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ZERO
Número 43 – Junho/Julho de 2015
Número 43 – Junho/Julho de 2015
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ESPECIAL
Canabidiol reduz crises epiléticas em crianças Miguel Inocente sofre com convulsões ocasionadas pela epilepsia refratária e as crises são reduzidas com uso de medicamento derivado da maconha Arquivo pessoal
Heloisa Miranda
Pedro Hey
O
caminho para reduzir as crises convulsivas de Miguel Bubbi Inocente foi longo e difícil. Desde 1 ano e 8 meses de vida, até os 5 anos de idade, Priscila Inocente buscava soluções para tratar a epilepsia refratária do filho. Mais de 20 medicamentos foram utilizados e nenhum deles atingiu os objetivos esperados. Em busca de alternativas para melhorar a vida do filho, a família decidiu apostar no canabidiol (CBD). O canabidiol constava na lista de substâncias proibidas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) até o início deste ano, quando foi reclassificada para a categoria de medicamento controlado. A mudança se deu principalmente pela pressão exercida pela militância de pessoas que necessitavam da substância para tratar filhos ou familiares doentes. Os dias de luta de algumas famílias nessa condição foram retratados no documentário “Ilegal”. [ver box 1] No entanto, a reclassificação é apenas o começo. Mais de 700 famílias brasileiras dependem do CBD para garantir o controle, ou ao menos, a diminuição das crises e pretendem importá-lo legalmente. O assunto é recente, e por isso ainda não existem pesquisas que mostrem os resultados da Heloisa Miranda
Miguel já frequenta a escola
A família curte um dia de sol no parque Barigui; Miguel leva uma vida mais tranquila depois do CBD
utilização do CBD por um longo período de tempo. Apesar disso, sabe-se que o extrato da canabis não causa efeitos alucinógenos como o THC (substância também encontrada na maconha). Para Priscila, o fato de não existirem dados concretos sobre a utilização do extrato não assusta. “Uma vez, uma médica me questionou sobre os efeitos a longo prazo do uso do CBD. Eu respondi que outros medicamentos são estudados, testados e mesmo assim tem consequências graves. Meu filho quase teve falência renal e hepática, por conta de uma medicação autorizada, que foi estudada, que foi testada” relembra.
Diagnóstico O desenvolvimento de Miguel, ainda bebê, era normal. Quando começou a desenvolver a linguagem, a família percebeu que algo não estava bem. “Ele falava palavras, mas não conseguia formar frases”, explica Priscila. A mãe também observava que enquanto brincava, ele tinha “tremeliques” e ficava “meio fora do ar”. Ela levou a informação a uma médica, que aconselhou a família a procurar um neurologista. Depois de ser internado para exames, Miguel foi diagnosticado com epilepsia refratária. A criança sofre com crises convulsivas que não se enquadram em nenhuma outra síndrome. Priscila explica que, comparado a outras
crianças que têm problemas similares, Miguel demonstrava crises muito mais singulares: “Parecia um arrepio, mas acontecia muitas vezes por dia”. O tratamento começou com as medicações comuns, usadas em casos de epilepsia, mas as convulsões foram piorando. “O que era um tremelique virou uma coisa mais forte, mais intensa, até que ele teve crises de voar. Ele era arremessado, caía de cabeça no chão. A impressão que dava era que alguém estava empurrando ele”, relembra Priscila. O quadro era assustador, diversas vezes o menino ficou machucado após as crises, que chegavam a acontecer até 30 vezes por dia. Hoje, um pouco mais tranquila, a mãe até ri da situação: “Ele não tinha um galo, tinha um galinheiro na cabeça”. Ainda hoje a família não sabe exatamente o que causa as convulsões, e aguarda liberação por parte do plano de saúde para realização de um exame genético
As pesquisas precisam acontecer e as pessoas devem estar abertas para que essa questão Priscila Inocente
detalhado. Há dois anos Miguel perdeu completamente a habilidade de falar. Mas para a alegria da mãe, este ano durante uma atividade escolar, a criança disse a palavra “não”. Priscila sabe que a melhora que o filho vem apresentando é consequência do tratamento com o canabidiol. E aguarda ansiosa as próximas conquistas de Miguel.
A decisão Utilizar o CBD não foi uma decisão sem planejamento. A família, já cansada dos tratamentos ineficazes, buscava soluções. As medicações convencionais já não surtiam o efeito, e a cabeça estava aberta para experimentar o que pudesse colaborar. Com aspesquisas, os pais descobriram o caso de Charlotte Figi, que utilizava o extrato de Cannabis como tratamento para crises convulsivas desde 2011. O caso apresentava bons resultados e gerou grande repercussão na mídia internacional. Então, os pais de Miguel procuraram artigos e pesquisas relacionadas ao CBD e levaram como proposta à médica que o acompanhava. Priscila conta que a pretensão do casal em tratar o filho com CBD surpreendeu a profissional. Na época, o canabidiol ainda constava na lista de substâncias proibidas da Anvisa. “A proposta foi nossa, a médica também estranhou, mas com as pesquisas e bus-
cas, ela foi se informando também e aí receitou para o Miguel. A própria família ficou assustada com a ideia, mas sempre deu apoio e estimulou a tentativa”, afirma ela. Em maio do ano passado a decisão de utilizar o CBD foi tomada em definitivo, a família resolveu importar a substância. Na primeira vez, uma amiga que viajou para os Estados Unidos trouxe para a família. Muitos estados americanos adotam o uso irrestrito de maconha medicinal (e substâncias derivadas) para tratamentos diversos. Na segunda vez, a mãe dessa mesma amiga voltava de Portugal e trouxe o remédio dentro de uma embalagem de xampu esterilizada. “Na época, se eu fosse pega, seria tráfico internacional de drogas”, comenta Priscila, que não se arrepende. “É o que faz bem para o meu filho, é o que dá qualidade de vida para a minha família”. A mais recente importação de CBD feita por ela foi de maneira legal, com a autorização da Anvisa.
As dificuldades Apesar da reclassificação da substância na lista da Anvisa, as dificuldades para importar a medicação continuam. No caso de Miguel, o extrato utilizado, importado dos Estados Unidos, não tem registro de medicamento na FDA (FoodandDrugAdministration), que é o órgão competente para controlar o uso e a qualidade de remédios no país. Priscila buscou saber o que poderia ser feito nesse caso, e foi informada pela Anvisa de que sem a liberação da FDA não seria possível fazer a importação. Ela precisou juntar laudos, relatórios, as planilhas que utilizava para controlar o número de crises diárias de Miguel, depoimentos dos médicos que acompanhavam a criança para provar que aquele extrato, apesar de não estar registrado no órgão competente, era o que fazia efeito no seu filho. Somado a isso, a família precisou cumprir a burocracia, exigida pela própria Anvisa, para importar o CBD. “Buscamos os extratos com maior concentração, porque quanto maior a concentração menor é a dose. Eu achei o Apothecary em um portal de compras na internet e foi o que teve melhor resultado com o Miguel.
Eles iriam me proibir? Se é o que mente mil reais. Em uma tentatifaz efeito?”, questiona Priscila. va desesperada, a mãe conta que Em razão desta falta de regula- já fez o extrato em casa, mas sem mentação e fiscalização dos extra- as devidas ferramentas é difícil tos, um dos riscos que as famílias mensurar a qualidade do resulcorrem neste processo de impor- tado. “O extrato descarboxilatação é justamente trazer substân- do, que é uma pasta, é bastante cias que não tem os canabinóides simples de fazer. Com uma flor da planta, álcool necessários ou de cereal e uma suficientes para panela elétrica o tratamento. Alguns pro- O que eu desejo é você faz”, relata. Ela acredita que, dutos são ven- que ele se cure e se alguma emdidos no mercado, em sites se não for possível presa brasileira realmente tivesse principalmente, que não sofra interesse em procomo extrato Priscila Inocente duzir o extrato, de canabidiol os valores seriam sem ao menos apresentar a substância na sua muito menores e o CBD seria muito mais acessível às famílias. composição. Uma pesquisa da Uni “Não há pesquisa, porque ninguém faz. As pessoas versidade de São Paulo (USP) têm preconceito, é maconha, en- mostra que o custo total de uma tão é droga. Não vêem o outro caixa de medicamento feito a lado da questão. As pesquisas partir de CBD sintético custaria, precisam acontecer, e as pesso- em média, sete reais. as precisam estar abertas para que ela aconteça. Assim foi com a morfina.” desabafa Priscila, “Não existem pesquisas que estuda agronomia e pretende desenvolver pesquisas com a extensas sobre os efeitos do uso do CBD”, essa costuma ser a justificaCannabis. tiva dos médicos para não receitar o derivado. Até a mudança de classificação do CBD, o profissional que Para arcar com os gas- receitasse o uso do Canabidiol em tos de importação do medica- tratamentos medicinais corria o rismento foi preciso vender o carro co de ter o seu registro profissional da família. O preço do extrato (CRM) cassado. Mais ainda, por ser importado é exorbitante. Segun- uma substância que é extraída da do a mãe, um vidro de Apothe- maconha, o CBD é estigmatizado. cary, remédio usado por Miguel, Muitas pessoas ainda acreditam que custa 120 dólares e dura apenas qualquer relação com “droga” é noum mês. Além do CBD, Prisci- civa, esquecendo-se de que os medila precisa ainda comprar outras camentos tem a mesma origem. medicações que totalizam um gasto mensal de aproximada- O futuro
O preconceito
Os custos
Heloisa Miranda
Priscila com o extrato de CBD ministrado a Miguel
A expectativa da família é de que Miguel siga evoluindo e se desenvolvendo, tarefa com a qual o CBD vem colaborando. A escola que o pequeno frequenta tem estimulado seu desenvolvimento psicomotor, visto que aos seis anos Miguel age como uma criança de quatro. Priscila finaliza a entrevista com fé de que a vida do seu filho vai melhorar: “Se ele tiver uma carreira, vou ficar feliz, se for empacotador no mercado e estiver feliz, eu também estarei. O que eu desejo é que ele se cure, e se não for possível, que ele não sofra. Que possa se defender, e tenha uma vida digna”, finaliza.
Quem disse que a erva é do diabo? E para que serve o THC medicinal?
Extrato de CBD importado legalmente através da Anvisa
O
Brasil está entre os países mais atrasados nas questões relacionadas à maconha medicinal. Só recentemente a Anvisa reclassificou o canabidiol (CBD), substância extraída da maconha, de categoria proibida para droga controlada. Enquadrado na lista C1 da Portaria 344/98, o CBD se tornou uma droga lícita, criando a possibilidade de importação de forma controlada através de pedido excepcional. Além da questão normativa, a sensação de ilegalidade, obstáculo para que médicos pudessem receitar e para que famílias pudessem importar o CBD, começa a ser superada. Diversos fatores influenciaram nesta histórica posição retrógrada adotada pelo Brasil: o lobby farmacêutico, o poder do tráfico de drogas, a cegueira e o fanatismo religioso. Muitas razões poderiam justificar esta situação, mas é o preconceito que está presente na sociedade que realmente dificulta a aceitação desta nova realidade científica. É a ciência dizendo que um derivado da maconha é saudável. É bom para criancinhas com epilepsia. O uso do CBD reduz brutalmente a freqüência de crises convulsivas em bebês e crianças que, em função da doença, não conseguem ter uma vida normal. Mas a Cannabis (nome científico para maconha) tem propriedades medicinais que vão além do CBD. Um caso que pode ser até mais controverso e delicado entra na pauta da saúde brasileira. Com a reclassificação do canabidiol, portas se abrem para a aceitação e o uso, de forma ampla, mas controlada, da maconha medicinal no Brasil. E dentro deste pacote de mudan-
ças, da adoção da maconha medicinal como tratamento possível e eficaz, está o THC.
O caso do THC Diferentemente do CBD, o THC tem propriedades psicoativas, ou seja, na linguagem popular de quem fuma maconha, é a substância que “dá o barato”. Mas isso não significa que o indivíduo que usa o THC de forma medicamentosa terá prejuízos psíquicos. Ao contrário, os efeitos de uma droga (ou um remédio) são previstos e calculados pelos médicos que a prescrevem. Na medida em que se conhece a eficiência de um remédio para qualquer tratamento, é dever ético do profissional de medicina prescrever o melhor para o paciente. A grande luta a ser travada pelo THC medicinal ainda está por vir. Como esta substância também remete ao uso recreativo da droga, o paradigma a ser quebrado é muito mais resistente. Além do mais, assim como o canabidiol, o THC enfrentará uma grave deturpação de competências criada pela lei brasileira. Na lei 11.343/06, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), entre outras ações, está previsto que as drogas ilícitas serão definidas por “portaria”, ou na letra da lei, em “listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União”. Transfere-se o que seria de competência do Legislativo para o Executivo, ou pior, para o Serviço de Vigilância Sanitária, que é órgão de segundo escalão do Ministério da Saúde. Assim, cabe à Anvisa regulamentar o que deveria ser, em teoria, legislado e amplamente debatido pelos deputados em Brasília.
Pesquisas e estudos são realizados em todo o mundo com o intuito de descobrir todas as propriedades medicinais da maconha e do THC. Entre as descobertas, estão desde o alívio de dores e a diminuição de náuseas e vômitos em tratamentos quimioterápicos, até a aplicação em casos de esclerose múltipla, ou mesmo para ser usado simplesmente como um estimulante do apetite. Indícios de aplicação do THC para o auxílio no tratamento do câncer e da Aids também fazem parte destas pesquisas. No Brasil, o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, que é doutor em Psiquiatria e Psicologia Médica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), foi responsável por um estudo com dependentes de crack. Presas ao vício, estas pessoas se voluntariaram para tratar a dependência física do crack através do uso de cannabis. Ao final do tratamento, 68% dos pacientes abandonaram o uso de crack e, pouco tempo depois, também deixaram de usar maconha. O estudo foi publicado na conceituada revista científica norte-americana Journal of Psychoactive Drugs, em 1999. Para Diogo Busse, que está à frente da Diretoria de Política Sobre Drogas da Prefeitura de Curitiba, uma das figuras importantes na luta pela adoção da maconha medicinal no Brasil e pela humanização dos tratamentos de dependência química, é preciso “iniciar uma mudança cultural para repensar a questão das drogas. Nós reproduzimos, há muitos anos, uma cultura que acredita que vamos resolver os problemas com repressão, com a polícia. Mas os problemas são muito mais complexos”. Segundo o diretor, a realidade brasileira ainda está distante da nova tendência mundial de uso e incorporação consciente da maconha medicinal (e até recreativa) na sociedade. A mudança passa pela descriminalização e legalização, pelo controle, mas, sobretudo, pela vitória da perspectiva humanista da medicina e da sociedade do século XXI em relação às posturas retrógradas e preconceituosas que criamos ao longo da história de proibição e repressão maquiavélicas.