BOLETIM INFORMATIVO “EDIÇÃO ESPECIAL” 2018

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ED

ESPE IÇÃO CIAL

Padre Antônio Góes:

uma vida dedicada aos Yanomami


Copyright©2018 Inspetoria São Domingos Sávio Todos os direitos reservados

Inspetor P. Jefferson Luis da Silva Santos Organização Comissão Inspetorial de Comunicação - CIC Coordenador P. José Ivanildo de Oliveira Melo Delegado para a Comunicação

Revisão Leonardo Ferreira de Almeida Projeto Gráfico ca Ficha Catalográfi Eduardo Lacerda Distribuição José Luis (Zeca)

Manaus - Am - Brasil

T172 O Tapiri: Comunicação Pastoral da Inspetoria São Domingos Sávio BMA / P. Jefferson Luis da Silva Santos, SDB (org.); P. José Ivanildo de Oliveira Melo (Coord.) Manaus: Editora FSDB, 2018. x, 20 p. II. 15x21cm (Comunicação Pastoral da Inspetoria São Domingos Sávio - BMA) ISSN 2525-3093 Publicação Bimensal 1. Salesianos de Dom Bosco 2. ISMA - Manaus. 3. Comunidade Salesiana. 4. Santos, P. Jefferson Luis da Silva. 5. Melo, P. José Ivanildo de Oliveira. I. Título. CDU 271.789.1(05)

Elaborada por Zina Pinheiro - Bibliotecária - CRB 11/611


Editorial

N

ão são poucos os historiadores e poetas que ao falar do processo de colonização na Amazônia, por mal-uso da pena, ou tão somente para não perder a rima, colocam sem nenhuma discriminação, cruz e arcabuz lado a lado. É notório que o choque étnico-cultural desse contato, mas sobretudo de alteridades, foi terrivelmente prejudicial aos nossos irmãos indígenas. As alianças, escritas no papel ou assinadas pelo silêncio omissivo das autoridades aos desmandos dos exploradores, é fato inconteste. Do mesmo modo é inegável que à sanha da dominação do branco sobre o indígena, existiram pessoas de visão larga, horizontes abertos, fazendo o contrapeso do pêndulo da história. Colocar, portanto, o comum missionário, o caucheiro - servo dos senhores da vida e da morte, na mesma canoa que os patrões da borracha, é pintar o verde com um único tom. É desconsiderar que nossa pele mestiça traduz histórias do incomum, de gente que veio e nunca mais voltou, de pessoas que buscavam riquezas e se apaixonaram pelas ricas imagens das beiradas dos rios da Amazônia e por seu povo. É esquecer que por estas bandas muitos povos fizeram Tapiris, onde esperaram pacientes o derradeiro sono, aquele que chega de improviso, como as chuvas da tarde e premia o justo trabalhador das canseiras do dia. É ignorar os medos e tremores experimentados da febre palustre, sem desanimar do desejo de permanecer em missão. Por em suas mãos este breves traços da vida do P. Antônio José Góes, por ocasião da celebração do centenário do seu nascimento (1918-2018), é minorar esse hiato, pois tantos vieram, exploraram e voltaram, o missionário ficou! Uma prece de sufrágio ao P. Antônio José Góes pela vida doada e um pedido de intercessão pelos povos que vivem da esperança de dias melhores. Ao jovem Leonardo Almeida, seu sobrinho-neto, nosso sincero obrigado por estas letras cheias de memórias tão estimulante à nossa missão. Comissão Inspetorial de Comunicação


Padre Antônio Góes, missionário salesiano. Nasceu em Itabaiana – Sergipe, no dia 13 de junho de 1918. Faleceu em Manaus – Amazonas, no dia 27 de fevereiro de 1976. Fonte: família do Padre Góes.


Sumário 05 09 19

Apresentação

Padre Antônio Góes: uma vida dedicada aos Yanomami

Referências


Ordenação Sacerdotal e Primeira Missa do Padre Antônio Góes. Em seu verso está escrito: “À caríssima irmã Maria, como pequena recordação de minha ordenação sacerdotal e primeira missa. P. Antonio José Góes”. Fonte: família do Padre Góes


Apresentação

S

ergipano de nascimento e amazonense de alma, P. Antônio José Góes é um daqueles raios de luz que o bom Deus permite tocar nossas vidas (mesmo que por breve tempo), para nos ensinar o valor da simplicidade das coisas - É mais importante dar do que receber (cf. At 20,35), felicidade é fazer os outros felizes, pois quem perde a vida por causa do Reino de Deus, vai reencontrá-la (cf. Mt 10, 39). Nascido em Itabaiana-SE, aos 13 de junho de 1918, missionou em vários estados, mas foi no Norte do pais que deixou suas melhores forças e onde concluiu sua corrida de fé (cf. 2Tm 4, 7-8). Sua páscoa aconteceu poucos meses depois de haver retornado da Europa onde participou das celebrações do Centenário das Missões Salesianas, em Turim (1875-1975). Na ocasião teve seu trabalho pioneiro com os Yanomami amplamente reconhecido, inclusive pelo Papa Paulo VI, com quem se encontrou. As fadigas da viagem, somadas a imperícia de certo “médico” que extraiu dentes do missionário na cidade de Barcelos, agravaram o seu quadro infeccioso na mandíbula obrigando-o a regressa de Santa Isabel do Rio Negro à Manaus às pressas. Uma forte endemia pulmonar, somada à insuficiência ventricular, foram registradas como causa mortis. Era dia 27 de fevereiro de 1976, com 57 anos de idade e 30 anos de sacerdócio. O missionário salesiano “faleceu placidamente deixando muita saudade”, registrou Dom Miguel D`Aversa. Este não foi o primeiro e nem o último que apaixonado pela missão colocou a saúde em risco para estar com os seus. Nestes homens de personalidade profética e teimosa, parece existir o mesmo dilema de Paulo – servir ou partir dessa vida? (cf. Fl 1, 23-26). Servir é a prioridade, cuidar da saúde, obrigação dos servidores. Por outro lado, ao celebrar o centenário do nascimento do P. Antônio Góes (1918-2018), vemos confirmadas as palavras de Jesus – “se o grão de trigo não cai na terra e não morre, fica sozinho. Mas se morre, produz muito fruto” ( Jo 12, 24). Uníssonos os Salesianos da Inspetoria São Domingos Sávio exclamam Página 7


– “a semente produziu bons frutos” (Mc 4, 8). Frutos nascidos do trabalho de muitas mãos, regados com o suor de tantos irmãos e irmãs, consagrados e leigos. Celebrar P. Antônio Góes é recordar os missionários do passado e do presente que continuam o pionerismo do trabalho por ele iniciado entre os Yanomami. Nossos corações repletos de gratidão louvam o Senhor, primeiramente pelo frutuoso intercambio de vida religiosa que por muitos anos ventilou as “veias salesianas” no Brasil, hoje um pouco adormecidas. Os salesianos possuíam uma natural tendência para o desapego dos limites culturais e geográficos e com simplicidade entregavam-se a aventura do Espírito de partir. Assim as Inspetorias todas, a nossa de maneira muito particular, viu chegar de longe e de perto muitos irmãos. Em segundo lugar queremos reafirmar nosso compromisso com o presente. Estamos certos de que a providência divina nos trouxe aqui, portanto, é nosso dever zelar para que esta chama confiada a nós não se apague. Queremos com esta celebração reafirmar nosso compromisso com os Povos da Amazônia, especialmente os Indígenas, as crianças, jovens e adolescentes de nossas periferias e ribeirinhos, mas também todo o delicado e complexo ecossistema, tantas vezes ameaçado por interesses econômicos. Estamos conscientes de que este imenso trabalho exige pessoas e condições materias humanamente insuperáveis para nós, por isso rogamos ao Senhor que nos envie colaboradores e colaboradoras (leigos, religiosos, sacerdotes). Aos nossos irmãos e irmãs, salesianos e membros da Família Salesiana, aos jovens e leigos em diferentes idades repetimos as palavras do Papa Paulo VI -“Cristo aponta para a Amazônia”, portanto, Vinde! Venham, como veio o jovem Leonardo Ferreira de Almeida. Sergipano de Aracaju, atualmente residindo em Brasília/DF, onde atua como professor na rede pública. Chegou com seu sotaque simpático, desapegado, pronto a colaborar, assíduo e diligente em querer saber, com a paciência de escutar e discernir. O bonito texto que hoje compartilhamos com vocês é fruto de sua perspicácia e zelo e que futuramente deverá se transformar em livro. Graduado em ciências biológicas, especialista em gestão federal do SUS, mestre em ensino de ciências e matemática, nosso amigo poderia, por seu rigor de método e abundante documentação com as quais recheou sua pesquisa, tranquilamente fazer-se historiador. Ao Leonardo, cristão apaixonado pela história e que deseja tornar mais conhecida a vida e obra do seu tio-avô, P. Antônio Góes, nosso muito obrigado, com copiosas bênçãos sobre os seus familiares!

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Ele acabou fazendo dos Yanomami a vida dele e se dedicou, de todas as formas, a buscar, a organizar e a procurar grupos e grupos de Yanomami.

Eliana Maria Ferreira, sobrinha do Padre Góes (In memoriam)

Padre Antônio Góes: Uma vida dedicada aos Yanomami. Por Leonardo Ferreira de Almeida*

P

adre Antônio José Góes nasceu em Itabaiana, Sergipe, no dia 13 de junho de 1918, sendo o quarto filho do casal Valentim José Góes e Genoveva Maria do Sacramento. De sua família, desabrocharam outras duas vocações religiosas, o seu irmão mais velho, também padre salesiano, Paulo Leonardo Góes (1916 – 1995) e sua irmã mais nova, a freira Josefa Germana Góes (1922 – 1988), Irmã das Filhas de Maria Auxiliadora. Sua trajetória religiosa iniciou-se em 1928, quando fez seus estudos primário e secundário em colégios salesianos, entrando na Congregação de São Francisco de Sales em 1935, quando concluiu o noviciado. Ordenou-se sacerdote em 08 de dezembro de 1945, aos 27 anos de ida-

de. Após breves passagens nas instituições em Jaboatão (PE) e Recife (PE) e em Belém (PA), foi enviado pelos superiores para a região do Rio Negro, Amazonas, atuando como conselheiro no colégio salesiano de Tapuruquara (1949), como diretor da Missão de São Gabriel da Cachoeira (1952) e como diretor do colégio salesiano em Iauareté (1953). Na época em que P. Góes começou a atuar no Amazonas, as missões desta região faziam parte da Inspetoria Salesiana do Norte e Nordeste, a qual tinha como sede a Casa Inspetorial de Recife. Em agosto de 1958, houve o desmembramento das missões da região Norte com as da Região Nordeste, surgindo assim a Inspetoria São Domingos Sávio, com sede em Manaus (OLIVEIRA,

*Licenciado em ciências biológicas - UFS, Mestre em ensino de ciências e matemática - UFS. Atua na área da educação no DF. É sobrinho-neto do P. Antônio Góes.

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Ele vivia com o coração grudado a eles. O padre Góes foi um exemplo de vida. Foi iniciativa dele fazer este pioneirismo. Dom Walter Ivan de Azevedo, Salesiano - ISMA

1994). Com esta separação, o sergipano optou por continuar nas missões do Rio Negro. Desde quando começou a trabalhar na região do Rio Negro, padre Antônio ouvia falar de indígenas que viviam nas redondezas do rio Cauaboris, perto do Pico da Neblina. Estes eram identificados pelos moradores das cidades como índios ferozes, violentos e raptadores. Em abril de 1952, foi procurado por três caboclos da região de São Gabriel, João Tavares e seus filhos Eugênio e Edson, os quais contaram ao salesiano que fizeram contato com dois destes indígenas no igarapé da aliança, em

um ponto do rio Cauaboris. Logo, desejando contatar os Yanomami (à época, conhecidos como ‘macus do mato’) de forma pacífica, o religioso obteve dos superiores a desejada licença, e, juntamente com os Tavares partiu rumo ao encontro com os nativos. Conforme se tem registro em uma crônica escrita pelo próprio padre Antônio Góes, o seu pioneiro contato com os indígenas do grupo Kohoroxithari (um dos grupos Yanomami) ocorreu precisamente no dia 11 de setembro de 1952 (LAUDATO, 1983; BIOCCA 1966). Dos contatos realizados desde 1952, rendeu uma vida de muito

George Seitz e Thea Seitz (à esquerda), padre Antônio Góes (no meio) e indígenas que deram apoio à expedição. Fonte: Seitz, 1960, Ilustração 10, entre pp. 88 e 89.

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Padre Antônio Góes, juntamente com dois jovens yanomami, procura pequenos fragmentos de ossos, após cremação de um falecido yanomami. Fonte: ISMA, 1996, p. 52.

respeito e dedicação missionária aos Yanomami. De seus repetidos contatos com estes indígenas, floresceram duas missões salesianas: “Nossa Senhora de Lourdes”, em Maturacá e “Sagrada Família”, em Marauiá, edificadas, respectivamente, em 1954 e 1961. A missão Nossa Senhora de Lourdes, atualmente, está sob a direção do padre Raimundo Marcelo Maciel e a missão Sagrada Família do Marauiá tem como encarregado o Padre José Reginaldo de Oliveira. Muitos padres, párocos e irmãos salesianos contribuíram para que estas duas missões se mantivessem atuantes e vigorantes até os dias atuais.

Em 1956, P. Góes teve um artigo de sua autoria publicado no Il Bollettino Salesiano. Este artigo tinha o objetivo de comunicar a toda Congregação Salesiana, no Brasil e no mundo, sobre o seu incipiente trabalho missionário junto aos Yanomami de Maturacá e seu contato com diferentes grupos destes nativos nas regiões de Marauiá e de Maiá. Possivelmente, este escrito compreende um dos primeiros registros históricos, contendo informações importantes para estudos antropológicos e etnológicos sobre estes grupos (GÓES, 1956). Padre Luís Laudato que, junto com seu irmão Padre Francisco Lau-

Para os yanomami, o Padre Góes é “ipa nörimi a yai”, um amigo para valer. Este termo também significa “é tudo” para os yanomami. Padre Luis Laudato, Salesiano - ISMA

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Padre Antônio Góes com dois Yanomami. Fonte: Biocca, 1966, p. 61

dato, deu prosseguimento à missão Sagrada Família a partir de 1978, coletou dos próprios Yanomami o relato de que, no início da atuação do P. Góes entre os Karawethari do Marauiá, o salesiano presenciou um confronto entre o chefe desta tribo com o chefe da tribo rival dos Kohoroxithari. Nesta ocasião, o missionário, num ato de coragem, cortou o

caminho e agarrou, com muita força, o braço do chefe dos Kohoroxithari, o qual, numa rara presença de espírito, proclamou o padre ‘chefe de todos os Yanomami’. Depois deste acontecimento, os dois grupos não se enfrentaram belicosamente e foram construindo, paulatinamente, laços de amizades, visitando uns aos outros (LAUDATO, 1998). O convívio cotidiano do padre Antônio com os Yanomami é lembrado pelo atual Tuxaua da comunidade Ariabú de Maturacá, Júlio Góes, como uma relação respeitosa pautadas em atitudes de valorização dos costumes e crenças. O salesiano teve a oportunidade de acompanhar alguns rituais destes indígenas, como o ritual xamânico, quando estes ficam sob o efeito de epena (RE et al, 1988) e o Reahu (ritual de cremação dos mortos), ritual este descrito pelo próprio missionário em seu artigo publicado no Bollettino Salesiano (GÓES, 1956). Algumas vezes, em incursões na floresta, o religioso utilizava a bre-

Resgatar a história do Padre Antônio Góes é resgatar também a história de nossa própria inspetoria e a história da presença salesiana na Amazônia para que nós possamos redescobrir e valorizar sempre mais as nossas raízes e para que possamos, também, olhar para o futuro com mais esperança, diante dos inúmeros desafios que nós encontramos, sobretudo no trabalho em área yanomami. Padre Francisco Alves, Salesiano - ISMA

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A partir da introdução destes missionários, primeiro o padre Antônio Góes e outros que vieram depois, nossas tribos começaram a ser mais pacíficas. A cultura de todo tempo está duelando, está brigando, flechando o outro foi diminuindo. Passou a ter mais diálogo. Alberto Góes, filho do Tuxaua Júlio Góes – Maturacá

jeira (folha de tabaco, misturada com cinzas de madeira), comumente utilizada pelos nativos, para amenizar o cansaço e a fome (BIOCCA, 1966). Desde o início de sua trajetória missionária, Padre Góes, apesar de levar alguns Yanomami para estudar no internato de Tapuruquara (atual Santa Isabel do Rio Negro), almejava proporcionar uma educação cristã na própria missão, no sentido de evitar retirar as crianças e jovens de suas áreas. Padre Góes (1956) expressava a preocupação de que o afastamento dos indígenas de suas aldeias pudesse acarretar o desaparecimento de suas raízes. Logo, padre Antônio acolheu as orientações do Concílio Vaticano II promulgadas pelo Decreto“Ad Gentes”, em 1965, com o propósito de reavaliar e ressignificar sua conduta evangélica, no sentido de seguir o melhor caminho para a valorização dos costumes e tradições autóctones (D’AVERSA, 1982). Desde os seus primeiros contatos, o missionário promoveu a distribuição de ferramentas para o cultivo e colheita de plantas frutíferas e de hortaliças, com o propósito de tornar os nativos autossuficientes na produção de alimentos, com o cuidado de

não inserir produtos sem utilidade ou que pudessem ocasionar danos aos costumes dos indígenas. Padre Góes é lembrado como aquele que introduziu a mandioca, a farinha e o beiju na comunidade, alimentos que hoje são indispensáveis na culinária Yanomami. O paulatino aumento de plantações e de colheitas visto que propiciou o armazenamento de comida, amenizando assim os problemas sazonais de suprimento de alimento (LAUDATO, 1998). As próprias lideranças tradicionais apontam esta possibilidade de ter e armazenar alimentos como positiva para as comunidades (FERREIRA, 2007). A fim de amenizar o isolamento e a solidão, o missionário lançava mão

Padre Antôno Góes realizando colheita com apoio de jovens yanomami. Fonte: Documentário “O meu caminho é o rio”, 1975.

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Padre Antônio Góes celebrando missa. Fonte: acervo da família

Que Deus o receba na glória eterna e que o exemplo dele de amor a Deus, de amor a Cristo, de amor aos indígenas, possa suscitar mais interesse na defesa do direito dos povos indígenas.

Padre Cânio Grimaldi, salesiano – ISMA (In memoriam)

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de recursos radiofônicos, atuando como exímio radioamador. Certificado em 1973 como Radioamador Classe “A” pelo então Departamento Nacional de Telecomunicações do Ministério das Comunicações, padre Góes utilizava-se dos meios de comunicação não somente para fazer contatos e se manter informado, mas também para solicitar ajuda quando algum indígena precisasse de cuidados médicos ou se encontrasse em apuros. O seu primeiro equipamento de rádio foi doado pela Comissão de Demarcação de Limites Brasil-Venezuela (RODRIGUES, 2001). Vale salientar que padre Góes ajudou esta comissão na revisão de alguns mapas e demarcações. De acordo com alguns moradores do Rio Negro, as contribuições do padre fizeram com que o Pico da Neblina ficasse demarcado no território brasileiro, e não no território venezuelano. Durante sua vida nas missões, padre Antônio recebeu visitas de pesquisadores e de outros salesianos, em sua maioria estrangeiros. O missionário atuava como um guia para estes visitantes proporcionando a eles conhecerem as diversidades étnicas e culturais dos diferentes grupos Yanomami presentes em Maturacá, Marauiá e Maiá. Com estas visitas, também aprendeu muito, tendo contato com informações e estudos acadêmicos relevantes de análises antropológicas, contextuais e conjeturais no que se refere a interculturalidade. Dentre as visitas, podemos destacar a


do biólogo italiano Ettore Biocca, a do antropólogo alemão George Seitz, a da artista botânica inglesa Margaret Mee e a do italiano Enzo Spiri, cooperador salesiano e fundador da equipe da Escola Salesiana de Aplicações Fotográficas (S.A.F.), de Turim. Com a visita de Enzo Spiri e sua equipe do S.A.F., entre anos de 1970 e 1971, o sergipano teve o seu trabalho missionário entre os yanomami de Maturacá e de Marauiá registrado, tendo como produto o documentário intitulado “O meu caminho é rio”, o qual revela o salesiano em suas variadas ações junto a estes nativos, tais como a alfabetização, a evangelização, o trabalho na lavoura e os momentos de convívio recíproco e solidário. Este documento ci-

nematográfico, que apresenta grande valor histórico e antropológico, correspondeu a colaboração da ISMA à celebração do Centenário das Missões Salesianas, em 1975, em Turim. Sendo assim, com a apresentação do documentário de suas obras missionárias, padre Antônio Góes foi um dos salesianos, atuantes no Brasil, que participou desta festividade. Com a oportunidade de ir a Turim, nos meses de outubro a dezembro de 1975, conheceu outras cidades italianas, como Roma, Veneza e Pádua. Viajou também para o Vaticano, em cuja ocasião singular, conheceu o Papa Paulo VI. Em seguida, visitou lugares santos da cristandade na Espanha, Portugal e França, onde cativou salesianos e fez novas amizades

Padre Antônio Góes (tocando a cauda da cobra) acompanhando o pesquisador Ettore Biocca (tocando a cabeça da cobra) e seus ajudantes. Fonte: Biocca, 1966a, p. 41.

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Imagem do Padre Antônio Góes presente em sua Carta Mortuária. Fonte: acervo do autor.

(D’AVERSA, 1982). Durante sua excursão pela Europa, padre Góes recebeu o convite de visitar, com um grupo seleto de salesianos, a Terra Santa, Belém, em Jerusalém. Esta visita não estava prevista antes de chegar a Turim. No dia 25 de dezembro, teve a oportunidade única de conhecer a gruta onde Jesus Cristo nasceu. Foi a realização de um sonho e o fortalecimento de sua alma missionária. Ao voltar para o Brasil, o padre visitou rapidamente parte de sua família e amigos em São Paulo e Rio de Janeiro, depois voltou para o Amazonas, no início de fevereiro de 1976. Ao chegar na inspetoria, já se mosPágina 16

trava abatido e cansado, porém estava com muita ânsia de rever os indígenas somado ao receio de encontra-los chateados com ele, devido ao longo tempo em que esteve ausente. Mesmo sentido fortes dores na mandíbula, decidiu ir para a missão de Marauiá. No caminho, passou por Barcelos, onde extraiu alguns dentes. Enquanto navegava em direção à Santa Isabel do Rio Negro, a região da extração infecionou. Ao chegar na cidade, seu estado piorou. Logo, salesianos e amigos se mobilizaram para ajudá-lo. O seu grande amigo, o radioamador Antônio Madeira, que morava em Manaus, mobilizou conhecidos


da Força Aérea Brasileira (FAB) que conseguiram um avião para o levar à capital amazonense. Lá chegando, em 21 de fevereiro, foi levado pelo padre Cânio Grimaldi, diretor do Colégio Dom Bosco, à época, para o Hospital Beneficente Portuguesa. Pressentindo que não iria resistir à enfermidade, o fundador das presenças salesianas entre os Yanomami pediu os Sacramentos aos seus superiores e foi acompanhado em seu leito de morte pelos seus irmãos, Padre Paulo e Irmã Josefa. Numa sexta-feira, dia 27 de fevereiro de 1976, aos 57 anos de idade e 30 anos de sacerdócio, faleceu placidamente, deixando muita saudade (D’AVERSA,1982). Apesar da especulação de possíveis causas, como ‘malária’, ‘tétano, ‘câncer na mandíbula ou ‘câncer no fígado’, o atestado de óbito registra que a causa de morte do valente sergipano foi endemia pulmonar somada à insuficiência ventricular esquerda. Cabe destacar que os Yanomami lamentaram a morte do missionário e ficaram descontentes por ele ter sido enterrado sem que eles pudessem ter ingerido seus ossos, como é do costume em seus rituais fúnebres (BERWICK, 1992). Dom Miguel D’Aversa (1982) lembra, com muita generosidade, o que Padre Antônio Góes representou para os Yanomami e para a Congregação Salesiana – um missionário decidido, apostólico e sacrificado enfatizando que sua vida missionária

Padre Antônio Góes utilizando o transceptor, equipamento utilizado pelos radioamadores. Fonte: Documentário “Meu caminho é rio”, 1975.

foi repleta de perigos, dificuldades e renúncias, mas pautada num trabalho paciente, prudente, sensato e humilde, sempre com muita simplicidade e cativante alegria. Com a aproximação do centenário do seu nascimento, o legado de seus 22 anos de atuação missionária junto aos Yanomami continua vivo, a destacar a manutenção das missões de Maturacá e de Marauiá, sendo estas defendidas sobretudo pelas lideranças tradicio-

Ele está com a gente, embora não vivo, mas espiritualmente, ele está com a gente. Por isso que até hoje, eu defendo a missão salesiana, por ele ter sofrido muito pelos yanomami.

Tuxaua Júlio Góes, aldeia Ariabú – Maturacá, Cauaboris Página 17


nais destas comunidades e frutos da vigorante entrega dos salesianos que deram continuidade e aperfeiçoaram o pioneiro trabalho do sergipano. Sua memória, também, está registrada no sobrenome “Góes” presentes nos nomes de muitos Yanomami de Maturacá, sendo um dos sobrenomes mais comuns da região de Maturacá (MENEZES, 2010). Esta marca se iniciou com o atual Líder Júlio Góes, que foi batizado, criado como filho pelo padre desde os sete anos, sendo o primeiro a ser registrado como “Góes”, perpetuando este sobrenome em sua tribo. É preciso mencionar ainda outras duas homenagens feitas ao missionário. A primeira foi o Barco Hospital “P. Góes” que, composto por médicos e enfermeiros, atendeu as comunidades ribeirinhas do Rio Madeira, no âmbito do “Projeto Sanitário P. Góes”, que vigorou entre 1997 e 1999, sob a coordenação da Associação Carlo Machini em parceria com a ISMA (BOLLETTINO SALESIANO, 1998). A outra é o ‘Ginásio

Barco Hospital Padre Góes. Fonte: Il Bollettino Salesiano, dezembro de 1998, p. 8.

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Ginásio Poliesportivo P. Antônio Góes. Fonte: Documentário Missão Salesiana entre os índios Yanomami, 2017.

Poliesportivo P. Antônio Góes’, fazendo parte da escola Escola Estadual Indígena Imaculada Conceição, em Maturacá. Este ginásio foi construído em 2010, por iniciativa dos próprios Yanomami, que num gesto singular à sua cultura, homenagearam uma pessoa falecida, sendo assim a expressão da gratidão da comunidade ao saudoso missionário (ISMA, 2010). Por fim, a história do Padre Antônio José Góes é a história de um salesiano que foi atento e fiel à sua missão e que soube compreender e conviver com as diferenças, buscando nelas a união e o respeito, superando a adversidade com valentia e solidariedade. As terras amazonenses e seus belos e bravos habitantes da Região do Alto Rio Negro são testemunhas de sua trajetória missionária. Sua memória é lembrada e vivida, não somente pelos seus correligionários da Congregação de São Francisco de Sales, que com a mesma bravura se entregaram a uma vida de sacrifícios, mas também pelos legítimos povos da Amazônia na divisa entre o Brasil e a Venezuela, os Yanomami.


Referências

BERWICK, D. Savages: the life ande killing of the Yanomami. Toronto: Voyage Press. 1992. 398p. BIOCCA, E. Viaggi Tra Gli Indi – Alto Rio Negro/Alto Orinoco. ROMA: Consiglio O Nazionale Delle Ricerche. Secondo Volume, 1966. 567 p. BOLLETTINO SALESIANO. Bollettino Salesiano. Torino: via Maria Ausiliatrice. Anno 122, N.11, p. 8, dezembro 1998. D’AVERSA, M. Heróis Autênticos: salesianos que trabalharam na Inspetoria Amazônica e faleceram na Inspetoria ou alhures nestes últimos trinta anos. Humaitá – Amazonas. Segundo volume, 1982. 228p. GÓES, A. J. Incontro ai Macù. In: Bollettino Salesiano. Torino: via Maria Ausiliatrice. Anno 80, nº5, pp. 97 - 103. Marzo 1956. FERREIRA, M.I.M. “Mulheres Kumirãyõma”: uma etnografia da criação da Associação de Mulheres Yanonami. Dissertação de Mestrado. UFAM: Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – PPGAS. 2007. 207p. INSPETORIA SALESIANA MISSIONÁRIA DA AMAZÔNIA SÃO DOMINGOS SÁVIO. Um novo espaço de lazer. 14 de outubro de 2010. Disponível em: <http://isma.org.

br/2010/10/14/um-novo-espao-de-lazer/>. Acessado em: 2017 – 2018. LAUDATO, L. História-Crônica da missão “Sagrada Família” do Rio Marauiá – Rio Negro – Amazonas. Marauiá/Santa Izabel do Rio Negro: Documento escrito em 21 de dezembro de 1983. LAUDATO, L. Yanomami Pey Keyo. Brasília : Editora Universa. 1998. 327p. MENEZES, G.H. Yanomami na Encruzilhada da Conquista: contato e transformações na fronteira amazônica. Tese de Doutorado. UNB: Programa de Pós Graduação em Antropologia social. 2010. 249p. OLIVEIRA, L. Centenário da presença salesiana no Norte e Nordeste do Brasil. Recife: Escola de Dom Bosco de Artes e Ofícios. Volume II. 1994. 198p. RE, G.; RE, F.; LAUDATO, F.; LAUDATO, L. Um mergulho na pré-história - Os últimos Yanomami? A aventura de dois médicos em visita aos irmãos Laudato, entre os Yanomami Karawethari de Marauiá. Manaus: Editora Umberto Calderaro. 1988. 256p. RODRIGUES, I. D. Antônio Carreira Madeira - PY8LX e Padre Antônio Góes - PY8AHN. 2001. Disponível em: <http://www.radioamador.com/ ilustres/py8lx_py8ahn.htm>. Acessado em 03 de janeiro de 2013.

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Foto: Google Imagens

Anos

1958 2018

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