Abordagem triangular br e cultura visual • boletim arte na escola • edição #76 • maio junho 2015 • b

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BOLETIM ARTE NA ESCOLA • EDIÇÃO #76 • MAIO / JUNHO 2015

POLÊMICA

Abordagem Triangular e Cultura Visual

Possibilidades no ensino da arte complementares ou excludentes? Sylvia Bojunga Ao preparar planos de ensino e conceber projetos educativos nas diferentes linguagens artísticas, os professores de arte deparam-se com a necessidade de fazer escolhas. Diante da multiplicidade de tendências pedagógicas no campo do ensino das artes, que convergem conceitos e elementos constitutivos dessa área de conhecimento, que caminho escolher? Que pressupostos teóricos, metodológicos e político-pedagógicos estariam mais sintonizados com a contemporaneidade e a realidade escolar? Nesse cenário, fazemos a seguinte provocação: a abordagem triangular e a cultura visual se excluem? Com a palavra, os especialistas que convidamos para expor seus pontos de vista e nosso convite para que você publique também seus comentários sobre este tema.

FERNANDO HERNÁNDEZ-HERNÁNDEZ Professor da Unidade de Pedagogias Culturais da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Barcelona, Espanha, é coordenador da Pós-graduação em Artes e Educação.

“Nada começa do zero: as tendências em ensino da arte se entrecruzam e transitam por espaços de diálogo.” Aprendi com Bruno Lattour que enfrentar perspectivas científicas esconde, na realidade, uma armadilha estratégica: enquanto se reafirma a existência de um foco através da negação de uma tendência anterior ou se defende a superação do que essa posição representava, o que se pretende, de fato, é reconhecer que ‘o novo’ emerge e acontece, porque aquilo que se rejeita, em algum momento, existiu. Se fosse reconhecido, como defende Lattour, que nada parte do zero, seria possível assumir que não faz sentido ontológico ou epistemológico constituir um campo de conhecimento, uma perspectiva científica, uma tendência Educação das Artes Visuais contra… Isso pode ser feito, mas será uma estratégia para reafirmar posições de poder e controle e delimitar espaços de influência pessoais ou do grupo. Vejamos um exemplo. Durante anos, a orientação predominante nas escolas foi o ensino do desenho (à mão livre, cópia…), posto que cumpria uma função social vinculada, principalmente, ao desenvolvimento de diferentes práticas industriais. Depois da Segunda Guerra Mundial, esta perspectiva foi questionada por aqueles que sustentavam a importância de se permitir que os indivíduos se ‘expressassem’ sem quaisquer limitações a normas e métodos. Posteriormente, nos anos 1970, pela influência do cognitivismo e de um movimento favorável às disciplinas no currículo,


principalmente nos Estados Unidos, foi colocada uma questão fundamental para uma virada na Educação das Artes, qual seja, é válido que os indivíduos se expressem, mas, o que aprendem quando assim o fazem? Isto levou à configuração da perspectiva da Educação Artística baseada nas disciplinas, à qual está relacionada a ‘proposta triangular’ apresentada pela professora Ana Mae Barbosa, em 1987. Contudo, chega-se a um ponto em que a arte contemporânea ultrapassa os limites da representação, e a reflexão cultural pós-moderna convida ao questionamento dos relatos hegemônicos sobre a arte e a própria história da arte. Além disso, surge uma crítica, a partir de posições relacionadas ao multiculturalismo e à justiça social, a algumas das contribuições da perspectiva disciplinar. Este movimento articula-se de forma díspar, em torno àquilo que Paul Duncum viria a chamar posteriormente de Educação Artística para a cultura visual. Cada uma destas perspectivas, o desenho, o expressionismo, a perspectiva disciplinar ou a educação da cultura visual, surgem porque outras perspectivas oferecem elementos para o diálogo. Porque abrem caminhos para outras formas de pensamento, as quais possibilitam outras práticas. Por isso, os movimentos, as tendências dentro dos campos do saber ou das práticas sociais, sempre fazem parte de um diálogo entrecruzado. Ainda que não se reconheça, ainda que nos esforcemos em negar a existência do outro. Somos o que somos, abrimos caminho através das nossas ações, porque outros, anteriormente, abriram uma trilha que agora permite que continuemos a nossa. Sem o caminho aberto, não poderíamos avançar, ainda que esse caminho siga em outra direção. Por isso sempre avançamos em companhia, inclusive daquilo que já consideramos que não fazemos mais parte, mas que foi um local onde aprendemos a explorar o território diverso e complexo das relações entre as artes e a educação. Mas o fato é que, além disso, os caminhos coexistem, renovam-se e adquirem novo vigor a partir do surgimento de uma perspectiva que, inicialmente, pode até questioná-los. O desenho hoje é um valor em alta como forma de pensamento e representação, resgatada pela perspectiva das multimodalidades. A expressão foi revalorizada no campo das terapias criativas e adquiriu nova força junto a práticas performativas de expressão. A perspectiva disciplinar se expandiu, incorporando novos conhecimentos e saberes, e ampliando os sentidos das artes mais além dos limites inicialmente definidos a partir dos princípios modernistas que deram a ela o impulso inicial. A educação da cultura visual é cada vez mais híbrida e superou a fase de ampliação de formas de representação, focando em formas de relação que dialogam não apenas com a complexidade das práticas artísticas contemporâneas, mas que incorporam formas de fazer decorrentes de outras tendências. Por tudo isso, posicionar-se no enfrentamento pode ser entendido como necessidade de delimitar espaços de influência e poder. Mas perde o sentido quando se olha a partir da perspectiva que mencionei aqui: não se trata de clãs que vão a guerras estéreis para a conquista de novos territórios. Uns e outros fecundam se a atuação emana de posições não excludentes. Afinal de contas, todos nós perseguimos um mesmo fim: que seja reconhecido o valor cívico da educação desde as artes, para que dessa forma seja alcançada uma sociedade mais justa, na qual os indivíduos são livres para contar suas próprias histórias e ser reconhecidos como autores e portadores de saber. Versão original traduzida por Global Translations.BR

BELIDSON DIAS Prof. associado do Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade de Brasília, é pós-doutor pela Universidade de Barcelona, Espanha, doutor em Estudos Curriculares em Arte Educação - Artes Visuais pela British Columb ia University, Canadá, e líder do Grupo de Pesquisa do CNPq - Transviações: Educação e Visualidade (UnB/DF).

A Abordagem Triangular e a Educação da Cultura Visual, embora apresentem pontos de contatos e justaposições de práticas pedagógicas, contrastam categoricamente em seus projetos políticos e ideológicos. A Abordagem Triangular foca na busca por um aumento da capacidade das instituições de incluir e ensinar arte como disciplina. Já na Educação da Cultura Visual, o foco está nas questões da visualidade da vida cotidiana como objetos materiais essenciais para os sujeitos em busca de seus empoderamentos individuais e de grupo. A Abordagem Triangular propõe um currículo abrangente, ao oferecer aos participantes um envolvimento com as artes, ensinando-lhes a olhar a arte, a utilização de técnicas de estúdio, aprendizagem das linguagens, do fazer, e entender as obras de arte em seus contextos culturais e históricos. Já a Educação da Cultura Visual destaca representações visuais do cotidiano como os elementos centrais que estimulam práticas de produção, apreciação e crítica de artes e que desenvolvem processos de pensamento simbólico, conceitual, crítico, cognição, imaginação, consciência social e sentimento de justiça ao trazer temáticas de gênero, sexualidade, raça, etnia, necessidades especiais, religião, entre outras. Desse modo, elas estariam apostas em relação ao uso multifacetado de práticas de ensino. Mas nem tanto! Apesar de ter pontos fortes, a Abordagem Triangular frustra na integração entre teoria e prática. De fato, ela ainda concentra excessivamente conteúdos curriculares formalistas e modernistas da arte, que não lidam assaz com as realidades, os contextos e as subjetividades pelas quais os estudantes veem, visualizam e constroem seus universos. Ao contrário, na Educação da Cultura Visual questões pedagógicas centradas em um currículo fundamentado no cotidiano expandido dos sujeitos os conduzem à consciência crítica social como um diálogo preliminar, que leva à compreensão e, então, à ação. Ela é uma concepção aberta para as criações pedagógicas de professores e alunos; é um projeto educativo vivo e não um método ou prescrição aplicada.

FERNANDO ANTÔNIO GONÇALVES DE AZEVEDO Professor da Universidade Federal Rural de Pernamb uco, Unidade Acadêmica de Garanhuns (UFRPE/UAG).

O teórico do currículo Tomaz Tadeu da Silva, em seu emblemático livro Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo (2007), ao apresentar as bases da teoria pós-colonialista afirma que essa “[...] reivindica a inclusão das formas culturais que refletem a experiência de grupos cujas identidades culturais e sociais são marginalizadas pela identidade europeia dominante” (p. 126), e segue seu posicionamento crítico enfatizando um ponto de vista que contribui fortemente para a minha posição frente à questão proposta pelo Instituto Arte na Escola. Diz Silva que a teoria pós-colonial, ao colocar sob suspeita o cânone ocidental, ou seja, nossa matriz colonial, provoca um significativo deslocamento da estética para a política. Em sua visão: “Para a teoria pós-colonial, não se pode separar a análise estética de uma análise das relações de poder. A estética corporifica, sempre, alguma forma de poder. Não há poética que não seja, ao mesmo tempo, também uma política” (p. 126).


A compreensão de que toda manifestação estética corporifica uma postura política identifica-se à Abordagem Triangular como teoria de interpretação do universo das Artes e Culturas Visuais (AT, doravante), pois a teoria pós-colonialista é uma de suas importantes referências. Assim, ao nos filiarmos a AT, assumimos que há, além de uma complementação, uma ampliação exigida pelo campo das Artes Visuais, que ao ancorar-se nos Estudos Visuais e nos Estudos Culturais, e esses por sua vez, com ancoragem na Antropologia Cultural, nos leva ao respeito e à valorização da diversidade de códigos culturais e de suas interações. Salta aos olhos um estranhamento diante da questão proposta. Este se refere a um fragmento escrito por Ana Mae Barbosa para o catálogo da exposição Labirinto da moda: uma aventura infantil, que tive o privilégio de ver e me apaixonar. Ao analisá-lo, alguns pontos evidenciam a relação do pensamento da autora com os ganhos pós-modernos em Artes e Culturas Visuais: [...] Gláucia com o espaço e os objetos que o constituem me faz ver em o Labirinto da moda: uma aventura infantil não uma exposição, porém uma instalação da qual ela não é somente a curadora, mas também a artista. Avançando para além da pós-modernidade, não apenas cita outros artistas, mas se apropria metaforicamente de suas obras, colocando-as em um contexto no qual ganham outros significados além daqueles auferidos isoladamente... [...] a instalação/exposição e toda a obra de Gláucia, que é baseada na afirmação despreconceituosa da interrelação do erudito com o popular, das práticas artesanais e industriais com a arte, da tradição com a contemporaneidade (Barbosa, 2015, p. 338).

Interpreto a AT como desencadeadora da virada arteducativa: ela provocou uma espécie de torção epistemológica no campo mais amplo da Arte/Educação, ao colocar em questão a concepção modernista de Arte como expressão da sensibilidade, apontando não para um rompimento com esta concepção, mas colocando um acréscimo. Isto é, passamos a articular a ideia de Arte como expressão com a ideia de Arte como cultura, e esta tendo a imaginação como um importante componente, assim realçam Efland (2005) e Barbosa (2015) quando concebem a Arte/Educação pós-moderna. Referências BARBOSA, Ana Mae. Redesenhando o desenho: educadores, política e história. São Paulo: Cortez, 2015. EFLAND, Arthur D. Cultura, sociedade, arte e educação num mundo pós-moderno. In: GUISBURG, J. e BARBOSA, Ana Mae (Org). O pós-modernismo. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 173-188. SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2007

RAIMUNDO MARTINS Professor titular da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás, pós-doutor pela Universidade de Londres (GB) e pela Universidade de Barcelona (Espanha), é doutor em Educação/Artes pela Southern Illinois University (EUA) e líder do Grupo de Pesquisa Cultura Visual e Educação - CNPq.

O que quer a Cultura Visual? Como ela se diferencia de outras abordagens? Temos experimentado deslocamentos de paradigmas que esvaziam a hegemonia de princípios modernistas. Explicações binárias – masculino/feminino, capitalista/socialista, erudito/popular, arte/artesanato – dão lugar a noções que legitimam a complexidade multifacetada da vida contemporânea. As artes não são exceção. Convivemos com um pluralismo de abordagens no qual “inspiração”, “originalidade” e “pureza de forma” perdem lugar para “apropriação”, “colagem”, “interferência”, “justaposição” etc. A compreensão de que significados artísticos são construídos socioculturalmente exige um olhar que vai além das qualidades formais da obra. Imagens e artefatos estão sempre embebidos em dilemas e práticas cotidianas dos sujeitos. Fluidos e contextuais, os significados geram diversidade de interpretação que inclui diferentes perspectivas e, com igual valor, a visão/voz de sujeitos aprendentes que lidam e se transformam com as visualidades que os circundam. Preocupada com a justiça social, a cultura visual rejeita desigualdades do sistema de ensino e o modo como teorias tradicionais/modernistas operam nas escolas, pois elas privilegiam a eficiência de modelos de reprodução de conhecimento. Ao questionar a origem, definição, endereçamento e função do conhecimento, a cultura visual enfrenta resistências. Por que, a quem ou a que grupos interessa a inclusão/exclusão de conhecimentos no currículo são questões que a cultura visual discute e busca desvelar. São muitas as maneiras de aprender e ensinar, muitas as infâncias, adolescências e identidades. Nenhuma abordagem pedagógica por si é capaz de dar conta dessa multiplicidade e riqueza. Os modos de ensinar, historicamente contingentes, se refletem nas práticas pedagógicas através de interações – nem sempre consensuais – entre indivíduos que influenciam e às vezes prescrevem práticas docentes. Imagens são mais que um conjunto de elementos (linhas, ponto, contraste, cor...). São mais que uma forma ou pensamento plástico. Elas existem como pensamento político, histórico, cultural e solicitam a compreensão de que não são autônomas, estão sempre vinculadas a regimes de interesse e de poder. Abordagens pedagógicas não devem ser exclusivas. Elas se justificam ao atender necessidades de aprendizagem ajudando estudantes a desenvolver uma visão crítica de significados culturais e artísticos, de valores e práticas sociais. A cultura visual é inclusiva e, ao contrário de concepções modernistas com ênfase excessiva nas belas artes, trabalha com imagens do cotidiano – fílmicas, de publicidade, ficção, informação etc. As tecnologias fazem proliferar depoimentos, versões e formas abertas de interação, impactando a produção de subjetividades de alunos e professores. Na educação da cultura visual, imagens e artefatos são abordados como táticas de poder utilizadas por diferentes grupos – sociais, acadêmicos, pedagógicos – para legitimar concepções, valores e práticas pedagógicas.

FABÍOLA CIRIMBELLI BÚRIGO COSTA Professora de Artes Visuais do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), atua no Ensino Fundamental e Médio. Doutoranda em Educação e mestre em Psicologia pela UFSC, é especialista em Arte-Educação pela UDESC e integra os Grupos de Pesquisa: Educação Básica e Arte - EBA e Núcleo Infância, Comunicação, Cultura e Arte - NICA


A Abordagem Triangular e os Estudos da Cultura Visual surgem de contextos distintos e entram no cenário do ensino de Arte como propostas, e, como o próprio nome diz, são sugestões a serem pensadas, experienciadas, avaliadas e reavaliadas, excelentes contribuições de possibilidades de reflexão para que os professores de Arte criem e elaborem suas próprias propostas. Se se complementam ou se excluem? Irá depender muito de seus leitores, suas formas de pensar, sentir e criar propostas para o ensino de Arte. Do meu ponto de vista, não se trata de contrapor, nem de eleger uma delas, mas de tê-las como ferramentas que possibilitem novas criações e propulsionem novas ações poéticas no ensino de Arte. Ministrar aulas de Artes Visuais, hoje, na escola pública, implica ampliar conhecimentos referentes às novas formas de perceber, imaginar, pensar, aprender e conhecer o mundo, construídas pelas crianças e jovens no uso cotidiano das tecnologias da informação e comunicação. O convite aos professores é de buscar caminhos de construção de uma prática pedagógica estético-criadora, poético-crítica, que se reconstrói diariamente, no sentido de vivenciar experiências que mobilizem relações, afetos, emoções, desejos e conhecimentos. Sendo os professores atores sociais com voz e ação no processo de investigação onde participam, cabe-nos encorajá-los a uma participação ativa, como produtores culturais, no sentido de experimentarem as propostas, de vivenciá-las e criarem suas proposições. Em minha experiência particular, como professora de arte de escola pública, vivenciando hoje a convergência das artes e das comunicações, em que fronteiras formais e materiais são dissolvidas, gerando imagens híbridas, múltiplas e plurais, considero que as duas propostas se interconectam ao apontarem que aprender a ver seja aprender a pensar. Certamente este movimento amplia as reflexões no contexto arte-educativo e, para além dele, no fluxo relacional arte-vida.

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