Viagem de Spix e Martius pelo Brasil

Page 1

SPIX E MARTIUS SPIX MARTIUS Araracoara

Óbidos

Barcelos Manaus

Tabatinga

São Luís

Belém

Tefé

Caxias Oeiras Monte Santo

Juazeiro

Salvador

Formoso Brasília

Ilhéus Januária

1

: Viagem de Martius e Spix pelo Brasil

Diamantina Ouro Preto Sorocaba São Paulo

3

2

: Introdução

: A magia da natureza I

Rio de Janeiro

5

4

: A magia da natureza II

: A contribuição às Ciências Naturais

9

7

8

6

: Rio de Janeiro

: São Paulo

: Ouro Preto

: Distrito Diamantino

10 11 12

: O sertão de Minas Gerais

: Salvador

: O sertão do Nordeste

13 14 15 16 17 18 19 20 21

: Entre a civilização e a barbárie : Aspectos etnológicos

: Belém do Pará : Amazônia em geral

: Manaus e a província do Rio Negro : Rio Japurá

: O romance Frey Apollonio : Epílogo

: Créditos


2 Johann Baptist von Spix.

Carl Friedrich Philipp von Martius.

No entender do historiador Sergio Buarque de Holanda, o grande número de estrangeiros que veio ao Brasil após a abertura dos portos, em 1808, significou um “novo descobrimento” de nossas paragens. Com a presença da família real no Rio de Janeiro e o fim do exclusivismo colonial português, as fronteiras do país foram abertas para as outras nações. Sob o olhar de comerciantes, mercenários, aventureiros, naturalistas, educadores, missionários e imigrantes vindos da Europa e dos Estados Unidos, a ex-colônia portuguesa na América passou a ocupar relevante lugar em numerosos relatos de viagem, epístolas, diários, desenhos, estampas, pinturas e até, em alguns casos, romances e poemas.

E

m 1817, os naturalistas bávaros Johann von Spix e Carl von Martius aportaram no Rio de Janeiro, a mando da Real Academia de Ciências de Munique, sob os auspícios de Maximiliano I da Baviera e do imperador da Áustria, Francisco I. Ambos os naturalistas integravam o séquito de estudiosos que acompanhava D. Leopoldina, filha do imperador austríaco, que veio ao Brasil como esposa do futuro Dom Pedro I. Após uma estadia de quase seis meses na capital – período utilizado para preparar a expedição e adaptar-se ao clima –, partiram no fim de 1817, acompanhados pelo pintor Thomas Ender, rumo a São Paulo. Enquanto Ender teve de voltar ao Rio de Janeiro por razões de saúde, Spix e Martius seguiram para Minas Gerais. De lá, atravessaram o sertão da Bahia, Pernambuco, Piauí e Maranhão, percorrendo uma região bem desconhecida pelo olhar naturalista. Chegaram a São Luís em 1819, após meses de travessia pelo sertão, bastante doentes e enfraquecidos. Lá se recuperaram e, em seguida, navegaram para Belém, lançando-se à extensa excursão pela bacia do Rio Amazonas, até alcançarem a fronteira da Colômbia. Voltaram a Belém, onde embarcaram para a Europa. De Lisboa, viajaram por terra até Munique, onde chegaram em dezembro de 1820.

No Brasil, percorreram mais de dez mil quilômetros. Resistiram a chuvas torrenciais, ataques de insetos, febre, calor, seca, sede, noites dormidas ao relento e desconfortáveis meios de transporte. Juntaram uma enorme coleção, enviada sucessivamente em caixas para a Europa, das quais, milagrosamente, nenhuma se perdeu.

Thomas Ender.

Cena da fragata Áustria que transportou Spix e Martius em sua expedição (Desenho de Thomas Ender).

Foram catalogadas 6.500 espécies vegetais, formando um herbário de 20 mil exemplares prensados, além de centenas de plantas vivas. Da fauna, 85 espécies de mamíferos, 350 de aves, 130 de anfíbios, 116 de peixes, 2.700 de insetos, 50 de aracnídeos e 50 de crustáceos, além de peças mineralógicas, paleontológicas e etnográficas. Tudo isso “como melhor prova das observações feitas”, conforme explicaram Spix e Martius.


3

A magia da natureza I “Tudo age com magia toda especial na alma do homem sentimental renascido pelo espetáculo do delicioso país.”

Mycetes fuscus, de Spix.

Segundo Humboldt, o “quadro da natureza”, ou seja, a sua descrição em palavras ou a sua representação em imagens pictóricas, deveria ter o poder de reproduzir no leitor “o prazer que a mente sensível experimentava na contemplação do mundo natural” e, ao mesmo tempo, transmitir o conhecimento. Para tanto, o estilo da escrita “tendia a uma prosa poética”, tocando o “sentimento e a fantasia”, sem, no entanto, abandonar o tratamento científico dos objetos da natureza. Tipos de animais da América tropical.

Astrocaryum vulgare e Cocos nucifera, da monografia de Martius sobre as palmeiras, editada entre 1823 e 1853. A obra contém 245 belíssimas estampas litografadas e coloridas a mão, com base nos desenhos de Martius, Rugendas, Frans Post, Eduard Poeppig, J. C. Schott, Ferdinand Bauer, entre outros.

F

ormados na herança da ciência enciclopedista, portanto ainda antes da disciplinarização do saber, tal qual é praticada nos tempos atuais, esses cientistas almejavam alcançar um conhecimento mais amplo, que não se limitasse apenas a uma área. Essa apreensão universalizante se orientava segundo o olhar sistematizador do naturalista, que compreendia a natureza por meio da descrição de seus objetos, com o intuito de classificá-los no sistema. Aqui vale lembrar os preceitos de Carl Lineu, que se impuseram desde meados do século XVIII, vindo a ser a norma para os estudos da natureza. Essa uniformização do critério taxonômico foi importante para criar uma abordagem e um método compartilhado pelos naturalistas europeus. Lineu enviava os discípulos pelo mundo com a tarefa de coletar novas espécies a fim de engrandecer o Systema Naturae. As regiões ricas em diversidade natural, tal como o Brasil, tornaram-se verdadeiros paraísos para os naturalistas, dispostos a concretizar a tarefa lineana de que “toda a natureza podia entrar na taxonomia”. Eis aqui uma das grandes motivações de Spix e Martius ao se lançarem em uma expedição cujos destinos eram lugares ainda pouco ou nada conhecidos pelos europeus.

Porém, os dois viajantes não se orientavam apenas pela obsessiva tarefa de classificar o mundo natural e de aumentar as coleções, mas também pela possibilidade de fazer descobertas. Contagiados pelo ideário do Romantismo, esses alemães da primeira metade do século XIX acreditavam que a observação e a compreensão mais profunda da natureza dependiam não somente da sistematização como também do sentimento. Inspirados no poeta Goethe, procuraram unir ciência com poesia e recusaram, assim, uma interpretação mecanicista da natureza. Retomaram o filósofo Jean-Jacques Rousseau, que, em sua descoberta apaixonada pela botânica, dizia ser impossível “botanizar” sem sentir o mundo natural. E seguiram os passos do famoso naturalista Alexander von Humboldt, que elegeu os trópicos americanos como lugar privilegiado para a “antiga comunhão da natureza com a vida espiritual do homem”.

Rancho pouco distante da Serra do Caraça. As palavras de Spix e Martius não deixam dúvidas da magnitude de seu escopo: além dos estudos do reino mineral, vegetal e animal, caberia incluir “tudo o que diz respeito ao homem, tanto indígenas como imigrados”. As investigações também abraçariam os “estudos das diversas línguas, do folclore, dos mitos e tradições históricas [...], em geral tudo que pudesse esclarecer o estado de civilização e história tanto dos aborígenes como dos outros habitantes do Brasil”.


4

A magia da natureza II Dessa forma, Spix e Martius também defendiam a ideia de que o naturalista teria de ser capaz de sentir a natureza para dar conta de sua tarefa investigativa, descritiva e taxonômica. Por um lado, os pressupostos lineanos eram o ponto de partida para a compreensão de um mundo natural universalmente classificável e, assim, identificável; por outro, o sentimento da natureza possibilitava a apreensão subjetiva do objeto, traduzida nas emoções individuais dos autores. É com base nessa dupla apreensão que o mundo natural é representado em Viagem pelo Brasil, de Spix e Martius.

J

á nas primeiras caminhadas pela Mata Atlântica, recém-chegados ao Rio de Janeiro, os exploradores narravam minuciosamente a sua experiência. Spix e Martius se afastaram da cidade para adentrar a floresta do Corcovado e sentiram-se “enfeitiçados no meio da pujante natureza estranha. [...] O aspecto majestoso, a doce tranquilidade e a paz dessas matas, só interrompidas pelo sussurro das asas dos colibris matizados, que voam de flor em flor e pelo canto mavioso de passarinhos estranhos e insetos, tudo age com magia [...]”. São inúmeros os exemplos em que a natureza dos trópicos é interpretada como instância que provoca prazer,

deleite e encantamento, permitindo uma sensação de integração do observador com o ambiente. E mesmo que em alguns momentos ela seja ameaçadora, devido aos animais ferozes e peçonhentos, aos infernais ataques de insetos, como pulgas, mosquitos e baratas, ao clima extremamente úmido ou seco e quente, e às matas sufocantes, ainda assim nas descrições de Spix e Martius prevalecem as imagens prazerosas da natureza. E, dependendo do seu estado de “selvageria”, ela torna-se um verdadeiro paraíso para a descoberta de novas espécies, contribuindo gentilmente para a tarefa de aumentar as coleções dos naturalistas.

As imagens que Spix e Martius criaram sobre a natureza brasileira devem ser compreendidas no contexto do debate a respeito das teses da inferioridade natural do continente americano, travado a partir de 1750, tendo como maiores interlocutores o naturalista francês Conde de Buffon e os abades de Pauw e Raynal. Sem jamais terem pisado na América, eles foram autores de teses difamadoras acerca da debilidade da natureza dos trópicos e da degeneração dos índios. Coube ao viajante e naturalista Humboldt inverter essas interpretações negativas e emprestar, sobretudo à natureza, um caráter de especificidade e superioridade devido à sua riqueza e pujança de espécies. E é nesse sentido que Spix e Martius reiteraram as imagens positivas do mundo natural.

Na obra magna Flora Brasiliensis, Martius pretendia sistematizar e descrever todas as plantas brasileiras conhecidas até aquele momento. O primeiro fascículo veio a lume em 1840. Foram necessários 66 anos para completar os 40 volumes, divididos em 130 fascículos. Martius não chegou a ver a conclusão da obra, cuja direção, após sua morte, fora assumida por A. W. Eichler e depois por I. Urban. Trata-se da maior catalogação de flora já realizada sobre um país. Com a colaboração de 65 botânicos espalhados pela Europa, foram descritas, nas mais de 20 mil páginas com 3.811 gravuras, cerca de 22 mil espécies, entre elas 5.869 inéditas. Atualmente está disponível em florabrasiliensis.cria.org.br. Spix e Martius igualmente se dedicaram à cartografia.


5

A contribuição às Ciências Naturais

A Mata Atlântica foi a primeira formação vegetal do Novo Mundo com a qual os descobridores portugueses entraram em contato na América do Sul, no começo do século XVI, e, durante esse período, permaneceu como a única porção do território mais intensamente desbravada pela metrópole. A rendosa exploração do pau-brasil, árvore que emprestou o seu nome ao país recém-descoberto, atraiu a atenção de outros países europeus, que, rapidamente, empreenderam missões com o objetivo de instalar colônias na costa brasileira.

Situação original (à esquerda) das florestas da Mata Atlântica e situação atual (à direita) dos remanescentes florestais.

Durante os 30 meses ininterruptos que estiveram no Brasil, Spix e Martius percorreram praticamente todos os biomas brasileiros: iniciaram a viagem pela Mata Atlântica do Rio de Janeiro, passaram por São Paulo, de onde seguiram para os Cerrados de Minas Gerais e, dali, para o interior da Bahia até Piauí e Maranhão (Caatinga). Embarcaram em São Luís em direção a Belém, onde iniciaram outra etapa muito ambiciosa da jornada. Martius foi perspicaz o suficiente para observar as diferenças entre as formações vegetais brasileiras, tanto que as suas constatações foram a base fundamental para o entendimento e a compreensão dos diferentes biomas do Brasil (Mata Atlântica, Cerrado, Caatinga e Amazônia).

C

om exceção do breve período da ocupação holandesa no Nordeste brasileiro, o país permaneceu historicamente fechado aos pesquisadores e estudiosos durante três séculos, com uma enorme extensão territorial completamente inexplorada e com sua biodiversidade inalterada. Até que, de repente, abre-se a possibilidade de ser, finalmente, estudado. Quem, tendo a oportunidade, não tentaria gravar para sempre o seu nome na história da Ciência apresentando para o mundo as novidades de um novo e desconhecido país? A invasão de pesquisadores que ocorreu após a abertura dos portos (1808) foi, como se esperava, altamente benéfica para o conhecimento da nossa biodiversidade. E a porta de entrada no Brasil era a cidade do Rio de Janeiro. Logo, as primeiras explorações científicas começaram exatamente no bioma Mata Atlântica. Naturalistas célebres, como o Barão Georg Heinrich von Langsdorff, Friedrich Sellow e Johann Natterer, escreveram seu nome na História ao perscrutar, enfrentando as mais duras condições, uma parte importante do Brasil, contribuindo de forma inestimável para o conhecimento das nossas riquezas naturais em um momento no qual as atividades humanas ainda não haviam impactado significativamente o meio ambiente. Entre os diversos naturalistas alemães que aproveitaram essa oportunidade singular e, para muitos, única em toda uma vida, estavam dois bávaros, Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius, que chegaram ao Brasil em 1817. Spix, médico e zoólogo, tinha 36 anos quando desembarcou em nosso país, enquanto Martius possuía apenas 23 anos de idade.

A viagem começou a ser preparada ainda em 1815, enquanto os dois estavam na Alemanha. É certo que eles estudaram muito antes de iniciar a viagem ao nosso país, consultando praticamente todo material disponível a respeito do Brasil para organizar um roteiro de viagem muito eficaz e inteligente. A expedição de Spix e Martius não percorreu apenas a Mata Atlântica no sul, o Pantanal e os Campos Sulinos. Entre 1817 e 1820, essa muito bem-sucedida expedição palmilhou extensas áreas inexploradas do Brasil. Mesmo com as precárias condições de locomoção e logística da época, Spix foi capaz de coletar para os seus estudos milhares de exemplares de animais, incluindo todos os grandes grupos de vertebrados. Boa parte dos animais coletados por Spix sobreviveu aos bombardeios dos aliados durante a Segunda Guerra Mundial e ainda se encontra preservada, principalmente no Museu de História Natural de Munique, testemunhando de forma contundente uma das expedições científicas mais bem planejadas e ricas em resultados entre todas as já realizadas em nosso país até os dias de hoje.


6 Panorama da cidade do Rio de Janeiro vista do terraço do Morro da Conceição (Aquarela de Thomas Ender).

Rio de Janeiro Na capital, Spix e Martius permaneceram por quase seis meses. As primeiras impressões ao chegarem expressam agradável surpresa com a cidade e acentuado incômodo com boa parte de sua população, anunciando deliberadamente os preconceitos raciais típicos do período: “Quem chega convencido de encontrar esta parte do mundo descoberta só desde três séculos, com a natureza inteiramente rude, violenta e invicta, poder-se-ia julgar, ao menos aqui na capital do Brasil, fora dela: tanto fez a influência da civilização e cultura da velha e educada Europa para remover deste ponto da colônia os característicos da selvageria americana e dar-lhes cunho de civilização avançada. Língua, costumes, arquitetura e afluxo de produtos da indústria de todas as partes do mundo dão à praça do Rio de Janeiro aspecto europeu. O que, entretanto, logo lembra ao viajante que ele se acha num estranho continente do mundo é sobretudo a turba variegada de negros e mulatos, a classe operária com que ele topa por toda parte [...]. A natureza inferior, bruta, desses homens importunos, seminus, fere a sensibilidade do europeu que acaba de deixar os costumes delicados e as fórmulas obsequiosas da sua pátria.”

O

olhar atento dos viajantes descreve com detalhes as ruas, as casas e os prédios oficiais, tais como a residência da família real, igrejas e conventos; praças, como as do Paço Real, do Teatro e do Passeio Público; e evidentemente o aqueduto, “o mais belo e útil monumento de arquitetura, de que o Rio [...] se pode gabar”. Vivenciam, pois, uma cidade que sofria naquele momento o impacto do translado da família real ao Rio de Janeiro, acompanhado pelo seu séquito. Também nesse aspecto, Spix e

Martius tecem suas observações, informando ao leitor que, antes da chegada da Corte portuguesa, a população do Rio contava com cerca de 50 mil habitantes, em sua maioria negros e mestiços. Em 1817, a população teria dobrado. Desde 1808, 28 mil portugueses se deslocaram para a então capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. A cidade contraíra um ar cosmopolita com o grande número de ingleses, franceses, holandeses e alemães. Pão de Açúcar, a entrada do porto do Rio de Janeiro (Aquarela de Thomas Ender). Após quase seis semanas de travessia atlântica, zarparam em 3 de junho de 1807, de Gibraltar, e aportam em 14 de julho, no Rio de Janeiro: “O dia estava encantadoramente claro e límpido [...]. Não tardou a patentear-se aos nossos olhos [...] a grandiosa entrada no porto do Rio de Janeiro. À direita e à esquerda, elevam-se, como portões da baía, escarpados rochedos, banhados pelas vagas do mar; o que domina ao sul, o Pão de Açúcar, é um conhecido marco para os navios afastados. Depois do meio alcançamos, aproximando-nos cada vez mais do mágico panorama, os colossais portões da rocha, e finalmente por eles entramos no vasto anfiteatro, onde o espelho do mar reluzia como sossegado lago; onde espalhadas em labirinto, ilhas olorosas verdejavam, limitadas no fundo por uma serra coberta de matas, como jardim paradisíaco de exuberância e magnificência. [...] todos se deleitavam na contemplação do país, cuja doçura, cuja variedade encantadora e cujo esplendor superam muito todas as belezas naturais, que jamais havíamos visto.”


7 O local da fundação: Pateo do Collegio.

São Paulo

Spix e Martius passaram nove dias (31 de dezembro de 1817 a 9 de janeiro de 1818) na cidade de São Paulo, que havia sido fundada em 25 de janeiro de 1554 pelos padres jesuítas Manuel da Nóbrega e José de Anchieta, que queriam catequizar os índios Goianás (Tupiniquins), chefiados pelo cacique Tibiriçá. Entre os edifícios, destacaram-se o Palácio do Governador (antigo Convento dos Jesuítas), o Convento dos Carmelitas e o Palácio do Bispo. As ruas eram largas e limpas; as casas térreas e os sobrados eram construídos com paredes de taipa.

Spix e Martius concluem suas observações sobre São Paulo com otimismo: “Em nenhuma outra província do Brasil existem fundamentos tão sólidos e esperançosos para a felicidade dos futuros habitantes como aqui”. Essas previsões sobre a dinâmica populacional e econômica se confirmaram: atualmente, a população do estado de São Paulo representa um quinto da população do Brasil e, se fosse um país independente, seu PIB seria o 18º do mundo.

A fábrica de ferro em Ipanema, em 1821.

E

m busca de ouro e de escravos indígenas, aventureiros iniciaram, a partir de São Paulo, desde o século XVI, incursões pelo interior do país. Essas expedições dos bandeirantes (como Raposo Tavares, Fernão Dias, Anhanguera e Borba Gato) tiveram uma influência decisiva sobre a história do Brasil. À historiografia panegírica se opõe a visão crítica de escritores indígenas, que denunciam o genocídio praticado pelos bandeirantes. Em 1815, a cidade tinha uma população de mais de 30 mil habitantes. Como uma das qualidades dos paulistanos, os viajantes destacaram a disposição para a reflexão e os estudos de teologia, filosofia e ciências em geral. O clima foi considerado como “um dos mais amenos da Terra”. A província de São Paulo tem condições favoráveis para a agricultura e a criação de gado. As atividades manufatureiras eram modestas. Uma inovação foi a fábrica de fuzis, operada por mestres alemães. No interior, perto de Sorocaba, os viajantes visitaram a fábrica de ferro de Ipanema, dirigida por Frederico Luiz Guilherme Varnhagen. A caminho de São Paulo (Aquarela de Thomas Ender).

Monumento às Bandeiras.


8

Ouro Preto As grandes descobertas de ouro levaram, em 1698, à fundação de Vila Rica (denominada Ouro Preto a partir de 1823), a capital da província de Minas Gerais, onde Spix e Martius ficaram em março e abril de 1818.

Lingotes de ouro.

Hospedaria da Mãe dos Homens, na Serra do Caraça.

A mineração excessiva, observaram Spix e Martius, causa a destruição do meio ambiente. Foi uma advertência premonitória, como mostrou o desastre ambiental ocorrido no município de Mariana em 2015, quando o rompimento de uma barragem de rejeitos de mineração causou a destruição das comunidades de Bento Rodrigues e Paracatu.

Vista de Ouro Preto (Aquarela de Thomas Ender).

Pedaços de minério de ferro.

Destruição ambiental, em 2015.

A

fisionomia de Vila Rica – com 8.500 habitantes, ruas calçadas e sobrados de pedras – era marcada por um grande número de igrejas barrocas (que hoje são a principal atração turística) e pelo palácio dos governadores, de onde se desfruta de um belo panorama. Com a sua rica produção de ouro, pedras preciosas e ferro, as cidades de Minas atraíam uma numerosa população, fazendo com que o eixo da economia e da administração da colônia se deslocasse da região açucareira do Nordeste para o centro-sul. Em Vila Rica, que “de todas as cidades no interior do Brasil tem o comércio mais ativo”, estavam presentes quase todos os ofícios e havia também fábricas de pólvora, cerâmica e chapéus de feltro. Acompanhados pelo geólogo von Eschwege, os viajantes analisaram os dados geológicos das montanhas: desde a camada superior, constituída por minério de ferro, até as formações de limonita, magnetita, micaxisto e quartzo, nas quais se encontra o ouro. Eles foram conhecer a lavagem de ouro, praticada por negros escravizados, a partir do cascalho colhido em córregos. Naquela época, todo ouro encontrado tinha que ser tratado na Casa Real de Fundição, onde era transformado em barras para os proprietários, sendo um quinto desse ouro reservado ao Rei. Com a quantidade exportada, foram financiadas construções suntuosas na metrópole Portugal. O período de apogeu do ouro ocorreu entre 1733 e 1748. Em 1818, os rendimentos já estavam em acentuado declínio. Foi intensificada, então, a sua extração em minas, que era praticada por meio de furos e buracos nas montanhas. Um contraponto a essas destruições e que desperta esperanças é o Parque Natural da Serra do Caraça, onde se localiza o Santuário, a antiga Hospedaria da Mãe dos Homens, fundada em 1774 e visitada pelos viajantes em 1818. Naquele “vale maravilhoso”, é mantida intacta uma área de 12 mil hectares de natureza exuberante.

Praça Tiradentes.


9 Garimpo de diamantes em Curralinho.

al.

Um garimpo atu

Distrito Diamantino

De Vila Rica, Spix e Martius viajaram, em maio de 1818, via Sabará e Vila do Príncipe (Serro Frio), até o Distrito Diamantino, cujo lugar principal era o Arraial de Tijuco, atual cidade de Diamantina. O arraial, “um dos mais florescentes do Brasil”, tinha mais de 6 mil habitantes, com asseadas e cômodas casas de dois pavimentos, além de lojas abastecidas com todo tipo de mercadorias. O acesso ao Distrito Diamantino, administrado por um Intendente Geral e pela Junta Diamantina, era rigorosamente controlado. Por meio de destacamentos, procurava-se combater o contrabando. Era frequente os contratadores – como João Fernandes de Oliveira, cuja amante era Chica da Silva – trabalharem com um número muito maior de escravos do que constava do contrato. Dessa forma, “um sistema de corrupção se estendia de Minas pelo Brasil inteiro até a Corte em Lisboa”.

Diamantina atualmente.

T

ijuco deveu sua origem e prosperidade à existência dos diamantes, descobertos no início do século XVIII. Sobre os diamantes, o governo pretendia cobrar um quinto, como já ocorria com o ouro. Mas, isso se revelando impraticável, foi estabelecido um imposto anual per capita para cada escravo que lavava diamantes. Nos anos próximos a 1818, os rendimentos com os diamantes baixaram cada vez mais, sendo a extração entregue, então, a particulares. A maior produção de diamantes provinha do Rio Jequitinhonha (incluindo afluentes, como o Araçuaí) e do Rio Pardo. No garimpo de Curralinho, Spix e Martius foram conhecer o procedimento da lavagem dos diamantes, que era executada por negros escravizados, vigiados por feitores e um administrador. Outro garimpo que visitaram guarda em seu nome – Mata-Mata – a memória das sangrentas disputas entre os que correram para lá em multidão. Nos dias de hoje (2017), o garimpo Areinha tem a fama de ser tão perigoso como o de Serra Pelada. Na escalada da maior montanha do norte de Minas, Itambé (2.052 m), os viajantes desfrutaram de um belo panorama de toda a região. Ali, eles aprofundaram os seus estudos da flora e fauna e dos minerais. O Centro de Geologia, criado em 1979 na Casa da Glória, com o apoio da Alemanha, dá atualmente continuidade a esse tipo de pesquisa. Spix e Martius continuaram a viagem pela chapada entre o Jequitinhonha e o Araçuaí até o Termo de Minas Novas para conhecer os garimpos de outras pedras preciosas: crisoberilos, águas-marinhas, safiras, topázios, ametistas, esmeraldas e turmalinas.


10

O sertão de Minas Gerais A partir de Minas Novas, Spix e Martius começaram a travessia do sertão, descrito pela gente do lugar como “terra de milagres, mas também cheia de perigos”. Acompanhados de guias, eles viajaram pelos campos gerais no lombo de cavalos (suas coleções foram transportadas por mulas) e costumavam pernoitar em fazendas.

Lagoa de aves à margem do Rio São Francisco.

Existem várias afinidades topográficas entre o percurso dos viajantes alemães e a travessia do “alto brabo Norte” realizada por Riobaldo, o protagonista-narrador do romance Grande Sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa: haja vista lugares como a Serra das Araras, o Ribeirão dos Bois e o Rio Carinhanha, além de paisagens como os campos gerais, o Cerrado e as veredas com seus buritizais.

Agronegócio destruindo a paisagem natural e cultural do sertão.

O

Sertão de Minas Gerais. Casa de moradores.

Nessa travessia do sertão mineiro, de julho a setembro de 1818, eles manifestaram preocupação com o meio ambiente: “Pela atividade civilizadora deste país em vigoroso progresso” – ou, em outras palavras, pela “mão destruidora do homem” – “a natureza está sendo transformada em muitos aspectos”.

sertanejo, geralmente mestiço e vivendo da criação de gado, foi caracterizado por eles como “criatura da natureza, sem instrução, rude e de costumes simples, mas bem-intencionado, prestativo e de gênio pacífico”. Depois de passar pelo arraial de Formigas (hoje Montes Claros), onde era realizada a extração de salitre para a fabricação de pólvora, e pelo arraial de Contendas (hoje Brasília de Minas), os viajantes chegaram ao Rio São Francisco. Numa das lagoas à margem do rio, ficaram impressionados com os milhares de pássaros, peixes, anfíbios e mamíferos ali reunidos – um espetáculo da natureza que lhes pareceu “um quadro da criação do mundo”. No Porto e Brejo do Salgado (atual Januária), um lugar central para a navegação no Rio São Francisco, notaram que o comércio e a riqueza começaram a criar uma sociabilidade e costumes urbanos. Dali, eles viajaram até o Vão do Paranã, na fronteira com Goiás; e de lá voltaram ao São Francisco, mais ao norte, em Malhada, na fronteira com a Bahia. Numa vasta planície arenosa, Spix e Martius, ao registrarem as queimadas provocadas pelos sertanejos, recorreram a estilizações surrealistas (“os objetos pareciam dançar diante de nós”) e a uma referência à Bíblia: “As nuvens de pó negro, em cuja base chispavam faíscas, faziam-nos lembrar as colunas que precediam os israelitas no deserto, indicando-lhes o caminho”. A partir do arraial de Malhada, lugar de comércio e posto aduaneiro, os viajantes continuaram pelo sertão da Bahia rumo a Salvador. Capa e mapa de orelha de Grande Sertão: Veredas.


11 Vista geral de Salvador. Trata-se de uma litografia de Thomas Abiel Prior (1809-1886) com base no desenho do artista inglês Augustus Earle (1793-1838), que acompanhava a expedição na qual Charles Darwin veio à América do Sul a bordo do Beagle. Darwin amou Salvador, a qual chamou de magnífica e gloriosa. Ele escreveu que foi aqui que viu pela primeira vez uma floresta tropical em toda a sua sublime grandeza. O Beagle aportou pela primeira vez na cidade em 28 de fevereiro de 1832. Vê-se transeuntes na antiga Ladeira da Conceição.

Salvador

Chegando pela ilha de Itaparica, Spix e Martius avistaram a antiga capital do Brasil. Logo ao primeiro lance de olhos, notaram “a extensão e riqueza de seu comércio”. Salvador teria despertado as mais “agradáveis impressões”, embora não superasse a capital do Reino em beleza natural e atividade humana. Como em outras cidades, os viajantes descrevem com detalhes os aspectos urbanísticos, as moradias, os edifícios, as ruas e a topografia da cidade.

N

Na Bahia. “O estrangeiro dirige-se com prazer para a Cidade Alta, para livrar-se da imundície e da multidão da abafada praia. Nas ladeiras, íngremes, em parte calçadas com tijolo, quase impossibilitando o uso de cavalos, o visitante encontra cadeiras de aluguel, e dois negros robustos carregam-no rapidamente até o alto, onde o acolhe um sossego inusual e o refrescam suaves brisas marinhas”.

Festa do Bonfim. A importância dos festejos de Nosso Senhor do Bonfim não escapa aos naturalistas. Segundo os viajantes, a celebração ocorria duas vezes ao ano, atraindo grande aglomeração de povo, e demoram, “com a iluminação da igreja e dos edifícios próximos, alguns dias e noites. “O vozerio e os divertimentos extravagantes do grande número de negros” empresta a esta festa “uma feição estranha e excêntrica, da qual só pode fazer ideia quem observou as diversas raças na sua mistura”.

a parte baixa da cidade, observaram a vida agitada do comércio: “Numerosos navios de todas as nações [...] descarregam nos espaçosos trapiches da Alfândega, e dali retiram grande quantidade de produtos nacionais”. Tal qual no Rio de Janeiro, perceberam que esse serviço era realizado pelos negros carregadores de cargas, “soltando brados em intervalos”. Há uma enorme profusão de mercadorias europeias, tais como “fazendas inglesas, chapéus, objetos de metal, artigos de luxo franceses, linhos alemães, ferragens, produtos de Nuremberg e tecidos de algodão grosseiro, portugueses, especialmente panos pequenos de variadas cores”. Igualmente, diversos gêneros alimentícios eram estrangeiros. Entre as lojas, chama-lhes a atenção a forte presença de lapidários e joalheiros que ofereciam pedras coloridas de Minas Gerais e joias. Não poupam crítica à qualidade dos trabalhos, considerando-os toscos e com as pedras mal lapidadas. Uma parte dessas peças seria comprada por visitantes oriundos do interior da Província, a outra era “destinada às negras, especialmente às escravas dos ricos fabricantes de açúcar, que, na elegância domingueira, realçam com o brilho dessas correntes as saias de cassa branca e lindas rendas”.

A arquitetura da cidade pouco os impressionou, tanto que não há nenhuma imagem no Atlas da Viagem, diferentemente do impacto ao observarem a quantidade e variedade de seus habitantes. Segundo as informações de Spix e Martius, no Recôncavo baiano, contavam-se cerca de 200 mil moradores, dos quais talvez 115 mil residissem em Salvador e nos arredores Vitória e Bonfim. Tratava-se de uma população que em sua maioria era negra e mestiça, conforme relatam. O número de escravos que trabalhavam na agricultura também era grande, de 80 mil a 90 mil. As profissões “mais baixas” eram ocupadas por “gente de cor”. Ao leitor hodierno evidencia-se o quanto a sociedade era segregada: “[...] o comércio, os ofícios mais nobres, a administração dos novos cargos do Estado e das grandes fazendas e engenhos do Recôncavo estão nas mãos de brancos, ou daqueles que assim se consideram”. Os viajantes, igualmente, reconhecem a força do ideal do branqueamento, sem mais uma vez, esquivarem-se de críticas: “De resto, embora a cor branca enobreça por assim dizer e costume dar direitos a certa posição da sociedade, seria engano esperar da parte branca da população e mesmo das classes mais elevadas igualdade de educação e de ideias”.


12

O sertão do Nordeste

De fevereiro até meados de junho de 1819, Spix e Martius viajaram de Salvador a São Luís atravessando, em lombo de cavalo, os sertões do Nordeste: Bahia, uma parte de Pernambuco e o Piauí até o Maranhão. Diferentemente dos campos gerais de Minas, o sertão do Nordeste é marcado pela seca caatinga, com a vegetação de cactos, e frequente falta de água. Em vários lugares, as plantações eram queimadas e grande parte do gado tinha morrido de sede e de fome.

Planta de uma casa-grande (Gilberto Freyre: Casa-Grande & Senzala).

Na travessia do sertão nordestino, eles observaram uma impactante desigualdade social: de um lado, alguns grandes fazendeiros, muito ricos; do outro, a massa dos sertanejos “vivendo numa incrível pobreza”.

F

oi difícil obter água para beber e achar pastos para os cavalos e as mulas. Perto de Queimadas, os viajantes encontraram um grupo de moradores fazendo fila diante de uma pequena fonte. Homens com espingardas avisaram: “Aqui só tem água para nós, não para estrangeiros vagabundos!” A próxima etapa foi o arraial de Monte Santo, que se transformara num importante local de peregrinação graças ao empenho do capuchinho italiano Frey Apollonio, que construiu ali uma capela. Ele tornou-se a personagem-título de um romance escrito por Martius em 1831, mas publicado somente em 1992. Monte Santo era caminho para o Riacho de Bendegó, onde foi encontrado em 1784 um dos maiores meteoritos. No arraial de Juazeiro, situado no cruzamento do Rio São Francisco – principal eixo da navegação e do comércio do interior – com a Estrada do Gado, os viajantes viram chegar as levas de bovinos do Piauí para a Bahia, e, na direção oposta, escravos sendo enviados para as plantações. Naquela época, mais de dois terços da população das províncias do Nordeste eram formados por escravos. Há também uma referência à grande seca no Ceará, entre 1792 e 1796, quando ocorreu um maciço êxodo de habitantes e morreram muitas pessoas, além de animais domésticos. O Piauí foi colonizado a partir do fim do século XVII por um latifundiário que estendeu sua criação Capa de Graciliano de gado das margens do Rio São Francisco a essa Ramos, Vidas Secas. região. Os colonos praticaram uma caça aos índios, vendendo-os como escravos ou assassinando-os ao lhes entregarem pedaços de roupa infectados com varíola. Depois de passarem por Oeiras, a então capital do Piauí, os viajantes chegaram à região de Caxias, local com plantações de algodão tão ricas que “poderiam suprir a demanda da Europa inteira”. De São Luís, Spix e Martius embarcaram, em 20 de julho de 1819, para Belém.

Vista de Monte Santo.

Habitação no Nordeste.

Caatinga do Nordeste.

O meteorito de Bendegó visto por Spix e Martius e hoje no Museu Nacional, no Rio de Janeiro.


13

Entre a civilização e a barbárie

Caçador de escravos (Desenho de Martius). Embora Spix e Martius julgassem a escravidão uma instituição violadora dos direitos humanos, eles a toleraram pelo fato de que ela seria um caminho para “civilizar” os negros, considerados inferiores. Além disso, ela atuaria como “reforma moral” por levar aos africanos a “luz do cristianismo”. Fazenda do Coronel Lourenço (Desenho de Martius).

Como homens do século XIX, Spix e Martius apostavam no progresso da humanidade e acreditavam que a civilização estaria em marcha no Brasil, espelhada no modelo europeu. Após três anos em que investigaram fisicamente o país, também teriam atravessado, “em espírito”, todos os “graus do seu desenvolvimento, desde a condição de vida primitiva e como que patriarcais, até o estado que, no novo império, haviam alcançado burguesia, Estado e Igreja”.

A

presença da família real, a elevação do Brasil ao Reino Unido de Portugal e Algarves (1815) e a monarquia constitucional seriam importantes agentes nesse processo. Estavam Spix e Martius convencidos de que o “magnífico país” viesse a amadurecer para “a meta de seu aperfeiçoamento”. Mediados pelo olhar eurocêntrico, acreditavam, porém, que demasiadas diferenças “raciais” e culturais, uma característica da sociedade brasileira, eram um empecilho para o processo civilizador, que deveria ser conduzido pelos brancos, considerados “superiores” aos índios, mestiços e negros. Diante da constatação de que boa parte da população não era branca e europeia, defenderam a ideia da miscigenação como caminho para “branqueá-la” e “civilizá-la”. Apesar dessa visão positiva sobre a miscigenação, os autores não se despedem de uma concepção hierarquizada das diferentes etnias. Se, por um lado, fascinam-se com a variedade étnica e cultural cujos “quadros de vida” figuram como um “espetáculo mágico” que nem a própria Londres nem Paris poderiam oferecer, por outro, em muitos momentos, evidenciam seu olhar eurocêntrico e preconceituoso.

Frontispício do Atlas.

“Que é que poderá trazer o quarto século para um país, que em apenas três pôde assimilar todas as orientações e graus de cultura, pelas quais o gênio da humanidade conduziu o Velho Mundo durante milênios?”

Batuque em São Paulo. Descrevem o mulato como “facilmente excitável, de grande vivacidade”, pronto para qualquer partida contra o sossego “visando efeitos espalhafatosos”. O “desenfreado batuque” é visto como dança de “feição obscena”, “quase imoral”.

Como se deve escrever a História do Brasil. A ideia da miscigenação como algo positivo para a formação do jovem Reino foi desenvolvida por Martius no tratado Como se deve escrever a História do Brasil, publicado em 1845. O texto foi destinado a um concurso promovido pelo recém-fundado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro. Martius, concorrendo com apenas um candidato, foi o vencedor desse concurso.


14

Aspectos etnológicos

As descrições que Spix e Martius fizeram dos grupos indígenas têm que ser lidas no contexto do seu tempo: por um lado, considerando o pano de fundo dos paradigmas científicos e discursos cotidianos daquela época; por outro, levando em conta as grandes transformações sociais e econômicas ocorridas há 200 anos no Brasil.

Mundurucú, Uainumá e Purú-Purú.

U

m dos traços recorrentes na caracterização dos indígenas foi a suposta prática antropofágica. Na tradição indígena, a antropofagia teve um papel de pouco realce e foi essencialmente ritualística, mas esse fato foi falsificado na literatura de viagem dos europeus, que a apresentaram como uma prática cotidiana. Os pesquisadores do início do século XIX não estiveram atentos a essa diferença. Durante a viagem, Spix e Martius encontraram grupos indígenas tradicionais bastante diferentes; a maioria deles era fortemente marcada pela subjugação por parte dos colonizadores. Nas regiões Sudeste e Nordeste do Brasil, eles conheceram sobretudo tribos das etnias Gê e Tupi. Pelo trabalho escravo e deslocamentos forçados, essas tribos sofreram profundas mudanças em seus costumes de vida cotidiana e em suas estruturas sociais. Na percepção dos visitantes bávaros, os índios aparecem como degenerados e Máscara Tapir dos Jurí-Taboca. obtusos: “Taciturno, dócil no serviço dos brancos, tenazmente perseverante no trabalho obrigatório [o índio ... ] só nasceu para ser mandado”. As tribos tradicionais da região amazônica, sobretudo das partes norte e oeste – entre elas, os Aruaques, Caribes e Ticunas –, também tinham sido incluídas no sistema da subjugação, apesar de morarem em locais relativamente afastados. Nesse meio tempo, os Miranhas adotaram dos europeus a caça aos escravos. Contudo, foram documentadas também algumas manifestações admiráveis: na região fronteiriça com o Peru, Spix presenciou impressionantes desfiles de máscaras dos Ticunas; e no Rio Japurá, Martius registrou uma dança guerreira dos Jurís. Ambos os pesquisadores conseguiram colecionar objetos etnográficos extraordinários: instrumentos de caça, utensílios domésticos, enfeites e máscaras... Da perspectiva atual, critica-se muito o fato de eles terem trazido para Munique dois adolescentes indígenas: Johannes (Jurí) e Isabella (Miranha). Os jovens, no entanto, não suportaram o clima diferente e infelizmente morreram pouco depois de sua chegada. Atualmente, sobreviveram apenas algumas poucas tribos das que os pesquisadores encontram no início do século XIX. Em condições precárias, esses grupos sobreviventes, como os Miranhas, Mundurucus, Maués (Sateré-Mawé), Ticunas, Canelas e algumas tribos dos Tucanos, tentam manter a identidade como comunidades indígenas do Brasil.

Em suas práticas de pesquisa, os naturalistas bávaros seguiram uma orientação empírica e sistemática: os indígenas que eles encontraram durante a viagem pelo Brasil foram descritos com categorias linguísticas, de acordo com a organização econômica e o grau de adaptação deles à sociedade colonial.

Dança guerreira dos índios Jurís.

Isabella, da tribo Miranha.

Johannes, da tribo Jurí.


15

Mapa da região amazônica

Barcelos

Manaus

Óbidos

s uru

Santarém

Gurupá

Ta pa j

Ar ag

ua

ia

Tocan t

Xing

PERU

Belém

PARÁ u

P

M ad ei

AMAZONAS

á

Juru

ra

Tefé Amazonas

Tabatinga

Porto de Moz

ós

Parintins

Ilha de Marajó

ins

Japurá

Nh am

Negro

Araracoara

Trombetas

un dá

Bra nco

COLÔMBIA

Brasilia

Rio de Janeiro São Paulo

Belém do Pará O primeiro contato de Spix e Martius com a Amazônia se deu na cidade de Belém, onde chegaram em 25 de julho de 1819 e de onde regressaram para a Europa em 14 de junho de 1820. Belém, “a chave da província do Pará”, ou seja, a porta de entrada da Amazônia, é localizada estrategicamente no delta do Rio Amazonas, no sul do arquipélago de Marajó, na confluência do Rio Guamá com o Rio Tocantins, em frente à Baía de Guajará com suas várias ilhas.

Santa Maria de Belém do Grão-Pará.

“C

omo me sinto feliz aqui!” Assim, Martius inicia sua descrição das 24 horas de um dia vivido nessa cidade equatorial, na “harmonia das condições climáticas”, num sítio onde a exuberância da natureza tropical se manifesta na flora – com paulínias, mangueiras, louros, castanheiras e bacurizeiros – e na fauna, com borboletas, cigarras, besouros, colibris, roedores, sapos, lagartos, tartarugas, cobras e jacarés. Na topografia de Belém, destacam-se o Forte do Castelo, marco da fundação da cidade em 1616, a Catedral da Sé e o Palácio do Governador. Outros lugares importantes são a Praça do Comércio, a Alfândega e edifícios religiosos, como a Igreja das Mercês e o Convento de Santo Antônio. O planejamento urbano, com casas sólidas, ruas largas e várias praças amplas, criou, em princípio, condições de salubridade, porém não impediu que a cidade fosse atingida por várias epidemias de varíola. Em 1820, Belém tinha 24.500 habitantes, e a Ilha de Marajó, que era “a dispensa da capital”, abastecendo-a sobretudo com gado, contava com 10.500 moradores. A população de toda a província do Pará, incluindo os escravizados, era de 68 mil habitantes, sem contar os índios, cujo número era estimado em torno de 160 mil. Na população, os viajantes perceberam significativas diferenças de classes. No topo, a burguesia, relativamente numerosa, era toda de origem europeia; no meio, famílias de mestiços, instaladas sobretudo nos arredores; os integrantes da classe inferior, negros e índios mansos, são descritos como “semicivilizados”. A economia estava num certo declínio no interior da região devido à pouca eficácia dos diretores leigos nos aldeamentos dos índios. No entanto, a situação era animadora em Belém, que se encontrava, em termos de quantidade de produtos de exportação, na frente de todas as demais cidades brasileiras. Esses produtos, em sua maioria provenientes do interior, eram principalmente açúcar, cacau, algodão, óleo de copaíba, cravo, canela, castanhas e guaraná, além de fibras de piaçaba e diversos tipos de madeira. A produção e a demanda por borracha eram ainda incipientes.


16

Amazônia em geral

Nas viagens pela Amazônia, os principais precursores foram Francisco de Orellana (viagem realizada em 1541 -1542), Pedro Teixeira, Samuel Fritz, La Condamine, Mendonça Furtado e Alexandre R. Ferreira. Humboldt não foi autorizado a entrar na Amazônia portuguesa, que, aliás, foi administrada separadamente do restante do Brasil.

Página de rosto do livro de Acuña (1641), Novo descobrimento do Grande Rio das Amazonas. Representação da lenda da Mãe-d’Água.

O bioma da Floresta Amazônica se caracteriza por uma vegetação exuberante e com extrema riqueza de espécies. As plantações – de mandioca, milho, arroz, cana-de-açúcar, bananas, cacau e café – eram esparsas. A principal fonte de riqueza eram os produtos da floresta, sobretudo as “drogas do sertão” (como cravo, salsaparrilha e guaraná), além de castanhas, palmeiras e madeiras.

N

uma síntese da geografia, o Rio Amazonas é apresentado juntamente com seus afluentes, os inúmeros furos, lagos e ilhas, como um poderoso “sistema fluvial”. Anualmente, acontecem inundações em extensas terras à margem, os igapós. Partindo de Belém e passando pelo arquipélago de Marajó, Spix e Martius subiram pelo Rio Amazonas até a Fortaleza da Barra (Manaus), numa viagem de três meses, com paradas em Gurupá (posto de controle da navegação no Amazonas); Porto de Moz, no Xingu; Santarém, no Tapajós; Estreito de Óbidos; Rio Trombetas; Rio Nhamundá; e vila de Parintins; além do Rio Madeira, via de comunicação com a província de Mato Grosso. Durante o percurso, os viajantes sofreram constantemente com a praga dos carapanãs, mucuins, mutucas, muriçocas e piuns. Falando da abundância de peixes, eles destacaram a habilidade dos índios na pesca. Encontraram também peixes-elétricos e cobras gigantescas, que deram origem à lenda indígena da Mãe-d’Água. Quanto às míticas amazonas

– que surgiram no relato da viagem de Orellana e cujo nome acabou sendo atribuído ao rio principal e a toda a região –, Martius afirma: “Não acredito na existência delas, nem no passado, nem no presente”. O número de índios na Amazônia era maior do que o nas demais regiões do Brasil. Das tribos selvagens, Spix e Martius visitaram aldeias dos Muras e dos Mundurucus. Os índios mansos, além de trabalharem como remadores, nas plantações e na construção, executavam a maior parte dos serviços domésticos. Desde o início da colonização, além das guerras de extinção, eles também foram caçados como escravos. As ordens religiosas realizaram a catequese e numerosos aldeamentos. Depois da expulsão dos jesuítas, em 1757, as aldeias foram administradas por diretores leigos, que cometeram muitos abusos. Ainda no início do século XIX, praticava-se a caça aos escravos. Pupunheira.


17

Manaus e a província do Rio Negro Depois de terem passado pelo encontro das águas do Amazonas com o Rio Negro, Spix e Martius chegaram, em 22 de outubro de 1819, à Fortaleza da Barra (Manaus). Graças à vantajosa posição geográfica, essa vila se tornara o centro comercial e a capital da Província do Rio Negro; além de ser o quartel geral das tropas para os três postos de fronteira: Tabatinga, no Rio Solimões; São José dos Marabitanas, no Rio Negro; e São Joaquim, no Rio Branco.

O principal problema era o número reduzido da população: menos de 3 mil habitantes na vila e apenas 15.320 em toda a província (atualmente, Manaus tem uma população de 2,1 milhões; o Estado do Amazonas, de 4 milhões). E não havia naquela época nem médico, nem farmacêutico, nem professor.

Berço dos Campevas, para comprimir a cabeça das crianças.

Desfile festivo dos índios Tecuna.

O

s principais produtos comerciais, vindos das plantações e das coletas no interior, eram algodão, cacau, cana-de-açúcar, salsaparrilha, castanhas, óleo de copaíba e fibras de pia-

çaba. A partir da Fortaleza da Barra, os viajantes subiram pelo Rio Solimões (nome do Amazonas acima da embocadura do Rio Negro), via boca do Rio Purus e Lagoa Coari, até a vila de Ega (Tefé). Ao longo do percurso, observaram a exuberante floresta tropical, com inúmeros bandos de araras e de macacos. Nas ilhas arenosas, centenas de homens trabalhavam na escavação de ovos de tartarugas e no preparo da manteiga. Praticava-se também a pesca, sobretudo de pirarucu e de peixe-boi. Na vila de Ega, os dois pesquisadores decidiram dividir suas tarefas: enquanto Martius foi explorar o Rio Japurá, Spix continuou subindo o Solimões até Tabatinga. Panorama atual da cidade de Manaus. Nessa viagem (dez./1819-jan./1820), Spix passou pelas embocaduras dos Rios Juruá, Jutaí e Içá, e por Fonte Boa, Tonantins e São Paulo de Olivença. No posto de fronteira Tabatinga, ele presenciou um desfile festivo dos índios Tecunas. Chegou a conhecer também a tribo dos Campevas (cabeça-chata) ou Omáguas, descritos por Acuña como “os índios mais civilizados e inteligentes”. No entanto, tinham o costume de dar à cabeça das crianças a forma de mitra mediante compressão. De regresso à Barra do Rio Negro, Spix fez ainda uma viagem de duas semanas pelo Rio Negro até a vila de Barcelos. A paisagem ao longo desse rio é bastante diferente da do Solimões: as margens são mais secas e arenosas, além de livres da praga dos insetos devido à água escura. Em contrapartida, são menos férteis e há poucos peixes e animais de caça. Quanto às tribos locais (Manaos, Barés, Banibas, Uaupés, Aroaquis), algumas costumavam atacar os povoados dos brancos; outras se uniam e se misturavam a eles. O quadro geral foi o de uma grande dispersão e redução da população, causada também pelas endêmicas feEscavação e preparo dos ovos de tartaruga. bres malignas.


18 Jurí, Coëruna, Passé e Pachicu.

Rio Japurá

O objetivo da expedição de Martius pelo Rio Japurá (12 de dezembro de 1819 a 2 de março de 1820), em companhia do capitão Ricardo Zany e do tuxaua Coëruna Gregório, era conhecer algumas das tribos indígenas “ainda no seu estado primitivo”. A subida se estendeu por cerca de 1.100 km. O balanço feito por Martius do seu contato com os índios em seu estado primitivo é uma amostra de uma etnografia preconceituosa: “O laço do amor é frouxo; em vez de ternura, cio; em vez de afeição, necessidade; a mulher, escrava nua; o casamento, um concubinato; a preocupação do pai de família é seu estômago; seu passatempo, glutonaria e ócio apático; o trabalho das mulheres, cego e sem finalidade; a educação, brincadeira; em vez de direito, a voz do egoísmo – eis como vive o aborígine dessas selvas! No mais primitivo grau da humanidade.”

Porto dos Miranhas, à margem do Rio Japurá.

Desenhos indígenas em rochedos.

N

o meio, encontram-se as cataratas de Cupatí, na boca do Rio Apaporis (fronteira atual do Brasil com a Colômbia), onde termina a bacia inferior do Japurá, com sua paisagem semelhante à do Solimões. Os pontos de parada nesse trecho foram a aldeia de Maripi, habitada por índios Jurís, Passés e Coërunas; e a aldeia de São João do Príncipe, onde os índios estavam sujeitos a trabalhos forçados. Ali os viajantes encontraram Pachicu, chefe dos Coretus, que fazia guerra às tribos vizinhas a fim de vender os prisioneiros para os colonos. Na segunda metade da viagem, Martius se deteve no Porto dos Miranhas. Esses índios eram antropófagos e são descritos como ‘rudes, mas bondosos’. As mulheres teciam redes que eram comercializadas em toda a província do Rio Negro e até no Pará. O tuxaua João Miguel vivia da venda de escravos para os brancos. O ponto final da viagem foi a cachoeira de Araracoara, limite entre o bioma da Floresta Amazônica e o começo das terras altas do Peru. Numa das rochas de lá, assim como também em Cupatí, encontravam-se desenhos indígenas, representando figuras humanas e animais.

Cachoeira de Araracoara.

Rio Japurá.


19 Monumento do Frei Apollonio em Monte Santo.

O romance Frey Apollonio

Em 1831, Martius redigiu um texto que ficou inédito por um bom período – Frey Apollonio: um romance do Brasil, vivido e narrado por Hartoman. Transcrito e traduzido ao português por Erwin Theodor Rosenthal, foi publicado somente em 1992. Trata-se de uma versão ficcional da viagem pela Amazônia em que o autor revê de forma autocrítica a sua apresentação preconceituosa dos indígenas. Os principais lugares do enredo são as aldeias de índios ao longo do Rio Japurá. Um dado novo do romance é o fato de Martius dar voz aos índios. De objetos de pesquisa, eles se tornam sujeitos da História. “Nós, índios, não existimos apenas para servir-vos”, declara Pachacutec (uma figura histórica, chefe dos Incas de 1438 a 1471).

A

s principais personagens são o protagonista-narrador, Hartoman, alter ego de Martius; o capitão Riccardo, baseado na figura real de Ricardo Zany; Frey Apollonio, inspirado na figura do padre que criou, em 1774, o lugar de peregrinação Monte Santo; e dois chefes indígenas: Pachacutec e Tsomei. O interesse do romance consiste sobretudo nos diálogos que eles travam sobre a cultura e a civilização dos índios em comparação com os padrões europeus. Inicialmente, Hartoman manifesta sobre os índios as mesmas opiniões e os preconceitos que Martius no seu relato de viagem: “Esses selvagens: nenhum indício de cultura”. Riccardo replica: “Mesmo após um convívio de vários meses com os povos primitivos da América, o senhor continua aplicando a eles os parâmetros de seus sentimentos e preconceitos europeus”. Durante a viagem, aparece a Hartoman uma visão do espírito do povo vermelho: “De suas tumbas se levantavam as inúmeras vítimas do desejo de conquista e do fanatismo do homem branco no Novo Mundo”. É uma revisão crítica da sua perspectiva eurocêntrica, especialmente da conquista e do processo de colonização. Em seu convívio com uma família de índios, o protagonista fica conhecendo a cultura cotidiana deles. “Estes indivíduos da raça vermelha são felizes [...] talvez mais felizes do que nós, europeus, na camisa de força da nossa assim chamada cultura”, observa Riccardo.

Escritores indígenas atuais

Eliane Potiguara.

Há também uma crítica à catequese: “Vossos altares foram erigidos sobre as ossadas do meu povo”, denuncia o Inca Tsomei, “e as casas que pretendes construir são prisões para a escravidão dos vermelhos”. Consequentemente, os índios Coretus se recusaram a serem catequisados por Frey Apollonio, que pretendia fundar uma missão no Japurá.

No fim, Hartoman chega à conclusão de que “aquela raça índia, que considerava decadente e perdida, é carne da minha carne e espírito do meu espírito”. Ou seja, o pesquisador europeu não se sente mais superior ao outro e à sua cultura, mas nesse outro ele reconhece a si mesmo.

Daniel Mu

nduruku.

Ailton Krenak

.


20 Entre 1823 a 1831, foi publicado o magistral relato de viagem pelo Brasil, Reise in Brasilien, em três volumes, cuja edição de quase 1.400 páginas vem acompanhada de mapas, numerosas estampas (de cenas da natureza, tipos humanos e costumes) e um compêndio musical com melodias indígenas, lundus e modinhas.

Epílogo

Essa longa viagem, que custou muita dedicação e persistência – e que jamais poderia ter sido realizada se não fosse o apoio e a ajuda de guias, tradutores, tropeiros, africanos escravizados e indígenas–, certamente se perderia na história se Spix e Martius não a transformassem em inesgotável fonte para a sua produção intelectual.

E

Trecho de um poema de Martius sobre o Brasil.

nisso Martius, em particular, foi feliz, ao contrário de seu companheiro de viagem, que voltou muito doente, falecendo seis anos mais tarde. Mesmo assim, Spix publicou alguns estudos sobre a fauna brasileira. Martius viveu ainda por mais de quatro décadas, dedicando-se incessantemente ao Brasil. Do relato de viagem aos estudos da flora e da fitogeografia, passando pela etnografia e chegando a fazer incursões pela literatura ficcional e historiografia, o Brasil foi sempre o seu foco. Para além dessas publicações, algumas delas verdadeiros monumentos da literatura científica, Martius, como “brasilianista avant la lettre” e professor universitário, construiu e manteve ao longo de sua vida uma enorme rede de contatos e conexões com cientistas, intelectuais e letrados alemães, europeus e brasileiros. Somente no acervo de Martius na Biblioteca Estadual da Baviera, computam-se cerca de 11 mil cartas escritas e recebidas por ele. Dentre os correspondentes, encontram-se naturalistas, como Alexander von Humboldt e Georges Cuvier; linguistas, como Jacob Grimm; poetas, como Goethe; além de colegas que também estiveram no Brasil, entre eles Eschwege, Wied-Neuwied, Orbigny, Avé-Lallemant e Agassiz. Do lado brasileiro, Dom Pedro II, o pintor Araújo de Porto Alegre e o historiador Varnhagen, para mencionar alguns poucos. Por meio dessa rede, os saberes continuaram a circular entre esses diferentes espaços políticos, sociais e culturais, propiciando a continuação do intento científico que se iniciou com a viagem exploratória. Spix e Martius coletaram numerosas amostras para enriquecer os seus gabinetes, museus e jardins botânicos, bem como para aumentar as publicações. Nesse sentido, contribuíram para o desenvolvimento das ciências naturais e humanas. Contudo, suas conclusões sobre os habitantes, sobretudo as que dizem respeito aos índios, negros e mestiços, pecam pelos preconceitos que armaram o seu olhar. No entanto, nada disso desqualifica a importância de tão rico legado, cujo estudo não só permite compreender as leituras e interpretações europeias oitocentistas sobre a nossa natureza e história, mas também nos possibilita lidar criticamente com elas.

Capa das traduções em inglês e português.

Trecho de uma carta a Humboldt.


FUNDAÇÃO VISCONDE DE PORTO SEGURO (Mantenedora do Instituto Martius-Staden)

Marcos A. S. Bitelli (Presidente)

INSTITUTO MARTIUS-STADEN

Christian Buelau (Presidente) Eckhard E. Kupfer (Diretor)

CURADORIA

Profa. Dra. Karen Macknow Lisboa Prof. Dr. Willi Bolle

COORDENAÇÃO

Daniela Rothfuss

PESQUISA

Profa. Dra. Karen Macknow Lisboa Prof. Dr. Willi Bolle Prof. Dr. Luís Fábio Silveira Dra. Grabriele Herzog-Schröder

ACERVOS CONSULTADOS

Amazônia Sem Fronteiras Bayerische Staatsbibliothek (seção de manuscritos / Martiusiana) Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin Biblioteca Digital Luso-Brasileira Biblioteca Nacional British National Library Câmara Municipal de Salvador Centro de Referência em Informação Ambiental (CRIA) Instituto de Estudos Brasileiros Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro Instituto Martius-Staden Kupferstichkabinett Wien Ludwig-Maximilians-Universität München Ministério da Cultura Museum Fünf Kontinente Museus Castro Maya Pateo do Collegio Staatsbibliothek zu Berlin S.O.S. Mata Atlântica

REFERÊNCIAS Spix&Martius. Reise in Brasilien. München, 1824-1831, 3 volumes e Atlas. ________. Viagem pelo Brasil. Itatiaia/Edusp, São Paulo, 1981, 3 volumes. Martius, C. Historia Naturalis Palmarum. Leipzig, 1823-1850, 3 volumes. Martius, C. Frey Apollonio – ein Roman aus Brasilien. Berlin, 1992. _______. Frey Apollonio – um romance do Brasil. Trad. E. T. Rosenthal, São Paulo, 1992. _______. Eichler, A.W. & Urban, I. (org.). Flora Brasiliensis. München/Leipzig, 1840-1906, 40. FOTÓGRAFOS

Albin Olsson, Antonio Queirós, Eckhard E. Kupfer, Elisabete Alves, Felipe Lopes Delfino, Gustavo Henrique Tonetti, Hubert Mathias Peter Roeser, Tatiane de Souza Macedo e Willi Bolle.

Detalhe Publicidade

ARTE E CRIAÇÃO

DISPLAYS GRÁFICOS

Marza – Distribuidora Oficial Octanorm Brasil

REVISÃO Ana Lúcia Gonçalves dos Santos Birgit Fouquet Renata Fichtler Thaís dos Santos Coutinho AGRADECIMENTOS Dominique Edouard Baechler Dr. Konstantin von Martius Eduardo Brettas Walde-Mar de Andrade e Silva

PATROCÍNIO

APOIO CULTURAL


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.