exposição-apelo ao amplo direito de defesa de Rafael Braga
Instituto Tomie Ohtake Instituto de Defesa do Direito de Defesa apresentam
exposição-apelo ao amplo direito de defesa de Rafael Braga Adriano Costa Alice Shintani Anna Maria Maiolino Bené Fonteles Carmela Gross Cildo Meireles Clara Ianni Dalton Paula Fabio Morais Fernanda Gomes Graziela Kunsch Gustavo Speridião Ícaro Lira Iran do Espírito Santo Jaime Lauriano Jonathas de Andrade Maria Laet Miguel Rio Branco Moisés Patricio Nelson Felix Nuno Ramos Pablo Lobato Paulo Bruscky Paulo Nazareth Raphael Escobar Rosana Paulino Sonia Gomes Tiago Gualberto Vitor Cesar
27 JUNHO-30 JULHO DE 2017 Curadoria PAULO MIYADA
UMA EXPOSIÇÃO-APELO Diante de questões humanitárias urgentes, o Instituto Tomie Ohtake se oferece como plataforma para a realização de um projeto singular que une os territórios da Arte e da Justiça, em parceria com o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e com a adesão de 29 dos mais relevantes artistas brasileiros em atividade. Esta iniciativa apresenta-se como um chamado social que pretende iluminar um tema fundamental: igualdade de direitos constitucionais. Obras agudas, de mínima materialidade e máxima potência ética e poética, foram reunidas pela curadoria de Paulo Miyada. A exposição inclui uma sala de documentos ligados direta ou indiretamente ao caso de Rafael Braga e desdobra-se em uma programação de debates e eventos. Para o Instituto, abrir espaço para uma discussão dessa ordem é um desdobramento do interesse público e do campo artístico. Neste país que vive uma democracia ainda tão jovem, existe espaço para que artistas e sociedade se aproximem em prol de melhores condições de vida para todos. Prova disso é o entusiasmo e generosidade com que a iniciativa desta exposição foi recebida. O IDDD mostrou-se um parceiro singular, comprometido com a seriedade de suas pesquisas e com a missão de criar pontes para comunicar-se em territórios que extravasam a área jurídica e penal. Os artistas reiteraram sua postura estética e ética, atendendo
Em um esforço coletivo, os Núcleos de Cultura e Participação e de Pesquisa e Curadoria do Instituto Tomie Ohtake colaboraram para desenvolver mais de uma dezena de atividades, que incluíram conversas, oficinas, visitas guiadas à exposição, saraus, performances, apresentações teatrais e exibição e documentários e filmes de artistas, visando amplificar as discussões e aproximar diversos públicos.1 Com a mesma atitude colaborativa, Gustavo Speridião, um dos artistas da mostra, produziu dezenas de testes até encontrar a identidade visual da exposiçãocom sua grafia do “osso”.
(Mendes Wood DM), Ricardo Kugelmas (auroras), Erika Malzoni, Janaina Torres, Marcos Gallon e Alayde Alves, Ana Lucia Sefair de M. Mitre, Carmen Gomide, Célia Marengo Barth, Cinthia Verdier, Cristina Cataldi Pedrosa, Denise Abdalla Conrado, Gisele Sallum Foresti, Hilda Vergueiro, Isabel Sallum, Lica Pedrosa, Lu Azevedo, Luciana Wever, Maria Amélia Wald Gaspar, Maria Lucia Sampaio Santos, Mônica Gomez Mitsui, Patrícia C L M de Almeida, Renata Lunardelli, Rita Camargo, Rita Leite Pereira, Risa Dias, Silvana Conrado, Simone S. de Oliveira, Sonia Barros Barreto, Sonia Dias de Souza, Ucha Verissimo e Yvelise Cavalcante (Grupo Art’em Rede). Trata-se da prova de que a sociedade civil acredita ser possível manter-se atento às questões fundamentais de nossa democracia, mesmo em um período de tanta dúvida e desinformação.
Mais ainda, é preciso agradecer a todos que se uniram para tornar a mostra possível, desde galerias, colecionadores e assistentes de artistas que fizeram tudo para viabilizar a chegada das obras de modo simples, até diversos agentes da sociedade civil que responderam ao pedido de apoio para este projeto que não conta com outros patrocinadores. Nesse sentido, nosso muito obrigado a Carolina Holzer de Zagottis, Cleusa Garfinkel, Antonio Almeida e Carlos Dale (Galeria Almeida e Dale), Marcos Cicerone, Beatriz Yunes Guarita, Joana e Thiago Gomide, Flavia Soares, Angela Akagawa, Tadeu Chiarelli, Natalie Salazar, Luis Guilherme Vieira, Luiz Bernardes, Camila Siqueira, Miguel Chaia, Marcy Junqueira, Pedro Mendes, Matthew Wood e Felipe Dmab
A corrente colaborativa que tornou esta iniciativa possível foi, em seguida, entremeada com a capacidade de comoção, empatia e reação dos mais diversos públicos. Além de relatos pessoais impactados pela mostra, houve farta resposta em redes sociais e, também, na cobertura da imprensa. Artigos como o de Fernanda Mena (“Mostra em SP une arte e justiça para debater condenação de catador de lixo”, publicado em 20 de junho de 2017) para a Folha de S. Paulo e o de Eliane Brum (“O Brasil desassombrado pelas palavras-fantasmas”, publicado em 10 de julho de 2017) em sua coluna no jornal El País foram exemplares em relacionar OSSO com o cenário atual brasileiro e ajudar ainda mais a divulgar a condição de Rafael Braga em âmbito nacional.
prontamente ao desafio de dizer muito com pouco e fazer do gesto poético um convite à reflexão sensível.
Gesto enunciado desse um espaço cultural, OSSO não faria sentido se não fosse entendido como algo que soma forças em um campo social ampliado no qual importantes movimentações têm sido articuladas. A Campanha pela Liberdade de Rafael Braga realiza ações para defesa de Rafael e angaria fundos para sua família desde 2014; “30 dias por Rafael Braga”, que tem à frente Suzane Jardim, organizou mais de 60 eventos durante um mês em periferias e universidades do estado de São Paulo para tratar de assuntos pertinentes ao caso de Rafael: questões raciais, seletivismo penal, descriminalização de drogas, criminalização de movimentos sociais, sistema penal brasileiro e o cárcere brasileiro, entre outros. É com orgulho, portanto, que o Instituto Tomie Ohtake se engaja a essa importante causa, dá mais um passo em direção à abertura de seu espaço para o diálogo e debate de diferentes temas e frentes e assume a arte como grande potência de luta, resistência e posicionamento. INSTITUTO TOMIE OHTAKE
1. No final deste catálogo você encontrará textos e imagens que contam sobre o intenso programa de atividades desenvolvido pelos Núcleos de Cultura e Participação e de Pesquisa e Curadoria. A cada semana, performances, falas, apresentações e visitas trouxeram diferentes públicos ao Instituto e novas interpretações para a exposição. Também durante a mostra, uma oficina de cartazes foi realizada em parceria com o CDP Pinheiros. Os cartazes produzidos pelos internos/presos foram, posteriormente, acrescentados ao espaço expositivo.
O TERRENO DA COLABORAÇÃO OSSO – Exposição-apelo ao amplo direito de defesa de Rafael Braga, em sua complexidade enquanto proposição ética, estética e política, constituiu-se por meio da articulação entre instituições, artistas, pesquisadores, coletivos, associações e públicos. Fruto das inquietações do curador Paulo Miyada e sua equipe, a mostra evidenciou a potência da colaboração entre esferas sociais distintas em torno de um terreno comum – neste caso, a inconformidade com as injustiças e contradições envolvendo o processo de prisão de Rafael Braga. Esse contexto expressa a desigualdade maior vivida diariamente, historicamente, em nosso país, com a subtração sistemática dos direitos da população pobre e negra, alvo de encarceramento seletivo e em massa. Declarar publicamente a inadmissibilidade desse fato foi o que agregou a multiplicidade de vozes – e suas dissonâncias – que reverberaram neste terreno.À pronta adesão das equipes do Instituto Tomie Ohtake à proposta da curadoria seguiu-se o envolvimento imediato do IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa, primeiro parceiro do projeto, e dos 29 artistas convidados, cujos trabalhos,lâminas afiadas, fizeram da mostra um gesto incisivo, contundente, em si. Em paralelo, uma programação de atividades foi concebida pelo Núcleo de Cultura e Participação, em parceria com o Núcleo de Pesquisa e Curadoria, com as equipes elaborando conjuntamente formas de ampliar as esferas públicas de discussão ao
redor das provocações levantadas pela exposição. Resultou desse processo uma agenda de debates, oficinas, visitas mediadas à mostra, exibições de documentários, performances, saraus e intervenções que ocuparam os ateliês, os espaços expositivos, o grande hall e até a área externa do Instituto Tomie Ohtake, assim como o Centro de Detenção Provisória III, em Pinheiros, onde foram realizadas oficinas de cartazes com pessoas aprisionadas. Na composição dessa agenda, agregou-se uma série de colaboradores, cuja presença e contribuição foram imprescindíveis para que o debate fosse diverso, plural e, principalmente, conduzido por quem pensa e atua diretamente nos temas que estavam em pauta. Esta é a oportunidade para reiterar o agradecimento aos artistas, coletivos e pesquisadores convidados* pela atuação vigorosa nessa programação, além de todas as pessoas que visitaram a exposição e participaram das atividades com seus corpos e falas. Sem os públicos, não há exposição, debate, nem transformação. O engajamento de todos esses agentes na constituição de uma mostra e ao seu redor pode dizer algo sobre o papel de uma instituição cultural. Ao longo das últimas décadas, com avanços nos sistemas democráticos, as instituições de cultura foram se tornando espaços cada vez mais relevantes para o debate público, para o encontro de distintas comunidades, para a compreensão do outro e da diversidade e para a construção da empatia, endereçando questões como discriminação racial,
imigração, expressão religiosa, orientação sexual, identidade de gênero e equidade no tratamento a todas as pessoas. Em tempos obscuros e de opressão aos direitos humanos, a função social das instituições culturais é ainda mais realçada, convocada, provocada. Nesse sentido, uma exposição como OSSO apresenta um caminho, entre tantos, para que uma instituição atue a serviço de uma causa que não lidera, mas que tem condições de apoiar. Ao tornar disponíveis seus espaços, recursos humanos e meios de comunicação, articulação e parcerias, o Instituto Tomie Ohtake pôde se colocar menos como protagonista e mais como uma plataforma de mobilização, ocupada e ativada por quem está à frente das causas em questão. Tratou-se mais de oferecer estrutura para o encontro de distintas vozes, posições, expressões, reivindicações. Ou ainda, dito de outro modo, auxiliado pela imagem de um osso, a instituição pôde ser mais esqueleto do que carne, mais gesto, articulação, do que discurso (ainda que haja discurso intrínseco ao gesto). A que serve, então, a cultura nesse contexto? Um dos entendimentos da palavra cultura, de origem anglo-saxã, está ligado à palavra coulter, que significa lâmina do arado. Na paisagem de um terreno comum, com as pessoas em torno, em colaboração, talvez então a cultura – e mais especificamente, a arte – possa ser aquilo que revolve a terra, areja e renova o campo de cultivo.
Na perspectiva desejada de uma democracia cultural, na qual todos os indivíduos possam ter condições de inventar seus próprios fins culturais a partir de seus repertórios e aspirações, essa lâmina do arado precisa não só estar à disposição de todas as pessoas, mas também, independentemente de sua feição, estar bastante afiada para penetrar o campo, revirando para cima e para baixo as camadas de crenças sedimentadas. FELIPE ARRUDA Diretor do Núcleo de Cultura e Participação do Instituto Tomie Ohtake
Agradecimentos Adriana Eiko Matsumoto, Alexandre Gessone, CCA Gracinha, Cia do Sal, Cia dxs Terroristas, Cidinha da Silva, Clara Ianni, Coletivo Rebento, Day Rodrigues, Débora Rodrigues da Silva, Eugenio Puppo, Geraldo Prado, Gustavo Forti Leitão, Grupo Empreza, Heloisa Bonfanti, Hugo Leonardo, Isadora Brandão, Jaime Lauriano, Lucas Ogasawara, Pedro Borges, Roberta Estrela D’Alva, Rubens Passaro, Sarau das Carolinas e Firminas, Sarau do Binho, Suzane Jardim, Victor Brandão, Vocacional de Dança
RAFAEL BRAGA E A DEFESA DO DIREITO DE DEFESA O Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) é uma organização da sociedade civil de interesse público, fundada por advogados criminalistas há 17 anos. Desde a sua fundação, a principal missão do IDDD é a de sensibilizar a sociedade para o fato de que todos os acusados têm o direito a uma defesa de qualidade e a um processo devido, e de que os condenados têm o direito de cumprir a pena de forma digna. Olhar para tais pressupostos da liberdade humana é fundamental à democracia, especialmente em um momento de inegável agravamento e fortalecimento do poder punitivo estatal. O Brasil, segundo os últimos levantamentos oficiais, já conta com mais de 600 mil pessoas presas, uma população carcerária composta, sobretudo, de jovens, com baixa escolaridade e baixa renda. Trata-se da quarta maior população carcerária do mundo, da qual 67% correspondem a pessoas negras. Rafael Braga foi levado à prisão, durante as manifestações de junho de 2013, por levar consigo dois recipientes de produtos de limpeza. Rafael, que jamais pertenceu a qualquer grupo político, porém é jovem, negro, com baixa escolaridade e baixa renda, foi o único cidadão brasileiro preso no contexto das jornadas condenado à pena de prisão.
Após cumprir parte dos 5 anos e 10 dias da pena em regime fechado que lhe fora aplicada, por preencher os requisitos legais Rafael passou a cumprir a sua pena em regime aberto. Um mês após deixar o cárcere, trabalhava como auxiliar de serviços gerais e utilizava tornozeleira eletrônica quando foi preso novamente. Com base unicamente na versão policial, o rapaz foi condenado à pena de 11 anos e 3 meses de prisão por ter sido flagrado supostamente portando 0,6 grama de maconha e 9,3 gramas de cocaína. Em face da trajetória de Rafael, semelhante à de tantos outros negros, pobres, presos por tráfico de pequena quantidade de drogas, o IDDD e o Instituto Tomie Ohtake uniram-se para produzir a exposição OSSO. Por meio da arte, representada por obras produzidas a partir de elementos tão frágeis e crus quanto a temática explorada, busca-se não apenas a sensibilização da sociedade quanto à trajetória do jovem, símbolo da ascendente população prisional brasileira, mas também o debate amplo, honesto e transparente quanto às questões do sistema de justiça criminal brasileiro. IDDD
OBRAS-ATITUDE EM TEMPOS DIFÍCEIS PAULO MIYADA
A arte insiste. A arte pode insistir. Enquanto a propaganda da crise, a cultura do medo e a paranoia do estado de exceção espalham-se como queimada em mata seca, muitas vezes são os artistas que nos lembram de que algo de humano subsiste. Obras de arte podem ser feitas de muito pouco, quase que só de atitude, insistência e abertura para o mundo. Obras podem sobreviver mesmo no limite da escuridão e da invisibilidade. Não se deve confundir isso, no entanto, com o elogio da precariedade da vida e, muito menos, com o argumento de que tudo é aceitável em contextos de crise. Cortes, remanejamentos, arrochos, flexibilizações..., o refluxo nacional e mundial coloca na agenda inúmeros nomes para a constrição social. Em algum ponto é preciso traçar uma linha demarcando o que não se deve aceitar, o que não pode ser ultrapassado sob nenhuma circunstância. Se sobram escândalos, urgências e disputas, onde traçar essa linha? Toda tentativa parece vaga demais. Parcial demais. O esboço de um limite: não deveríamos aceitar, por exemplo, a arbitrariedade das prisões de Rafael Braga. Esse jovem negro, pobre e periférico foi duas vezes condenado em processos que somam 15 anos de pena e são problematizados nesta exposição pela pesquisa e por dados compilados pelo IDDD. Não é possível que Rafael Braga mais uma vez se some às estatísticas do encarceramento arbitrário – porque cerceador
do amplo direito de defesa – da população mais pobre do país. A assimetria na aplicação da lei brasileira não pode se manter naturalizada. Se há alguma dúvida plausível no processo de Rafael Braga, ela deve ser reavaliada – não apesar de, mas porque ele faz parte do grupo censitário mais vulnerável a pré-julgamentos no sistema policial e penal vigente. Todas as vidas importam. Existem tantos jeitos de fazer uma exposição assim. Existem tantos jeitos de não a fazer. Propomos este. Convidamos os autores de algumas das mais potentes obras de arte contemporânea feitas com muito pouca matéria, escassa substância. Pedimos que eles emprestassem essas obras tão leves e, não obstante, tão agudas, para compor uma exposição de arte contemporânea feita quase que só de osso, lâmina apenas. A experiência sensível desta exposição será de vastidão e emergência: o deambular por um amplo espaço ocupado pontualmente por proposições precisas – ora delicadas como um toque, ora afiadas como um bisturi. Não são “obras-discurso”, mas “obras-atitude”, gestos poéticos no espaço. Os artistas, sim, foram convidados não apenas a mostrá-las, mas a mostrá-las nesta exposição que faz um apelo à sociedade e ao Estado. O político, neste caso, é antes de tudo o engajamento dos artistas como cidadãos que aqui se posicionam. Em uma sala adjunta, são apresentados documentos ligados direta ou indiretamente ao caso de Rafael Braga, e a iniciativa alavanca um programa público de debates e encontros.
Essa lâmina adversa, como o relógio ou a bala, se torna mais alerta todo aquele que a guarda, sabe acordar também os objetos em torno e até os próprios líquidos podem adquirir ossos. E tudo o que era vago, toda frouxa matéria, para quem sofre a faca ganha nervos, arestas. Em volta tudo ganha a vida mais intensa, com nitidez de agulha e presença de vespa. UMA FACA SÓ LÂMINA – In: Obra Completa, de João Cabral de Melo Neto, Nova Aguilar, Rio de Janeiro © by herdeiros de João Cabral de Melo Neto
eu bato contra o muro duro esfolo minhas mãos no muro tento longe o salto e pulo dou nas paredes do muro duro não desisto de forçá-lo hei de encontrar um furo por onde ultrapassá-lo Oliveira Silveira. O Muro, 1982.
ALICE SHINTANI Sem título, s.d. Técnica mista Coleção da artista
ADRIANO COSTA aGenteÉchatoFazTempo, 2017 Papel amassado Acervo Mendes Wood DM A produção de Adriano Costa muitas vezes desafia os parâmetros e valores do campo artístico, ao mesmo tempo que contam com a atenção concentrada que o público direciona aos objetos dentro de espaços de exibição de arte. aGenteÉchatoFazTempo é um forte exemplo dessa tensão. Trata-se, simplesmente, de um envelope amassado suspenso. Um simples gesto. Em exposição, ele chama atenção para todos os seus detalhes, dobras e volumes. Não deixa de ser, porém, apenas um envelope amassado. O título da obra enfatiza sua exasperação diante da condição atual da arte no mundo, a mesma condição que torna o trabalho possível.
Alice Shintani emprega cores e formas como veículos para atuar no mundo, em escalas, suportes e contextos diversos. Para isso, almeja simplificar as condições e circuitos que atravessam e legitimam o seu trabalho: alcançar mais com menos, ou “menas”, como batizou uma obra recente. Sem título é uma espécie de projeto piloto desses princípios: a banal caixa de fósforos repleta de pigmento vermelho repousa sobre o solo sob constante risco de um acidente que espalhe a cor pelo espaço.
ANNA MARIA MAIOLINO Y, 1974 Super-8 transcrito em vídeo digital em 2000 Roteiro/Direção/Montagem: Anna Maria Maiolino Música: Vânia Dantas Leite Fotografia: Max Nauenberg Duração: 2:23min Cortesia da artista A produção audiovisual de Anna Maria Maiolino na década de 1970 foi feita em contraposição aos limites impostos pela ditadura militar brasileira com sua atuação repressiva, violenta e silenciadora. Nesses filmes, é recorrente o enquadramento próximo de gestos sem afetação, concretos e espasmódicos. Y consiste em fragmentos e instantâneos do grito de um rosto feminino que tem os olhos vendados. O som é agudo, mas não coincide com a representação naturalista do grito. A montagem, por vezes, deixa que a feição se confunda com outros espasmos expressivos, como o riso ou o gozo.
ANNA MARIA MAIOLINO Os Desaparecidos, da série Fotopoemação, 1979/2014 Impressão digital de fotografia analógica em preto e branco Desaparecidos foi desenvolvida em etapas sucessivas. As fotografias originais foram feitas em 1979, quando Anna Maria Maiolino e os artistas Amélia Toledo, Luiz Ferreira, Maria do Carmo Secco, Maria Luiza Saddi, Mauro Kleiman, Osmar Fonseca e Rogério Luz utilizaram como estúdio, por um ano, um espaço cedido pela Aliança Francesa de Botafogo, no Rio de Janeiro. Ainda no contexto da ditadura militar, os tempos reforçavam a fragilidade dos artistas como cidadãos e como criadores – o que se reflete em diversas obras de Maiolino. Anos depois, a artista recobriu os rostos da fotografia, tornando-os anônimos, mascarados. Em 1984, vivendo na Argentina – tomada pelo luto e pelo trauma de sua ditadura militar – escreveu o poema “Desaparecidos”. Em 2012, diante do agravamento de tensões e opressões no Brasil e no mundo, Maiolino retomou a imagem de 1979 e imprimiu a obra em sua versão final. Nessas etapas, reiteram-se sucessivos exorcismos, protestos e resistências contra a arbitrariedade do poder.
BENÉ FONTELES Sem título, 2017 Arames enferrujados encontrados em vários estados do país, madeiras trabalhadas pelo curso de rios, um par de chinelas do povo Terena (Mato Grosso do Sul) e vasilha de cabaça do povo Paresi (Mato Grosso) Bené Fonteles define-se como artivista, alcunha justificada pela história repleta de iniciativas que, como OSSO, convocaram o meio artístico à atuação em esferas públicas mais amplas do que o próprio sistema da arte. Sem título é sua obra feita especialmente para a exposição. O artista traça o contorno de sua silhueta na parede, expande o desenho com materiais recolhidos tanto em espaços urbanos quanto na natureza, e coloca um par de sandálias no local em que estariam os pés desse corpo. Essas sandálias pertenceram a um indígena Terena, povo hoje com alto índice de suicídio no estado do Mato Grosso do Sul – por isso, completam a alegoria dos ausentes, vencidos pela barbárie que avança sob o argumento do progresso desenvolvimentista.
CILDO MEIRELES Cruzeiro do Sul, 1969-70 Cubo de madeira, 1 seção de pinho e 1 seção de carvalho Coleção do artista
CARMELA GROSS Águia, 1995 Grafite sobre parede Cortesia Galeria Vermelho Parte da produção de Carmela Gross explora o duplo potencial do desenho que, por um lado, pode ser projeto e gravar as formas com fortes intencionalidades e, por outro, pode ser garatuja e mancha, criando desvios de linguagem. Águia é uma de suas obras mais concisas: risco seco de grafite sobre a parede que delineia a silhueta duplicada do animal que nomeia a obra. Originalmente, foi instalada na Cadeia Municipal de Santos por ocasião da V Bienal Nacional de Santos, e se equilibra entre ser uma nova insígnia de sentido aberto ou um rabisco abandonado por alguma memória esquecida.
A produção de Cildo Meireles de finais dos anos 1960 é repleta de exemplos de obras que resumem noções geográficas, físicas, políticas e sociais em gestos sintéticos, que empregam poucos materiais e contam com a capacidade de analogia e envolvimento do público. Cruzeiro do Sul é uma dessas obras. O cubo de 9 mm é apresentado diretamente sobre o chão em uma sala vazia e composto de uma seção de pinho e outra de carvalho, madeiras utilizadas por povos indígenas para produzir fogo por fricção. Para a cosmogonia Tupi, as árvores de onde foram retiradas as madeiras representam entidades míticas. O Cruzeiro do Sul é, também, a menor constelação moderna, e só pode ser avistado do hemisfério Sul.
CLARA IANNI Um milhão de reais, 2010 Moeda de 50 centavos e fita de demarcação de solo branca Cortesia Galeria Vermelho Clara Ianni investiga as possibilidades atuais do pensamento crítico. Em alguns trabalhos, realiza representações literais de conceitos econômicos abstratos, mas de grande impacto na sociedade. Um milhão de reais concretiza uma operação comum na arte e no mercado financeiro: a estipulação arbitrária e fictícia de valor. A moeda de 50 centavos permanece de pé, protegida por uma grande área de isolamento.
DALTON PAULA Cadeira calçada, 2017 Óleo sobre tela Coleção particular A pintura, para Dalton Paula, é um modo de organizar afetos e identidades pessoais sem se afastar de signos e símbolos arquetípicos. A pincelada diminuta, as áreas de cor sólida e o zeloso modelado das figuras remetem ao território da pintura popular. Os temas, também, muitas vezes partem da realidade cotidiana e das crenças de muitas pessoas, especialmente em populações de ascendência africana. Cadeira calçada é uma pintura diminuta, com o enquadramento frontal dos ex-votos. Traz uma cadeira “calçada” em copos d’água, como se fosse um animal preparado para um ritual de matriz africana. A cadeira, objeto de assentamento, está vazia, assim como o resto da sala. Há um corpo ausente nesta imagem de falsa simplicidade.
FERNANDA GOMES Sem título, 2014 Pregos e ímã Fotografia: Pat Kilgore Cortesia da artista / Cortesia Galeria Luisa Strina FABIO MORAIS Pré-desenho, 2009 Barbante, lapiseira e papel Coleção do artista / Cortesia Galeria Vermelho A produção de Fabio Morais assimila recursos narrativos e procedimentos criativos da literatura e da arte experimental. Neles, os modos de funcionamento dos dispositivos linguísticos são frequentemente tomados como meio e assunto da criação. Pré-desenho é uma instalação que fabula o percurso que uma linha faz antes mesmo de tocar o papel. A linha negra traça uma trajetória no espaço expositivo antes de pender do teto e cumprir a função do grafite que sai de uma lapiseira em permanente suspensão, na iminência de um risco que não acontecerá.
A poética de Fernanda Gomes nunca é discursiva, procura encontrar situações limítrofes para a materialidade de suas obras, que constantemente encontram-se no limite da existência ou da visibilidade. É a atenção do público que encontra e completa mentalmente as formas delineadas pelos arranjos engendrados pela artista. Sem título é composta por três pregos e um ímã, e sua forma negocia diretamente com as forças da gravidade e do magnetismo. GRAZIELA KUNSCH Sem título (o racismo é estrutural), 2017 Faixa de tecido e pintura Execução: Frederico Luca e Laura Viana Obra doada para integrante da campanha pela liberdade de Rafael Braga e da luta por cotas na USP Para Graziela Kunsch a prática artística pode promover novos campos de debate ou provocar cruzamentos entre esferas públicas e agentes sociais. Sem título (O racismo é estrutural) é a resposta da artista ao convite para participar de OSSO. A faixa foi feita com a mesma técnica das que marcaram os protestos de 2013 em São Paulo, produzidas pelo Movimento Passe Livre (MPL). À época, confrontados com acusações midiáticas e governamentais de que eram violentos, os ativistas pintaram uma faixa com os dizeres “VIOLÊNCIA É A TARIFA”. No contexto atual, a artista propôs uma frase análoga, que responde às tentativas de minimizar a violência racial como algo restrito a casos isolados e acidentais.
IRAN DO ESPÍRITO SANTO Sem título (Fita 5), 2017 Pintura sobre parede
GUSTAVO SPERIDIÃO Cavalaria, 2017 e Sem título, 2017 Lápis e caneta sobre papel Coleção particular Seja sobre telas imensas, folhas de papel ou livros e fotografias, a prática artística de Gustavo Speridião faz uso recorrente da escrita expressiva, provocativa e rápida de seus pensamentos. Ele anota ideias, aponta palavras de ordem, cria piadas e fabula revoluções. Os textos/desenhos aqui apresentados fazem parte de sua rotina de reflexão sobre o presente estado de “crise” alardeado em todas as esferas da vida atual. Gustavo Speridião também contribuiu com a grafia da palavra “osso” utilizada na identidade visual da exposição.
ÍCARO LIRA Crime e impunidade, 2016 Tecido, pedra, corda e livro Acervo Galeria Jaqueline Martins Para Ícaro Lira, a história é matéria viva constantemente esmagada pelo peso das narrativas oficiais, escritas pelos mais poderosos. Em busca de contranarrativas, o artista coleta objetos, textos, relatos, imagens e fragmentos de lugares de conflito social. Crime e impunidade traz aberta uma publicação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) com uma lista dos assassinatos no campo durante a ditadura militar brasileira. A pedra do sertão cearense amarrada e o tecido azul são maneiras de acolher o livro com prosaico cuidado – um tipo de zelo vernacular brasileiro que Ícaro Lira muitas vezes apreende e reinventa em seu trabalho.
Iran do Espírito Santo lida constantemente com os limites da representação. Utilizando apenas um material em cada obra, o artista por diversas vezes deu corpo a representações de objetos levadas à sua máxima síntese. Por isso, seus trabalhos equilibram-se entre a fisicalidade do material e o idealismo da forma imaginada. Sem título (Fita 5) é parte de uma série de pinturas de parede em que a representação esquemática de fitas adesivas é reproduzida em versão agigantada, que alcança escala arquitetônica.
JAIME LAURIANO Experiência concreta #3, 2017 Cartazes, pedras portuguesas recolhidas na rua e papelão O horizonte crítico de Jaime Lauriano aponta para a necessidade de convergir o passado histórico com os dilemas sociais do presente, especialmente em torno de dinâmicas de violência e opressão. O passado colonial escravagista é assunto recorrente em suas obras, assim como os linchamentos recentes de jovens negros pobres. Experiência concreta #3 convida os visitantes a continuarem um processo iniciado pelo artista e montar uma grade com pedras portuguesas encontradas nas calçadas da cidade. O material, associado a uma técnica do século XIX, quando se solta do calçamento, vira um projétil imprevisível, que pode ser empregado para oprimir ou resistir. Sobre o papelão, reenquadra-se em uma estrutura arbitrária definida pela separação das cores.
JONATHAS DE ANDRADE 4000 Disparos Duração: 60 min Coleção do artista / Cortesia Galeria Vermelho Um dos pilares da produção de Jonathas de Andrade é o interesse agudo pelas outras pessoas que participam do desenvolvimento de cada obra, com quem cria relações combinadas de colaboração, desafio, sedução, questionamento e/ou instrução. O filme 4000 Disparos é um caso paradigmático desse interesse, pois o artista capturou – quadro a quadro, em um rolo de super-8 – a feição de transeuntes inadvertidos nas ruas de Buenos Aires. Digitalizado, o filme foi montado com uma faixa sonora cíclica e disruptiva. A velocidade da passagem dos quadros não deixa perceber os rostos isoladamente, apenas como pulsações em um fluxo de identidades incertas.
MIGUEL RIO BRANCO Tubarões de seda composit, 2010 Transfer sobre voile Coleção particular
MARIA LAET Pedra do real (Canudos), 2015 e Pedra do real (Búzios), 2015 Monotipia sobre pedra Na obra de Maria Laet, quanto mais vazio e silêncio, mais oportunidade para que se preste atenção à duração dos gestos e à passagem do tempo. Suas Pedras do real são resultado de uma ação simples, feita com firmeza e precisão. A artista entinta a palma de sua mão, segura a pedra e deixa sua marca gravada. A pedra guarda a presença de um corpo que a agarrou, confirmou sua existência e deixou-a para trás.
A poética de Miguel Rio Branco não se funda apenas no conteúdo documental do que retrata. A fotografia é utilizada por ele como um recurso plástico para captura de cores, movimentos e feições a serem recombinados pelos processos de edição e montagem que desenvolve há décadas em livros, projeções, instalações, polípticos e assemblages. Assim, atribui carnalidade às obras. Tubarões de seda composit extrapola o nome da espécie fotografada (tubarãoseda) e transporta sua imagem para o fino tecido de voile, fazendo do nado imersivo um sobrevoo vigilante.
MOISÉS PATRICIO Autorretrato, 2015 Desenho sobre trama Coleção particular A obra de Moisés Patrício subverte imagens usualmente associadas à vulnerabilidade e ao estigma social, reapresentando-as como gestos de orgulho. Autorretrato traz delicadas linhas pretas sobre uma trama quadriculada. Por trás da delicadeza dos desenhos está o fato de que são feitos dos cabelos crespos do artista colados em adesivos. Além de intervenções gráficas, são, portanto, representações condensadas que Moisés Patricio faz de si mesmo como artista negro.
NELSON FELIX Sem título, 2012 Ouro Coleção particular
PABLO LOBATO Perfurado, #2, 2016 Papel e esfera de ouro Coleção particular
Um dos pressupostos poéticos constantes na obra de Nelson Felix é a ambição de alcançar o espaço entre as coisas: a distância entre dois pontos, o vazio no interior de uma obra, ou o ar que preenche um lugar. Noutras palavras, o artista não se interessa apenas pelo que produz, mas também pelo espaço tocado para que a obra aconteça. Nesse sentido, Sem título posiciona um conjunto de alianças de ouro espaçadas de modo uniforme para capturar o espaço entre elas, para convidar o olhar, que, de longe, mal percebe as alianças e fita desconfiado o espaço e a superfície da parede.
O olhar de Pablo Lobato é afinado para perceber detalhes e formas mínimas, cuja poesia nasce do encontro entre o acaso e a atenção que o percebe. Em razão da sutileza do que o artista pretende evidenciar, muitas vezes é necessário que ele recorra a métodos de apreensão tão elaborados que possam, na obra final, praticamente desaparecer. Em Perfurado, #2 há indícios de alguma destruição, como o furo no acrílico e as marcas de queimadura no papel fotográfico e na moldura. Ao mesmo tempo, faltam as marcas que se esperaria encontrar caso houvesse algum processo explosivo. Não houve disparo. A moldura foi fechada com o papel fotográfico em branco. A esfera de ouro foi aquecida até aproximar-se de seu ponto de fusão e, incandescente, colocada sobre a obra. O acrílico derrete, a esfera esbarra no papel, marca sua passagem e cai sobre a base da moldura.
NUNO RAMOS Balada, 1995/2015 Livro de 896 páginas em branco perfurado por um tiro de pistola, cujo projétil se encontra alojado no seu interior Cortesia do artista / Cortesia Fortes D’Aloia & Gabriel Nuno Ramos constantemente trabalha promovendo o choque entre palavras, conceitos, materiais, cores e sons. Percorre as linguagens e recombina partes delas como peças carregadas de latência poética, histórica e humana. Entre suas obras mais conhecidas estão 111 (1992) e 24 Horas 111 (2016), obras que referenciam as vítimas do massacre do Carandiru. Balada é resultado do impacto de um projétil de pistola em um livro. Entre título, objeto, queimadura e furo, podem-se fazer leituras que combinam violência e resistência, criação e sacrifício, além de tantas outras interpretações.
PABLO LOBATO Quadrado (Girafa #6), 2017 Acrílica e esmalte sobre pínus, grampo de nylon Cortesia Pablo Lobato / Cortesia Luciano Brito Galeria Quadrado (Girafa #6) parte da coleta que Pablo Lobato faz de perfis chamados de “quadrados” nas madeireiras. Resultados do corte preciso do maquinário que retifica o tronco de pínus em finos e longos paralelepípedos, por vezes continuam reagindo à passagem do tempo pela matéria orgânica e gradualmente se deformam e se curvam. O artista escolhe e guarda justamente esses quadrados, que costumam se acumular no fundo das prateleiras até serem descartados. Com sua coleção, Lobato percebe que às vezes três perfis unidos, face a face em uma das pontas, conseguem formar um frágil corpo delgado que consegue equilibrar o próprio peso.
PAULO BRUSCKY Nadaísmo, 1974 Texto Ágil, prolífica e multimeios, a poética de Paulo Bruscky está sempre comprometida com o presente, a comunicação e a realidade política e social. Esta é uma remontagem da exposição Nadaísmo, idealizada por Paulo Bruscky em 1974. O artista deixou a galeria Nega Fulô, em Recife, totalmente vazia, e convidou o público por meio de um panfleto dobrado contendo um texto redigido por Leonhard Frank Duch, e anunciava o nome de 54 artistas que aceitaram participar da mostra. Segundo o relato do artista: Quando estava preso disseram para mim que a Arte Correio era um movimento comunista internacional! Quando fui solto, antes de sair fui levado ao comandante do Batalhão. (...) O comandante disse: “vou botar duas pessoas atrás de você, se você voltar a fazer trabalho de rua, eu lhe acidento, porque tenho gente especializada em acidente. Eu tenho formas de lhe matar de uma forma acidental, muito bem-feita, que não deixe registro nenhum”. E botaram dois caras atrás de mim. Eu saía de casa, eles me cumprimentavam, na faculdade, nos bares. Até que, seis meses depois, fiz a exposição Nadaísmo, uma exposição que não tinha nada na galeria (...) Então, no dia da inauguração subi no banco e fiz uma denúncia: “Inclusive dois canalhas estão aqui dentro, eu não sou dedo-duro, mas quero que vocês digam lá no Exército que podem me matar, que vou continuar fazendo arte, e quero dizer a todos vocês e à imprensa que esses dois me ameaçaram de acidente e que se eu for acidentado o Exército que me matou”. (In: Paulo Bruscky. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2011)
PAULO NAZARETH Projecto/Coleção: todas as vezes que sou parado tomado como bandido, delinquente, mau elemento, narcotraficante, ladrão, terrorista, débil mental, louco, psicopata, sociopata, entre outras possíveis ameaças sociais pela polícia militar y similares oficiais em diferentes partes do mundo, 2016 Impressão sobre jornal Coleção do artista Um dos eixos do trabalho de Paulo Nazareth é a plataforma editorial P. NAZARETH ED. / LTDA. Essa marca identifica seu compromisso em atuar como um agente que difunde ideias e discursos, fazendo circular desenhos, textos e propostas. Sua atuação e conteúdo discutem criticamente as ideologias dominantes, junto ao compromisso do artista com as identidades negras, periféricas e indígenas. Este panfleto – diretamente ligado à experiência pessoal do artista como cidadão negro – pode ser levado pelos visitantes.
PAULO NAZARETH Tommie, 2017 Acrílica metálica sobre papel-cartão Coleção Mendes Wood DM, São Paulo, Brasil A escultura Tommie traz ao Instituto Tomie Ohtake o eco do protesto do campeão olímpico Tommie Smith no pódio da Olimpíada do México, em 1968. A silhueta do atleta que levantou seu punho como um símbolo de orgulho e protesto negro foi reproduzida de modo singelo pelo artista e então estruturada como um diminuto monumento.
RAPHAEL ESCOBAR Os homens, 2017 Impressão Dimensões variáveis Coleção do artista Raphael Escobar hesita antes de produzir novos objetos e imagens artísticas. Dedica grande parte de sua energia a atuar diretamente junto a dinâmicas de ocupação urbana por populações que não têm acesso à moradia. Eventualmente, essa atuação gera desdobramentos que se traduzem como obras de arte, que podem ser compostas de indícios da colaboração entre Escobar e seus interlocutores ou então proposições para novas trocas. Os homens traz registros da Defensoria Pública do Estado de São Paulo em que carroceiros na região da Luz relatam o modo como perderam seus bens. O artista suprime os nomes dos envolvidos e também a caracterização dos responsáveis pela subtração dos bens dos carroceiros. Nos espaços deixados em branco reside a ambiguidade entre violência e política pública.
ROSANA PAULINO A Permanência das Estruturas, 2017 Técnica mista sobre tecido e costura Coleção da artista
TIAGO GUALBERTO Maré Vermelha, 2017 Videoinstalação Coleção do artista
A pesquisa artística de Rosana Paulino está debruçada sobre iconografias que perpassam a história dos negros no Brasil desde o período colonial. Em A Permanência das Estruturas uma trama se costura em torno do esquema planejado para a disposição de escravos em um navio negreiro para o máximo aproveitamento do espaço. Outras imagens fazem referência às pesquisas eugênicas, que empregavam linguagem cientificista para legitimar ideologias racistas. A cena de caça representada nos azulejos portugueses dramatiza o momento da captura da presa e dá pistas da violência guardada nas imagens aparentemente neutras e objetivas que estão ao redor. O título da obra, repetido insistentemente, avisa que – ainda que mascarada sob discursos tecnicistas – a engrenagem da opressão racial segue em plena operação.
A linha é vermelha. O sinal é vermelho. A camiseta é vermelha. O farol é vermelho. A bandeira é vermelha. O sangue é vermelho. A fraternidade é vermelha. O sol é vermelho. A Rosa é vermelha. O cão é vermelho. A saia é vermelha. O batom é vermelho. A luz é vermelha. O perfil é vermelho.
SONIA GOMES Sem título, da série Torções, 2005 Costura, amarrações, tecidos e rendas variadas sobre arame Coleção Pedro Mendes & Matthew Wood, São Paulo, Brasil As obras de Sonia Gomes são estopim para muitas memórias atávicas. Quer dizer, seus materiais e processos remetem a diversas lembranças ancestrais. Os tecidos que utiliza têm vidas pregressas, chegam às mãos da artista após servirem a seus donos, às vezes por toda uma vida. Suas costuras ecoam tradições: desde a colcha de retalhos dos lares populares até as decorações de festas com origem colonial – especialmente as de matriz afro-brasileira. Essas lembranças latentes, que se ativam de modos distintos em cada observador, emaranham-se na prática plástica da artista, que torce, sobrepõe, molda e costura peças para que elas mesmas tenham um corpo, que se avoluma por si mesmo na ausência daqueles que originalmente vestiram e usaram cada pedaço de tecido.
O corpo do ator Romário Oliveira aparece em variações desta cor. Seus movimentos foram sugeridos a partir da repetida escuta de uma canção. Os discretos fones de ouvido são visíveis ao cair da nuca, por seu cabelo quase raspado. A mira recebe apoio das negras e perpendiculares molduras dos monitores de vídeo. O foco são suas costas nuas. No entanto, o corpo respira, o peito sanfona, nega a captura exata de seu conjunto absoluto. O vai e vem dos movimentos o identifica ao mesmo tempo que permite sua diluição entre manchas e embates. Enquanto o braço retumba, as cabeças se multiplicam. Se chocam em looping constante, enquanto outras fingem inteiras, enganadas pela crença de que não são alvos fáceis. Ele persiste, se mantém ereto ainda que fragmentado, anônimo, como incógnito são os corpos visto nas valas, nos jornais, nos barracos, nas salas, na exposição. A Maré é vermelha. André Pitol e Vivian Braga dos Santos
VITOR CESAR Artista é Público, 2011-17 Tipografia em metal Coleção particular Para Vitor Cesar a arte está mais próxima de um modo de raciocinar, colaborar e agir do que dos objetos eventualmente identificados como artísticos. Muitas de suas obras se fazem em proximidade com outros campos de referência, como o desenho gráfico, o mobiliário urbano, a tradução e a organização social. Artista é Público emula as sinalizações comuns em edifícios públicos e, ambivalente, pode ser interpretada de mais de uma maneira. Em OSSO, atua como prólogo e epílogo do engajamento dos artistas na exposição-apelo. Vitor Cesar também iniciou uma colaboração com o IDDD, que poderá render novas proposições durante a exposição ou após o seu término.
Buenos Aires, 20 de setembro de 1984 É de manhã já foi de noite escrevo poesia palavra outra palavra mais palavras nas páginas quadriculadas um dois três quatro lados um quadrado ontem foi dia feio choveu e tivemos visitantes gente estranha caras mal desenhadas não tinham boca só olhos chorando o tempo todo lágrimas escarlates sangue finalmente se foram ficaram as manchas no assoalho e cheiro de morte na sala de nada adiantou lavar o chão e abrir as janelas a dor permaneceu todavia pela casa ouve-se: - los desaparecidos... los desaparecidos... Eles, os herdeiros de Cortez - El Conquistador -
enterraram mil em covas rasas sem cruz sem nada semeando com os filhos da terra a terra latino-americana não dormimos a noite passada fiquei a escrever aqui com meu amado a trabalhar no outro lado da casa molho a pena na tinta china - Pelikan, marca registrada Gunther Wagner conteúdo neto 125 centilitros cúbicos Indústria Argentina - Usala bien - dissera-me o meu amado - te la regalo é tinta de desenho e escrevo com ela poesia desenhando lindamente letra por letra como se fora um chinês - Las hojas son calmantes... o rádio transmite matéria de cura popular - En las verrugas hay que passarle en cruz... - De la noche a la mañana desaparecerán todas... no fundo do frasquinho de tinta há sedimento - mostra dos anos é melhor não agitar apago o rádio paro, presto atenção ao silêncio da casa o que estará meu amado fazendo? - O que fazes?, indago - Colo, ele berra - maldita cola acrílica! - Me recuso a usar cola acrílica! - Es una questión moral - Entendes?
Anna Maria Maiolino. Os Desaparecidos, 1984.
poesia em tempo de fome fome em tempo de poesia poesia em lugar do homem pronome em lugar do nome homem em lugar de poesia nome em lugar de pronome poesia de dar o nome nomear ĂŠ dar o nome nomeio o nome nomeio o homem nomeio a fome no meio a fome
Haroldo de Campos. Trecho do poema ServidĂŁo de Passagem, 1961
Aqui encontra-se um relato crítico das condenações de Rafael Braga, acompanhado por notas, comentários e informações complementares sobre o contexto que torna o caso mais um dentre outros milhares tratados de forma arbitrária pelo sistema de Justiça Criminal brasileiro. As informações foram compiladas em um esforço conjunto do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) com o Núcleo de Pesquisa e Curadoria do Instituto Tomie Ohtake. Sempre que não houver outras fontes indicadas, os textos serão de autoria do IDDD.
Junho de 2013. O brasil é tomado por forte onda de protestos. Milhões de pessoas saem às ruas para participar de manifestações realizadas em mais de 100 cidades brasileiras. 20 de junho de 2013, o maior ato: 300 mil pessoas nas ruas do Rio de Janeiro. Nesse dia, dentre outras tantas pessoas detidas para averiguação, Rafael Braga Vieira foi abordado por dois policiais civis que o apreenderam, pois levava consigo duas garrafas plásticas com produtos de limpeza e supostamente poderia utilizá-las como coquetel molotov. Diferentemente das demais pessoas detidas naquele contexto, em sua maioria branca e de classe média, Rafael era jovem, preto, pobre e catador de latas.
Rafael foi a única pessoa detida no contexto das manifestações de junho de 2013 que permaneceu presa até o julgamento do seu processo. Rafael, embora jamais tenha se associado a qualquer tipo de militância política, é a única pessoa condenada por fatos que giram em torno de tais protestos.
Na investigação, os desinfetantes encontrados com o jovem foram submetidos a perícia, que constatou que os materiais apresentavam “mínima aptidão para funcionar como “coquetel Molotov”. No laudo produzido pelo esquadrão antibombas (e não pela Polícia Científica como deveria ser), não há uma única foto das garrafas.
Assim, Rafael cumpriu parte de sua pena em regime fechado, passando pelo semiaberto, tendo finalmente, em dezembro de 2015, progredido para o regime aberto, condicionado ao uso de tornozeleira eletrônica. Enquanto cumpria sua pena, conseguiu um emprego como auxiliar de serviços administrativos em um escritório de advocacia. Contudo, em 12 de janeiro de 2016, a sua trajetória foi novamente interrompida: Rafael mais uma vez foi levado à prisão. Conforme relatou em todos os momentos em que foi ouvido no processo, Rafael estava a caminho da padaria do bairro periférico em que morava, quando foi abordado por policiais militares e conduzido para o quintal de uma casa.
Nesse local, os policiais ameaçaram colocar como seus uma pistola, uma sacola com drogas e fogos de artifício. Ainda segundo os relatos de Rafael, os policiais enciostaram um fuzil no seu corpo, afirmaram que iriam estuprá-lo e deram socos no seu estômago, perguntando a ele “quem são os meliantes do movimento”. Embora Rafael tenha repetido que, por ser trabalhador, não sabia de nada, foi conduzido para local perto da Unidade de Polícia Pacificadora da Vila Cruzeiro, onde as ofensas e agressões se seguiram. Naquela data, o delegado de polícia tomou por verdadeira a versão contada a ele pelos policiais militares e prendeu Rafael em flagrante pelo porte de 0,6g de maconha e 6 cápsulas contendo o total de 9,3g de cocaína. Nenhuma diligência foi conduzida pela polícia civil antes de se levar Rafael para a prisão. Na audiência de custódia, a versão de Rafael foi desacreditada e ele foi mantido encarcerado.
A defesa de Rafael, por vezes, empreendeu esforços para que lhe fosse concedido o direito de responder ao processo em liberdade, conforme determina a Constituição Federal. Porém, assim como quase metade da população carcerária brasileira, composta por pessoas presas apesar da inexistência de uma condenação definitiva, Rafael foi mantido aprisionado desde então. Durante o processo, no empenho de demonstrar a inocência do jovem preto, egresso do sistema prisional e periférico, os defensores de Rafael requisitaram ao juiz que fosse soliticato ao comando de Unidade de Polícia Pacificadora o fornecimento das imagens das viaturas e câmeras instaladas na sede daquela UPP. O ofício encaminhado aos órgãos responsáveis pelo envio das imagens não foi atendido e, embora tenha havido insistência da defeda para que tais registros fossem trazidos ao conhecimento de todos, o juiz entendeu impertinente tal pedido.
Mais uma sentença condenatória fundamentada exclusivamente na palavra de policiais ouvidos no processo.
Rafael foi, então, condenado à pena de 11 anos e 3 meses de prisão e ao pagamento de uma multa pela prática dos crimes de tráfico de entorpecentes e associação para o tráfico. Toda prova produzida pela defesa foi ignorada.
Ocorre que o depoimento policial não pode servir como único elemento para a condenação. Isso porque os policiais têm inegável interesse em defender a legalidade da própria atuação seja na prisão do acusado ou na investigação, portanto têm evidente interesse em se resguardar e, assim, não são testemunhas. Também foi registrado na sentença o fato de que o local da prisão em flagrante de Rafael seria ponto de venda de drogas supostamente comandado por conhecida facção criminosa do Rio de Janeiro, por essa razão, ele foi condenado pelo crime de associação para o tráfico.
Rafael é símbolo do que os estudiosos chamam de “seletividade penal”, fenômeno que assola o sistema de justiça criminal brasileiro, jogando no falido, anacrônico e medieval sistema prisional tantos outros jovens semelhantes a Rafael: pretos, pobres, presos por tráfico de pequena quantidade de drogas.
Rafael não é membro da citada facção criminosa, contudo reside em comunidade por ela dominada. Rafael foi preso porque estava no local errado, no momento errado, por ter nascido no lugar errado, por residir no lugar errado, por residir em comunidade dominada pelo crime organizado. Por ser jovem preto, pobre e egresso do sistema prisional.
Costuma-se dizer que no Brasil prende-se pouco. Na verdade, prende-se muito e prende-se mal. Há milhares de “Rafaeis”descartados por uma sociedade que não consegue se livrar de um direito penal cada vez mais amplo e violento. Tantos jovens pobres são diariamente jogados nas masmorras que são os cárceres brasileiros a fim de, supostamente, manter seguras as castas dominantes e como resposta a um anseio social por vingança punitivista. Não se pode negar: a disfuncionadade do sistema de justiça criminal brasileiro é, afinal, funcional.
NOTAS IDDD
1. “Veja-se que o acusado foi preso portando dois vasilhames de plástico, sendo que em um deles havia desinfetante PinhoSol (à base de álcool) e no outro água sanitária.” Caso Rafael Braga – Processo 0008566-71.2016.8.19.0001, Alegações finais da defesa, p. 94. 2. “No estado em que este material se encontra, está apto a ser acionado (por chama) e lançado, porém com mínima aptidão para funcionar como ‘coquetel molotov’.” Caso Rafael Braga – Processo 0212057-10.2013.8.19.0001, Laudo Técnico, p. 71. 3. “[...] recipientes de plástico não se estilhaçam ao serem lançados, logo são inservíveis para a confecção de coquetéis molotov.” Caso Rafael Braga – Processo 0008566-71.2016.8.19.0001, Alegações finais da defesa, p. 94. 4. “Conhecendo-se a violência que campeou nos recentes protestos realizados na cidade do Rio de Janeiro, é evidente que o réu pretendia fazer uso nocivo dos frascos incendiários.”
Caso Rafael Braga – Processo 0212057-10.2013.8.19.0001, Alegações finais do Ministério Público, p. 92. 5. Conforme noticiado pela imprensa, no dia 20 de junho de 2013, mais de 1,25 milhão de pessoas participaram de protestos realizados em mais de 100 cidades brasileiras, no maior dia de manifestações desde o início da onda de marchas que marcaram o mês de junho daquele ano. O Rio de Janeiro reuniu o maior público, com cerca de 300 mil pessoas. Esse foi o dia em que Rafael Braga foi detido por suposta prática de porte de aparato incendiário ou explosivo, por portar duas garrafas plásticas de produtos de limpeza. Ao longo de 2013, ainda ocorreram outros protestos, totalizando 696 mobilizações. A causa inicial foi o aumento da tarifa de ônibus em algumas capitais, logo expandidas de forma orgânica para muitas outras pautas, incluindo a violência da repressão policial às primeiras manifestações ocorridas. Durante as manifestações daquele ano, 2.608 pessoas foram detidas, entre elas Rafael, que alega não ter participado da manifestação e acabou sendo o
único condenado pela Justiça. Protestos pelo país têm 1,25 milhão de pessoas, um morto e confrontos, G1, 21.06.2013 e Relatório Protestos no Brasil 2013, Artigo 19, 2014. 6. Rafael foi condenado à pena de 5 anos de prisão por supostamente portar artefato explosivo ou incendiário. Sob a alegação de que as duas garrafas plásticas constituíam materiais explosivos, sua condenação ignorou os apontamentos do laudo técnico que indicava a “ínfima possibilidade de funcionar como ‘coquetel molotov’”. Para além disso, no laudo constatouse que as garrafas continham álcool e água sanitária. O primeiro é inflamável, mas seu uso e porte não são proibidos por lei; o segundo sequer possui caráter inflamável. Outra discussão sobre o laudo diz respeito à suposta existência de pedaços de panos presos aos “bocais” da garrafa. No laudo, esses elementos são chamados de “pavios”, entretanto não há nos autos nenhuma imagem dos materiais periciados, de modo que promotor, juiz, defensor ou qualquer outra pessoa não puderam constatar
exatamente quais objetos foram apreendidos com Rafael, que alegou carregar garrafas plásticas lacradas. As controvérsias do laudo técnico jamais poderão ser saneadas, eis que, na sentença, o juiz determinou a destruição dos materiais, impossibilitando nova perícia ou o esclarecimento de questões não elucidadas. 7. Conforme assegurado pela Constituição Federal brasileira, a prisão é o último recurso estatal, e, como tal, somente pode ser admitida em caráter extraordinário, cuja imprescindibilidade deve ser demonstrada no caso concreto. Portanto, a prisão preventiva, modalidade de prisão cautelar que permite que o indivíduo seja recolhido à prisão antes de seu julgamento definitivo, é cabível em situações excepcionalíssimas, fundamentando-se a necessidade dessa cautelaridade nos requisitos previstos no art. 312 do Código de Processo Penal a partir de elementos concretos a serem extraídos dos autos. Nesse sentido, além da demonstração de existência de indícios de autoria e prova de materialidade criminosa para se
justificar a indispensabilidade da prisão preventiva, é fundamental que se demonstre a presença de seus requisitos legais autorizadores, confrontando-os com as garantias individuais, a fim de se aferir a eventual preponderância da regra (liberdade) ou da excepcional constrição cautelar. A legislação processual penal oferece uma série de medidas cautelares alternativas à prisão preventiva para dar opções ao (à) magistrado (a) e garantir a aplicação excepcional da prisão preventiva. 8. As audiências de custódia começaram a ser implementadas no Brasil a partir de fevereiro de 2015, quando o Conselho Nacional de Justiça elaborou o Projeto Audiência de Custódia com o intuito de adequar o procedimento processual penal brasileiro à Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), ratificada pelo Brasil e incorporada ao ordenamento jurídico pátrio pelo Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992, e ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, internalizado no ordenamento jurídico por meio do Decreto nº 592, de 6 de julho de
1992. Artigo 7º, 5, da Convenção Americana de Direitos Humanos: “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo”. A audiência de custódia é instrumento importante que permite, por meio do contato pessoal entre o preso e o juiz, uma avaliação judicial cuidadosa da necessidade da prisão e contribui para a prevenção e combate à tortura e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes. 9. “São quase 250 mil pessoas presas antes de serem julgadas em primeiro grau jurisdicional, sendo que há evidências de que uma grande parte delas poderia responder ao processo em liberdade.” Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, Ministério da Justiça, Junho de 2014. 10. “O Brasil exibe, entre os países comparados, a quinta maior taxa de presos em condenação. Do total de
pessoas privadas de liberdade no Brasil, aproximadamente quatro entre dez (41%), estão presas sem ainda terem sido julgadas.” Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, Ministério da Justiça, Junho de 2014. 11. “A autoria do nefasto comércio, em sentido idêntico, resultou cabalmente demonstrada na pessoa do acusado, embora este, como de costume na seara criminal, tenha negado o obrar criminoso quando foi interrogado neste Juízo.” Caso Rafael Braga – Processo 0008566-71.2016.8.19.0001, Sentença, p. 362. 12. “Além de necessária, indeclinável, plena, a defesa deve ser efetiva, não sendo suficiente a aparência de defesa. O fato de ter o réu defensor constituído, ou ter sido nomeado advogado para sua defesa, não é suficiente. É preciso que se perceba, no processo, atividade efetiva do advogado no sentido de assistir o acusado.” FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo, 2005, p. 258. 13. “Em pesquisa feita pelo IDDD em 2015, na qual se observou a realização de audiências de custódia na cidade de São Paulo, dos 127 casos de tráfico de drogas acompanhados, em cerca de 75% os únicos a deporem como testemunhas do flagrante eram os próprios policiais que efetuaram a prisão. A importância de se revelar quem são as pessoas que aparecem nos flagrantes como depoentes é poder notar como se dá a análise do flagrante que justifica a prisão preventiva na capital paulista: se há somente a presença de policiais, significa que a palavra deles já é suficiente para caracterizar o crime de tráfico de drogas, não havendo a necessidade de provas adicionais de testemunhas que também possam relatar o ocorrido.” Monitoramento das Audiências de Custódia em São Paulo, IDDD, 2016.
14. “Pesquisas mostram que a maior parte dos presos por tráfico: a.não tem antecedentes criminais b.foi indiciada apenas com base no relato de policiais c.não conta com advogado no momento em que é apresentada na delegacia.” Lei de Drogas: a distinção entre usuário e traficante, o impacto nas prisões e o debate no país, Nexo Jornal, 14.01.2017. 15. “A marca característica da Defesa no processo penal está exatamente em particular do procedimento, perseguindo a tutela de um interesse que necessita ser o oposto daquele a princípio consignado à acusação, sob pena de o processo converter-se em instrumento de manipulação política de pessoas e situações.” PRADO, Geraldo. Sistema acusatório. Rio de Janeiro, 2005, p. 121. 16. “Portanto, os depoimentos prestados pelos policiais militares Pablo Vinicius Cabral e Victor Hugo Lago neste Juízo, que efetuaram a prisão em flagrante do réu RAFAEL BRAGA VIEIRA e arrecadaram o material entorpecente em poder do mesmo, depoimentos estes corroborados pelas declarações das testemunhas Farley Alves de Figueiredo e Fernando de Souza Pimentel, policiais que também participaram da operação policial que resultou na prisão do acusado, fazem prova robusta em desfavor do acusado em aponta-lo como autor do crime narrado na denúncia.” Caso Rafael Braga – Processo 0008566-71.2016.8.19.0001, Sentença, p. 373. 17. “Registre-se que a localidade em que se deu a apreensão do material entorpecente de fls. 12 e 13 (vide laudo de exame entorpecente às fls. 99/100), mas precisamente na região conhecida como ‘sem terra’, no interior da Comunidade Vila Cruzeiro, no Bairro da Penha, nesta cidade, é dominada pela facção criminosa ‘Comando Vermelho’, conhecida organização criminosa voltada a
narcotraficância.” Caso Rafael Braga – Processo 0008566-71.2016.8.19.0001, Sentença, p. 360/361. 18. A Lei de Drogas (n. 11.343/2006) aprovada no ano de 2006, despenalizou o usuário de drogas. Para distinção entre o porte para uso próprio e o tráfico diz que “o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.”. Nota-se que esses critérios em sua maioria são subjetivos, sendo de fato objetiva apenas a referência à natureza da substância apreendida, cuja ilicitude é fixada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária. O critério da quantidade, potencialmente objetivo, acabou ficando em aberto, sem indicação clara de parâmetros de distinção, o que gera uma insegurança visível na aplicação da lei. 19. “A nova lei teve impacto direto no aumento da população carcerária brasileira. Em 2006, quando a legislação foi aprovada, os presos por tráfico de drogas representavam 15% do total de pessoas encarceradas no país, enquanto atualmente chega a 28%. No caso das mulheres, o impacto foi ainda maior: em 2005, 49% das condenações que resultaram em mulheres presas eram referentes a crimes de drogas. Em 2014, esse índice chegou a 64% do total.” O despertar da América Latina: uma revisão do novo debate sobre política de drogas, Instituto Igarapé, 2015. 20. “Assim, a legislação de drogas brasileira repete e reforça o grande abismo na resposta penal entre usuários e traficantes. Para estes, mesmo os de pequeno porte ou traficantes-usuários, pertencentes aos estratos mais desfavorecidos da sociedade, a resposta penal é a prisão fechada, agravando ainda mais as terríveis condições das superlotadas e infectas prisões
brasileiras. Em relação aos usuários de drogas, que possuem condições de comprar droga sem traficar, houve despenalização, desde que estes não sejam confundidos com traficantes.” BOITEUX, Luciana. Drogas e cárcere: repressão às drogas, aumento da população penitenciária brasileira e alternativas, Coleção Monografias IBCCrim, 2014. 21. “28% é o percentual de presos por tráfico de drogas em relação ao número total de detentos no Brasil. Entre as mulheres, esse número alcança 64% das presas.” Lei de Drogas: a distinção entre usuário e traficante, o impacto nas prisões e o debate no país, Nexo Jornal, 14.01.2017. 22. “Assim, o sistema brasileiro de controle de drogas atua de forma seletiva e autoritária, pois não limita o poder punitivo, pelo contrário, deixa de estabelecer limites e contornos diferenciadores exatos para as figuras do usuário, do pequeno, médio e grande traficante e atribui às autoridades, no caso concreto, ampla margem de discricionariedade, o que acarreta uma aplicação injusta da lei.” BOITEUX, Luciana. Drogas e cárcere: repressão às drogas, aumento da população penitenciária brasileira e alternativas. Coleção Monografias IBCCrim, 2014. 23. “Do total de presos, 92% são homens, 55% têm até 29 anos e cerca de 62% são negros – enquanto a etnia constitui 53% da população brasileira. Apenas 9,5% concluíram o Ensino Médio, número bem distante da média nacional, que gira em torno de 32%.” Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, Ministério da Justiça, Junho de 2014. 24. “Levantamento do IDDD feito no Centro de Detenção Provisória I de Guarulhos no ano de 2015, em que foram entrevistadas 485 pessoas detidas em flagrante evidenciou que cerca de 42% possuíam renda entre
um e um salário mínimo e meio. Essa mesma pesquisa verificou-se que 58,3% dos presos não possuíam antecedentes criminais.” Liberdade em Foco – Redução do uso abusivo da prisão provisória na cidade de São Paulo, IDDD, 2016. 25. “Ao menos 45% das pessoas encarceradas estão presas por crimes sem violência, sendo 28% por tráfico e 13% por furto. Outros dados evidenciam a irrelevância de crimes que muitas vezes deram origem à privação da liberdade. Pesquisa realizada na cidade de São Paulo no ano de 2011 observou que 67% dos presos por tráfico de maconha portavam menos de 100 gramas da droga, 57% eram primários e apenas 3% portavam arma de fogo.” Prisão Provisória e Lei de Drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo, Núcleo de Estudos da Violência, 2011. 26. “(...) dependentes químicos, imigrantes e jovens subproletários são, em número crescente, os destinatários principais da reclusão, por causa do aumento da desocupação, de pobreza, da simultânea crise do Estado do bem-estar e de suas prestações assistenciais e, por outro lado, da crescente onda repressiva que anima a opinião pública mobilizada contra os fracos e diferentes. Contra esses a justiça penal é extraordinariamente rápida e eficiente.” ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. São Paulo, 2007, p. 34. 27. “O sistema penal opera, pois, em forma de filtro para acabar selecionando tais pessoas. Cada uma delas se acha em um certo estado de vulnerabilidade ao poder punitivo que depende de sua correspondência com um estereótipo criminal: o estado de vulnerabilidade será mais alto ou mais baixo consoante a correspondência com o estereótipo for maior ou menor.” ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA,
Nilo. Direito Penal Brasileiro - I. Rio de Janeiro, 2003, p. 49. 28. No processo em que se apurou a prática de tráfico de entorpecentes, o policial militar Pablo Vinícius Cabral alegou, conforme consta do boletim de ocorrência, que, antes de ser conduzido ao 22º Distrito Policial, Rafael havia sido levado, no compartimento de presos da viatura, à sede da UPP local. O policial Victor Hugo Lago, em contradição ao que afirmara Pablo, consignou que Rafael foi conduzido diretamente à delegacia no banco de trás do automóvel. A relevância dessas contradições reside no fato de que Rafael alega ter sido agredido e ameaçado durante a parada da viatura na UPP, confirmada pelo policial Pablo Vinícius e negada pelo policial Victor Hugo. Essa evidente discrepância entre os depoimentos mostra a fragilidade da condenação de Rafael com base exclusivamente na palavra dos policiais. Segundo a teoria criminológica do Etiquetamento Social, os conceitos de crime e criminoso são o resultado de uma construção social, consistente na soma do que está legalmente definido e das ações das instâncias estatais responsáveis pelo controle social. Nesse contexto, o comportamento criminoso é aquele etiquetado como tal, pertencente a indivíduos que a sociedade entende como delinquentes. Rafael (preto, pobre e egresso do sistema prisional) faz parte do círculo social de etiquetados. A utilização da tornozeleira eletrônica por si é elemento que o marca de mais uma pecha. 29. “Em pesquisa realizada em 2015, na qual o IDDD compilou dados de 588 audiências de custódia (apresentação do preso a um juiz em até 24 horas após sua prisão em flagrante para que se verifique a legalidade e a necessidade da prisão provisória) realizadas na cidade de São Paulo, em 24% dos casos os presos relataram ter sofrido algum tipo de violência durante a abordagem policial.”
IDDD, 2016. 30. “No levantamento feito pelo IDDD no Centro de Detenção Provisória I de Guarulhos em 2015, que atendeu 410 pessoas presas, constatou-se que em 48,5% das prisões houve algum tipo de violência policial. Na maior parte desses casos, a violência foi atribuída à Polícia Militar.” IDDD, 2016. 31. “Seja para transformar um indivíduo em suspeito ou para encobrir a autoria de uma execução, tem-se disseminado entre as polícias o uso do “kit flagrante”. Esse kit consiste em armas e/ou uma considerável quantidade de drogas que os policiais carregam consigo nas viaturas.” Artista afirma ter sido torturado pela PM de SP por ter passagem pela polícia, Ponte, 19.04.2017. 32. “Um levantamento feito pelo jornal EL PAÍS nas Justiça Militar e no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, mostra que de 2008 a 2014 ao menos 23 casos de fraudes processuais durante um homicídio cometido por PMs foram analisados pelo Judiciário. Destes, 21 acabaram em condenações de policiais militares que fingiram tiroteios para justificar assassinatos.” As armações da polícia que mata, El País, 08.02.2015. 33. “A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo não se manifestou especificamente sobre essa prática ilegal [kit flagrante] de seus policiais. Informou apenas que em quatro anos demitiu 1.771 policiais que cometeram abusos de maneira geral.” As armações da polícia que mata, El País, 08.02.2015. 34. “Art. 5º, XLIII, dispôs que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitálos, se omitirem.”
Constituição Federal de 1988 35. “Pesquisa lançada em 2016 sobre violência policial no estado do Rio de Janeiro destaca a institucionalização do uso da tortura pela corporação como forma de obter confissões e também de punição, o que transforma a prática em uma política de segurança pública local. De acordo com esse mesmo levantamento, de 2005 a 2015 a polícia do Rio de Janeiro matou mais de 8.000 pessoas. Em 2015, para cada policial morto em serviço no estado, a polícia matou 24,8 pessoas, mais que o dobro do que na África do Sul e três vezes a média dos EUA.” Relatório Mundial 2016: Brasil, Human Rights Watch, 2016. 36. A superlotação dos presídios e as condições desumanas desses locais fomentam um cotidiano de violência. Apenas nos primeiros quinze dias de 2017, 133 pessoas foram mortas em rebeliões que aconteceram em unidades prisionais do país. No dia 2, mais de 56 presos foram mortos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Manaus, AM), 30 foram decapitados. No dia seguinte, mais 4, em outra unidade prisional de Manaus (Unidade Prisional do Puraquequara). Dia 4, 2 mortos na Penitenciária Padrão Romero Nóbrega, em Patos, no sertão da Paraíba. Dois dias depois, em 6 de janeiro, mais 33 pessoas foram mortas na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo (Boa Vista, RO). No início da segunda semana do ano, no domingo, dia 8, outros 4 mortos na Cadeia Pública Desembargador Raimundo Vidal Pessoa, no centro de Manaus. Dia 12, mais 4 mortos: dois na Casa de Custódia de Maceió (AL) e 2 na Penitenciária de Tupi Paulista, no interior do estado de São Paulo. No dia 14, sábado, 26 presos mortos na Penitenciária de Alcaçuz (Nísia Floresta, RN). No mesmo dia, 2 detentos foram mortos em unidades prisionais de Santa Catarina, um na Penitenciária de São Pedro de Alcântara e outro na Penitenciária Industrial de Blumenau. Ainda em 14 de janeiro, mais 2 mortos no Complexo Penitenciário de Piraquara,
na região metropolitana de Curitiba (PR). Para além da guerra de facções, apresentada pelo Poder Executivo como justificativa dessas mortes, em todos os casos há em comum a superlotação e as condições subhumanas desses presídios. Mortes em presídios do país em 2017 já superam o massacre do Carandiru, G1, 16.01.2017. 37. “Em um intervalo de menos de 25 anos, saltamos de noventa mil pessoas encarceradas no início da década de noventa para mais de seiscentos mil.” “Hoje, o Brasil ocupa o posto de 4ª maior população carcerária do mundo, atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia. No entanto, ao passo que esses países vêm diminuindo suas taxas de encarceramento, o Brasil segue o sentido oposto, acrescentando, em média, 7% ao ano sua população prisional. Isso leva para uma perspectiva de terceiro lugar no próximo ano.” Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, Ministério da Justiça, Junho de 2014. 38. “Ao passo em que há cerca de 622 mil pessoas encarceradas no Brasil, existem apenas 372 mil vagas no sistema prisional, o que significa um déficit de cerca de 250 mil vagas, resultando em calamitosa superlotação. Mesmo um aumento de 80% no número de vagas nas unidades prisionais nos últimos 10 anos (2004-2014) não foi suficiente para acompanhar a expansão do usos do cárcere pelo sistema de Justiça como punição para todos os tipos de crimes cometidos no país.” Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, Ministério da Justiça, Junho de 2014. 39. Em 10 anos (2004-2014), o país testemunhou um crescimento de 72% de sua população carcerária, ao passo que a população brasileira apresentou crescimento de 10% no mesmo período. 40. “Apesar do vertiginoso crescimento da população carcerária nos últimos
anos, não há redução no número de mortes violentas intencionais no país, que aumentou 19% entre 2011 e 2014. Portanto, não há ganhos com a atual política criminar, que crê na punição por meio da prisão como solução para os problemas de segurança pública.” Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, Ministério da Justiça, Junho de 2014. 41. “Existem cerca de 622 mil pessoas encarceradas no Brasil, o que configura uma taxa de mais de 300 presos para cada 100 mil habitantes, enquanto a taxa mundial de aprisionamento situa-se no patamar de 144 presos por 100.000 habitantes.” ICPS - International Centre for Prison Studies 42. “O cárcere tem reforçado mecanismos de reprodução de um ciclo vicioso de violência que, como padrão, envolve a vulnerabilidade, o crime, a prisão e a reincidência e, por vezes, serve de combustível para facções criminosas.” Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, Ministério da Justiça, Junho de 2014.
2017
PAULO MIYADA Julho 2017
É preciso confrontar as idéias vagas com as imagens claras. Jean-Luc Godard. La Chinoise, 1967.
1. QUANDO Nos idos de 2013, o artista Pedro França e eu tínhamos vontade de fazer uma revista de crítica de arte. Não foi para frente, mas se fosse iria se chamar “2017”. Depois das manifestações de junho daquele ano e com a iminência da Copa do Mundo no Brasil e das Olimpíadas no Rio, achávamos que um bom princípio para um projeto de crítica seria trazer, já em seu nome, uma alusão ao que viria depois da euforia – e parecia que 2017 seria a maior quarta-feira de cinzas na história do país. Só não dava para prever que seria tanto. Tanto. Tínhamos em mente o tipo de ressaca que sempre se seguiu aos ciclos desenvolvimentistas brasileiros e não a completa falência da legitimidade das instituições democráticas, paradoxalmente acompanhada por profunda desagregação social e política da população. Chegamos a 2017, passamos sua quarta-feira de cinzas e, para ficar com apenas um exemplo, vimos uma presidente eleita ser deposta, e seu vice, agora presidente, permanecer sob constante ameaça em razão de gravíssimas denúncias de corrupção, enquanto o candidato derrotado no segundo turno também acumula processos e acusações nada republicanas. É 2017 e o meio artístico, assim como quase
todos os campos da vida social, apresenta sinais de cansaço e desorientação – e não apenas no que se refere às dinâmicas de mercado que ecoam a estagnação econômica geral. A própria capacidade de artistas, obras e exposições refletirem criticamente sobre o mundo em que se inserem parece comprometida pela incapacidade do meio em promover debates amplos, continuados e coerentes entre seus agentes e deles com outros campos da sociedade. As notícias que chegam a ser publicadas já bastariam para chocar qualquer cidadão, embora se concentrem no teatro caricato das instituições democráticas e nos abstratos números da macroeconomia, sem passar perto da realidade da maioria da população, para quem a democracia e o estado de direito no Brasil nunca foram muito mais do que uma ficção. Enquanto isso, parte significativa do meio artístico se debate entre a defesa de interesses corporativos e preocupações individuais, longe, muito longe, de alcançar ressonância com o seu tempo. 2. ONDE O Instituto Tomie Ohtake foi fundado em 2001, apresentando-se como um centro cultural de interesse
público e sem fins lucrativos. Seu foco é a produção artística do pós-guerras, com um escopo que abrange artes visuais, arquitetura e design, nacionais e internacionais. Mantido majoritariamente por patrocínios atrelados a leis de incentivo fiscal, promove uma programação abrangente, tendo como plataforma principal a realização de exposições temporárias e como programas contínuos a produção editorial e as atividades de difusão, educação, engajamento e participação de públicos diversos. Nos últimos 5 anos, o posicionamento do Instituto em relação à cidade de São Paulo ganhou novos contornos. Por um lado, uma série de exposições de grande visitação mudou a sua visibilidade na metrópole, fazendo que seu público médio saltasse da casa dos 400 mil para mais de 1 milhão de visitantes por ano. Por outro lado, a reformulação de seu Setor Educativo, agora chamado Núcleo de Cultura e Participação, manifesta o forte interesse da instituição em abordar a noção de acessibilidade de modo amplo, abrindo novos canais de troca e comunicação com grupos sociais usualmente distantes das instituições culturais paulistanas. Esses dois processos levaram o Instituto a repensar seus modelos e sua curadoria a compreender que este espaço não se restringe a dialogar apenas com as dinâmicas dos agentes do meio (artistas, curadores, galeristas, críticos, colecionadores e gestores), mas engloba também o debate com a sociedade civil, inclusive nas suas esferas supostamente alheias à arte contemporânea. Adentrar 2017 – este 2017 – implicou, para a curadoria do Instituto Tomie Ohtake, questionar-se sobre como aproximar potenciais, dúvidas e desejos do meio artístico com aqueles de uma sociedade a tal ponto assoberbada por suas crises, desmanches e escândalos que parece incapaz de pensar reflexivamente a sua miséria. 3. O QUÊ Um levantamento rápido dos textos curatoriais de exposições coletivas de arte contemporânea produzidas no Brasil nos últimos anos atesta a orientação geral do meio quando confrontado com as urgências evocadas acima. O programa-modelo que temos seguido é propor argumentos curatoriais
amplos que apontem o estado insatisfatório do mundo e convocar uma série de artistas cuja produção estética possua articulação discursiva e crítica; cada artista, então, ilumina uma causa ou impasse, e uma exposição se tece como uma teia de problematizações reunidas sob um teto comum. Inúmeras exposições foram feitas segundo variações desse modelo, categorizado genericamente pela mídia como “arte e política”. Algumas delas foram exposições fundamentais,1 que merecem residir na história recente da arte no país. O problema é que, como todo modelo que se torna hegemônico, esse também transparece sinais de desgaste. Primeiro, a recorrência do modelo denota o quanto a adoção de propostas curatoriais amplas, que operam como guarda-chuva para um leque de questões sociais, pode servir também como escudo para a instituição propositora da mostra, que tem a opção de blindar-se do conteúdo debatido pelos artistas – quase como um veículo de mídia que avisa seus leitores que não se responsabiliza pela opinião de seus articulistas. A abrangência temática, também, por vezes confunde o público, que apreende a atitude contestadora geral, mas se perde em meio à cacofonia de pautas, em processo similar ao que se vive frente ao espetáculo das urgências alardeadas na era das redes sociais. Por fim, percebe-se o crescente incômodo do próprio meio com a disparidade entre o tom crítico das obras destacadas em tais exposições e a baixa mobilização social de muitos de seus agentes, em geral interrompida apenas quando diante de pautas que afetam diretamente o sistema da arte, como o fechamento abrupto do Ministério da Cultura2 que se seguiu ao impeachment de Dilma Rousseff. Por tudo isso, percebendo a limitação do modelo vigente de convergência entre arte e política, cogitamos a possibilidade de inverter certos processos e parâmetros. Outros limites e contradições iriam naturalmente se impor, mas ao menos ativariam diferentes interlocutores, modos de expor, atitudes políticas, estéticas e éticas. A premissa tornou-se organizar uma mostra em que o parâmetro crítico e a causa em debate estivessem em evidência e explicitados desde o princípio, no próprio título da mostra; na qual os artistas participassem antes de tudo como cidadãos que assinam um chamado social;
em que setores da sociedade fossem convocados a colaborar tanto para viabilizar quanto para dar profundidade à iniciativa; em que as obras não precisassem concentrar toda a função discursiva do projeto e pudessem se apresentar como gestos condensados – gritos sem preâmbulo, navalhas sem cabo, pontuações sem sentença, sínteses sem reportagem: ossos. 4. QUEM (1) De volta ao problema da desagregação social e da dificuldade de mobilização do meio artístico e cultural, decidimos colocar em evidência uma questão que destoa das pautas que já recebem maior atenção das classes sociais que usualmente frequentam os espaços de difusão da arte contemporânea. Ao invés de insistir sobre os assuntos que já ocupam as manchetes dos jornais escritos e lidos por essas mesmas classes, escolhemos falar de Rafael Braga e fazer um apelo a seu amplo direito de defesa. Assim, tentar conclamar atenção e pressão social sobre instituições judiciais, célebres por sua histórica relutância em rever condutas e valores, mesmo quando contradizem a igualdade de direitos em todos os estratos da sociedade. O caso de Rafael Braga é urgente porque, apesar de todos os protestos até aqui já realizados,3 ele permanece condenado a mais de 11 anos de prisão. Além disso, como está dito de muitas formas ao longo desta publicação, o mais perverso em sua história é a forma como suas condenações se retroalimentam e confirmam o preconceito incutido no sistema criminal brasileiro. A primeira condenação choca pelo absurdo que singulariza sua prisão por porte de desinfetantes em recipientes plásticos, a segunda pela insistência com que todas as instâncias do sistema presumem que Rafael, por sua cor, por sua classe e por seu bairro, não pode ser outra coisa senão culpado – e nesse sentido iguala sua condição à de milhares de outros jovens negros hoje encarcerados por flagrante de porte de pequenas quantidades de drogas, sem nenhuma testemunha que não os policiais. Portanto, sua causa é urgente porque implica uma vida que está sendo devorada pelo encarceramento e, também, porque representa, por metonímia, a realidade da população negra do país em sua condição de
subcidadania típica dos regimes em estado de exceção. Mas, conforme começamos a falar sobre Rafael Braga e as assimetrias da justiça brasileira tornou-se gritante para nós mesmos o quanto nos falta – no campo institucional da arte – informação, vocabulário e vivência. A primeira atitude foi decidir que o “nós” a alavancar esta iniciativa não poderia restringir-se ao Instituto Tomie Ohtake e suas várias equipes. Era preciso trabalhar em parceria com uma parcela da sociedade civil que tivesse uma história de pesquisa e engajamento nesses assuntos. O Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) foi o primeiro órgão dessa natureza a ser contatado, e prontamente respondeu ao convite. Também ali estava latente a sensação de que novas plataformas de ação e diálogo precisam ser abertas, complementares aos modelos já consolidados (naquele caso, de diligente insistência junto às instituições do sistema criminal) – de preferência intensificando o contato com os públicos pouco familiarizados ao jargão jurídico. O IDDD trouxe conceitos, dados e discursos fundamentais para o amadurecimento do debate. Decidiu-se desde o princípio que haveria uma sala na exposição em que o caso de Rafael Braga seria discutido com clareza, acompanhado de informações abrangentes sobre o sistema criminal brasileiro e problematizado como parte de um contexto estruturalmente perverso. O próximo passo seria conversar com os artistas. 5. QUEM (2) No texto curatorial, editado a partir da cartaconvite para os artistas, está a frase: “Existem tantos jeitos de fazer uma exposição assim, existem tantos jeitos de não a fazer”. O processo de articulações que tornou OSSO possível foi a demonstração prática de tal hesitação. A cada nova conversa, poderia vir a primeiro plano um impedimento incontornável, alguma contradição que colocaria em xeque toda a premissa do projeto. Antes mesmo de falar dos convites aos artistas, é preciso acrescentar algo sobre as discussões internas ao Instituto Tomie Ohtake. Por ser uma organização privada, o Instituto Tomie Ohtake possui alguma autonomia de decisão sobre sua programação, autonomia que tem como
contrapeso a necessidade constante de agir em parceria com as esferas pública e privada, coadunadas por meio das leis de incentivo fiscal. Assim, há liberdade, mas também incerteza. Os limites acabam sendo, por um lado, a capacidade do Instituto em viabilizar suas iniciativas e, por outro, o interesse dos públicos em acolher tal ou qual programação. Na prática, isso significa que uma exposição-apelo ao amplo direito de Rafael Braga só é possível porque, antes de tudo, a diretoria, com Ricardo Ohtake à frente, assumiu o risco de atuar de forma razoavelmente singular na presente cena das instituições artísticas brasileiras. Aos 74 anos, Ricardo Ohtake carrega um largo histórico de luta e resistência, tendo por muitas vezes encampado – de dentro de instituições e órgãos ligados à cultura – iniciativas contrárias a toda forma de tirania, censura e tortura. Foi, por isso, um interlocutor absolutamente comprometido com a premissa de abrir o Instituto a esta iniciativa. Mais ainda, acompanhou todas as suas etapas com a preocupação de que transparecessem máxima responsabilidade, coerência e precisão ética e estética. Ao seu redor, todos os departamentos (especialmente a Produção) criaram uma frente de trabalho intenso e desburocratizado, exercitando a flexibilidade de uma instituição que combina projetos de escalas e escopos muito diversos. Antes mesmo desse estágio, o Núcleo de Pesquisa e Curadoria, composto por Carolina de Angelis, Luise Malmaceda, Priscyla Gomes e Theo Monteiro, exerceu papel central para o amadurecimento da proposta. Foram as conversas preparatórias da edição “QAP: Tá na escuta?” do Festival Arte Atual4 que serviram de laboratório para o amadurecimento deste projeto. OSSO começou a ganhar contornos enquanto discutíamos a capacidade da arte – artistas e públicos – de efetivamente atuar como escuta do outro em uma era de ruído, desinformação e polarização. Além disso, todos atuaram na pesquisa junto ao IDDD e na proposição de debates e programas públicos. Finalmente, o Núcleo de Cultura e Participação, por liderar diversas iniciativas de aproximação entre o Instituto e públicos diretamente implicados com temas que perpassam a exposição – tais como jovens em medidas socioeducativas e pessoas em situação de rua –, teria papel fundamental para impulsionar o projeto ou colocá-lo em questão. Além do apoio
imediato de Felipe Arruda, diretor do Núcleo, foi significativa a adesão de Victor Santos, Luis Soares e todos os demais profissionais, educadores e produtores da área com experiência em projetos socioculturais, que não só contribuíram com ideias, como mobilizaram suas redes para criar a programação de eventos e debates também resumida nesta publicação. Esses eventos são a prova dos nove do OSSO, o corpo a corpo com seu público essencial. 6. QUEM (3) Sem os artistas, não haveria todo o capital simbólico, estético e poético que se pretendia mobilizar a favor de Rafael Braga no contexto do Instituto Tomie Ohtake. Mas quais artistas chamar? Obviamente, deveriam ser artistas que pudessem aderir à iniciativa de forma consciente e ativa. Também deveriam ser artistas cuja obra pode convergir com a noção de obra-atitude, osso, adotada como norte estético e sobre a qual se falará mais detidamente a partir do próximo tópico. Nos e-mails que introduziam a já referida cartaconvite aos artistas, apareceu por diversas vezes a frase “te convido por acreditar que poderá haver ressonância dos argumentos apresentados na carta com a sua pessoa e que haverá ressonância de seu trabalho com o público”. A sentença resume a lógica básica dos convites curatoriais para a participação em OSSO. Retrospectivamente, é possível dizer que essa lógica fez três perfis de artistas acabarem tornandose recorrentes no grupo de convidados. Há artistas que constituem uma espécie de genealogia das “obras-atitude” na história da arte contemporânea brasileira, tais como Cildo Meireles, Paulo Bruscky, Anna Maria Maiolino, Carmela Gross, Iran do Espírito Santo e Fernanda Gomes – muitos deles, mas não todos, ocupam também lugar de destaque na história das convergências entre arte e política. Há também artistas cuja vida e obra são indissociáveis do embate com a realidade atual e histórica da população negra no Brasil, tais como Rosana Paulino, Paulo Nazareth, Jaime Lauriano, Dalton Paula, Moisés Patrício e outros para quem, parafraseando a escritora Cidinha da Silva no debate promovido por OSSO, o papel de artista negro se dá quase que imediatamente
associado ao pensamento crítico e à atitude ativista. Há, por fim, artistas jovens cuja obra debate constantemente os recursos acessíveis para a arte comprometida em transformar a realidade ou, pelo menos, desestabilizar a inércia de suas estruturas; entre esses estão Graziela Kunsch, Vitor Cesar, Clara Ianni e Raphael Escobar. Todos os convidados aceitaram participar – alguns imediatamente, outros após algumas conversas de esclarecimento. Sem garantias sobre os efeitos que tal iniciativa poderia provocar ao redor do mundo, os artistas todos decidiram colocar seu nome, sua obra e sua energia em favor da causa proposta. Alguns dos artistas foram convidados tendo em vista, desde o princípio, mostrarem uma obra específica; outros decidiram que obra apresentar durante as conversas com a curadoria, e um terço deles preferiram produzir novas peças para a exposição. 7. OBRAS-ATITUDE (1) O título OSSO, antes mesmo das inevitáveis associações à crueza da realidade em que uma enorme parcela da população – negra, pobre e/ou periférica – vive privada de seus direitos fundamentais, refere-se à procura pelo fundamento dos gestos estéticos, poéticos e políticos. Neste contexto, isso se manifesta pela opção de evitar a figuração de Rafael Braga, a fetichização da imagem de seu corpo, dos signos-chave associados à sua história (o frasco de desinfetante Pinho Sol) e das cenas de violência usualmente veiculadas pela mídia que se propõe a abordar os assuntos de polícia, crime e justiça. Tal escolha afasta o projeto de certas contradições recorrentes na abordagem desses assuntos no campo da arte, a saber: o consumo exotizante da imagem do outro, o prazer perverso diante das tragédias alheias, o sensacionalismo inerente às coberturas das guerras. O inferno das boas intenções concretizadas no sensual campo da imagem. Por consequência, porém, coloca-se em jogo todo um outro grupo de fragilidades e armadilhas. No país que produziu textos como A estética da fome (1965) de Glauber Rocha, poemas como Uma faca só lâmina (1955) de João Cabral de Melo Neto, livros como Quarto de despejo (1960) de Carolina Maria de
Jesus, obras como B33 Bólide Caixa 18 “Homenagem a Cara de Cavalo” (1965) de Hélio Oiticica, vídeos como Y (1974) de Anna Maria Maiolino e exposições-protesto como o Nadaísmo (1974) de Paulo Bruscky, haveria muitas maneiras de começar a discutir como e por que a arte pode ser feita de muito pouco, existir quase na invisibilidade e nascer do precário. Não porque ela é uma legitimação da miséria da vida humana, mas sim porque ela pode lembrar (gritar) que a vida não deve ser apenas isso, que algo resiste e subsiste à barbárie. Mas peço licença para começar por uma referência mais distante geograficamente, embora ancorada na mesma época da gênese desses exemplos. Em agosto de 1967, Jean-Luc Godard lançou o filme La Chinoise sobre um grupo de jovens estudantes que aproveitaram a viagem de férias dos pais de uma garota para transformar seu apartamento em uma célula revolucionária maoísta. Articulando procedimentos gráficos e audiovisuais desenvolvidos por Godard ao longo da década com informações e ideias dos próprios atores participantes – entre eles Anne Wiazemsky (Véronique) –, o filme oscila entre uma homenagem inflamada e uma paródia irônica do engajamento estudantil que culminaria menos de um ano depois nos acontecimentos de Maio de 1968. Numa das paredes do apartamento, aparece uma frase-síntese da visão política engendrada no filme: É PRECISO CONFRONTAR AS IDEIAS VAGAS COM AS IMAGENS CLARAS. Sucinta, deixa claro o incômodo do cineasta com os jargões e palavras de ordem acumulados pela esquerda francesa e que, interpretados de maneira vaga por seus defensores, acabavam falhando em dar forma a projetos claros, política e esteticamente. Críticas como essa geraram protestos entre diversos grupos da esquerda que, após a estreia do filme, não tardaram em taxar Godard como conservador. Ainda assim, os desdobramentos de Maio de 68, ou melhor, a sua relativa falta de desdobramentos, reiteraram em parte a precisão de seu comentário, que hoje pode ser colocado lado a lado com o desabafo de Caetano Veloso em sua célebre (não) interpretação de É proibido proibir em 15 de setembro de 1968, no terceiro Festival Internacional da Canção.5 Diante das constantes recuperações do repertório da contracultura dos anos 1960 e da procura por formas de engajamento que lidem com o enfraquecimento de fóruns tradicionais como os sindicatos, os partidos e os diretórios estudantis, parece pertinente retomar a frase
pintada no apartamento de Véronique. No entanto, justamente pela constante inversão de significado que muitos dos motes daquela geração sofreram através da captura midiática por canais responsáveis pela reafirmação do desejo de consumo, espetáculo e manutenção da ordem atual, convém revisar a frase de 1967. Repetir o confronto das ideias vagas pelas imagens claras poderia muito bem ser o slogan de uma propaganda de energéticos ou de roupas esportivas, uma vez que hoje são alardeadas como “claras” as imagens geradas em alta definição, cores saturadas e passíveis de serem vistas em 3D, em transmissão simultânea. O problema é que essas são imagens, embora nítidas, opacas enquanto artefatos ideológicos. Oscilantes, elas se oferecem como cristais refratores que espelham distintos contornos a cada momento para cada observador. Sua suposta transparência e nitidez disfarçam inúmeras decisões dissociadas da sua superfície visível. Por isso, caberia hoje propor uma inversão que pode ser fundamental para a articulação da arte com a política: É PRECISO CONFRONTAR AS IMAGENS VAGAS COM OS GESTOS CLAROS.6 Esse foi o a priori poético para a convocação de obras-atitude, no sentido dos gestos claros, em que as obras transparecem o modo como foram feitas, possuem materialidade concentrada, nenhum ornamento, nenhum disfarce – e apresentam-se diretamente, sem prólogo, preâmbulo ou capitulação. 8. OBRAS-ATITUDE (2) A procura por obras-atitude acabou se concentrando em três tendências que viriam a conviver na exposição. Conforme o projeto se desenrolava, amadureciam os potenciais de uma hipótese que havia sido lançada para ser desenvolvida pelo diálogo com os artistas e subsequente confrontação com os públicos. A primeira tendência a se consolidar, pois já se delineava desde o princípio do projeto, foi a de obras que colocam em primeiro plano sua condição de existência limiar, quer dizer, que chamam atenção para o fato de que decorrem de um gesto tão pontual sobre tão pouca matéria que poderiam nem existir ou nem serem reconhecidas como arte.7 Esses são trabalhos
afinados com a forma e a mensagem do poema Uma faca só lâmina, de João Cabral de Melo Neto. São, também, alguns dos mais radicais experimentos nas linguagens da arte contemporânea brasileira, que arriscaram levar ao limite a capacidade de expansão semântica de exíguos materiais por sutis ações criativas. Se quisermos usar o termo cunhado por Marcel Duchamp, podemos dizer que são obras quase sem coeficiente artístico. E, se quisermos posicionar o debate no esquema da história da arte nacional, podese dizer que esses exemplos comprovam que, no avesso do barroco brasileiro, existe uma tradição poética cuja premissa se compara à especulação física sobre o exponencial potencial energético das reações nucleares das menores quantidades de matéria.8 Em paralelo, cresceu o conjunto de obras que entendem a clareza do gesto como um convite à concentração de um grito agudo, afirmação afiada e precisa que visa o cerne dos problemas, sem se desviar em detalhes anedóticos ou introduções teóricas. As obras de Graziela Kunsch, Rosana Paulino, Raphael Escobar e Paulo Nazareth constituem o núcleo desse conjunto e – por isso mesmo – ocupam a parte da exposição que faz a transição para a sala de documentos. Trata-se de obras feitas especialmente para a exposição.9 No caso de Kunsch e Paulino, vale mencionar que havia sugestões de remontagem de obras existentes, nesse contexto (Formigas, 1999 e Casulos, 2001, respectivamente), mas elas preferiram realizar obras novas com sentenças precisas e complementares: “O RACISMO É ESTRUTURAL” e “A PERMANÊNCIA DAS ESTRUTURAS”. A especificidade e a clareza desses trabalhos imantam-nos de uma força tal que eles são capazes de aprofundar o sentido da exposição como um todo. São ideias precisas manifestas em obras-atitude. Um terceiro grupo de obras surgiu de modo inesperado e, para a curadoria, tornou-se apreensível apenas quando a exposição estava pronta para receber o público. São obras que desviam da materialidade mínima ou do discurso condensado para focar-se na representação de relações de noções de presença e ausência de corpos: o corpo de Rafael Braga, os corpos dos jovens negros, os corpos dos indígenas, os corpos dos desaparecidos da história e do presente. Dalton Paula, Bené Fonteles, Tiago Gualberto, Jaime Lauriano e Anna Maria Maiolino estão entre os casos mais claros em que a presença da obra reforça a ausência
do corpo. Mesmo quando há figurações, o caráter seco e lacônico das representações as transforma em monumentos transitórios (e dolorosos) dos corpos e vidas reprimidos, quando não suprimidos de modo brutal e cada vez menos velado. 9. ABSTRAÇÃO Em todos os casos, as obras reunidas e organizadas no espaço expositivo apostam na possibilidade de tirar parte de sua força de tudo aquilo que não mostram – além daquilo que não podem ou não querem dizer. Naturalmente, quando contraposto à saturação imagética do tempo presente, isso produz certo estranhamento. Para alguns, aliás, o sentido estrutural das expressões condensadas pelos artistas é lido como eminentemente abstrato, neutro até. Não é disso que se trata, mas tampouco é possível ou desejável regular a percepção estética dos vários públicos alcançados por uma exposição. O que se mostrou possível foi aproveitar a arquitetura do espaço expositivo para que este tivesse dois “finais”, duas pontas a se alternarem de acordo com o sentido da visitação. Em uma delas, na penumbra de uma sala vazia, um foco de luz destaca o minúsculo cubo do Cruzeiro do Sul de Cildo Meireles, expressão limite que pode ser lida como a mais abstrata das obras, ou como a mais abrangente e provocativa síntese dos saberes minoritários do sul geopolítico, traduzidos pela possibilidade de que o encontro das madeiras diminutas produza faísca e, assim, explosão. Na outra ponta da exposição, uma sala de paredes cinza abriga um denso conjunto de documentos organizado em colaboração com o IDDD: são trechos de notícias, compilações estatísticas, verbetes e notas sobre a precarização dos direitos da juventude negra que vive nas periferias das cidades brasileiras. Acima desses documentos, uma carta aberta do IDDD explica passo a passo os procedimentos supostamente legais que levaram à condenação de Rafael Braga a duas sentenças que, somadas, assemelham-se ao encarceramento por homicídio. Assim, enquanto as obras – que almejam o corte da navalha – correm o inevitável risco de serem vistas como assépticos bisturis, a exposição como um todo não pode correr o risco de calar sobre o cerne do problema social que a motiva. Por isso, a contenção
discursiva das obras é contraposta pela veemência da sala de documentação. Na instância seguinte, a exposição cria ocasião para a realização de um programa público que reúne em múltiplas ações dialógicas uma gama de pesquisadores e ativistas diretamente engajados em problemas urgentes que se cruzam constantemente e perpassam o caso de Rafael Braga: encarceramento em massa, seletivismo penal, política de drogas e genocídio negro. Com isso, a visibilidade que o Instituto Tomie Ohtake, o IDDD e os artistas podem trazer para a iniciativa acaba redundando em uma plataforma discursiva a ser ocupada por quem já dedica sua vida a aspectos tão sensíveis da sociedade brasileira. Todas essas parcelas que constituem OSSO não se “encaixam”, como se diz no jargão das escolas de arte sobre iniciativas em que forma, conteúdo, processo e mensagem funcionam como um ciclo sem hiatos perceptíveis. Seria possível esse encaixe? Seria algo que uma curadoria deveria almejar? No caso, arbitrou-se que o melhor era deixar as partes desencaixadas, em atrito, gerando faíscas a serem analisadas, digeridas ou refutadas por seus públicos. 10. USOS PÚBLICOS DAS RAZÕES E DESRAZÕES OSSO é uma proposição que visa convergir esferas públicas diversas e distantes entre si. Acredita que a grandeza da violência que permite existirem as condenações de Rafael Braga – e que, ainda por cima, elas não sejam casos isolados – demanda que todos mobilizem o que fazem melhor. A curadoria, nesse sentido, seria um trabalho de articulação entre esferas artísticas, políticas, sociais e sensíveis num determinado momento e lugar. Sem expectativa ou mesmo intenção de que todas as suas parcelas se aglutinem sem hiatos. Uma dessas parcelas, supostamente mais tradicional, apresenta de forma organizada o discurso crítico fundamentado pela pesquisa, levantamento de dados, atuação de campo e reflexão conjunta. O pivô dessa parcela é o IDDD, que traz uma discursividade objetiva que poderia ser associada ao “uso público da razão” consagrado desde o Iluminismo do século XVIII.10 Noutra parcela, OSSO é chamado social, panfleto, apelo, bandeira grito e/ou protesto. Trata-se da
dimensão do título que coloca em cena o caso de Rafael Braga e seu direito de defesa desde o princípio – recurso banal nas campanhas de justiça social e de ativismo político, mas raríssimo no campo institucional da arte.11 Ao mesmo tempo, é uma reunião de obras que desafiam a precisão e a necessidade dos discursos, obras que – como bem notou a escritora Eliane Brum12 – tentam alcançar o que as palavras parecem não conseguir mais: “produzir marca, memória e acontecimento”. Nessa parcela, é um experimento do sensível e de como nuances de percepção podem emergir frente à obras-atitudes expostas em um contexto tão denso de significações. Finalmente, existe a parcela que configura OSSO como espaço de visibilidade a ser ocupado ainda por outras pessoas: nem os especialistas jurídicos, nem a instituição artística, nem mesmo os artistas, mas sim os ativistas identitária e cotidianamente implicados na realidade dos jovens negros brasileiros. OSSO é um gesto político, como afirmou a editora Fernanda Mena na primeira matéria divulgada sobre o assunto.13 É também um chamado social e uma ação informativa – entre o campo sensível e o discursivo. Como tal, é uma iniciativa parcial, incompleta, sempre faltante dos instrumentos para a transformação concreta que sabe necessária e que só poderá ser alcançada com o crescimento ainda maior do incômodo, da revolta e da disponibilidade para a ação. Dentre os sucessos parciais, do ponto de vista do uso público da razão, estão: a cobertura pela mídia cultural, que acabou alavancando a presença de Rafael Braga em pautas e espaços que de praxe o ignoram; o contato com públicos e agentes sociais usualmente distantes das instituições de arte e cujas vozes precisam ser urgentemente ouvidas; a constatação da disponibilidade de artistas e da sociedade civil para colaboração em tempos de dispersão; o entusiasmo sintetizado por uma parcela dos públicos que, desde a abertura da exposição, tem demonstrado inusual dedicação em manifestar seu engajamento junto às obras e textos reunidos. Listar esses pontos não é uma forma de aplacar culpas e angústias. Antes, é uma maneira de registrar que algo pode acontecer quando há esforço por reunir articuladamente diferentes modos de resistência à onda de barbárie que parece destinada a afogar a todos nós que vivemos em 2017.
POST SCRIPTUM Se o trabalho artístico – que abrange desde a produção de obras até sua difusão e debate no campo cultural – realmente tem um papel a cumprir no mundo contemporâneo, a aposta que me parece mais pertinente é a da arte como mergulho radical na empatia. A persistência e o agravamento das estruturas de exploração e desumanização em uma era de distribuição instantânea de informações de todo tipo têm produzido nos sujeitos uma impressionante capacidade de dessensibilização e bloqueio da empatia. Essa “habilidade” permite a manutenção de certa normalidade cotidiana quando todos os dados disponíveis indicam uma realidade de violência e exclusão sempre renovada. A significação da arte depende, ao contrário, da capacidade de estar junto a alteridades de toda ordem (material, simbólica, afetiva, contextual), e sua insistência em existir pode ser uma ferramenta importante no enfrentamento à anestesia das subjetividades. Notas 1 No Brasil, por exemplo, as edições de número 29, 31 e 32 da Bienal de São Paulo (2010, 2014 e 2016) representam muito bem a amplitude que o modelo pode ter em diferentes conjugações. 2 Em maio de 2016, com o afastamento de Dilma Rousseff e posse de Michel Temer, o Ministério da Cultura foi extinto e incorporado a um novo, chamado de Ministério da Educação e Cultura, passando para o status de Secretaria sob comando de Mendonça Filho. Após tal decisão, manifestações lideradas pela classe artística surgiram em todo o país – prédios da Funarte e sedes do Iphan, por exemplo, foram ocupados – e em premiações de importância internacional, como foi o caso de atores brasileiros no Festival de Cannes. Com tantas reações negativas, o MinC foi restabelecido em 23 de maio de 2016. 3 Desde as manifestações de junho de 2013, o nome de Rafael Braga Vieira está presente nos principais jornais do país, em portais de notícia e naqueles voltados ao movimento e resistência negros. Além das incoerências seguidas nos dois casos que resultaram em seus 11 anos de encarceramento, Rafael Braga representa um caso exemplar entre tantos semelhantes que acontecem todos os dias nas grandes cidades brasileiras. Ao se tornar público, motivou campanhas em prol de alguma resolução justa e pertinente, ou visando amparar a família de Rafael. Em 2015, Liberdade por Rafael Braga foi criada para mobilizar o maior número de pessoas possível e alertar sobre os desdobramentos do caso; mais recentemente, em 2017, 30 dias por Rafael Braga propôs um mês inteiro de programações por toda a cidade de São Paulo que tratassem de outros assuntos a partir do caso de Rafael, como a seletividade penal e a descriminalização das drogas. 4 Exposição realizada entre 5 e 21 de maio de 2017, com os artistas Aleta Valente, Daniel Jablonski, Henrique Cesar, Ícaro Lira/Júlia Coelho, Raquel Nava e Renata Cruz.
5 Criado em 1966 e realizado até 1972 pela TV Globo, o Festival Internacional da Canção era um concurso que pretendia eleger as melhores canções nacionais e internacionais do ano em questão. Em 1968, o protesto contra o regime militar ganhou maior atenção nas músicas e performances dos artistas. Caetano Veloso, acompanhado d’Os Mutantes, apresentaria a canção É proibido proibir. A plateia, entretanto, os recebeu com vaias e, logo nos primeiros segundos, atirou ovos, tomates e pedaços de madeira contra os intérpretes, pois seu título de “tropicalistas” e o uso da guitarra elétrica não eram bem vistos por boa parte do público que ali estava. Caetano, vestido com roupas brilhantes e diversos colares, reagiu com seu agudo discurso: “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado! São a mesma juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada. Hoje não tem Fernando Pessoa. Eu hoje vim dizer aqui que quem teve coragem de assumir a estrutura de festival, não com o medo que o senhor Chico de Assis pediu, mas com a coragem, quem teve essa coragem de assumir essa estrutura e fazê-la explodir foi Gilberto Gil e fui eu. Não foi ninguém, foi Gilberto Gil e fui eu! Vocês estão por fora! Vocês não dão pra entender. Mas que juventude é essa? Que juventude é essa? Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são iguais sabem a quem? São iguais sabem a quem? Tem som no microfone? Vocês são iguais sabem a quem? Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada. E por falar nisso, viva Cacilda Becker! Viva Cacilda Becker! Eu tinha me comprometido a dar esse viva aqui, não tem nada a ver com vocês. O problema é o seguinte: vocês estão querendo policiar a música brasileira. O Maranhão apresentou, este ano, uma música com arranjo de Charleston. Sabem o que foi? Foi a Gabriela do ano passado, que ele não teve coragem de, no ano passado, apresentar por ser americana. Mas eu e Gil já abrimos o caminho. O que é que vocês querem? Eu vim aqui para acabar com isso! Eu quero dizer ao júri: me desclassifique. Eu não tenho nada a ver com isso. Nada a ver com isso. Gilberto Gil. Gilberto Gil está comigo, para nós acabarmos com o festival e com toda a imbecilidade que reina no Brasil. Acabar com tudo isso de uma vez. Nós só entramos no festival para isso. Não é, Gil? Não fingimos aqui que desconhecemos o que seja festival, não. Ninguém nunca ouviu falar assim. Entendeu? Eu só queria dizer isso, baby. Sabe como é? Nós, eu e ele, tivemos coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas. E vocês? Se vocês forem... se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos! Me desclassifiquem junto com o Gil! Junto com ele, tá entendendo? E quanto a vocês... O júri é muito simpático, mas é incompetente. Deus está solto! Fora do tom, sem melodia. Como é, júri? Não acertaram? Qualificaram a melodia de Gilberto Gil? Ficaram por fora. Gil fundiu a cuca de vocês, hein? É assim que eu quero ver. Chega!”. 6 Esse parágrafo e o anterior foram apropriados, com pequenas adaptações, do texto curatorial da exposição É Preciso Confrontar as Imagens Vagas com os Gestos Claros, curada e produzida por mim na Oficina Cultural Oswald de Andrade em 2012, com assistência de Julia Lima e participação dos artistas Bruce Nauman, Carlos Monroy, Clara Ianni, Cleverson Salvaro, Dennis Oppenheim, Douglas Pêgo, Elaine Arruda, Felipe Salem, Francesca Woodman, Gala Berger, Gisela Motta e Leandro Lima, Guilherme Peters, Gustavo Speridião, Guy Veloso, Henrique Cesar, Júlia Rocha, Juliana Moraes, Marcelo Solá, Marcone Moreira, Paulo Bruscky, Pedro França, Theo Craveiro e Vijai Patchineelam. 7 Refiro-me aqui às obras dos artistas citados anteriormente como
aqueles que “constituem uma espécie de genealogia das “obras-atitude” na história da arte contemporânea brasileira”. Por isso a exposição tem início com a Águia (1995) de Carmela Gross e termina com o Cruzeiro do Sul (1969-70) de Cildo Meireles. 8 A analogia talvez soe exagerada, em todo caso é preferível a qualquer alusão ao “minimalismo” das obras, jargão impreciso histórica e esteticamente. 9 No caso do panfleto de Nazareth, trata-se de uma edição produzida para OSSO de um conteúdo que já havia integrado publicação maior. 10 Para uma introdução rápida, consultar o ensaio publicado por Immanuel Kant em um periódico mensal de 1784 em resposta à pergunta Was ist Aufklärung? (O que é o esclarecimento?). KANT, Immanuel. O que é o esclarecimento?, 1789. Trad. Luiz Paulo Rouanet. Disponível em: https://bioetica.catedraunesco.unb.br/wp-content/ uploads/2016/04/Immanuel-Kant-O-que-%C3%A9-esclarecimento. pdf. Kant defendia que todos devem ser incentivados a manifestar seu dissenso crítico, apresentando seus argumentos de forma clara, racional e “publicamente, ou seja, por escrito”. Ponderada e exposta ao público, uma crítica pessoal sobre o funcionamento do Estado poderia ser avaliada por seus interlocutores, que também debateriam o assunto segundo suas especificidades e avaliando a pertinência de mudanças nas regras preexistentes. Caso a crítica comprovasse sua relevância durante seu debate público, ela chegaria ao interesse do rei, para que ele cogitasse sobre as mudanças cabíveis em razão do amadurecimento do pensamento de seu povo. Não há mais Rei e a noção de uso público da razão já foi duramente criticada pelo que tem de elitista, por um lado, e submissa ao poder vigente, por outro. Não obstante, parece sombrio o mundo que despreza e desperdiça todas as plataformas reflexivas criadas como exercício de esferas públicas de pensamento e crítica. 11 Fazer panfleto, ser panfletário, é o que a arte que se pretende diretamente implicada com a política muitas vezes diz não querer fazer. Essa postura resulta de longos e reincidentes debates sobre autonomia artística e compromisso social ao longo dos dois últimos séculos. Por isso mesmo, trazer para o primeiro plano um chamado social explícito em um lugar como o Instituto Tomie Ohtake acaba sendo fator de surpresa, que cria atenção dentro e fora dos circuitos da arte. 12 “O Brasil desassombrado pelas palavras-fantasmas”, El País, jul. 2017. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/07/10/ opinion/1499694080_981744.html. 13 ”Mostra em SP une arte e justiça para debater condenação de catador de lixo”, Folha de S. Paulo, 20 jun. 2017. Disponível em: http:// www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/06/1894260-mostra-em-spune-arte-e-justica-para-debater-condenacao-de-catador-de-lixo.shtml. Essa matéria resultou do interesse de Fernanda Mena, com experiência das áreas de cultura e justiça, e também do preciso trabalho de assessoria de imprensa de Marcy Junqueira, que preferiu reter o release do projeto até que conseguíssemos uma matéria ampla e abrangente que introduzisse OSSO para a sociedade.
Suave coisa nenhuma. Secos e Molhados. Verso de Amor, 1973.
SUZANE JARDIM
No dia 1º de julho de 2017, logo após a abertura de OSSO – exposição-apelo ao amplo direito de defesa de Rafael Braga, uma mesa-redonda foi realizada no intuito de trazer importantes interlocutores para melhor entendimento do caso de Rafael Braga, propor discussões acerca da Justiça, do Direito Penal e do sistema carcerário brasileiro e colocar em pauta questões como o seletivismo penal. Integraram essa conversa Paulo Miyada (curador da mostra), Hugo Leonardo (vice-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD), Cidinha da Silva (escritora, autora do livro #Parem de nos matar!), Geraldo Prado (professor de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) e Suzane Jardim (organizadora da campanha “30 Dias por Rafael Braga”, bacharela em História pela USP e pesquisadora de gênero e dinâmicas raciais). Para este catálogo, foram transcritas as falas de Geraldo Prado e Suzane Jardim e selecionados trechos essenciais desses discursos. Cidinha da Silva, gentilmente, cedeu as crônicas lidas durante sua fala e outras que ajudam a melhor compreensão de seu trabalho e pesquisa. Paulo Miyada e Hugo Leonardo, como idealizadores da exposição, aparecem nesta publicação com um texto-guia e com notas e informações vindas de documentos oficiais obtidos por meio do IDDD.
Falar de vida aqui é importante. Principalmente porque toda esta exposição, este debate, tudo isso que está acontecendo, existe sob a motivação de uma vida que é a vida do Rafael Braga Vieira. Rafael Braga Vieira, filho da dona Adriana – mulher de 45 anos, mãe de sete filhos e que mora com quatro deles. Se não me engano, dois meninos – um de 7 anos e um de 9 anos – e duas meninas – uma de 17 e uma de 20 anos. Ela é responsável por sustentá-los. Moram na Vila Cruzeiro, favela no Rio de Janeiro, mas o Rafael não cresceu lá. Ele nasceu no Rio de Janeiro, mas cresceu e viveu até os 12 anos em Aracaju (SE), quando voltou para o Rio e foi para a Vila Cruzeiro, com a sua mãe e sua família. Os dois irmãos mais velhos do Rafael são casados. Um está em Aracaju agora. O Rafael, pelo que dona Adriana diz, foi o filho que mais a ajudou. Ela, seu companheiro e seus filhos menores juntavam latinhas ali na Vila Cruzeiro enquanto o Rafael Braga fazia essa coleta de latinhas na região da Lapa. Se tem um lugar que tem latinha é lá na Lapa, região de bares e boemia do Rio. Só que o que acontece? Da Lapa para a Vila Cruzeiro, você gasta condução, não é barato. Para vocês, para a maioria aqui, talvez seja. Para a família do Rafael era um dinheiro que importava. No caso, Rafael passava dois, três dias sem voltar para casa e dormia em um pequeno galpão abandonado onde juntava as latinhas
– não sei se alguém aqui já vendeu latinha (eu já), você tem que juntar um número razoável para vender, porque as latinhas valem centavos. E essa era a vida do Rafael Braga até que aconteceram os eventos que todos aqui já conhecem. E por que eu estou falando isso? São vidas. São histórias palpáveis. Eu acho importante a gente falar sobre isso. Eu, Suzane, tive um pouquinho mais de sorte. No sentido de que não cresci e fui criada literalmente numa favela. Eu sou da periferia, de Diadema (SP), e sempre morei em uma casinha de concreto. Só que estudei e vivi o tempo todo cercada pela rotina da favela. A boca era atrás de casa e assim por diante. O caso é que hoje eu fui apresentada aqui como bacharela em História, organizadora da campanha “30 dias por Rafael Braga”. É bonito, parece até importante, mas o ponto é que há 10 anos eu era muito diferente. Não falo disso em público porque é muito pessoal, mas neste momento é importante, pois estamos falando de vidas. Há uns 10 anos eu seria o tipo de pessoa que vocês olhariam e diriam: “Tem que reduzir a maioridade penal, porque uma dessas não tem mais jeito”. Sou adicta em recuperação – já são quase 6 anos totalmente limpa, levando a vida um dia após o outro, como dizem. Quando se está dentro da periferia, não há muitas perspectivas e, sinceramente, fiz muitas
coisas autodestrutivas e condenáveis porque fazer diferente não parecia ter sentido. Era uma ótima aluna na escola pública, mas não via o propósito de ser uma ótima aluna. Eu via as pessoas que saíam do terceiro ano do Ensino Médio, e para onde elas iam? Elas eram quem me atendia na loja de sapato, quem me atendia no açougue e, de certo modo, eu sabia que minha vida ia ser aquilo. Não valia muito a pena. Então vivi o esperado para a situação, a condição material e o local. Não preciso sequer citar as coisas que vi e passei porque por certo cada um de vocês já tem uma noção do que tudo isso acarreta. Engravidei com 17 anos, fui para a escola grávida... um grande clichê. Minha vida é um filmão de gueto norte-americano, incompleto apenas porque em momento nenhum apareceu um professor branco, de olhos azuis, falando “eu vou te salvar” e me mostrando a “importância da leitura” como costuma acontecer nesses filmes. Entretanto, a partir do momento em que engravidei, pensei: agora terei uma criança, não sou só eu, não posso continuar me destruindo. Vou estudar. Vou fazer uma faculdade. Então descobri que existia faculdade de graça, a Universidade de São Paulo. Decidi: “vou fazer USP!”. Nunca ouvi risadas de descrédito tão altas na minha vida. Porém, ao contrário das expectativas gerais, consegui passar no vestibular. Então, lá estava eu – morando na COHAB Teotônio Vilela na Zona Leste, recém-saída da escola pública, com um filho recém-nascido e na USP. E quando comecei a frequentar a universidade... O que era aquilo?! Tinha droga pra todo lado! É sério! Era bizarro! Bizarro porque passei cada inferno em meu bairro devido a repressão às drogas e ao tráfico e não pude não me chocar ao chegar na universidade e ver as pessoas consumindo drogas tranquilamente. Não tinha polícia ali, não tinha nada. Parecia um universo completamente paralelo. Por um minuto pensei: isso é o paraíso! Mas era o paraíso do outro, porque, ali dentro, droga era festa, não era rotina nem medo. E quando as pessoas sabiam que eu era de Diadema, me ofereciam com um tom exótico. Devia ser engraçado para eles. Até que um dia parou de ser engraçado. Muitos dentro da USP já tiveram problemas com drogas e nós sequer imaginamos isso. Foram viajar para se afastar do ambiente, mudaram de curso, entraram em contato com profissionais para tratar a questão. Hoje todo esse passado soa como “farra de adolescência para
eles”. Coisa da juventude. Eu voltei a ter problemas com drogas na universidade, mas eu era a mãe pobre da COHAB, não tinha como fazer uma viagem sabática para me purificar – acabei indo para a rua. Até então, nunca tinha parado seriamente para pensar na questão policial e na questão penal. Eu e meus amigos de bairro estávamos numa atitude autodestrutiva, sabendo que estávamos errados. Não nos víamos como as grandes vítimas do sistema. A gente só normalizava a violência, a falta de perspectivas, e tinha ódio. Muito ódio. A primeira vez que parei para pensar de fato foi quando decidi que queria ser uma boa mãe, sair da rua e viver uma vida tranquila. Foi nesse caminho que encontrei um local que oferecia tratamento gratuito, humano e de qualidade para dependência química – ficava dentro da USP e era fechado para alunos e funcionários da universidade. Foi então que pela primeira vez me peguei pensando: “se eu estivesse em Diadema e não tivesse uma carteirinha deste lugar, talvez eu estivesse na Cracolândia agora”. E lá eu já não seria mais um ser humano. Seria um risco ao outro, um alvo. Morreria ou iria para a cadeia, opções além disso não existiam. Nada ali estava certo, mas eu não tinha tempo para teorizar sobre a injustiça e a desigualdade – eu precisava sobreviver. Segui o tratamento de modo exemplar e estava reerguendo minha vida quando ela quase terminou novamente.... Pela primeira vez, eu tinha um caso na Justiça. E a surpresa geral, na verdade, foi perceber “a sorte” que foi ter ali meu primeiro processo dentro do Direito Penal sem que eu fosse a ré. Sofri uma tentativa de assassinato – na época, não havia a lei de feminicídio, mas esse é o termo que hoje melhor definiria o que ocorreu, assunto que não irei detalhar pois seria me estender demais. Na época era muito óbvio para mim que o cara que fez aquilo comigo seria preso. Pessoas que tentam matar pessoas vão presas, desde que não sejam policiais, correto? Era assim que a gente aprende. Após entrar em coma, passar por cirurgias invasivas, sair do risco de morte e passar meses em uma cama lutando pela minha vida, consegui voltar à rotina tendo hoje dificuldades de locomoção permanentes. Depois de tudo isso, começaram as perguntas sobre meu processo. Percebi que eu era a vítima de uma tentativa de assassinato e não sabia nada do que estava acontecendo sobre. Nunca fui informada, instruída,
aconselhada. Não sabia o número do processo, em que pé ele estava, se eu precisava ou não de um advogado... Ao mesmo tempo, meu caso estampou matérias de jornais dos modos mais invasivos possíveis. Meu nome se tornou de domínio público e passei a receber mensagens de pessoas de todo o Brasil – muitas me julgando e me ofendendo, mas uma maioria de depoimentos de mulheres que tinham casos muito parecidos ou muito piores. Meninas que contaram sobre suas mães mortas pelos maridos e companheiros. Meninas que me contaram de casos de estupro que nunca foram punidos. Meninas que me contaram casos de agressão gravíssima em que foram consideradas culpadas – haviam provocado, homens são assim mesmo, quem mandou questionar? Todas essas mulheres que entraram em contato comigo na época compartilhavam variações da mesma questão: “O cara ainda está solto”; “Não aconteceu nada com ele”; “O cara é meu vizinho e eu não posso denunciar...”. Meu caso não foi diferente. Faz 4 anos desde que tudo aconteceu, e o rapaz que me atacou está solto. E nesses 4 anos eu me senti ré todos os dias, tendo que explicar os porquês de ter saído de casa, dar detalhes sobre minha vida sexual, comprovar que o ocorrido não foi uma consequência do meu passado controverso. Era eu sendo posta à prova todos os dias para tentar mostrar que não mereci quase ser morta. Pela segunda vez na vida me vi questionando a lei e as lógicas punitivas de um modo pessoal. Me perguntava diante de toda a dor e constrangimento: caso ele vá para a cadeia, quanto tempo ele vai ficar? Cinco, 10 anos? Talvez 30? Quem escolheu esse número? O que garante que depois desse número de anos eu vou estar bem? Ou que ele não irá voltar a fazer isso? Toda a premissa não me fazia nenhum sentido. Comecei a pensar sobre a questão da mulher. Por que isso acontece com tantas? Por que esses agressores estão livres e meus amigos de Diadema que vendiam ou foram pegos com maconha estão presos? Por que a gente apanhava da polícia na saída da escola, mas o pessoal da USP podia ser livre para transitar, agir e usar o que bem queriam? Por que minha vida sempre valeu menos? [William Edward Burghardt] Du Bois, autor negro norte-americano, dizia que, para o negro, a democracia foi tirada ao mesmo tempo que foi prometida, na abolição da escravidão. Parei pra pensar em como
se constituiu o país, as nossas regiões. E percebi que o fato de ter entrado na USP, de aquela realidade ser tão bizarra para mim, é porque a gente sempre viveu segregado. Cresci em uma área onde os direitos constitucionais de liberdade, igualdade, segurança e propriedade não chegaram por completo e onde a narrativa democrática não se sustentava. No Brasil, temos que pensar a questão de raça ligada à questão de território. A punição aumenta proporcionalmente conforme aumenta a vigilância. Se a polícia resolvesse reprimir o tráfico frequentando as festas universitárias, seriam os frequentadores dessas festas as pessoas em maioria no cárcere hoje. Mas a prioridade não é essa. A prioridade são territórios demarcados que têm em comum o fato de serem espaços construídos como espaços negros. As favelas surgiram como espaços negros. Quando falamos dos guetos dos Estados Unidos – Brooklyn, Harlem etc. –, os reconhecemos como territórios negros norteamericanos, mesmo sabendo que hoje a composição desses bairros já não é assim tão unicamente negra. Mas não falamos da favela do Moinho ou da extinta favela Naval em Diadema, onde aconteceu aquele massacre em 1997, como territórios negros. Usamos as pessoas brancas que estão lá para mostrar que não, que há diversidade, que a questão é de classe. Mas, historicamente, foram espaços demarcados para serem espaços do negro em um Brasil territorializado racialmente. Um exemplo: vocês lembram do “mendigato” de Curitiba? Aquele rapaz em situação de rua, loiro, de olhos azuis... era um corpo branco fazendo parte de um território que não devia ser dele. As pessoas se chocaram e iniciaram campanhas para tirá-lo de lá. Elas não teriam esse choque diante de pessoas negras na mesma situação por identifica-las com aquele território da rua, da marginalidade, historicamente demarcado para elas. Não importa o quanto um sujeito negro seja esteticamente belo, sua presença em uma via pública não causa comoção. Fica implícito que o lugar dessas pessoas é nas ruas, na marginalidade ou nas prisões. Temos esse imaginário coletivo que acredita que na cadeia só tem assassinos, estupradores – as piores pessoas do mundo. A gente acha que todos lá dentro são psicopatas, sanguinários ou malignos por natureza. Diante disso, se surpreendem: “Como o cara que tentou te matar não está lá, junto com outros
psicopatas como ele?”. Porém, basta ver a composição das prisões. Mais de 50% está lá por furto ou tráfico de drogas. É a guerra as drogas e a proteção ao patrimônio que definem quem as ocupa. A segurança da vida pública não é o foco das nossas prisões. São 11 anos de Lei Maria da Penha, mas também são 11 anos da Lei de Drogas. E depois desses 11 anos é fácil notar qual das duas leis teve de fato impacto na composição do cárcere. Muitas mulheres sequer sabem como procurar a lei para buscar por segurança, muitas outras não encontram segurança na lei, outras mulheres vítimas se tornam rés nas mãos dessas mesmas leis. E nada disso é por acaso. Dentro de todas essas contradições, Rafael Braga acabou se tornando uma abstração que usamos para apontar as falhas da nossa democracia e as falhas da nossa Justiça, ao mesmo tempo que é a imagem material de um inimigo ideológico. E é o inimigo ideológico de todos nós. Porque a gente cresce ouvindo que esse território da periferia e as pessoas que moram lá são moralmente inferiores. Há uma série de estereótipos aplicados a Rafael e a uma grande parte de nossa população. Aprendemos que a pessoa que usa droga não tem controle sobre nada, que se a pessoa está usando droga amanhã vai acordar, ficar muito louca e matar todo mundo. Essa é a narrativa. Esses espaços, esses territórios, são marcados por esses estereótipos, e quando a punição é aplicada nesses sujeitos, vocês não sentem nada porque são eles, não são vocês. É a punição do outro. Pensando nisso e em trajetórias de vidas concretas, resolvemos fazer a campanha “30 dias por Rafael Braga”. A gente quis dialogar com os nossos vizinhos e começou a fazer esse projeto que... foi muito doido! Loucura mesmo, no sentido de megalomania. A gente pediu para usar espaços, chegou nas pessoas com a cara e a coragem para falar: “Por favor, você é PhD no assunto, você tem mestrado, você é do IBCCRIM, você é do ITTC, você é do IDDD, vem falar aqui em Osasco... vai falar em Diadema...”. E foi isso que a gente fez. E tivemos resultados e depoimentos que só reforçaram nossas posições sobre pontos aqui levantados. Estou muito orgulhosa porque conseguimos, sim, trazer algumas pessoas para esse debate, pessoas comuns, como as Suzanes antes da USP que percebiam suas condições sem saber nomeá-las. Percebemos que dentro da esquerda, dentro da
militância, entre pessoas muito esclarecidas, ainda tem muita porcaria sendo dita. As pessoas ainda acham que o Direito Penal é solução para tudo, e que o problema são as falhas na democracia. Mas a democracia que existe foi feita e pensada para ser desse jeito. Ela é para que as pessoas continuem separadas, para que pretos e pobres continuem morrendo enquanto outras pessoas gozam. Ela é assim. O Direito Penal também foi feito para ser desse jeito, para escolher que crime vai levar para a cadeia, quem morre, quem vai ser a vítima que não importa. Nesse sentido, ver agressores de mulheres soltos e outros como Rafael Braga na prisão não é um dado que mostra o erro judicial, mas sim o dado que mostra a função escancarada do Direito Penal, das prisões e dos órgãos de repressão estatais. Pedir por mais cadeias e mais repressões não nos tornará seguros, não protegerá mulheres, não irá me devolver minha saúde e paz, mas por certo irá colaborar para que cada vez mais pessoas como Rafael estejam atrás das grades sem crítica e sem comoção. Eu poderia ter sido Rafael Braga, não o fui por questões de oportunidades e sorte. Hoje sei que por ter um diploma da USP dificilmente estarei nessa posição e creio que muitos aqui, que dividem o privilégio de viver em espaços e com características que os livram de serem Rafael Braga, precisam repensar qual é seu papel na manutenção das lógicas que permitem que casos como o dele aconteçam todos os dias. Foi o que os “30 Dias por Rafael Braga” tentou proporcionar, e é o exercício que deixo para todos que me acompanharam até aqui.
GERALDO PRADO
Minha fala vai ser uma tentativa de aproximação jurídica do que singulariza Rafael Braga e também do que nos mostra como Rafael Braga é um dentre dezenas de milhares de “Rafael Braga”. Homens e mulheres, meninos e idosos, negros e brancos no Brasil. Muito mais negros, muito mais meninos, muito mais da periferia. Inicialmente, gostaria de lembrar de Francis Fukuyama. No final dos anos 1980, declarou o fim da história, absolutamente convencido de que a queda do muro de Berlim dissolvia todos os grandes contrastes ideológicos, dissolvia o sentido de classe, e que, a final de contas, o destino histórico da humanidade se realizaria na figura do mercado. Como todo bom cientista social, ele mostrou um grande descompromisso com a realidade. Os juristas são um tanto assim. Os juristas não têm muito compromisso com a realidade. A realidade para o jurista é um detalhe, porque esse sistema de moer corpos e triturar seres humanos é milenar e só produz, naturalmente, corpos moídos e seres humanos triturados. Os juristas são vendedores de ilusões, porque eles lidam com a maquinaria de produzir sofrimento e a vendem como um instrumento de realização da felicidade. Os juristas têm seus mitos, seus dogmas e suas bíblias, e a própria Constituição, quando interessa, é sagrada. Há uma sacralização da Constituição. Mas
como qualquer produto histórico, ela também reflete determinado estado de forças que pode ser, sim, um estado de forças de imposição de opressão injusta. Essa é grande questão, porque Rafael Braga, um jovem negro, que passou a maior parte de sua vida na periferia do Rio de Janeiro, numa região de favelas onde moram precariamente mais 150 mil pessoas, é capturado e é colocado, literalmente, no centro de um acontecimento histórico que ele próprio não apreende, já que não era o seu papel ali. Ele é dessujeitado, elimina-se o caráter de sujeito dele. Ele é desumanizado, elimina-se o caráter de ser humano dele, para que ele possa servir, então, a determinados propósitos. Compreender isso significa compreender um pouco de 2013, compreender o antes de 2013 e compreender até o que está acontecendo hoje, acontecerá na semana que vem, aconteceu ontem. Vou ler aqui, é um pequeno trecho da abertura da minha palestra no Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM, 2014): Pretende-se identificar o conjunto de condutas dos agentes do Estado em reação aos protestos e manifestações de junho de 2013, que remete às ações de repressão política nos anos 1960 e 1970, tomando por base a oposição dicotômica “amigo-inimigo” e as características dos movimentos sociais daquelas décadas no Brasil, que eram muito diferentes dos
novos movimentos sociais dos anos 1990, 2000 e 2013. O argumento central consiste na constatação de que os denominados “novos movimentos sociais” distinguem-se daqueles reprimidos pelos governos autoritários da ditadura civil-militar brasileira, porque correspondem a uma nova dinâmica social, não necessariamente orientada à disputa do poder político. Ainda assim, a reação estatal opera na mencionada frequência “amigo-inimigo” e oscila entre o esforço artificial de adequação do comportamento dos manifestantes a tipos de infração penal.1 As autoridades reagem aos movimentos sociais por meio da criminalização, que consiste em identificar a conduta de cada pessoa nos protestos como algo que corresponda a um crime, mesmo que os crimes, da forma em que eles estão previstos no Código Penal, não tenham correspondência com aquele comportamento concreto. Mesmo que haja uma enorme distância entre a conduta e o crime, acontece a criminalização como no caso do Rafael Braga, na primeira condenação. Não é possível, usando técnicas do Direito, estabelecer que Rafael Braga é autor daquele crime que o levou a ser condenado inicialmente. Uma condenação que hoje é definitiva. Essa técnica da incriminação só não funciona se não tiver quem incrimine e quem puna. Porque você não tem incriminação se você não tiver Polícia Militar, Ministério Público e Poder Judiciário. Se o Ministério Público se recusar a acusar aquela pessoa como, por exemplo, recusou a acusar o Joesley Batista, não vai acontecer processo criminal. Se o juiz se recusar a aceitar aquela acusação, se disser “Olha, eu não faltei às aulas de Direito Penal quando eu tinha 18 anos, portanto eu sei que esta acusação é um delírio, ela não corresponde àquilo que a lei penal prevê”, você não vai ter sentença condenatória. Mas se há um processo de criminalização é porque é viável punir apesar da lei. É viável punir apesar do Direito. Em 2014, eu tinha absoluta convicção de que aquela condenação do Rafael seria revista. Não tinha como ser mantida... mas, contra todas as evidências, pareceu ser bem-sucedida. O sujeito foi condenado e foi condenado novamente. Esse é o quadro. E como é que ele se explica? Ele se explica numa longuíssima tradição que não é só da Justiça Criminal Brasileira, mas é da Justiça Criminal em geral. Reitero: a máquina de moer corpos e matar pessoas mói corpos e mata pessoas. Não faz nada diferente disso. Uma longa
tradição de repressão política via sistema criminal. Os dois juízes que condenaram Rafael são bons juízes – mas quando a estrutura funciona, os princípios dos sujeitos, às vezes, cedem diante de uma missão que eles entendem ter que cumprir. É o messianismo das Justiças Criminais no mundo, que no hemisfério Sul é potencializado, que na América Latina é multiplicado, na América do Sul e no Brasil é tomado quase como a grande missão dos juízes criminais: “Nós somos os responsáveis pela ordem”. Por qual ordem? Daquela sociedade homogênea. Daquela sociedade una. Daquela sociedade branca. Daquela sociedade de classe média. O sistema de Justiça Criminal cumpre o papel de ordenador. Se nos anos 1970, muito claramente, os movimentos e protestos reivindicavam democracia, fim da censura, a volta dos exilados, o fim da tortura política, o fim da prisão política, o que aconteceu em 2013 é que muitas demandas, que não eram demandas para substituir o governo – o governo estadual, o governo federal –, que não eram demandas políticas, no sentido político-partidário de disputa do poder, mas eram políticas no sentido de afirmação dos valores dos direitos de grandes segmentos da sociedade brasileira, de afirmação do direito de ser reconhecido, de existente, aquilo desarticulou as reações de praxe. Nesse universo diferente, não foi possível criminalizar os manifestantes de forma indiscriminada. Foi necessário filtrar e, na filtragem, quem ficou? O suspeito de sempre. O Rafael Braga. O perfil absolutamente perfeito de alguém cuja criminalização não seria objeto disso aqui [o debate e a exposição], ninguém ligaria para Rafael Braga. Mas ao mesmo tempo, enviaria uma mensagem para muitos segmentos: “Vejam o que está acontecendo com ele. Pode acontecer com vocês”. Tecnicamente, Rafael Braga foi condenado por posse de substâncias explosivas em produtos que não explodem. “Mas não explode?” “De acordo com a perícia, não.” “Mas e o que os juízes disseram?” “Bem, como é que o Rafael Braga poderia saber que não ia explodir?” Se eu atirar em cadáver pensando que há uma pessoa ali que está viva, acerto o cadáver, depois se descobre que é um cadáver. Como eu não sabia que era um cadáver, vou ser punido por homicídio? Esse é o exemplo que a gente dá para o que aconteceu com ele. Essa sentença foi confirmada pelo Tribunal. Ele está definitivamente condenado por isso. Quando a
gente trabalha com Análise de Discurso e lê a sentença de condenação do Rafael Braga, o que se tem não é a condenação do Rafael Braga, mas a condenação de um determinado sujeito de protestos. Aquele sujeito de protesto não pode estar ali, outros tantos como ele não podem estar ali. Ele vai, começa a cumprir a pena, é colocado em liberdade e aí, o singular se transforma no comum. Alguém diz na favela: “Ah, um rapaz vendendo droga!”. Rafael é encontrado com um cigarro de maconha. Com a maconha que foi encontrada com o Rafael não dá para fazer um cigarro. E com uma pequena quantidade de cocaína. Mas, segundo a polícia, “Mas e o tal que disse que ele estava vendendo droga?” Não tomou forma humana no processo. “Quem depôs?” Dois policiais militares. “Que policiais são esses?” Disseram que no Rio de Janeiro, nessa semana, mais de sete dezenas de policiais foram presos, muitas vezes armando flagrantes como a situação que parece ser a de Rafael Braga. A sentença de condenação de Rafael Braga, com base no depoimento de dois policiais – que não chamaram ninguém mais para testemunhar – é uma sentença de recondenação por sua participação nos movimentos. Basta ler a sentença. E é a sentença que se reproduz cotidianamente contra a juventude negra da periferia das grandes cidades brasileiras, nesta que é a grande cruzada de determinados setores das nossas elites: a criminalização das drogas. Se a gente quer começar aqui uma coisa muito forte tem que ser descriminalizar a posse e a venda de drogas. Porque, senão, vamos continuar permitindo que nossos jovens sejam mortos, sejam encarcerados por um sistema de Justiça que funciona exatamente assim. Notas 1 PRADO, Geraldo et al. Aspectos contemporâneos da criminalização dos movimentos sociais no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 23, n. 112, p. 245-260., jan./fev. 2015.
CIDINHA DA SILVA
A MANUFATURA DO LIVRO #PAREM DE NOS MATAR! PASSOU PELA SELEÇÃO DE 72 CRÔNICAS PUBLICADAS ENTRE 2012 E 2016 SOBRE DIVERSOS ASPECTOS DO RACISMO E DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL NA VIDA SOCIOCULTURAL E POLÍTICA DO BRASIL, NOTADAMENTE NO EXTERMÍNIO FÍSICO DE INDIVÍDUOS E COLETIVOS NEGROS E NA MORTE SIMBÓLICA E CULTURAL DA POPULAÇÃO NEGRA E SEUS VALORES DE MATRIZES AFRICANAS, PERPETRADA PELOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO.
*ICU E O MENINO QUE FURTAVA LIVROS Em A menina que roubava livros, a mãe de Liesel Meninger, personagem principal, era comunista e sofria perseguição nazista. Seus filhos, como ela, várias vezes escaparam da morte no período de 1939 a 1943. A violência se alastrava como erva daninha por todos os cantos da Alemanha e a morte, perplexa diante da degradação humana, resolveu narrar a história de Liesel. A menina driblava seu cheiro exalado das valas comuns, dos corpos de homossexuais, descapacitados, comunistas, judeus e todos os adversários do nazismo, incinerados nas câmaras de gás. A morte, então, acompanha a trajetória dos livros que escapam das grandes fogueiras públicas promovidas pelo Estado e a forma como Liesel os resgata, assim como rouba outros de bibliotecas e passa a alimentar-se do perfume de vida difundido pelas mentiras deliciosas e encantadoras contadas nas obras literárias. No Brasil, 71 anos depois da Segunda Guerra Mundial, Alex Santana, não teve a mesma sorte de Liesel e foi preso ao furtar três livros em uma livraria de shopping soteropolitano. Segundo declarações prestadas na delegacia, foram três livros naquele momento, mas o menino já havia furtado outros sete.
Todos para estudos. O texto da notícia enfatizava o gênero das obras furtadas, ficção. Icu, pesarosa, testemunha do desfalecimento do desejo de voar do menino, perguntava: quem decretou que só se estuda em manual ou livro didático? Se alguém rouba um pão francês é porque tem fome, mas se rouba um chocolate ou sorvete é porque tem febre de riqueza e luxo? E Icu mesma respondia: é que no furto praticado pelos pequenos, o sonho e a delícia não são permitidos. Icu, testemunha da luta de Alex pela sobrevivência, resolve defendê-lo na justiça, pois que, sem recursos para pagar fiança, mandaram o menino para o presídio da Mata Escura, onde os dias não amanhecem e as noites de lua desconhecem a ternura. Disse Icu na peça de defesa do menino-leitor: todos os viventes um dia serão meus, é a lei da vida. Mas a alguns, como Alex, a vida, minha antagonista, me aproxima pelas iniquidades impostas ao caminho. Essa gente integra coletivos de pessoas expostas à precariedade, ao racismo, aos abusos, à violência. Gente que sobrevive por teimosia. A vida tentou me convencer a levar Alex há muito tempo. Tantos meninos iguais a ele fui obrigada a levar, quando as mães não conseguiram fazer pré-natal, quando nasceram e não foram pesados e cuidados nos postos de saúde como todas as crianças deveriam
ser. Quando a família não pôde alimentá-los como mereciam. Quando as doenças típicas da miséria os acometeram. Quando escaparam das chacinas, pela graça de minha irmã, a sorte, que em fração de segundo desviou-os por uma rua lateral quando o morticínio estava prestes a ocorrer. A vida, como vêem, insiste em entregá-los a mim, na bandeja, como prato frio e amargo. Eu me recuso a comer, mas a vida insiste. Eles me driblam como grandes jogadores que aprendem a ser e conseguem adiar minha chegada. De tanta insistência da vida, sou convencida e os levo. Cedo demais, admito. Meu cliente, senhoras e senhores jurados, ao furtar três livros de ficção, em ato extremo de resistência ativa ao nada que lhe é destinado pela vida, afirma que, de todas as mentiras empurradas pela garganta (sobre a inexistência do racismo ou a existência da igualdade, da justiça, do equilíbrio no julgamento do delito, de tratamento humano para seres humanos), a literatura é a mentira menos danosa. Por isso, peço sua absolvição. *Publicado no Portal Geledés. Disponível em: http://www.geledes.org.br/icu-e-o-menino-quefurtava-livros-por-cidinha-da-silva/#gs.t6hkE7Q *PAPO RETO: TEVE BAILE DE FAVELA EM COPACABANA COM MILHARES DE SILVAS Antes de a favela descer no dia da votação do golpe na Câmara para tomar a orla de Copacabana pela manutenção da democracia, sob mobilização da Furacão 2000, a moçada foi convocada a tomar as ruas por Yzalú, Luana Hansen, Flora Matos, Frente Nacional de Mulheres no Hip Hop, Flávio Renegado, Eduardo e Mano Brow, entre outros ícones da música que a juventude negra curte. O Rap e Funk estiveram juntos para colocar a voz da juventude negra e periférica em evidência na cena da luta democrática e de respeito à Constituição no Brasil, por meio da presença de 50 mil pessoas, segundo os organizadores. Na concentração no Posto 3 ecoavam músicas dos anos 1980, aquelas que falavam de amor. Do amor romântico, direito negado aos Silva das favelas que pegam trem lotado, trabalham e são criticados por serem funkeiros. Que não podem amar a rainha do baile pela vida inteira porque serão mortos ainda
jovens. Mas o funk, como canta Bob Rum, no Rap do Silva, “não é modismo / é uma necessidade / é pra calar os gemidos que existem nessa cidade”. Na nossa interpretação, a letra se refere aos gemidos das comunidades feridas em direitos humanos básicos, que embora expurgadas dos limites da urbe, também fazem parte da cidade. Moradores do Pavão-Pavãozinho, Cantagalo, Cruzada, Vila Kenedy, Rocinha, Vidigal, Chapéu Mangueira, Babilônia, Vila Aliança, Santa Marta. Também do Complexo do Alemão, da Maré, dos morros de Santa Teresa e da Baixada Fluminense. No primeiro discurso da manifestação, uma liderança comunitária deu o tom. Disse-nos, ali se ouviria “o grito da cultura negra, o grito do funk”. Ali se veria a cara preta da juventude. Da “juventude negra funkeira que hoje é também juventude universitária” e segundo o discurso, “é isso (a ascensão dos negros) o que eles (os golpistas) não querem”. Várias letras de funk foram alteradas para contemplar a situação nacional, por exemplo, “qual a diferença entre o Charme e o Funk / o Funk (a Dilma) anda bonito / o Charme (o Lula) elegante”. Essa letra, para quem acompanha o movimento funkeiro, alude a supostas diferenças entre o Charme (ritmo mais lento e romântico) e o Funk, mais forte e pegador. Na interpretação política da moçada que sabe a força política de Lula junto ao povo, era a hora de aproximá-lo de Dilma para fortalecê-la, ou seja, de afirmar que não havia diferenças significativas entre ambos. Seguiram-se discursos que pontuaram a realidade das favelas, vivida pela maioria das pessoas presentes: “eu nunca vi bala perdida em área nobre”. Não podiam faltar também o humor e a ironia: “O Cunha vai ganhar uma passagem pra sair desse lugar / não é de trem / nem de metrô / nem de avião / é algemado no camburão / eta Cunha ladrão!” É importante destacar ainda, a participação de muita gente do asfalto sob a liderança da favela, respaldando o discurso racial politizado que o Funk vocalizou neste momento. Também, a participação dos partidos políticos de esquerda (PT, PCdoB, PCO, PSOL), centrais e associações importantes como CUT, CTB (Central dos Trabalhadores Brasileiros), MST, Movimento Negro,
AMB (Associação de Mulheres Brasileiras), FAFERJ (Federação das Favelas do Rio de Janeiro), novamente, lideradas pelo Funk. Isso pode indicar alguma mudança no sentido de ampliação da escuta e abertura de diálogo para compreensão e abraço às demandas dessas pessoas e suas comunidades. Por fim, à medida que a manifestação era transmitida pela Web, observamos também o debate travado entre as pessoas inscritas para acompanhar o evento. E ali ficou explícito, mais uma vez, o espírito atormentado da casa-grande. Várias pessoas, escondidas em codinomes, além das ofensas de praxe, misóginas e machistas à Dilma, além de elitistas, LGBTfóbicas e racistas aos manifestantes anti-golpe, foram expressas em frases como: “Saiam daqui, eu comprei essa praia”; “vocês não merecem ser estuprados” e “urna eletrônica é fraude”. Demonstrações do raciocínio profundo de batedores de frigideiras. Chegaram ao absurdo de defender Eduardo Cunha, com afirmações como “eles (os petistas) estão putinhos porque o Cunha está tirando a Dilma. Cunha neles”. Eram mesmo muito tacanhos e queriam recuperar anéis perdidos. Durante meia hora a transmissão caiu. Houve manifestação bem humorada em resposta, teria sido por ação da CIA; mas houve também reação racista e classista, “a favela roubou a câmera”, “teve arrastão e roubaram a câmera”. Noutro momento, um professor, representante da rede estadual de ensino, em greve ignorada pelo governo do Estado e pela mídia hegemônica há 30 dias, denunciou a situação e conclamou a população a apoiá-los, bem como aos estudantes que, a exemplo de São Paulo e Goiânia, ocupavam escolas públicas pela melhoria das condições de ensino-aprendizagem. A reação de um analfabeto político foi imediata: “Reclama com o Lula que é defensor dos pobres, né companheiro”? Tratava-se de professores estaduais em greve. Escolas ocupadas pela resistência de estudantes no Rio de Janeiro. Em que um ex-presidente poderia interferir para resolver o problema? Registre-se que todo mundo se mexeu, enquanto participava da manifestação ou enquanto a assistia de casa porque o que vimos foi “som de preto / de favelado”, ou seja, música dançante e discriminada
por conta dos sujeitos que a emitem, “mas quando toca / ninguém fica parado”. *Publicado no livro #Parem de nos matar! (Ijumaa, 2016). *O PALPITEIRO ALEXANDRE GARCIA E AS COTAS Dia desses um palpiteiro global de política, economia, educação e costumes fez mais uma. Alexandre Garcia, em incursão midiática diária, deu voz histriônica à Casa Grande ao atribuir às cotas a responsabilidade pela institucionalização do racismo no Brasil. A atribuição ocorreu como ataque ao Simples Nacional. Um sistema adotado pelo Governo Federal desde 2007 para tributar de maneira diferenciada as microempresas e empresas de pequeno porte com renda bruta anual de até 360 mil reais. Um dos argumentos do palpiteiro foi de que o processo seria complicado pelo quesito raça/cor do formulário. Operadores de mídia como Alexandre Garcia vivem em um mundo particular de invenção de verdades, à revelia da pesquisa séria feita na universidade e institutos de pesquisa científica. Ao mesmo tempo veicula discurso descolado da vida do povo e o vende a este mesmo povo, como ópio, via televisão. O jato verborrágico sobre as cotas e a institucionalização do racismo é exemplar. O palpiteiro não sabe que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE é um dos órgãos de recenseamento mais respeitados do mundo. Nosso IBGE exporta tecnologia para a América Latina, Caribe e África pelo menos desde a década de 1980. Tem assessorado processos diversos e complexos de contagem humana, por exemplo, aqueles levados a termo no Haiti, pós-terremoto de 2010. Foram os técnicos do IBGE que depois de décadas de pesquisa, produção de conhecimento qualificado e debate com a sociedade civil organizada chegaram à categoria raça/cor, no afã de abarcar os complexos e diversificados sistemas de classificação racial vigentes no Brasil, desde o recenseamento de 1872. São cinco as categorias adotadas pelo IBGE: preto, pardo, indígena, amarelo e branco. Atribuídas às pessoas por elas mesmas, ou seja, por auto-classificação. O levantamento dessa informação pelo IBGE atende a dois vetores fundamentais: primeiro, respeita
o levantamento do tema feito pelos recenseamentos no país desde 1872. Quem trabalha com números comparados, mesmo de maneira rudimentar (procedimento evitado por quem inventa verdades), sabe que as categorias precisam ser mantidas ao longo do tempo para que possam ser comparadas. Por isso, a partir de estudos de viabilidade técnica, o IBGE concluiu que a melhor forma de levantar informações para retratar o matiz racial da sociedade brasileira e compreender as mudanças e flutuações dos grupos raciais e étnicos é pela aferição da categoria raça/cor. Quanto ao segundo vetor, desde o censo de 1991, o IBGE tem se notabilizado pelo diálogo com a sociedade civil e pela sensibilidade para a reformulação de alguns itens já constantes do questionário, bem como a inclusão de outros, quando possível e tecnicamente sustentados. Vale lembrar que a incompetência e descaso da equipe de Fernando Collor com a manutenção do Censo a cada decênio interrompeu uma longa série. Como resultado o Censo de 1990 foi realizado em 1991. No escopo desse diálogo, discutiu-se a partir de meados dos anos 1990, a possibilidade de incluir o quesito negro, como opção de auto-classificação no Censo que seria realizado em 2010. Tecnicamente não foi possível fazê-lo, pois além de quebrar a série histórica seria oneroso. Contudo, adota-se desde aquela década a estratégia de somar as informações demográficas de pessoas autodeclaradas pardas e pretas para configurar a informação geral sobre o grupo negro. Isso é possível porque as diferenças entre os dois grupos, pretos e pardos, não são demograficamente significativas. Atende-se assim a uma demanda da sociedade civil organizada e respeitase a forma como cada indivíduo recenseado percebe a si mesmo do ponto de vista do pertencimento racial. Pois bem, informamos a Alexandre Garcia que é pelos motivos elencados nessa crônica que o IBGE mantém o quesito raça/cor em seu questionário. É por este motivo também que as pessoas e instituições preocupadas com o conhecimento aprofundado da realidade brasileira o valorizam e aplicam. O preenchimento do item raça/cor nos possibilita saber quantos negros auferem lucro suficiente para serem aceitos na Federação das Indústrias de São Paulo, a FIESP, e quantos são pequenos e microempresários. Este item nos questionários permite-nos quantificar o número de negros e brancos
em determinados setores, a exemplo do Ministério Público, do corpo docente das universidades, das demais categorias profissionais de prestígio. É óbvio que para pessoas como Alexandre Garcia perceber onde estão negros e brancos nos extratos sociais do país não passa de mera constatação visual. Nesse exercício, abundâncias e ausências são naturalizadas. Dessa forma, a presença massiva de trabalhadores negros nas imagens da greve dos garis de 2013, no Rio de Janeiro, bem como a ausência de pessoas negras em qualquer turma de formandos de Medicina verificada em qualquer universidade federal do Brasil, no período pré-cotas (antes de 2002) são demonstrações de que as coisas estão nos seus devidos lugares. As cotas para negros nas universidades públicas, a lei de cotas referendada no STF em 2013, desestabilizam esse terreno, provocam rachaduras incômodas nos alicerces da Casa Grande. Elas provocam as conexões de Alexandre Garcia com a ditadura civil-militar e com Paulo Maluf, tornando mais peçonhento o veneno que escorre pelo cantinho de seus lábios todas as vezes que a cabine de controle da casa grande é ameaçada. *Publicado no livro #Parem de nos matar! (Ijumaa, 2016). *AOS QUE FICAM NOS PORTÕES DO ENEM O professor me contou que fazia compras no Atacadão de Cajazeiras XI num belo domingo de praia, quando o serviço de auto-falante anunciou: Caros clientes, o Atacadão pede desculpas pela demora na fila dos caixas, mas, como os senhores sabem, hoje é dia de prova do ENEM e as empresas são obrigadas por lei, a liberar seus funcionários. Eu e o amigo especulamos, e se não fosse obrigatório? A moçada seria liberada? A espetacularização anual da tristeza e desalento, às vezes desespero, das pessoas que chegam atrasadas ao exame e encontram os portões fechados, responde parcialmente à pergunta. Afinal, são mulheres e homens, nem sempre jovens, um povo negro e de periferias, quem a consolidação do ENEM como forma de seleção para a universidade garantiu o sonho de cursá-la. É uma gente a quem o transporte público atende
de maneira traiçoeira e ainda mais restritiva nos finais de semana. Como? Você não sabe? O número de carros é diminuído e o espaçamento entre um e outro alargado. Em muitos casos os ônibus de determinados trajetos são simplesmente recolhidos à garagem nos domingos e feriados, ou seja, as empresas de transporte só oferecem seu precário serviço à população nos dias “úteis”. Trata-se de uma turma que os pais não levam de carro até a porta dos locais de prova, não prepara lanchinho com chocolates, energéticos, iogurtes e barra de cereais, e que não receberá curso de línguas no exterior como prêmio de consolação, caso fracasse. Um pessoal que precisa negociar duas horas de antecipação na saída do trabalho e, como se não bastasse, pela Lei de Murphy, pelo patrão ou pela falta de solidariedade dos colegas que o julgam esnobe por desejar a universidade, sempre rolará um imprevisto na hora H. São mulheres que só saem do lar depois de deixar a comida pronta para os filhos; que dependem do favor de alguém que dê uma olhada nas crianças enquanto elas fazem a prova e correm para retornar à casa. Trabalhadoras domésticas só são liberadas do trabalho depois de deixar fresquinho o almoço dos patrões, ou de cumprir a rotina de passeio e banho do cachorro da casa. Apesar da mídia empenhada em humilhar os candidatos atrasados há esperança de que temas mais relevantes do ENEM mereçam holofotes na imprensa, tais como o pensamento de Simone de Beauvoir sobre como nos tornamos mulheres e de como a violência de gênero, imposta ao longo da vida, é marcante na construção dessa identidade. Ou o pensamento da feminista chicana Glória Anzaldúa na prova de inglês. Quem sabe a auto-cartografia social dos povos e comunidades tradicionais da Amazônia que georreferenciam sua própria presença e transformação no território. A atualidade do pensamento de Paulo Freire abordada na prova também merece atenção, a poesia impressa no saco de pão, bem como o fantástico e oportuno tema da redação, a persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira, entre outras preciosidades. Todos, sinais evidentes de que estudantes precisam exercitar a reflexão e a expressão do respeito ao humano e convivência com o diverso e contraditório. Oportunidade única para as
pessoas expressarem suas idéias, sustentando-as com argumentos dinâmicos e convincentes, sem ferir os direitos humanos, por suposto. À gente que sai do Coque e da Bomba do Hemetério; de Neves e Contagem; da Maré e de Belford Roxo; de Cidade Tiradentes, Pantanal e Carapicuíba; de Fazenda Coutos, Itinga e Sussuarana; de Chaparral e Ceilândia em direção ao centro de Recife, de Belo Horizonte, do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Salvador e de Brasília para as provas, tal qual Agostinho Neto no poema escolhido pela equipe do ENEM, eu vos acompanho pelas emaranhadas áfricas do nosso Rumo. E vamos nós, significativa parcela dos sete milhões de candidatos-leitores, com Pixinguinha, saravar Xangô. *Publicado no livro #Parem de nos matar! (Ijumaa, 2016). *O RECADO DOS LINCHAMENTOS O mundo sensível se assustava com a onda de linchamentos a negros executada por justiceiros que escolhiam pretos anônimos, desamparados pela lei, como exemplos para coibir as conquistas políticas e sociais dos negros “protegidos” pela lei de forma mínima. Ou seja, havia um recado para os pretos ascendentes: “Recolham-se ao lugar de negros ou serão vocês o próximo alvo”. O propósito era acuar os pretos no microespaço do medo, aterrorizar as comunidades negras da região onde ocorria o linchamento. A favor dos humanos negros só a vulgarização tecnológica. Pessoas indignadas registravam e divulgavam os atos bárbaros via celulares no afã de não esquecê-los, de impedir que fossem ocultados, de forçar investigação, julgamento dos linchadores e punição. Por fim, que o resultado final do registro fosse acordar a população da letargia ignorante de tais atos e cercear já no campo da intenção, o próximo linchamento. Mas, como não existia justiça, o pânico se instaurava. O pavor de ser o próximo alvo intimidava tanto, que, não raro, as pessoas negras fugiam do tema. Numa cidade o filho do mega-milionário atropelou um ciclista negro, matou, foi julgado rapidamente e pagou a sentença com trabalhos de re-socialização. Noutra, um playboy bêbado atropelou trabalhador de
bicicleta, arrancou-lhe o braço e atravessou bairros com o membro agarrado ao retrovisor. Em dado momento o meliante percebeu a marca do crime, parou o carro e jogou o braço do ciclista no esgoto. Impune. Numa terceira cidade, uma patricinha, estudante de Medicina, atropelou e matou um gari. Arrancou o carro sem prestar socorro, enquanto lamentava a sujeira de sangue na lataria. Não por coincidência, eram todos brancos, criminosos de fato e protegidos pela lei do mundo do faz-de-conta. No mundo real, entretanto, eram sempre negros os alvos dos linchamentos. Qualquer motivo, qualquer suspeita, qualquer vacilo diante das regras do establishment justificava a eliminação física do suspeito. Mas aqueles não eram os alvos reais. O objetivo final era intimidar os negros insurgentes que tinham pelo menos uma noção vaga de direitos, os cotistas de universidades públicas, artistas, estudantes matriculados e uniformizados, negros intelectualizados, aspirantes a profissionais bem sucedidos, todas as pessoas portadoras de identidade negra em expansão. Restava saber se os pretos se recolheriam aos lugares pré-definidos, iludidos pela mentira de não serem o próximo alvo. No Brasil, os negros estavam por sua própria conta desde o momento da gestação e os linchadores sabiam disso. *Publicado no livro #Parem de nos matar! (Ijumaa, 2016).
ENTRE PÚBLICOS E EXPOSIÇÃO: O EMBATE COMO INVENÇÃO DE NARRATIVAS NÚCLEO DE CULTURA E PARTICIPAÇÃO
As visitas mediadas são sempre experiências de alteridade e embate. Constituem-se de diálogos entre educadores, públicos e exposições, tendo a construção coletiva como parte fundamental do processo. Essa forma pulsante de interação com a arte é cheia de meandros, becos e acontecimentos não previstos que se forjam a partir do cruzamento entre o que foi proposto pela curadoria e o repertório dos públicos. No caso da exposição OSSO, nos deparamos com um contexto específico. Por um lado, havia um discurso evidente na organização da mostra, nos documentos selecionados para compor a sala referente ao caso de Rafael Braga, nos textos espalhados pelas paredes e nas obras escolhidas pela curadoria. Por outro, havia questões extremamente complexas a serem debatidas entre educadores e públicos: o racismo estrutural, o seletivismo penal, as condições sociais desiguais, a violência de Estado e o caso de Rafael Braga. Os públicos atendidos pelos educadores na exposição OSSO chegaram ao Instituto Tomie Ohtake predominantemente por intermédio de projetos de inclusão sociocultural, o que delimitou um recorte com características evidentes: escolas públicas localizadas nas periferias de São Paulo, ONGs, instituições de assistência social, casas de acolhida, abrigos, Fundação CASA e medidas socioeducativas,pessoas em situação de vulnerabilidade social – públicos que, de certo modo, trazem alguma proximidade com o
contexto de Rafael Braga. Portanto, as visitas mediadas à exposição representaram o desafio de trabalhar em meio ao hiato entre diferentes universos e considerar as contradições imprevistas que apareceram ao longo do processo, como o embate com as experiências racistas sofridas por diferentes sujeitos cujas condições de vida são distintas daquelas experimentadas por uma equipe de educadores majoritariamente branca. Entre as principais dificuldades que percebemos no processo de mediação estiveram a abordagem do racismo junto a grupos de jovens negros que, em alguns casos, negavam ter sofrido tal violência e a impossibilidade de discutir o tema com aprofundamento em um breve encontro de duas horas. A exposição foi composta por trabalhos de arte contemporânea constituídos por elementos mínimos, matéria escassa, por vezes quase invisíveis no espaço expositivo, e em alguns momentos a relação entre esses trabalhos e a questão de Rafael Braga não se evidenciou com facilidade para os públicos, visto que muitos nunca haviam visitado exposições desse tipo. Nesses casos, coube aos educadores a intervenção constante por meio da articulação de um exercício de escuta e diálogo que considerasse a individualidade de cada visitante e, ao mesmo tempo, abordasse as questões complexas tangenciadas pela mostra sem anestesiar ou espetacularizar o discurso. Uma das estratégias adotadas foi a criação de abayomis,
bonecas de pano, sem cola ou costuras, que contam a história das travessias dos Navios Negreiros e a relação das mulheres, mães, negras e escravizadas com seus filhos, constituindo-se em símbolo de resistência e tradição. Assim, houve uma primeira aproximação com os grupos pautada em relações de afeto, memória e narratividade. Além das abayomis, utilizamos técnicas de contação de histórias, principalmente com os grupos de crianças menores, com o intuito de apresentar o contexto de Rafael Braga por meio de uma linguagem adequada a esse público e que pudesse evidenciar que não se trata de um caso isolado, mas de um problema estrutural que pode afetar muitas pessoas. Como parte da programação ligada à exposição desenvolvemos um ateliê de cartazes com base em técnicas como serigrafia, estêncil, carimbo e caligrafia. O ateliê foi utilizado pelos grupos agendados que participaram de visitas mediadas com os educadores e também pelo público espontâneo que chegava a ele mediante inscrição prévia. A experiência de criação plástica e experimentação de técnicas diferentes, aliada ao convite para que cada participante criasse cartazes que expusessem suas ideias em relação ao contexto de Rafael Braga, foi de enorme importância para a vivência da exposição por constituir um espaço de diálogo, criação e expressão, ou seja, um lugar em que as discussões puderam ter reverberação física. Ademais, à expressão plástica coube sanar uma parte
da ansiedade por dar vazão a constatações muitas vezes inaugurais, visto que muitos visitantes não conheciam a história de Rafael Braga e, a despeito de vivenciarem cotidianamente situações de violência e racismo, nunca haviam discutido tais questões coletivamente. Os ateliês de cartazes aconteceram, também, no Centro de Detenção Provisória III de Pinheiros, representando uma ramificação fundamental da exposição OSSO e dos processos dialógicos e reflexivos dela decorrentes. As atividades realizadas nessa instituição almejaram a construção de narrativas coletivas elaboradas pelos próprios aprisionados a partir do caso de Rafael Braga, de modo a promover uma ampla discussão acerca da realidade do sistema prisional brasileiro pela perspectiva de seus sujeitos. Cada encontro desenvolvido explorou e estimulou a experimentação plástica das técnicas de criação de cartazes e, ao mesmo tempo, utilizou a produção como ferramenta de reflexão sobre o caso de Rafael Braga e os temas transversais à questão, como racismo, homofobia, transfobia, injustiça e seletividade penal. A experiência com o ateliê de cartazes no Centro de Detenção Provisória nos mostrou a potência do diálogo que acontece aliado à expressão plástica e a sintomática carência de atividades educativas, culturais e técnicas nas unidades prisionais.
PROGRAMAÇÃO PARALELA: MODOS DE EXERCITAR A ESCUTA NÚCLEO DE CULTURA E PARTICIPAÇÃO NÚCLEO DE PESQUISA E CURADORIA
Excepcional. Apesar da semântica ambígua, em seu sentido como “fora do comum” e “inusitado”, talvez tenha sido uma das palavras que mais figuraram em discussões prévias à exposição OSSO. A palavra serviu para definir uma iniciativa inédita na qual reuniram-se os âmbitos da Arte e da Justiça para promoção de uma causa, que além disso friccionou os modos de fazer exposição em uma grande instituição, longe da lógica comum do aval de grandes empresas e dos recursos financeiros delas provenientes para criar programas e discursos. Essa forma de produção da mostra, coerente com sua posição política, impôs dois fatores fundamentais para a formulação da programação: de um lado a total liberdade de criação, do outro a falta de verbas para produção. Internamente, antes de chegar às formas operativas, OSSO já havia colocado em jogo o funcionamento interno das equipes do Instituto Tomie Ohtake, por meio do convite do curador Paulo Miyada para que fosse composto um grupo de pesquisadoras, produtoras e educadoras interessadas em conceber um programa que reverberasse os potenciais discursivos da exposição. A ação gerou um processo de encontro, diálogo e fôlegos renovados entre diferentes equipes, ainda que a formação do núcleo de trabalho tenha sido permeada pelo enfrentamento
das demandas institucionais cotidianas, entre elas a abertura de outras exposições, das quais uma de grande porte, e os projetos educativos em curso. As vontades coletivas de mobilização de uma reflexão conjunta e de abertura para espaços de escuta foram maiores do que as problemáticas de adequação de tempos e energias. Foi essa articulação intersetorial que levantou as questões balizadoras da programação, expressas nestas premissas: era preciso falar sobre Rafael Braga mantendo em perspectiva que o seu caso é paradigmático por conjugar uma série de violências de Estado; era preciso construir espaços que dessem vazão a outras narrativas, inclusive aquelas divergentes à exposição; era preciso estar aberto ao diálogo com os movimentos sociais; era preciso questionar as narrativas dominantes e a estrutura da instituição. Mas, talvez acima dessas premissas, era preciso manter como horizonte visível a necessidade de, por meio da programação, questionar a voz unívoca da mostra, comumente atrelada ao sistema artístico e seus agentes, em particular aos artistas e ao curador, e, sobretudo, tentar abdicar das próprias vozes, ainda que o limite fosse a concepção da programação, que perpassou a pesquisa e o apontamento dos nomes
convidados a ocupar esses espaços. Nesse caso, o que se conseguiu foi construir uma rede de relações que, após os primeiros encontros, passou a propor atividades e ações na programação, dentre as quais destaca-se a performance #umabraçonegro, do Vocacional de Dança e Cia dxs Terroristas, cujos membros vieram à exposição para uma conversa sobre impressões relativas à mostra e propuseram, com base no encontro, a ação posteriormente apresentada. Apesar da tarefa de indicar determinadas temáticas gerais para os debates, os convites foram abertos às vontades e disponibilidades dos participantes, que estiveram livres para definir suas pautas. Os diálogos que antecederam as atividades se deram em torno daquilo que gostariam de colocar em debate frente à exposição, com base em suas pesquisas e experiências, questionando até mesmo os próprios sentidos que viam na programação paralela e na pertinência de ocupar aquele espaço. Nesse sentido, optou-se por questionar o lugar de fala institucional, mesmo que permeado pelas contradições inerentes às relações de trabalho, privilegiando a possibilidade de condução da programação pelas vozes da luta cotidiana, de um saber que não nos atravessa mesmo que se exercite a alteridade, pois estão implicadas diretamente nas questões trazidas pela exposição. E o extravasamento dos limites da representação da mostra só poderia ser feito pelo engajamento de pessoas para as quais os assuntos trazidos são pauta comum, permanente, em oposição à excepcionalidade deste projeto. Partindo da compreensão de que toda curadoria tem fronteiras, pelo próprio recorte que seleciona, um ponto chave foi a escolha de temáticas passíveis de serem trazidas a partir do caso Rafael Braga, podendo ser vistas como diretamente relacionadas, mas não necessária e objetivamente abordadas na mostra. Nesse sentido, o programa oscilou entre o dito e o interdito, tratando de racismo, sistema e direito penal, classe e gênero, violência de Estado, saúde mental e aprisionamento, encarceramento juvenil, pensandoos como assuntos imbricados e que compõem um quadro geral que estrutura as condenações de Rafael Braga e da maioria dos encarcerados hoje. A partir dessas perspectivas, foram programadas uma série de atividades, contando com ao menos um debate por semana, e um período de três dias consecutivos
ao final da mostra, quando essas diversas temáticas puderam ser abordadas. A programação de atividades teve como marco inicial uma mesa de debate, realizada na primeira semana da mostra, no grande hall do Instituto Tomie Ohtake, com a presença do curador Paulo Miyada, do vice-presidente do IDDD Hugo Leonardo e dos convidados Geraldo Prado, Suzane Jardim e Cidinha da Silva, na qual foram discutidas as injustiças que permearam as condenações de Rafael Braga – tornando-as simbólicas em discussões sobre direitos humanos –, e a estrutura de funcionamento do sistema penal, falha não por encarcerar pouco, mas por encarcerar muito e somente uma massa específica, atuando seletivamente. Ainda na primeira semana foi apresentada a peça teatral MACACOS, da Cia do Sal (São Paulo – Rio de Janeiro), também no grande hall. Criado e interpretado por Clayton Nascimento, o monólogo é o relato de um homem negro que retém em seu próprio corpo, como na prática da incorporação das religiões de matriz africana, ícones da cultura negra, mas também as violências do Estado, do racismo, de um passado colonial que não cessou de ressoar no presente. Em seu processo de construção fragmentária, a peça está constantemente aberta à adição de novas narrativas, como um alerta de que o sistema segue existindo em suas contradições: o ator ora é Amarildo, Claudia, Eduardo, seus familiares, ora é Garrincha, Elza Soares, Ray Charles, Bessie Smith. Para participar da programação, Nascimento adicionou mais um capítulo à obra, baseado na vida de Rafael Braga e nos processos que o condenaram duas vezes à prisão. Na semana seguinte, foram exibidos os quatro episódios da websérie O Filho dos Outros, com roteiro e direção do Coletivo Rebento. Pensada para discutir a redução da maioridade penal no Brasil, a websérie fala sobre os impactos psicológicos e sociais da internação de jovens em regime fechado. Com a presença de integrantes do Coletivo Rebento e do artista Jaime Lauriano, que também integra a mostra, após a exibição ocorreu uma conversa na qual os temas dos episódios foram discutidos e o público presente pôde fazer perguntas e colocações. Por meio delas, ficaram evidentes as semelhanças entre o sistema prisional adulto e as Fundações CASA, que
expressam a falibilidade das medidas socioeducativas, reprodutoras dos mesmos problemas encontrados no sistema prisional adulto, como a tortura e as agressões constantes, além da ausência de salas de aulas e possibilidades efetivas de estudo e formação. Outra questão importante foi a relação entre consumo, para esses jovens, e a criminalização da pobreza, exemplificada pelos “rolezinhos”, fenômeno cultural das periferias fortemente reprimido. Por fim, nesse debate emergiram certas discussões que viriam a ser constantes ao longo da programação, como a importância da abertura de espaços no Instituto Tomie Ohtake às questões sociais urgentes – o caso de Rafael Braga e as desigualdades do Sistema Penal e de Justiça brasileiro, por exemplo – e a afirmação da necessidade de protagonismo por parte das pessoas implicadas, e mais vulneráveis, diante das questões apontadas na mostra. Na terceira quinta-feira da programação foram exibidos os documentários Mulheres Negras: Projetos de mundo, dirigido por Day Rodrigues em parceria com Lucas Ogasawara, e Universo Preto Paralelo, com direção de Rubens Passaro. O primeiro filme apresenta de maneira potente nove vozes femininas que contam como gênero, raça e classe social influenciam as vivências das mulheres negras em uma sociedade permeada por racismo e misoginia. Em Universo Preto Paralelo o mote é apresentar as continuidades das violações dos direitos humanos pelo Estado brasileiro – desde sempre escravocrata – pela aproximação de imagens de quadros do século XIX e fotografias dos anos da ditadura civil-militar. As imagens são pano de fundo para depoimentos da Comissão Nacional da Verdade, incluindo relatos do alto escalão militar, mostrando que as diversas formas de violência, como a tortura, o assassinato e o desaparecimento forçado jamais cessaram, mas se atualizaram no século XX, historicamente direcionadas contra os corpos negros. Na sequência, houve uma conversa entre os diretores Day Rodrigues e Rubens Passaro e o público presente, abordando questões como a reificação do corpo negro – essa população não tem assegurada a propriedade do seu corpo, passível de ser tocado, violentado e destruído como a um objeto –, além da dificuldade de algumas mulheres em se reconhecerem negras, como reflexo de um processo de embranquecimento que a sociedade segue impondo. Um dos pontos mais
fortes do debate foi a problematização do estado de exceção na ditadura, uma vez que a violência sofrida pela população branca durante aquele período sempre incidiu na população negra e periférica. Todas as pautas descritas finalizam com provocações sobre como a branquitude, provida de privilégios, poderia colaborar no combate ao racismo presente nos mais diversos estratos sociais, e também sobre a ausência de pessoas negras em Universo Preto Paralelo, fosse nas entrevistas, na narração do filme ou mesmo na concepção e direção do documentário, crítica estendida à exposição. A programação especial, que concentrou em três dias diversas atividades, iniciou com a mesa “Encarceramento em massa e seletividade penal”, com participação da psicóloga Adriana Matsumoto, da defensora pública Isadora Brandão e do jornalista Pedro Borges. Cada convidado trouxe uma perspectiva sobre o encarceramento da população negra e periférica, que representa quase 70% dos aprisionados no país. Pedro Borges discorreu sobre como a escravi dão e o racismo são estruturantes da história do país e precisam, portanto, ser entendidos como aspectos fundamentais da sociedade brasileira, que ainda tende a negar os reflexos dessas características no presente, apostando numa retórica de miscigenação. Outra questão fundamental trazida por Borges é a necessidade de revisão de parâmetros econômicos, sociais e historiográficos europeus para dar conta da realidade do Brasil, cuja história precisa considerar o fato de termos sido destino do maior fluxo de escravos do mundo e o último país a abolir a escravidão. De uma perspectiva jurídica, Isadora Brandão deteve-se sobre o termo “seletividade penal”, frequentemente utilizado para descrever o aprisionamento de determinada população. Em sua compreensão, a seletividade não se dá pela má aplicação da lei, mas é a síntese da estrutura de funcionamento do sistema penal como um todo, sendo nada mais do que o foco na política repressora ao uso de drogas, que justifica o encarceramento em massa das pessoas mais vulneráveis da sociedade. Por fim, do ponto de vista dos danos psicológicos sofridos pelos jovens moradores das periferias, Adriana Matsumoto dialogou sobre a constante tentativa de eliminação da potência
política desses jovens, em particular negros, por meio de medidas de criminalização de sua cultura, como o funk, e pela repressão policial aos rolezinhos. No segundo dia ocorreu a ação #umabraçonegro, do Vocacional de Dança e Cia dxs Terroristas, na qual sete performers circularam pela instituição segurando cartazes com a frase “um abraço negro”, sugerindo disponibilidade em abraçar os transeuntes. Como modo de valorização do encontro dos corpos negros em espaços tradicionalmente brancos e visibilização de suas ausências, ficaram disponíveis para abraçar somente as pessoas negras presentes. A seguir, foi exibido o documentário Sem Pena, dirigido por Eugênio Puppo em parceria com o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), organização que colaborou amplamente na concepção da mostra OSSO. Lançado em 2015, o filme é um retrato do Sistema de Justiça Criminal brasileiro e de suas adversidades, criticamente expostas pelos depoimentos de pessoas presas e processadas criminalmente, além de juízes, advogados, promotores. As captações, em grande parte realizadas dentro de prisões, nos trazem uma imagem próxima da realidade carcerária brasileira, em contraposição ao imaginário comum desses locais, ligados à filmografia estrangeira. O impacto das imagens e dos depoimentos evidencia as problemáticas do alto índice de encarceramento e da precariedade do acesso à Justiça no país, em especial para os estratos sociais mais vulneráveis. Nesse sentido, vale destacar a vinda de um grupo de residentes em casas de acolhimento do bairro Canindé, convidados a participar da atividade, que se sentiram dispostos a compartilhar as suas histórias de vida após assistirem ao filme, durante o debate com Hugo Leonardo (advogado e vice-presidente do IDDD) e Heloisa Bonfanti (socióloga e assistente de direção de Sem Pena). Quatro dos convidados eram egressos do sistema prisional e não contaram com advogados durante o processo, ou seja, somente ali conseguiram colocar questões sobre os seus casos diante de um especialista. Em um dos relatos mais chocantes, um senhor afirmou ter cumprido mais de oito meses além da pena estabelecida pelo crime cometido, tendo sido, literalmente, esquecido dentro do sistema prisional. O último dia de atividades começou com o ateliê de cartazes, localizado em uma das salas expositivas
e aberto aos visitantes, durante os sábados, para experimentação de diversas linguagens e técnicas de reprodução de imagens, como estêncil, carimbo, serigrafia e caligrafia. A produção de cartazes relacionados ao tema da exposição-apelo foi pensada para dar vazão à necessidade de estimular processos práticos de criação artística, garantindo um espaço de troca entre os públicos e a instituição, bem como a abertura a diferentes produções discursivas. Os cartazes produzidos tornaram-se o cenário para o último debate, que lançou um convite ao psicanalista Victor Barão, membro do Coletivo Margens Clínicas – grupo dedicado ao apoio psicológico a vítimas de violência do Estado –, para discutir sobre o seu trabalho a partir da exibição do vídeo Apelo, obra de Clara Ianni em parceria com Débora Maria da Silva, fundadora do Mães de Maio. Como obra discursiva, o vídeo é um retrato da dor e da luta de Débora, que perdeu o filho, Edson dos Santos, na onda de assassinatos ocorridos entre os dias 12 e 16 de maio de 2006, conhecidos como “Crimes de Maio”, quando a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) atacou agentes da segurança pública de São Paulo e gerou uma retaliação da polícia, resultando em 564 pessoas assassinadas nesse período. A morte do filho de Débora a levou a uma forte depressão e à internação. Ao receber alta, decidiu procurar mães que tiveram filhos assassinados naquele 2006, o que originou o movimento social Mães de Maio, uma busca por memória, verdade, justiça e direito à reparação. Como cenário, o vídeo escolhe o Cemitério Dom Bosco de Perus, local onde foi encontrada uma grande vala para sepultamento clandestino de militantes contrários à ditadura civil-militar e, principalmente, de vítimas da violência do Estado até os anos 1990. As imagens do cemitério impulsionaram a comunicação do psicólogo Victor Barão, baseada no argumento de que a violência com a qual o Estado permanece tratando os cidadãos negros e periféricos resulta em números significativamente mais elevados e cotidianos do que os existentes para quantificar os mortos e desaparecidos da ditadura. Nesse sentido, é crucial ressaltar que das mil ossadas encontradas na vala de Perus, aproximadamente 40 foram identificados como de desaparecidos políticos do período de repressão militar.
Alguns membros de saraus e slams de poesia de São Paulo já estavam presentes no último debate para juntar vozes e transformar a programação em um fórum público, com o microfone aberto aos que desejaram se expressar. Para mobilizar as falas, foram convidados saraus da cidade, entre os quais o “Sarau do Binho”, espaço de encontro da região do Campo Limpo, zona Sul de São Paulo, que há mais de 15 anos realiza projetos voltados ao incentivo à leitura, à criatividade e à consciência crítica. Também compareceram membros do “Sarau das Carolinas e Firminas”, formado por mulheres que articulam escrita e fala como formas de luta e resistência, e do “Centro para Slam Gracinha”, contando com jovens de até 15 anos que compartilharam poesias autorais e de terceiros para tratar de racismo, misoginia, homossexualidade, preconceito e empoderamento. Nessa noite de microfone aberto, os múltiplos discursos que a exposição propõe como potência – estética, no caso da arte, e discursiva, no caso da documentação que apresenta – foram trazidos e provocados pelo turbilhão das falas, de diferentes vozes, das vozes às quais este projeto mais diz respeito. No entanto, ainda que a perspectiva inicial de ampliação das discussões de OSSO tenha sido alcançada – reunindo pesquisadores e temáticas pouco comuns nos debates tradicionalmente instaurados, como lei de drogas, encarceramento em massa e racismo–, ao final fica a compreensão de que essa ampliação não pode se dar apenas no âmbito temático. Por mais que seja evidente a importância e ineditismo de se fazer um programa de discussões que não estão enraizadas na instituição e nos atores que a frequentam, a ampliação discursiva não pode se encerrar neste projeto, tampouco pode se deixar qualificar como excepcional. Isso porque uma recorrência nos discursos trazidos se refere à atenção à representatividade. Que é preciso alcançar essas temáticas do ponto de vista e da ação de quem as vive, de quem pode falar por si sem a necessidade de representações. A importância da exposição se dá também na perspectiva de mudança dos valores que moldam esse lugar: há de se ponderar como trazer questões que ainda não foram historicamente absorvidas pelo meio artístico, por não permearem o seu cotidiano. Desse modo,
uma consideração é fundamental: a programação só ocorreu devido ao engajamento sistemático de pessoas, coletivos e movimentos que seguem na luta por maior igualdade. Consigo, foram capazes de trazer novos públicos ao espaço, mesmo que não se sintam como pertencentes a ele. Isso anuncia uma gama de questionamentos que precisam ser respondidos enquanto projeto político e ético, entre os quais a compreensão de que há demanda por tais debates, e a importância de refletir constantemente sobre como garantir a participação desse público, com uma programação em que se sinta contemplado e possa produzir.
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PROGRAMAÇÃO 01/07/2017 (SÁBADO) – 18h A Mesa de abertura constituiu-se de debate apresentado pelo curador Paulo Miyada e por Hugo Leonardo, com a participação de Geraldo Prado, Suzane Jardim e Cidinha da Silva. Cidinha da Silva é escritora e ativista, autora de nove livros, incluindo #Parem de nos matar! (São Paulo: Editora Ijumaa, 2016). Geraldo Prado é professor de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e consultor jurídico. Hugo Leonardo é advogado criminal, vice-presidente do IDDD e conselheiro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). Suzane Jardim é bacharela em História pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora de gênero e dinâmicas raciais e uma das organizadoras da campanha “30 Dias por Rafael Braga”. 06/07/2017 (QUINTA-FEIRA) – 19h Apresentação da peça MACACOS (45 min) produzido pela Cia do Sal. (FIGURAS 1 e 2) MACACOS – monólogo que se desenvolve a partir do relato de um homem negro em busca de respostas para o racismo que rodeia o seu cotidiano e a história de sua comunidade. É como um fluxo de pensamentos, desabafos e elucidações que remete à história do Brasil e de grandes artistas negros, como Elza Soares, Machado de Assis e Bessie Smith, refletindo também sobre o presente por meio de relatos e estatísticas atuais sobre o encarceramento e execução de jovens negros no país. A Cia do Sal é um grupo formado por artistas-amigos que se conhecem há 10 anos e que valorizam em suas criações artísticas o empoderamento político-social, bem como a participação do público para a construção de suas obras. O repertório da Cia do Sal discute temas de urgência como o racismo e o genocídio negro no
Brasil, procurando sempre afinar o seu discurso horizontalmente, muitas vezes optando por convidar artistas, parceiros ou aprendizes para atuar junto aos membros com formação em Teatro, Dança, Iluminação e Direção Cênica. 13/07/2017 (QUINTA-FEIRA) – 18h30 Realização da performance Sua vez (20 min) produzida pelo Grupo EmpreZa (GE). Projeção da websérie O filho dos outros (2017, 4 episódios com duração total de 68 minutos), produzida pelo coletivo Rebento, seguida de debate. (FIGURA 3) O filho dos outros – websérie produzida pelo coletivo Rebento que traz discussões sobre a redução da maioridade penal no Brasil. Além de abordar o tema de forma direta, reúne dados e informações que enriquecem a reflexão acerca do assunto e a complexidade que o acompanha, como os direitos da criança e do adolescente no Brasil, o conceito de infância, o sucateamento da educação pública e outros problemas estruturais da sociedade. A série discute, também, as possíveis consequências da redução da maioridade penal na sociedade brasileira. O coletivo Rebento nasceu em 2015 já pensado para o desenvolvimento da websérie O filho dos outros. Seu objetivo é ter estrutura para fazer trabalhos voltados aos problemas sociais e, assim, contribuir com o debate público. 20/07/2017 (QUINTA-FEIRA) – 19h Exibição dos documentários Mulheres negras: Projetos de mundo (2016, 25 min), de Day Rodrigues e Lucas Ogasawara, e Universo Preto Paralelo (2016, 12 min), de Rubens Passaro, seguida de conversa com os diretores. (FIGURA 4) Mulheres Negras: Projetos de mundo – dirigido pela produtora cultural, escritora e feminista negra Day Rodrigues em parceria com Lucas Ogasawara, o documentário conta com depoimentos de nove mulheres negras abordando a experiência de vida a partir
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da raça, do gênero e da classe, apresentando discussões sobre o feminismo negro e a resistência da mulher negra ao longo dos anos. Day Rodrigues é produtora cultural e escritora, tem Licenciatura em Filosofia e Especialização em Gestão Cultural pelo Centro de Pesquisa e Formação do Sesc. Produziu e escreveu o documentário Ouro Verde: a Roda de Samba do Marapé e o curtametragem Ponto Final. Universo Preto Paralelo – comparando obras do século XIX e depoimentos dados à Comissão Nacional da Verdade, o documentário dirigido por Rubens Passaro traça um paralelo entre as violações de direitos humanos no passado escravocrata brasileiro e na ditadura civil-militar. Rubens Passaro é formado em Midialogia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e atua na área de criação e produção de audiovisuais, que inclui trabalhos de web e multimídia. É sócio da Tropeiro Produções, que tem no portfólio produções como Crack: repensar e Di Melo – O Imorrível. 27/07/2017 (QUINTA-FEIRA) – 19h Mesa de discussão com o tema “Encarceramento em massa e seletivismo penal”, com participação de Adriana Eiko Matsumoto, Isadora Brandão e Pedro Borges. (FIGURA 5) Adriana Eiko Matsumoto é psicóloga, já atuou no sistema prisional e em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. É Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense (UFF). Isadora Brandão é defensora pública do estado de São Paulo desde 2013. Mestra em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP), estuda as atividades das mulheres negras e as suas relações com o emprego doméstico. Pedro Borges é jornalista formado pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), membro da Iniciativa
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Negra por uma Nova Política sobre Drogas (INNPD) e cofundador do portal Alma Preta, que aborda diversos temas relacionados ao mundo negro, visando a construção de uma identidade negra positivada e a denúncia/combate ao racismo. 28/07/2017 (SEXTA-FEIRA) – 19h Exibição do documentário Sem pena (86 min), de Eugênio Puppo, seguido de conversa com Hugo Leonardo e Heloisa Bonfanti. (FIGURA 6) Sem Pena – nenhuma população carcerária cresce na velocidade da brasileira, que já é a terceira maior do mundo. Realizado pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), o documentário expõe a vida nas prisões brasileiras e o Sistema de Justiça do país, demonstrando como morosidade, preconceito e a cultura do medo só fazem ampliar a violência e o abismo social existente. O Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), fundado em 2000, é uma organização que trabalha pelo fortalecimento do direito de defesa. A missão do IDDD é fomentar a ideia de que todos têm direito a uma defesa de qualidade, à observância do princípio da presunção da inocência, ao pleno acesso à Justiça e a cumprir a pena de forma digna. Heloisa Bonfanti é assistente de direção do documentário Sem Pena. Formada em Ciências Sociais, desde 2005 atua na área da cultura, especialmente no Cinema, integrando equipes de produção, pesquisa e direção de filmes e documentários. Hugo Leonardo é advogado criminal, vice-presidente do IDDD e conselheiro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). 29/07/2017 (SÁBADO) – DAS 13H ÀS 20h Ateliê aberto de cartazes realizados por Bruno Perê, Diane Boda e Isadora Mellado. (FIGURA 7) Exibição do vídeo Apelo (14 min), de Clara Ianni e Débora Maria da Silva, seguido de conversa com Victor Brandão, do Coletivo
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Margens Clínicas. Apelo – é o depoimento de Débora Maria da Silva, fundadora do movimento Mães de Maio, que teve seu filho assassinado em 2006 pela Polícia Militar do Estado de São Paulo. Foi exposto na 31ª Bienal de São Paulo (2014). O apelo busca o direito ao luto e à memória coletiva dos jovens assassinados. Margens Clínicas é um coletivo de psicanalistas que oferece atendimento psicológico a familiares e vítimas de violência do Estado. Desde 2016, desenvolve a Clínica do Testemunho nas Margens e é um dos Centros de Estudos em Reparação Psíquica, ambos parte do programa Clínicas do Testemunho da Comissão de Anistia. O Margens Clínicas defende a importância da efetivação de políticas reparatórias como uma das formas de combate à violência policial na democracia. Apresentação do Sarau do Binho, do Sarau das Carolinas e Firminas e outros saraus e slams de poesia de São Paulo – a partir das 18 horas Sarau do Binho – acontece há mais de 15 anos na zona Sul de São Paulo. É um espaço de encontro no qual a literatura e a poesia têm lugar privilegiado, reunindo pessoas ligadas às várias linguagens culturais, como poetas, artistas plásticos, músicos, cineastas, fotógrafos e atores da região de Campo Limpo. O Sarau do Binho vem realizando vários projetos voltados ao incentivo à leitura, à criatividade e à consciência crítica. Atualmente acontece no Espaço Clariô de Teatro, em Taboão da Serra, e também na Praça do Campo Limpo, além de se apresentar em escolas públicas, bibliotecas, unidades do Sesc e CEUs. (FIGURAS 8 e 9) Sarau das Carolinas e Firminas – tem como proposta apresentar os versos de militância das Carolinas e Firminas do dia a dia, as de ontem e de hoje, que transformam a escrita em poderosa arma de luta e resistência. 05/07 A 11/08/2017 (QUARTAS, QUINTAS E SEXTAS-FEIRAS) As visitas mediadas contemplaram conversa na exposição, com o
acompanhamento de um educador, seguida de proposta poética realizada no ateliê, buscando a reflexão e o aprendizado sobre arte a partir do diálogo e da experimentação plástica. (FIGURA 10) 01/07 A 29/07/2017 (TERÇAS-FEIRAS E SÁBADOS) Os Ateliês abertos de cartazes foram realizados semanalmente no Instituto Tomie Ohtake, aos sábados, e no Centro de Detenção Provisória III de Pinheiros, às terças. Foram produzidos cartazes relacionados ao tema da exposição a partir de técnicas como serigrafia, estêncil e carimbo. (FIGURA 11)
INSTITUTO TOMIE OHTAKE Presidente Ricardo Ohtake Curador Paulo Miyada curador Núcleo de Pesquisa e Curadoria Paulo Miyada coordenador Carolina de Angelis Luise Malmaceda Priscyla Gomes Theo Monteiro Produção Vitoria Arruda diretora André Luiz Bella Carla Ogawa Cecilia Bracale Lucas Fabrizzio Mana Mendonça Patricia Castilho Rodolfo Borbel Administração e Finanças Roberto Souza Leão Veiga diretor executivo Bruno Damaceno Carlito Oliveira Junior Fabiana Cristina de Almeida Joseilda Conceição Renê Rossignol Sergio Santos Souza Willian dos Santos Victor Gabriel, aprendiz Jodeval de Souza, aprendiz Negócios Business Ivan Lourenço diretor Fernando Pinho Flavio Silva Kelly Lima Assuntos Institucionais e Comunicação Simone Alvim coordenadora Eloise Martins Marcella Nigro
Núcleo de Cultura e Participação Felipe Arruda diretor Divina Prado Felipe Tenório Fernanda Beraldi Jane Santos Luis Soares Maiara Paiva Mauricio Yoneya Melina Martinho Victor Santos Oliveira Educadores Anita Limulja Bruno Ferrari Jordana Braz Lucia Abreu Machado Nádia Bosquê Pedro Gabriel Amaral Costa Priscila Menegasso Assessoria de Imprensa Pool de Comunicação Marcy Junqueira Luisa Teles Baptista Martim Pelisson Design Gráfico Ricardo Ohtake Monica Pasinato Rodrigo Pasinato Daniela Rocha Nazareth Baños Informática André Biacca Documentação Marcos Massayuki Sutani Secretaria Maria de Fátima da Silva Rocha Deolinda Correia de Almeida Moises Silva Mello Coordenação Operacional Alexandre Lopes Pereira Wagner Antônio Barbosa supervisor
IDDD CONSELHO DELIBERATIVO Presidente Dora Marzo de Albuquerque Cavalcanti Cordani Vice-Presidente Flávia Rahal Antônio Cláudio Mariz de Oliveira Augusto de Arruda Botelho Eduardo Augusto Muylaert Antunes José Carlos Dias Leônidas Ribeiro Scholz Luís Guilherme Martins Vieira Luiz Fernando Sá e Souza Pacheco Marcelo Leonardo Maria Tereza Aina Sadek Nilo Batista DIRETORIA - GESTÃO 2016/2019 Presidente Fábio Tofic Simantob Vice-Presidente Hugo Leonardo Diretora Executiva Marina Dias Daniella Meggiolaro Francisco de Paula Bernardes Junior Guilherme Madi Rezende Guilherme Ziliani Carnelós José Carlos Abissamra Filho Renato Marques Martins Rodrigo Nascimento Dall’Acqua Thiago Gomes Anastácio INSTITUCIONAL Coordenadora geral Amanda Hildebrand Oi Assessora de Projeto Vivian Peres da Silva Analista de Comunicação Juliana Santos
CRÉDITOS CATÁLOGO OSSO Textos Beatriz Gotlieb Ribas Cidinha da Silva Divina Prado Felipe Arruda Hugo Leonardo Luise Malmaceda Paulo Miyada Victor Santos Projeto gráfico Ricardo Ohtake Monica Pasinato Rodrigo Pasinato Daniela Rocha Nazareth Baños Revisão Armando Olivetti Fotografia Ricardo Miyada Educadores do Instituto Tomie Ohtake COPYRIGHT UMA FACA SÓ LÂMINA – IN: OBRA COMPLETA, DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO, NOVA AGUILAR, RIO DE JANEIRO © BY HERDEIROS DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO Todos os esforços foram feitos para localizar os detentores dos direitos de imagem. Este catálogo foi publicado por ocasião da exposição OSSO Exposição-apelo pelo amplo direito de defesa de Rafael Braga 28 de junho a 30 de julho de 2017 Exposição realizada pelo Instituto Tomie Ohtake e Instituto de Defesa do Direito de Defesa.
exposição-apelo pelo amplo direito de defesa de Rafael Braga
Complexo Aché Cultural Av.Faria Lima 201 Entrada pela R.Coropés, Pinheiros,SP A 600m do Metrô Faria Lima Tel 11 2245 1900 www.institutotomieohtake.org.br instituto@institutotomieohtake.org.br /inst.tomie.ohtake /institutotomieohtake