editora fantaxma
SUĂ?TE DE NOVEMBRO
poema de olhos vendados e uma teoria do amor
ISAAC SOUZA
editora fantaxma
SUĂ?TE DE NOVEMBRO
poema de olhos vendados e uma teoria do amor
ISAAC SOUZA
CLAVES E RITORNELOS
MOVIMENTO 01
ACONTECER
MOVIMENTO 02
MÍSTICA
MOVIMENTO 04
PROFANAÇÃO
MOVIMENTO 01 ACONTECER
SUITE DE NOVEMBRO
I Os olhos de toda mulher expelem faíscas invisíveis – olhe nos seios dela e você verá pequenas e avermelhadas cicatrizes de fogo. Eu estava no gramado, ignorava o som da canção violada, quando Stela me atingiu com suas faíscas amarelas: olhos de estrelas prestes a morrer. Silêncio. Ela seguia como animal grotesco que não acha lugar na natureza: belo demais para monstro, feroz demais para mascote, caçador que reza pelo destino da caça - índoles de paradoxo no crepitar da visão. Fagulha que se acendeu quando cruzamos retinas: estilhaço de fogo de quando se cruzam espadas.
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ISAAC SOUZA
II Certa vez, uma mulher – seu corpo era branco e estreito e curvas denunciavam os detalhes de sua nudez. Em minha mente eu a despi e tornei a vesti-la: transparente escuridão, calcinha pálpebra, sutiã de penumbra - um colar de ferro em seu pescoço. Eu a fiz montar meu corpo, e enquanto arfava em trote, admirei suas nuances de pele, cheiro, suor e luz. Como um caminhante que perdeu a hora e esquecido do chão palmilha a luz do sol e já nenhuma sombra o alcança: o suor o desmancha, cansam seus ossos e músculos, nada porém o enfada - ele é como a flor ferida que se orvalha em leite e pólen.
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ISAAC SOUZA
III Mas Stela era morena como a noiva de Salomão: não desperteis o seu amor. Ela acordava o tesão do gato ao cheiro do cio da fêmea: não desperteis o seu amor. Seus olhos de fogo vendados, a boca que evitava sorrisos e palavras: não desperteis o seu amor. Silenciosamente pintada – misto de puta, atriz e namorada: não desperteis o seu amor. Imóvel e arquejante sob a tirania do meu tato: não desperteis o seu amor. Derrete-se, saliva e hálito, derrete-se, outros odores e fluidos: não desperteis o seu amor. A combustão do oxigênio no arfar de seus pulmões, ritmo de fricção, poros de arrepio: não, não, não... não desperteis o seu amor.
07
SUITE DE NOVEMBRO
Estava nua? Não sei. Espartilho, camisa xadrez, estampas de banda de rock, penugens finas na vagina - ela era morena, isso eu sei: não, não, não, não... não desperteis o seu amor. Almíscar, mornidão: abalos sísmicos em suas coxas, ânsia, indecisão: não… não desperteis… o seu amor... Não sei se a toco, não sei se a beijo. Não sei se a invado ou se a abandono – nem com que força, nem com que fome, não sei se a marco, não sei se a canto, couro contra a pele, não sei se a puno, não sei se a janto... Uma espera infinita como a queda em um sonho – ânsia de dor… o despertar da espera inútil do amor.
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IV (Ela) esperava o movimento mais cruel, desejava o ardor que lhe rasgasse a escuridĂŁo das sendas dos seus olhos - vendas em seus olhos. E eu datilografava linhas invisĂveis nas prendas dos seus olhos - e habitava beduĂno entre as tendas dos seus olhos - e a beijava suavemente sobre as vendas nos seus olhos. Cheiro de tulipa nas sobrancelhas de renda, fios luminosos escorridos sobre as vendas desvendas - lendas estupendas - as vendas em seus olhos.
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SUITE DE NOVEMBRO
V Ela tinha mais cores que a música de Hendrix, ela era um delírio de Pink Floyd – ela é Pompeia, ela é o Vesúvio, a pura destruição, a inocência do cataclismo, as traquinagens nonsenses de deus– o vulcão que jaz inerte até as nuvens mas ferve sob as raízes do chão, os alicerces do caos, reentrâncias do inferno: uma mulher, um demônio, um conceito - um poema de Bashô.
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VI O violão desafinado, o violão que ecoava estridente: estridentemente despertei. Êxtase (x-tasy): despertei: – profeta profano, homem de ciência, bicho que grita, grilo que canta, fera que corre, vampiro que queima, verso que desmaia. Stela se afastava deixando em mim uma marca fumegante: os seus olhos de caldeira, olhos que crepitam na floresta antes do incêndio, ferro de estigma que marca o destino de um condenado. Depois disso eu pensei em Stela muitas vezes – e então não pensei mais.
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MOVIMENTO 02 MÍSTICA
SUITE DE NOVEMBRO
I Mas Stela pairava livre nas extremidades do acontecimento: mulher sem começo nem fim. O meio das coisas, o meio do caminho, o meio da linha, o meio pelo qual se chega a lugar nenhum e a todos os lugares. Stela era o plano aberto em que uma sombra minha flutuava sem memória de quem sou. Naquela noite, ela estava entre as pessoas na plateia, entre os crentes na assembleia, espírito esquálido escorrendo entre pedras. Stela e o musgo das décadas nas pedras do Itapecuru. Seus olhos me olhavam no meio da folhagem – cabelos que dançavam entre labaredas de LED. Stela, a incriada. Stela, a não-nascida – a virgem mil vezes fodida: deusa, sacerdotisa e máquina.
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II Stela nasceu de uma pincelada de Goya ou de uma frase de Sacher-Masoch. Todos os seres humanos nascem de uma vagina: Stela nasceu da própria. Onça pintada, unhas pintadas, pele pintada: cabelos, olhos, bochechas e boca - a mulher não é quem, mas o que se pinta - a mulher é um evento cósmico pintado sobre o corpo animal que roubou de deus. Os olhos pintados de Stela me tragaram (devagar, como se inocentes), como se se escondessem no vértice de um poema cego.
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SUITE DE NOVEMBRO
III A penumbra é o fantasma da névoa: eu e Stela éramos assombrações se esgueirando rente às frestas, na sintonia das labigós – meu nome rabiscado no interior da venda - aliança perversa - e o eco a propagar-se na ironia dos espelhos. Dulce bárbara – pele de ogro - a crueldade do bem - as contradições melancólicas da cartilha moral: antes de os homens fazerem-se a si mesmos, eles foram feitos do barro - Stela é a terceira entre as esposas de Adão, nem barro nem osso, Stela foi feita de Sol.
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IV Jazia um homem ruivo crucificado. Sozinho e entediado ele conversava com os corvos na árvore central do jardim. Os mortos não se ressentem - os legítimos fantasmas já nascem malditos. Stela e a serpente bebiam vodca e contavam estrelas – a espera, a costela quebrada, o drama da menina infeliz. Padres, pastores e apóstolos - todas as formas aceitáveis de apostasia - sermões gravados em VHS. Milhares de pessoas em transe sagrado pelo sinal da televisão.
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SUITE DE NOVEMBRO
Antenas. Cones. Livros eletrônicos. Música digital. Fogo na floresta. Fogo no parquinho. Muros verdes, morros cinzas. A tipografia autônoma dos pichadores de parede. Aproximava-se outra vez o tempo e a espera não tinha fim - o estalo do chicote, a parede do útero, a dilatação dos poros, o intumescimento dos mamilos: tempo para a vida, tempo para a morte, tempo para um demorado, preguiçoso, e despreocupadamente cuidadoso ócio de masturbação.. Ela conversava amenidades e sorria indolente enquanto, no canto direito de sua boca, o esperma naturalmente enxugava.
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V Uma criança, uma escrava, uma freira - Stela não tinha vontades. Ou, ao contrário: freira, escrava e menina Stela era a pura vontade.E eu era a vontade de Stela encarnada, materializada - uma bomba alimentada e acionada pela energia animalescamente poética de Stela. Marcar sua pele, fazê-la gritar: mais uma vez Pompeia, mais uma vez a explosão, mais uma vez a tempestade repentina da eternidade, do instante, da fúria, da inocência, da angústia e da devastação.
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SUITE DE NOVEMBRO
Por quanto tempo ela esperou - quantos séculos, quantas eras, quantas Atlântidas e quantos karmas? Pele morta contra a carne viva: a impressão da força contra as fibras tesas da ansiedade: a doçura da espera é o tempo da contemplação: a ameaça dura mil eternidades.
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VI Eu soluçava canções.
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SUITE DE NOVEMBRO
VII
Pietรก - u m g o z o d e m o r t e , u m d e s c a n s o e m paz.
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MOVIMENTO 03 PROFANAÇÃO
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I Havia um copo de café: a fumaça de serpente era um incensário para o sexo.
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II Pássaros, coelhos, gatos – plantas nativas, sombras em nossa paz. A noite e suas tranças – a noite e suas folias, as línguas das hidras e dos basiliscos, a noite e suas traquinagens ancestrais.
Versos espalhados na plataforma - quem canta, quem ouve, quem chora, quem geme, quem paga, quem tem hora ou carro para voltar pra casa.
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SUITE DE NOVEMBRO
Famílias e fulanos transitando em seus currais, o vento quente e úmido indiferente aos preços, cúmplices dos bichos e dos artesãos, os rostos curiosos, os corações pós-modernos - comer, beber e amanhã morrer… ter 20 anos, 200 livros, uma mulher, um pai, ter faturas, boletos, horários... Sobretudo, uma vontade incontida e indisfarçável de sodomizar Stela antes de a noite acabar.
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II Vazias e antigas, as ruas esquecem seus mortos, mas mantém o reflexo dos sonhos: não dormi por sete noites e por 49 dias cultivei vermelhidões. Uma cadela jovem e alegre banhada na areia branca esconde tesouros ao luar. As alturas dos montes são tão distantes – a luz de Stela me guiou pelos vales sombrios da fome:
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SUITE DE NOVEMBRO
penetrar cavernas, ser a serpente, o morcego e o fantaxma, ser o vampiro da linguagem, da voragem da palavra e do fogo de uma filosofia morta, tão antiga quanto os filhos incestuosos de Caim. Stela voa, salta e ruge: fera selvagem na viração – serras e cerrados, florestas em chamas, maremotos no deserto. Rios amarelos, sarcófagos que os navegam – entrar no corpo de Stela e festejar a morte do tempo: E nesta hora o amor desperta.
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IV O sabor dos pecados não previstos no direito canônico - somos inalcançáveis pela inquisição: palavras proibidas pelos pais, feridas de silício. Há fé no corpo dos depravados, fé que vive e que fervilha na medida do desejo. Stela desliza como aço sobre o aço quando o velho Bud Guy nos conta histórias de chuvas e amantes de estação. Quem sabe o quanto dói na corda a beleza do som que o piano faz? Eu sou martelo, eu sou espinho, eu sou o dente na faca: Belchior me chama na fronteira do Uruguai e Isabel Allende me chama de amor.
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SUITE DE NOVEMBRO
Tapetes voadores e canções sexagenárias me compõem – sangue esquenta, enche as veias, os vasos, os nervos: um imemorial chá de papoula, uma taça de absinto, um anjo maldito e sua doutrina proscrita. Stela em água e sal, cavalga totem e tabu – poema celulose, seiva, síntese, clorofila: a vingança das chinas, a redenção de Camila, nossos membros maquinando fibras na cartografia dos gengibres. Eu e Stela encenamos sozinhos, entre mil outros de nós, vivos, mortos e impossíveis, uma ainda não escrita tragicomédia de Artaud.
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V Stela é como as aves de arribação, é como um trem fantaxma, é como um talkin blues improvisado... Estou na cama de Michele, Marcela nos prepara torradas. Na janela, o jornaleiro e as mentiras da manhã. Luana, Teresa, Carolina, Margaret, Maria, Valquíria, Brígida, Suzana… Eu, a minha lentidão de poeta, o livro de Eclesiastes, mulheres e mulheres
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SUITE DE NOVEMBRO
VI O sexo anal é uma doutrina que só a mulher instrui - a maioria dos homens morrerá sem conhecer essa sabedoria. Numa linguagem que nem Saussure nem Derrida, nem Chomsky nem Foucault, poderiam investigar as estruturas, ela transmite ensinamentos secretos, dezenas e dezenas de séculos de gozos acumulados, e casais e orgias, e amores de adolescentes e amores de cortesãs, e até mesmo o segredo inviolável de José e sua virgem Maria, e todos os manuais indianos e mongóis, e as técnicas supremas dos conventos e das abadias…
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ISAAC SOUZA
Tudo aquilo que foi transmitido na célula, no átomo, no pó, no sonho, nas sombras furtivas e nos astros, nos símbolos cabalísticos, nas fissuras da pele e das paredes, e nas revistas de perfume e nas canções de rock n roll e nos castigos escolares quando se ajoelhava no milho… A mulher sabe, transmite, permite, corrige, orienta, exercita, fixa, recompensa, censura, condena, coordena, reabilita, traduz, assimila, produz - como Atena que dotou Perseu de presentes e habilidades, a mulher orna, equipa, treina, testa, aperfeiçoa o homem na arte de lhe comer o cu - só ela sabe, só ela pode, só ela faz.
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SUITE DE NOVEMBRO
E assim, como os dias se comunicam e as noites compartilham conhecimento, as mulheres presenteiam as outras mulheres distantes… “Eu louvo a mulher que te ensinou”, disse Stela e então se calou.
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ISAAC SOUZA
VII Stela se foi com o novembro e novembros nĂŁo se repetem.
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Esta obra foi financiada pela Academia Fantaxma