O mulato

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GRÁFICA E EDITORA


Aluísio Azevedo

Omulato Uma história em quadrinhos de

Iramir Araujo Ronilson Freire

São Luís/MA 7 Cores 2019


Aluísio Azevedo

Omulato Uma história em quadrinhos de

Iramir Araujo Ronilson Freire Roteiro: Iramir Araujo Arte: Ronilson Freire Revisão: Rosa Ewerton Jara Capa: Iramir Araujo llustração capa: Ronilson Freire Cor da capa: Ronilson Freire e Rômulo Freire Permitida a reprodução de partes da obra, desde que citada a fonte Contatos: iramiraraujo62@gmail.com

Ficha Catalográfica Araujo, Iramir A658m O mulato / Aluísio Azevedo; Adaptado por Iramir Araujo; Ilustrado por Ronilson Freire − São Luís: Sete Cores, 2019. 132p. il. ISBN 978-85-61742-38-6 1. Literatura maranhense– Romance – História em quadrinhos I. Título. CDD: 869.93


Apresentação Eu não me alisto entre os leitores mais habituados de quadrinhos. Nunca o fui. Venho de um tempo em que, encontradas na mão de meninos e adolescentes, as histórias desenhadas eram sinal de dissipação e superficialidade de espírito, da mesma forma que as revistas de radionovelas davam por certo que as suas leitoras não eram moças que se recomendassem. Os nossos livros escolares traziam, aqui e ali, alguma gravura ilustrativa, em bico de pena e tamanho mínimo, e era só. Nada de coloridos, que desviavam a atenção do aluno. Qualquer das escolas que tenhamos frequentado era como aquela descrita por Ascenso Ferreira: “cheia de grades como as prisões” (grades reais, grades simbólicas). Os mestres, “carrancudo[s] como um dicionário, complicado[s] como as matemáticas, inacessív[eis] como Os lusíadas de Camões.” Parece incrível que este que aqui e assim se apresenta seja agora o convidado a apresentar este trabalho de Iramir Araujo e Ronilson Freire, ousada recriação da obra de Aluísio Azevedo. É que a vida nos obriga a enfrentar coincidências que, sem que se saiba, conduzem o sentido da cobrança e da regeneração. Os autores desta outra história d'O mulato decerto não sabiam que foi do bestunto e do bolso de quem assina estas maltraçadas linhas que veio a público “a primeira revista em quadrinhos do Maranhão”, a Bum-Bum (o título remetia a bangue-bangue e não à tal “preferência nacional), a qual chegou a ser vendida em bancas de revistas em São Luís, mas faleceu, logo no primeiro número, por falta de “bala na agulha” da parte deste “pistoleiro” pobre e de seu colaborador, o já então notável desenhista Silvano Alves Bezerra da Silva, que mais tarde deixaria obra imorredoura, ao conceber e instalar a Editora e, depois, a TV Universitária da Ufma. (Também, com o


mesmo Silvano, planejei uma História do Maranhão em quadrinhos, de que ainda esboçamos o script e os desenhos do primeiro capítulo, que não foi além disso). Faço esse registro, para identificar a razão – e dizer da minha gratidão – por me ter sido dada a palavra na primeira página destes desenhos que refazem o mais maranhense dos romances maranhenses, o que mais fidedignamente retraça a triste realidade das relações raciais no Maranhão de ontem como, sob muitos aspectos – por que disfarçá-lo? – ainda de hoje. Claro, são obras realizadas com instrumentos e parâmetros distintos, veiculando códigos distintos de comunicação, e, assim como há que procurar-se outro autor na película de cinema roteirizada de um livro, também é preciso encontrar obra nova e novo autor na obra quadrinizada, concedendo-se, aí, inteira liberdade ao empreendimento transcriativo. Importa apenas – e esse é requisito indispensável – que, na outra obra se encontre o mesmo ambiente, a mesma atmosfera, o mesmo pathos que está em cada capítulo do texto-base. Noutras palavras, que a obra segundo não seja uma obra segunda. Iramir Araújo e Ronilson Freire enfrentaram corajosamente a transposição, para outro campo semiótico, de uma das obras mais representativas do universo social e literário maranhense. E o fizeram com senso de concentrada percepção e fidelidade ao original. O mulato poderá ser lido, próxima e distintamente, pela pena de Aluísio Azevedo e pelo traço desses novos autores. Eu fico imaginando, até, o contentamento que manifestaria o autor do romance – ele próprio, também artista do traço – se lhe fosse dado a ver este trabalho de nossos contemporâneos. É o que penso também sentirão e imaginarão os leitores que agora recebem esta outra versão de um dos mais conhecidos dos nossos textos imortais. Sebastião Moreira Duarte Doutor em Literatura latino-americana e Pedagogia. Membro da Academia Maranhense de Letras.


Nossa cultura define quem somos e, por isso, a Equatorial Energia Maranhão busca iniciativas que abracem a diversidade, inclusão e principalmente educação, que deve ser prioridade sempre. Poder patrocinar a maior obra do escritor maranhense Aluísio Azevedo como adaptação para quadrinhos nos enche de orgulho, pois este formato é mais atrativo para o público infanto-juvenil. Com “O Mulato” em HQ a história de Raimundo, que era um mulato bastardo e, por causa da cor de sua pele não pode viver seu grande amor, continuará presente no imaginário das novas gerações. O que torna este projeto especial para a empresa é a sua capacidade que tem de promover experiência e emoção, contemporizando uma obra clássica. A Equatorial Energia Maranhão acredita no processo de desenvolvimento da nossa sociedade por meio de projetos como esse, no sentido da inclusão, respeito e cultura. Equatorial Energia Maranhão


Sobre a Lei Estadual de Incentivo à Cultura A Lei Estadual de Incentivo à Cultura é um instrumento de fomento e difusão da produção cultural no Estado, instituído por meio da Lei 9.437, de 15 de agosto de 2011. A Lei se destina ao financiamento de projetos artísticos e culturais, por meio de recursos oriundos da renúncia fiscal do ICMS. A Secretaria de Estado da Cultura (Secma) promove a intermediação entre patrocinador e incentivado, contribuindo para dinamizar o desenvolvimento cultural do estado. Os projetos são avaliados por uma comissão técnica e uma comissão de mérito, que analisam as documentações dos projetos de acordo com as normas regulamentadoras da Lei. Periodicamente, são realizadas oficinas de capacitação para orientação e divulgação da lei, tendo como público-alvo artistas, produtores culturais e profissionais da cultura em geral. Somente no ano de 2019, até o mês de setembro, 295 projetos já foram apresentados, sendo que 105 foram aprovados e 78 executados.


procurei conservar, religiosamente, certos dizeres e locuções que se usam naquela província...

este livro foi escrito e sentido aos vinte anos, quando eu estava no maranhão ao lado de minha família. apareceu em 1881.

...uma história feita em boa-fé; não a puxei à força de dentro de mim;

foi ela que se formou por si mesma...

...e procurou vir à luz em forma de romance.

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são luís, capital da província do maranhão, 1881.

então, ana rosa, que me respondes? bem sabes que não te contrario... desejo esse casamento...

mas em primeiro lugar, convém saber se ele é do teu gosto. vamos... fala!

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não dás sequer uma esperança?

com o dias? ora, papai... o dias...um... um avarento!

pode ser...

ana rosa!

vá entrando compadre!

dá licença?

mas que milagre o trouxe por cá a essa hora, compadre?

então, minha filha, como vai essa elegância?

um negócio que quero lhe comunicar. um bocado particular!

bem, agradecida. dindinho está bom? vamos para o escritório, então! sabe quem ia chegar por aí? o raimundo!

que raimundo?

o mundico, o filho do josé, homem! teu sobrinho! veja essa carta. é do peixoto, de lisboa. lê!

de lisboa? como?

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diz, também, que ele viajou por vários países da europa e que pretende se estabelecer na corte...

aqui diz que ele se formou em direito, embora tivesse sido enviado a coimbra para formar-se em teologia...

ele está bem encaminhado, quer liquidar o que tem por cá e estabelecer-se no rio.

mas antes disso, virá à província do maranhão efetuar a venda de terras e outras propriedades de que aqui dispõe.

o rio de janeiro é o brasil! ele faria uma grandíssima asneira se ficasse aqui.

até lhe digo mais... nem precisava cá vir, porque... ninguém lhe ignora a biografia. todos sabem de quem ele saiu!

o que diabo ficava ele fazendo aqui? enchendo as ruas de pernas? gastando o pouco que tem?

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é sócio cá da casa... tem as fazendas do rosário... isto é, a fazenda, porque uma é tapera...

agora... o melhor mesmo é que ele se tivesse feito padre. era a vontade do josé.

ora, deixe disso! nós já temos muitos padres de cor!

ESSA É QUE NINGUÉM QUER!

É SÓ “SER PADRE”! É SÓ “SER pADRE”!

mas compadre, você dessa vez não tem razão!

...e no fim das contas estão se vendo, às duas por três, superiores mais negros que nossas cozinheiras! então isso tem jeito? que conheçam seu lugar!

não diga asneiras!

afinal, que diabo você tem com as cabeçadas de seu mano josé?

você quer compadre, ver sua filha você às confessada, vezes parece casada, por tolo! um negro?

a coisa está feita, você não disse que queria entrar em negócio com a fazenda?

éa ocasião. trate com o dono!

devo, então, recebê-lo na qualidade de meu sobrinho?

sobrinho bastardo, é claro!

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e eu devo hospedá-lo aqui em casa?

é... se você não o fizer, as pessoas poderiam falar!

mas... isso de meter rapazes em casa, é o diabo!

mas eu e os meus sempre hoscaixeiros? pedo os meus não moram fregueses do aqui comigo? interior...

em todo caso, é por pouco tempo...

tenho cá negócios com ele. e além disso é uma fineza que me fica a dever...

são uns moscas mortas!

cáspite! já são quatro e meia!

vá se vestir, papai!

então, onde é hoje o passeio, minha rica afilhada?

à casa do freitas. não se lembra? lindoca faz anos hoje!

papai irá para o jantar. vossemecê não vai, dindinho?

com os diabos! o patrão já não lhe disse que não gosta de caixeiros amigos de gazeta? se você quer ser letrado vá para coimbra, seu burro!

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talvez apareça à noite. com certeza há dança. mas vamos, não quero atrasá-la...


como te chamas?

Ó, PEQUENO, VENHA CÁ!

então não respondes? com certeza és manuel!

minha senhora...

então o que é isso? fala direito com a gente, rapaz, levanta essa cabeça!

E essas unhas? ah! você não é tão pequeno que se desculpe por isso!

isto é um sonso, minha afilhada. olhe em que estado ele trás as orelhas! se tua alma for igual ao corpo, podes dá-la ao diabo! tu já te confessaste aqui, maroto?

vou falar com papai para matricular você numa aula de primeiras letras!

se você tornar a ir com lamúrias para dona anica, vai se haver comigo!

que estava fazendo, seu traste?

nada, seu dias... foi ela que me chamou!

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quem será esse gajo, ó coisa?

o que será que pretende aqui?

não sei, homem, mas é um rapagão!

é o filho de um mano do pescada!

chama-se raimundo. estava nos estudos!

creio que vem montar uma companhia!

resolvi caminhar um pouco. mas que calor horrível, nunca suei tanto!

ora, você chegou! já ia buscá-lo no porto!

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ana rosa, eminência, apresento meu sobrinho raimundo.

vamos, minha afilhada. lindoca a espera.

o melhor, então é recolher-se um pouco e ficar à vontade. pode mudar de roupa, arejar-se.

o senhor tem aqui janelas para a rua e para o quintal. se precisar qualquer coisa, é só chamar pelo benedito. nada de cerimônias!

ainda tenho a cabeça a rodar!

muito obrigado. está tudo muito bom. o que desejo justamente é repousar um pouco!

será que finalmente encontrarei minhas raízes?

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pois então descanse, para depois almoçar com mais apetite!


e fora perseguido e malquisto pelo povo do Pará.

raízes...

josé da silva havia enriquecido no contrabando dos negros da áfrica...

um dia, levantou-se contra ele a própria escravaria.

fugiram a pé, por maus caminhos, atravessando os sertões.

foram dar com os ossos no rosário, o contrabandista e domingas, a escrava que lhe restava...

mais tarde, no lugar chamado são brás, comprou uma fazendola onde cultivou café, algodão, tabaco e arroz.

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domingas deu à luz um filho de josé da silva. no ato do batismo da criança, esta, como a mãe, receberam solenemente a carta de alforria.

josé prosperou rapidamente no rosário. relacionou-se com a vizinhança.

criou amizades. em pouco tempo casou-se com dona quitéria inocência de freitas santiago, em cerimônia celebrada pelo pároco, o padre diogo.

tinha uma capela na fazenda onde a escravatura, todas as noites, com as mãos inchadas pelos bolos, ou as costas lanhadas pelo chicote, entoava súplicas à virgem santíssima, mãe dos infelizes

dona quitéria foi uma fera. por suas mãos, ou por ordem dela, vários escravos sucumbiram ao relho, ao tronco, à fome, à sede e ao ferro em brasa.

seu negreiro! você pensa que lhe deixarei criar, em minha companhia, os filhos que você tem das negras?

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josé sabia do quanto ela era capaz. correu à vila do rosário para dar as providências necessárias à segurança do filho.

era o que faltava! trate de despachar esse moleque, senão eu irei despachá-lo, mas será para ali, junto da capela!

mas ao voltar à fazenda, gritos horrorosos atraíram-no ao rancho dos pretos.

nessa mesma noite, a conselho do vigário, quitéria fugiu para a fazenda de sua mãe, dona úrsula santiago, a meia légua dali.

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entregou-lhe o pequeno que ficaria sob as vistas do tio até ter idade para atricular-se num colégio de lisboa.

josé da silva procurou seu irmão mais moço, manoel pedro, em são luís.

ao voltar para casa, josé contava viver mais descansado. era natural que a mulher ficasse na casa da mãe.

por isso ficou surpreso ao perceber que havia luz no quarto da esposa.

matou-a! você é um criminoso!

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cachorro! e tu? tu serás porventura menos criminoso do que eu?


perante as leis, decerto! porque tu nunca poderás provar a minha suposta culpa!

canalha! hás de pagar por isso!

quem irá culpar a minha sagrada pessoa? as tuas marcas ficaram na garganta da minha infeliz e inocente confessada! vamos lá... tudo neste mundo se pode arranjar, com a ajuda de deus. apenas, pelo meu silêncio sobre o crime, exijo em troca o seu, para minha culpa... aceita?

josé entregou a fazenda a domingas e a mais três pretos velhos, que alforriou.

josé da silva seguiu para a cidade de são luís, para liquidar seus bens e voltar a portugal, com o filho.

são brás criou sua fama de amaldiçoada.

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raimundo encontrou em mariana, cunhada de seu pai, a mais carinhosa e terna das protetoras.

em pouco tempo, devido ao agasalho carinhoso daquelas asas de mãe...

...raimundo, tornou-se uma criança forte, sã e bonita.

foi então que ana rosa veio ao mundo. fraquinha, parecia morrer a todo instante.

a menina salvou-se graças aos bons serviços de um médico recém- chegado da universidade de montpellier, dr. jauffret.

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E josé caiu prostrado, vítima de uma febre violenta acompanhada de tremores e visões de espectros por todos os lados.

meu irmão... se eu for desta... remete logo o pequeno raimundo para lisboa, para a casa do peixoto!

é uma febre gástrica. necessita de muito cuidado e sossego de espírito!

o doente recebeu a visita do pároco do rosário, padre diogo, que passou a visitá-lo diariamente.

diabo... ainda não se vai desta...

josé está livre de maior perigo, e a viagem à europa vai restabelecê-lo completamente!

metam-no num colégio de primeira ordem. deixo, para isso, bastante dinheiro!

bom, agora que nosso homem está livre de perigo, posso ir para minha paróquia... já não vou sem tempo!

venha de vez em quando, padre!

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que vais fazer na fazenda, homem de deus?

se é por causa de domingas, faça-a vir!

mas o melhor mesmo é deixá-la lá onde está. uma preta da roça que nunca saiu do mato...

é perigoso. naquelas paragens há muitos mocambeiros.

eu só não quero ir para a terrinha sem dar uma vista d'olhos ao rosário!

eu conheço aquelas paragens. os canoeiros são de minha confiança!

antes do fim do mês estarei de velas para lisboa!

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Na vila do rosário... eo pajem?

não preciso de pajem, só dos mantimentos!


ciganos.

com certeza foram enxotados de alguma fazenda.

jacarés te piquem, diabo! atravessado tu sejas na boca de um bacamarte!

aquele, um vagabundo, um miserável sem lar, sem dinheiro, sem mocidade. ao menos, tem, nessa vida, uma fêmea que o acarinha e segue!

ao passo que a mim arrancaram tudo... a casa, a mulher e a felicidade...

como eles não se amariam! quanto prazer não devem ter desfrutado. seria Eu o culpado? não cumpri com os meus deveres de bom esposo? eram insuficientes os meus carinhos? infame! “tenho-te na mão, assassino! se quiseres punir-me, entrego-te à justiça”. maldito.

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e eu aceitei a proposta daquele demônio. diabo! eu aceitei!

opa! tem alguém aí?

Não! Não! já basta a outra!

e se eu o matasse?

meu senhor! meu querido! meus amores!

o crime foi atribuído aos mocambeiros e o corpo de josé enterrado junto à sepultura da mulher, ao lado da capela.

anos depois, contavam que nas ruínas de são brás, vivia uma preta feiticeira, que, por alta noite, saía pelos campos a imitar o canto da mãe-lua*. *Urutau

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foi ele! não foi outro! foi aquele padre malvado! foi aquele padre do diabo!


segundo orientações de josé, manoel depositou a herança de raimundo no banco da província e remeteu o sobrinho para ser educado em um colégio em lisboa.

no colégio era o único estudante que se chamava raimundo, e os colegas ridicularizavam-lhe o nome. raimundo, mundico, nico, diziam-lhe puxando-lhe a blusa e batendo-lhe na cabeça tosquiada à escovinha.

não gostava dos outros meninos, porque lhe chamavam “macaquinho”. ressentia-se da má educação que os portugueses trouxeram para o brasil.

com o tempo os amigos apareceram e a vida ficou melhor.

um dia recebeu uma carta de mariana e, pela primeira vez, deu-se ao cuidado de pensar em si. sabia que aquela não era sua verdadeira mãe. mas quem seria ela? como se chamava? nunca lhe disseram...

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quanto a seu pai, devia ser aquele homem barbado que numa noite lhe apareceu muito pálido e aflito, e por quem pouco depois o cobriram de luto.


passaram-se anos e ele continuou enleado nas mesmas dúvidas quanto à sua origem. concluiu seus preparatórios e matriculou-se em coimbra.

sua vida mudou radicalmente. todo ele se transformou nos seus modos de ver e julgar. principiou a ser alegre.

escreveu sátiras, ganhou ódios e admiradores, teve quem o temesse e quem o imitasse.

mas um golpe terrível veio entristecê-lo: a morte de sua mãe adotiva. perdendo mariana, perdia tudo o que o ligava ao passado e à pátria.

distinguiu-se na academia. seus discursos acadêmicos foram apreciados. elogiaram- lhe a tese. formou-se.

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com o tempo dispersaram-se as lágrimas e a mocidade triunfou. meteu-se em pândegas com os colegas... deu para namorador.


e de confiança no seu esforço. passou pela espanha, visitou a itália, foi à suíça...

veio-lhe a ideia de fazer uma viagem. sua ambição era instruir-se. sentia-se cheio de coragem para a luta...

esteve na alemanha, percorreu a inglaterra...

...e, no fim de três anos chegou ao rio de janeiro. demorou-se um ano, gostou da cidade e resolveu estabelecer aí sua residência.

e o maranhão? ah, que maçada! mas não podia deixar de ir à província, conhecer a família, liquidar os bens e...

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...descobrir as raízes.


no meu tempo, as meninas tinham a sua tarefa de costura para tantas horas, e se acabavam mais cedo iam descansar? nada! desmanchavam para fazer de novo!

já não há cativeiro! é por isso que andam tão descarados. tivesse eu muitos escravos, que eu lhe juro, havia de lhes tirar sangue do lombo!

tenho um desgosto dessa gordura... se eu soubesse de um remédio para emagrecer, tomava! ele não é feio, a senhora não acha, dona bibina?

dá-me gordura que te darei formosura!

quem? o primo de ana rosa?

é... é primo sim, por parte de pai. e olhe ali quem sabe toda a história!

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nino? eu creio que ele não é primo, dona!


muito boa preta!... negra como esse vestido. muitas vezes a vi no relho, ixe!

ora, quem houvera de dizer. uma coisa assim só no maranhão, credo!

ó benedito! ó moleque! ó peste! estás dormindo, semvergonha!?

o sujeitinho foi forro à pia e hoje, olhe só pr'aquilo. pergunte ao cônego que está ao lado dele...

Arre! que até me fazes zangar com visitas na sala!... vá por a mesa do chá, moleque!

ó senhora! que inferno! olhe que está aí gente de fora!

...que dormem embaixo das redes das filhas e lhes contam histórias indecentes. é uma imoralidade...

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cruz credo! t'arrenego pé de pato!

reconheço que nos são necessários. mas não podem ser mais imorais do que são. são umas muruxabas que um pai de família tem em casa e...

e o pior: elas contam ás suas sinhazinhas tudo o que praticam aí, por essas ruas!

ficam essas pobres moças sujas de corpo e alma na companhia de semelhante corja!


aí gentes! não reparem. esse maldito moleque não queria trazer água sem por uma camisa. patife!

ó brígida! também estás dormindo, sua diaba?

tocou às mil maravilhas!

que tal achas?

assim, assim...

bravo! bravo! malcriado!

muito bem, dona anica!

que olhos, que cabelos e que gestos. olha, menina, como ele brinca com o charuto!

um pedante, é o que ele é! um enfatuado!

pensa que vale muito, porque se formou em coimbra e correu a europa! um tolo!...

olha como ele se encosta à grade da janela! parece um fidalgo o diabo do homem!

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dona eufrasina, sempre bela como os amores. que pena eu já ser papel queimado!

quando se come doce desse casamento, dona bibina?

pronto, chegaram esses dois. deus os fez, o diabo os ajuntou!

então dona lindoca, aonde vai com essa gordura? divida a metade comigo!

não troco a minha boa cana-capim e o meu vinho de caju por nenhum cognac ou vinho do porto que há por aí!

...as anáguas de renda arrastarem pela terra vermelha do largo dos remédios!

estamos agora sem diversão, só nos restando prosear com os amigos!

o brasil teria ganho muito, se perdesse a guerra dos guararapes!

creia, meu doutor, mete pena o dinheirão que se gasta naquela festa!

faço ideia!

ah! minto! há uma festa nova! a de santa filomena! mas não será nunca como a dos remédios!

ah! mas está muito calor, aqui!

qual! aquilo só vendo e sentindo, senhor doutor raimundo josé silva!

faz dó ver as sedas, os veludos ...

ah, decerto!

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ah! a festa dos remédios!

nesse dia, é tudo novo em folha, e do mais caro e do mais fino... ninguém lá vai sem se haver preparado da cabeça aos pés. não se encontra roupa velha nem coração triste!

queimam-se charutos caros, no bazar as prendas sobem a um preço escandaloso, e não há homem, por mais pichelingue que seja que não gaste seus tostões nos leilões, nos tabuleiros de doces ou nas casas de sorte!

e não há mulher, senhora ou moça-dama que não arrote grandeza, pelo menos seu vestidinho novo de popelina.

e este povo mesclado, coberto e luxo radiante, com a barriga confortada e o coração contente, passeia, exibe-se, ancho de si! as pretas minas, cativas ou forras surgem com seus ouros, suas ricas telhas de tartaruga, as suas ricas toalhas de renda, suas belas saias de veludo!

há também, para os moleques, um pau-de-sebo, balanços e cavalinhos. o doutor sabe o que é um pau-de-sebo?

perfeitamente! tenha a bondade de não explicar!

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pois sim, senhor. dão oito horas. então surgem de todos os lados um aluvião interminável de famílias, de velhos, moços, meninos, mulatinhas, e negrinhas...

fazem grupos, a gente ri, discute, critica, namora, zanga-se, ralha...

ralha?

ora! já houve uma senhora que castigou um moleque a chicote, lá mesmo no largo!

a chicote?

sim, a chicote! aquilo, meu caro doutor, é uma espécie de romaria!

isso é uma...

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vamos à merenda, gente!

como?


então achas que vou bem, dando quatro contos de réis por cada uma...?

decerto, são de graça! homem, aquilo é pedra e cal, construção antiga, deita séculos!

doutor, prove ao menos do nosso bolo do maranhão. é uma especialidade da terra!

não é mau... muito saboroso, mas parece-me um tanto pesado!

recolha-se doutor! o senhor deve estar com o corpo a pedir descanso!

ahrf! segui o moleque até o fim da rua grande. até que ele quebrou para o largo dos quartéis e quase alcança o mato da camboa! ahrf!

anda peste! vai preparando o pelo que ainda hoje te metes em relho!

é de substância, faz-se de tapioca de forno e ovos!

dona maria do carmo, não deixes de levar essas meninas à quinta, no dia de são joão. temos torta de caranguejos, olhe lá!

confesso que sim. boas noites, e obrigado!

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mãepretinha!

o que é, iaiá? não se agaste!

dispa-me!

iaiá quer mais alguma coisa?

não, mãepretinha. pode dormir!

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mãepretinha!


HÃ?

já amanheceu?

bons dias!

estou feia! feia e mal enjorcada!

minha prima sente alguma coisa?

olha este bilhete da eufrásia!

não é nada... é nervoso...

é isto! nervoso! estas moças de agora são cheias de novidade...

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é o nervoso, é a tal da enxaqueca! é o flato! é o faniquito! ah, meu tempo, meu tempo!


esta menina está assim já de tempos e ninguém me tira que foi quebranto que lhe botaram!

essa vovó... que ideia não ficará ele fazendo da gente!...

o senhor não sabe que o mauolhado, pegando uma criatura de deus, está despachadinha?

aí minha rica figa que me livrou do mau-olhado!

não se ria, nhô mundico! não se ria...

que aqui está quem já andou de quebranto a dar-não-dá com os ossinhos no gavião!

que andou o senhor aprendendo lá por essas paragens que correu? minha prima também acredita no quebranto?

conte-me como foi essa história!

bobagens!

não, felizmente. além disso, ainda que acreditasse não corria risco... dizem que o quebranto só ataca em geral as pessoas bonitas...

ah, então não é supersticiosa?

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nesse caso é prudente acautelar-se!


meu caro senhor mundico. hoje em dia já não se acredita em coisa alguma! por isso é que os tempos estão como estão... ...cheios de bexigas, de tísicas, de paralisias que nem mesmo os doutores de carta sabem o que aquilo é!

quanto mais se dona maria bárbara conhecesse certos povos da europa meridional, então é que ficaria pasma, deveras!

até parece castigo! isto vai tudo caminhando para uma república!

vou à cozinha! é eu não estar lá e o serviço fica logo pra trás. brííígidaa!

credo, minha nossa senhora! que inferno não irá por esse mundão de esconjurados!

como a senhorita se distrai?

leio, mas às vezes até isso me deixa fatigada! o primo teria um bom romance para emprestarme?

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verei entre os livros que trouxe!


tenho vontade de conhecer outros climas...

outros costumes. ah! itália, nápoles!

não é o que minha prima supõe. os poetas exageram!

deixe-me pegar um dos meus cadernos de esboços!

o que é isso?

oh, meu deus!

quem irá gostar disso é a vovó. ela tem muita devoção por são francisco!

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isso? ah, é copiado de um quadro que vi na sacristia de um velho convento de são francisco, da paraíba do norte!


oh! é detestável!

é uma dançarina parisiense!

mais tarde lhe trarei um livro. agora preciso sair!

tem algum merecimento artístico!

quem é aquele sujeito ali?

ora essa, pois não sabes? é o hóspede do manuel pescada!

este é o tal doutor, de coimbra?

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o cujo!


vem advogar a própria causa por cá! está tratando do que lhe pertence e do que não lhe pertence.

uma cara nova? que achado. é o doutor raimundo da silva. médico?

não. formado em direito!

qual quer o quê! o pescada despachou-o bonito, mas o mitra deixou-se ficar.

E O PESCADA? PARA QUE O QUER EM CASA?

deixem chegarem as eleições...

e então você verá esse sujeito de cama e mesa...

com o presidente do partido conservador!

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arre, que carrasco. dá bordoadas por gosto!

diverte-se em fazer cantar o relho e a palmatória!

eu sei que incomodo. não quero abusar. gostaria que o senhor me arranjasse uma casinha mobiliada e um criado!

o quê, homem! então o doutor pensa estar na europa ou no rio?

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casinha mobiliada e com criado? aqui? ora, deixe disso!


além disso, o que diriam por aí? que o raimundo foi tão maltratado pelos parentes do seu pai que preferiu sepultar-se entre quatro paredes?

depois o senhor volta para a corte ou se instala aqui mesmo!

não, senhor. fique em nossa casa, pelo menos até o verão. em agosto iremos juntos ver a fazenda! Está bem, faremos assim. quem sabe no rosário não encontramos a decifração do mistério da minha vida?

porém com decência. para que fazer as coisas malfeitas?

o doutor jaufret também já me alertou sobre a causa desse estado de ana rosa. deixe que verei o que fazer!

essa idade é muito perigosa nas mulheres solteiras... talvez uma viagem...

em todo caso não há efeito sem causa. é bom consultar o médico!

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mudando de assunto, quero alertar-lhe sobre a saúde da senhorita ana rosa. ela anda pálida e sem apetite!


dias!

dias!

ô dias!

mas... dona anica levará em gosto?

naturalmente! porque, da última vez que lhe toquei o assunto ela deu-me esperança...

... e como prometido, eu lhe farei sócio se o casamento se realizar no próximo mês!

para começar, hospedar o raimundo em sua casa nunca me foi de gosto!

agora é provável que dê certeza...

não há perigo a recear!

para tratarmos do casamento de ana rosa, a primeira coisa a fazer será afastar o cabrocha da casa!

ele é muito respeitoso com ana rosa. além disso ele tem horror à província! não! fiquem descansados!

45

como não casar? de não casar, talvez!

eu lho digo!

veremos. enquanto não assistir ao casamento deste com minha afilhada, mantenho o que disse!


amanhã virão umas amostras da casa do vilarinho, para a noiva escolher as fazendas do seu enxoval! quem vai casar?

não se faça de desentendida, minha filha. qual de nós aqui tem mais cara de noivo? eu ou tua avó?

anda lá, sonsinha... não sabes outra coisa...

raimundo finalmente me pediu em casamento.

mas por que não falaste há mais tempo, deixando o pobre rapaz supor que não o querias?

não sei não senhor. com quem é?

o coitado anda por aí tão deprimido, dá até dó!

pois não sabes como andava o nosso dias?

casar? eu? mas com quem, papai?

como?!

você disse que o aceitava para marido!

que diabos quer dizer agora com essa mudança?

o dias? ora, tem graça!

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não sei o que lhe disse o padrinho, mas o que lhe digo é que não me casarei com o dias. nunca, percebes?

mas anica, tu se já não o queres é porque tens outro de olho!

não sei, não senhor!

isso já está cheirando mal. o mês passado respondeste-me que pode ser!

...e agora que não! sabes que não te contrario, mas não deves abusar!

mas, gentes, o que foi que eu fiz?

nem quero imaginar que serias capaz de escolher uma pessoa indigna de ti!

pois uma menina que eu eduquei ia olhar...

ora, seu manuel... você às vezes tem lembranças que parecem esquecimento!

47

só te aviso que prestes atenção na tua escolha de noivo!

para quem, seu manuel? para quem?


é que temos aqui um rapaz bem aparecido que...

vejam se não é mesmo vontade de provocar uma criatura...

um cabra!

e era muito bem feito que acontecesse qualquer coisa, para você ter mais cuidado no futuro com as suas hospedagens!

também, só nessa cabeça de andar metendo crioulos cheios de fumaças!

hoje todos são assim! dá- se-lhes os pés e tomam a mão... corja...

pois bem, senhora, amanhã mesmo tratarei disso!

trate de despachar o cabra!

48

vou para o quarto!


é certo, porém o tempo está seco!

... então prepare-se, que partiremos no sábado para o rosário!

está bem... vou preparar minha bagagem!

estou às suas ordens, mas o senhor tinha me dito que iríamos no mês de agosto!

borracha de aguardente... botas de montar... esporas... chicote... tudo em bom estado. estranho, está tudo remexido... será? talvez bisbilhotices do moleque...

e isso?

pertence a ana rosa...mas como diabos veio parar em minha cama?

quem faz a limpeza no meu quarto é o benedito... logo, alguém se diverte em vir aqui revistar meus pertences... e este alguém só pode ser...

49


ana rosa!

mas qual a razão dessas visitas? seria simples curiosidade... uma intriga contra mim...

... ou mesmo contra a própria ana rosa... tenho que dar um jeito nessa patacoada!

o retrato da dançarina... riscado à unha.

50

mas depois pensarei nisso!


ora, como eu poderia não vir ao encontro do meu grande amigo Raimundo, que acabou de chegar da Europa? Só se eu estivesse preso!

joão Affonso, meu amigo. Que bom que você veio!

e adianto que estou ansioso pelas novidades do velho mundo!

estranho. desculpe-me joão, preciso ir. lembrei-me de algo importante, mas nos vemos mais tarde!

51


ohhh... mas... mas... então é assim?

oh!

o que...

tenha a bondade de esperar!

52

deixe-me sair, por amor de deus!

não senhora. ouça-me primeiro!


a senhora sairá desse quarto prometendo não tornar a fazer o que tem feito!

custa-me, mas tenho que repreendê-la... por me achar na casa do seu pai, que é também sua!

se descobrissem suas visitas clandestinas, o que não julgaraiam de mim?

de mim e de sua pessoa, o que é muito mais grave... o que não diriam? e com direito!

... uma senhorita nada tem que fazer no quarto de um rapaz...

...é muito feio. minha prima comete com isso uma ingratidão a quem deve tudo: a seu pai!

peço-lhe que se retire e não volte em circunstâncias idênticas...

vamos, se a ofendi, desculpe. perdoe-me...

era para seu interesse!

53


então... diga-me porque chora!

que imprudência a sua. tenha a bondade de retirar-se...

tenho sim!

ora essa, então por que é?

a senhora não tem motivos para chorar!

é porque o amo muito, muito, entende? desde que o vi. desde o primeiro instante!

de acordo, mas eu não tenho o direito de detê-la no meu quarto. queira retirar-se!

percebe? e, no entanto meu primo nem...

...para revelações tão delicadas!

o lugar e a ocasião são os menos indicados...

ora... ela tem vinte anos... ela me ama e quer casar. querida prima... o fato de amar-me não é motivo de choro. devemos alegrar-nos!

e sabe o que nos compete a fazer de melhor?

54

não é chorar, é c asar-nos, não acha?


agora vá, sim? podem vê-la, isso não é digno de qualquer um de nós!

não, mas é melhor que vás!

tens razão, mas quando me pedes a papai?

você está chateado comigo, raimundo?

sinhô mandô dizer para vossemecê fazer o favor de chegar ao quarto dele!

a viagem ao rosário foi transferida para o próximo mês! na primeira ocasião, dou-te minha palavra! mas não voltes aqui, heim?

é muito esmorecido... por qualquer coisa parece que está morrendo... uma febrinha de nada...

a demora desse cabra perto de minha neta me embrulha o estômago...

55

papeira!


folhetins. pintar os costumes e os tipos ridículos do maranhão... espirituosamente.

temos que dar uma lição no cabra, para não se fazer mais de atrevido!

...província... cada vez mais feia... mais acanhada... mais tola... mais intrigante e menos sociável.

desrespeita as coisas mais sagradas desta vida...

besta!

... a inocência das donzelas, a virtude das casadas e a mágoa das viúvas maranhenses... está para sair um jornalzinho, o bode!

terrinha estúpida! juro nunca mais publicar coisa alguma no maranhão!

56

só para botar os podres do ordinário na rua!


tudo, menos deixar de fazer a festa costumeira!

já mandei prepararem o sítio...

... faremos a festa de são joão, como em todos os anos!

COMO É BELO!

57

...e prevenir o padre lamparinas para cantar a ladaínha...


você hoje está bonita como nunca, prima. suas faces são duas rosas!

confesso que nunca a vi tão linda...

é debique seu... se me achasse bonita já me teria pedido a papai...

são os ventos gerais. limparam-lhe os olhos.

não diga brincando. quer que lhe confesse uma coisa? não sei que singular efeito me produz essa manhã... é esquisito... sinto-me transformado.

...deixe-me abraçá-la!

a senhora deve ser dona amância. que simpática...

credo, sai pra lá, mandado!

o pessoal está chegando!

58


viva sĂŁo joĂŁo! viva o belo madamismo maranhense! e viva a mĂşsica!

o chorado! que venha o chorado!

59


assim, seu cazuza!

credo! esse homem me queria agarrar a perna!

não aumente, minha senhora, foi só o tornozelo!

mas eu tenho muita cócega. e, depois do espigão, ninguém mais me tocou o corpo!

60


você não se apronta, seu dias? você não vem conosco à quinta?

vão andando, que eu já vou!

61


lá vai a garça voando para as bandas do sertão! leva maria no bico, teresa do meu coração!

não tenho medo da onça, que todos têm medo dela! não tenho medo de ti, que fará de micaela!

me digas minha senhora: quem pergunta quer saber... se eu sair daqui agora... onde vou amanhecer?

62


gratum, tuam quosonius... domine, mentibus nostris infunde, ut qui angelo nuntiante...

per eumdem christum dominum nostrum. amen!

kyrie eleison! christe eleison!

que terรก minha tia?

estรก morta! valha-me deus!

63


quem é esse tipo?

o que ele faz?

é um tal de raimundo, que o manuel pescada tem em casa por compaixão!

diz que é doutor! não parece mau rapaz!

64

fia-te!


bode?! como?

o cabra é “bode”!

sabe? já descobri tudo. o motivo das desgraças que têm acontecido!

é maçon!

mas isso é sério?como a senhora veio a saber?

e qual é?

creio que sim. no armazém!

Este livro é dele!

pois vou convencê-lo!

já andaram perguntando se era certo que ele estava para casar com anica...

é preciso por esse homem fora de cá. o compadre está aí?

ora, isso não se atura!

o cancela, lá do rosário, está interessado. e eu posso meter para a algibeira uma boa comissão!

isso de recambiá-lo para o diabo, é conveniente!

é sempre um perigo que um pai de família tem em sua casa!

agora... isso de não negociar a fazenda seria asnice da minha parte!

65

à parte o interesse, com quem, a não ser comigo, podia o mundico haver-se nesse negócio?


está resolvido! a viagem será no próximo sábado!

afinal irei visitar o lugar onde dizem que nasci...

olhe! tenho um importante pedido a fazer-lhe!

se estiver em minhas mãos...

está. é coisa muito séria, mas em viagem para o rosário conversaremos.

vamos sem demora. até a fazenda do cancela é um estirão!

você conhece a antiga fazenda são brás?

66

são brás? se conheço! por aqui vossa senhoria não encontrará quem não saiba a história dela!


por são braz, por são jesus; passo aqui sem levar cruz!

o senhor podia cair em alguma emboscada, mas vou lhe ensinar uma reza que o vai proteger!

são brás, ou ponta do fogo, fora, noutros tempos e lugar, terras boas e férteis.

até que o assassino bernardo, depois de muito matar e roubar pelo sertão, meteu-se por lá.

desde então, nesse desgraçado lugar, nunca mais vingou fruta que não tivesse veneno.

as águas deixavam cinza na boca e a terra virava salitre e as flores fediam a enxofre...

as águas deixavam cinza na boca e a terra virava salitre e as flores fediam a enxofre...

ficava enfeitiçado e não havia modo de arrancá-lo dali, porque o diabo tinha untado o fruto de mel e perfumado as flores e amaciado a relva para enganar o caminheiro incauto.

foi isso o que aconteceu ao pobre josé do eito, quando se meteu por cá, enfeitiçou-se.

67


...um dia morreu-lhe a mulher de repente. ele, pouco depois, foi varado por um tiro que nunca ninguém sabe de onde veio. daí em diante são brás virou tapera.

reze pela alma de seu pai, meu amigo. neste lugar ele foi varado por uma bala!

eo assassino?

algum preto fugido

meu pai está enterrado aqui?

não! ele foi enterrado no cemitério da fazenda, ao lado de sua mulher!

... até hoje ninguém sabe ao certo. uns dizem que teve política... outros que teve o dedo do diabo... bobagens.

essa cruz só mostra ao viajante o local onde ele foi assassinado e fazê-lo rezar pela alma da vítima!

vamos! o quê? pois então o senhor não reza?

então qual é a sua religião? como o senhor adora deus?

eu não desdenho da religião. julgo-a até indispensável como elemento regulador da sociedade!

deixe-se disso, homem, deixe deus em paz! não!

mas nesse caso o senhor não tem religião... e não devia fazer pouco das rezas ensinadas pelos apóstolos do nosso senhor jesus cristo!

68

admiro a natureza e a cultuo, procurando estudá-la e conhecê-la!


tenho falado tanto, mas não tratei do que mais me interessa!

é um grande favor que tenho a pedir-lhe!

trata-se de uma questão comercial?

como assim?

é a mão de minha filha que deseja pedir...

desculpe-me se o ofende tal recusa de minha parte...

é...

então tenha a bondade de desistir do pedido!

mas creia, ainda que eu quisesse, não podia fazer-lhe a vontade!

por quê?

ela já está comprometida com outro... talvez...

69

para poupar-me o desgosto de uma recusa!

como?!

bem, nesse caso esperarei. resta-me ainda a esperança!


não é isso. e peço que não insista!

ah! já sei... não quer dar sua filha a um homem de ideias tão revolucionárias!?

b

não! não é isso! o senhor tem direito a uma explicação, mas acredite que, apesar da minha boa vontade não a posso dar!

de sorte que o senhor me recusa a mão de sua filha? definitivamente?

Ó de casa!

boa noite, tio velho!

ora, viva! então sempre veio!

d'es-b'anoite, branco!

70

olhe que achei que dessa vez fizesse como das outras. enfim, como vai essa carcaça?


assim, assim, um pouco moído da viagem. como lhes vão cá os seus?

com os diabos! você e seu compadre falaram-me de um menino!

bons! louvado seja deus. ainda estão na avemaria, mas não devem tardar!

este é o mundico, de queM lhe falei!

vá lá à nossa. venham despir-se para cear!

há doze anos!

obrigado, bem sei, estou à vontade!

por que não trocou essas roupas? se quer, ponha-se a gosto!

olé! temos peixe de escabeche? olhem que esse não é de rio e por isso não se têm por cá todos os dias!

qual! não estão acostumadas com pessoas de fora!

então as senhoras não nos fazem companhia?

71

minha eva diz que não aprecia o seu peixinho senão comido com a mão!


já não sou homem de grandes façanhas. preciso descansar o corpo!

não tenha medo que o vinhito é fraco, seu manuel, seu mundico! topemos à memória do velho amigo josé da silva! pedro! leva essa gente para a casa de hóspedes e mostra-lhes o quarto que tua senhora preparou!

por são brás! por são jesus! passo aqui sem levar cruz. por que ele negou tão formalmente a mão da filha? com certeza alguma tolice...

ou... alguma intriga!... sim, bem pode ser. no maranhão o espírito de bisbilhotice vai longe...

ora... também não morrerei de desgosto por isso!

72


mas no fim das contas a recusa grosseira, seca, me ofende. não, definitivamente não me casaria com ana rosa...

...com qualquer uma, menos com ela. já é uma questão de brios.

alguém conversa em voz baixa aqui perto... mas onde, diabos?

a coisa está mais clara... quem diabos está aí, falando?

a coisa é lá em cima... mas não há outros hóspedes...

quem está aí?!

73


ouvi bem claro o meu nome e o de meu pai, josé do eito!

a voz infernal fala de são brás, do padre diogo, de dona quitéria... com certeza falará de minha mãe...

estarei sonhando?

ai!

quem quer que estivesse falando está perfeitamente a par da história de são brás... nada... nem uma palavra sobre minha mãe. maldita conspiração.

ou... a fadiga me faz ouvir coisas. preciso dormir.

74


quem... quem é você?

espere... volte...

75


o fantasma de que você falou...

deve ser algumas dessas muitas pretas velhas, agregadas aos ranchos das fazendas!

aqui mesmo, há sempre uma súcia dessas pestes. aparecem e desaparecem sem ninguém lhes perguntar de onde vêm nem para onde vão!

são escravas fugidas?

em geral, com a morte de seus senhores... ficam vagando pelas fazendas, pedichando um bocado de arroz e um pedaço de chão para dormir!

os agregados são pretos forros...

de são brás tínhamos três agregados que andavam por aí sem fazer nada. dois morreram!

simples vagabundos que não fazem mal a ninguém!

o terceiro é uma preta idiota. talvez a que o senhor viu essa noite. doida varrida!

leve-nos a são brás!

76

a são brás? deus me livre! o que diabos querem em são brás?


a são brás eu não vou!

ora essa, não é da sua conta! leve-nos!

essa é a melhor! não vai. então o que veio fazer conosco, senão guiar-nos? sim senhor, mas a são brás eu não vou nem amarrado!

vá para o inferno! iremos nós!

ó s'or manuel, o senhor não sabe o caminho?

o homem não deixa de ter sua razão!

no fim das contas que diacho vai o amigo fazer àquela tapera? tem razão, mas...

é boa... quero ver o lugar onde nasci!

se não quiser ir, vou só!

mas o senhor sabe que ...

tenho receio dos mocambeiros... além disso, quem como eu, ouviu as últimas palavras do meu irmão...

...contam bruxarias do lugar. e há quem acredite nelas!

suponho que o senhor não seja desses!

77


de meu pai? conte-me isso!

são coisas que parecem asneiras, mas... seu pai não teve vidinha sossegada, não. depois que se casou, não se dava com pessoa alguma!

pancadas, barulhos infernais, correntes arrastadas. os escravos morriam sem saber de quê!

e ele era o amigo mais íntimo do meu irmão, e o único, talvez, que ultimamente lhe frequentava a casa!

nem a própria sogra queria saber dele. doía-me ver o josé tão desprezado, tão triste que parecia estar cumprindo uma sentença!

o cônego diogo, que era o vigário dessa freguesia...

meteu na cabeça abençoar e proteger são brás. quase sendo vítima de sua dedicação!

entretanto, seu pai, já por último não o queria ver nem pintado... e nos seus delírios gritava que queria dar cabo do padre. que o padre era o culpado de tudo!

78

viajante nenhum aceitava o pouso em são brás. contavam que à noite ouviam-se constantemente gritos horríveis na fazenda!

foi tão perseguido, que se viu obrigado a abandonar a paróquia!

são brás...


aqui nasceu o senhor, meu amigo, e viveu os seus primeiros anos.

e minha mãe? quem seria ela? alguma senhora bonita, sem dúvida, por que causava crimes. inspirava loucura em meu pai. uma paixão romanesca, cheia de sobressaltos e remorsos.

ali está seu pai!

“aqui jazem os restos mortais de quitéria inocência de freitas santiago. filha extremosa, esposa exemplar.“ casou-se em 15 de dezembro de 1845 e faleceu em 1849. orai por ela.

79


meu nascimento combina aproximadamente com esses algarismos.

não há dúvidas que além de bastardo descendi de uma tremenda vergonha...

não... conheces quem morou nesta fazenda?... o josé da silva... do eito?

o josé da silva...

não me toques!

80

não lhe bata, doutor! não lhe bata que é doida! conheço-a!


mas se ela não me quer deixar ir. sai, diabo! olha que te dou!

essa pobre negra... foi escrava de seu pai... vamos!

ô meu amigo, isso também não vai assim! despeça-se desse lugar!

81


ela, quem?

ela será, porventura, minha irmã?

sua filha!

o senhor há de concordar que me deve uma resposta, seja qual for. uma desculpa, uma mentira... que seja!

o senhor tortura-me com todas essas perguntas!

recusei-lhe a mão da minha filha por que o senhor é...

já vê o amigo que não é por mim que lhe recusei ana rosa... ...filho de uma escrava!

eu!!??

82


concordo que seja uma asneira... mas o senhor não imagina o que é por cá a prevenção contra os mulatos. nunca me perdoariam tal casamento!

a família de minha mulher sempre foi muito escrupulosa a esse respeito, assim como toda a sociedade do maranhão!

teria de quebrar a promessa que fiz à minha sogra, de não dar a neta senão a um branco de lei, português!

eu nasci escravo?!

o senhor é um moço muito digno e merecedor de consideração, mas... foi forro à pia, e aqui ninguém o ignora!

sim.... pesa-me dizê-lo... mas o senhor é filho de uma escrava e nasceu também cativo!

mas que fim levou a minha mãe? mataram-na? venderam-na? o que fizeram dela?

nada disso... soube ainda há pouco que ela está viva...

é aquela pobre idiota de são brás!

83

meu deus! vou...

nada de loucuras! voltarás noutra ocasião!


aqui, desgraçado, nesta miserável terra em que naceste, só poderás arriar uma negra da tua laia! tua mãe, lembra-te bem, foi escrava! e tu também o foste!

ora, mire-se!

ora sebo!que diabo eu tenho com isso? o que vim fazer a esta província estúpida foi tratar dos meus negócios.

pois então de nada me vale ser bom e honesto?

diabo!

vou! por que não? o que me impediria?

longe daqui não sou forro à pia! o filho da escrava. sou o doutor raimundo josé da silva, estimado, querido e respeitado!

e eu? esqueceste de mim, ingrato? não quero que vás!

84


ana rosa...

ana rosa...

...apressasse os negócios... não posso demorar mais tempo no maranhão.

mas venha cá, o senhor não me deve guardar ódio por eu...

nem pense nisso! o senhor tem toda razão. vamos ao que importa!

diga-me quando tudo estará resolvido?

mas não ficou maçado comigo... não é verdade? creia que...

se estiver em minhas mãos!

ah! já disse que não! vinha até pedir-lhe um serviço!

é simples!

85


como lhe disse ontem... estava autorizado pela senhora sua filha a pedi-la EM casamento...

preciso dar a ana rosa qualquer explicação!

não posso ir embora assim, sem mais nem menos!

porém, em vista do exposto a meu respeito... ah... arranjarei qualquer desculpa...

justamente! é preciso dar-lhe alguma desculpa. e o melhor mesmo é dizer-lhe a verdade. explique-lhe tudo!

e quando terei meus negócios concluídos?

como o senhor quiser, mas não precisa mudar-se daqui!

antes da chegada do vapor!

enfim... nada temos a recear... ele muda-se por esses dias e parte no primeiro vapor para o sul!

tu já não és criança e podes julgar o que te fica bem e o que te fica mal. há por aí muito rapaz decente, de boa família...

não... decerto... está visto!

deixa estar que mais tarde me agradecerás o bem que agora te faço...

86

heim? como? parte? muda-se? por quê?


é... o rapaz maçou-se com o que lhe disse. e como é senhor de seu nariz, muda-se!

ora, filha! bem se vê que não conheces o raimundo... um ateu que não acredita em nada...

mas por que não veio ele mesmo entender-se comigo?

...parece que estava morrendo por um pretexto para desfazer o compromisso contigo!

é que não me ama... nunca me amou, o miserável! heim? o que quer dizer isso? que tolice a tua, minha filha. escuta...

não quero escutar nada! diga-lhe que pode ir quando entender. que é favor!

87


até que enfim nos encontramos!

attendite! escute!

quero esclarecimentos sobre são brás, percebe?

preciso dar-lhe duas palavras, agora, senhor cônego. ande, vamos ao meu quarto!

vai dizer-me quem matou meu pai... sei cá!

que diabos tem o senhor a me dizer?

que quer isso dizer?

horresco referens... só em falar já tenho horror!

quer dizer que descobri afinal o assassino de meu pai e posso vingar-me no mesmo instante!

fui o seu único amigo, o seu amparo, a sua derradeira consolação!

... é então dessa forma que pede notícias de seu pai? é este o modo pelo qual agradece a amizade fiel que lhe dediquei noutro tempo ao pobre homem?

88

... e é o filho dele que vem agora depois de vinte anos...


e o senhor deve ter razão! fui eu, naturalmente o assassino de seu pai... o senhor está no seu direito!

agarre aquela bengala e bata-me com ela. fustigue este pobre velho indefeso!

bata sem receio, que ninguém saberá. não gritarei...

tenho defronte de mim a imagem de cristo que sofreu muito mais!

levante-se! pode ir que não o perseguirei!

ó deus, misericórdia. lança um olhar DE bondade!

deixa estar, que me pagarás, meu cabrinha apistolado.

89


acredite, esses sujeitos que se fazem de santarrões e de quem a boca do mundo não tem nada a dizer são os mais perigosos...

...se o traste prega-me alguma não me espanta, pois já o esperava.

olha, se tivesse que assistir ao teu casamento com um cabra...

quando vejo um tipo julgo logo mal dele.

e se não prega?

juro-te por essa luz que está nos alumiando, que te preferia uma boa morte, minha neta!

90

fico na certeza de que muita coisa se faz à calada, nesse maranhão!


... porque serias a primeira que na família sujava o sangue!

deus me perdoe, pelas santíssimas chagas de nosso senhor jesus cristo! mas tinha ânimo de torcer o pescoço a uma filha que se lembrasse de tal...

eu só peço a deus que me leve antes de algum dia ver, com esses olhos que a terra há de comer...

...descendente meu coçando a orelha com o pé!

trate de casar sua filha com um branco como ela...arre!

e você, seu manuel, não seja pamonha. despache-o de uma vez para o sul com todos os diabos do inferno!

então, que há de novo? chegou o vapor do pará?

olá! por aí, seu susa? como vai isso?

chegou! sai amanhã para o sul, às nove!

desquerido de dor de dentes...

o mundico vai nele, sabe?

é... ouvi dizer que tinha brigado com o pescada!

91

dizem que por causa de dinheiro!

que raimundo pedira-lhe certa quantia emprestada, e, como o outro negara, disparatou!


homem, não sei se pediu dinheiro, mas a filha, sei por fonte limpa que pediu!

negou! diz que por que o outro é mulato!

ora, seu campos, não sei se é por que não tenho irmãs, mas o que lhe asseguro é que...

..preferia o doutor raimundo silva a qualquer desses chouriços da praia grande!

eo galego?

não! lá isso é que não admito! preto é preto! branco é branco! nada de confusões! ...mas do que serve ser instruído e educado com tanto esmero... a conduta reta e a inteireza de caráter?

para que diabo tivera a pretensão de fazer de si um homem útil e sincero?

que culpa tinha de não ser branco e não ter nascido livre? não lhe permitiam casar-se com uma branca? vá que tivessem razão. mas por que insultá-lo e persegui-lo? maldiçoada essa raça de contrabandistas que introduziu o africano no brasil. maldita! mil vezes maldita!

ora, sebo! tenho tudo liquidado. amanhã está aí o vapor e... adeus! adeus queridos atenienses.

o que é isso? uma carta... será de ana rosa?

não é...

92


“ilustre canalha: então vossa senhoria muda-se amanhã? se é verdade, agradeço-lhe o obséquio em nome da província. ... honre-nos com sua ausência e faça-nos o especial obséquio de ficar lá o maior tempo que puder! quem disse a vossa senhoria que isto é uma terra de beócios, onde os pedantes arranjam bons casamentos...

...já não se amarram cães com linguiça.no entanto, se vir a prima, dê-lhe lembranças.

...debicou-o, respeitável senhor, debicou-o redondamente.

o mulato disfarçado”

olé! você madrugou, compadre!

tem tempo!

...quando quiser, compadre, estou às suas ordens!

vá subindo, compadre, que vou lhe dar um cafezinho fazenda!

93

então vamos indo. o homem talvez já esteja à nossa espera!

coitados!


estou impaciente por vê-lo pelas costas!

não tenha medo. é muito cedo ainda. podemos ir mais devagar. ele só chegará daqui a uma hora!

isto já são oito horas!

oito e quatro. o rapaz com certeza descuidou-se! ó, seu manuel, ele sabe que o vapor sai às dez?

como não? se ainda ontem à tarde lhe mandei dizer!

avia, rapaz! pega aí, ligeiro!

vamos cá para a guardamoria!

isso aqui está é esquentando demais!

fugit irreparabile tempus. foge o tempo inexoravelmente!

veja, deve ser ele!

94


e esta,seu compadre? e esta? o que me diz desta?

eu cá sabia que ele não havia de vir!

chegou o vapor!

nem irá mais. pilhou-se aqui, adeus!

astutus astu non capitur. não se pega o astuto pela astúcia!

mas que grande patife, sim senhor!

desprezo... abandonar-me quando sabia perfeitamente que eu precisava mais do que nunca de sua energia, de sua firmeza...? oh! se ele me tivesse dado coragem...

95

...o que eu não faria? porque o amo muito... muito...


pensaria ele que eu seria capaz de sacrificar meu coração aos preconceitos sociais?

mas, então, por que não me falou com franqueza? não me escreveu, ao menos?

ana rosa!

você veio...

não nos veremos mais, nunca mais. o vapor sai daqui a poucas horas. lê esta carta depois que eu tiver partido. adeus!

96


raimundo...

Humm...e se meu tio não tiver ido ao cais para minha despedida? seria uma ingratidão partir sem me despedir dele.

rua da estrela número 80. não podemos perder um minuto!

Ôôô! parem parem!

97

“por mais estranho que pareça, juro que te amo ainda, loucamente, mais do que nunca, mais do que eu próprio imaginava se pudesse amar...”


“para não me crimines por me ter portado silencioso e covarde, defronte da recusa de teu pai...”

“... falo-te assim, agora... porque esta declaração já em nada poderá prejudicar-te, visto que estarei bem longe de ti quando a leres...”

quando sai o vapor?

que vapor, sinhá?

benedito! benedito!

“... eu nasci escravo e sou filho de uma negra. empenhei a teu pai minha palavra de que nunca procuraria casar contigo...”

“... entendi, pois, que fugindo te daria a maior prova do meu amor... que o destino me arraste para onde quiser...”

o vapor do sul!

hê! já saiu, sinhá!

“a sociedade apontar-te-ia como a mulher de um mulato e nossos filhos seriam tão desgraçados quanto eu...” entre para cá! preciso falar-lhe!

“... eu serei bom porque existes... adeus, ana rosa”

o que há de sincero em tua carta?

“... entendi, pois, que fugindo te daria a maior prova do meu amor... que o destino me arraste para onde quiser...”

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tudo, meu amor. mas por que a leste antes de eu ter partido?

seu pai está... ? não queria partir sem despedir-me e...


então sou tua. olha, saiamos daqui, já! fujamos! leve-me para onde quiseres! fazes de mim o que entenderes...!

decide!

se não quiseres fugir farei meu pai acreditar que és um infame... ...que abusaste da hospitalidade que ele te deu! és um miserável! sai daqui!

perdoa, meu amor! eu não sei o que estou dizendo!

não ouves, ana rosa? o vapor está chamando...!

não chores! levanta-te por amor de deus!

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deixa-o ir, meu bem. tu ficas!


traste! peralta! mas também pode chegar-se para quem quiser. comigo não conte para mais nada. canalha! brando no modo, porém rigoroso na ação. tenho um plano... o doutor raimundo esteve aí em cima?

sim senhor, porém já saiu há coisa de meia hora!

aviaram-se já aquelas encomendas de caxias?

já estão arrumadas duas caixas de chita. o vapor só sai amanhã de manhã!

que é de anica?

está no quarto, deitada. com febre!

não estava boa...

que tens tu, anica?

100


recomendações do mundico!

covarde! miserável! tratante!

então?

como?

o vapor deve estar saindo nesse momento!

lá ficou ele a bordo, coitado! talvez seja feliz na corte!

o cônego está aí, patrão!

ah!

bonito, ana rosa! então o que é isso, minha filha?

foi o diabo, compadre! a pequena, logo que ouviu a peta, caiu-me com um ataque. gritou e estrebuchou. um inferno!

hum... ela acreditou muito facilmente. eles tinham algum plano e por isso se supõe traída!

deixe que falarei com ela!

E então, o que faço?

101

finja que está persuadido da partida de raimundo!

miserável!


então, minha afilhada, o que é isso?

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tranquilize-se. ele não partiu... mas não faça espalhafato!

convém que seu pai não saiba de coisa alguma!


saindo daqui, procuro o rapaz e o faço se ausentar por algum tempo até as coisas voltarem de novo aos eixos!

e papai?

deixe-o por minha conta... entregue-se às minhas mãos e verá que tudo se arranja...

venha à sé confessar-se comigo... sua avó encomendou-me uma missa cantada. confesso-a depois da missa. está dito?

para quê? é boa! para poder ajudá-la!

mas para quê, dindinho?

mas não me engane, dindinho. diga sério, ele não foi mesmo?

já lhe disse que não. tranquilize-se por esse lado e venha à igreja!

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‘‘eu te aparecerei na noite que combinarmos e poremos em prática o plano aqui exposto’’

‘‘quanto a teu pai, só me entenderei com ele...’’

‘‘adeus. não desanimes e tem plena confiança em seu noivo.’’

‘‘... no dia em que esse teimoso estiver disposto a perdoar o genro e a filha.’’

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venho incomodá-lo, senhor cônego...

essa é boa! vá entrando!

mandou a carta que lhe dei?

eu mesmo a coloquei por baixo da porta na véspera do tal embarque! já descobriu onde ele se esconde no presente momento?

ainda não consegui, mas parece que se aninha lá pelas bandas do caminho grande!

a respeito?

a respeito da espionagem, diabos!

sim!

você tem feito o que lhe recomendei?

105

então? o que descobriu?

por hora, nada que valha. apenas que a pequena suplicou que se compadecesse dela...


... e obtivesse do pai a liberdade para casar com o cabra...

mas o que ela disse que faria? que diabo de maneira você tem de falar as coisas...

tolices, senhor cônego. que se matava, ou que fugia, ou que se metia a freira...

e que faria isto, faria aquilo...

então a velha já sabe que o raimundo ficou?

bem... continue a espreitar, mas todo cuidado é pouco. finja-se de tolo!

parece. e se enfezou, jurando que antes queria vê-la estirada debaixo da terra!

ora, senhor cônego... eu já vou perdendo a fé!

não seja idiota! trate de descobrir alguma coisa grossa, que dê para agarrar!

parvo!

porque depois será mais fácil o seu casamento!

106


amĂŠm!

107


cá está sua afilhada, senhor cônego. comungue-a. veja se lhe arranca o diabo de dentro do corpo!

não tenha medo... isso é apenas uma conversa que a senhora tem com a sua própria consciência e com deus... conte-me tudo. abra seu coração!

vai! deus te ponha virtude, que mau coração não tens tu!

diga-me o que é que a tem posto triste? sente-se possuída de alguma paixão que a atormenta? sim, meu padrinho!

por quem?

ana rosa, esse raimundo tem a alma tão negra como o sangue. além de mulato é um homem mau, sem religião, sem temor a deus!

vossmecê já sabe por quem é...

*maçon

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... é um pedreiro-livre*! é um ateu! desgraçada daquela que se unir a semelhante monstro!


sei de coisas horrorosas, praticadas por aquele esconjurado!

...ele, se quer casar contigo, é porque tem a teu pai ódio de morte e pretende vingar-se do pobre homem na pessoa da filha!

não é somente o fato de cor que o levanta à oposição do teu pai!

são segredos de família... digo-te aqui no sagrado sigilo do confessionário, o fato de haver herdado consideravelmente do irmão!

ele é filho de um enxame de crimes e vergonhas!

por mea culpa! mea culpa!

mas do que ele quer vingar-se de papai?

de joelhos, pecadora! que é muito mais culpada do que supunha!

não é possível!

então? já entrou a razão nessa cabecinha?

ai! não posso mudar de resolução, meu padrinho!

pois sobre ti pesará a maldição eterna! sabe que tenho plenos poderes de teu pai para retirarte a bênção, que...

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se para isso... é preciso desistir do casamento, não posso!

ohhh!

mas por que não podes, minha tontinha?

vamos...não seja teimosa... ponha-se em paz com deus e comigo!

porque estou grávida!

bem vê que não tenho outro remédio, senão....

horresco referens, que notícia horrível me trazes!

está muito enganada! o que tem a fazer é casar com o dias! e logo! antes que a culpa se manifeste!

matar meu filho?!!

quanto a isso, eu me encarregarei de um remédio para...

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...se soubesses como me fazes falta...

...vem o quanto antes. preciso de ti, para não acreditar que somos dois monstros...

‘‘como me dóis, ausente. tenha pena de mim! vem, vem buscar-me...’’

‘‘... se não vieres até o fim do mês, irei ter contigo, irei ao teu encontro...’’

‘‘... farei uma loucura...’’

ainda é cedo... espere o momento para por em prática o que já combinamos!

111


... a vigilância diminuia.

trĂŞs meses desde a partida do primo...

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viste os novos ares com que ana rosa trata o luís?

está dentro! está ali, com um pé na sociedade!

você é um homem dos diabos, compadre. você é quem sabe todas!

davus sun non edipus. sou davo, não édipo!

quem serão os padrinhos?

e os convidados ?

“...domingo, às oito da noite, hora em que teu pai costuma conversar na botica do Vidal...’’

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“Nessa ocasião, um sujeito barbudo, vestido de preto, assoviará junto à tua porta uma música tua conhecida. Esse sujeito sou eu...“

“a casa que nos há de receber e o padre que nos casará estarão nesse momento à nossa disposição. Toda cautela é pouca.”

anica, visita para vossmecê!

que contratempo.

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que estafa a sua, credo! subir oito ladeiras no mesmo dia!

contadinhas!

é de estrompar uma criatura!

bom... eu já me vou chegando!

Já?

diabo!

bem...

então não lhe disse que a eufrazina estava de namoro com um estudante do liceu?...

que estouvada!

bem, bem, adeus minha vida! até que enfim!

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COMO?

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COMO?

COMO VOSSA REVERENDÍSSiMA ME ORiENTOU, EU FiQUEi ATENTO ÀS CONVERSAS DE AniCA COM A PRETA MÔNiCA, CADA VEZ QUE ELA VOLTAVA DA FONTE.

NADA! POR ORA, NÃO!

Foi QUANDO TOMEi CONHECiMENTO DA CORRESPONDÊNCiA DO RAiMUNDO, DESDE AS PRiMEiRAS CARTAS. DEVO ME APODERAR DELAS, NÃO É VERDADE?

117


CONTiNUAREi A FREQUENTAR A CASA DO COMPADRE MANUEL, OBSERVANDO CADA REAÇÃO DE ANiCA ÀS CARTAS QUE RECEBE...

QUANTO A VOCÊ, CONTiNUE ATENTO!

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E POR ISSO APODEREI-ME DELA, NÃO É? E POR QUE NUNCA PRECISAMOS DAS OUTRAS?

ESTOU EM BOA MARÉ, ENTÃO VOU EXPLICAR-LHE. AS OUTRAS ERAM APENAS CARTAS DE NAMORO...

COM ESTA ÚLTIMA CARTA SOUBE DA DATA DA FUGA DOS DOIS POMBINHOS. NADA QUE ALGUNS POLICIAIS NÃO DEEM CONTA!

OU, PIOR, SE rEFERISSE AO ESTADO INTERESSANTE DE ANA ROSA?

ORA... SE EU IRIA PERMITIR A ESSE PARVO APODERAR-SE DAS CARTAS DE RAIMUNDO A ANICA... E SE ELE FIZESSE ALGUMA REVELAÇÃO ACERCA DO CRIME DE SÃO BRÁS?

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SENTI SER MINHA OBRIGAÇÃO EVITAR O CRIMINOSO RAPTO QUE O DOUTOR RAIMUNDO TENTAVA PERPETRAR CONTRA UM DOS MEMBROS DA SUA FAMÍLIA!

EU IA POR MINHA VONTADE. FUGIA COM MEU PRIMO, POR QUE ESSE ERA O ÚNICO MEIO DE CASAR COM ELE!

EO SENHOR? COMO SE EXPLICA?

NÃO ME DEFENDO NEM ACEITO O JUIZ. APENAS DECLARO QUE ANA ROSA NÃO TEM RESPONSABILIDADE PELO ACONTECIDO. O CULPADO SOU EU!

O COMPADRE SEMPRE FOI O MEU GUIA, COMPANHEIRO E MELHOR AMIGO, COMO AGORA, MAIS UMA VEZ O PROVOU...

HEI DE CASAR COM ELA, E PARA isso EMPREGAREI TODOS OS MEIOS!

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O DIAS... É MAIS QUE UM EMPREGADO. É UM COLEGA ZELOSO, UM FUTURO SÓCIO. O QUE TENHO A FALAR AO DOUTOR RAIMUNDO, O FAREI EM SUAS PRESENÇAS!


EU SEMPRE PENSEI NO CASAMENTO DE MINHA FILHA, COM SENTIDO EM SEU FUTURO E SUA FELICIDADE!

O QUE EU QUERIA ERA DÁ-LA A UM HOMEM DE BEM E TRABALHADOR! ... QUE FOSSE BRANCO E QUE PUDESSE ASSEGURAR UM FUTURO DECENTE PARA MEUS NETOS!

UM BELO DIA DESCOBRI NO DIAS UMA INCLINAÇÃO POR ANICA. FIQUEI SATISFEITO!

PENSEI ENTÃO NO DIAS. ELE SERIA UM BOM MARIDO PARA ANICA!

NÃO A CRIEI PARA FREIRA. A QUERIA CASADA, FELIZ, SATISFEITA, AQUI, AO LADO DE SEU PAI!

FILHO DO DEFUNTO MANO JOSÉ COM A PRETA DOMINGAS, SUA ESCRAVA!

HOSPEDEI-O EM MINHA CASA!

RAIMUNDO AFEIÇOOU-SE À MINHA FILHA. E ELA LHE CORRESPONDEU!

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PORÉM, VAI O DIABO! CHEGA DO RIO O MEU SOBRINHO BASTARDO...

ELE VEM, PEDE-MA EM CASAMENTO. EU NEGO. ELE QUER SABER O PORQUÊ, E EU DOU A RAZÃO COM FRANQUEZA!


senhor, NÃO! VOSMECÊ DEU SUA PALAVRA DE QUE NUNCA PROCURARIA CASAR COM ANICA...

SENHOR!!

E AGORA VEM, usando de astúcia, RAPTAR MINHA FILHA! ICHE! CASAR MINHA NETA COM O FILHO DE UMA NEGRA? VOCÊ NÃO SE ENXERGA?

NÃO HAVERÁ NESTA TERRA PENA PARA SEMELHANTE ABUSO?

HÁ, Se O DELINQUENTE SE RECUSA A REPARAR O DELITO COM O CASAMENTO. EU NÃO DESEJO OUTRA COISA! O SENHOR NÃO TEM CULPA DA SUA PROCEDÊNCIA!

APELO À SUA CONsCIÊNCIA. DEIXE O MARANHÃO O QUANTO aNTES!

NÃO ME RETIRAREI DO MARANHÃO SEM TER CASADO COM SUA FILHA! DESDE JÁ PEÇO A MÃO DA SENHORA DONA ANICA!

VOCÊ NÃO HÁ DE CASAR COM MINHA NETA ENQUANTO EU VIVER!

EU RETIRO MINHA BÊNÇÃO DE MINHA AFILHADA SE ELA NÃO OBEDECER À FAMÍLIA!

122

não quero! mesmo que raimundo me abandone!

TENHO POR FORÇA DE CASAR COM ELE. ESTOU GRÁVIDA!


NUNCA! ARRANJEM SEJA LÁ O QUE FOR, MENOS CASAMENTO DE MINHA NETA COM UM NEGRO!

O SENHOR, AINDA HÁ POUCO, PEDIU A MÃO DE MINHA AFILHADA, NÃO É VERDADE?

fale BAIXO... OLHE QUE PODEM OUVIR DA RUA, DONA BABITA!

SIM... MAS ELA ESTÁ...

TU ESTÁS DE BARRIGA?

POIS MANTENHA O SEU PEDIDO. EU DAREI A RESPOSTA AMANHÃ À TARDE. ESPERE POR MIM NO CANTO DA PRENSA. AGORA, VÁ!

QUANTO AO SENHOR DOUTOR, DIZ QUE ESTÁ DISPOSTO A REPARAR SEU CRIME!

EXATO!

SIM, SENHOR, É MUITO NATURAL... É MUITO BONITO, ATÉ... MAS... LONGE DE SALVAR, PREJUDICARIA E AVILTARIA AINDA MAIS A VÍTIMA!

CANALHA!

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aí vem ele. esconda-se!

...PARA QUE LADO SEGUIU O HOMEM?

DESCEU O BECO DA PRENSA!

ELE COM CERTEZA FOI DESPACHAR O ESCALER QUE TINHA PREPARADO PARA A FUGA!

TOME! MAS... MAS...

LEMBRO-LHE QUE UM HOMEM DE COR, UM MULATO NASCIDO ESCRAVO DESVIRTUOU A MULHER QUE VAI SER SUA ESPOSA!

E ALÉM DISSO, ENQUANTO AQUELE HOMEM VIVER, A MÃE DO FILHO DELE NUNCA FARÁ O MENOR CASO DE VOCÊ. É O QUE LHE AFIANÇO!

espere um pouco!

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MAS O QUÊ? NÃO SEJA BESTA, TOME-LA!

AGORA, VÁ. COM A VIRGEM SANTÍSSIMA! ADEUS, SENHOR CÔNEGO!


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UMA FATALIDADE... NÃO ME POSSO CONFORMAR COM O DIABO DESTE PÓ VERMELHO Do SÃO PANTALEÃO!

Mas creiam que me comoveu bastante a morte do pobre mundico. era um moço hábil. tinha habilidade para fazer versos!

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SEIS ANOS DEPOIS, EM MEADOS DE FEVErEIRO, HAVIA UMA FESTA NO CLUB FAMILIAR.

ERA UMA GALANTERIA QUE OS LIBERAIS DEDICAVAM A UM SEU CORRELIGIONÁRIO QUE CHeGAVA DA CORTE PARA ASSUMIR A PRESIDÊNCIA DO MARANHÃO.

mas, vejam, está a descer o casal mais festejado da noite!

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O par festejado era o Dias e Ana Rosa, casados havia quatro anos.

Ele deixara crescer o bigode e aprumara-se todo.

Tinha até certo emproamento ricaço e um ar satisfeito de quem espera por qualquer vapor o hábito da rosa.

AGASALHA BEM O PESCOÇO, LULU! AINDA ONTEM TOSSISTE TANTO À NOITE, QUERIDINHO!...

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obrigado por vires, joão. és um grande amigo!

Ora, ninguém dirá que joão affonso nascimento deixou partir um amigo sem dar-lhe um abraço!

é o que espero. mas aqui no maranhão, o único que se dignou a escrever algo foi o euclides faria, no civilização!

“...eis aí um romance realista, o primeiro pepino que brota no brasil...“

e, é óbvio, o fez com sua bile habitual!

ainda mais quando esse amigo é aluísio azevedo, de quem o brasil muito ainda há de falar! “...é muita audácia, ou muita ignorância, ou ambas as coisas ao mesmo tempo! é contar demais com a ignorância dos leitores, com a benevolência da crítica nacional e julgar os outros por si.“

“...é uma traição à sociedade, é um atentado contra o respeito devido à ordem social.“

“...para que o autor de ‘o mulato’ nos desse a medida exata de seu realismo, deveria abandonar essa vidinha peralvilha de escrevinhadelas tolas. vá para a foice e o machado!”

“...à lavoura, meu estúpido! à lavoura! precisamos de braços e não de prosas em romances! isto sim, é real. a agricultura felicita os indivíduos e enriquece os povos! à foice e à enxada!“ Joaquim de Albuquerque (euclides faria). civilização, 1881.

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Lançou mão de diversos meios para atrair os leitores na promoção e difusão do romance e métodos que visavam prepará-los psicologicamente. Utilizou sistematicamente a imprensa e distribuiu cartazes e panfletos, uma inovação na cidade. Em jornais como O Pensador e Pacotilha, Aluísio publicou anúncios chamando a atenção para o romance e as relações sociais que observava. Também mandou publicar artigos visando chamar a atenção para o romance a ser publicado e o personagem principal, Raimundo, como se ele de fato existisse, para aguçar a curiosidade do público. “Acha-se entre nós o Dr. Raimundo José da Silva, distinto advogado que partilha de nossas ideias e propõe-se a bater os abusos da igreja. Consta-nos que há certo mistério na vinda deste cavalheiro”. Aluísio aproveitou o melhor momento de que podia dispor: o processo aberto pelo clero contra os redatores do jornal O Pensador, que teve, excepcionalmente, uma afluência de mais de 800 pessoas para acompanhá-lo, foi a ocasião O livro foi posto à venda três dias depois. Apesar das reações da Igreja, o livro foi um sucesso. O romance foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor. O resto é história.

Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913. Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão do teatrólogo Artur Azevedo. Revelou desde cedo grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que lhe ajudou na aquisição da técnica de caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Com a morte do pai, em 1878, voltou a São Luís, para tomar conta da família e onde começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, uma obra romântica. Ajudou a lançar e colaborou com o jornal anticlerical O Pensador. Em 9 de abril de 1881, lançou O mulato. O romance provocou polêmica desde o lançamento de sua primeira edição em São Luís, e continuou repercutindo após 1889, com a edição definitiva, no Rio de Janeiro.

REFERÊNCIAS: MÉRIAN, Jean-Yves. Aluísio Azevedo vida e obra (1857-1913). Rio de Janeiro: Espaço e tempo Banco Sudameris – Brasil; Brasília: INL, 1988. www.academia.org.br/academicos/aluisio-azevedo/biografia

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Iramir Alves Araujo, maranhense, historiador, mestre em História Social pela Universidade Federal do Maranhão. Artista gráfico e roteirista, colaborou com os jornais O Imparcial e O Estado do Maranhão, onde publicou tiras diárias e artigos sobre histórias em quadrinhos. Entre suas produções, destacam-se quadrinhos com fins educacionais para ONG’s e órgãos do governo, como Gatos pingados, Os viajantes do pião do tempo, Turminha do esporte, O misterioso segredo, etc. Contando com a participação de artistas locais e nacionais, lançou a revista Corpo de Delito, com HQ’s de ficção policial. Publicou o álbum Balaiada – a guerra do Maranhão, ilustrado por Beto Nicácio e Ronilson Freire. Com arte de Ronilson Freire, publicou o álbum Ajurujuba – a fundação da cidade de São Luís. Sua dissertação de mestrado A Flecha, a pedra e a pena –João Affonso, Aluísio Azevedo e a primeira revista ilustrada do Maranhão, venceu o 35o Concurso Cidade de São Luís, na categoria ensaios, sendo publicada em livro.

Com mais de dez anos de carreira no mercado internacional de quadrinhos, Ronilson Freire Martins já trabalhou para editoras dos Estados Unidos, Canadá, Inglaterra e Ásia. Seus trabalhos mais significativos incluem Green Hornet, The Avenger e Vampirella para a Dynamite Entertainment. Como arte finalista trabalhou em títulos como Ninjack, para a Valiant, e Call of Dutty, para a Activision. Recentemente ilustrou Wolfenstein, série baseada no jogo para Play Station4 da Betesda Software em parceira com a editora inglesa Titan Comics. Já ilustrou roteiros de escritores como Mark Waid, Grant Morrison, Nancy A. Collins, Peter Milligan e Dan Watters. Para o mercado brasileiro especializouse em clássicos da literatura e HQ’s baseadas em fatos históricos, como as graphic novels Ajurujuba – A Fundação da cidade de São Luís, Balaiada – a guerra do Maranhão, e o romance O Mulato, de Aluísio Azevedo, roteirizados por Iramir Araujo . Atualmente é o desenhista da série steampunk Myopia, da Dynamite Entertaiment.


Esta obra foi composta em fonte Lula Borges e Bodoni MT e impressa em papel pรณlem bold pela SETE OFFICE para a GRAFICA E EDITORA sete CORES LTDA, em outubro de 2019.


ISBN - 978-85-61742-38-6

9 788561 742386


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