vulcania edição 01 / 2017
por vivência passarinhas
vivência passarinhas ISABELA BUGMANN JOICE FELIPPE JÚLIA LORENA MICHELLE DE ANDRADE NAIARA ZEFERINO
Somos mulheres, somos cicloviajantes, somos catarinenses, somos irmãs de úteros diferentes, somos sonhadoras e realizadoras. Somos uma infinidade de emoções e ao mesmo tempo racionais. Espirituais e aterradas. Politizadas e desconectadas das últimas notícias do jornal. Somos vulneráveis e fortes. Estamos nas ruas e fazemos de cada lugar que passamos nossa morada. Encontramos conforto na imprevisibilidade dos nossos dias e descobrimos a cada pedalada uma nova versão de Brasil que nos encanta e desafia a desconstruir velhos paradigmas e padrões de pensamento. Queremos nos reconhecer como brasileiras e viver a alegria de sermos latinas-americanas. Percebemos que cada encontro nos aproxima da nossa ancestralidade, nossa cultura, nossa essência e nossa própria história.
Vivência Passarinhas nasceu do desejo de mudar. Mudar nossos estilos de vida e nos transformar em nossas melhores versões. Queremos vivenciar novas culturas, encontrar pessoas inspiradoras e restabelecer nossa fé na bondade humana. Buscamos conhecer diferentes realidades sócio-culturais e viver da maneira mais livre dentro desses contextos. Transitar entre povoados, vilarejos, cidades, matas, praias, sertões, cerrados, e muitos outros cenários que nos deixam sem fôlego. Levar histórias, registros, sabores, cheiros, cores, amores e dores conforme seguimos. Receber e doar, pedir e oferecer. Trocar é a palavra chave. Trocamos com as pessoas, com os lugares, com a cultura e nos integramos. “Que dia é hoje?” “Que horas são?”. Nem sempre sabemos porque a vida na estrada se organiza em outra lógica. Nos dissolvemos na intensidade de cada experiência. Cada dia com mais certeza de estarmos fazendo
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exatamente o que deveríamos fazer e ao mesmo tempo enfrentamos dúvidas ainda maiores. Acreditamos que as dúvidas nos fortalecem pois nos mantém sempre alertas para entender o dinamismo de construção e desconstrução do ser humano. Quanto mais conhecemos do mundo, menores nos sentimos diante da imensidão e profundidade das bênçãos que recebemos. Nos tornamos mais empoderadas e responsáveis pela criação da nossa realidade e por fortalecer aquilo que queremos ver na sociedade. Escolhemos a bicicleta pois é através dela que colocamos nossa cara no mundo, sem a caixa de proteção individualista que separa o dentro/fora, eu/você, estrada/veículo. Estamos ali, expostas, sentindo o sol, a chuva, o vento e a poeira no rosto. Sentimos cada gota de suor lavar nossa alma, reconhecemos as expressões de quem nos observa passar, respondemos e damos bom dia.
Viajar de bicicleta também nos coloca em uma posição de desapego. O que de fato precisamos para viver? Qual é o limite entre conforto e extravagância? Cada peça que carregamos tem uma vantagem e uma consequência. Nosso peso é proporcional aquilo que conseguimos desapegar. Quanto mais leve pedalamos, menor o esforço e desgaste. Assim é a vida sobre duas rodas, os excessos tanto materiais quanto emocionais ficam evidentes a cada pedalada e cada uma de nós aprende ao longo do caminho a soltar ou se responsabilizar por aquilo que carrega. Aprendemos a levar o essencial para viver e essa medida é tão subjetiva que não sei se conseguiria explicar como funciona para cada uma de nós, porém percebo que o material tem cada dia menos valor. Admito que gostamos de “brincar de nos embelezar” com nossas roupas de brechós e talvez levamos uma ou mais blusinhas do que o necessário. Somos mulheres e fizemos as pazes com
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o nosso gênero e o fato de que existem dias que gostamos de usar nossas roupas preferidas para nós mesmas, passar um batom e tomar uma cerveja no banco da praça. Ocupamos o espaço público e convidamos outras mulheres a fazer o mesmo.
Ao longo das nossas andanças, muitas pessoas nos questionavam sobre nossa coragem de “andarmos sozinhas por aí”. “Somos 5 mulheres”, respondíamos prontamente, “não estamos sozinhas”.
respire. e inspire-se O que me inspirou a iniciar uma novo estilo de vida? O que eu mais refletia a caminho do escritório era a forma de viver, e, por mais diferente que possa ser cada história de vida, observei que sempre há um certo padrão. TEXTO MICHELLE DE ANDRADE
Você tem uma infância feliz, pais que te dão toda a educação necessária para ter um futuro “garantido”, decide a faculdade que quer fazer sem muita certeza mas com a cobrança de que deverá ser a sua profissão para o resto da vida. Faz uma pós-graduação, namora, termina, namora novamente e talvez se case. Logo vem a cobrança de ter filhos. Será ótimo se conseguir trabalhar na área que você se dedicou por anos de faculdade e melhor ainda se ficar por anos a fio na mesma empresa. Você veste a camisa da empresa! Mas esquece de vestir a sua. A história pode ser um pouco diferente, pode ser que não tenha feito uma faculdade, pode ser que troque de empresa várias vezes e no final irá se questionar: nossa, como a conta do plano de saúde aumentou esse mês! E você continua trabalhando para conseguir pagar o tratamento de stress que o trabalho está lhe causando. A fórmula é sempre a mesma e quando você se dá conta já está com 30 anos e vem aí mais questionamentos: por quanto tempo? Fiz tudo certo… Cadê a felicidade? O que me inspirou a fazer uma cicloviagem é ter a possibilidade de viver uma nova vida dentro de uma vida, é ter a liberdade de uma criança com a sabedoria de um adulto e ter a plena consciência daquilo que você gosta ou não, aquilo que faz sentido para você, livre de padrões sociais e regras que te obrigam a manter um certo padrão de vida. E mais questionamentos filosóficos ou de crises existenciais… Chame do que quiser, porque vivemos mesmo? Pergunto dessa forma porque temos a resposta dentro de nós, como se tivéssemos esquecido! E então larguei tudo aquilo que não me veste mais para simplesmente viver o que a vida tem a oferecer.
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Diante de certo descontentamento e na esperança de encontrar novas formas de se viver, buscamos inspiração em projetos de pessoas que nos despertaram e instigaram a dar o grande pulo. Foram inúmeras horas pesquisando e acompanhando relatos, vídeos e fotos de pessoas que romperam com a falsa segurança de suas vidas, que gostamos de chamar de babilônicas, e desbravaram novos caminhos. Ainda hoje vibramos alegremente ao trocar com cada viajante e agradecemos muito cada alma que se aventurou mundo afora e nos instigou a fazer o mesmo. Esses são somente alguns dos muitos projetos que nos influenciaram a iniciar nossa jornada.
100 Frescuras 1000 Destinos Pâmela Vadez Marangoni é uma cicloviajante que saiu do Mato Grosso do Sul para uma aventura percorrendo 14 países da América do Sul e Central. Durante um ano e quatro meses ela viveu sobre duas rodas inúmeras situações inusitadas, superando desafios com muita irreverência e bom humor. Ela compartilha suas andanças pelo Facebook e em breve através de um livro. facebook.com/100Dinheiro100FrescuraE1000Destinos
Coletivo Brasileirando O Brasileirando é um coletivo de artistas de Santa Catarina que viajam em busca de experiências sócio-culturais através de encontros e trocas pelas estradas brasileiras. Os registros em forma de fotografias e vídeos evidenciam as riquezas imateriais do Brasil e podem ser apreciadas nos belos episódios produzidos e disponíveis no YouTube e que contemplam a profundidade desse trabalho. facebook.com/coletivobrasileirando www.youtube.com/brasileirandotv
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Jornada Viva Este casal decidiu mudar seu estilo de vida e buscar novas relações de trabalho, priorizando o esquema de trocas de voluntariado por hospedagem e alimentação enquanto viajam pelo mundo. Eles incentivam pessoas que, assim como eles, querem experienciar novas culturas a usar as plataformas WWOOF, Workaway e HelpX para trabalhar em fazendas e outros locais com o intuito de desacelerar e desurbanizar a vida. www.jornadaviva.com facebook.com/jornadaviva
Warmifonias O Warmifonias é um projeto de 5 mulheres cicloviajantes que saíram da cidade de Quito, no Equador, rumo ao Rio de Janeiro. Ao longo dessa viagem de mais de 10.000 km, elas pretendem entrevistar e divulgar histórias de mulheres inspiradoras e que transformam a realidade social de suas comunidades. warmifonias.wordpress.com facebook.com/warmifonias
A Natureza Humana O casal Bruna e Diego, de Jaraguá do Sul/SC, saíram rumo a Patagônia em um mochilão de 110 dias em busca de trilhas e novas paisagens. Lá perceberam que a chave para uma viagem se tornar realmente especial são as pessoas que conhecemos ao longo da jornada. Foi então que iniciaram este projeto, que tem o intuito de falar sobre a relação do humano com a natureza, do humano com outros humanos e do humano consigo mesmo. www.anaturezahumana.com facebook.com/anaturezahumanablog
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Ciclosofia Tales e Rodrigo são cicloviajantes que buscam conhecer pessoas, geografias e realidades sócio-culturais por onde passam. O termo ciclosofia, criado por eles, significa olhar, ouvido, olfato, tato, paladar e mente atentos aos lugares por onde o pedal os levam. É através da fotografia e de seus relatos que eles compartilham e divulgam nas redes sociais todas as experiências vividas. facebook.com/ciclosofia
Conhecer Pedalando O projeto Conhecer Pedalando tem o propósito educacional, social e de aventura que busca promover, discutir e incentivar novas formas de se relacionar com o meio ambiente, através de transformações sociais em prol de um mundo mais justo, humano e igualitário. Bruno Tomio é um grande incentivador de cicloviagens e organiza rodas de conversas, debates e palestras nos mais diferentes contextos com o intuito de empoderar e aproximar as pessoas desse estilo de viagem. O projeto estimula as pessoas a conhecer novos lugares através da bicicleta e assim contemplar a beleza do caminho, estabelecendo relações com as pessoas, com o meio ambiente e novas culturas. conhecerpedalando.wixsite.com/projeto facebook.com/conhecerpedalando
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as tramas de uma cicloviagem: os comos e porquês iniciais TEXTO JOICE FELIPPE FOTOS ISABELA BUGMANN
Quando planejamos as rotas da nossa cicloviagem temos dois desejos em comum: conhecer pessoas inspiradoras e viver a cultura das comunidades locais e povoados que tanto nos instigam. A Bahia nos encantou desde os primeiros dias e nosso amor e admiração por essa terra e por essa gente já é enorme, mas sabemos que ainda temos muito a conhecer dessa cultura tão rica e profunda com uma história bastante diferente da nossa lá no sul. É na Bahia que estamos resgatando nossa brasilidade e descobrindo uma versão da nossa própria história que não nos foi ensinada nas escolas. Nos apropriamos de palavras, expressões, somos tocadas por histórias de superação e muita garra de um povo que luta todos os dias por tempos melhores mas sempre com leveza, alegria e um sorriso no rosto.
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Nosso estilo de viagem prioriza as rotas pouco movimentadas e evitamos ao máximo BRs e estradas asfaltadas de intenso tráfego. Esse formato de viagem nos coloca em contato direto com vilarejos, povoados, e outras regiões muitas vezes pouco visitadas por viajantes e turistas. Outra escolha que fazemos é não pedalar à noite pois prezamos por nossa segurança e gostamos de poder apreciar a vista e os lugarejos pelo qual passamos. Esse estilo de pedal implica em muita estrada de chão e é comum levarmos mais tempo para chegar no destino escolhido. Não temos pressa alguma ou um cronograma rígido, pois acreditamos que as oportunidades se apresentam para aqueles que estão dispostos e sensíveis para recebê-las e nada mais alienante que a pressa para nos afastar da nossa intuição.
Ao sair de manhã, temos somente as distâncias entre um povoado e outro e uma vaga estimativa de até onde queremos pedalar. Todavia, é conforme o desenrolar do dia que sentimos onde será nosso ponto de descanso e onde passaremos a noite. É extremamente raro sabermos onde dormiremos quando saímos para pedalar. Levamos conosco nossas barracas, isolante térmico, saco de dormir, cozinha e alimento, ou seja, temos nossa casa o tempo todo ao nosso dispor sobre as duas rodas. Pedimos acolhimento junto aos moradores por onde passamos na busca de um espaço seguro para acampar e preparar nossas refeições. Ao longo desses meses de viagem, tivemos o privilégio de receber a ajuda de muitas pessoas que nos receberam em suas casas e foram nossos verdadeiros apoiadores e incentivadores. Cada um oferece o melhor que tem, seja um quintal ou até mesmo a própria cama, fogão a lenha ou uma cozinha totalmente equipada. Foram inúmeros os cenários e as realidades que conhecemos, as histórias que ouvimos e os sabores e sensações que provamos. Na grande maioria dos dias recebemos vários sims e os raros nãos são acompanhados de um novo direcionamento que nos levam a uma oportunidade ainda mais alinhada com o nosso propósito de viagem. Afinal de contas, somos um tanto místicas e acreditamos no divino tecimento das tramas do destino e sem relutância nos entregamos as surpresas que nos aguardam no topo de cada ladeira ou depois de cada curva.
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Terra que esses frutos deu Sol que os amadureceu Nobre Terra, nobre Sol Jamais nos esqueceremos Agradecemos ao alimento Ao cĂŠu e a terra E a forca divina que em tudo estĂĄ!
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texto selvagem TEXTO E ILUSTRAÇÃO JÚLIA LORENA FOTO ISABELA BUGMANN
PRIMEIRAMENTE FORA TEMER!! Segundamente sinto importante destacar desde já que o que escrevo e registro aqui é baseado na minha modesta e colorida pira. Referente a se descobrir selvagem e livre: É pulsar e agir. Uma questão de consciência entre o que é necessário e o que é extravagância, o limite entre o que sacia e o que é gula. Do sutil e real alinhamento entre corpo, mente e espírito. É impregnar-se do seu poder e pedalar com força e graça. Sinto uma íntima conexão com o desconstruir e desapegar, para depois pacientemente construir, plantar e compartilhar. O sol, tempo, terra e todo o planeta vibram a nosso favor, mesmo ce não acreditando esta lá o Universo conspirando a seu favor na forma mais orgânica, sutil e generosa possível. Sendo livre, permitindo-se o estado selvagem essas acabam sendo tuas únicas ferramentas: teu corpo, tuas vísceras, teus instintos, sentidos e tuas atentas intuições. Essas ferramentas estão ali pulsando, lhe instruindo, avisando e indicando freneticamente os teus caminhos. E a medida que ce começa apreciar o que te compõe a manjar dos teus mecanismos internos inicia-se a aventura pelos sinuosos e deliciosos caminhos do autoconhecimento. Onde ce diverte-se com as tuas máscaras à medida que trás consciência a elas. Reconhece tuas sombras, entendes e acolhes esses fragmentos não tão belos que também te compõe. Brinca com teus desejos sempre ciente da linha tênue entre a diversão e a perversidade. Sacia tuas sedes e escolhes qual vai ser o alimento de tua alma. Ressignifica teu paladar, teus conceitos de conforto, de lar e de calor. Entendes que ser selvagem e livre é o estado natural, o primitivo isso também te compõe, meu bem.
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anda com fe` eu vou
~ que a fe` nao costuma faia`
anda com fe` eu vou
~ que a fe` nao costuma faia`
anda com fe` eu vou
~ que a fe` nao costuma faia`
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relatos e retratos: dona cláudia Sobre a beleza dos encontros entre mulheres, o fortalecimento de redes de amparo e cuidado, a partir da simplicidade da sabedoria do campo e das relações com a terra e com o alimento. TEXTO JOICE FELIPPE FOTOS ISABELA BUGMANN
A cada dia temos mais clareza de que as pessoas que nós encontramos ao longo do caminho são reencontros de alma. Encontros marcados há muito tempo e que o universo se encarrega de garantir que todos estarão lá na hora e no lugar certo. Encontros marcados com aqueles seres que instantaneamente reconhecemos como afins e temos uma profunda sensação de amizade e familiaridade. É possível reconhecer esses encontros, cheios de propósitos e ensinamentos, somente quando estamos atentas e despertas para perceber a importância que eles terão na nossa cicloviagem e especialmente nas nossas vidas. Estávamos cruzando o trecho de Ibicoara a Mucugê pela estrada de chão margeando a belíssima Serra do Sincorá quando no café da manhã Michelle recebe um recado como uma voz sussurrante inconsciente. Ela nos diz: "lá na frente há uma rainha". Nem sempre conseguimos decifrar o que esses recados querem nos dizer e esse com certeza foi mais um deles. Imaginávamos que em algum ponto do percurso conheceríamos uma mulher importante e sempre pedimos clareza para compreender essas mensagens no momento certo. 18 | 19
Alguns dias depois paramos em Fazenda Ibicoara, um pequeno povoado, com a intenção de comprar alguns mantimentos para seguir viagem. Uma pessoa nos orienta sobre a localização do Mercadinho de Dona Cláudia e vamos pedalando cruzando as ruas cheias de casas coloridas, roupas no varal secando ao vento e uma variedade de animais (cachorros, gatos, galinhas e vacas) compartilhando livremente junto aos moradores as ruas e campos do vilarejo. Chegamos no local que buscávamos e já nos encantamos com a cena que avistamos: um cacto gigante à frente de uma parede do mais belo e forte azul com a escrita "Mercadinho da Cláudia". Dona Cláudia nos recebe em sua casa, pois na
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verdade o mercadinho fica junto ao local onde ela mora com o companheiro, a nora e seu neto. É rotineiro para a comunidade chegar em sua casa a qualquer horário e chamá-la para abrir a venda. Muitas vezes ela sai da cama de manhã cedinho a pedido das crianças a caminho da escola que querem comprar uma bala. Ela nos diz: "nem sempre eles têm o valor para comprar o que querem, mas eu não consigo ver essas crianças passando vontade, me parte o coração". Por 25 centavos, que mal cobrem o valor de custo dos doces, Dona Cláudia se levanta da cama com o sorriso no rosto e leveza no coração que somente alguém dedicada a doação ao próximo pode ter. Depois de comprarmos alguns alimentos, ela nos oferece sua cozinha
para preparar um cuscuz. Nesse momento conhecemos Nilda, sua nora, que já se oferece a nos ajudar e nos dá a primeira aula na cozinha. Enquanto ela gentilmente prepara o cuscuz mostrando uma nova técnica, começamos a conversar em roda na cozinha sobre alimentação, ervas e a relação com a terra. Dona Cláudia nos convida para conhecer sua horta. Naquele momento adentramos seu mundo e ali reconhecemos a nossa rainha. Ela nos conta que nasceu em um local chamado fartura e que seu pai sempre dizia que enquanto eles pudessem plantar jamais faltaria o alimento em suas mesas. Dona Cláudia acredita na abundância e compartilha com a gente o tanto alimento que ela planta com amor e carinho quanto toda sua sabedoria sobre a terra. Ela nos ensina a preparar sementes, fazer mudas e percebemos que ela mantém a tradição de plantar de maneira sustentável, sem a necessidade de compra de sementes comerciais que geram um desequilíbrio ambiental, financeiro e sócio-cultural. Financeiro pois gera uma relação de dependência com os laboratórios que vendem sementes modificadas e que obrigam a compra de sementes a cada novo plantio, tirando assim a autonomia dos produtores rurais e induzindo o uso de fertilizantes e agrotóxicos que tanto prejudicam a saúde dos seres vivos e da terra. Outro aspecto é a questão sócio-cultural referente ao empoderamento das pessoas do campo e o resgate da sabedoria por eles acumulada, que muitas vezes é desmerecida quando a indústria do agronegócio insiste em disseminar suas técnicas e produtos. Dona Cláudia entende a importância
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de não utilizar veneno em sua terra e fala do quanto é vital para a saúde a produção orgânica de alimentos. Ela conhece as ervas da região e fala sobre as mais variadas receitas de chás, sucos e garrafadas que curam e previnem uma infinidade de doenças. Ela relata sua história de vida e pontua o quanto o conhecimento das medicinas naturais a ajudou no cuidado dos filhos pequenos quando eles estavam doentes. Fala sobre as dificuldades que a família passou quando moraram na cidade por alguns anos. Ela relembra: “na cidade as pessoas chegam a passar fome e tudo é movido pelo dinheiro, aqui na roça não, aqui a gente sempre encontra uma forma de plantar e trocar algo com alguém”. Dona Claudia entende o poder do coletivo e da troca que tanto valorizamos e sua bondade é infinita, sempre firmada na sua fé inabalável. Sua presença na comunidade é bastante forte e ela fala sobre o tempo que trabalhou como agente comunitária de saúde. Conta histórias de mulheres, meninas muitas vezes, que lidam com as dificuldades da vida e das relações permeadas pelo machismo e violência. A violência simbólica em relação a mulher é muito forte na região e ela relata histórias de meninas grávidas e desamparadas que ela sensibilizada busca ajudar. Ouvimos cada palavra com silêncio e emoção transbordando no peito. Tivemos vontade de chorar. Chorar pela dor de cada mulher que sofre violência e pela pureza e dedicação de Dona Cláudia que não mede esforços para ser uma sábia e experiente mulher que acolhe e nutre outras mulheres em uma rede de cuidados informal que ela cria de forma
intuitiva. Ela diz que é cultural no povoado acreditar que uma vez que uma menina engravida ela já é considerada mulher e pode tomar conta de si. Dona Cláudia se entristece e diz: "são só crianças e muitas vezes foram forçadas pelos companheiros a ter vários filhos antes mesmo de poderem estudar e fazer algo por elas mesmas". Foram repetidas histórias com a mesma essência, mulheres privadas do seu direito em relação ao próprio corpo e uma história de violência simbólica que as coloca na posição de sentirem-se sem saída e sozinhas. Fomos tomadas por um amor enorme por Dona Cláudia, uma verdadeira cuidadora de mulheres. Sem nunca ter participado de uma roda de mulheres ou lido um texto sobre feminismo, ela sabe em sua essência que é preciso empoderar, ajudar e proteger essas mulheres. Sua sabedoria vem da sua vivência e do quanto ela se permite ser tocada por cada história. A empatia e o amor são as lentes pelo qual ela enxerga o mundo e ela traz para si a responsabilidade de fazer algo por aqueles que ela sente que pode ajudar, seja com uma palavra, alimento, roupa, ou qualquer outra coisa que ela possa fazer circular no mundo e fortalecer essa rede de amparo. Percebemo-nos sem palavras, por vezes soltando uma ou outra frase, somente para manter a conversa. É impressionante o quanto a simplicidade da vida se apresenta nas mais variadas formas. Somos motivadas pelo desejo de conhecer mulheres inspiradoras e nos colocamos como instrumentos para que cada pessoa com quem cruzamos possa levar um pouquinho de nós e nós possa-
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mos aprender e levar algo de cada encontro e lugar. Aprendemos muito com Dona Cláudia sobre doação e sobre estar sempre a serviço, fortalecida pela fé e pela certeza que nada acontece ao acaso e tudo é regido pela energia divina, que para Dona Cláudia, é Deus. Inicialmente iríamos ficar apenas para uma refeição e na saída a troca de olhares carinhosos pediam que o encontro se estendesse. Fiquem, diz ela e Nilda complementa: "vamos ser a casa das 6 mulheres". O encontro foi tão forte que ficamos por mais dois dias convivendo com essa família que nos recebeu como um deles e fomos agraciadas com uma infinidade de histórias e aprendizados. Cruzamos a plantação e podemos ver e retirar da terra e das árvores os alimentos que iríamos consumir naquele dia. Aprendemos sobre ervas e as medicinas naturais da região, a preparar beiju da mandioca e tudo isso regado a muita conversa e trocas carinhosas entre todas nós. Um círculo de mulheres fortalecidas pelo nosso encontro. Com a aproximação da nossa partida, recebemos gentilmente o alimento que naquela terra cresceu e levamos nos alforges uma variedade folhas, chás, raízes e legumes, mas acima de tudo levamos o amor incondicional e o ensinamento da doação que recebemos dessa família. Na despedida, mais uma vez o peito aperta, as emoções afloram e a vontade de chorar volta, mas dessa vez trasmutamos as possíveis lágrimas em sorrisos e saímos pedalando levemente e com a certeza de termos recebido mais uma bênção no nosso caminho.
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cicloviagem e o poder entre as pernas TEXTO E ILUSTRAÇÃO JÚLIA LORENA FOTO ISABELA BUGMANN
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Despida de pretensão vaidosa ou desejo oculto agora reflito no que tange a cicloviagem e o poder entre as pernas: O ativismo latente e coerente de estar nas ruas expostas e cheias de vida, inspirando, instigando, provocando e constantemente sendo inspiradas. Da questão de compartilhar, multiplicar e nutrir, de sonhar e estar alerta sobre rodas. Atentas a consciência da abundância e das Leis Universais. Vivendo e sendo a resistência. Cada vez mais lúcidas, carregadas de Axé e confiança seguimos pelos caminhos da existência. Despertas para traduzir os sinais internos e externos. Trocando com humildade e tocando com carinho as almas. Pedalamos sem contar quilômetros, contamos e ouvimos histórias. Não nos ligamos na velocidade e sim nos honestos sorrisos e deslumbrantes paisagens. Pirando com os alinhados encontros, vibrando alegremente com os acertos e comemorando cada pequena vitória e ladeira conquistadas. Costumamos falar que ninguém está nesse rolê para se machucar ou judiar, nosso ritmo é outro. Pedalamos sem horário marcado e restrito Buscamos expandir, lapidar com afeto e consciência. Já lhe contei que o tempo é nosso querido amigo e aliado? Pois então, seguimos sem pressa e saboreando os ensinamentos da professora estrada, pedalamos com atenção, respeito, magia e real apreciação, compondo carinhosamente esse tal transcendental. 24 | 25
vida em comunidade Um coletivo vulcânico que transita gentilmente sobre rodas e por outros coletivos. De vez em sempre desfrutamos alegremente dos alinhados e generosos encontros com outros coletivos.
IPAH - Instituto de Pesquisas Ambientais e Humanidades {Baia Camamu} Nossa curiosa e sedenta rota iniciou-se pelo IPAH, um dos Institutos mais maravilhosos que tivemos a feliz oportunidade de conhecer, aprender, fortalecer e vivenciar. Personas incríveis compõem essa amada família, guerreirxs do arco íris, as sensacionais e bafônicas bixas alienígenas. Sem contornos e limitações, o trabalho e a firmeza de lá vem de outro planeta mesmo, de algum mundo onde as energias mais sutis, sagazes e amorosas orquestram as vibes e vidas. Como elxs mesmos denominam, o Instituto é um laboratório de vida em comunidade, onde a cola é o amor. Aprendemos e nos curamos tanto no tempo que ficamos por lá, que humildemente só nos resta agradecer por termos entrado no fantástico universo do IPAH, onde o amor constrói e as novas formas de vida, família e educação são reais.
Raposa {Ibicoara} Na comunidade da Raposa a vida ocorre de forma colaborativa, onde a fluidez das atividades vão de acordo com o ritmo da natureza. O transporte até a cidade acontece uma vez por semana, na caçamba de um caminhão, e as famílias que vivem lá tiram seu sustento da plantação de alimentos, o que possibilita a troca de tomate por laranja, ou mesmo a venda de produtos orgânicos entre vizinhos. No coletivo que nos recebeu, pudemos experienciar fragmentos de um estilo de vida que nos permitiu maior liberdade com o nosso corpo e a nudez, e vivenciar essa nova relação nas diversas trilhas e cachoeiras da região.
Retiro dos Artistas {Ibicoara} Conhecemos o Retiro a convite de um amigo também viajante. Chegamos à noite no centro de permacultura e agrofloresta e tudo o que conseguimos avistar era a luz do fogão a lenha. Lá o alimento cozinha lentamente no calor do fogo, o anoitecer é regado a conversa, o condomínio é de barracas, o banho é de água da nascente, as paredes são a mata e os dias são de muito trabalho e aprendizado. Sem energia elétrica e sinal de celular, mergulhamos na convivência em comunidade. Lá somos livres e autogestores. Aprendemos técnicas de bioconstrucão e plantamos no sistema de agrofloresta. Rimos, dançamos, curtimos as composições de Henrique e contemplamos o mais belo céu que vimos na chapada até agora. O Retiro se compromete com a produção e comercialização de produtos sem veneno e participa de feiras e eventos que promovam a alimentação saudável e sustentável para a comunidade.
Nupebem {Vitória da Conquista} Nossa relação com o Núcleo de Permacultura do Bem veio através de nobres laços: Retiro e IPAH. Já estávamos conectados a esse belo coletivo sem nem nos darmos conta disso. Em Vitória da Conquista fomos recebidas com muito carinho e lá tivemos a oportunidade de viver a rotina de permacultura e agrofloresta, participar da feira orgânica Ponto de Encontro com nossa primeira exposição de produtos e materiais para venda. 26 | 27
/quem faz projeto gráfico e diagramação ISABELA BUGMANN textos JOICE FELIPPE JÚLIA LORENA MICHELLE DE ANDRADE NAIARA ZEFERINO fotografias ISABELA BUGMANN ilustrações NAIARA ZEFERINO JÚLIA LORENA
TIPOGRAFIA FAKT PRO GOTHAM THESANSMONO
/contato e-mail vivenciapassarinhas@gmail.com facebook
EDITADO E IMPRESSO EM
/vivenciapassarinhas
AGOSTO/2017 instagram @vivenciapassarinhas
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“Mas eu não ando com loucos”, observou Alice. “Oh, você não tem como evitar”, disse o Gato, “somos todos loucos por aqui." ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS