LEIA a Introdução de Apontamentos da Arte Africana e Afro-Brasileira Contemporânea

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APONTAMENTOS DA ARTE AFRICANA

E AFRO-BRASILEIRA

CONTEMPORÂNEA:

POLÍTICAS E POÉTICAS

CÉLIA MARIA ANTONACCI

APONTAMENTOS DA ARTE AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA:

POLÍTICAS E POÉTICAS

CÉLIA MARIA ANTONACCI

ISBN 978-65-87484-03-7

1a Edição | São Paulo | 2021

Invisíveis Produções

Editor: Daniel Lima

Revisão: Daniela Souto e Perpétua Queiroz

Capa: Arthur Bispo do Rosário. Manto da Apresentação (face interna). Cortesia Museu Arthur Bispo do Rosário.

Antonacci, Célia Maria

A 634a Apontamentos da arte africana e afro-brasileira contemporânea: políticas e poéticas /Célia Maria Antonacci; editor e projeto gráfico: Daniel C. F. Lima. –São Paulo, SP : Invisíveis Produções, 2021. 320 p.; il. coloridas

ISBN: 978-65-87484-03-7

Copyright © 2021 de Invisíveis Produções

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1. Arte. 2. Arte Africana - Aspectos políticos. 3. Arte Brasileira - Aspectos políticos. 4. Poética. 5. Arte Moderna. 5. Racismo I Lima, Daniel C. F, projeto gráfico. II Título CDD 709.6 707.4

APONTAMENTOS DA ARTE AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA:

POLÍTICAS E POÉTICAS

CÉLIA MARIA ANTONACCI

* https://www.youtube.com/watch?v=Tquyg5tFxRw

Nota: tradução livre de Célia Maria Antonacci de todos os texto em língua estrangeira.

** Ali A. Mazrui, The Mirror of Africanity, reflections on scholarship and identity, the untalented tenth? , in Tradition and Change in Africa, J. F. Ade. Ajayi, Toyin Falola editor. African World Press, Inc. Trenton, NJ, 200, p. xxxiii.

*** Achille Mbembe, Políticas da Inimizade, Antígona, 2017, p. 211.

A arte africana é uma contribuição humana para os povos que toca universalmente. Mesmo nos dias de hoje, se você vai a um museu em Londres ou em Paris, não tem nada no espaço para África, sobre a arte africana. Você pode admitir que alguma coisa foi deixada para trás. Temos que admitir com toda a humildade que alguma coisa foi deixada ao longo do caminho do tão chamado progresso.*

Definimos “África Global” como o continente africano mais a sua diáspora em todo o mundo – de Kampala a Kingston, de Harare ao Harlem e, de fato, dos afro-brasileiros aos afro-europeus. A África Global está envolvida nas quatro grandes negações às quais os africanos foram submetidos pelo mundo ocidental – a negação da história, a negação da ciência, a negação da poesia e a negação da filosofia. Quatro aspectos e negrofobia.**

A História dos negros não é uma história isolada. É parte integrante da história do mundo. Os negros são tão herdeiros desta história do mundo como a restante espécie humana. (...) Já não há passado no mundo que não deva responder ao mesmo tempo pelo passado dos negros, tal como não há passado dos negros que não tenha de dar conta da história do mundo no seu todo.***

Prefácio OS “APONTAMENTOS” FALAM: A NOSSA POÉTICA É A POLÍTICA! por Renato Araújo da Silva 09 Introdução CAMINHOS DE ESCRITA 15 Capítulo I O “SIGNIFICADO DOS NOVOS TEMPOS”. ARTE E SOCIEDADES: TRADIÇÕES TRADUZIDAS NO PRESENTE 23 Rupturas pós-coloniais 52 África: um hipertexto contemporâneo 58 Capítulo II O ENCONTRO COLONIAL Ernest Mancoba, Marc Wonga Mancoba e Sonja Ferlov Mancoba 69 Capítulo III ARTE EM TRÂNSITO 82 Museus etnográficos versus coloniais 100 Outras polêmicas dos museus e seus atributos políticos 105 Musée des Colonies de la Port Doré 111 Vozes da África – Présence Africaine 126 Conquistas, lutas e autodeterminação 129 Tempos mais contemporâneos 131 Soberanias ou estranhamentos da modernidade? 134 Polemizando os espaços, derrubando paredes de contenção da arte 139 Capítulo IV O DEVIR- NEGRO NO BRASIL E O PROTAGONISMO POLÍTICO POÉTICO AFRO - BRASILEIRO 145 Quem define este presente do qual falamos? 215 Políticas e poéticas no “re-ligare” à vida 263 Capítulo V WHO KNOWS TOMORROW (quem sabe o amanhã) 292 A intervenção dos cinco artistas nos quatro museus 296 Epílogo DE ONTEM PARA O “AQUI E AGORA” 301 Bibliografia 310 Agradecimentos 316 Índice Remissivo 320

PREFÁCIO

OS “APONTAMENTOS” FALAM: A NOSSA POÉTICA É A POLÍTICA! POR RENATO ARAÚJO DA SILVA

Manto da Apresentação (face interna)

Cortesia Museu Arthur Bispo do Rosário

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Arthur Bispo do Rosário

Há coisa de três anos atrás, eu recebi a Célia e a sua irmã Antonieta, antigas conhecidas, na Coleção Ivani e Jorge Yunes em São Paulo, onde trabalho como curador e pesquisador de arte africana. Em nossas conversas, falávamos se as mortes cancerígenas de jovens como Sidney Amaral (1973-2017), Sarah Rute Barbosa (19502010), Bisi Silva (1962-2019), Okwui Enwezor (1963-1919) não tinham algo em comum, além de que todos tivessem sido em algum ponto de suas vidas menosprezados, exatamente por causa da cor de suas peles: Frantz Fanon morreu aos 36 anos, mas aos 46 também se foi Estevão Silva (1845-1891). Igualmente, Firmino Monteiro (1855-1888) e o suicida Antônio Rafael Pinto Bandeira (1863-1896) morreram aos 33 anos. Os “emparedados”

Lima Barreto (1881-1922) e Arthur Timótheo da Costa (1882-1922), suicidados à sua maneira, trancafiados e supostamente loucos, morreram bêbados, em torno dos 41 anos de idade.

O que esses intelectuais negros tinham em comum, além de todos serem superdotados em “bílis negra”? Em nossas conversas, eu não podia afirmá-lo de pronto. Uma ONG de São Paulo apurou que ocorre atualmente 250 óbitos de homens negros por infecção pela Covid-19, a cada 100 mil habitantes (por comparação, seriam 157 mortes de brancos a cada 100 mil habitantes). O “Atlas da Violência” de 2020 indicou que 75,7% das vítimas de homicídio no país são negras. Enquanto escrevo essas linhas, chega a notícia de que um estudante negro de Geografia da FFLCH-USP, Ricardo Lima da Silva, se jogou do prédio da república universitária onde morava e onde eu também morei há 20 anos atrás. Outros dois alunos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas também se mataram nos últimos 2 meses. Ora, três suicídios em uma mesma faculdade e alguém poderia nos perguntar, o que isso tem a ver com a arte? Como resposta, só poderíamos dizer o que os “apontamentos” nos dizem: a nossa poética é a política!

Lidemos conosco, os seres humanos. Quanto de confinamento, barreiras e incompreensões mútuas apartaram todo um complexo grupo de criadores de ascendência africana - na África e fora dela - da sua contribuição para o desenvolvimento da cultura mundial? Seria por acaso preciso mais do que um século e meio de liberdade formal para que a liberdade real pudesse começar a ser calcada em formulações artísticas e políticas que estão hoje de uma maneira ou de outra tomando conta dos museus mundo afora? Quando a professora Célia Antonacci me ligou propondo que eu a prefaciasse, eu esperava que o novo livro que me estava trazendo fosse sobre arte. Achei isso inquietante, uma vez que há poucos meses eu escrevera um manifesto juvenil tardio intitulado: “Nunca Mais Pisarei num Museu!” Qual não foi a minha surpresa quando chegou por e-mail um pdf de um livro exatamente sobre... política! Eu que sempre amei desafios não haveria de me furtar de enfrentar essas mais de 300 páginas terríveis! Seguir apontamentos sobre arte africana ou afro-brasileira pode ser uma maneira de - com enormes “tapas na cara” - nos fazer definitivamente entender que a nossa realidade artística é, em primeiro lugar, social. Eis o que os “apontamentos” de Célia repetidamente nos ensinam: a nossa poética é a política. Existe, portanto, uma continuidade a ser perseguida, caminhos a serem refeitos. É preciso criar e se apoiar em âncoras já comungadas por aqueles que estão essencialmente conosco nesse mesmo barco do tempo, muitos deles referidos nestes “apontamentos” da Célia.

Eu já acompanhava as suas atividades e a de alguns de seus alunos e assistentes, desde pelo menos 2015, tanto por seu trabalho como professora universitária junto à UDESC (Universidade do Estado de Santa Catarina) quanto pelo seu projeto documental e cinematográfico magnífico cobrindo inúmeras entrevistas e vídeos-arte

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pedagógicos relacionados à vida e obra de artistas africanos e afro-brasileiros da atualidade. Como um pesquisador do Museu Afro Brasil à época, eu me esforcei para intermediar junto ao meu então “patrão”, Emanoel Araújo, uma entrevista para esse projeto da Célia que já nascera grande. Eu pude por exemplo acompanhar animadamente a realização e crescimento do projeto, a partir da entrevista com Sidney Amaral, realizada dentro do Museu e que resultou no delicado filme: “O Banzo, o Amor e a Cozinha de Casa - Sidney Amaral”1. Sidney faleceria poucos anos depois, demonstrando que a vida é aqui e agora e que esse projeto da Célia de “dar voz à vida artística negra” era um ponto pacífico para a metáfora da existência, a qual ela própria retomaria no presente livro sobre “criar o futuro da arte apesar das incertezas do amanhã”.

Se a arte nos abre as portas do tempo, ela torna explícita a realidade deste tempo e à essa arte não cabe outra coisa senão fazer sangrar o presente. Alguns aqui no Brasil acreditam imitar os nossos antigos colonialistas e falam de arte como quem saboreasse um chá das 17h com a rainha. Mas se esse tempo for cada vez mais fechado entre nós, quanto aberto for o tempo para as atividades artísticas e intelectuais vicerais que, calcados na experiência do passado audaz de um Estevão Silva, de um Arthur Timótheo, de um Wilson Tibério, apontem luzes possíveis para pavimentar o caminho daqueles que virão amanhã, as incertezas futuras importarão menos do que a certeza de que a vida é para hoje e a arte é para agora

Foi então que, quando abri o livro, o seu título logo me fez perceber que essa leitura me faria deparar com o provocativo verbo “apontar”. Em sua ambiguidade, essa palavra podia tanto se referir ao movimento agudo de indicação de um caminho, quanto o sentido de uma acusação, uma notícia ou mais propriamente uma denúncia. A força crítica que o debate exige confere às inúmeras referências teóricas do livro um quadro de avisos: a urgência política cria a urgência poética e a arte provinda de aspirações cidadãs é uma arte que não só veio para ficar, mas também para deixar uma demarcação dela neste tempo.

Os “Apontamentos de Arte Africana e Afro-brasileira Contemporânea: políticas e poéticas”, nesse sentido, fazem ecoar vozes e gritos que externalizam indignações e reclamam por cidadania artística e social. As vozes ouvidas provém desse grupo de intelectuais que se projetam nesta pavimentação do futuro dessa arte de consciência negra, arte da ciência de que nós humanos estamos sendo exterminados. Urgem aqueles parâmetros que são dignos de todos nós (sem exceção de classe, gênero ou cor) no contexto da nossa herança africana. E é tão lindo quando uma mulher negra, um indígena falam por todos nós! É preciso ouvir o grito daqueles que sabem o que gritam e por que gritam.

O livro da Célia deixa explícitos dois cenários fundamentais: a) a profusão de autores e agora também de artistas pode abrir um espaço para fundamentação de uma arte cujas temáticas são suficientemente humanas e por isso universais o suficiente para serem vistas como arte; b) a experiência afro-brasileira se mescla à experiência africana, afro-europeia, afro-latina e afro-estadunidense do ponto de vista comum do clamor, inquietação e angústias transnacionais de seus intelectuais, seus artistas e de seu público. Essa leitura revela como as políticas e poéticas se entrecruzam conduzindo as interpretações sobre essa profusão e suas demandas artísticas na forma de categóricas exigências sociais.

1 https://vimeo.com/132738812 11

Entrevistas preciosas feitas pela própria autora no Brasil e na Europa são demarcações da originalidade desta pesquisa. É assim que palavras de “bibliotecas” hoje perdidas como o historiador Jacob Festus Adeniyi Ajayi (1929-2014) são relidas nas páginas da Célia. Bem como é possível avivar em bom português, também traduzidas pela autora, falas dos artistas e pesquisadores camaronenses como Isaac Essoua Essoua (conhecido como Malam, 1967) e Yves Chatap (1977), também do artista franco-togolês William Adjété Wilson (1952), ouvimos ainda a voz universal do artista congolês Ngimbi (Luve) Bakambana (1977), citando Pascal. Célia esboça essa trajetória, entre outros, com artistas africanos do mundo, dando voz a gerações distintas desde Ernest Mancoba (1904-2002) a Djadji Diop (1973). Mas os “apontamentos” de Célia também trazem a reflexão e alguns trechos de entrevistas inéditas feitas por ela com brasileiros como Tiago Gualberto, Sidney Amaral, Eustáquio Neves, Rosana Paulino, possíveis de serem acompanhadas na íntegra pelos links de sua videoteca aqui gentilmente oferecidos por ela, além de destacar as ações vibrantes de artistas como Priscila Resende e Charlene Bicalho, o coletivo Frente 3 de Fevereiro, entre tantos outros nomes artísticos de cujos trabalhos nos orgulham a ponto de não enxergarmos dicotomia nenhuma nos termos “arte”, “afro” e “brasileiro”.

Há que se explicitar a responsabilidade dos artistas, dos intelectuais e dos museus em relação ao seu histórico colonialista e a superação dessa característica museológica principal. Célia parte das rupturas pós-coloniais, falando do significado dos novos tempos, dá mostras sobre o “encontro colonial” e a dissolução das estéticas acadêmicas sob este novo prisma, incluindo a crítica ao moderno e ao modernismo - uma nova virada sobre a já centenária “virada estética”. Ela segue apontando para uma arte em trânsito e a encruzilhada dos museus etnográficos culminando nos lugares cruciais desta temporalidade: de um lado, o “devir negro”, tratado na forma das Políticas e Poéticas do protagonismo da arte feita por artistas do Brasil; e de outro lado, o Who Knows Tomorrow (Quem sabe o Amanhã) com uma exposição de projetos independentes de cinco artistas africanos, inaugurada na Nationalgalerie, em Berlim, em junho de 2010. Uma curadoria conjunta Nigéria-Alemanha (África e Europa) com o nigeriano Chika Okeke-Agulu e a alemã Britta Schmitz, que convocaram cinco artistas africanos para apresentarem trabalhos sobre relação colonial e pós-colonial entre a África e a Europa. Por fim, no epílogo, ela aponta caminhos e faz uma tomada de posição umedecendo as nossas vidas, mas sobretudo ungindo aqueles que pensarão o quanto não só as artes mas todas as manifestações “afros” se colam ao regime ancestral de todos nós.

Ao longo desse panorama, Célia faz uma análise interpretativa de cada artista, cada intelectual negro fazendo-o falar, confrontando-o com a sua situação. Ela cita Fanon (p.149): Falar é existir absolutamente para o outro. Ao mesmo tempo em que fazer arte também é estar no mundo enquanto corpo negro. A presença de negro no mundo faz o artista remeter, nem que não queira, ao histórico da percepção de sua presença como negro no mundo - o artista, o intelectual enjaulados pelas suas circunstâncias lançam seus libelos com o objetivo ímpar e exporem atos criminosos desferidos contra eles e contra os outros como eles. Por outro lado, até que ponto as paredes dos porões da cultura onde vivem aguentarão essa pressão para que se desabe o sistema que se retroalimenta continuamente? Eis o “venerável ciclo da dependência econômica”: quanto mais você precisa das armas e do dinheiro do império, mais você depende dele; quanto mais você depende dele, mais você se utiliza das armas e do dinheiro do império. Célia aponta que as mensagens imperialistas serão acusadas

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no tribunal da arte pelos artistas. Externalizar indignações visuais é lutar contra o apagamento socio-político, assim como externalizar reivindicações políticas é lutar contra o apagamento visual.

A emocionante história por detrás da fotografia da artista Aline Motta Pontes sobre “Abismos #03” sintetiza a luta contra esse apagamento. Este é um olhar poético sobre a ancestralidade africana da artista contrastada entre um exame de DNA, uma busca por vestígios perdidos e uma viagem a África atrás de um dos pontos possíveis de contato com um passado remoto, mas certamente não integralmente perdido. Esse percurso sobre o abismo é uma acolhida emotiva e um “religare”, uma reconexão que permite o instante fotográfico. A artista imprime o rosto ancestral em lençóis transparentes e refaz a fotografia in loco africano, recriando os laços transcontinentais rompidos. Essas distancia/aproximação de tempos e de espaços são a obra de arte. E estes apontamentos, como fotografias, registram exatamente isso.

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INTRODUÇÃO CAMINHOS DE ESCRITA

Rosana Paulino, Parede da Memória, 1994.

Serigrafia em almofadas, 8 x 8 x 3 cm.

Foto: Claudia Melo.

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Logo após a queda do Muro de Berlim, 1989, Stuart Hall escreveu o texto “The meaning of New Times” (O Significado dos Novos Temos)1. Tomo aqui emprestado esse título de Hall para pensarmos nosso tempo, seus afetos e desafetos. Stuart Hall começa o texto perguntando: “How new are these New Times?” (O quanto novo são estes novos tempos?). Eles são o alvorecer de uma “Nova Era” ou apenas o sussurro de uma velha? O que há de novo neles? Como avaliamos suas contradições? Elas são progressivas ou regressivas? Essas são algumas das interrogações que o discurso ambíguo dos “Novos Tempos” coloca. Para Hall, essas são questões importantes não porque os “Novos Tempos” possam nos dar respostas definitivas na solução de ambiguidades inerentes a essa ideia, mas porque estimula um debate sobre as condições sociais e culturais que vivemos e procuramos compreender. Essas imprecisões colocadas por Stuart Hall me levam a Homi Bhabha, quando pergunta:

Quem define esse presente a partir do qual falamos? (...) Os tempos modernos da humanidade, venerada na Liberdade, Igualdade, Fraternidade, apenas alimenta o fator racial arcaico da sociedade escravagista?

O que aprendemos daquela consciência cindida, daquela disjunção ‘colonial’ dos tempos modernos e das histórias de colônia e escravidão, em que a reinvenção do eu e a reelaboração do social estão literalmente fora dos eixos? (...) Este é o espaço em que a questão da modernidade emerge como uma forma de interrogação: a que pertenço eu neste presente? Em que termos identifico-me com o “nós”, o domínio intersubjetivo da sociedade?2

A busca da identidade ou identificação com um grupo social parece ser uma questão central neste tempo contemporâneo de nações dentro de nações em embate com fronteiras físicas, ideológicas e sobretudo imaginárias, o que nos conduz a repensar os rótulos e roteiros que vêm sendo nos dado desde nosso estar no mundo, como se um itinerário que a partir do lugar que habitamos, nosso idioma, cor de pele, religião e identificação sexual estivesse impresso em uma cartilha a ser seguida sem interrupção e menos ainda interrogação. Esses roteiros/paradigmas que estruturam as sociedades contemporâneas, já enredados nas pedagogias do nacionalismo opressor, precisam ser questionados e interrompidos para que o eu oprimido da pedagogia possa se performar no nós, numa escrita dupla da Dissimi-Nação.3

As pedagogias que Bhabha assinala encontram ecos em um dos momentos mais marcantes na história da construção de um pensamento pós-colonial quando da publicação, em 1978, do livro Orientalismo, de Edward Said.4 Nesse livro, Said mostra, através de textos da literatura e do cinema, que o Oriente é uma invenção do binarismo ocidental, e, contra o dogma marxista de um simples poder militar-econômico estabelecido no projeto colonial, defende a tese de que o colonialismo se apoiou em uma infraestrutura discursiva, uma economia simbólica, onde todo um aparato de conhecimento visava uma violência igualmente epistemológica e física.

A leitura desse livro logo me indicou Cultura e Imperialismo,5 em que Said nos conduz aos bastidores da lite-

1 In Stuart Hall, Critical Dialogos in Cultural Studies. Edited by David Morley and Kuan-Hsing Chen. London and New York, Routledge, 2001, p. 223.

2 Homi Bhabha, O Local da Cultura, Belo Horizonte, Humanitas, 2014, ps.386/387.

3 Idem, p. 227.

4 Edward Said, Orientalismo. Companhia das Letras, 2007.

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Célia Maria Antonacci é mestra e doutora em Comunicação e Semiótica, PUC/SP e professora do CEART/UDESC. Em 2012, realizou estágio de pós-doc no “Centre d'études des mondes africains” (CEMAf), em Paris. Publicou os livros Grafite, Pichação & Cia (1993), Teorias da Tatuagem, Corpo Tatuado: uma análise da loja Stoppa Tatoo da Pedra (2001) e As Nazi-tatuagens: inscrições ou injúrias no corpo humano? (2006). Em suas pesquisas realiza vídeos e publica artigos sobre os temas, disponíveis em poeticascontemporaneas.com

APONTAMENTOS DA ARTE AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: POLÍTICAS E POÉTICAS

CÉLIA MARIA ANTONACCI

O livro “Apontamentos da arte africana e afro-brasileira contemporânea: políticas e poéticas” de Célia Maria Antonacci busca repensar o espaço para arte africana e afrobrasileira através de uma cartografia afetiva de artistas e obras que dialogam entre si e estabelecem uma visão radical de representações e concepções do mundo contemporâneo. Um trabalho que contribui enormemente para a aliança entre a teoria crítica da arte e a produção artística da diáspora negra. Um livro que alarga as perspectivas singulares da nossa visão do que é arte, como se produz e para quem.

ISBN 978-65-87484-03-7

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