, culminando na revisão de sua auto-imagem. (op.cit., 1999:61)

A partir do cenário que foi delineado: a comunidade Ikpeng, a escrita e a escola no universo indígena e a realidade livro-vídeo, podemos refletir sobre o que seria a realidade atual do povo Ikpeng. Os pajés ou líderes indígenas sempre possuem a decisão em suas mãos do que aprovar ou desaprovar em sua comunidade, mesmo que existam reuniões onde toda a comunidade participe, existem situações nas quais suas

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decisões são soberanas. Eles parecem brincar com essa dualidade das imposições que chegam as suas terras de forma explícita ou sutil, muitas vezes percebem que a desaprovação por inteiro de certos aspectos seria experimentar um tipo de “morte”, enquanto que regular e/ou tomar posse de aspectos do inimigo pode fortalecer e perdurar aspectos que já estavam se acabando socialmente, este seria o caso da escrita, da escola, do livro e do cinema. Hoje, podemos destacar o cinema ou a televisão como formas que em parte, “substituem” o teatro, modificando sua linguagem e também atuando com um maior alcance de massas. Não precisamos ter aqui uma discussão aprofundada sobre este êxodo, mas destacar apenas que o fácil acesso a televisão corrobora esta ideia. O avanço da televisão nas comunidades indígenas é um dado preocupante, porém não será desenvolvido nesta pesquisa, poderia certamente gerar um ensaio de grande importância. O livro indígena apesar de compartilhar com a escrita esse papel nefasto do passado, uma assimilação forçada de diversas etnias, hoje funciona como instrumentação para a posse de individualidades comunitárias, ou seja, cada comunidade toma para si o direito a sua individualidade cultural, política e religiosa, através deste e de outros instrumentos que lhes estão sendo disponibilizados, mesmo sendo seu direito maior por serem indivíduos autóctones desta “terra brasilis” 26. Embora o processo de aquisição da escrita de cada um desses povos seja diferente entre si, porque se relaciona com a história do contato de cada povo com o não-indígena, podemos dizer que, de uma maneira geral, esses livros didáticos indígenas assumem um duplo papel pedagógico: registrar e ensinar às suas crianças e jovens conhecimentos próprios, tradicionalmente ensinados pela via oral, através da forma escrita; e, quando publicados em língua portuguesa, esses livros pretendem ensinar ao não-indígena que respeite e valorize os conhecimentos desses povos (Mello e Lemos Costa, 2010:165)

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Ainda podemos salientar que o livro, mesmo como um instrumento aliado, ainda pode oferecer perigo á cultura e vida social dos povos indígenas, no que se refere aos seus recursos naturais. Atualmente diversas empresas de grande porte, nacionais e internacionais, indústrias farmacêuticas, de cosméticos ou alimentícias, procuram tomar posse dos conhecimentos tradicionais através dos livros publicados por estas comunidades. Registrando como seus os conhecimentos ancestrais das comunidades em questão. Existem vários exemplos não só relacionados a comunidades indígenas como também a comunidades ribeirinhas ou quilombolas. Apresentamos dois infográficos para ilustrar parte da trajetória da impressão e comunicação a partir da escrita na sociedade ocidental, e parte da trajetória da sociedade Ikpeng, contato, escrita, escola e o surgimento do livro. (Anexos 22 e 23)

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2.4 O livro contemporâneo

O livro foi quase o mesmo por um longo tempo: pequenas variações no formato, criações de novas tipologias, novos papéis, novos materiais e novas formas de produção trouxeram poucas modificações a ideia do que seria um livro. Porém a ideia do objeto livro não se modificou. Desde 619 a.C até os anos 90 o livro continuava a ser aquele objeto que comportava saberes através da escritura e da imagem, ele podia ser compartilhado, transportado e também podia ser destruído. Entre os anos de 1990 e 2000 as transformações advindas das novas técnicas de impressão e principalmente da comunicação através da internet trouxeram uma mudança significativa na ideia do objeto livro. O que aconteceu foi uma migração, parcial, de uma plataforma impressa para a plataforma digital, que pode ser lida em uma gama de aparelhos, tais como computadores, celulares e tablets. Essa modificação se reflete diretamente no formato do livro em si e na forma de apreensão do conteúdo pelo leitor, que pode agora navegar por conteúdos paralelos, quando desejar. Além de muitas outras questões que dizem respeito à ideia do que consideramos ser um livro, seus custos de produção bem como aos direitos autorais das obras. “É o leitor imersivo” ...”A leitura na tela do computador ou em iPads abre a possibilidade, para o leitor, de embaralhar, cruzar, reunir textos que são inscritos na mesma memória eletrônica. É um modo inteiramente novo de ler, diferente daquela forma contemplativa da linguagem impressa. Esse é um leitor cuja navegação programa leituras, criando um universo de signos evanescentes e sempre disponíveis. Ele está em estado de prontidão, conectando-se entre nós e nexos, num roteiro labiríntico que ele próprio ajudou a construir ao interagir com os nós entre palavras, imagens, documentação, músicas, vídeo etc.” (Santaella apud Haag, 2011: 4) “Surge desse processo não apenas um novo tipo de leitor, o navegador, mas desaparece o autor ou pelo menos haveria a reconfiguração de seu status. Em contrapartida aos dois nasceria o ‘lautor’, que reuniria em si tanto o consumidor quanto o produtor de textos”, afirma Sergio Bellei, professor de literatura da PUC-RS e autor do artigo “Literatura e(m) hipertexto”. (Bellei apud Haag, 2011: 4)

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O livro se aproximou do mundo digital, sem mais poder se desvincular dele. E, sobre o mundo digital, relacionado diretamente às comunidades indígenas, percebe-se um dado importante: a paixão e facilidade destes povos em utilizar e aprender novas tecnologias. O audiovisual em geral, tal qual o computador, câmeras, gravadores, a internet e todas as tecnologias de última geração fascinam estas sociedades, que atualmente tomaram posse destes instrumentos e passaram a produzir suas próprias expressões através deles. Segundo Gallois, o atual fenômeno de intercâmbio globalizado de imagens e o crescente acesso que os povos indígenas têm a mídia, “alteraram, sensivelmente – e positivamente – as possibilidades de estudos antropológicos de processos de construção de representações culturais.” (2000:2)

“Tudo circula, cada vez mais rápido e com mais facilidade: da linguagem minimalista dos SMS aos livros todos, digitalizados pelas grandes bibliotecas. Muitas vezes, recuperam-se livros que não podem mais ser encontrados no papel. Desconfio sempre desse discurso de que o Google vai matar o livro. Não há motivo, porque podemos ler livros no Google. Para pensar essa questão da política e da literatura na era da internet, precisamos primeiro pensar nas relações entre tipos de mensagem. (...) É diferente do que aconteceu com a chegada do cinema, por exemplo. Podemos constatar que a literatura não tem hoje o papel que tinha no século XIX. Apesar do número enorme de romances publicados, poucos são os que remodelam a imagem do indivíduo e da comunidade. Esse papel foi assumido pelo cinema. A literatura oferecia uma capacidade de alargar as formas de percepção do mundo e da comunidade, ela agia sobre a visão e o sentimento de praticamente qualquer um. Hoje, quem faz isso é o cinema, a televisão, a internet.” (Rancière, 2011)

Internacionalmente, o livro digital cresce assustadoramente, enquanto que no Brasil este mercado ainda é acanhado devido ao alto preço dos equipamentos. Segundo matéria da Revista Fapesp27, temos atualmente cinco livrarias virtuais somando cerca de 5 mil e duzentos títulos disponíveis. “Os leitores brasileiros ainda não sabem da existência do livro digital e também não sabem como ter acesso a ele, algo que inclui mesmo os mais jovens, que o associam muito à internet” (Amorim apud Haag, 2011: 1)

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HAAG,Carlos. O livro morreu? Viva o livro! Revista Fapesp online.Disponível em: <http://www.revistapesquisa.fapesp .br/?art=4377&bd=1&pg=1&lg=> Acesso em 5 abr. 2011.

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Contudo, se existe a realidade de que o livro digital ainda demora a se consolidar na sociedade brasileira, podemos dizer que o mesmo ocorrerá nas comunidades indígenas. O que ocorre atualmente, tal qual um turbilhão, é a mudança nas formas de comunicação que passam a retirar o leitor de sua “atitude passiva”28 diante do livro para transformá-lo em capitão do navio, ou seja, o livro agora é navegável como as possibilidades da internet. De acordo com Lotta Larson, professora da Faculdade de Educação da Kansas State University, “os leitores de agora mergulham em experiências multimodais e têm uma noção aguda das possibilidades de combinar mídias para receber e transmitir mensagens.” (Larson apud Haag, 2011: 4) Esta realidade atual, digital, nas comunidades, proporciona um intercâmbio e discussão sobre sua cultura, modos de vida e cosmologia tal qual nunca houve, pois os próprios indígenas podem ser atores, interlocutores e público ao mesmo tempo. Eles podem produzir e serem “interferidos” 29 por sua produção, um movimento completamente novo para essas comunidades. Imagens muito diversas e contraditórias a respeito dos indígenas convivem hoje na mídia. Retratos exóticos ainda são convencionais e continuam inspirando representações acerca do primitivismo, que pretendem nos iludir em relação à distância que separaria os povos indígenas do convívio com nossas sociedades. Os indígenas, ao contrário, têm acessado cada vez mais imagens e discursos que produzimos a seu respeito, dos quais eles se apropriam como objeto de reflexão. (Gallois, 2000:1)

Se considerarmos que no Brasil os indígenas estão isolados entre si e mantendo enorme diversidade cultural, multiplicada pela variação das experiências de contato, entenderemos o porquê de seu grande interesse em incrementar sua capacidade de comunicação. Quando obtêm informações sobre a existência de outros povos ou percebem que todos experimentam as mesmas dificuldades passam a se sentir muito mais numerosos, e, captam a dimensão

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da posição de indígena, a qual lhes foi atribuída. (Gallois e Carelli, 2010:2,3) (Poesia de um índio - anexo 24) Neste momento podemos pensar se é possível definirmos o livro contemporâneo, ou o que seria a ideia deste objeto na contemporaneidade. Nosso entendimento é que ele tornou-se uma entidade que transporta saberes através da escritura, da imagem e dos processos audiovisuais, não é mais um objeto. A “entidade-conteúdo” pode estar em diversos objetos, em estado impresso ou digital. Ao mesmo tempo, ele ainda é um objeto portador de saberes, tal qualPaulo Silveira define: “...Tudo evidenciando que um livro é um objeto. Ele não é a obra literária. A obra literária é de escritores, pesquisadores, publicadores. O livro é de artistas, artesãos, editores. É de conformadores.” (Silveira, 2008:13)

Esta dualidade com relação ao que é ou não um livro, recai para o terreno dos livros de artista, porém está nomenclatura só foi designada como tal a partir da década de 60, e para alguns pesquisadores, somente nos anos 80. Segundo Silveira, em 1982, o boletim da Sociedade das Bibliotecas de Arte na América do Norte dedicou seu número a esclarecer o assunto para o público bibliotecário (2008:47), enumerando as definições abaixo: livro. Coleção de folhas em branco e/ou que portam imagens, usualmente fixadas juntas por uma das bordas e refiladas nas outras para formar uma única sucessão de folhas uniformes. livro de arte. Livro em que a arte ou o artista é o assunto. livro de artista. Livro em que o artista é o autor. arte do livro. Arte que emprega a forma do livro. livro-obra. [bookwork] Obra de arte dependente da estrutura de um livro. livro-objeto. Objeto de arte que alude à forma de um livro.

O que é fundamental pensarmos, segundo Lúcia Santaella, é que “quando um novo meio surge, ele não leva o anterior ao desaparecimento, mas inicia-se um processo de trocas em que um meio enriquece o outro com o empréstimo de recursos, ou seja, um aprende com o outro.” (Santaella apud Haag, 2011: 4)

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2.5 O livro de artista

Para entender um pouco esta categoria, o livro de artista, basta fechar os olhos e imaginar um livro. Aquele primeiro livro, aquele que se conheceu o mais cedo que se pôde. Normalmente quadrado, posteriormente retangular ou talvez o contrário. Um dia, um artista imaginou que podia construir um livro e acabou por desconstruir o que seria a ideia do livro. E, em várias partes do mundo ocidental foram surgindo livros incomuns, que eram livros e ao mesmo tempo não eram. “Um livro com o menor grau de violação já causa estranhamento, para qualquer público. Essa é a premissa do livro de artista contemporâneo, como o equilíbrio foi o de seus antecessores.” (Silveira, 2008:13)

Mas, o que é então um livro? E o que poderia sê-lo? E o que não poderia ser um livro? E para que serve um livro mesmo? Estas perguntas foram feitas e refeitas por especialistas de diversas áreas, para assim tentar definir o livro, e com isso o livro de artista. Pensemos, por exemplo, no papel assumido pelo paradigma da página sob suas diferentes formas, que excedem a materialidade da folha escrita: temos a democracia romanesca, a democracia indiferente da escrita, simbolizada pelo romance e seu público. Mas, temos também a cultura tipográfica e iconográfica, esse entrelaçamento dos poderes da letra e da imagem, que exerceu um papel tão importante no Renascimento e que vinhetas, fundos de lâmpada e inovações diversas da tipografia romântica ressuscitaram. Esse modelo embaralha as regras de correspondência à distância entre o dizível e o visível, próprias à lógica representativa. (Rancière, 2005:20)

A ideia do livro estava primeiramente submetida à ideia do objeto, da página. Subjugada aos limites da página, aos materiais da página, ela estava cerceada por estas bordas. Porém, ocorreram desconstruções do objeto, dos seus significados e funções. A pergunta ecoava: o que é um livro de artista?

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O livro de artista embaralhou o conceito de livro, porém ele, como gênero, ainda não foi examinado a contento, tampouco sistematizado ou sequer criticamente incorporado à história da arte do século 20. (Drucker apud Silveira, 2008:37) “... esses trabalhos (referindo-se aos livros escultóricos) ‘pertencem mais ao mundo da escultura e da instalação do que ao mundo dos livros. Eles podem operar como ícones do estado de ser livros ou da identidade do livro, mas não proporcionam uma experiência associada com livros mesmo’ Para Drucker se não é um livro, então não é um livro.” (op. cit., 2008:38)

Podemos apresentar algumas nomenclaturas gerais para os livros: O Livro (comum, por assim dizer), O Livre D’artiste ou Livro de Luxo (em francês para diferenciá-lo do livro de artista), o Bookwork ou Livro-obra, o Livro Escultórico e o Livro de Artista. Existem outras nomenclaturas, porém entendemos que estas representam de forma clara as categorias em questão. O Livro, objeto desta pesquisa é, por nós, neste contexto, considerado uma entidade que se encontra em constante modificação após o início da era digital. O Livre D’artiste foi o primeiro termo utilizado para livro ilustrado na língua francesa e representava as edições de luxo. “Esses livros são trabalhos finamente produzidos, mas eles param antes de ser livros de artista. Eles param no limite do espaço conceitual em que os livros de artista operam. Antes de tudo, é raro encontrar um livre d’artiste que interrogue a forma conceitual ou material do livro como parte de sua intenção, interesses temáticos ou atividades de produção. (Drucker apud Silveira 2008:37)

Para a Drucker, é importante fazer essa distinção do Livre D’Artiste histórico, já que ela afirma que os livros de artista alcançam sua maioridade somente no século 20, e o termo utilizado no francês é o mesmo. Já em português, os livros de luxo, são as pequenas edições produzidas sob pequenas tiragens e com papéis especiais e design apurado. Interessante perceber que

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esse é um mercado ainda em voga. Segundo dados da editora Cosac Naify, desde 1997 até 2011 foram pouco mais de 750 títulos publicados30. “Imagina. Você compra um livro e ele chega costurado. Isso mesmo, costurado à linha. É preciso descosturar o livro para lê-lo. Você se pergunta: como vou fazer isso? Então lembra que um cortador de unhas ou uma faca pequena podem lhe auxiliar. Até aí tudo bem, você pensa, afinal é uma excentricidade: o livro parece um ficheiro, natural que esteja “lacrado”. Depois de aberto você percebe que as páginas têm um cheiro artificial de bolor, de mofo, de coisa velha. Que coisa! - você exclama. Ainda tem mais: é preciso, para que você finalmente ache o texto, romper as folhas do livro, que estão coladas e exibem apenas uma entediante sucessão de tijolos nas faces externas – o texto está dentro, protegido.” (Fernandes, 2010)

Essa é a descrição do livro Bartleby, o escrivão – uma história de Wall Street, do escritor norte americano Herman Melville, publicado pela Cosac Naify que acaba por ficar entre as duas categorias: a de livro de luxo e de livro de artista. Podemos descrevê-lo como um livro de luxo e inicialmente imaginar que é uma edição cara por possuir tais especificidades, ao mesmo tempo o luxo porque é um livro incomum, passou por alguns processos também incomuns de produção. Porém, para nosso espanto, ao pesquisarmos o custo do livro, acabamos por descobrir que mesmo sendo essa peça de design apurado, ou podendo ser considerado um livro de artista seu custo é o de um livro comum, destes tipos que só possuem textos e poucas ou nenhuma ilustração e não possuem capa dura, ou papéis especiais. Temos ainda o Bookwork ou Livro-obra, especialmente no Brasil, é um termo que se referia ao livro de artista como o conhecemos hoje, mas caiu em desuso. Por fim o Livro Escultórico pode ser rotulado mais facilmente, seu nome é bem óbvio e abre brechas a desconstrução do livro como objeto transformando-o em escultura. Já e o Livro de Artista ainda é esse incompreendido, sem um rótulo definitivo. E isso é ótimo, nos dá margem a utilizá-lo com mais liber 30

Segundo matéria publicada no site Obvious intitulada: “Não basta ser Livro, tem que ser Artístico (ou Excêntrico)”.

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dade e poder encaixá-lo em diferentes meios como um objeto da contemporaneidade. Drucker acredita que “não existem limites ao que os livros de artista podem ser e nem regras para a sua construção.” (Drucker apud Silveira, 2008:39)

2.6 O livro indígena hoje

E qual seria a relação entre livro de artista e o livro indígena? Porque os indígenas assumiram simplesmente a forma convencional do livro nãoindígena? E o que poderíamos considerar livros indígenas na cena contemporânea? Não pretendemos trazer respostas simplórias a essas questões, mas sim elucidá-las, aprofundar as discussões acerca desta temática. Os indígenas, povos tradicionalmente ágrafos, como já mencionamos, transmitiram e transmitem ainda sua cultura através da oralidade, das formas de fazer, dos ritos, dos mitos, inscrevem seus padrões nos objetos, nas danças e nas pinturas corporais.(A história Kuikuro sobre os patos – anexo 25) Não poderia o corpo ser o livro que nós não enxergamos com nosso olhar de caraíba? O corpo é a matéria que mais transporta os conhecimentos indígenas “... podemos afirmar que entre os ameríndios artefatos são como corpos e corpos são como artefatos.” (Lagrou, 2009:39) Se corpos são artefatos e artefatos em alguns casos podem ser considerados “objetos”, os corpos poderiam ser os “objetos” de transporte ancestral de toda uma gama de cultura material e imaterial. Os Wajãpi do Amapá possuem um sistema de representação gráfica chamado kusiwa, onde cada padrão possui uma nomenclatura e é reconhecido por qualquer adulto. Tais padrões são utilizados na pintura corporal e em objetos utilitários. Já os grafismos Kaxinawá, que são pintados em seus corpos

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ou reproduzidos em suas belas redes de algodão, são utilizados como “caminhos a serem visualizados pelos homens ao entrarem em transe e ao escutarem o canto que delineia os passos a seguir, descrevendo a geografia cósmica que se desenrola frente aos olhos fechados do iniciado.” (Lagrou, 2009:82) Assim como eles, os Kayapó-xikrin consideram que sua pintura corporal desempenha um papel de segunda pele em seu cotidiano. (Lagrou, 2009:72) Desconhecemos etnias ameríndias que não pintem ou adornem e enfeitem seus corpos, então sugerimos a ideia de um “corpo-livro-indígena”. “O corpo e a pessoa não são concebidos como entidades biológicas que crescem e adquirem suas características automaticamente, por determinação biológica e genética, mas como verdadeiros artefatos, moldados e esculpidos ao modo e no estilo da comunidade. Daí a crucial importância dos ritos de passagem e dos períodos de reclusão para jovens em muitas destas sociedades, especialmente rigorosos e longos no Xingu, pois é nestas ocasiões que a sociedade fabrica corpo e pessoa simultaneamente.” (Lagrou, 2009:70)

Em segundo plano, os objetos e ritos. Uma cesta, uma tipóia31, um tipiti32, um utensílio cerâmico, uma flecha, uma borduna33, cada um desses objetos transmite um conhecimento, um fazer, e também um ritual, seus processos, suas danças com o posicionamento de corpos no espaço da aldeia. Poderiam, em menor proporção serem considerados como “livro-utensílio ou livroartefato”.

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Faixa de tecido que é usada para carregar os bebês junto ao corpo das mães.

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Instrumento alongado, geralmente feito de palha que é utilizado para constringir a massa de mandioca previamente ralada e retirar seu sumo .

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Arma de madeira utilizada pelos indígenas, cacete dos indígenas.

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2.7 O espaço do livro indígena

Os livros indígenas atendem a uma clientela específica, as comunidades, todavia instituições e pesquisadores têm acesso às publicações. Por tal motivo são desconhecidos do público em geral, circulando apenas nos meios acadêmicos ou entre as aldeias. Os livros normalmente são editados em pequenas tiragens, entre 500 e mil exemplares, edições simples, em espiral ou costurados, utilizando papéis comuns e focados nas etnias em questão. Devido ao aumento do intercâmbio entre as etnias e alguns projetos de organizações não-governamentais surgem publicações conjuntas. Atualmente o cenário dos livros indígenas no Brasil passa a se consolidar com o aumento do número de publicação decorrente de uma demanda das próprias populações indígenas por publicações em língua materna ou publicações que tratem de suas realidades, já que nem todas as populações conservam sua língua materna. “... são publicados também livros indígenas em língua portuguesa e com conhecimentos dos brancos considerados importantes e necessários pelas comunidades autoras. Durante a produção desses materiais procura-se utilizar uma linguagem adequada e de acordo com a realidade regional indígena, com variantes do português regional e apresentando conhecimentos técnicos dos brancos que se fazem necessários para o desenvolvimento político da comunidade como por exemplo, o aprendizado da leitura de mapas imagens de satélite ou do uso de aparelhos cartográficos para controle dos seus territórios. Outras razões justificam a utilização da língua portuguesa nos livros indígenas como, por exemplo, o fato de vários povos indígenas não falarem mais suas línguas tradicionais e o português ser primeira língua desses povos. Além disso, o português também aparece nos livros didáticos porque aprender a língua franca estrangeira é exigência da comunidade e atribuído por esta, como papel da escola.” (Mello e Lemos Costa, 2010:159)

Usualmente as publicações são feitas por meio de projetos independentes com o auxílio de ONGs34 ou instituições públicas e, em sua maioria os livros tem finalidades educacionais. O incentivo às publicações indígenas ocorreu com mais intensidade a partir de 1995, porque somente neste ano “o Ministério da Educação implementou o apoio à produção de materiais didáticos es 34

Organizações não-governamentais.

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pecíficos para a educação escolar intercultural indígena por meio de ações que não se coordenavam.” (Henriques, 2007:54) De acordo com o Ministério da Educação entre 1995 e 2002 “foram produzidos 51 títulos que beneficiaram 83 povos indígenas” (Ibdem) dentre os 220 povos conhecidos.

Com a criação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), a política de produção de materiais didáticos para as escolas indígenas avança em institucionalidade e qualificação. Ampliaram-se os recursos orçamentários no PPA que passaram de R$ 200 mil, em 2003, para R$ 525 mil em 2004, R$ 668 mil em 2005 e R$ 700 mil em 2006. Além dos recursos inscritos no PPA, aportou-se um milhão de reais do Programa Brasil Alfabetizado, para 2005/2006, para publicação de obras voltadas para novos leitores indígenas formados no Programa. (Henriques, 2007:54)

Em 2005 para ajudar a garantir a publicação de materiais didáticos de qualidade foi criada a Comissão Nacional de Apoio e Produção de Material Didático Indígena (Capema). Com a criação do órgão ocorreu diversificação de materiais a serem produzidos, e passaram a ser financiados projetos de produção de textos escritos, sonoros, visuais e audiovisuais. (Ibdem) Segundo publicação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação - SECAD, de 2007, as publicações indígenas didáticas por estado foram: 7 livros no Acre, 3 no Amazonas, 2 no Maranhão e Tocantins, 22 no Mato Grosso, 2 no Mato Grosso do Sul, 4 na Bahia, 2 em Pernambuco, 2 na Paraíba, 3 em Minas Gerais e 2 no espírito Santo. Totalizando 49 publicações indígenas. (Henriques, 2007:58-70) A Capema divulgou em uma publicação sobre livros didáticos e paradidáticos indígenas que entre 2003 e 2008 publicou 84 obras e até o final de 2008 estariam disponíveis mais 25 obras específicas para os povos indígenas. Uma parte do material publicado em língua materna falada por 38 povos indígenas e o restante, em língua portuguesa, foi criado por outras 52 etnias. Mesmo assim, Nilza Figueiredo e Susana Grillo Guimarães apontam que:

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Ainda temos um expressivo déficit de materiais didáticos para todas as etapas da educação básica intercultural indígena, principalmente para os anos finais do ensino fundamental e ensino médio. No entanto, temos certeza de que os programas de formação superior de professores indígenas nas licenciaturas interculturais, apoiados pelo Ministério da Educação, hoje em andamento, serão capazes de acelerar e diversificar essa produção ampliando-a para outras línguas indígenas.(Figueiredo e Guimarães, 2008)

O Ministério da Educação e suas secretarias e/ou programas são os principais meios utilizados para se promover as publicações indígenas. Porém existem também outros órgãos e programas que se dedicam a esta tarefa. O grupo Literaterras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em seu projeto, propôs uma meta de publicar cerca de 60 títulos, entre livros, vídeos e CDs, de autoria indígena nos anos 2005 e 2006 (Vivaleitura, 2011). De acordo com a coordenadora do projeto, professora Maria Inês de Almeida “são livros didáticos, não serão comercializados. O objetivo é preservar a identidade e a língua das comunidades indígenas (UFMG, 2011). O projeto da Literaterras (dados de 2005) já publicou cerca de 14 títulos, sempre em conjunto com autores indígenas, nos estados de Minas Gerais, Mato Grosso e Pernambuco e também há parcerias com o Instituto Socioambiental (UFMG, 2011). Já as publicações de livros didáticos do ISA desde 1999 até 2005 totalizam 37 livros indígenas que foram produzidos por equipes dos programas Rio Negro e Xingu, juntamente com professores e alunos indígenas35. Achamos relevante buscar traçar um breve panorama sobre a situação das publicações indígenas no país, porém, este objetivo não foi alcançado a contento, devido às dificuldades encontradas para contatar as pessoas certas dentro das instituições e também ao grande número de comunidades indígenas no Brasil. Pretendemos aprofundar este pequeno estudo por percebermos a lacuna que existe sobre o assunto, porém, não se trata da temática desta pesquisa. Entretanto, existem cerca de 220 povos indígenas e muitos deles se organizam em associações, isso aumentaria esta listagem significativamente ao identificar quais deles já possuem publicações ou estão em vias de realizá 35

ISA - Instituto Socioambiental. Disponível em <http://www.socioambiental.org/inst/pub/cartilhas_html> Acesso em: 4 ago.2010

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las. Sabemos que o assunto deve ser aprofundado e que a esse levantamento devem ser acrescentadas todas as universidades que publicam livros desta natureza e as diversas associações indígenas que têm surgido em âmbitos regionais para cuidar de interesses indígenas, e por ventura pode haver alguma organização internacional, ou algum programa ao qual não tivemos acesso. Porém é fundamental um levantamento para situar o leitor no universo tão peculiar que é o do livro indígena. “Nesse contexto de demanda de elaboração de livros de autoria indígena foram publicados, nos últimos dois anos, com recursos do MEC – CAPEMA (Comissão Nacional de Apoio à Produção de Material Didático Indígena), diferentes livros em que os próprios professores e/ou alunos indígenas são autores. De acordo com informações do MEC publicadas no site do CEDEFES (Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva), de 2005 a 2008, dos 65 livros elaborados por professores e comunidades indígenas produzidos e distribuídos pelo próprio órgão, 23 são em línguas maternas e 11 bilíngües (uma língua indígena e o português). Outras 25 obras aprovadas ainda estão em fase de produção ou impressão.” (Figueiredo e Guimarães.

2008:160)

Entendemos ser interessante ao leitor conhecer o universo de publicações indígenas e suas características, ou seja, o que os indígenas estão publicando e onde, pois como informamos, a circulação destes livros é restrita. Pensamos em apresentar um quadro das publicações com um panorama, porém devido ao gigantesco universo de instituições que publicam e ao ínfimo espaço de circulação destas informações, isto geraria outra pesquisa. Optamos por apresentar apenas os dados de instituições aos quais tivemos acesso sem aprofundá-los, ou seja uma pesquisa não conclusiva e apenas ilustrativa. A realidade nos mostra que poucas instituições possuem dados sistematizados acerca das publicações indígenas. (O Livro indígena hoje – anexo 26) Os livros indígenas são pouco divulgados exatamente porque seu público alvo é bem pequeno se comparado com outras publicações e na maioria dos casos, possui pouco ou nenhum acesso a internet ou aos meios de comunicação correntes. Tais dados nos fazem perceber que o universo dos livros indígenas ainda é novo, estimamos que deva ter começado a se consolidar na década de 90, e ainda hoje está buscando seu lugar.

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2.8 O desenho indígena

Nos livros indígenas, os desenhos são tão importantes quanto os textos. Muitas vezes são até mais importantes, por comunicarem os conteúdos de forma direta, e por pertencerem à realidade de populações ágrafas, são mais acessíveis ao seu imaginário do que a palavra escrita. As ilustrações são “uma linguagem”36 facilmente compreendidas pelos Ikpeng, que até a chegada da escrita transmitiam seus conhecimentos através dos desenhos, nos corpos, objetos, rituais, adornos e através de seu repertório de mitos que produziam desenhos imaginários. (O que os povos xinguanos escreveram sobre mitos – anexo 27) Durante a montagem desses livros percebemos uma forma diferente no valor dado às imagens e desenhos que os compõem. Na nossa sociedade o espaço da escrita é sempre destacado, apesar das imagens terem sua importância, o texto sempre é mais valorizado, enquanto que nos originais e nos livros indígenas as imagens parecem ter o mesmo peso dos textos. Ou seja, as imagens não são meramente “ilustrativas” ao que dizem os textos; não dão apenas exemplos e estão subordinadas. Elas compõem um conjunto com o texto e não há uma hierarquia ou destaque maior para o que está escrito. Assim, as imagens e desenhos são narrativos, contam histórias e por esse motivo procuramos sempre destacá-las, considerando-as partes tão importantes quanto os textos (MELLO e LEMOS COSTA, 2010:169).

Tudo era o agir, o falar, o mito, o objeto, a dança, a música e o ritual. Estes eram os desenhos relacionados à vida Ikpeng, e já estavam lá, representados nas pinturas corporais, na organização social e espacial, nos objetos utilitários, nos artefatos sagrados, nas armas; o todo era representado imageticamente dessa forma, os olhares etnocêntricos que demoravam a percebê-los como “uma linguagem”. Como explicita Lagrou “muitos artefatos e grafismos que marcam o estilo de diferentes grupos indígenas são materializações densas de complexas redes de significados...” (2009:13)

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Aspas nossas.

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Para compreender a questão do desenho, foi importante reler a obra de Maria Heloisa Fénelon Costa37 um outro olhar, percebendo algumas mudanças, quando ela menciona os desenhos xinguanos e algumas confirmações também. Suas visitas a campo ocorreram entre 1961 e 1978 e sua publicação data de 1988. Passaram-se 31 anos até que a presente pesquisa ocorresse entre os Ikpeng. Seu texto, uma etnografia, pautada por 17 anos de viagens, nos mostra um panorama dos desenhos Mehináku e nos oferece algumas pinceladas sobre a representação gráfica de outros povos também xinguanos, podendo ser considerado como uma amostra do cenário das representações visuais desta época. Quando ela se refere ao desenho, apesar do foco serem os Mehináku, ela também faz menção a outros povos do Xingu, tais como Kisêdjê, Kamayurá, Yawalapití, Waurá, Aweti, Kuikuro e Kalapálo. Diz-se estar dispondo de desenho livre, espontâneo, sem interferência, mas discordamos algumas vezes, por percebermos que, apesar do desenho livre, em alguns casos os pesquisadores indicavam temas, o que caracterizaria uma sugestão, além disso, estes temas poderiam não estar mais presentes no cotidiano imaginário daqueles povos. Também foram fundamentais os trabalhos de: e Els Lagrou38 para a compreensão não só do desenho, mas da sociedade, da arte e cosmologia ameríndias e de Berta Ribeiro39 com seu panorama da linguagem visual indígena nos trouxe ricas informações não só sobre esta temática mas sobre os conceitos de arte primitiva.

37

FENÉLON COSTA, Maria Heloisa. O mundo dos Mehináku e suas representações visuais. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1988.

38

LAGROU, Els. Arte Indígena no Brasil. Belo Horizonte: C/Arte, 2009.

LAGROU, Els. A Fluidez da forma: arte,alteridade e agência em uma sociedade amazônica [Kaxinawá,Acre]. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007. 39

RIBEIRO, Berta G. Arte indígena linguagem visual. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1989.

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Para entender o desenho Ikpeng, pensamos em utilizar da ideia de Lagrou como ponto de partida: “tintas, pinturas e objetos agem sobre a realidade de maneiras muito específicas que precisam ser analisadas em seu contexto.” (2009:35) Em linhas gerais, podemos ver o desenho Ikpeng como traçado de linhas simples, se partirmos de seus grafismos em contraponto com grafismos de outros povos do Xingu. E, devido à perda populacional significativa, apenas 40 indivíduos em 1964, entendemos que o desenho está em vias de reapropriação. Na aldeia Moygu tivemos a oportunidade de ver a confecção de cestas, flechas e bordunas, adereços rituais e colares, além de alguns artesanatos específicos para a comercialização, normalmente colares. Alguns Ikpeng nos contaram de sua antiga produção de peças cerâmicas e de outros objetos que produziam apenas com recursos encontrados na terra do Jatobá, tais como os brincos que os anciãos portam. Existem poucos espelhos na aldeia. A produção de conhecimento acerca de si mesmo e a apreensão dos conteúdos produzidos pelo não-indígena e até de sua própria imagem pessoal era território pouco explorado até então. A auto-imagem era pouco conhecida. O desenho é imagem, a imagem, é desenho. “... alma e imagem estão intimamente ligadas na cosmovisão Assurini.” (Lagrou, 2009:84) O desenho não é novo, é ancestral. A imagem, no espelho, na câmera, no vídeo é nova. Não porque não era conhecida, mas porque agora é mais freqüente, agora se movimenta, emite sons. Agora pode ser construída e desconstruída, vista e revista.

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Durante a visita a campo, ao vermos as crianças fascinadas com sua imagem na câmera digital e percebermos que estavam mostrando sorrisos e pedindo mais fotos, delas mesmas ou de outras crianças, tivemos a sensação de que a fotografia funcionava como um meio de se olhar e interagir com o outro através de sua imagem projetada. Uma construção de um novo tipo de espelho. Lembramos que o espelho foi um item muito recebido pelos índios na época do contato como presente, um item recheado de significação não só por essa função “pacificadora” 40 como também pela sua característica de prover a imagem de si próprio.

Crianças brincando posam para a pesquisadora. E logo querem ver a foto na tela da câmera digital.

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Aspas nossas.

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Lembremos que para Jacques Rancière “uma ‘superfície” não é simplesmente uma composição geométrica de linhas. É uma forma de partilha do sensível.” (2005:21) E, no caso do desenho indígena as superfícies são as mais variadas, iniciando com o corpo, o solo, os artefatos utilitários e ritualísticos, a arquitetura da aldeia e até o desenho de sua coreografia ao dançarem pelo território. Seria também o espelho uma forma de partilhar o sensível? O autor denomina como partilha do sensível: “o sistema de evidências sensíveis que revela ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que e nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha.” (Rancière, 2009:15)

Entender o desenho indígena como uma forma de partilha do sensível facilita a compreensão de seu significado social. O desenho indígena pode ser compreendido como um sistema de comunicação, uma linguagem que pode ser partilhada no espaço-tempo da aldeia e que é compartilhado a partir do momento em que as novas gerações apreendem seus códigos. O desenho é individual enquanto pintura corporal e também partilhado a partir do corpo pintado que se mostra; individual quando povoa a imaginação daquele que conta a história e daquele que ouve, partilhado neste mesmo momento, individual quando se está em transe e partilhado quando as visões são compartilhadas. O desenho é a comunicação dual e direta, que ao lado da fala compõe o pensamento dos povos ágrafos indígenas no Brasil. Podemos citar uma passagem de Els Lagrou sobre os Kaxinawá:

“Os desenhos das mulheres na pintura facial e os motivos tecidos nas redes são caminhos a serem visualizados pelos homens ao entrarem em transe e ao escutarem o canto que delineia os passos a seguir, descrevendo a geografia cósmica que se desenrola frente aos olhos fechados do iniciado.” (2009:82)

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O desenho indígena está presente desde sempre, “existia uma explanação psicológica para a origem da arte no desejo humano pela decoração, primeiro do próprio corpo.” (Gerbrands apud Ribeiro, 1989:14) O corpo é imagem, a imagem que se projeta para o outro, “...é disso que trata a pintura indígena, é uma pintura elaborada na sua relação com os corpos aos quais será aplicada e que desta maneira ajudará a completar.” (Lagrou, 2009:90) “Os elementos plástico e gráfico da pintura corporal são ativos. Possuem uma relação dinâmica, e o efeito estético gera uma tensão: a desigualdade da superfície onde ele é aplicado traz um desafio, manter a coerência do motivo, não permitindo que perca as proporções, ou seja a ideal distância entre as linhas do grafismo.” (op. cit., 2009:75)

Enquanto que na sociedade nacional, “com a xilogravura, o desenho tornou-se pela primeira vez tecnicamente reprodutível, muito antes que a imprensa prestasse o mesmo serviço para a palavra escrita”, (Benjamin, 1994: 166) nas sociedades indígenas o desenho era uma forma corrente de repassar os conhecimentos através das gerações ao lado da qualidade da fala. “Para os Mehináku, os desenhos não se resumem a uma atividade de lazer, mas são também maneiras de expressar como percebem a natureza, que os envolve, e como imaginam os seres sobrenaturais, que os perturbam. Mas os animais e mamaé não esgotam as possibilidades de representações visuais, elas se estendem ao grande número de figuras humanas. O corpo humano, tradicionalmente desprovido de roupas, torna-se o espaço para uma forma de pintura simétrica. Pintura corporal esta que tem como finalidade a participação em cerimoniais ou é utilizada apenas como uma forma de enfeite.” (Fenélon Costa, 1988:10)

No desenho e pintura indígena podemos dizer que “tintas, pinturas e objetos agem sobre a realidade de maneiras muito específicas que precisam ser analisadas em seu contexto.” (Lagrou, 2009:35) Cada etnia terá sua forma específica de desenhar e pintar, e mais, um pensamento específico relacionado a esses atos. “O que vale frisar na arte gráfica Assurini e dos Kaxinawá é que ela serve para assinalar uma ligação e continuidade com o mundo de seres não humanos: o mesmo desenho cobre seres humanos e ‘espíritos’. Assim como acontece entre os Wayana-Apalai e os Waiãpi, a arte gráfica destes povos fala mais sobre a cosmologia que sobre as diferenças internas à comunidade entre diferentes grupos rituais.” (Ibdem, 2009:87)

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Na arte indígena na verdade desenho e pintura se confundem e fazem parte de uma mesma forma de comunicar. Pinta-se o corpo, desenha-se com a palha o grafismo de um cesto, pinta-se uma cerâmica, desenha-se no trançado do tecido ou nas cores de um colar, pinta-se e inculca-se uma tatuagem, porém tudo é imagem, tudo representa, tudo comunica. Desenho e pintura podem ser considerados um na linguagem sem palavras da comunicação indígena. Para os Wayana: “A pintura é uma técnica empregada por homens e mulheres e se define basicamente pela ausência de relevo, o resultado de sua aplicação podendo ter aspecto uniforme ou conformar padrões iconográficos ou listrados pelo contraste cromático, que tanto pode ser simultâneo, de cores apostas lado a lado, como tonal, de gradações de uma mesma cor. Com pintura os homens decoram as rodas de teto, as flechas, o arumã a ser trabalhado na cestaria, os bancos e bordunas cerimoniais, os saiotes para máscaras. As mulheres a aplicam no corpo humano na cerâmica e em utensílios de cabaça.” (Van Velthem in Lagrou, 2009:43)

O que temos em comum na questão do desenho, é sua capacidade agentiva41, que está fortemente presente em todas as sociedades indígenas. E, que segundo Els lagrou é “a capacidade do objeto agir sobre o mundo a sua volta”. (2009:116)

2.8.1 O desenho no papel

Não podemos precisar a data de entrada do papel junto à comunidade Ikpeng. Todavia, de acordo com seu histórico, o contato mais significativo com os não-indígenas data de meados da década de 60, e a incursão do papel como um objeto conhecido socialmente e de uso familiar deve datar da década de 90, já que a escrita Ikpeng também se instaurou nesta época. Apesar de estimarmos que o primeiro contato com o material deva ter acontecido logo após os primeiros contatos com os não-indígenas.

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De acordo com Els Lagrou é um conceito introduzido por Alfred Gell em seu livro chamado Arte e Agência (Art and Agency, 1988)

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A transposição do desenho para o papel acarreta algumas mudanças em padrões sociais que antes valorizavam apenas a fala e a audição. Antes da rapidez do mundo digital das câmeras, gravadores, computadores e internet a reprodutibilidade de padrões artísticos em uma aldeia indígena não ocorria de forma a dar visibilidade ao que era produzido, eram como performances que ocorriam naquele momento, e se dissipavam no tempo, permanecendo apenas na memória. A passagem para o impresso de todos os signos não-verbais envolvidos na performance do contador é impossível, porém, isto não impede que o transcriador do texto tente minimizar essas limitações, explorando ao máximo os elementos gráficos, para, dessa forma, efetuar a tradução de certos elementos da performance para o registro impresso, como, por exemplo, a utilização de repetições e onomatopéias, com as quais é possível recuperar certas imagens de forma realista e poética, e, com elas, a dramaticidade do ato performático. A utilização de desenhos e grafismos também tem um papel crucial nessa tradução, uma vez que essas imagens encontram-se em pé de igualdade com o texto escrito. (Lima, 2010:6)

O desenho representado no papel, não perde suas conotações e denotações sociais, o que se modifica é apenas o suporte, suas qualidades permanecem intactas, e variam, conforme já mencionado de acordo com a etnia em questão. “Entre os Wayana o peso do ‘modelo’ tem sentido cosmológico. Inovar é perigoso, porque o modo certo de se produzir corpos e artefatos foi estabelecido pelos demiurgos dos tempos da criação.” “...no caso Wauja, o ser parcialmente reproduzido no artefato pode se vingar se a confecção for artisticamente mal feita, enquanto entre os wayana existe o risco de a tradução do ser em artefato tornar-se tão completa que ele ganhe agência e vida próprias.” (Lagrou, 2009:23)

Ou seja, representar determinados seres no papel sem esmero pode implicar em vingança ou o contrário, uma boa representação pode trazer um ser sobrenatural a vida. Entre os Ikpeng não compartilhamos dessas observações, só pudemos perceber seu cuidado no desenho, forma e cores, e, principalmente, zelo em representar fielmente as características de determinados personagens mitológicos.

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Neste cenário, podemos perceber que o que figurava em corpos, objetos, cenas mitológicas, rituais e em um todo cultural e artístico, e ainda no imaginário, está sendo transposto para o papel, para a câmera e para o computador. O desenho sai do imaginário e da oralidade, dos objetos e da cosmologia, abandona a mente e se materializa no papel. É impressionante a facilidade de comunicação através das imagens e a compreensão de personagens, símbolos e códigos é imediata. Assim como a diferenciação de padrões que não pertencem aos Ikpeng e foram assimilados de outras etnias. (História Kaiabi “Um Grande Pajé” - anexo 28) E nesse ínterim, paralelamente ao papel, começa a figurar o livro, o áudio, a foto e o vídeo que são absorvidos, todos com a função de busca por preservação de todo o tipo de “costume original” 42, sem deixar de sorver o novo advindo de outras etnias indígenas e das sociedades nacional e internacional. Entendendo por costume original toda e qualquer prática que seja exclusivamente Ikpeng, mesmo com pequenas variações. É percebida, também, uma mudança significativa no contexto Ikpeng: a introdução do desenho figurativo como instrumento para representar a si, aos animais, as situações e as coisas. Anteriormente as expressões figurativas apareciam na construção de brinquedos (aviões, bonecos) e poderiam existir representações figurativas em desenhos na areia ou na terra, mas não em objetos e na pintura corporal. O desenho no papel é uma afirmação autêntica de sua integralidade, de sua alfabetização visual, de sua compreensão de códigos e padrões inerentes a si mesmo e ainda de sua flexibilidade ao assumir novos contextos, sejam eles indígenas ou não. A aprendizagem de técnicas de desenho e pintura também proporciona uma rápida modificação neste tipo de representação. Aos poucos, o desenho deixa de estar restrito apenas ao bidimensional destacado no estilo pictórico primitivo, mas começa a adquirir características de luz, sombra, profundidade e tridimensionalidade.

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Aspas nossas.

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É característica fundamental dentro do processo, a ideia da chegada do papel como veículo do desenho, veículo de expressão de um universo imagético arquetípico mesclado a um imagético social cotidiano. Neste sentido, a expressão artística dos povos indígenas é parte inseparável de sua formação social, não se constituindo, por essa razão, em atividade centrada na individualidade (Borges, 2003:89).

Como já explicitado anteriormente, a atividade artística indígena não é centrada na individualidade, mas recentemente, em certas situações passa a figurar o destaque individual, situação que antigamente era inexistente nessas sociedades. Um livro com seus autores, um filme com seus diretores, um desenho e seu artista. Gallois, destaca o fato ao descrever a situação entre os Wajãpi: Folhas de papel brancas ou coloridas, canetas e tintas diversificadas ampliaram as possibilidades de desdobramento e de combinação de padrões gráficos, valorizando tanto o conhecimento do repertório, como a expressão individual. (2002:40)

Levantamos a questão apenas para destacar o surgimento da individualidade artística antes inexistente, mas ela, não toma grandes proporções e a comunidade ainda é soberana.

2.8.2 O papel do desenho

Neste universo de auto-representação de códigos e simbologias, o desenho, novamente ao lado do vídeo, torna-se forte expressão para o autoreconhecimento e a afirmação social, uma valorização que permite a preservação de costumes como citado anteriormente. Essa situação de contato com o novo, também, introjeta uma espécie de ufanismo nos mais jovens, ajudando a salvaguardar os patrimônios imateriais de suas etnias, porém, em muitos casos, os anciãos que incentivam o aprendizado para que os mais jovens se interessem por sua própria cultura. Os mais jovens são apaixonados pela tecnologia e em parte pela cultura do não-indígena, mas são chamados pelos anciãos a buscarem identificações com as tradições utilizando esses instrumentos tecnológicos.

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O papel atual desenho (no papel, no vídeo,...) seria o de proporcionar um olhar para si mesmo a nível individual e comunitário. É um instrumento de percepção, um espelho. Na opinião de Jussara Gruber:

A combinação de padrões tradicionais e modernos, usada pelos Tikuna na decoração, contribuiu para ampliar a temática e criar uma maior diversidade de desenhos, técnicas e cores, determinando um estilo próprio que expressa o ajustamento da etnia a uma nova situação de vida, ‘demonstrando, assim, a capacidade de resistência dos indígenas ante a situação de contato, enquanto reorganizam seus códigos culturais para enfrentar as tensões vividas no cotidiano’. (Gruber apud Nogueira, 2010:26).

O que percebemos claramente é que o papel destinado ao desenho tem um lugar diferente em cada uma destas sociedades, em cada uma destas realidades. O desenho é expressão e comunicação, é agência. Ele não representa somente, ele representa e traz significado. O desenho é uma ligação entre o mundano e o sobrenatural, essa é a sua principal agência. A partir daí cada etnia vai incutir ao desenho seu papel social de acordo com sua história e mitologia. No caso dos kaxinawá é como se o desenho abrisse a pele para as intervenções rituais para que o corpo da criança seja fabricado, moldado e transformado. (Lagrou, 2009: 35, 36) ele é parte fundamental nos rituais, atuando por diferentes vias. As intervenções acontecem na maioria dos ritos de passagem ameríndios com intuito de moldar tanto os indivíduos quanto seus corpos para transformá-los em adultos. Estes processos de reclusão, dieta, banhos medicinais, tatuagens ou perfurações, testes de resistência entre outros procedimentos visam moldar o indígena física, mental e emocionalmente. (ibdem)

Outro dado interessante sobre o desenho Kaxinawá, é que o grafismo, aquele pintado na pele ou trançado no algodão dos tecidos segundo Lagrou “não representa os seres vistos em sonhos mas os caminhos que ligam e filtram o acesso a mundos diferentes.” (2009:82)

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Também encontramos em comum nas sociedades ameríndias a atribuição da criatividade inventiva aos seres sobrenaturais. Isso demonstra que a todo o momento a ligação com o mundo dos espíritos não é temporária, sendo o mundo sobrenatural aquele responsável direto pelas regras de conduta social:

“Quando predomina a dificuldade técnica, serão prezadas a concentração, habilidade, perfeição formal e disciplina do mestre. Mas, quando predomina a expressividade da forma, a fonte de inspiração é quase sempre atribuída a seres não humanos ou divindades que aparecem em sonhos e/ou visões. Dificilmente se responsabilizará a ‘criatividade’ do artista pela produção de novas formas de expressão. O artista é antes aquele que capta e transmite ao modo de um rádio transistor, do que um criador.” (Lagrou, 2009:22)

2.9 O lugar do livro

O livro pode ter lugares distintos em sociedades distintas, porém, nas sociedades nas quais é um objeto comercial, sua circulação é a principal premissa para a sua existência. Sua tradução para diversos idiomas, edições mais baratas e o e-book são alguns dos meios que visam aumentar sua circulação e aceite por parte do público leitor. Os livros indígenas não são comerciais, seu público é restrito geralmente a comunidades e pesquisadores, sua circulação e aceite são de menor monta. Na sociedade nacional, uma das facetas mais importantes relacionadas ao livro é a sua distribuição. As editoras, bem como as empresas fonográficas sempre detiveram os direitos de seus conteúdos, pagando pouco aos escritores ou artistas. Porém, na época da reprodutibilidade técnica que se acentuou com a era digital, parte desse domínio foi se perdendo, e agora, os conceitos com relação a direito de autor e a como lucrar com a produção criativa estão sendo revistos.

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“Generalizando, podemos dizer que a técnica da reprodução destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido. Na medida em que ela multiplica a reprodução, substitui a existência única da obra por uma existência serial. E, na medida em essa técnica permite à reprodução vir ao encontro do espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto reproduzido.” (Benjamin, 1994:168,169)

Filmes, músicas e livros estão sendo reproduzidos, copiados e distribuídos com facilidade, modificando a relação do consumidor com os produtos e também sua forma de recepção. É a pirataria, que gera debates acalorados sobre os reais custos de uma obra criativa que pode ser reproduzida a qualquer tempo. Antes era no cinema ou na TV, hoje pode ser no computador, antes era no rádio, fita cassete, LP ou CD agora no computador, antes eram páginas impressas, atualmente estão, também, disponíveis no computador, e, podem estar em outros aparelhos, tais como tablets, celulares e toda a sorte de portáteis pequenos e práticos. O acesso a esses conteúdos também está ocorrendo por parte de populações indígenas, mas nem todas, nem tão facilmente quanto na sociedade nacional, nem sempre na mesma velocidade recebem as novidades do mundo contemporâneo. As tecnologias demoram mais a alcançar as populações indígenas, devido à distância e ao alto custo de equipamentos que dificultam, mas não impedem o acesso. Ao mesmo tempo em que acessam, os indígenas aprendem a utilizar as ferramentas. Na sociedade nacional experimentamos uma mudança nos padrões de escrita, nas relações e no cotidiano, todas ligadas à mudança de comunicação que advêm da era digital. Os indígenas também experimentam essa mudança e ela influencia o lugar do livro, tanto aqui quanto lá, na sociedade Ikpeng. “...o acesso a novas técnicas pode ter resultados notáveis, apesar de as capacidades cognitivas permanecerem as mesmas. Pessoalmente vou mais longe, pois para mim a aquisição destes novos meios de comunicação transforma efetivamente a natureza dos processos cognitivos, de tal modo que leva a dissolução parcial da fronteira erguida por psicólogos e linguistas entre competência e performance” (Goody,1988:28,29)

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Na comunidade Ikpeng o alcance da internet ainda é pequeno, do livro também, mas o vídeo se torna uma ferramenta de destaque. Assim como a escola instituída dentro da comunidade traz uma mudança significativa, o olhar através da câmera modifica a performance ritual a partir de uma autoreferência que antes era inexistente. A leitura de livros de conteúdo e ilustrações Ikpeng modifica a receptividade às palavras e aos conteúdos escolares. (Como seria ler o mito de origem de seu povo e ouvir esse mesmo mito? “A origem do povo Kisedje” – anexo 29) Diante deste cenário não acreditamos que as capacidades cognitivas possam permanecer simplesmente as mesmas. Na atual conjuntura da era digital, o ato de adquirir conhecimento por parte das sociedades indígenas está sendo modificado e as novas gerações já demonstram esta mudança. O livro, na sociedade Ikpeng, está ligado intrinsecamente à escola, fora dela, seu espaço de ação ainda é pequeno. Porém, começa a fazer parte do ambiente da Casa de Cultura Mawo, ainda que timidamente. Como mencionado, o alcance do vídeo é bem mais amplo, talvez pelo fato de sua maior identificação e também por sua característica audiovisual. A percepção do espaço do livro é mutável, ou seja, o lugar do livro é a circulação do livro, não só material, mas no imaginário da comunidade, a partir do momento que ele conquista seu status de pertencimento. O lugar do livro é também a forma como é utilizado, sua usabilidade. Palavra já mencionada que não exprime só o sentido de utilização, mas também está relacionada à facilidade de uso. Apesar de sua forte ligação com a escola, o lugar do livro na sociedade Ikpeng é desconhecido, ainda está sendo traçado. O livro indígena é um objeto novo, tal qual a escrita. Mas percebemos que, ocupa ao lado do vídeo e do tesauro (banco de dados) o lugar de objeto que resguarda, preserva e salvaguarda o patrimônio da cultura Ikpeng.

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2.10 O livro Ikpeng

Viajamos por toda uma gama de assuntos, até chegar nos livros do povo Ikpeng, cerne desta pesquisa. Esse povo bravio que vive as margens do rio Xingu, possui toda uma mitologia e uma organização social peculiares. Apresentamos um mito, descrito pelo professor Korotowï

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em seu trabalho sobre o

ritual da tatuagem (Taffarel, 2010) para ajudar na compreensão de sua cosmovisão.

O mito de origem dos Ikpeng

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Segundo o ancião Aporike Ikpeng, antes de morarem na superfície na terra, viviam debaixo da água, junto com os animais, tendo como base de alimento as frutas silvestres. Arepo era uma mulher que foi a mãe de todos que viviam ali. Dessa mulher nasceram três meninos: Onongyewï, Reagï, Makra e três meninas: Enmangru, Rïngkawo e Opogi Essas pessoas eram descendentes das árvores, os irmãos tinham nomes de árvores como: Onongyewï, Raegï e Makra. Esses nomes os Ikpeng não usam mais. Mas os nomes das meninas ainda são usados até hoje. Certo dia os irmãos saíram da água, na superfície da terra e viram que ali era um lugar muito lindo, que tinham pássaros, animais, árvores e frutas. Voltaram para o fundo da água e contaram para sua mãe Arepo, mas a mãe deles já sabia da existência desse lugar, só nunca tinha contado para os filhos com medo de ser abandonada por eles, por isso nunca comentou sobre essa terra. Disseram para sua mãe que tinham saído na superfície da água e que viram um lugar muito lindo e limpo, que poderiam mudar de lugar de onde estavam vivendo que era muito triste viver só entre eles. A mãe deles aceitou a ideia e se mudaram daquele lugar, mas só que ela não iria com eles. Onongyewï, Raegï, Makra, Enmangru, Rïngkawo e Opogi saíram do fundo da água para fora. Como não tinham outras pessoas ali morando, passaram a casar com as próprias irmãs, assim eles foram aumentando a sua população.

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O professor Korotowï Taffarel hoje designa-se por outro nome, Yakuna. Mudança comum nesta sociedade, os Ikpeng podem ter de seis a quinze nomes em média. (consultar anexo15)

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Transcrição literal de TAFFAREL, Korotowi. O Ritual da Tatuagem: Educação Ambiental e Prática Cultural entre os Ikpeng. Dissertação de mestrado. Orientador: Januário, Elias Renato da Silva. Cárceres, MT: Universidade do Estado de Mato Grosso, 2010.

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Este é um dos mitos fundamentais da cosmologia Ikpeng, a maioria dos mitos tem uma relação direta com os animais, um deles fala de quando os Ikpeng eram animais, outros sempre falam dos saberes Ikpeng que foram ensinados ou trazidos por algum animal. A escola, acaba por reforçar e reavivar esses mitos. Percebemos isso claramente em uma fala Ikpeng na apresentação de um dos livros analisados: “Para ter a história completa, cada aluno/autor contribuiu com as informações necessárias e o resultado desses textos é essa verdadeira história do povo Ikpeng porque foi contada por pessoas de sua própria etnia. Cada um que escreveu essa história foi responsável tam45 bém por sua ilustração.” (Ikpeng, 2007)

A proposta inicial deste trabalho era pesquisarmos os livros didáticos indígenas, porém, em campo, uma questão se fez presente: atualmente todos os livros indígenas são didáticos? A resposta era rápida, todos não, mas sua maioria, sim. Como descrito nos capítulos anteriores, a escrita, a escola e todo o conjunto de ações e reações que elas trazem às comunidades ágrafas compõem um processo relativamente recente. Partindo deste foco e consultando as publicações de instituições, principalmente o MEC no que se refere a livros indígenas, podemos perceber que a grande maioria de títulos é usada no contexto escolar, mesmo que não tenham sido produzidos exclusivamente para esta finalidade. Os livros ainda não adquiriram o mesmo caráter dos filmes indígenas, de ser um produto que pode apresentar o povo a sociedade envolvente e a outras sociedades. Em sua maioria os livros ainda se prestam a um papel interno de ensino e vitalização cultural. O que é um livro didático se não um livro específico para o ensino, próprio para a instrução. A realidade destas sociedades é uma mudança de postura frente as suas culturas, num forte movimento de preservação e salvaguarda, como já explicitado, que é reforçado em termos pela sociedade nacional, minimamente através de políticas (apesar de serem escassos os conjuntos de ações mais eficientes). O que se destaca é o fato de que mesmo que em alguns casos, o livro não seja didático, sua ideia o é, pois busca preservar conheci 45

Texto de apresentação do livro “Ikpeng Ungwophole”.

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mentos ancestrais ameaçados de desaparecer em meio à oralidade, justamente através do ensino. Os livros Ikpeng são parecidos com a maioria dos livros didáticos indígenas aos quais tivemos acesso. Publicações simples onde o conteúdo é produzido pelos próprios indígenas, normalmente em equipes multidisciplinares de trabalho junto à linguistas, antropólogos, educadores, designers, artistas entre outros. Outra característica marcante dos livros de escrita indígena é seu grande apelo visual. A grande maioria deles é altamente ilustrada com desenhos em cores vivas feitos pelos próprios autores individual e/ou coletivamente, levando alguns a considerá-los até como um fenômeno novo da arte indígena. (Souza, 2011)

O livro Ikpeng passou a ser algo conquistado pela comunidade, um livro com o formato e conteúdo direcionado pela cultura não-indígena, porém, buscando de alguma forma em seus textos e ilustrações, abordar conceitos específicos do meio indígena. “Estes elementos conquistados sobre – ou negociados com - o exterior precisam ser pacificados, familiarizados. Este processo de transformação do que é exterior em algo do interior tem características eminentemente estéticas.” (Lagrou, 2009:56)

2.10.1 Os livros selecionados

Ao fazer a escolha dos livros, optamos por nove títulos, dentre os 15 publicados pelos Ikpeng. Os seis livros que não fizeram parte da seleção são todos editados em conjunto com outros povos do Xingu. Embora, dois dos livros selecionados se encaixem neste quesito porque constituem uma amostragem relevante para o estudo. Os nove livros possuem uma boa abrangência dentro do material publicado pelos Ikpeng e podem oferecer uma amostragem de sua linguagem visual, principalmente os seis livros que possuem conteúdo somente Ikpeng. Em 2010 foram publicados mais dois novos títulos pela Universidade do Estado do Mato Grosso, que serão apenas mencionados não constando da análise

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desta pesquisa. São eles: Brinquedos e Brincadeiras Ikpeng, Série Experiências Didáticas de Pitoga Mkne Txikão, Elias Januário e Fernando Selleri Silva e Ritual da Tatuagem: Entre os Ikpeng, Série Práticas Interculturais de Korotowï Taffarel e Elias Januário. Apesar da quantidade ser pequena, os livros foram divididos em três grupos para facilitar a análise. São eles: a. Livros didáticos: dois são os livros com função didática claramente definida; relacionados ao ensino da língua e da escrita e também de hábitos de higiene e saúde. São eles: Livro de atividades usado na alfabetização em língua materna Ikpeng Orempanpot de Korotowï Ikpeng, Iokoré Ikpeng e Maiua Ikpeng Livro de saúde em língua materna Ikpeng Agïngpïnpe Itowo de Korotowï Ikpeng, Iokoré Ikpeng, Maiua Ikpeng e Pitoga Ikpeng

b. Livros de conteúdo: são cinco livros que falam de temas importantes para os Ikpeng, três deles sobre questões ambientais e dois deles sobre ancestralidade e cultura. São eles: Livro sobre a água Ga de Iokoré Ikpeng, Korotowï Ikpeng, Maiuá Txicão, Elias Januário e Fernando S. Silva

Livro sobre a terra Orong de Iokoré Ikpeng, Korotowï Ikpeng, Maiuá Txicão, Elias Januário e Fernando S. Silva

Livro sobre a floresta Irwa de Iokoré Ikpeng, Korotowï Ikpeng, Maiuá Txicão, Elias Januário e Fernando S. Silva

Livro que fala sobre quando os Ikpeng eram animais Ikpeng Ungwophole de Iokoré Ikpeng, Korotowï Ikpeng, Maiuá Txicão, Elias Januário e Fernando S. Silva

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Livro sobre a pintura corporal Pintura Corporal Ikpeng de Iokoré Ikpeng, Korotowï Ikpeng, Maiuá Txicão e alunos da aldeia Moygu

c. Livros de etnias do Xingu: São dois livros elaborados em conjunto com diversas etnias e com organização do Instituto Socioambiental. Envolvem os seguintes povos: Kamaiurá, Waurá, Matipu, Aweti, Trumai, Kaiabi, Suyá, Kuikuro, Ikpeng, Kalapalo, Panará, Mehinaku, Yudja, Juruna, Yawalapiti. São eles: Livro de mitos de povos indígenas do Xingu Memórias de Tempos Antigos Livro sobre ecologia economia e cultura Ecologia, Economia e Cultura – Parque Indígena do Xingu Espera-se através desta amostragem poder oferecer um panorama sobre os livros do povo Ikpeng, passando pelas questões da escola diferenciada, da alfabetização visual e linguagem visual utilizada nos projetos gráficos. (Imagens das capas dos livros - anexo 30)

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O mundo não foi feito em alfabeto. Senão que primeiro em água e luz. Depois árvore. Manoel de Barros

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3. Linguagem Visual Ao refletirmos sobre o que seria linguagem visual, podemos fragmentála em seus dois elementos básicos, a visão e o objeto a ser visto. Podemos dizer que a visão depende do aparelho humano (o olho) e da luz. A partir da visão humana, é necessário cogitarmos que:

Nossa visão difere da dos outros animais, não apenas em dados de quantidade, mas principalmente em qualidade. Ela é coadjuvada pelo cérebro, o que lhe dá a possibilidade de projetar nas coisas as dimensões de nossos sonhos, povoando o universo legível com os elementos de beleza e espiritualidade, próprios das aspirações humanas. O cérebro realiza um permanente trabalho de avaliação, análise e correção das imagens visuais recebidas. Tal correção é feita em estágio de pré-consciência, influenciada pelo acervo de nossos conhecimentos relativos ao mundo objetivo. (Pedrosa, 1977: 31)

Ou seja, quando pensamos em linguagem visual ainda temos que estar atentos ao fato de que não basta esmiuçar todos os fragmentos desta relação da visão com o objeto e suas qualidades visuais que podem ser lidas, existem ainda, e fortemente presentes, os aspectos psicológicos e culturais. Segundo Dondis, os habitantes de florestas têm dificuldades para enxergar em planícies abertas com luz intensa, já os habitantes de desertos possuem dificuldades para enxergar em locais fechados. “Estas são as condições puramente psicológicas, mas os padrões sociais e o comportamento dos grupos em si e com relação a outros grupos exercem enorme influência sobre a percepção e a expressão.” (Dondis, 2007:166) Outro dado é a diferença entre visão e visualidade. Visão pode ser definida como sendo o processo fisiológico em que a luz impressiona os olhos e a visualidade como o olhar socializado. (Walker e Chaplin apud Sardelich, 2006) O sistema ótico de um brasileiro que mora em Santa Catarina, um Kuikuro que vive no Xingu, um aborígene australiano e um japonês é o mesmo. Porém sua forma de ver, compreender e descrever as coisas do mundo é diferente, e assim abre espaço para a construção de diferentes sistemas de representação e comunicação.

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Podemos citar os esquimós que distinguem vários tons de branco em sua paisagem cotidiana, e entenderemos que nosso conceito de espacialidade, formas e cores baseia-se primordialmente em nosso habitat, e que depois, poderá ser expandido ou comprimido. Um claro exemplo disto é a nomenclatura das cores nas sociedades ditas como primitivas. Segundo Maria Heloisa Fénelon Costa, muitos dos povos xinguanos possuem apenas uma palavra para designar azul e verde. (1988:23,24) Outro exemplo seria a palavra aoi que em japonês pode significar tanto azul quanto verde. Apesar de ainda utilizarem esta nomenclatura, hoje em dia os japoneses possuem palavras diferentes para as duas cores. As cores em Ikpeng são ligadas aos nomes da natureza que os cerca. O azul e o preto têm nomes em comum, talvez devido ao preto azulado do jenipapo que colore os corpos. Aptxim ampogangmo é verde, e significa parecido com folha ou cor de folha, já que aptxim é folha. kïrïtpo pode ser azul ou preto, azul claro é kïrïtpo wan e o escuro é tongyo mumu. Tongyo é um tipo de ave, o macuco e mumu é ovo. Já que o ovo desta ave é azul escuro, o nome da cor ficou como “ovo de macuco”. Nas sociedades ameríndias a visão é um preceito dos xamãs ou pajés. Ao cidadão comum resta adquirir e aperfeiçoar os sentidos da audição e da fala por serem os necessários ao bem viver cotidiano nestas comunidades, e serem considerados de suma importância. Seeger ao escrever sobre os Suyá da família lingüística Jê, atualmente conhecidos como Kisêdjê, comenta que este povo acredita que o ouvido seja o receptor e depositário dos códigos sociais, ao invés da mente. Quando aprendem algo, mesmo visual tal qual um padrão de tecelagem, eles dizem: “está no meu ouvido”. (1980:47) Em nosso parco conhecimento sobre a língua Ikpeng, aprendemos que a palavra mirang quer dizer ouvir, mas possui sentido de entender, compreender. A linguista Angela Chagas46,ainda, acrescenta:

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Angela Chagas em conversa informal durante o Projeto de Documentação da Língua Ikpeng (Prodoclin - Museu do Indígena - Funai - Unesco) – setembro de 2010.

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Embora a escrita tenha entrado na cultura deles nos últimos anos, eles são uma sociedade de tradição oral, então, “Mirang” significa ouvir e entender, porque para eles, para entender você precisa ouvir (a fala do outro). Pode significar, palavra, narrativa, oralidade, história e coisas do gênero. As histórias vêm seguidas dessa palavra, porque são narrativas orais.

Porém, não se pode reduzir a palavra somente a isto. É uma palavra de ampla utilização, não restrita a apenas um significado. A relação com os sentidos da audição e da fala, como já citado, é primordial no aprendizado dos povos indígenas. No entanto o que é perceptível, é a mudança do caráter da faculdade do olhar, que, com a chegada de novos instrumentos passa a não ser somente o olhar do xamã. Recentemente vem ocorrendo uma aproximação entre etnias e também com a sociedade nacional e internacional através dos filmes indígenas e outros produtos tais como livros e sites. O momento é de se mostrar ao mundo e aprender através de filmes e produtos audiovisuais como é o mundo que os circunda. É importante ressaltar que falamos a partir desta nova conjuntura, vivenciamos um momento de mudança, onde, de certa forma, o sentido da visão parece adquirir novas prerrogativas. Por este intenso contato, novas formas de se relacionar com este sentido estão presentes e tornam-se reais e urgentes. O uso de ferramentas em que esta faculdade do olhar é requerida está mais comum, e pode vir a modificar alguns paradigmas sociais. O livro e o cinema (ou vídeo) são os novos sujeitos desta cultura visual que surge nas sociedades indígenas brasileiras. Por vezes, pode parecer estranho mencionar o cinema (podendo ser entendido como audiovisual, de certa forma abrangendo o áudio isolado e a fotografia) dentro do contexto desta pesquisa, mas, não há como dissociá-lo deste processo “visual” do qual o livro como objeto faz parte. Tal qual Dondis afirma:

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Se a invenção do tipo móvel criou o imperativo de um alfabetismo verbal universal, sem dúvida a invenção da câmera e de todas as suas formas paralelas, que não cessam de se desenvolver, criou, por sua vez, o imperativo do alfabetismo visual universal, uma necessidade que há muito tempo se faz sentir. O cinema, a televisão e os computadores visuais são extensões modernas de um desenhar e de um fazer que têm sido, historicamente, uma capacidade natural de todo ser humano, e que agora parece ter-se apartado da experiência do homem. (Dondis, 2007:1)

A afirmação de Dondis se faz sentir também nas sociedades indígenas, ou elas carregam algum tipo de alfabetismo visual específico? Qual seria a sua linguagem visual? Falamos sobre o preceito da visão. Já o objeto (seja ele qual for), pode ser decomposto em várias facetas, partindo do pressuposto da linguagem visual de Dondis: ponto, linha, forma, direção, tom, cor, textura, dimensão, escala e movimento. O trabalho de Dondis foi baseado nos estudos de Rudolf Arnheim47 que estabeleceu dez categorias visuais: equilíbrio, figura, forma, desenvolvimento, espaço, luz, cor, movimento, dinâmica e expressão. Dondis, a partir destas categorias e do estudo dos aspectos representacionais, abstratos e simbólicos das imagens, propõe o que seria uma alfabetização visual. O que fica claro diante das prerrogativas de visão e objeto como sendo os elementos principais da linguagem visual, e posteriormente o desmembramento do objeto em diversos aspectos a serem relacionados, é que a única coisa em comum relacionada a povos de diferentes culturas é o aparato da visão, o restante está atrelado a aspectos psicológicos que estão conectados diretamente às realidades sócio-culturais. Como poderíamos compreender então a linguagem visual da qual falamos? A linguagem ocupa uma posição única no aprendizado humano, funcionando como meio de armazenar e transmitir informações, é um meio fundamental para que a mente humana seja capaz de conceituar. (Dondis, 2007:14)

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Rudolf Arnhein (1904-2007) foi um psicólogo alemão behaviorista. Seus principais livros são Arte e Percepção Visual de 1954, Pensamento Visual de 69 e O Poder do Centro: um estudo da composição nas artes visuais. de 82.

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“Na verdade, toda atividade indígena está impregnada de senso estético. Em algumas esferas, porém, como é o caso do ritual, o conteúdo artístico adquire maior significado, na medida em que explicita símbolos singularizadores da identidade étnica. Condicionada pela estrutura social, a arte, estabelece um vínculo com a sociedade, transcendendo-a e influenciando-a. Dessa forma, a força associativa da arte reflete e integra os diferentes conteúdos da cultura – a organização social, a religião,a mitologia – exprimindo, no estilo artístico, uma linguagem visual, a essência do seu modo de ser.” (Ribeiro, 1989)

O que seria então a linguagem visual? O visual é algo direto, existem poucos filtros, a visão afeta todos os outros sentidos instantaneamente, basta lembrar do ditado popular “O que os olhos não vêem, o coração não sente”. Romantismos à parte, o sentido da visão apreende o objeto visto sem atravessadores, porém muitas variáveis podem afetar a veracidade do que é visto. Todos os outros sentidos podem afetar a visão, além dos estados de ânimo do indivíduo e, também, construções de hábitos culturais e espaciais. O que acontece com relação a nossa consciência da substância visual é que sua percepção não ocorre apenas através da visão, mas através de todos os sentidos, e não produz segmentos isolados e individuais de informação, mas sim unidades interativas integrais, totalidades que assimilamos diretamente e com grande velocidade através da visão e percepção. (Dondis, 2007:229) Não são necessárias comparações acerca das diferenças entre a linguagem visual e a escrita, o que cabe destacar é que ambas são formas de comunicação do homem, sendo que a escrita foi criada por e para ele, e a comunicação visual é congênita. Apenas a compreensão de que são formas distintas, e muitas vezes complementares - no caso dos livros - já é suficiente para esta análise. Há aspectos paralelos às questões de linguagem e alfabetização visual, que podem nos ajudar a pensar essas questões. Um deles é a cultura visual, aspecto mais abrangente que a linguagem visual, e outro, a leitura de imagens, que está imbricado com a alfabetização visual, porque na verdade tratam das mesmas formas de se relacionar com o objeto visto. Aspectos que serão abordados posteriormente.

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3.1 Alfabetização visual

Alfabetizar48 significa ensinar a ler. A leitura está diretamente ligada à linguagem, e esta ao aprendizado de códigos por parte do leitor. “A linguagem é simplesmente, um recurso de comunicação próprio do homem, que evoluiu desde sua forma auditiva pura e primitiva, até a capacidade de ler e escrever.” (Dondis, 2007:2) Já, o modo visual constitui “todo um corpo de dados que, pode ser usado para compor e compreender mensagens em diversos níveis de utilidade, desde o puramente funcional até os mais elevados domínios da expressão artística.” (op.cit 2007:3) Entendemos que o modo visual também é linguagem, linguagem visual. Para Dondis o alfabetismo significa que um grupo compartilha o significado atribuído a um corpo comum de informações; (2007:3) isto é, quando a representação através do desenho é reconhecida (lida) por um conjunto de pessoas e elas conseguem se comunicar através desta linguagem, estamos assistindo a uma comunicação visual, que pressupõe uma alfabetização visual. A arte indígena tem sido estudada sistematicamente, principalmente no que tange às questões das representações gráficas (grafismos) como uma linguagem visual. Ou seja, como um veículo portador de mensagens inteligíveis para seus usuários. O que para um observador estranho de uma determinada cultura pode parecer um padrão meramente decorativo em um determinado artefato, para a comunidade desta mesma cultura é um motivo que informa sobre a cosmovisão de seu povo. (Nogueira,100:67)

Como já expresso, a hipótese deste trabalho é de que os Ikpeng já são visualmente alfabetizados, através de sua oralidade, gestualidade e arte. Para corroborar esta ideia, trabalharemos os conceitos abordados por Donis A. Dondis em seu livro Sintaxe da Linguagem Visual, onde fragmenta o elemento visual em conceitos, para uma proposta de um devir, de uma alfabetização visual contemporânea. Lembramos que toda a ideia de Dondis está enraizada nos pressupostos sócio-culturais da sociedade ocidental, sendo por isso apenas um 48

MICHAELIS, Moderno Dicionário da Língua Portuguesa.Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno /portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=alfabetizar>. Acesso em: 30 jul. 2010

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exemplo de proposta, que se for usada no âmbito educacional deve ser adequada às realidades locais. Mirzoeff enfatiza que a noção de cultura visual é nova precisamente por centrar-se no visual como um lugar no qual se criam e se discutem significados. Dessa forma, se distancia das obras de arte, dos museus e do cinema para focalizar sua atenção na experiência cotidiana. Do mesmo modo que os estudos culturais tratam de compreender de que maneira os sujeitos buscam sentido ao consumo da cultura de massas, a cultura visual dá prioridade à experiência cotidiana do visual, se interessa pelos acontecimentos visuais nos quais o consumidor busca informação, significado e ou prazer conectados com a tecnologia visual. O autor define a tecnologia visual "como qualquer forma de dispositivo desenhado para ser observado e ou para aumentar a visão natural, abarcando da pintura a óleo até a televisão e a internet" (Mirzoeff apud Sardelich, 2006:5).

De acordo com a concepção apresentada, a cultura visual nos traz uma proposta mais ampla. Ela inclui muito facilmente a ideia da alfabetização visual por parte dos povos indígenas. Trabalhando com o pressuposto de culturas visuais diferenciadas etnicamente, poderíamos entender que cada qual seria versado em seu arcabouço visual. No universo indígena, os códigos visuais são apresentados ao indivíduo desde que ele nasce. Vivendo na cultura oral os conhecimentos são transmitidos de forma diferenciada. Quando sua pele é pintada, quando utiliza adornos, confecciona objetos, dança e canta e principalmente em seu mitos, sua cosmovisão. Na sociedade Ikpeng todos são capazes de representar visualmente os seres mitológicos, porém, só alguns são indicados como representantes específicos, ou seja, maestros de certas artes. Ao compararmos com a nossa sociedade, não existe diferenciação neste processo, somos seres sociais e aprendemos desde muito cedo uma cultura visual, tal como os indígenas, porém, o que não apreendemos é o significado destes códigos visuais, por isso a diferenciação entre: olhar e ver, visão e visualidade. Nas sociedades indígenas a audição é a faculdade que deve ser dominada, não a visão, e a fala é seu complemento direto. Muitas vezes falam: “Quando você fala uma vez, os Ikpeng aprendem, Ikpeng não esquece”. Esta frase contém a premissa principal da educação Ikpeng. É ouvindo que aprendem e é através da fala que ensinam, apesar disso observar os processos a

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serem aprendidos é também uma premissa educacional. Então, por que pressupor uma alfabetização visual? Não podemos negar que existem semelhanças entre a alfabetização letrada e a visual. Ambas são exercícios diários de aprendizagem de signos. Todavia, o ato da visão49 é inerente ao ser humano, enquanto que a visualidade, a escrita e leitura devem, obrigatoriamente, ser adquiridas através da cultura. O domínio da escrita não pressupõe o domínio de outras capacidades relacionadas a ela tais quais: a interpretação de textos, a poesia e a compreensão de aspectos subjetivos. Este domínio é adquirido em processos de ensinoaprendizagem. Nem todos alfabetizados tornam-se escritores ou poetas. No caso da alfabetização visual, sabemos que todos vêem, mas nem todos adquirem os aspectos da visualidade. E os que adquirem a compreensão das mensagens visuais não precisam necessariamente se tornarem artistas, designers ou arquitetos. Contudo, a sociedade atual está cada vez mais priorizando o aspecto visual. A fala não perde seu status, mas, a mudança nas formas de comunicação das novas gerações, vide celular, computadores e similares, modifica a forma da palavra escrita, reduzindo-a e abreviando-a. Por outro lado, a fotografia e o vídeo ganham um espaço de destaque. Tudo isso, modifica os processos de ensino-aprendizagem que devem acompanhar as mudanças captando esse novo formato baseado no sentido visual. “O meio digital promove uma democratização no acesso à informação. O problema é que o acesso não basta. Informação temos em excesso e o acesso a ela está cada vez mais fácil. O problema é como selecionar o joio do trigo. Um dos grandes desafios da escola é justamente ajudar os jovens nessa empreitada”, pondera Santaella. “Além disso, o professor, em geral, é um ‘iletrado digital’, que sabe menos do que os alunos: tem pouco a ensinar nesse departamento e muito a aprender. Não se trata apenas de reivindicar um aparelhamento das instituições de ensino, mas uma preparação do docente, porque se isso não ocorrer os professores vão continuar a defender que o suporte digital não é aprendizagem.” (Santaella e Zilberman apud Haag, 2011: 4)

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Visualidade abrange o ato de ver e compreender códigos culturais. (definição nossa).

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Na educação escolar indígena isso não é diferente, principalmente porque os povos ágrafos possuem uma identificação muito maior com a imagem e com o som do que os de cultura letrada. De qualquer forma, na sociedade ocidental os processos cognitivos estão se modificando diante desta realidade, e é nesta nova conjuntura visual e comunicacional que se insere a educação indígena e suas produções. Podemos citar quatro tipos de alfabetização que estão em voga: a alfabetização letrada e a digital e a alfabetização visual e a audiovisual. Para se viver no mundo contemporâneo em determinadas sociedades as aptidões necessárias se modificam cada dia mais rapidamente. Hoje em dia as alfabetizações letrada e digital são fundamentais em diversos setores sociais. De acordo com o senso comum percebemos que a alfabetização visual é dispensável porque se entende que como o ato da visão é inerente ao indivíduo ele irá adquirir as capacidades necessárias a lidar com a visualidade através dos meios educacionais da própria sociedade. Esse é um pensamento errôneo, principalmente no momento atual, quando a sociedade ocidental está modificando seus padrões comunicacionais. Um indivíduo que é capaz de se comunicar, oral, escrita e visualmente (e digitalmente) em sua sociedade pode exercer com plenitude seus papéis sociais e tornar-se um indivíduo mais completo. As capacidades de comunicação e interação facilitam as relações com o outro, premissa básica para a vida em sociedade. Reichel-Dolmatoff, buscando entender melhor certos aspectos da cosmologia dos Tukano, examinou os desenhos de homens que passaram por experiências alucinógenas e redesenhou os principais motivos retratados em cartões. Depois, inquiriu seu significado aos próprios desenhistas e a outros membros da comunidade. Surpreendeu-se ao verificar que a maioria das interpretações coincidiam. Isso o fez concluir que eram motivos codificados, que possuíam valor ideográfico. (Reichel-Dolmatoff apud Ribeiro, 1992:46) Essa ideia nos faz entender as sociedades ameríndias como portadoras de um saber visual, que pode ser considerado como alfabetização visual. Apesar do exemplo referir-se a outra etnia nos ajuda a corroborar a hipótese de que os Ikpeng são visualmente alfabetizados. Todavia, não tivemos oportunidade de aplicar semelhante pesquisa.

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3.2 Linguagem Visual Ikpeng

Num primeiro momento, para uma pessoa que nunca teve acesso aos livros indígenas, a observação que podemos ouvir sobre os livros Ikpeng seria de que são livros desenhados por crianças. Alguns poderiam dizer que são feios. Antropólogos ou pesquisadores talvez se interessassem por saber mais sobre os Ikpeng antes de emitirem opiniões sobre os livros. O que transparece é que são livros com aspecto escolar, em outra língua (a maioria deles em Ikpeng) e com a estética diferente da conhecida na sociedade nacional. E quais seriam as preocupações estéticas e não estéticas para com a construção desses objetos que temos nas mãos? Chegamos à conclusão de que o objetivo primordial destes livros é envolver as equipe indígena e não-indígena (que na verdade se tornam uma única equipe) a focar na comunicação de conteúdos específicos, eleitos pelos próprios indígenas, de forma diferenciada, buscando atingir o próprio público escolar indígena. O foco é a preservação da comunidade através dos conhecimentos que ficam impressos nos livros. Refletindo assim, acabamos por confirmar a ideia de que estes livros são didáticos, ou seja destinados ao ensino. E, também são livros que foram produzidos utilizando o conceito de design participativo. Interessante podermos chegar a essa conclusão. E ainda há outro ponto que os torna atrelados a instituição da escola, por possuírem textos, e de a leitura, um hábito ainda não consolidado, pertencer ao espaço da escola. A estética nunca é deixada de lado, pois ela é o ponto de ligação entre o livro e seu público, que em sua maioria são leitores em formação. O desenho é o elo que liga a escrita aos povos de culturas orais. É como se fizesse uma ponte. Ele narra a história, buscando o leitor através de um outro caminho cognitivo, o da imagem.

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“A imagem materializa uma unidade em que os elementos múltiplos e diversos são contíguos e se interpenetram. Pode-se falar da ideia contida na imagem, e descrever sua essência por meio de palavras. Tal descrição, porém, nunca será adequada. Uma imagem pode ser criada e fazer-se sentir. Pode ser aceita ou recusada. Nada disso, no entanto, pode ser compreendido através de um processo exclusivamente cerebral.” (Tarkoviski, 1998:42)

Lembramos, ainda, que os livros passam pelas mãos de indígenas não alfabetizados, no caso, os anciãos e talvez alguns outros membros da sociedade, e que, ainda assim, podem ser “lidos”50 através das ilustrações ou das vozes de parentes letrados. Inicialmente analisamos que as ilustrações possuíam o mesmo peso dos textos, mas ao compreender que a leitura e a escrita ainda não estão consolidadas vimos que muitas vezes, as ilustrações são sim a linguagem corrente nos livros indígenas. Elas são a língua corrente ao lado da oralidade, reconhecidas em objetos, rituais e no imaginário. Elas são a forma de autoreconhecimento no objeto do livro, até porque foram produzidas por membros da comunidade. A produção destes desenhos se deu sob o olhar atento da própria comunidade que pôde ver o desenho no papel se transformar em livro impresso. E será que existiria nos livros uma linguagem visual Ikpeng? Não seria necessário analisar em cada livro o que é ou não Ikpeng, entendendo que o livro é um híbrido indígena e não-indígena. Basta-nos saber que os desenhos são a linguagem visual Ikpeng expressa nos livros.

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Aspas nossas.

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3.3 O Processo de Criação

Os nove livros foram produzidos durante o desenvolvimento de projetos de formação de professores e em parcerias com a Unemat (Universidade do Estado do Mato Grosso) através do Proesi (Programa de Educação Superior Indígena Intercultural) e a organização não-governamental, Instituto Socioambiental. Cada qual com suas especificidades. No contexto do Projeto de Formação de Professores Panará Mebengokre e Tapajúna, do qual a pesquisadora participou como responsável pelo design dos livros, juntamente com a antropóloga Januária Pereira Mello, os livros eram criados em um processo multidisciplinar que envolvia uma série de profissionais, dentre eles, linguistas, educadores, antropólogos, professores indígenas e no final desta cadeia os designers. Os livros eram organizados em oficinas com os professores indígenas e passavam por um longo processo que ia da organização e produção do conteúdo (textos e ilustrações), tradução, quando necessário, e revisão. O processo é linear e as decisões são em grupo, normalmente decidese primeiro sobre o que precisam escrever, decide-se o formato, e começam a pesquisar, ilustrar e escrever, pensam, algumas vezes junto com o designer a organização das páginas. “Esse trabalho de pesquisa, que geralmente é realizado através de gravação com os velhos e também dentro das escolas com os alunos, gera um volume, muitas vezes grande e heterogêneo, de material.” (Lima, 2010: 7) Quando estão de posse do material bruto, os professores, alunos e pesquisadores indígenas, começam a decupar, transcrever e traduzir, quando necessário. Este processo caracterizava-se por um ir e vir entre os professores indígenas e outros profissionais envolvidos. Depois de prontos os conteúdos e os desenhos eram organizados pelo designer. E o livro refazia este mesmo caminho de ir e vir até satisfazer os anseios de quem iria utilizá-lo: os indígenas. Para, finalmente, ir para a gráfica e ser entregue nas escolas da aldeia. Isso caracteriza exatamente o processo nomeado como design participativo.

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Lima afirma que em sua experiência pôde comprovar que “fazer um livro, para um indígena, não é simplesmente escrever textos ou transcrever histórias, é montar página por página. Fazer um livro ou um vídeo é o mesmo que tecer, fazer artesanato, ou pintar um parente, é arte feita com muito esmero, na qual se retrata uma identidade uma visão de mundo. Uma obra Ikpeng nem de longe se confundiria com uma Xacriabá, cada uma delas carrega um estilo e um traço único de cada povo.” (2010:5)

Sabemos que os livros Ikpeng foram produzidos em contexto similares e que também contaram com equipes multidisciplinares e em alguns livros, diferentes etnias opinando na sua produção. Aqui falamos de uma realidade específica, a dos livros indígenas no Brasil. Em um contexto comercial, Hendel destaca que os designers de livro servem a dois clientes: o autor e o leitor (2006). Na maioria dos casos pode até se figurar esta relação, mas no caso dos livros indígenas autor e leitor são a mesma pessoa. Primeiramente, porque o livro é produzido em equipe, depois porque o livro passa pelas mãos de várias pessoas antes de sua aprovação. São os mesmos professores indígenas que formulam o conteúdo e coordenam o processo, os mesmos alunos, que acompanham o processo junto aos professores, fazem as ilustrações, utilizam e disseminam o livro na aldeia.

Na maioria das vezes, porém, sendo tutelados por pessoas de fora das comunidades indígenas, o processo de editoração desses livros, incluindo o tratamento gráfico final que lhes é dado, muitas vezes é controlado por pessoas que acabam também vítimas inocentes das armadilhas que separam a cultura oral da escrita. Como no caso dos gêneros textuais, muitas vezes esses “editores” desconhecem o papel e o valor do texto ou elemento visual naquela cultura indígena e, partindo de uma cultura escrita que dá primazia à palavra escrita, acabam confundindo-se e atribuem ao texto escrito (que para algumas comunidades indígenas apenas “ilustra” ou complementa um texto visual) maior importância do que ao texto visual. Aliás, o diálogo elaborado entre os textos visuais e escritos presente na nova escrita indígena ainda merece ser estudado como um fenômeno à parte. (Souza, 2011)

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3.4 Análises do Material Visual

Diante da tarefa de analisar nove livros da sociedade Ikpeng, foram muitas reflexões acerca do que analisar e do porque de escolher este ou aquele aspecto para a análise. Com o material em mãos, refletimos sobre por onde poderíamos começar, simplificando, dividimos em: forma e conteúdo. A forma é referente ao objeto em si e a sua funcionalidade, o conteúdo, refere-se ao conteúdo em si de textos e imagens, a impressão e o material gráfico apresentado. O objetivo deste trabalho é apresentar a linguagem visual Ikpeng através de seus livros, e comprovar a hipótese de que os Ikpeng são alfabetizados visualmente. Para isso, abordaríamos a linguagem formalista de Dondis, porém percebemos que seria insuficiente porque não abrangeria análises subjetivas dos livros. Anteriormente, havíamos dividido o livro Ikpeng a ser analisado em dois elementos principais dos quais surgiriam as demais análises: o livrográfico e o livro-objeto. No entanto, após inserirmos as questões referentes ao livro de artista nesta pesquisa, livro-objeto tornou-se um termo que poderia dar margens a conflitos teóricos. Por tal motivo, optamos por modificar os termos para: livro-forma, assim fica claro que o que está em voga é a análise da forma, e livro-conteúdo porque abrange informações adicionais sobre os textos e desenhos. O livro-forma é o tratamento dos aspectos do livro relacionados a ele como objeto: formato, tamanho, peso, encadernação e tipo de papel. Estes aspectos em muitos casos são ignorados, mas fazem parte do livro e podemos entendê-los como as premissas para sua usabilidade. Já livro-conteúdo é a forma de abordar o conjunto dos aspectos relacionados à impressão: capa, fonte, mancha gráfica, espaço em branco, cor e conteúdo e também as ilustrações e o texto. Porém, optamos por uma análise baseada diretamente no objeto escolhido, livro-forma e livro-conteúdo e nos aspectos da mensagem visual elencados por Dondis, representacional, abstrato e simbólico. Mesmo sabendo que esse movimento poderá conter, em parte, aspectos da semiótica.

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Compreendendo que o todo não existe sem as partes, e as partes não existiriam se não houvesse o todo, apesar de dividirmos o livro para facilitar as análises, sabemos que os aspectos descritos são interdependentes, alguns deles sendo apenas pertencentes à questão do livro indígena e outros a todos os tipos de livros. Lembramos que além das divisões acerca dos aspectos de análise da linguagem visual, para facilitar a compreensão, já que falamos de objetos e não iremos dispor de cópias dos mesmos, re-apresentamos a divisão acerca dos tipos de livros que temos em mãos: (imagens – anexo 30) a.Livros didáticos: dois são os livros com função didática claramente definida; relacionados ao ensino da língua e da escrita e também de hábitos de higiene e saúde. São eles: Livro de atividades usado na alfabetização em língua materna Ikpeng Orempanpot de Korotowï Ikpeng, Iokoré Ikpeng e Maiua Ikpeng Livro de saúde em língua materna Ikpeng Agïngpïnpe Itowo de Korotowï Ikpeng, Iokoré Ikpeng, Maiua Ikpeng e Pitoga Ikpeng b.Livros de conteúdo: são cinco livros que falam de temas importantes para os Ikpeng, três deles sobre questões ambientais e dois deles sobre ancestralidade e cultura. São eles: Livro sobre a água Ga de Iokoré Ikpeng, Korotowï Ikpeng, Maiuá Txicão, Elias Januário e Fernando S. Silva Livro sobre a terra Orong de Iokoré Ikpeng, Korotowï Ikpeng, Maiuá Txicão, Elias Januário e Fernando S. Silva Livro sobre a floresta Irwa de Iokoré Ikpeng, Korotowï Ikpeng, Maiuá Txicão, Elias Januário e Fernando S. Silva Livro que fala sobre quando os Ikpeng eram animais

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Ikpeng Ungwophole de Iokoré Ikpeng, Korotowï Ikpeng, Maiuá Txicão, Elias Januário e Fernando S. Silva Livro sobre a pintura corporal Pintura Corporal Ikpeng de Iokoré Ikpeng, Korotowï Ikpeng, Maiuá Txicão e alunos da aldeia Moygu c.Livros de etnias do Xingu: São dois livros elaborados em conjunto com diversas etnias e com organização do Instituto Socioambiental. Envolvem os seguintes povos: Kamaiurá, Waurá, Matipu, Aweti, Trumai, Kaiabi, Suyá, Kuikuro, Ikpeng, Kalapalo, Panará, Mehinaku, Yudja, Juruna, Yawalapiti. São eles: Livro de mitos de povos indígenas do Xingu Memórias de Tempos Antigos Livro sobre ecologia economia e cultura Ecologia, Economia e Cultura – Parque Indígena do Xingu

3.4.1 O livro-forma

O objeto livro não é muito atraente na aldeia. Seu poder de atração acaba por concentrar-se nas ilustrações. Também é um objeto inapropriado para aquela realidade, um meio onde terra, areia e umidade são comuns. Um livro pode se deteriorar facilmente no ambiente de uma aldeia caso não tenha sido criado para adequar-se a ele. Sua forma quadrada ou retangular não se parece com as formas conhecidas ancestralmente, porém já foi assimilada e proporciona facilidade no manuseio e transporte do objeto. E, para observarmos os aspectos de forma do livro, enumeramos sete itens, os quais consideramos principais para detalhar a forma do livro Ikpeng. São eles: formato, tamanho, peso, número de páginas, encadernação e tipo de papel. Usualmente o formato dos livros está diretamente ligado ao fator custo. O formato está ligado aos tamanhos de papéis disponíveis no mercado e a um

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melhor aproveitamento destes, o que pode baixar consideravelmente o preço da edição, assim como a escolha do tipo do papel e sua gramatura. O tipo de encadernação e o número de páginas também estão ligados a esse fator, ou seja o livro-forma depende diretamente da verba disponível para o projeto, e por serem não comerciais, as verbas disponibilizadas não permitem edições luxuosas, pelo contrário, são simples e baratas na maioria das vezes. Por isso, dentro de projetos de formação de professores, ou outros projetos de publicações indígenas, na maioria de casos, as escolhas de formato, ocorrem diretamente influenciadas ou regidas pela verba disponível para a impressão. Raramente é possível escolher os itens que formarão o livro-objeto apenas baseados na estética dos materiais. Porém, a criatividade e a disponibilidade de materiais no mercado podem fazer a diferença nas publicações.

3.4.1.1 Formato

Richard Hendel afirma que, desde a época de Gutenberg, tem-se acostumado com maior freqüência a fazer livros na forma de retângulos verticais, que seguem aproximadamente, embora sem muita precisão, o número áureo, um conceito renascentista da proporção ideal. (2006:34) Sobre o objeto do livro, Bruno Munari afirma que quando se pensa em livros o que vem à cabeça são textos de vários gêneros impressos sobre as páginas. Pouco interesse se tem pelo papel, pela encadernação, pela cor da tinta, por todos os elementos com que se realiza o livro como objeto. (1998:210) Em sua perspectiva, quando se pensa em um livro, quando se projeta um livro o designer deve pensar no objeto como um todo e não só no projeto gráfico (design gráfico) da peça. Os nove livros Ikpeng possuem em comum o fato de variarem minimamente dentro de um mesmo formato, são todos quadrados, alguns levemente retangulares pendendo ao lado maior sempre na horizontal. Quase todos no

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tamanho que varia entre 20 a 23cm. Apenas o maior livro, que possui mais páginas mede 21 por 26 cm. Ao olharmos o formato dos nove livros, perceberemos uma escolha editorial da forma ligada diretamente aos produtores dos livros. Os livros produzidos em conjunto com o ISA possuem forma similar, enquanto que os produzidos pela Unemat são iguais. (Os dois grupos de livros – anexo 31)

3.4.1.2 Tamanho, peso, número de páginas, encadernação e tipo de papel

Os aspectos de tamanho, peso, número de páginas, encadernação e tipo de papel se repetem, e acabam por formar dois grupos de livros, os editados pelo ISA, e os editados pela Unemat. Talvez, por terem adotado uma mesma editoria, ou por disporem da mesma verba e o mesmo designer para os grupos de livros, eles são similares nestes aspectos. Além disso, os cinco livros publicados pela Unemat são iguais por fazerem parte de uma mesma coleção. Quanto à encadernação percebemos que não só as publicações Ikpeng, mas muitos livros indígenas produzidos neste contexto, se utilizam da encadernação em espiral por ser o meio mais barato no mercado das publicações. Dentro dos nove livros selecionados, quatro deles são espiralados e cinco deles são colados. Os colados possuem de 20 a 30 páginas enquanto os espiralados são publicações maiores que variam entre uma média de 50 a 200 páginas. Não afirmamos que só existam livros com uso de espiral, mas sim, que são em maior número no universo dos livros indígenas produzidos nestes contextos específicos. Os livros são todos leves por não usarem papéis de alta gramatura e nem possuírem capa dura, itens que aumentam o custo das publicações. O mais pesado deles não alcança a marca de um quilo. Quanto ao livro-forma, verificamos nesta análise, a similaridade entre os títulos escolhidos, a preferência pelo formato quadrado e a semelhança das publicações, porém não se pode chegar a um pensamento conclusivo se ape-

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nas o fator financeiro foi o determinante. Outros fatores, tais como as gráficas da região onde os livros foram impressos e as escolhas estéticas feitas pela equipe que os produziu, influenciam claramente tais semelhanças.

3.4.1.3 Outros Aspectos da forma

Existem aspectos ligados a forma que simplesmente não são elencados porque não são cogitados em publicações comuns. Porém são abordados claramente em livros de artista. Podemos pensar no porque dos Ikpeng, assim como a maioria dos indígenas, simplesmente assumirem a nossa forma de livro, ocidental, quadrado ou retangular, feito de papel e composto de textos e ilustrações. A forma está ligada a ideia que o objeto transmite, a forma do livro é a primeira mensagem visual enviada ao leitor. Sua cor, textura e peso só são sentidos através do tato, e posteriormente, a identificação das mensagens impressas, sejam ilustrações, sejam textos. A forma é o objeto, se a forma já é conhecida pelo observador, ele identifica o objeto. Mas se encontra por exemplo, um livro redondo, ele precisa de outros indícios para reconhecê-lo como livro. Um exemplo, são os Livros Sagrados para a Paz Mundial que são produzidos por budistas tibetanos e voluntários sob supervisão do Lama Tarthang Tulku Rinpoche e tem um rigoroso processo de produção onde as páginas são empilhadas em forma de livro tibetano e as bordas são tingidas de vermelho alaranjado. E apesar de possuírem capas de papelão colorido, são presos por dois elásticos nas bordas pois não é de praxe encadernar os livros no Tibete. Por fim, cada livro é embrulhado em um tecido especial nas cores do Dharma, que são laranja ou vermelho. (anexo 32) Um budista reconhecerá no objeto não costurado e embrulhado em tecido, um livro. Mas, não podemos dizer o mesmo de outras pessoas que possam ter acesso a ele.

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Mas, o que não podemos deixar de destacar, apesar de não estar diretamente ligado a forma do livro e sim ao seu poder de resgate e salvaguarda cultural é a peculiaridade deste projeto. A proposta do Lama Tarthang Tulku Rinpoche é resgatar antigos textos tibetanos que foram perdidos e reeditá-los. “Os livros editados serão distribuídos gratuitamente para monges, monjas e pessoas leigas durante a Cerimônia pela Paz Mundial em Bodhgaya na Índia em 2011. O principal objetivo é a reconstrução de bibliotecas, de instituições educacionais de refugiados tibetanos no exílio na Índia, Nepal e Butão.”51 A quantidade de livros que foi publicada com a ajuda de voluntários em várias partes do mundo, equivale a 25 caminhões de livros. Pode ter sido uma das maiores distribuições de livros gratuita da história da humanidade.

3.4.2 O livro-conteúdo

Ao pensarmos nos aspectos livro-conteúdo, lembramos que essa definição abrange não só o conteúdo de ideias expressas por palavras e desenhos como também seu conteúdo gráfico, ou seja como esse conteúdo de ideias está disposto no espaço da página. Sobre os livros Ikpeng, do ponto de vista do design gráfico ou programação visual, podemos enumerar seis itens que podem abarcar uma análise formal: capa, miolo, mancha gráfica, espaço branco, fonte e cor. E, podemos diante do aspecto do conteúdo de ideias destacar as ilustrações e os textos, além de toda uma gama de informações não ditas que compõem o livro através de sua função sócio-cultural.

51

INSTITUTO NYINGMA DO RIO DE JANEIRO. Projeto Kanjur - Livros Sagrados para a Paz Mundial. Disponível em: <http://www.nyingmario.org.br/kanjur.php>. Acesso em: 10 abr. 2011.

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3.4.2.1 Capa e miolo

Muitos dizem que compram livros pela capa e que mulheres compram produtos pela embalagem. Essa maneira corrente de falar simplesmente destaca o valor das capas, que podem “vender” os conteúdos. O fato é que a importância que a capa possui no todo do objeto livro é indiscutível. Ela é o quesito que chamará a atenção do leitor logo após o reconhecimento da forma. A capa de um livro diz, ou deveria dizer muito sobre ele. Em relação aos nove livros Ikpeng, somente um deles se destaca por sua capa azul lisa com apenas três pequenos desenhos simbolizando as pinturas corporais, capa que julgamos estar mais ligada a estética não-indígena. Todos os outros possuem ilustrações ricamente detalhadas e coloridas. As contracapas são geralmente informativas e apresentam as marcas dos apoiadores, ou informações, no caso dos livros da coleção experiências didáticas da Unemat. Os dois livros mais antigos possuem as contracapas ilustradas e sem logomarcas. Quando analisarmos as ilustrações de acordo com as questões apresentadas por Dondis, mencionaremos novamente as capas aprofundando questões pertinentes as suas mensagens visuais. O miolo de um livro, é como se fosse o recheio de uma comida, é o todo. A capa apresenta, o miolo conta a história. Usualmente o miolo e a capa devem ter uma ligação visual que os faça parecer que pertencem a um mesmo conjunto. Os livros indígenas conseguem resolver bem essa questão.

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3.4.2.2 Mancha gráfica e espaço branco

Hendel baseado no Glossary of Typesetting Terms define Mancha como “parte impressa do texto por oposição as margens.” (2006:215) A forma corriqueira de compreensão deste termo está relacionada ao espaço destinado a diagramação na página. Muitas vezes se esquece das imagens e liga-se o termo apenas ao texto. Nos livros indígenas percebe-se geralmente uma mancha gráfica diferenciada dos não-indígenas devido às margens serem bem menores ou inexistentes. O que isso quer dizer? Os livros indígenas priorizam ilustrações e tipos maiores, e as ilustrações geralmente sangram as páginas, ou seja, alcançam o limite da folha. O que importa sabermos é que a mancha gráfica tem relação direta com o espaço branco, isso porque um delimita o outro. Eles, em conjunto, organizam o território da página. Nós entendemos o espaço branco como fundamental para pensar a organização de uma página, e ele não é somente as margens que a mancha deixa para trás, é também o espaço entre o texto e entre as imagens que compõem a página. Na linguagem comum das editoras, o espaço em branco faz a página respirar. Os livros indígenas geralmente possuem pouco espaço em branco, e os Ikpeng não são diferentes. Possivelmente por priorizarem as ilustrações em tamanhos grandes. Nos nove livros que temos em mãos, cinco deles, da coleção experiências didáticas, que por sinal são os mais recentes, apesar de possuírem desenhos que ocupam grande parte da página, priorizam algum espaço em branco. Já os quatro livros “Ikpeng Orempanpot” (alfabetização), “Ikpeng Agïngpïnpe Itowo” (saúde), “Ecologia, Economia e Cultura” e “Memórias dos tempos Antigos” priorizam menos o espaço em branco em detrimento de fontes de tamanho maior. (anexo 33)

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3.4.2.3 Tipologia

É fundamental destacar que por sua pouca familiaridade com a escrita, existe forte preferência por tipos de tamanho grande, se comparados com os nossos livros. Este dado, obtido durante os processos de confecção dos seis livros nos quais a pesquisadora trabalhou, já que os “bonecos”52 dos livros eram sempre submetidos às opiniões dos professores. “O texto pode ser composto em dezenas de tipos diferentes, mas, somente quando o espaçamento de todos os elementos e margens forem relacionados entre si e o corpo do tipo escolhido ajustar-se com exatidão à largura da linha de texto, poderá o olho do leitor trabalhar sem esforço. O espaço na página revela a mensagem tanto quanto o espaço na cidade revela os detalhes arquitetônicos”. (Hendel, 2006:31)

A organização de uma página está diretamente ligada à tipologia escolhida e a maneira de dispor o texto na página, ou seja, é completamente dependente do espaço em branco. As fontes de um texto devem dialogar com o vazio. Assim poderão fazer um bom trabalho, ajudando o olhar a fluir pela página. Os livros na língua materna possuem textos curtos, já os dois livros em português possuem textos mais longos; entendendo textos curtos por uma média de dois parágrafos pequenos. O único livro bilíngue, “Pintura Corporal Ikpeng” possui textos menores ainda,com frases apenas, talvez pelo texto em português acompanhar o texto em Ikpeng. Se, em alguns momentos podemos ver os textos indígenas como poemas, como sua forma poética de falar de si próprios, podemos entender seu espaço branco “entreletras” e entrelinhas como a forma que encontraram para deixar seu texto respirar enquanto se acostumavam a ele.

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Expressão usada no meio editorial para designar uma cópia que é utilizada para correções antes da publicação do livro.

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Os brancos são necessários ao poema. Não apenas como margens, mas como entrada do branco da página no interior do corpo do texto. As entradas dos brancos marcam uma alternância entre o conhecido e o desconhecido, o não-dito e o dito, avanços, recuos, as rimas da linguagem consigo mesma, as intermitências do viver-escrever. A tipografia assinala que o poema é um ritmo organizador (...) O branco não é um espaço inserido no tempo de um texto. Ele é parte de sua progressão, a parte visual do dizer. (Meschonnic apud Lima, 2010:5)

É importante percebermos uma mudança na organização dos tipos que está claramente marcada nos livros mais recentes. Todos de uma mesma coleção (“Ga”, “Irwa”, “Orong” e “Ikpeng Ungwophole”) possuem fontes menores e menos espassadas. Os livros de saúde e de alfabetização são os que possuem o maior tamanho na fonte e também o maior espaçamento entre os caracteres e entre as linhas. Não podemos precisar se essa mudança está relacionada à maior familiaridade da comunidade com a leitura, ou se foi simplesmente uma escolha do designer do livro. Porém, se foi uma escolha aleatória, de qualquer forma, foi aprovada pelos Ikpeng. (anexo 34) Todos os nove livros se utilizam de tipos não serifados53, somente o livro “Memórias de tempos antigos” que utiliza uma fonte serifada na capa e nas páginas que dividem os capítulos, nos títulos. Lima, pode corroborar nossas “respirações” 54 sobre o espaço branco e a tipografia Ikpeng: Os diferentes níveis de sentido não são dados somente pela disposição das manchas textuais no branco da página, mas também pela fonte escolhida, seu tamanho, a presença de letras capitais e ou de negritos e itálicos, bem como de outros elementos que compõem a página, indicando uma respiração e um movimento ao texto. (2010:4)

53

A serifa é o nome dado aos traços ou prolongamentos que existem no final das hastes das letras. É a principal diferenciação das tipografias, com ou sem serifas. A fonte serifada de uso corrente mais conhecida é a Times New Roman e a sem serifa é a Arial ou a Helvética.

54

Aspas nossas.

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3.4.2.4 Cor

Muitos pesquisadores generalizam dizendo que povos primitivos gostam de cores primárias ou secundárias, tais quais as crianças. Eles simplesmente não refletem sobre as peculiaridades históricas e sociais. “Pode-se dizer que a simbologia da cor nos povos primitivos nasceu de analogias representativas, para só depois, por desdobramentos comparativos, atingir um nível de relativa independência, que corresponde a estágios mais elevados de subjetividade.” (Pedrosa,1977:99)

A cor vem carregada de significados e simbolismos, mas muitas vezes carrega apenas a referência ao objeto representado. A gama de cores que os povos indígenas conhecem e produzem sempre esteve diretamente ligada as regiões que habitavam. Hoje em dia, têm acesso a lápis e tintas industrializados e ao computador, esses meios trouxeram novas cores ao cotidiano visual destas comunidades. UM dado importante é que, diferentemente de muitos dos livros indígenas que tivemos em mãos, os livros Ikpeng não possuem exclusividade de cores fortes e saturadas, pelo contrário, em alguns deles predominam tons pastéis em contraste com as ilustrações destacadas com cores fortes de outros. (anexo 35) Os nove livros, possuem cada um sua paleta de cores. E, novamente não podemos saber se a escolha das cores predominantes em alguns desses livros foi imposta e aceita ou se foi discutida com a comunidade. Durante essas análises que apresentamos constatamos que seria proveitoso se pudéssemos ter um contato direto com as equipes indígenas e não-indígenas que criaram os livros para sanar tais dúvidas. As cores estão ligadas diretamente a representação de ideias simbólicas, e essas ideias variam de acordo com as etnias em questão. Elas, juntamente com as imagens, podem formar blocos de significados codificados que só serão compreendidos por leitores alfabetizados culturalmente.

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“O significado das cores nunca teve uma vida autônoma, que iniciasse e terminasse o seu ciclo de ação no próprio âmbito das ideias. Ao contrário, as ideias originadas por certos estímulos exteriores só conseguiram transformar-se em símbolos, no retorno ao mundo objetivo, quando testadas pela prática. Decorre daí a importância do símbolo na origem e veiculação de conceitos, base de sua integração nos variados elementos da superestrutura social.” (Pedrosa,1977:99)

3.4.2.5 Conteúdo de ideias

O principal objetivo destes livros seria a preservação de conhecimentos tradicionais. E a língua é considerada o mais importante deles por seu caráter de auto-reconhecimento e de expressão do pensamento e da lógica Ikpeng. É importante lembrar que a língua em que são escritos é um fator relevante para essas publicações. Se fosse realizado um estudo de caso, através deste fator poderíamos aferir alguns dados relevantes sobre a comunidade em questão. Isso porque temos muitas comunidades que não possuem mais sua língua materna e outras onde as línguas possuem poucos falantes dentro do grupo. O conteúdo dos livros é específico, caracteriza as demandas da comunidade. De acordo com o aparecimento de novas formas de comunicação, conforme citamos durante esta pesquisa (a escrita, o vídeo, o áudio, o computador e a internet), o que podemos detectar nos conteúdos de ideias apresentados nos livros, é que sua maioria (seis livros) é dedicada às novas demandas da sociedade, alfabetização, problemas de saúde decorrentes ou detectados após o contato e preservação do meio ambiente, enquanto três livros falam de ancestralidade, mitos e pintura corporal. Representar em livro as histórias, técnicas e conhecimentos que são transmitidos pela fala, pela memória, pelo corpo, em contextos sociais específicos é, ao mesmo tempo, uma mudança significativa nos padrões de transmissão de conhecimento e uma maneira de “preservação da cultura”. Além disso, muitas escolas indígenas, assim como muitas escolas rurais brasileiras são multi-seriadas, assim, os livros didáticos indígenas refletem essa prática, ou seja, são por característica multi-seriados e trazem conteúdos que podem ser trabalhados em diferentes etapas do aprendizado escolar (Mello e Lemos Costa, 2010:160).

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Lembramos que suas ideias são explicitadas não somente através do texto, mas também das ilustrações e serão analisadas em separado.

3.4.3 Aspectos da mensagem visual

Neste item analisaremos os aspectos relevantes da linguagem visual Ikpeng, observando a mensagem visual pela ótica de Dondis, observando os aspectos representacionais, abstratos e simbólicos contidos nas ilustrações dos livros. “A realidade é a experiência visual básica e predominante.” (Dondis, 2007:87) Todavia, nas sociedades ameríndias onde o sobrenatural está fortemente presente no cotidiano e no imaginário dos indivíduos, temos outras formas relacionadas à visão. Não é só a realidade que compõe a experiência visual básica, já que existem outras formas aceitas: os sonhos, os transes por consumo de substâncias alucinógenas, ou as visões dos pajés ou xamãs acompanhadas ou não dessas substâncias. Em aspectos gerais, relacionados aos desenhos podemos perceber uma evolução na forma de utilização dos materiais de desenho: grafite, lápis de cor e hidrocor, já que não figuram desenhos pintados nos livros que analisamos. Uma maior desenvoltura e soltura dos traços, relacionada à utilização do lápis de cor e abandono, em parte do uso de hidrocor, além do uso de técnicas de luz e sombra e traços iniciais de perspectiva. Relacionado à figura humana, ainda existe a dificuldade na proporção, mas em outros desenhos conseguimos ver uma melhor proporção e distribuição entre os elementos. Mas, a mudança relacionada aos desenhos foi grande, os desenhos passaram a ter movimento e também a possuir desenvoltura nos traços. Passam a adquirir características apreciadas pelos não-indígenas. Elencamos desenhos de cada um dos nove livros para amostragem e faremos uma análise de sua mensagem visual baseada nos critérios de Dondis. As análises serão feitas com base em nosso conhecimento não-indígena, porém com alguma familiaridade com a cultura Ikpeng devido ao trabalho de campo.

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3.4.3.1 Livros Didáticos

a. Livro de atividades (alfabetização) - Ikpeng Orempanpot (2001) O que a capa (anexo 36) do primeiro livro na língua materna de um povo ágrafo que quase foi dizimado representa? Quais componentes básicos da linguagem visual identificamos, e quais os Ikpeng identificam? Quais símbolos codificados estão presentes nesta imagem? A tradução do título do livro conforme os Ikpeng é “Livro de Atividades Ikpeng”, e as imagens da capa representam ações dos Ikpeng, mescladas a linhas (desenhadas no computador por um não-indígena) com um degradê de cores que compõem também a parte interna do livro. Com base em nosso conhecimento, diremos que os desenhos representam: um Ikpeng indo pescar, um Ikpeng indo caçar e uma mulher Ikpeng moqueando uma caça ou cozinhando mandioca. Destacamos o fato do desenho ser pequeno para o tamanho da capa, que é preenchido pelo degradê que foi feito no computador. Se abstrairmos, iremos fazer várias relações de cada um desses desenhos com o cotidiano Ikpeng. Na capa podemos identificar um movimento ainda pequeno com relação à representação no desenho porque justamente a capa possui desenhos singelamente pequenos. Tais desenhos porém trazem símbolos fortes da cultura: arco e flecha, barco, a mulher cuidando da comida e mostra, principalmente, um Ikpeng caçador. O desenho escolhido (anexo 36) é representativo, não só da cultura Ikpeng, mas das culturas indígenas e de sua forte relação com o animal cobra. A cobra está presente em diversos e diferentes mitos das culturas ameríndias. Neste contexto informativo do livro de alfabetização, está representando uma cobra comum, e não o mito. Porém, o desenho traz claramente, no corpo da cobra o simbolismo gráfico repetido por muitas etnias indígenas e que em muitos casos é um símbolo codificado da própria cobra.

b. Livro de saúde em língua materna - Ikpeng Agïngpïnpe Itowo (2003)

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Este livro em si já tem uma representação de um movimento de cuidado com a saúde baseado nos preceitos não-indígenas. Muitos povos estão produzindo seus livros de saúde, levando em conta suas peculiaridades, como altas taxas de pressão alta e diabetes em suas populações desacostumadas ao consumo de sal e açúcar. Outros falam sobre doenças venéreas adquiridas em visitas as cidades, e que são transmitidas para as índias que ficam na aldeia. (anexo 37) Um verde forte foi escolhido para a parte externa do livro. Capa e contracapa possuem desenhos recortados e que parecem estar soltos no espaço verde. O desenho da capa representa um guerreiro Ikpeng, na contracapa uma índia Ikpeng. O que essas imagens poderiam significar? Guerreiros também ficam doentes? Brincadeiras a parte, novamente, nesta publicação do ano de 2003 (nove anos após a criação da escrita Ikpeng) percebemos sim uma reafirmação cultural. A mensagem poderia ser: estamos aqui, somos guerreiros, escrevemos e lemos, mas nossa cultura ainda persiste. Na contracapa identificamos símbolos tipicamente xinguanos como, o corte de cabelo, já que o corte de cabelo original dos Ikpeng era aquele tipo cuia, curto, tanto em homens quanto em mulheres e o colar de caramujo, a “jóia do Xingu”. Na capa, a borduna55 seria o principal símbolo do indígena guerreiro, e sua ornamentação corporal, pintura e amarras de algodão nos braços além do cocar, brincos e colar. Estas observações são de não-indígenas, certamente os símbolos seriam mais detalhados e mais compreendidos se fossem lidos por um Ikpeng.

55

Arma de madeira utilizada pelos indígenas, cacete dos indígenas.

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3.4.3.2 Livros de Conteúdo

a. Livro sobre a água - Ga (2007) Percebemos uma grande mudança na forma do desenho dos livros até 2009 e dos livros da coleção experiências didáticas lançados em 2007. A maneira com que utilizam o material lápis de cor é completamente diferente. Destacamos estas duas ilustrações sobre a água, não somente por seu movimento, mas por sua possibilidade de representarem de forma satisfatória essa mudança e também o livro em si. (anexo 38) As duas as ilustrações representam os rios e as matas que os cercam, numa delas encontramos um peixe que não sabemos nomear mas que certamente um Ikpeng saberia. Em outra, a representação de animais que fazem parte do cotidiano, ao lado de duas espécies diferentes de peixes vemos uma tartaruga, um jacaré e uma cobra. A qualidade destes desenhos é o movimento, representada nas texturas dos traços e o fator emocional que poderíamos destacar aqui seria a preservação da água. Os desenhos simbolizam a forma que cada estudante descobriu para destacar essa temática. Os desenhos e textos foram feitos pelos mesmos estudantes. A representação dos animais em si carrega um simbolismo que não podemos desvendar. Outro símbolo importante que percebemos nos desenhos são os sóis que em ambos se encontram ao fundo. O sol só se repete em mais uma ilustração no livro e também está ao fundo. Lembramos que para os povos ameríndios existe um mito primordial da criação do dia, porque, fundamentalmente viviam, na escuridão.

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b. Livro sobre a terra - Orong (2007) Vemos claramente uma plantação, com algumas árvores cortadas em formato arredondado, tal qual a forma da aldeia. (anexo 39) O desenho representa a plantação Ikpeng e mostra, também, que existe preservação da mata nativa a sua volta, apesar do desmatamento para a roça. Representa uma preocupação real diária dos Ikpeng com a preservação do meio ambiente. Para um Ikpeng que olha o desenho simboliza a comida que chegará a sua mesa. c. Livro sobre a floresta - Irwa (2007) Destacamos esses desenhos porque através deles podemos demonstrar a mudança na maneira de utilizar os materiais disponibilizados. Acreditamos que esta modificação nos padrões do desenho advenha do uso prolongado e de uma maior familiaridade com os materiais, principalmente o lápis de cor. (anexo 40)

O movimento que se consegue através da textura que traços de lápis de cor expressam unidos as cores fortes transparece uma modificação na maneira de utilizá-los, empregando mais “força” e movimento no traço. Colocamos os desenhos ao lado de outros mais antigos para visualizar a diferença.

d. Livro que fala sobre quando os Ikpeng eram animais - Ikpeng Ungwophole (2007) Muitos são os mitos onde os Ikpeng são animais, vivem em aldeias na água, ou no céu, e são representados ora como animais, ora homens. (anexo 41) A figura escolhida mostra um homem-animal que não distinguiremos se não tivermos acesso à tradução da história. Notamos que ele utiliza pintura

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corporal, brincos e adornos nos braços e pernas e carrega um arco, tudo isso o caracterizando como um Ikpeng. O pássaro-homem ou homem-pássaro provavelmente é um gavião, pois muitos mitos contam das aldeias do gavião, mas novamente dependeríamos de um informante Ikpeng para essa interpretação, ou seja, os desenhos possuem símbolos codificados que somente os indivíduos versados na cultura em questão saberiam ler. e. Livro sobre a pintura corporal - Pintura Corporal Ikpeng (2005) Podemos notar que este livro é o que possui um design mais próximo do que encontramos na sociedade nacional, capa lisa e miolo com partes internas com linhas sinuosas e espaços em azul, e um maior espaço em branco. Nota-se, também, que a mancha gráfica varia em cada página, não formando uma linha uniforme. (anexo 42) Elegemos duas ilustrações de corpo inteiro uma feminina e outra masculina que representam a pintura corporal Ikpeng. Como o livro é bilíngüe podemos entender, em parte, os códigos das pinturas. “A pintura das mulheres é feita com a resina de uma árvore misturada 56 com carvão. As mulheres mais novas se pintam dessa forma.” “Essa é a pintura para o rapaz ficar bonito, tanto nos dias de festa como outro dia qualquer. Ela é feita nas coxas, nas pernas e também 57 no peito”

56

Texto que acompanha a ilustração da pintura feminina do livro Pintura Corporal Ikpeng (2007:19)

57

Texto que acompanha a ilustração da pintura masculina do livro Pintura Corporal Ikpeng (2007:20)

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3.4.3.3 Livros de etnias do Xingu

a. Livro de mitos de povos indígenas do Xingu - Memórias de Tempos Antigos (2005) O que nos impressionou nos dois livros deste grupo, que são os únicos em português e que foram confeccionados em conjunto com outras etnias, foram as cores, os tons pastéis da capa e do miolo. (anexo 43) A maioria dos desenhos é pequena, e alguns textos não os possuem. A capa representa um conjunto de etnias codificadas nos grafismos que envolvem o desenho em forma de círculo que mostra três indígenas reunidos. Sem ler o interior e saber quais etnias participaram do projeto, um indígena xinguano, provavelmente poderá descrever oito etnias através dos grafismos representados. Selecionamos o desenho Ikpeng que ilustra a história da “Origem do Tamanduá” (anexo 44) para demonstrar uma história narrada em quadrinhos que pode ser lida facilmente por um Ikpeng. E para ser compreendida por nós necessitaria do texto.

b. Livro sobre ecologia, economia e cultura - Ecologia, Economia e Cultura - Parque Indígena do Xingu (2005) Por fim, observamos o livro sobre ecologia e na capa vemos uma descrição visual do ecossistema indígena, dependente da sociedade nacional, representada por suas indústrias, carros, plantações e gado. (anexo 45) Essa capa é uma demonstração da apreensão de um conteúdo durante o curso de formação de professores e de sua “tradução” através da ilustração para uma comunicação mais direta com os leitores. Em um capítulo dedicado a descrever a relação “Recursos Naturais e Seres Espirituais” selecionamos a ilustração também em quadros que mostra o processo de confecção da flauta feita de Buriti (anexo 46).

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O recorte e o posicionamento das ilustrações são diferenciados, e demonstram uma nova linguagem na comunicação do desenho. Esta ilustração, mais clara e maior do que a anterior alude a um processo e mesmo sem o auxílio do texto é mais inteligível ao não-indígena. Acreditamos que esta pesquisa, ainda, possui muitos pontos a serem explorados, dada a riqueza da linguagem visual do povo Ikpeng. Acreditamos que foi fundamental o trabalho em campo e contato direto com a cultura para uma compreensão, mesmo que superficial do que é a cultura Ikpeng. Sabemos o mais correto seria disponibilizar volumes dos livros Ikpeng para que a leitura não se torne tão abstrata, porém isso não foi possível até o momento. Finalizando, apresentamos os princípios éticos da sociedade Ikpeng, descritos no livro “Ecologia, Economia e Cultura”.

Princípios Éticos da Sociedade Ikpeng

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Os pais e parentes ensinam para as crianças e jovens sobre a reciprocidade entre as pessoas. Os pais ensinam os filhos a ajudar os colegas e parentes na construção de casas,no roçado,na abertura de caminhos e estradas, dar coisas para quem não tem (generosidade), oferecer moradia. As crianças e os jovens são também ensinados a respeitar as árvores que utilizamos para alimentação, construção de casas e confecção de objetos, a ter respeito pelos animais que comemos e que não comemos, porque eles fazem parte do equilíbrio da natureza, a ter respeito pelos rios e pela terra. Um dos ensinamentos mais importantes e fortes é o cuidado e o respeito pelas crianças novas. Quando o casal tem filho pequeno,os pais não podem comer coisas perigosas como peixes, animais e aves grandes. Os pais também não podem fazer trabalhos pesados até a criança ter três ou quatro meses. A mãe pode deixar a criança sempre pintada , para ela não pegar doença.

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Transcrição literal. (Taffarel, 2010:36)

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Sempre pensava que para ter o mundo só precisava de dois: a água e a luz, o homem e a mulher. Mas, descobri que o mundo é feito de três. Não basta ter a água e a luz, precisa ter o ar que faz o vento, que dá movimento e faz a ligação, faz com que a coisa ande. É o terceiro elemento que dá a vida. Assim, também é por causa do filho do casal que o mundo continua. Agostinho Manduca (Kaxinawá do rio Jordão)

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Considerações Finais É por causa da fala e do artefato produzido pelo homem que o conhecimento chegou até os dias de hoje? Acreditamos nisso, e é por esse motivo que estamos escrevendo sobre um dos artefatos de maior importância na história da humanidade: o livro. O que o livro representaria para os Ikpeng? Um povo guerreiro que quase foi dizimado e que hoje vive pacificado e toma posse de sua cultura, não porque a tenha perdido, mas exatamente porque não quer deixar que o movimento de perda avance. O livro é a representação de um objeto de poder que está arraigada na mente tanto ocidental quanto oriental, a Bíblia, o Bhagavad Gita, o Alcorão são exemplos de livros que perduraram por gerações e que ditam normas de conduta. Os dicionários e livros didáticos são também livros que ensinam normas, sejam sobre a língua e o pensamento ou culturais. Durante muitos séculos o livro foi representante de diversificadas formas de domínio e subjugação. Os antigos Suyá, atuais Kisêdje, segundo Anthony Seeger59, dizem ter selecionado as coisas que lhes pareciam bonitas ou úteis, desprezando as outras, quando se referem às culturas de outros povos do Parque. Já os Tiriyó do Amapá e norte do Pára, segundo Gallois, afirmam que o ato de conhecer uma pessoa ou grupo se completa através de algo que se ‘pega’ do outro e incorpora para si, ou seja, os Tiriyó ‘pegam para si’ o que acham bonito ou bom (kure), incluindo bens materiais, pessoas para casar e conhecimento (2006:32). Entendemos que essa característica de absorver o que é do outro de forma a lhe servir, ou de adaptar ou capturar o que o outro tem, além da aura de poder que o objeto do livro possui, foram os motivos que fizeram com que os indígenas assumissem a forma corrente do livro e não buscassem modificála. (Lembrando de causalidade e apropriação podemos ler “A Origem do fogo” do povo Panará – anexo 47) 59

Anthony Seeger in Instituto Socioambiental. Disponível em: <http://pib.socioambiental.org/pt/povo/kisedje /1223>. Acesso em: 10 set. 2010.

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Ao traçarmos uma linha do tempo imaginária pelas publicações Ikpeng, pensando a partir da criação da escrita na língua em 1994 até os dias de hoje, podemos compreender que elas foram fruto da consolidação da escrita na comunidade e não de uma necessidade de uma nova forma de preservação e comunicação culturais, já que o vídeo começou a se prestar a esse papel, mais ou menos na mesma época e oferecia uma interação direta com todos os membros da comunidade. A vantagem do audiovisual para a comunicação entre culturas reside em grande parte no impacto da imagem, que impõe conceitos éticos, sentimentos, sensações que transcendem a diversidade das culturas, por serem atos de percepção, elas aproximam. (Gallois, 2000:3) O livro foi “construído” 60 juntamente com a escrita. E porque a escrita e a leitura não podem se dissociar e, são formas juvenis de comunicação na comunidade Ikpeng, o livro também o é. O livro ganha em aproximação a partir do desenho e de uma nova forma de se comunicar através dele, narrar através do desenho, ao invés de apresentar símbolos codificados, mesmo que as narrações possuam, em parte, símbolos codificados. Falamos na novidade dos desenhos no papel porque estimamos que eles passaram a fazer parte do cotidiano Ikpeng a partir dos projetos de formação de professores que propiciaram o estabelecimento da escola na comunidade, projetos esses que se firmaram também na década de 90. Consideramos fundamental a ideia de que os indígenas são alfabetizados visualmente, especificamente dentro do universo de sua cultura visual, e em parte na cultura visual de outros povos indígenas, principalmente xinguanos. A exemplo disso, os padrões de pintura corporais do alto Xingu são utilizados no cotidiano e que são reconhecidos por nomes e com a designação das etnias as quais pertencem.

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Aspas nossas.

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Acreditamos que por serem de tradição ágrafa, possuam uma cognição anterior ao alfabetismo letrado. Ao construírem seus próprios livros são capazes de reunir seu repertório imagético social intrínseco à linguagem escrita adquirida recentemente. Os povos ágrafos transmitem seus conhecimentos não somente através da fala, mas também por meio de um conjunto de ações, objetos e através da arte. O foco desta afirmação é que a educação não-formal indígena transmite os preceitos visuais básicos aos Ikpeng e eles carregam este conhecimento intrinsecamente. Diante da hipótese apresentada sobre a alfabetização visual Ikpeng, a maneira que encontramos para melhor explicá-la foi exatamente a ideia central da educação Ikpeng, que é a ideia da educação ameríndia. A etimologia da palavra alfabetização era ensinar o alfabeto, hoje em dia, podemos encontrar definições como: “propagação da instrução primária” ou “propagação da leitura” o que permite então utilizar esta palavra no contexto da língua portuguesa para o ato do alfabetismo visual. O desenho é também um ato de comunicação. Não podemos dissociálo da cultura, portanto, podemos compreendê-lo como uma forma de linguagem. “No fim de contas, a cultura não é senão uma série de atos de comunicação; e as diferenças no modo de comunicação são freqüentemente tão importantes como as diferenças no modo de produção, pois envolvem progressos na possibilidade de armazenagem, na análise e na criação de conhecimento, assim como as relações entre os indivíduos envolvidos.” (Goody, 1988:47)

No caso da comunidade Ikpeng esse alfabetismo visual não pode ser de forma nenhuma dissociado do projeto de ensino-aprendizagem da etnia; processo que não tem a escola como principal fonte e que na verdade a vida social é a “escola”61. A escola ainda está em vias de se consolidar socialmente, apesar de que, algumas vezes aparenta estar institucionalizada. (Origem das músicas de ninar para os Ikpeng - anexo 48) 61

Aspas nossas.

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Para exemplificar, diversas situações vividas em campo podem confirmar esta hipótese. Um exemplo aconteceu durante a pescaria típica conhecida por timbó, onde toda a comunidade se reúne para pescar em grupo, em uma ação que demora vários dias e tem toda a sua ritualística. São proibidos de freqüentar o timbó somente as mulheres que estão menstruadas e seus maridos. O timbó consiste na colheita de grandes folhas de palmeiras de diversas espécies e de um tipo de cipó que é venenoso ao peixe mas não faz mal aos humanos. São colhidas as folhas e usadas para cercar um tipo de lagoa que beira o rio. O cipó é coletado e amarrado em feixes. Após esses procedimentos, de manhã bem cedo todos vão a lagoa, e aos poucos vão se posicionando, muitas mulheres e crianças nas margens e mulheres e homens no local onde foram dispostas as folhas que cercam a lagoa, todos munidos de cestas, baldes, bacias, ou quaisquer recipientes para pegar peixes, além é claro, de arcos e flechas. Ao fundo da lagoa, os homens adultos e jovens se posicionam mais ou menos enfileirados e batem nos feixes de cipó para liberar o “veneno” (que poderia ser um phármakon) na água. Passado algum tempo, os peixes ficam tontos e aos poucos vêem a superfície e começam a pular para tentar sair daquele local onde atua o veneno. Peixes de todos os tamanhos pulam em direção ao local cercado e são capturados. Em algumas margens crianças e adultos com arco e flecha acertam os peixes embriagados. E por todos os lados, bacias panelas e recipientes diversos começam a se encher de peixes. As crianças bem pequenas ficam nas margens acompanhadas de suas mães ou de crianças um pouco mais velhas com pequeninas cestas tentando pegar peixes. A cena que vimos durante a pescaria demonstra a educação Ikpeng. Uma criança de no máximo 4 anos estava com uma pequenina cesta tentando sem sucesso pegar um peixe bem pequeno que estava tonto próximo a margem da lagoa. Após algumas tentativas, uma criança mais velha captura o peixe com as mãos e o coloca na cesta da mais nova, esta abre um sorriso.

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Pescadores levando as folhas para cercar a lagoa

Kay Txicão, pesquisador indígena, documenta os pescadores preparando o timbó.

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Todos aguardam o momento em que os peixes ficarão “tontos”

Feixes prontos de cipó

Os Ikpeng batendo Timbó

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As sociedades ameríndias possuem um sem número de regras sociais ancestrais que são transmitidas por gerações através da oralidade e do convívio social. Todo o processo da pescaria, a visão do evento, além dos conselhos de pais, irmãos e tios, ensinam a criança o que seria o timbó. Por isso, entendemos o desenho como algo muito mais abrangente do que as imagens refletidas no papel, como elemento fundamental no processo educacional Ikpeng. Podemos reafirmar que o desenho seria desde as cestas trançadas, as pinturas corporais, a arquitetura das casas, o posicionamento das danças, até a representação de qualquer um destes aspectos em uma folha de papel. Por tal motivo consideramos o povo Ikpeng como alfabetizado visualmente por ser capaz de compreender um sem número de códigos e regras que estão implícitos no desenho. Para legitimar esta hipótese encontramos passagens de autores renomados sobre diferentes culturas ameríndias. “Estudos recentes têm mostrado que o tratamento do corpo entre povos primitivos possui um significado simbólico que transcende o conteúdo embelezador, sem dúvida presente. Os ornatos corporais, incluindo a pintura de corpo e os adornos móveis constituem uma linguagem visual que, por um lado, funciona como marca de identificação étnica e, por outro informa a respeito do sexo, idade e condição social do indivíduo. Neste sentido a ornamentação corporal reflete a concepção tribal da pessoa humana. É a maneira pela qual o indivíduo se torna pessoa. Isto é, se socializa como membro de uma comunidade” (Ribeiro, 1989: 80)

O processo de ensino-aprendizagem Ikpeng é baseado no exemplo. É baseado nos sentidos da fala, audição e visão, sendo que a faculdade da visão também abrange a visão do sobrenatural, esta não pertence a todos os indivíduos, mas é reconhecida por todos. E permeia o imaginário do grupo.

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Pensamos em uma forma visual de exemplificar o todo desta pesquisa e recorremos a um esquema com o qual tivemos contato há muitos anos atrás, a espiral da cultura científica, exemplificada por Carlos Vogt. O desenho, em espiral, representa uma forma presente em diferentes setores do conhecimento, derivados da observação constante que o homem faz da natureza. O exemplo relacionado que lembramos mais facilmente é o esquema da proporção áurea, mas existem muitos outros.

Essa poderia então ser considerada a espiral da cultura indígena em uma relação com a cultura não-indígena, onde, em sentido horário, podemos explicar o que representa cada espaço pelo qual ela passa, porém, devemos destacar que apesar de imaginarmos que ela esteja tridimensionalmente em ascensão vertical, afirmamos que as mudanças de nível significam apenas as diferenciações entre os estágios.

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a. O Corpo O corpo é o depositário da comunicação. Nas sociedades ocidentais através dos sentidos, dos aspectos físicos e da indumentária. Nas sociedades indígenas os mesmos aspectos são trabalhados de diferentes formas e a indumentária pode ser a roupagem ritual, a pintura corporal ou a ausência dela. De acordo com Berta Ribeiro, O corpo é imagem, a imagem que se projeta para o outro. O corpo é o aspecto deste quadrante que está presente em todos os quadrantes, em todo os momentos da espiral. “O corpo e a pessoa não são concebidos como entidades biológicas que crescem e adquirem suas características automaticamente, por determinação biológica e genética, mas como verdadeiros artefatos, moldados e esculpidos ao modo e no estilo da comunidade. Daí a crucial importância dos ritos de passagem e dos períodos de reclusão para jovens em muitas destas sociedades, especialmente rigorosos e longos no Xingu, pois é nestas ocasiões que a sociedade fabrica corpo e pessoa simultaneamente.” (Lagrou, 2009:70) b. Os sentidos Através do corpo manifestam-se os sentidos, e estes, apesar de serem os mesmos que conhecemos, tem um acréscimo ao sentido da visão, que seria a visão xamânica, a visão do sobrenatural, esta não cabe a todos os cidadãos, mas é compreendida por todos eles, e sabem que em algum momento da vida podem fazer uso dela (sonho, visões, visões com alucinógenos, doenças...). A audição,ou outros sentidos podem funcionar como a visão xamânica, sendo esta a mais comum, mas o fato de destaque é que a relação com o sobrenatural permeia todos os sentidos e toda a vida indígena. c. Os meios Os meios são a vias pelas quais se pode apreender algo. Eles estão em eterno movimento, assim como sua relação com a sociedade circundante que é dinâmica. Os meios precisam do corpo e dos sentidos para existirem, são as criações da mente humana para aprender e se comunicar. Os meios em destaque são aqueles que estão em voga nesta pesquisa, e também, aqueles já conhecidos tanto das sociedades indígena e não-indígena: desenho e pintura, música, dança, arte, artefatos e arquitetura.

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d. A forma Nomeamos por forma a maneira pela qual o conhecimento é apreendido, no caso aqui o conhecimento visual, mas também a escrita que vêm com o livro e a oralidade que perde seu posto de principal forma de transmissão do conhecimento entre as gerações. O corpo, os sentidos e os meios se unem para o entendimento da forma. Lembrando que o corpo e os sentidos possuem a influência de aspectos psicológicos, físicos e culturais. Esta espiral condensa na forma visual todo o pensamento que tivemos ao longo deste ensaio. Buscamos trazer outra forma de compreensão, tal qual explicitamos durante este texto, é forma corrente usada pelos povos indígenas além do sentido da fala e da expressão corporal, o desenho. “De nosso ponto de vista, embora haja distinções teóricas e metodológicas fundamentais entre arte e ciência, há entre elas algo poderosamente comum. Trata-se da finalidade compartilhada por ambas, que é a da criação e a da geração de conhecimento, através da formulação de conceitos abstratos e ao mesmo tempo, por paradoxal que pareça, tangíveis e concretos. No caso da ciência essa tangibilidade e concretude se dá pela demonstração lógica e pela experiência; no caso da arte, pela sensibilização do conceito em metáfora e 62 pela vivência.”

Como os povos indígenas não possuem essa dissociação entre conceitos de arte e ciência, concluímos que ambas convivem no pensamento indígena e que estão presentes em todos os processos sociais, e isso inclui, o livro, o vídeo e as relações com a tecnologia. É a vivência que proporciona a relação com que o que vem de fora, deixando “o outro” adentrar nas sociedades indígenas. Ressaltamos, ainda, que os livros indígenas, não somente os didáticos, de acordo com o Ministério da Educação, passam a figurar como instrumentos fundamentais ao direito à educação diferenciada promulgado com a constituição de 1988 resgatando a dívida social que o Brasil acumulou em relação aos habitantes originais do território (2002:24).

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Reportagem “A espiral da cultura científica” de Carlos Vogt, Disponível na Revista Eletrônica ComCiência, em: <http://www.comciencia.br/reportagens/cultura/cultura01.shtml> acesso em 5 de junho de 2011.

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Diante deste cenário consideramos que: os meios verbal, audiovisual e impresso convivem no dia-a-dia da aldeia sendo que, os meios que se apropriam do verbo possuem mais influência. Os pais ainda ensinam seus filhos ao cair da noite através da oralidade e durante o dia através dos exemplos do fazer, na roça, na confecção de uma flecha, ao pescar. A câmera de filmar e o gravador são instrumentos importantes dentro da casa de cultura Ikpeng. Não causam mais estranhamento, mas sim, uma curiosidade de poder ver seu reflexo ou ouvir sua voz. O livro aparece como coadjuvante no ensino, e de maneira acanhada está presente no cotidiano extra-escolar. Seu território seguro é a escola, mas figura na casa de cultura Mawo e de maneira ainda sutil nas casas da aldeia. O livro Ikpeng, objeto escolar em sua origem, ainda figura como um objeto não-indígena, mas é considerado valioso, tanto quanto os meios de documentação audiovisuais, por possuir o poder de armazenar a cultura para as futuras gerações. A avaliação positiva sobre a temática do livro é a vontade dos Ikpeng em preservar e tomar posse de seus conhecimentos ancestrais, mesmo diante dos preconceitos encontrados na sociedade nacional em relação aos povos indígenas. Percebemos o valor dado quando idealizam e realizam o projeto de criação de um banco de dados de sua cultura, o Tesauro e também continuam a produzir filmes e livros. Tomaram e tomam posse dos meios tecnológicos de documentação, tais como câmeras para filmar e fotografar e gravadores de última geração e é claro, o computador. O livro figura como um instrumento meramente escolar, no qual eles depositam seus conhecimentos, que agora não são repassados unicamente através da oralidade. O livro indígena, não somente o Ikpeng, busca seu lugar ao sol. A escrita desta pesquisa pode ter se tornado deveras romântica ou quem sabe um tanto positivista, mesmo que tenhamos nos esforçado para esconder estes “trejeitos”. O fato é que não podemos separar a escrita de quem escreve. E, sendo assim, como separaríamos desta escritura o desejo de escrever em primeira pessoa e falar diretamente ao leitor, de utilizar uma linguagem menos coloquial e de ser mais acessível aos indígenas. Quem sabe, pode imaginar a pesquisadora, se tomasse um café com seu leitor e pudesse oferecer-lhe todas estas palavras. E devaneando idealizamos que a pesquisa possa

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sim, ter interlocutores que façam com que ela cumpra seu papel nas sociedades indígena e não-indígena. Finalizando, enfatizamos a importância do papel da arte em toda e qualquer sociedade, que pode ser melhor vislumbrado em estados de liminaridade, mas que deveria compor a educação dos indivíduos desde seu nascimento. Tarkoviski oferece-nos uma passagem para refletir, “o objetivo da arte é preparar uma pessoa para a morte, arar e cultivar sua alma, tornando-a capaz de voltar-se para o bem.” (1998:49) Destacamos, ainda, que este trabalho será entregue de maneira formal, como ditam as regras de praxe, e publicado nos meios eletrônicos. A edição apresentada à banca de mestrado foi produzida em caráter de apresentação, numa tiragem de 5 exemplares (foto no anexo 49). Esta foi a forma encontrada para demonstrar aspectos de visualidade dos livros e uma nova relação com a leitura construída através do hipertexto, relação esta, que estamos todos construindo em nossas interações com as novas ferramentas da tecnologia.

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Fim

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