Amazonitudes

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“ AMAZONITUDES ” Quando percebi pousei em uma cidade mergulhada entre braços de “rio-mar”, Belém do Pará. Aqui os rios são mares e os ritmos das águas ditam as vidas de muitos. A concordância no plural por aqui é estritamente necessária, dada a tremenda vastidão de tudo. Também pousaram por lá europeus patrícios em 1616, após expulsarem os franceses da pretensa França Equinocial, em Saint Louis, hoje a nossa cidade de São Luís do Maranhão. Neste distante século XVII já se registrava a presença dos Tupinambás em cenas cotidianas, como fazendo manteiga de tartaruga, as tracajá. Nossos patrícios e outros “euroloucos” buscavam por aqui um Eldorado, para variar, mas não encontraram, ainda bem... Então comercializaram cacau, baunilha, canela, pirarucu, couros de mamíferos e coisas mais. Nossos historiadores chamam de Drogas do Sertão, as nossas especiarias! Mandavam as “Especiarias-Brasilis” para a Europa com a maior margem de lucro possível, em linguagem atual com ágio máximo! Era um mercantilismo extrativista tipo Vasco da Gama, que nada produzia, mas que fazia circular na busca do lucro, com a vantagem de ser bem mais perto que a Índia. Nada gostaram os Tupinambás desde “vai e vem sem sentido algum” e foi secular a luta na região. Houve batalha com 10 mil tupinambás! Com olhar secular pulei nas ruas de Belém! Vi o Ver-o-Peso, mercado popular, ao lado do original “edifício de ferro”, onde a colônia buscava arrecadar algo para a coroa lusitana. A fortificação local que era de palha passou a ser de pedra, o Forte Presépio, marco da fixação dos portugueses nestas “bandas-brasilis”, um verdadeiro desgosto tupinambá. Pode-se dizer que “senti este gosto amargo destes meus longevos antepassados”. Ao fundo, uma trilha sonora de Techno-Brega impregna o ar! Sonoridades fluviais... Fugi das ruas e fui para as águas, as águas do rio Gurupá rumo ao mais caudaloso e extenso rio do mundo, O AMAZONAS-MUNDO. Antes teve o rio Canapijó, o Arroizal, a Baía de Marajó com suas grandes ondas, o rio Pará, o Estreito de Breves, o rio Aturiá, o Tajapurú, o Tamarati e depois o “gigante-mundo”, o Amazonas. “Não parecia rio, parecia mar. Não parecia deste mundo, parecia do de lá”. E era só parte das águas do “rio-mundo”: a Passagem de Peixe. Um trecho profundo e habitado por “grandes-peixes” e que vai direto para o Atlântico, uma porta de entrada e de saída. O Amapá, logo ali... Por lá no “rio-mundo-de-peixe” cheguei no dia 04 de setembro de 2014, de acordo com o nascimento de Cristo e o calendário cristão. Também às 18h30min, agora em conformidade com um pequeno marco no solo de um local chuvoso e frio, distante fisicamente e culturalmente, chamado Greenwich. Por convenção divide tudo entre Ocidente e Oriente, uma linha vertical imaginária que separa a “laranja-mundo” em duas partes, o grau zero das longitudes servindo para definir os fusos horários do mundo. Deste mundo ou do mundo deles? O tempo das águas de nosso “Brasil-do-Norte” pouco tem ou nada tem do tempo inglês de Greenwich, um dos tantos símbolos de poder já perdidos pela ilhota britânica.


Pelos os meus olhos passam ilhas e mais ilhas (fluviais, não marinhas), de elevada floresta úmida (chuvosa, mas tropical e quente), com bordas de palmeiras, palmeiras de açaí. Habitadas aqui e acola por famílias brasileiras flutuando sobre as águas da vida, em um Tempo e Espaço nada inglês. Não pude evitar e continuei a pensar sobre as projeções culturais de outros povos sobre esta nossa terra. O tempo medido não é do “calendário-tupinambá”, nem mesmo de um “calendário-xinguano” ou do Pará. A localização de tudo, resultante de cruzamentos entre longitudes e latitudes, que cria um tabuleiro de xadrez sobre a Terra, nada tem haver com “o se localizar amazônico”. Rios, furos, igarapés, ilhas, estreitos e baías são as nossas “Amazonitudes”! Acrescento ao revisor ortográfico... Um VIVA para as nossas AMAZONITUDES!! Continuo pensando: como os povos xinguanos e outros povos amazônidas medem ou mediam as distâncias, medem ou mediam o tempo? Há no Brasil algo como 96 povos isolados! Como medem o Tempo e o Espaço? Não deveríamos utilizar um Tempo e um Espaço que sejam Nossos?? Nada contra convenções internacionais, mas aprofundar a própria identidade me parece sempre um bom caminho, ou melhor, um bom Igarapé! Também não deixa de ser estranho nos considerarmos um povo com apenas 500 aninhos. Às vezes isso é demais para a minha cabeça! Porque a nossa identidade ou aquilo que somos não se estende até o milenar? Os chineses o fazem e olham para o passado e dizem: não havia nação, mas havia chineses. Devemos dizer também: não havia colônia, Brasil Império ou Estado Nacional, mas havia brasileiros. Todo nacionalismo é romântico, porque o nosso não pode ser? Enquanto minha cabeça estava mergulhada naquilo que pensamos ser ou naquilo que deveríamos ser, caiu a noite e chegou o luar. O mundo verde se tornou um mundo azul celeste de sombras e sonhos. Igual só permaneceu o roncar do motor da balsa... Noites e dias se vão pelos rios, furos e ilhas que aparecem e desaparecem, municípios vem e vão, com suas pequenas “cidades-de-beira-rio”, donas de uma urbanidade tão intensa quanto qualquer outra. Até mais intensa até, pois retira aqueles homens e mulheres da floresta, mesmo estando, todo o tempo, cercado por ela. De madrugada fizemos a curva do AMAZONAS para o XINGU, de um “rio-mundo” para outro “rio-mar”. Gurupá, Porto de Moz, Senador José Porfírio... Paradas no “riomar-xinguano” em seu trecho mais largo. Para ver margem só forçando a vista. Tudo chega pelo rio, carro, moto, caminhão, alimentos, combustível. “Rio-estrada-de-vida”... Sei que estou abusando da construção de palavras compostas e mesmo criando palavras ou sentidos, mas marquei meus pecados com “aspas”! Parece-me que o idioma que herdamos do pequeno país ibérico é pouco para descrever o mundo que vejo! Ou talvez seja em parte capaz... Ariano Suassuna, de onde se encontra, poderia discordar de mim, portador que era de um português iluminado e plenamente “abrasileirado”. Nestes dias passados em “Águas-de-Brasil” pus os pés na terra duas vezes. Pés na terra após noites limpas de luar. Limpas de grandes estradas, avenidas, carros e edifícios. Apenas águas, ilhas e “rios-de-mar”. Lembro da Ilha de São Salvador vestida de floresta com 30 metros de altura, sem açaizeiros ou homens, ilha desabitada como tantas outras. Mas para mim, esta foi uma ilha de Tempo e Espaço natural e amazônico, pré-


mítico, pois pré-humano. Com “olhos-de-ciências-naturais” só vi milhões de anos de evolução, um soco no estômago do criacionismo. Aquela ilha ao luar me fez ver a força da vida para se recriar... A finitude pareceu-me uma ilusão... Depois adveio a felicidade! Aquela visão de São Salvador, que em nada me lembrava o salvador cristão, parecia apontar um caminho antigo de felicidade, como onde se pode ser aquilo que se é! Mais a frente, em outra ilha, agora a direita da balsa, um igarapé ladeado de pés de açaí com pequenas casas, frontais umas as outras, me trouxe um “gosto-de-lar”, senti aconchego e acolhimento. Como pode? Nunca vivi sobre as águas! Foi como se a cor prata do “rio-luar” e as casinhas me lembrassem uma “vida-de-vila-de-infância”, aqui uma vila fluvial com o chão pavimentado de água e vida! Estas ilhas e estes “rios-mar” também me fizeram lembrar de algo que eu não conhecia em terra, a Imensidão. Conhecia sim, diante do mar, este meu companheiro antigo do qual ando meu apartado. Mas aqui a Imensidão é Dentro! Assim parece espiritual, mas aqui, neste parágrafo, falo de geografia, falo de Dentro das Entranhas do Brasil. Entranha e Imensidão parecem descrever realidades opostas, mas por aqui no “Brasildo-Norte” não são... E também é assim a nossa Brasilidade. Profunda, Entranhada e também Imensa. Tão imensa em território, em vastidão, em diversidade de tudo, a ponto de criar o mais profundo desconhecimento. Pelo Norte me vi portador de uma brasilidade que possuo e desconheço ao mesmo tempo! A ignorância sentiu-se acompanhada da familiaridade. No Xingu amplia-se a Brasilidade que há. Deste “devaneio-de-mundo-e-de-si” fui voltando ao passo do dia-a-dia de bordo e retornei o olhar para as margens e para o rio. Só fui ver “terra-desmatada-de-fazenda” em Senador José Porfírio, já próximo da parada final em Vitória do Xingu, cidadezinha empoeirada de uns mil habitantes. Os conflitos regionais vieram à mente. Antes de Vitória a noite caiu na praia de Senador, nesta Amazônia de tempo seco e chuvoso, onde quando seca chama verão e quando chove chama inverno. Mas há sempre muita água, não importam tanto as estações! É água suspensa no ar ou sob os pés em navios, barcos, rabetas, balsas ou canoas, abaixo das casas... É tanta água... Eu pensava que existiam grandes rios no Sul e no Sudeste, e até mesmo no Centro-Oeste, mas agora tudo me parece riachinho!! É certo que não se podem desprezar rios como o Paraíba do Sul, o Doce, o Paraguai, o Paraná ou o Uruguai, mas nada chega aos pés do gigante Amazonas e seus “afluentesmar”, o Madeira, o Tapajós, o Xingu, este por onde penetrei. Trata-se de um oceano de água doce, uma sucessão de começos infinitos. Meus olhos não felizmente viram fim... Como pude ficar TANTO tempo longe de TANTO! Penetrei pelo Xingu até o momento em que não tenho mais motor de barco, apenas braços e pernas, e depois, braços, remos e canoa. Com braços e pernas pisei na terra de Vitória do Xingu e de Altamira. As cidades parecem que acabaram de nascer, como algo que acabou de substituir a floresta equatorial. Parece que tudo é de ontem.


Entretanto, nos rostos, nas peles, nos traços de olhos agudos se percebe um povo milenar, ancestral, que provavelmente não se vê como tal. Mas que é! A tal Cultura Clovis ainda fala de 12.000 anos de história humana nas Américas, mas tem gente no Brasil que fala em 30.000 anos ou mais no que hoje é o Piauí. Para mim não importa, a ancestralidade mora aqui no Brasil! 500 aninhos é uma ova! Meus ancestrais estão diante de meus olhos! Meus ancestrais são “brasileiros-índios”! Não sei não, mas esta “pecha de Ocidental” que nos colocaram me parece tão arbitrária quanto contar o tempo a partir de Greenwich! Em meio a tudo isso, os meus 43 anos de brasilidade (quase 44) vão se ampliando a cada conversa. A fala denuncia o tempo amazônico, o tempo das águas e dos conflitos. Neste caminho pelas águas e ilhas até Altamira conheci 2 madeireiros, um gaúcho e outro capixaba. O 1º era um técnico que realiza a manutenção de maquinários em cerrarias e o outro comercializava madeira. O primeiro disse que queria apenas o dinheiro deles, não se via como madeireiro e o 2º, que me seguiu e sentou do meu lado no ônibus, começou a esbravejar dizendo que madeireiro não é pecuarista, que quem destrói a floresta não são eles, que parte importante do problema está na regularização fundiária (expressei minha concordância) e esbravejando ainda mais disse: “deveríamos aprender com os americanos e matar todos estes índios!! Para este “brasileiromadeireiro” índio é outro povo, não é como ele, não faz parte de sua identidade. Contornei a situação falando das grandes linhas do desenvolvimento brasileiro e até de família, quando o “capixaba-nortista” foi se acalmando. Até desabafou comigo e me contou que sua esposa tinha trocado o casamento deles por um garoto de 19 anos. Vai ver que ficou pensando muito em madeira! Já mergulhado nos conflitos e me lembrando do que havia lido sobre o Baixo Xingu percebi que não teria como evitar o misto de felicidade por conhecer parte deste grande rio e de tristeza por estar “canoando” sobre a Volta Grande que será fortemente impactada para tornar o Pará um exportador de energia para o “Sul-Sudeste”. Volto a olhar para as empoeiradas ruas da cidade em busca do meu hotel. Porém, além disso, redireciono o meu olhar para as pessoas. Percebi com certa clareza, que naquela pequena e movimentada cidade, o ritmo das vidas era “plenamente” urbano, aquelas vidas que se “descolaram” das águas e da mata. Sei que a urbanidade começou a pousar por ali no século XIX, que o convívio entre os “brancos” e os índios já é secular, mas ainda assim, podem estar caminhando por suas ruas barulhentas marinheiros, tripulantes, ribeirinhos, seringueiros e índios que vivem o ritmo e os fluxos das águas, das matas e das campinaranas. Estes fluxos me interessam! Interessam e assim estou aqui. Estando aqui estou mais em mim. Estando aqui me aproximo do ritmo das águas e na complexidade das matas. Águas e seivas foi o meu sangue, rios artérias, furos veias, igarapés vasos capilares, a terra a minha carne encharcada. Carne de brasilidade que se quer em totalidade, que se busca diversa e ampla como a terra de nossas Amazonas. AMAZONE-SE ABRASILERANDO-SE! AMAZONE-SE EM FUTURO-PRESENTE DE BRASIL! AMAZONE-SE EM PASSADO-MILÊNIO DE NOSSA CULTURA! AMAZONE-SE PARA VER TUDO O QUE É SER BRASILEIRO! AMAZONE-SE E ENTENDA-SE.


Meus pés tocam as margens lamacentas do “xingu-urbano-altamirano” e as canoas partem da cidade para percorrer parte de um dos grandes afluentes do Amazonas, o “rio-mar” Xingu. Rio mítico, palco de milenares culturas indígenas brasileiras e do esforço épico dos irmãos Villas Boas. Lá estávamos para uma “canoada” através da Volta Grande do Xingu, onde moram as suas cachoeiras. Dias passados em canoas amazônicas de madeira, dormidos em praias douradas, entre pedras, cachoeiras, corredeiras, águas rasas, arraias e tracajás. Estas águas turbulentas formaram uma barreira secular à colonização européia. Para chegar por lá, patrícios e ordens religiosas tinham que ir por terra, enfrentando o seu próprio desconhecimento e os “povos-brasileiros”. Apenas uma pequena missão religiosa se instalou por ali... Na Era Cristã, em fins de seu século XIX começaram a se intensificar os contatos com a produção de borracha em um Brasil ainda pouco Republicano. Surge a Vila de Altamira, hoje cidade. Veio o 2º ciclo na 2ª Guerra, travada longe daqui, mas que deixou marcas por aqui. Para cá vieram seringalistas, suas concessões e o trabalho forçado, assim como os migrantes da seca nordestina no papel de seringueiros. Passou a guerra e se foram o governo e os seringalistas. Ficaram os seringueiros migrantes, se adaptaram e hoje são Filhos da Floresta. Os nossos longos anos de Estado Nação foram dominados por períodos autoritários, temos apenas algo como 50 aninhos de democracia plena! E também não foi diferente no Xingu. Os militares voltaram ao poder em 64, sempre com o Exército à frente dos golpes desde a fundação da República, que também foi um golpe! Ali progressista e depois sempre conservador... Chegou ao Xingu o desenvolvimento militarizado e a receita que todos nós já conhecemos: estradas + madeireiros + pecuária + agricultura extensiva = desmatamento + grilagem + concentração de terra + migração forçada e morte violenta de populações tradicionais + êxodo + inchaço urbano + bolsões de pobreza. Alguém já viu isso por aí? O Xingu era uma verdadeira fronteira do capitalismo em pleno século XX! O capital “brasileiro” adentrava as matas equatoriais e o cerrado xinguano, uma epopéia de Adam Smith reincarnado em um capitalismo sem Congresso. Mas Nixon fechou a torneira de dólares e os milicos nos legaram um brutal endividamento externo na década de 80, a década que assim se tornou perdida. Para justificar o desmando só mesmo usando muito dinheiro, dinheiro dos outros!! Tudo isso pouco antes do “momento-de-pouso” do neoliberalismo em nossas terras, que por aqui é bandeira de conservador, mas que é defendido até hoje por candidatos de legenda com nome de passarinho e por outros mais religiosos, filhos tortos de Calvino e Lutero. No meio deste verdadeiro “fusuê”, que se complicou ainda mais com os novos liberais, não é que surge Kararaô, projeto de “mega-barragem” com nome indígena! Um verdadeiro afogamento coletivo! Mas os movimentos sociais, incluso o ISA, barraram a megalomania pós-militar e pré-liberal! Porém o projeto renasceu, sem inundar Terras Indígenas e com novo nome. Licitada em 2010, agora se encontra em construção mesmo que sub judice, tudo isso graças ao Supremo e ao uso famigerado da Suspensão de Segurança, um dispositivo ditatorial de


64 que “arremessa-para-o-futuro” a apreciação de sentenças emitidas por outros tribunais. E Belo Monte aí está, unindo-se às grandes UHEs do Norte, como Tucuruí, Jiral e Santo Antônio. Já se fala também em outras duas usinas no rio Tapajós e ainda na maior mina de ouro a céu aberto do mundo, que se pretende vizinha desta nova “kararaô-lipo-aspirada”! Tudo isso navegou pela minha cabeça após retirar os pés da “lama-de-margem” de Altamira. Minhas mãos pousaram sobre o remo já dentro da Pequenina canoa e com o sol, surgiram as primeiras remadas da vida no “Brasil-Equatorial”. Tudo tão vasto, tão novo e ao mesmo tempo tão brasileiro, tão conhecido, tão familiar e tão distante. Luvas, chapéu, blusa, calça, protetor solar, óculos escuros, câmeras fotográficas, equipamentos e mais e mais e mais... Vontade eu tive de estar sem nada disso, sem estes “adereços-urbano-tecnológicos”. Vontade de identidade com o desconhecido. A cada remada parecia me aproximar de algo desejado, da luta política, mas também de algo mais, porém desconhecido. Como se pode desejar algo que se desconhece? Pergunto sabendo. Estar dentro do rio e da mata é estar “em um mundo que se equilibra com muitos e com os diferentes”, onde quanto maior a diversidade, maior será a riqueza e mais firme serão os fundamentos da vida. Algo quase oposto as nossas sociedades, mesmo naquelas intituladas “desenvolvidas”, que sempre buscam uniformidade. Igualdade só para os iguais. Mantenho a remada, foco no rio, nas cores do céu e no ritmo dos outros dois canoeiros da nossa Pequenina que flutua. Eu, Ciro e o capitão Josiel. Depois, eu, Marcelo e o capitão Josiel. Ainda depois, Marlon, Marcelo e Josiel para a entrevista flutuante. O capitão sempre firme. Mantive a remada com uma combinação de medo e alegria de estar “alimentando sonhos”. Buscar e viver algo novo dá medo e estimula. Continua a remada e pergunto várias vezes: “Ali é a margem?” E quase sempre a mesma resposta: “Não ali é ilha. Margem é lá”. Como pode tal coisa! Remo ora “competindo”, ora contemplando, ora ouvindo os cânticos das “canoascompositoras”, ora flutuando sobre os meus pensamentos, ora tentando enxergar o futuro. Um futuro meu... Mas aqui o futuro é agora, é coletivo, é do rio, dos YudjásJurunas, dos Araras! Assim “voltei” para o nosso Ato, para a nossa “canoada-coletiva-em-defesa-dedireitos”. Todos sabemos que a universalidade de direitos é a única garantia que cada um de nós possui. Assim, o “meu se torna nosso”, “o nosso se torna o de todos”. E não há o “meu sem o seu”. Há, querendo ou não, “um destino compartilhado” em sociedade. Nesta visão, as canoas se transformavam em “corpos-cheios-de-braços” e depois em um único corpo, ora compacto, ora alongado, até disperso, serpenteando por corredeiras, cachoeiras e areias de praia com ondas doces. A cozinha era a cabeça deste “corpo-social”, que estava sempre à frente! Como dizem aqui no Rio: “saco vazio não para em pé”. A cada dia era possível ver a tenda mergulhada na praia ou em meio a vegetação. As abundantes refeições “seguraram a barra” com também se diz por aqui.


No dia seguinte, o “corpo-social-de-canoas” voltava à vida com plena força, apesar dos músculos doloridos! Olhando para estes “dias-em-canoas”, em uma espécie de busca de um novo amanhã para os Yudjás e os Araras, a cada praia eu refletia um pouco sobre possibilidades e impossibilidades, estando a minha vida também nestas reflexões. Não eram somente praias, mas paradas na linha do tempo de nossas vidas. Cada praia um suspiro de vida, uma injeção de possibilidades, um novo ar. Neste “realimentar-do-amanhã” seguíamos. A vida corria entre praias, no tempo e no ritmo das águas e dos remos. À noite, ao redor da fogueira, a realidade batia nas portas do nosso imaginário cheio de necessidades utilitárias: comer, armar barracas, limpar pratos, tratar do cansaço do corpo. Um tipo de seminário fluvial ocorria na praia, conversas ao redor da fogueira sobre as opções energéticas do Brasil, direitos difusos e de comunidades tradicionais, sobre os problemas das fontes de energia consideradas limpas, sobre conflitos e justiça no Xingu. Agora me ocorre: porque não tratamos a hidroeletricidade como tratamos a energia nuclear para fins militares? Porque não buscar uma vedação constitucional para as grandes barragens? Forte não? As conversas, o seminário, a fogueira eram como luzes de reflexão sobre a realidade, algo que nos tirava do lúdico, do aventureiro ou da consciência de nosso cansaço. Após, um sono profundo dominava a maioria. Tudo até o despertar festivo dos Yudjás e dos demais canoeiros com seus fogos de artifício! Entrando novamente na Pequenina, a canoa, pousada sobre a água, quase que sob a água, dado o seu costado baixo, novamente o esforço da remada dominou a consciência, mas as belezas do entorno passavam e se fixavam como um vislumbre de vastidão amazônica em meu globo ocular, na minha memória de imagens, olfatos e gostos. O impacto do ambiente amazônico na minha consciência foi como o começo do fim de uma saudade de algo não vivido, de uma saudade de brasilidade quase desconhecida. Sinto-me mais brasileiro do que antes, com um maior “auto-conhecimento-denacionalidade”! Mesmo que a construção de qualquer nacionalidade não tenha fundamento histórico para existir, nascida que é do pensamento romântico, ainda assim me sinto mais brasileiro. E assim lá chegamos e lá estávamos diante do Gigante, cerca de 20 canoas com outros 110 “Brasileiros de Diferentes Brasis”, sendo sobrevoados por helicóptero da Guarda Nacional, como se fossemos derrubar a grande barragem! Brasileiros-Yudjás, mais conhecidos como Jurunas, ribeirinhos e caboclos eram nossos capitães de canoa. Assim singramos as águas turbulentas do Xingu e gritamos! Gritamos que não se gasta o nosso dinheiro para pagar empreiteiras que financiam campanhas! Que não se continua barrando os grandes rios da Amazônia sem saber o que vai ocorrer! Que se deve respeitar a Constituição e as sentenças do Judiciário! Que se deve cumprir o licenciamento ambiental! Que se deve ser brasileiro e cidadão em sua totalidade! Desenvolvimento Sim de Qualquer Jeito Não!! No 2º dia, o espírito competitivo se apossou da Pequenina (a canoa) e passamos todos. Permanecemos na frente, como a cabeça do “corpo-social-de-canoas”, apenas observando as águas do Xingu. Logo após, a vontade de contemplar se reergueu e o


deslizar se reduziu. Felicidade não faltou, por olhar e por descansar! Olhar, observar e contemplar pode ser fonte de conhecimento, uma forma de se apropriar sem propriedade. Chegou a 2ª praia antes das grandes e múltiplas cachoeiras do Xingu. Pessoalmente, foi a mais bela das praias, a praia dos Yudjás da Muratu. Seu barranco inclinado de areias grossas me atraiu e pensei em montar a barraca no limite das águas. Percebi também que a praia estava virada para o leste e que assim a lua estaria por sobre as águas xinguanas quando nascesse. Montei a barraca de frente para o leste para que a Lua “nascesse no meu colo”. Vibrei! Pensei: quando o sol baixar minha espaçonave de lona prateada vai pousar na praia! E vou tocar os contornos da Lua. Antes do sol dormir, nossos capitães de canoa armaram o tradicional futebol e de tanto que a bola bateu na barraca me chamaram de gandula! Exigi meu salário! Chamaramme para jogar, mas aquela areia grossa faria picadinho dos meus pés urbanos. Logo tudo era vermelho, laranja e amarelo. O pôr do sol. Do mesmo sol ou de outro? Sobre o mesmo rio ou em outro? Não sei. Tudo na Volta Grande está mudando rapidamente. Evito pegar a câmera e busco “mais-estar-do-que-registrar”. E rápido a avermelhada Lua despontou por sobre a floresta do horizonte. Começou a nascer a grande Lua e a Senhora dos meus sonhos naquela noite. O calor foi substituído por um frescor lunar. O azul substituiu o verde do Xingu. O “escuro-iluminado” substituiu o iluminado sol. Não sei bem em que lapso de tempo, mas meninas Yudjás cantavam ao redor da fogueira. Gravei para poder ouvir a voz delas quando a saudade me tomasse. Entrei em um tipo de “sonho-em-carne”, um “sonho-vivo”. E a posterior fala dos caciques foi tomada pela noite iluminada do meu coração saudoso do novo. É certo, pouco ouvi naquela noite. Voltei para a barranca do rio, estiquei meu antigo isolante térmico e me deparei com muitos dos “meus-sentidos-de-liberdade-e-de-verdade”. Havia ali, diante dos meus olhos, TANTO para TANTOS!! Após este pensamento meus pés tocaram novamente o chão de areia e o sonho se afastou como um atento observador. Lembrei de “verdades-econômicas”. As leis naturais da economia paridas por Adam Smith com contribuições prévias dos fisiocratas franceses afirmam no que percebo: a propriedade dá função e valor transacionável para tudo. Sim, restringir e se apropriar cria a tal da escassez. Escassez, que diante dos meus olhos, naquela noite e no Xingu, não fazia e não faz qualquer sentido! Maravilha: o rei caiu, o burgo assumiu, a pobreza permaneceu e a diferença renasceu! Como pode, diante de TANTO faltar, seja o que for, a um brasileiro? Pensei: temos que achar o caminho para que a pobreza ocupe o seu devido lugar: OS MUSEUS! Pensei também no conceito de Desenvolvimento, que o transformaram em sinônimo de Crescimento. Desenvolver virou aumentar o PIB, este ente acima de tudo e de todos. Se o país cresce 1% é pouco e nasce o medo. Se crescer 15% deve crescer sempre o mesmo, do contrário o medo renasce. E assim o PIB se afirma como a única forma “séria” de medir o desenvolvimento. E para alimentar o “gordo” PIB surgem as barragens na Amazônia, para cobrir um futuro crescimento estimado e assim ainda inexistente. Após Tucuruí, Jirau, Santo


Antônio, agora se faz presente a 3ª maior usina hidrelétrica do mundo no rio que se encontra à minha frente, o Xingu. Chamada Belo Monte, conhecida como Belo Monstro. Um Belo Monstro Jurídico, pois atropelou a Constituição e o Judiciário, um Belo Monstro Político, pois afasta o governo do povo local, um Belo Monstro Econômico, pois só gerará a sua capacidade total de energia 4 meses ao ano, um Belo Monstro Social e Ambiental, pois nem mesmo os técnicos do IBAMA aprovaram o projeto e o presidente do órgão teve que pedir demissão. De súbito cansei do “mundo-dos-argumentos-fáticos” como um rajar de vento. Saí da realidade objetiva e fui para a contemplação daquela noite de sonho. O corpo pouco reclamava e as mãos com bolhas apenas latejavam. Não havia mosquitos. Assim meu coração pôde voar. O sonho voltou! Não me lembro bem por quantas vezes, mas meus olhos se encheram de lágrimas quentes e úmidas como a Amazônia. O suor havia sumido. Mergulhei no “rio-mar-verde” Xingu. Azul-prata com a luz da minha Senhora Lua. Fui com a lanterna de olho nas arraias! Meu amigo Alex também permaneceu no rio percebendo aquele momento idílico. Outras pessoas, como espectros, faziam um vai e vem no rio. O André Villas Boas também ficou muito nas águas daquela noite, trazendo a força de sua família que a muito flui por elas. Jurei que não dormiria naquela noite, mas não deu. As portas da “barraca-nave” ficaram abertas para a “Senhora-Lua” por ali permanecer. O som das pequenas ondas doces e das corredeiras também permaneceu dentro da barraca. Senti-me acompanhado. Acordei antes da algazarra Yudjá, o sol começava a se mostrar e Lua ainda Imperava. E minha saudade também despontou cedo: saudade da praia dourada da Muratu, da praia da Senhora Lua, da praia dos cânticos das crianças onde eu ainda estava. A saudade me remeteu a uma percepção de sonho, mas era sim um sonho de átomos, moléculas, tecidos, de matéria, um “sonho-real”. Após um curto café deu-se também uma curta remada até as primeiras cachoeiras. A Pequenina (canoa) não tinha como passar e já foi sendo carregada nas costas. Para ela menor tamanho significava maior esforço! Mas o “desejo-de-corredeira” pulsava nos 2 remadores da Pequenina, eu e Marcelo. O nosso capitão, Josiel, também embarcou nessa, acho! E chegou uma outra corredeira e foi dito: “Nessa dá!” E lá fomos! A Pequenina “rolou”, como se diz no Xingu. Rolou para um lado e para o outro, mas não virou. No final da rápida queda o “nariz-proa” da Pequenina mergulhou no corpo do Xingu, uma onda passou por mim e parou no Marcelo e no meio da canoa. Pela popa também começou a dar água e em micro segundos ouvi: vlapt, vlapt, vlapt! Algo como 100 baldeadas por minuto do Marcelo salvou a Pequenina do encontro mais profundo com o Xingu! Logo após, inacreditável, me deparei com um rio em mão dupla!! Estávamos a favor da corrente descendo o rio e como que no segundo posterior estávamos contra a corrente, subindo o rio, sem alterar o curso da canoa! Encalhamos. Pé na pedra e o rio correndo para o lado oposto, incrível! Mais uma surpresa do “rio-mar” Xingu!


E conseguimos avançar. Avançamos por praias e ilhas. Bolhas estouravam nas mãos e o Marlon do Greenpeace desejou fazer uma “entrevista-fluvio-verbal” com o Marcelo. Avanço agora de voadeira com novos curativos nas mãos. Pude observar uma represa de peixes de paleo-brasileiros até que o rio estreitou, estreitou e secou. Não puder evitar e pensei novamente: como podemos nos ver apenas com 500 aninhos? Como estamos mais próximos de distantes europeus do que de nossos antepassados? Agora é canoa e voadeira “no lombo” sobre areia e bambu até a praia, por sobre a praia! Depois cachoeiras de todos os lados e praias e mais praias douradas até a “praiadestino”. O TEMPO fazia TEMPO parecia um trem veloz, porém os dias se tornaram o TEMPO de uma VIDA, ao mesmo TEMPO em que foi um TEMPO muito curto. Para mim, as coisas acabaram um pouco adimensionais. Fui perdendo o censo comum e ficando um pouco perdido naquela imensidão de TEMPO e ESPAÇO. Minha barraca acabou assim se distanciando e pousou em uma praia virada para um remanso de rio, com outra bela praia na outra margem. Rastros e mais rastros de tracajá, um de paca e outro de cervídeo (veado). Ouvi continuamente fortes urros de grupos enormes de guaribas e outros a cerca de 1 km de onde eu estava. Podia avistar a floresta imponente após a praia da margem oposta e fiquei ali ouvindo e ouvindo estes “primos-irmãos-de-evolução”. Fiquei impressionado! Parecia uma cidade dos primatas em pleno rush! Retornei para a barraca na praia dourada de remanso de rio, que agora estava de frente para nuvens negras de chuva. Escora aqui e ali a barraca, pois ela estava sobre a areia. Caiu chuva pouca como lágrimas e o sono chegou. Poucas picadas de carapanã, este musculoso pernilongo. Naquela noite não comi, Já estava querendo não ir! Tanto para ver! Pensava em trocar as passagens, ir para Roraima, ir para o Estado do Amazonas, permanecer, permanecer, permanecer... E ainda penso... Em permanecer... Voltar mergulhando.

Alberto Henrique Veiga Nunes * O ato político foi organizado pelo Instituto Socioambiental – ISA e a Associação Yudjá AIMIX.


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