vi veraci dade r eflex õess obr ecot i di ano, vi t al i dadee per manênci anobai r r odaJ at i úca-Macei ó/AL
Universidade Federal de Alagoas Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - FAU
VIVER A CIDADE: reflexões sobre cotidiano, vitalidade e permanência no bairro da Jatiúca – Maceió/AL.
Isabela Camargo Ribeiro Fidelis de Moura Marques
Maceió – Alagoas Dezembro de 2018
Universidade Federal de Alagoas Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - FAU
VIVER A CIDADE reflexões sobre cotidiano, vitalidade e permanência no bairro da Jatiúca – Maceió/AL
Trabalho final de graduação apresentado ao Curso de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) – Campus A. C. Simões, como requisito para obtenção de título de bacharel em Arquitetura e Urbanismo.
Isabela Camargo Ribeiro Fidelis de Moura Marques Orientação: Profa. Drª. Débora de Barros Cavalcanti Fonseca
Maceió – Alagoas Dezembro de 2018
“A cidade não pára a cidade só cresce o de cima sobe e o de baixo, 3 desce.” Chico Science, 1994
NOTAS PRELIMINARES
Gostaria de agradecer, primeira e principalmente, a mim mesma pela coragem de escrever este trabalho. Não porque seja uma grande polêmica ou novidade em si, mas porque expõe minha alma. Gostaria de agradecer a mim mesma pela coragem de expor minha alma publicamente, o que exigiu grande esforço e afeto. Expor afeto publicamente também é um ato de grande coragem. Principalmente em uma sociedade forjada sob a linguagem da violência. É com ela que todos nós nos identificamos. O afeto, quando surge, é tratado por nós como coisa de mulher, portanto, uma fraqueza, uma “fraquejada”, principalmente quando aparece em discussão séria, em assuntos densos, em narrativas de cotidianos violentos. Eu, particularmente, acredito que o afeto fundamenta a tomada de consciência pelo diálogo. O afeto é fundamental no diálogo. O afeto é fundamental no aprender a ouvir. Sem afeto não há empatia. Empatia também é a capacidade de ouvir, e não há discussão construtiva sem empatia, portanto, sem afeto.Expor afetividade em público é a certeza de encontrar deboches e desqualificações de discurso, logo, expor afeto publicamente exige coragem. E força. É coisa de mulher, afinal. Gostaria de agradecer imensamente pelo processo de crescimento pessoal e profissional que fazer esse trabalho me proporcionou. Saio dele consciente de que é preciso aprender a ouvir.Não por nada, mas porque ouvir torna a vida de quem ouve mais rica e mais sensível. Possibilita o diálogo e o crescimento pessoal. Descobri isso me ouvindo nas entrevistas e refletindo sobre o quanto eu estava ouvindo de fato o entrevistado e o quanto eu estava ansiosamente procurando por uma resposta que, na verdade, era minha. Este trabalho foi realmente um grande aprendizado pessoal e profissional. Minha intenção era lançar-me num grande mergulho nas águas das dinâmicas socioespaciais locais, para descobrir o que faz dos lugares únicos. Acabei mergulhada em minhas próprias profundezas, refletindo sobre a origem dos diversos sentimentos causados em mim pelas muitas descobertas no caminho. E não tinha como ser diferente, já que escolhi como ponto de partida meu próprio lugar no mundo, a parte da cidade que chamo de casa. Em segundo lugar (e tão importante quanto o primeiro), gostaria de agradecer à imensa rede de apoio dos mais variados tipos que tive durante essa jornada. Sem 4
essa rede, eu não conseguiria, sou muito grata às relações sólidas e verdadeiras que venho construindo nesse caminho torto da vida. São elas que sustentam minha vontade de viver e meu pertencimento aos lugares. Lugares sem pessoas não são lugares, são só espaços. A meu pai, a quem também chamo de casa. Às mulheres fortes e inspiradoras de minha vida, que me apoiaram e socorreram sempre, ouvindo e acalmando minhas inseguranças: Yasmin Almeida, Júlia Lyra, Gabriela Bittencourt, Ana Karolina Corado. À troca afetiva e intelectual verdadeira, capaz de apaziguar minhas diversas angústias deforma sólida e consciente com Danilo Caporalli. Ao incentivo emocional e afetivo de Ábia Marpin, que me fez ter coragem de enfrentar minhas inseguranças e começar. À orientação acadêmica e ao incentivo afetivo de Juliana Michaello e Flávia Araújo, que acreditaram neste trabalho desde o primeiro instante, possibilitando o apoio fundamental para eu transformasse minhas inseguranças em reflexões saudáveis e produtivas. Ao apoio fundamental de Ivo, Rodrigo e Adeciany, que viram muitas das lágrimas e esforços dedicados a este trabalho. À Débora Cavalcanti, sem cuja inspiração não teria me aproximado do urbanismo (ou demoraria para fazê-lo) À minha família, na figura de minha mãe, Tia Rosinha e Vó Rosa, que me apoiam e incentivam sempre.
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RESUMO
Este trabalho apresenta uma análise das mudanças na dinâmica urbana em consequência de modificações estruturais do ambiente construído, no bairro da Jatiúca, região da planície litorânea da cidade de Maceió. O que se destaca desse processo impulsionado por diversos fatores é a visível elitização do padrão de empreendimentos comerciais e a crescente verticalização da malha urbana, o que altera a relação da população com o território. O bairro se consolida a partir da implantação de conjuntos habitacionais, conduzida pela Companhia de Habitação de Alagoas (COHAB-AL), em meados da década de 1970. Até então, o território era majoritariamente ocupado por sítios de veraneio pertencentes às famílias da elite alagoana. Em duas décadas, a malha urbana se consolida em uma ocupação predominantemente residencial e horizontal, principalmente em função daqueles conjuntos habitacionais. Pode-se observar que a orla foi ocupada por prédios residenciais de alto padrão, enquanto a ocupação mais distante da praia apresentava menor padrão construtivo, criando-se uma distinção socioeconômica ligada ao território, no sentido de existirem dois polos e uma escala gradativa ligando esse dois extremos. Esse desenvolvimento, ligado à elitização, transformou um dos principais eixos viários, a Avenida Amélia Rosa, em referência da vida noturna e gastronômica da cidade, intensificando o processo já existente de especulação imobiliária do bairro, assentando-o no patamar de bairro nobre. A vitalidade criada pelo processo de elitização pode também levar à gentrificação da área, se o equilíbrio entre estabelecimentos elitizados e estabelecimentos de bairro se desfizer. Isso é uma tendência que recebe apoio dos próprios moradores, quando os mesmos veem na elitização do bairro uma possibilidade de ascensão social automática. O contrário acontece quando moradores abrem comércios locais, beneficiando-se da ampliação da capacidade consumidora do bairro, devido ao movimentoextra de pessoas gerado pela própria elitização. O encontro desses dois processos culmina em grande vitalidade nesta parte do bairro, que se sustenta graças ao equilíbrio dos processos urbanos.
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LISTA DE ENTREVISTAS
Os entrevistadosestão listados pela ordem cronológica das quais foram realizadas as entrevistas. Cada entrevista durante o texto tem um número: o primeiro algarismo é sua identificação de acordo com a lista de entrevistas, o segundo algarismo identifica diferentes partes da entrevista de uma mesma pessoa. Considerações ou explicações, quando necessárias,foram feitas por mim entre colchetes. Todas as entrevistas foram realizadas por mim no ano de 2018.
1. Adonai. 24/03/2018 2. Liones e Tiago. 12/03/2018 3. Juliana Michaello. 01/09/2018 4. Felipe. 03/09/2018 5. Lara. 03/09/2018 6. Diogo. 03/09/2018 7. Glaciete. 03/09/2018 8. Francisca. 04/09/2018 9. Everson. 06/09/2018 10. Castelo. 11/09/2018
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SUMÁRIO
NOTAS PRELIMINARES
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LISTA DE ENTREVISTAS
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INTRODUÇÃO
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DE ONDE VIEMOS: JATIÚCA NO TEMPO
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1. MACEIÓ: EVOLUÇÃO DA MALHA URBANA
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2. AS ÁGUAS DA JATIÚCA: IMAGEM DA PAISAGEM
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3. A JATIÚCA VELHA
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4. TRANSFORMAÇÕES URBANAS: O BAIRRO NOVO.
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QUEM SOMOS: REFLEXÕES SOBRE A CIDADE REAL
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5. A DINÂMICA ESTÁ NO COTIDIANO: EXPERIÊNCIA URBANA
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6. A IMPORTÂNCIA DA DIVERSIDADE NA CONSTRUÇÃO DA VITALIDADE URBANA
64
7. AMÉLIA ROSA: PLURAL E VIVA
67
8. AMÉLIA ROSA: DINÂMICA URBANA EM TRANSFORMAÇÃO
82
PARA ONDE VAMOS: JATIÚCA E A ELITIZAÇÃO DO MEDO
87
9. A ELITIZAÇÃO DO MEDO E O ASSASSINATO DA SOCIABILIDADE URBANA
88
10.
JATIÚCA E A ELITIZAÇÃO DO MEDO
93
11.
PERSPECTIVAS: PARA ONDE VAMOS?
99
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
103
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INTRODUÇÃO
Este trabalho é (acima de tudo) um exercício de observação ereflexão sobre a cidade real a partir da parte que mais conheço e que mais me toca: meu bairro, a Jatiúca. As dinâmicas “inatas e naturais” de que tanto fala Jacobs1, presentes nas grandes cidades, muito me interessam. Interessa-me, também, saber como pessoas que não costumam pensar sobre o funcionamento das cidades percebem seu próprio espaço de convívio e as dinâmicas urbanas. É exatamente isso que pretendo fazer aqui. Escolhi o lugar de que tenho maior acúmulo de informação e observação (são 22 anos de convivência), e também maior afeto. Afeto esse que foi o verdadeiro motivador da escolha do tema de estudo. Vi a Jatiúca transformar-se de um bairro pacato de classe média no principal ponto de agitação noturna da cidade. Outros, antes de mim, viram um grande areal transformar-se em um bairro, ainda que malvisto na cidade. E hoje estamos todos a ver um bairro diverso e dinâmico ser tido como nobre e turístico pelo resto da cidade. O que não significa necessariamente que é assim que seus moradores antigos o enxergam, ainda que todos sintam a mudança no cotidiano. Como Jacobs, pretendo aqui “observar mais de perto, com o mínimo de expectativa possível, as cenas e os acontecimentos mais comuns, tentar entender o que significam e ver se surgem explicações entre eles.” 2. Acredito que o afeto que tenho pelo bairro pode tanto ajudar como atrapalhar na interpretação dos casos observados. Por esse motivo, além da minha própria, quero buscar a interpretação dos casospela perspectiva de outros moradores antigos do bairro, de diferentes idades, que variam entre 20 e 70 anos. Estou chamando a todos (inclusive a mim mesma) de moradores antigos. Por ‘antigos’ quero dizer uma pessoa que tenha condições de se lembrar da grande mudança na avenida Amélia Rosa, que vem acontecendo mais ou menos há dez anos. Estou, portanto, tomando-me como parâmetro, posto que tenho 25 anos e acompanhei tal mudança conscientemente. Outro ponto importante é a presença e a expansão do comércio no bairro. Assunto que me aprofundarei no decorrer do texto. O que é importante esclarecer 1
Jacobs, 2014. Jacobs, 2014, p. 13.
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agora, é que essa mudança da perspectiva da cidade sobre o bairro (de classe média para bairro nobre) traz consigo uma série de novos padrões de consumo, antes inexistentes. Esse processo frequentemente expulsa paulatinamente a população original que não mais consegue acompanhar financeiramente (consumir) os serviços do cotidiano oferecidos no bairro. Os preços das habitações sofrem valorização econômica, induzindo ainda mais a substituição da população original do bairro por uma população com maior poder aquisitivo, que pode pagar mais por serviços do cotidiano – como padarias, açougues, mercados e lojas em geral – e também pelo aluguel. A questão particular da Jatiúca consiste em moradores antigos aproveitando a ampliação do mercado consumidor do bairro através do movimento extra de pessoas que vêm de outros bairros para consumir aqui ou para montar pequenos negócios de subsistência. Esse é um fato importante que contribui para a permanência dos moradores antigos no bairro. Em especial me interessa saber como os moradores antigos percebem a questão de sua própria permanência no bairro. As transformações ocorridas na Jatiúca são fruto do processo de urbanização e expansão da cidade de Maceió. Tais dinâmicas afetam o cotidiano dos moradores e, consequentemente, a forma comoeles enxergam a si mesmos. Isso porque “um endereço na cidade diz muito a respeito da experiência urbana que pode ter o seu morador”3. Além de dizer muito a respeito de sua possível origem e de sua trajetória de vida. A segregação social materializada no espaço urbano reflete justamente nessa experiência urbana, no sentido de que as populações mais pobres são empurradas para as margens da malha urbana (extensão territorial da cidade), lugares frequentemente mal servidos de transporte e infraestrutura, tendo sua experiência urbana dificultada pela falta de acesso às oportunidades e serviços oferecidos pela cidade. Aquestão é que a Jatiúca, bairro hoje tido como nobre, foi nos anos 1960 periférica, longínqua e malvista. Consequentemente, teve como primeiros moradores uma população pobre, que ainda permanece no bairro, embora espremidos em seu território original. 3
Simões, 2008, p. 1.
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Não por acaso, esse mesmo bairro tem gerado interesse, dúvida e curiosidade em outras pessoas também (que não são moradores) posto que, enquanto produzo este trabalho, há à minha volta mais dois trabalhos finais de graduação (TFGs) que estudam a Jatiúca. O motivo do interesse, afirmo categoricamente, é a grande vitalidade urbana, fruto da transformação da Avenida Amélia Rosa em centro gastronômico e da vida noturna da cidade, enquanto outra parte abriga uma população pobre, remanescente da ocupação original do território.Há ainda uma infinidade de dinâmicas próprias que só aumentam a diversidade do bairro, gerando ainda mais expectativa em relação a ele como objeto de estudo de jovens arquitetos – além de colocá-lo na mira do mercado imobiliário especulativo. Em um contexto de intervenções concretas no bairro tanto por parte da prefeitura (com projetos de requalificação de espaços públicos – não por acaso nas áreas mais valorizadas economicamente) quanto por parte da iniciativa privada (com a incorporação de casas para a construção de edifícios residenciais de média e alta renda, e hotéis), a minha intenção é por a nu e analisar as consequências dessas intervenções, pois acredito que essa é a maneira mais acertada de identificar quais intervenções conseguem promover a vitalidade socioeconômica e quais a inviabilizam. Além de pensar, é claro, sobre dessas práticas são capazes de promover a gentrificação da área e quais possibilitam a permanência da população original. A relação delicada entre a promoção da vitalidade urbana – de que fala Jacobs – e a gentrificação é, para mim, o ponto-chave dessa empreitada. “Há nessa desordem a oportunidade intelectual e política de nos deixar ver como o território revela o drama da nação, porque ele é, eu creio, muito mais visível através de território do que por intermédio 4 de qualquer outra instância da sociedade.”
Membros de diferentes grupos sociais produzem diferentes histórias de vida que tangem a macroescala (contexto histórico-cultural) em diferentes pontos5. Portanto, visualizar a subjetividade implícita na narrativa da experiência urbana é fundamental para a percepção dessas diferentes inserções socioespaciais dentro do contexto geral, e também provoca a faísca da reflexão sobre si mesmo e sobre a cidade que está em torno de si. A reflexão sobre a experiência urbana provoca a 4 5
Santos, 2000, p. 21. Cavalcanti, 2009.
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reflexão sobre a autoimagem e explicita estigmas relacionados ao espaço urbano e/ou aos grupos sociais.
Este trabalho é estruturado em três partes. Sua linha de raciocínio procura responder (e/ou refletir sobre) a três perguntas que direcionam a análise dos processos e dinâmicas urbanas presentes no bairro da Jatiúca. A primeira parte responde à pergunta “de onde viemos?” e é uma breve história dos processos de formação, consolidação e transformação da malha urbana da cidade de Maceió e do bairro. O objetivo é entendermos de onde vieram as dinâmicas naturais que hoje se apresentam e se transformam nas diferentes partes do bairro. A segunda parte responde à pergunta “quem somos?” e se propõe a introduzir a reflexão sobre a o cotidiano eo espaço como materialização das dinâmicas sociais. Evidencia, também, a importância da informalidade na constituição da vitalidade urbana do bairro, principalmente da Avenida Amélia Rosa e adjacências. É nessa parte também que moradores expõem suas reflexões sobre as transformações socioespaciais do bairro e seus impactos na vida cotidiana. A terceira parte procura responder à pergunta “para onde vamos?” e discute o processo de transformação urbana que o bairro presencia e as tendências e perspectivas da evolução urbana e das dinâmicas do bairro.É ressaltada também a importância do engajamento político dos moradores no pensar a cidade real que os rodeia, em busca de um planejamento participativo possível e eficaz. Nesse sentido, o desenvolvimento do diálogo em uma comunicação não-violenta é fundamental para a construção do senso de cidadania e pertencimento por parte dos moradores das questões urbanas que os aflingem, tranformando assim a realidade local.
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DE ONDE VIEMOS: JATIÚCA NO TEMPO
“Você quer parar o tempo O tempo não tem parada O tempo em si Não tem fim, não tem começo Mesmo pensado ao avesso Não se pode mensurar” Alceu Valença, 2005.
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1. Maceió: evolução da malha urbana O município de Maceió localiza-se na costa marítima de Alagoas, estado nordestino do Brasil, e “apresenta-se morfologicamente sob duas formas, a de Planície ou de Baixada Litorânea e a de Baixo Planalto Sedimentar dos Tabuleiros”6. A cidade é banhada a leste pelo oceâno Atlântico e a oeste pela Laguna Mundaú, que faz parte do ‘complexo estuarino-lagunar’, sistema constituído por duas grandes lagunas (Mundaú e Manguaba) que se conectam entre si e com o oceano por uma série de canais7, constituindo uma importante ligação entre o mar e comércio exterior e a antiga sede administrativa Santa Maria Madalena da Lagoa do Sul (hoje a cidade de Marechal Deodoro).
Figura 01: Localização e geomorfologia de Maceió. Fonte: Wikipedia com alterações da autora, 2018, sem escala.
O favorecimemento geográfico do porto de Jaraguá (em Maceió), para a exportação de produtos, principalmente o açúcar, levou o antigo povoado ao status de vila em 1815, substituindo o Porto do Francês. A área urbanizada, que se concentrava no núcleo original do povoado, (hoje o centro da cidade), expande-se sentido sudoeste, em direção à lagoa do Norte (lagoa Mundaú).8 “Nesta época, consolidam-se dois vetores comerciais na vila de Maceió: o da exportação, pelo novo porto do Jaraguá, e o entreposto do Trapiche a sudoeste. Esse é alimentado pelo comércio e 6
Maceió, 1981, p. 33. Faria & Cavalcanti, 2009. 8 Maceió, 1981. 7
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navegação lacustres, desde 1816, sendo mais ativado pela abertura do canal da Levada em 1840. Com o transporte fluvial efetiva-se tanto o abastecimento da zona rural do vale do Mundaú, quanto o escoamento da produção dos engenhos daquele entorno. O Trapiche da Barra conhece portanto, um surto de crescimento, factibilizado pela navegação flúvio-lacustre entre os povoados, que se estende pelo bairro da Levada. Deslancha a ocupação do Jaraguá, em decorrência do porto e do comércio, o bairro é progressivamente povoado, e já em 1841, sua consolidação enquanto novo núcleo urbano, torna-se uma realidade.” (MACEIÓ, 1981, p. 44)
Figura 02: Mapas da evolução urbana da planície litorânea de Maceió: 1821 - 1865. Fonte: Núcleo de Estudos Morfologia dos Espaços Públicos - MEP, 2017, escala 1:20.000.
Em decorrência de seu desenvolvimento econômico-demográfico em função do comércio, Maceió é elevada à Capital de Alagoas em 1835, ainda que em 1841, quando teve o plano de Carlos Mornay elaborado, possuíaainda características coloniais muito presentes: “ruas tortuosas, prédios construídos que limitavam e definiam as vias, um bom número de casas com cobertura de telhas cerâmicas no centro da povoação, particularmente no Largo da Capela e na Rua do Comércio, casas com cobertura de palha nas regiões periféricas.” (Diegues apud Amorim (org.), 2010, p. 41)
O crescimento demográfico da cidade estende-se pelas décadas seguintes, quando a vila é elevada à categoria de cidade, no período de 1850 a 1900. “É significativo do ponto de vista da evolução urbana, a construção da ladeira da catedral, em 1851, que simboliza o irromper da expansão urbana além da baixada 15
litorânea, para atingir o planalto.”9A abertura de ligações na planície, entre o Centro e Jaraguá, em 1868, e a conexão do Centro com o Trapiche da Barra, em 1878, também foram importantes na consolidação do espaço urbano ocupado em descontinuidade. Em 1880, já existem os bairros do Trapiche da Barra, Levada, Mutange e Bebedouro na planície à esquerda do Centro, Jaraguá e Poço à direita, e o Farol no tabuleiro.10 No intervalo de duas décadas, em1900, formam-se novos núcleos urbanos de ocupação ainda rarefeita: Mangabeiras, principalmente ao longo da Estrada do Norte11, Ponta da Terra e Pajuçara. No extremo oposto da baixada, “estrutura-se preguiçosamente o Pontal da Barra. Observa-se que além do Centro, constitui-se como nobre o bairro de Bebedouro.”12Os ventos da modernidade do fim do século XIX e começo do XX, com as reformas urbanas, sopram em Maceió, que recebe estrangeiros para edificar prédios públicos importantes no estilo da época, o eclético. “Se na Europa a burguesia agora dominava o espaço urbano, no caso alagoano a elite ainda possuía características de uma sociedade aristocrática (...). Queria, porém, mostrar-se moderna, ver-se na cidade e ser vista por ela.”13 “(...) o federalismo (...) abriu novas possibilidades à vida municipal, que, até então, estivera dependendo dos governos provinciais, a cujos orçamentos se sujeitava. (...) A partir de 1890 o surto progressista acentua-se numa curva ascendente. (...) A vida ampliase em todos os seus limites convencionais; a população goza novo ambiente fisiográfico para desenvolver-se. (...) Era preciso construir a cidade. Maceió cresceu desordenadamente, sem ritmo, sem método, sem estilo. A planta da Póvoas, de 1820, pretendia dar um plano de urbanização, mas este não foi cumprido. Assim a cidade manteve sempre o seu aspecto defeituoso. Realmente a capital alagoana que o Império legara à República vinha já com seus defeitos característicos da época colonial. Defeitos para aqueles que queriam tudo renovar e modernizar; era preciso acabar com as biqueiras, com as casas de taipa. Surgem assim novas edificações.” (COSTA, 2001, p. 156)
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Maceió, 1981, p. 44. Maceió, 1981. 11 Atual Av. Gustavo Paiva 12 Maceió, 1981. 13 Amorim (org.), 2010. 10
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Figura 03: Mapas da evolução urbana da planície litorânea de Maceió: 1902 - 1932. Fonte: Núcleo de Estudos Morfologia dos Espaços Públicos - MEP, 2017, escala 1:20.000.
Entre 1901 e 1940 nota-se a intensificaçãoda ocupação urbana, decorrente do crescimento da cidade, atraindo pessoas que vinham do interior do estado em busca de emprego. “Tomando-se como marco de referência o ano de 1890, nota-se um crescimento exponencial da população em 1940, que atinge a cifra dos 154%.” 14 Os bairros se densificam principalmente na baixada central e sul (Figura 03), e começam a surgir as primeiras decisões de planejamento urbano, sob a administração de Moreira Lima, a partir de 1927, abrindo e alargando ruas e construindo praças, alterando-lhe a feição antiga: “(...) as velhas ruas da cidade, ruas cheirando a peixe frito, a tapioca, a arroz-doce, vendidos nas esquinas, em tabuleiros enfeitados com papel de seda cortado em desenhos ou figurinhas de variadas cores – verde, amarelo, vermelho, azul; ruas cheias de negras trajando vistosos chales e turbantes de cores fortes na cabeça; essas ruas transformavam-se e modificavam-se.” (COSTA, 2001, p. 157)
Ruas importantes como a do Açougue – já denominada 1° de março – são alinhadas, e praças surgem com mais importância. “(...) o contato com a rua não é privativo dos moleques, dos negros, dos vagabundos, das mullheres perdidas. As famílias já procuram as ruas, já vão às praças, já assistem a festejos públicos.” 15
14 15
Maceió, 1981. Costa, 2001, p. 158.
17
Apesar das mudanças e modernizações ocorridas no espaço urbano, Maceió continua a se desenvolver ao ritmo dos engenhos de cana-de-açúcar, o que fragiliza a estrutura produtiva da cidade, face das flutuações da produção e do mercado internacional. A dependência da monocultura também foi concentradora de renda. Foi a maior força impulsionadora de evolução urbana, gerando uma cidade pobre e desigual, onde poucos detêm a grande fatia da produção, contra uma massa estonteante de pobres.16
Figura 04: Trapiche da Barra, início do século XX. Fonte: Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, s/d.
A despeito da desigualdade – que foi se acentuando durante o século XX, adentrando o XXI –, a relação dasociedade com a rua muda, convertendo-se esta em sinônimo de lazer e convívio social. “À democracia política que a República trouxe, alia-se a democracia social; a aproximação entre as classes sociais, um como que nivelamento. É a época em que começa o hábito das cadeiras nas calçadas, símbolo do contato íntimo da família com a rua: os homens vestidos de pijama, espichados em cadeiras preguiçosas, as senhoras de chinelos sem meias, recostadas em cômodas cadeiras de balanço, as crianças sentadas na beira da calçada ou brincando de roda, de calçadinha de ouro, de cabra-cega. A rua vai mudando a fisionomia, perdendo aquele ar de coisa feia com que ainda nos dias do período imperial era tratada pelas famílias. Com essa aproximação com a rua, a frequência à praça – uma oportunidade de contato coletivo para amostra de vestidos, de chapéus, de sapatos, tão ainda ao gosto da cidade – torna-se mais assídua. (COSTA, 2001, p. 159) 16
Maceió, 1981.
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Os bairros e arrabaldes agitam-se com as renovações, sobretudo nos bairros do Jaraguá, Poço, Farol, Trapiche da Barra, Levada, Centro e Bebedouro. Este último, espaço elitizado da cidade, intensifica sua ocupação de tal modo, com casarões surgidos nas novas ruas impulsionados pelos calçamentos, que “em pouco tempo se esgotam”17. Já o Farol vai se consolidando como novo reduto do “granfinismo” da cidade. Há um “surto de construções particulares entre 1931 e 1934, quando se alarga a zona residencial no planalto através da Av. Fernandes Lima,a ponto de quase unir pelo tabuleiro do Farol, esse bairro ao Bebedouro, tal o progresso que as construções tiveram naquela zona.”18 “Na Pajuçara, o melão de São Caetano, natural de uma zona de praia, cede terreno para dar lugar às casas residenciais. (...) pode sedizer que a partir dos princípios do século (XX) se transformou no arrebalde dos banhos de mar. A princípio as casas se faziam em caráter provisório, para a família passar a temporada de banho; depois o clima agradável prendia-a, e aí se ia fixando. Assim as casas de pescadores foram carregadas para a Ponta da Terra.” (COSTA, 2001, p. 158)
Durante as décadas de 1940 e 1950, os bairros de Pajuçara e Ponta da Terra começam a se consolidar como residenciais, sendo o primeiro ocupado majoritariamente pela parcela da população mais abastada, e o segundo, pela população pobre. A invasão das praias se deu, segundo Craveiro Costa19 devido ao desequilíbrio ecológico causado pela derrubada de árvores, em detrimento da urbanizaçãodo Farol, alterando o clima da região, que ficou mais exposta à influência forte do calor do sol; a população que tinha condições financeiras de escolher onde morar foi à procura das zonas refrescadas por uma ventilação mais direta. A ocupação da beira-mar torna-se o novo vetor de expansão da cidade direcionado para a elite. Enquanto a expansão em direção ao interior e às falésias é direcionada aos estratos da sociedade de renda média e baixa. A Jatiúca, nessa época ainda não tinha começado seu processo de parcelamento do solo, sendo considerada fora da parte urbanizada de Maceió, apesar da já existente ocupação residencial nas margens da Estrada do Norte20 e na Rua São José21. 17
Costa, 2001, p. 158. Costa, 2001, p. 170. 19 Costa, 2001. 20 Atual Av. Gustavo Paiva 21 Atual Rua Dulce Dantas Loureiro. 18
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Até a década de 1940, a imagem associada aos leitos aquáticos de Maceió era predominantemente negativizada, sendo associada a doenças, insalubridade, à falta de saneamento e ao trabalho braçal, tornando esses lugares, indesejáveis e evitados.22 “O mar era a paisagem e belo, mas era principalmente o lugar dos negócios, dos currais, dos peixes, dos trapiches e das embarcações: a referência de entrada e saída da cidade.” (NORMANDE, 2000, p. 65)
A partir de 1960, a imagem negativa relacionada ao mar sofreu uma transformação, quando o discurso turístico-institucional divulgado pelos meios de comunicação começou a incentivar e vender a paisagem aquática como atrativo turístico e consequentemente econômico. “A criação da Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR) e do Fundo Gestor do Turismo (FUNGETUR) na década de 1960, a chegada de redes hoteleiras internacionais ao país e, na década seguinte, a criação da Empresa Alagoana de Turismo (EMATUR) consolidariam o turismo como um dos principais setores econômicos da capital, levando a um “despertar” do lazer turístico e da associação positiva da cidade com o mar(...)” (LIMA et al. 2010)
O mercado turístico contribuiu decisivamente para a valorização da área a partir dos anos 1960. Em 1953, é loteada a primeira gleba ao longo da beira-mar, que pertencia a Álvaro Otacílio de Araújo Vasconcelos, comerciante da capital. A porção de terra correspondia ao que fora um dia o sítio de Chico Zú (Francisco Venâncio Barbosa), onde ficava o famoso Gogó da Ema 23, sendo repassada com o tempo por seus herdeiros, localizada na área que hoje é reconhecida como o bairro da Ponta Verde.
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(LIMA et al. , 2010) Coqueiro muito conhecido que virou atração turística na época, por seu formato inusitado.
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Figura 05: Mapas da evolução urbana da planície litorânea de Maceió: 1945 - 1960. Fonte: Núcleo de Estudos Morfologia dos Espaços Públicos - MEP, 2017, escala 1:20.000.
Figura 06e 07 respectivamente: Gogó da Ema e Casarão e Igreja do sítio de Chico Zu, na Ponta Verde. Fonte: Acervo MISA, 1930.
“A implantação de um loteamento desse porte na orla marítima obtém um grande significado perante a construção da malha urbana da cidade. Além de delimitar uma nova área de expansão e abrir perspectiva de ocupação de um lugar até então dominado por grandes propriedades e privilegiado por seus recursos naturais, imprime uma forma de parcelamento do solo com traçado geométrico regular, composto de vias que se cruzam ortogonalmente, tendo como referencial o mar, que irá influenciar no desenho de loteamentos posteriores e na configuração espacial de toda a orla marítima.” (NORMANDE, 2000, p. 95)
21
O bairro da Ponta Verde se formou a partir de uma expansão urbana valorizada através de loteamentos formais direcionados para a população de maior poder de compra, e não a partir de núcleos originais de assentamento. Em contrapartida, Mangabeiras e Jatiúca se formaram a partir de arruados pioneiros constituídos próximos às falésias.24Essa diferença na formação original dos núcleos urbanos dos bairros referenciados contribui significativamente para as suas futuras configurações sociais, e pode explicar, por exemplo, a ausência de favelas e vilas de baixa renda no bairro da Ponta Verde e a presença delas no bairro da Jatiúca, principalmente na Jatiúca Velha e nas proximidades da Bomba da Marieta, áreas historicamente parceladas e direcionadas à população de baixa renda.
Figura08: Anúncio de empreendimento no jornal Gazeta de Alagoas, Ponta Verde. Fonte: Gazeta de Alagoas, s/d.
Com a valorização da orla e a exploração turística, é implantado o primeiro hotel na Jatiúca em 1979, o Hotel Alteza (Hoje, Hotel Jatiúca, ver imagem XX), um grande acontecimento para a época.Concomitantemente, acontecia na área consolidada da cidade outra intervenção que mudaria os rumos da expansão urbana da cidade de Maceió. Foi implantada no bairro do Pontal da Barra, em 1982, na orla 24
Faria & Silva, 2017.
22
da praia da Avenida, a indústria cloroquímica Salgema (hoje, Braskem, Odebrecht). Com a crescente degradação do Riacho Salgadinho e a consequente poluição da praia da Avenida, a mais frequentada praia da cidade, intensificou-se o processo de estigmatização dos bairros da zona Sul, que eram os mais populosos da cidade, fazendo com que o vetor de expansão se invertesse, indo em direção aos bairros Ponta Verde, Jatiúca e Cruz das Almas.
Figura 09 e 10 respectivamente: Maquete do Hotel Alteza em sua inauguração e Construção da fábrica de cloro-soda, campo de salmoura e o terminal marítimo. Fonte: Acervo Arquivo Público, 1979; <https://www.historiadealagoas.com.br/descoberta-da-salgema-em-alagoas-foi-por-acaso.html> Acesso em: 15 de Outubro de 2018. “Camadas da população de rendas alta e média, que sempre buscam locais mais segregados e privilegiados, com maior privacidade e que, pela sua condição financeira possuem uma maior possibilidade de escolha, transferem-se para a praia da Pajuçara, que, na década de 1960, recebe uma nova consolidação como bairro residencial.” (NORMANDE, 2000, p. 97)
Esse processo de elitização, impulsionado a partir da urbanização da orla da Pajuçara em 1974, desincentiva uma ocupação já consolidada como “bairro desejo” na parte alta da cidade, o bairro do Farol, fazendo da parte baixa, antes desvalorizada, a nova área “desejo” da população. O vetor de expansão elitizada que corre pela beira-mar de Maceió começa com a orla da Pajuçara, na década de 1980, e vai seguindo pela Ponta Verde, depois pela Jatiúca,e segue em direção ao litoral norte,mais recentemente, a partir de 2010, processo intensificado pela implantação de um empreendimento catalisador e impulsionante da valorização econômica instantânea, um shopping center, no bairro de Cruz das Almas. Essa ocupação, mais recente e mais predatória também, com espigões residenciais de 23
alto padrão com 20 andares à beira-mar, tende a continuar para bairros como Garça Torta, onde já existem condomínios horizontais de alto padrão na faixa costeira. 25
Figura11: Diagrama de vetores da expansão urbana de Maceió. Fonte: Material elaborado pela autora, sem escala.
O vetor de expansão sentido norte, que segue acima do tabuleiro, continua a crescer. Como a parte alta da cidade se tornou desvalorizada em relação à parte baixa, o vetor que segue na direção Norte pela BR104, a avenida Fernandes Lima, principal eixo viário da cidade, vira expansão de cunho popular, e é o próximo lugar onde a COHAB irá implantar conjuntos habitacionais voltados para famílias com renda de até cinco salários mínimos, valorizando os terrenos entre o bairro Farol e o Tabuleiro, beneficiando de forma indireta os proprietários de terra. 26 Ocorrem muitos problemas com a implantação de habitação em terrenos de brejo sem a infraestrutura adequada,tais como as do Conjunto Salvador Lyra, assim como aconteceu na Jatiúca, o que será abordado no capítulo a seguir.27
25
Faria & Silva, 2017. Maceió, 2005, p. 25. 27 Marroquim, 2017. 26
24
2. As águas da Jatiúca: imagem da paisagem
Quem circula na Jatiúca talvez não tenha em mente a historicidade do bairro, hoje visto como “nobre” já foi tido como área insalubre e marginalizada. O lugar, antes conhecido como “Carrapato”, foi apelidado de Jatiúca, palavra tupi-guarani que significa carrapato em português, por Théo Brandão, folclorista de família da elite alagoana, que tinha um sítio de veraneio na área. O nome se estendeu do sítio à praia em frente, edepois ao bairro, em consequência da nomeação da Av. Jatiúca28, via aberta nos anos 1970, durante o loteamento da área, processo que consolidou o bairro.29 A paisagem predominante até os anos 1960, eraa de um grande areal coberto de mato e coqueirais, cortada por muitos riachos e cursos d’água superficiais, apresentando uma extensa área alagadiça e solo turfoso. Era costume da época, as famílias abastadas da elite alagoana, que residiam no consolidado bairro do Farol, possuírem sítios de veraneio no antigo Carrapato, pois a área era considerada um paraíso natural. Era essa a ocupação principal do solo, já que, além de ser considerada longe da cidade, cujo limite urbano era o bairro do Poço, a região não tinha serviços de abastecimento de água, energia elétrica, esgotamento sanitário ou drenagem pluvial, o que dificultava sua ocupação para fins de moradia, além das condições ambientais desfavoráveis à urbanização.30 “Dizia meu avô Théo que foi em 1945 que o amigo José Carneiro de Albuquerque fez com que ele e outro amigo, vizinho de sua casa no bairro do Farol, o Dr. Durval Cortez, adquirissem de Álvaro Otacílio de Vasconcelos terrenos ‘com testada para o mar, no que então se chamava o Carrapato da Ponta Verde, localizados entre os terrenos pertencentes a Arthur Acioli e Antonio Nogueira” (OMENA, 2001, p. 19)
Os acessos eram trilhas abertas no meio do mato, por entre os sítios, que ligavam as casas ao mar e aos córregos. A única via existente era a “Estrada do Norte”, conhecida como estrada do Poço, e posteriormente como Avenida 28
O nome atual da Avenida Jatiúca é Av. Dr. Júlio Marques Luz, mas neste trabalho vou me referir aos nomes originais das ruas e avenidas, pois são esses os nomes reconhecidos pela população, que muitas vezes nem tem conhecimento da mudança, ainda que essa tenha ocorrido há décadas, como é o caso da Av. Jatiúca, cujo nome atual – Júlio Marques -já constava no primeiro plano de desenvolvimento da cidade de Maceió, datado de Setembro de 1981, ou seja, passaram-se 37 anos da mudança oficial do nome da avenida, mas a população reconhece apenas o nome original, Av Jatiúca. 29 Omena, 2001. 30 Normande, 2000.
25
Mangabeiras, até seu nome atual, Avenida Gustavo Paiva. A estrada do Norte, datada do período de colonização do Estado, quando Alagoas pertencia à Capitania de Pernambuco, era importante caminho por terra à antiga Vila de Maceió, sendo via de ligação do centro da vila com toda a região norte de Alagoas, em direção a Pernambuco. A estrada era um dos principais acessos a Maceió, abastecendo-a e conectando-a com sua base econômica rural. Não por acaso, a formação do núcleo habitacional que deu origem ao bairro se localiza nos arredores da antiga estrada, inicialmente como uma continuidade do povoado do Poço.31
Figura 12 e 13 respectivamente: Estrada da Mangabeira e Passagem do Suassuna, na Estrada do Norte. Fonte: Acervo MISA, 1920.
A ocupação inicial do bairro se deu através de concessões ou aforamentos de “pequenos terrenos em que os moradores faziam uso do chão cedido pelos proprietários para erguerem suas casas, em troca de um pagamento anual, sem, portanto, obter a posse dos mesmos.”32. Esses proprietários eram os donos dos sítios de veraneio, cuja extensão das terras ia da praia às imediações do riacho do Sapo; os terrenos cedidos eram os fundos dos sítios, nas áreas onde as condições de ocupação eram piores devido à grande região de várzea do riacho do Sapo; a região era conhecida como “Bomba”.
31 32
Normande, 2000, p. 128. Normande, 2000, p. 113.
26
Esse processo começa por volta de 1920 e ocorre até os anos 1960, e configura o núcleo original do bairro, um arruado chamado de São José 33, seguindo o fluxo da prática de aforamentos de terras já consolidada no interior do estado: “A agricultura alagoana em seu primeiro censo, em 1920, registra uma ocupação exclusiva de cana-de-açúcar e pecuária, as demais culturas estavam relegadas aos pequenos lavradores que geralmente em terras tomadas de empréstimo aos senhores de latifúndios, plantam, tratam e colhem, eles mesmos, com os recursos de quem 34 possam dispor.”
SalvoChico Zu, e depois Raul Barbosa, um de seus herdeiros, os donos de sítios, não moravam no local. Glebas pertencentes a diferentes proprietários foram divididas em quadras e lotes e vendidas durante os anos 1960, processo que dá origem a um novo parcelamento do solo. Esses loteamentos foram originalmente direcionados à população de baixa renda, que era a população que já habitava a rua São José. A região, insalubre e periférica, tornava os terrenos pouco valorizados economicamente, o que permitia aos trabalhadores de baixa renda acesso à compra.35 Muitos desses trabalhadores, provenientes do campo e desempregados em razão do declínio dos engenhos de açúcar e da modernização e mecanização na produção da indústria açucareira, o que ‘liberou mão-de-obra’, migraram para as cidades, principalmente Maceió, após os anos 1950.36 “A maioria, com baixa qualificação profissional, associado a todas as contingências dramáticas das condições de sobrevivência no tipo de trabalho anterior, esses homens, mulheres e jovens trabalhadores analfabetos ou com pouca escolaridade, não tem outra alternativa, a não ser enfrentar novas adversidades num tipo de sociedade para eles, desconhecida.”37
Sem encontrar espaço no mercado formal de trabalho, essa massa de trabalhadores rurais se dedica a subempregos, em busca de sobrevivência, e contribui para a formação de bolsões de pobreza e ocupação informal de área de risco, como as encostas do vale do Reginaldo, ou impróprias à urbanização, como era o caso da Jatiúca da década de 1960.
33
O nome atual da rua São José é rua Dulce Dantas Loureiro. Carvalho, 2015, p. 139. 35 Normande, 2000. 36 Carvalho, 2015. 37 Majella, 2018, p. 38. 34
27
Figura 14 e 15 respectivamente: Habitação em encosta e ocupação do Vale do Reginaldo. Acervo do MISA, 1924.
“A rua São José é um retrato do que representava a região, no início de seu povoamento.”38
Casas isoladas, de taipa e telhado de palha, em condições
precárias de conforto e infraestrutura. O uso da palha facilitava incêndios, que eram constantes durante o verão, e não impedia alagamentos na época de chuvas,no inverno. As casas eram construídas pelos próprios moradores em sistema de mutirão, com a ajuda de toda a família e vizinhos, processo evidente até hoje em favelas por todo o Brasil. Os moradores também faziam aterros nas ruas, numa tentativa de evitar os alagamentos, com barro e casca de sururu, até a década de 1990, quando a rua foi calçada.39Enquanto as famílias dos donos de sítios se associaram ainda antes dos loteamentos (que começam a ser implantados em 1960), para trazer energia elétrica para suas propriedades, abrindo também a primeira estrada pela praia40, as famílias que de fato habitavam a região, na rua São José, permaneceram sem energia elétrica por muito tempo, até a consolidação da malha urbana, por volta dos anos 1980.
38
Normande, 2000, p. 135. Normande, 2000. 40 Omena, 2001. 39
28
Figura 16: Barracos montados na Ponta Verde. Fonte: Acervo do MISA, s/d.
A história de vida dos moradores da rua São José, nos anos 1930, confundese com a dos primeiros moradores de loteamentos, já nos anos 1960. “Muitos lotes adquiridos encontravam-se permanentemente cobertos de água, ou alagavam-se nas épocas chuvosas”41. Moradores da época reconhecem que ao comprar os lotes se depararam com uma situação de descaso tanto da parte do loteador, que não oferecia as mínimas condições de habitabilidade para o comprador do terreno que estava vendendo, ainda que estivesse previsto em lei; quanto por parte da Prefeitura, com a falta de fiscalização das condições dos loteamentos que estavam sendo postos à venda. A população, para viabilizar o próprio acesso aos terrenos e a própria habitabilidade, fazia aterros das ruas em sistema de mutirão, comprando areia, a fim de evitar que suas casas se enchessem d’água. Em depoimento à pesquisa de Normande, “uma das filhas dos antigos proprietários traduz a situação, com certo pesar, na seguinte frase: ‘Isso aqui foi tudo dado de graça’. A outra, uma das loteadoras, lamenta: ‘eu hoje poderia ser uma mulher rica,
41
Normande, 2000, p. 136.
29
mas não sou, não fiquei com um tostão daquele loteamento, outros ficaram no meu lugar’.” 42
O Código Municipal de Maceió, que vigia na época, estabelecia critérios obrigatórios para a implantação de novos loteamentos que não foram atendidos, tais como projetos de redes de escoamento de águas pluviais e residuais, sistema deabastecimentode água potável, canalização de esgotos e calçamento a ser executado por conta do loteador mediante termo de cessão e obrigação na Prefeitura.43 O artigo 21 da mesma legislação diz que: “não poderão ser aprovados projetos de loteamentos, nem permitida a urbanização, quando se tratar de terrenos baixos, alagadiços ou sujeitos a inundação sem que sejam previamente aterrados e realizados os ‘grades’ estabelecidos pela Prefeitura”44. Além de não terem sido cumpridos os critérios obrigatórios para a implantação de novos loteamentos, também não foram realizadas as obras de infraestrutura para adequação da área, que é naturalmente alagadiça, à urbanização, deixando a população que viria a habitar a Jatiúca em situação de vulnerabilidade e contribuindo para a estigmatização de toda a área. “Esses loteamentos, em sua proposta original, foram direcionados para a população de baixa renda, fato este constatado não só na verificação do nível de renda, como também na origem de seus primeiros moradores, na forma de obtenção dos terrenos e nas características do processo inicial de seu povoamento.” (NORMANDE, 2000, p. 120)
O fato de os loteamentos terem sido entregues sem a implantação mínima da infraestrutura urbana prevista em lei, diz muito quanto ao tipo de tratamento dispensado aos pobres em uma sociedade desigual. Outra questão significativaé aaplicação de conveniência da lei, ou sua total ignorância: os vários projetos de loteamento foram aprovados e registrados oficialmente na prefeitura45apesar de a área não ter sido aterrada como previsto em lei. Não era incomum, que um gestor público – um Secretário de Estado, por exemplo - fosse também dono de uma firma de loteamentos e proprietario de terras, 42
Normande, 2000, p. 122. Lei n. 575 de 36 de novembro de 1957. Código Municipal de Maceió in Normande, 2000, p.
43
136.
44
Código Municipal de Maceió, 1957 apud Normande, 2000. Mapa de Implantação de loteamentos e conjuntos – base cartográfica de Maceió. Fonte: MACEIÓ. Base Cartográfica Oficial de Maceió, 2000. 45
30
e que usasse de influência política para aprovar um projeto de loteamento em sua própria terra sem cumprir o que a lei estabelece. Esse mecanismo, constitutivo da ocupação da terra brasileira e da legislação desde o início da colonização, é chamado de “ambivalência legal” por Holston46.Trata-se da fronteira incerta entre a legalidade e a ilegalidade, que permite por um ladoa manutenção dos privilégios e benefícios, através da lei, daqueles que possuem poder de manipulação das forças políticas, da burocracia e até do registro histórico, propriamente dito. E por outro, o acesso à terra pelos mais pobres através de invasões e ocupações frutíferas, ainda que ilegais, e posterior uso de “componentes de desgoverno da lei” para legalizar sua ocupação nas terras invadidas. “Esses componentes do desgoverno da lei - ilegalidade normativa, emaranhamento burocrático, estratagema legal, lei para os inimigos, solução extrajudicial e legalização confiável de práticas ilegais - têm sido instrumentais na transformação da zona rural do município de São Paulo em periferias urbanas. Eles permitiram que especuladores convertessem regiões desoladas em um El Dorado de lucro, precisamente porque as condições ilegais das subdivisões que eles abriram tornavam a terra acessível aos brasileiros pobres, tornavam o sonho da casa própria viável e mantinham os mercados de terra que eles criavam produtivamente voláteis.” (HOLSTON, 2008, p. 230, tradução nossa.)
O fato de a Jatiúca Velha ter sido loteada ‘de qualquer jeito’ desnuda uma questão que está na base da formação histórico-social das cidades brasileiras: ‘qualquer coisa pra pobre, tá bom’, ou seja, a falta de comprometimento com a qualidade do serviço oferecido, quando este é direcionado para à população pobre. “O ódio ao pobre hoje em dia é a continuação do ódio devotado ao escravo de antes.”47 Esse estigma foi herdado do processo de escravidão, no qual os descendentes das pessoas escravizadas compõem a base da pirâmide da segregação na sociedade brasileira. Essa base, chamada ironicamente por Jessé Souza de ralé, é a classe social da qual todas as outras classes querem se distanciar e diferenciar48, dai o descaso na produção do espaço quando direcionado a ela, já que o espaço construído é o reflexo das necessidades, realidades e intenções dos grupos sociais que o produziram. “Considerar o espaço construído um artefato cultural quer dizer que ele pode ser compreendido como linguagem, como portador de
46
Holston, 2008. Souza, 2017, p.67. 48 Souza, 2017. 47
31
significados e, principalmente, como materialização da visão de mundo dos grupos que o produzem.”49
A população, ainda nos anos 1960, utilizava os diversos cursos d’água para suprir as suas necessidades e cultivava roças às margens do Riacho do Sapo, e em outras partes da planície para subsistência. Sapo era o nome do riacho conhecido pelos moradores mais antigos a partir do bairro do Poço. A parte do riacho localizada nos atuais bairros da Jatiúca e Mangabeiras era chamada de ‘Vala da Bomba’ ou simplesmente ‘Vaula’. Embora de água barrenta e solo lamacento, as águas da ‘Vaula’ eram utilizadas pelos moradores dos arredores para lavagem de roupa, banho e pesca; só não para beber. ‘Vala da Bomba’ é uma referência à parte do riacho que passava pela ‘Bomba de Dentro’, nome popularmente conhecido da região do assentamento original da Jatiúca, que carregava o mesmo sentido pejorativo e marginalizante do nome Carrapato: “Conhecida pelos cidadãos maceioenses como ‘Bomba de Dentro’ – segundo os moradores, por ser sítio de muito brejo e possuir excesso de ‘pulgas de bicho’ – a área (...) durante muitos anos abrigou uma população reduzida numericamente, de baixa-renda, sendo fisicamente pouco integrada ao contexto urbano de Maceió. Era ‘mal vista’ e discriminada por moradores de outros bairros, pejorativamente conhecida também como ‘Bomba dos Maloqueiros’, o que denota um sentimento de marginalização e isolamento social da área com relação à cidade”50
Figura 17: Lavadeiras no Riacho do Sapo, Poço. Fonte: Acervo MISA, S/ data. 49 50
Grifo Nosso, Duarte & Villanova, 2013, p. 29. Normande, 2000, p. 129.
32
As lavadeiras sofriam em especial com a falta de água limpa para exercerem seu trabalho de lavar roupa para as famílias de alta renda da cidade, fazendo-o com enorme sacrifício. Sem energia elétrica, a população utilizava candeeiro a querosene ou vela de pau de carrapateiro, abundante na região. As opções de lazer também eram escassas, sendo a única praça da região a Bomba da Marieta. As crianças brincavam na rua e por entre os sítios. A praia somente era uma opção de lazer para homens, que iam em turmas jogar futebol. Mulheres iam à praia somente para comprar peixe, não para o banho. A população se abastecia ao fazer feira no antigo mercado da Levada, pegando ônibus apartir da Bomba da Marieta (o final da linha), além de comprar nas bodegas locais, que supriam as necessidades mais imediatas do cotidiano. A feirinha de Jatiúca veio mais tarde, com o surgimento de mercadinhos e supermercados. Doenças eram tratadas principalmente no Centro de Saúde da Praça das Graças, na Levada, o mais antigo de Maceió. Depois surgiram o Posto da Maravilha, no Poço, e o próprio Posto de Saúde da Jatiúca, esse mais recentemente.51 O principal meio de transporte utilizado pela população sobre o solo arenoso era a carroça ou o burro, que para além do transporte, era também “instrumento de trabalho, fonte de renda para muitas famílias”. Juntamente com o carro de mão, o burro era usado no abastecimento de água da população, já que a água encanada demorou cerca de 20 anos para ser instalada desde a implantação do primeiro loteamento, em 1960.52 Esses loteamentos destinados a trabalhadores pobres, junto com o assentamento original do bairro, a rua São José, formaram a área que até hoje é conhecida localmente como ‘Jatiúca Velha’, principalmente pelos moradores antigos. As péssimas condições de vida que a população local levava estigmatizaram toda a área, que ainda hoje permanece estigmatizada e invisibilizada em relação ao resto do bairro, principalmentepor parte do poder público, no que se refere ao fornecimento de saneamento básico. Evidência disso é que ainda hojeocorrem alagamentos todos os anos, em época de chuvas, e problemas constantes na rede 51 52
Normande, 2000. Normande, 2000, p. 139.
33
de saneamento, sem que nunca se resolva o problema de fato.Além da área ser amplamente reconhecida pelos moradores antigos como a mais pobre do bairro, ou ainda, nem ser reconhecida como Jatiúca.
Figura 18: Esgoto a céu aberto na Travessa Santo Amaro, Jatiúca. Fonte: Google Maps, Agosto de 2017.
34
3. A Jatiúca Velha Mariápolis foio primeiro loteamento da área que hoje se configura como bairro da
Jatiúca,
registrado
na
Prefeitura
em
1959,
mas
foi
osegundo,o
loteamentoJatiúca, registrado em 1960, que impulsionou o povoamento efetivo da região conhecida como Jatiúca Velha. Deraldo Campos, que era Secretário da Educação na época, e Cleanto Rizzo tinham uma firma de loteamentos e adquiriram o sítio pertencente à viúva de Arthur Acioly para lotear. A firma abriu um acesso no meio do loteamento, desde a praia até a Estrada do Norte (av. Gustavo Paiva) e pediram permissão à Theotônio Brandão para usar o nome Jatiúca, que o concedeu, consolidando assim o nome do bairro. A avenida Jatiúca é um dos principais eixos viários do bairro, e mesmo não conservando oficialmente o nome, pois é atualmente a Avenida Dr. Júlio Marques Luz, é conhecida e referenciada pela população pelo nome original.53 Apesar de ter o processo de parcelamento do solo oficializado na Prefeitura, a análise morfológica da área indica que as terras foram desmembradas de forma descontinuada, gerando diferentes dimensões de quadras e ruas. Os registros e suas datas apontam para uma sequência de loteamentos de estreitas faixas de terra que se estendem da praia aos quintais das casas da rua São José – o arruado pioneiro do bairro. Sabe-se que as terras que originaram os loteamentos Santo Amaro (1963), Santa Fernanda (1965), Ave Maria (1964), Maria Hortência (1969), São Francisco (1964) e Brenópolis (1970) pertenciam a “João Bezerra de Araújo Guedes, casado com Constança Maria de Araújo, membros da mesma família de Chico Zú, conhecido dono de terras e currais de peixe existentes na Ponta da Terra e Ponta Verde.”54 Os filhos do casal herdaram as terras, e seus descendentes por sua vez, realizaram o parcelamento55 das estreitas faixas que lhes cabiam separadamente, produzindo a forma urbana da Jatiúca Velha. A morfologia da malha urbana dá indícios de queprovavelmente os novos loteamentos implantados foram baseados nas divisões já existentes, feitas em loteamentos anteriores. 53
Omena, 2011. Normande, 2000, p.117. 55 Ver informações mais detalhadas sobre as divisões familiares e propriedades das terras da Jatiúca Velha em Normande, 2000, p. 117. 54
35
Figura 19: Mapa de loteamentos que deram origem à Jatiúca Velha. Fonte: Base Cartográfica Oficial de Maceió com alterações da autora, 2000.
Os loteamentos que compõem a Jatiúca Velha não têm dimensões destoantes uns dos outros, com lotes variando entre 8 e 12m de testada e 24 e 30m de comprimento, sendo os terrenos do loteamento Jatiúca os maiores. A faixa de beira-mar não faz parte de alguns loteamentos, sugerindo a permanência da ocupação predominante da faixa costeira da área, os sítios de veraneio, durante a década de 1960, ou a especulação imobiliária do lote mais valioso, visto que, com o tempo, essas terras foram ocupadas por edifícios de alto padrão, hotéis e comércios de luxo. O Sítio Jatiúca foi o último a vender o terreno, segundo Omena56, o sítio somente foi vendido pelos herdeiros de Théo Brandão quando ele e sua esposa, Élide Almeida Brandão, morreram. O loteamento Santa Fernanda teve uma gleba não loteada, pertencente à Giselda de Araújo Barbosa, que deu origem à rua Santa Sofia, diferenciando-se do resto da malha urbana por ser um agrupamento de casas que fica entre os dois
56
Omena, 2011.
36
loteamentos, tendo dimensões muito menores que as dos outros lotes, o que inclui sua via de acesso, que possui 2m de largura em média. Quanto mais os loteamentos se aproximam dos arruados originais do bairro, há lotes e configurações de quadra e ruas irregulares, sugerindo que os projetos dos loteamentos foramsendo feitos de modo a se adequar a uma ocupação já existente na área, provavelmente outro loteamento implantado antes, seguindo uma divisão de quadras e ruas já estabelecidas. O fato de nenhum dos loteamentos implantados na área possuir área reservada para área verde de convivência e/ou equipamentos urbanos como escolas, creches, postos de saúde, etc.57revelaum descaso para com a população a quem se pretendia vender os lotes e a ganância por parte dos loteadores, que demonstram através do desenho urbano a tentativa de aproveitamento total da terra disponível para a venda, obtendo o maior lucro possível sem levar em consideração a qualidade na produção do espaço. Isso pode ser constatado, também, pelo aproveitamento de áreas residuais transformadas em lotes com formato irregular à medida que se aproximam da rua São José.
Figura 20: Detalhe de lote disforme no loteamento Jatiúca. Fonte: Base Cartográfica Oficial de Maceió com alterações da autora, 2000.
57
Mapa de Implantação de loteamentos e conjuntos – base cartográfica de Maceió. Fonte: MACEIÓ. Base Cartográfica Oficial de Maceió, 2000.
37
“Um bairro urbano não é determinado apenas pelos fatores geográficos e econômicos, mas pela representação que seus moradores e os dos outros bairros têm dele”58. Há uma série de estigmas e estereótipos ligados ao lugar e às pessoas que habitam os vários lugares da cidade (inclusive os lugares fora dela, na zona rural).59 Fica evidente que o direcionamento da Jatiúca Velha para a ocupação popular de baixa renda estigmatizou a área, logo, o nome Jatiúca Velha não só carrega o significado de parte mais antiga, como também o estigma de parte mais pobre e, portanto, mais perigosa.60Essa questão leva ao não reconhecimento dessa parte do bairro como Jatiúca por parte de moradores mais novos ou de quem mora nas áreas mais elitizadas do bairro, como o Loteamento Stella Maris, e isso é outra evidência da crescente elitização do bairro, ao ponto de negar sua parte original e mais antiga.
5.1 - Pra mim Jatiúca é até a rua do shopping...é Comendador Leão ou Gustavo Paiva essa do shopping? - Comendador Leão. - É, pra mim é da Comendador Leão até a Av. Jatiúca, e pega a primeira metade da Vera Arruda. O corredor [Vera Arruda] separa da Mangabeiras. Não sei se é isso, mas pra mim é esse pedaço aí. - Que massa. Sabe, o limite oficial era outro, já mudou porque a galera reconhecia mais partes como Jatiúca do que tava no oficial. E a minha visão de Jatiúca também é essa. - Pra mim, passou de lá [da Av. Jatiúca] é Santo Eduardo ou Ponta Verde. - É, pra mim era Jatiúca até a casa da minha avó, que é o Arnon de Mello. - Aqueles prédios né? - É. Depois dali era Santo Eduardo. Mas acho que era só porque era a casa da minha avó. Memória de criança, né.
Lara Almeida, 22 anos, estudante, autônoma e consultora, moradora do Conjunto Castelo Branco.
58
Chombart de Lauwe, 1952 apud Mello & Simões, 2013, pág. 67. Mello & Simões, 2013. 60 Normande, 2000. 59
38
4. Transformações urbanas: O bairro novo.
Depois do loteamento da área que viria a ser a Jatiúca Velha, durante a década de 1960, os anos 1970 são marcados pela ação intervencionista do Estado através da promoção de conjuntos de habitação popular pela COHAB (Companhias de Habitação de Alagoas), parcelando a área que seria chamada de bairro novo. Esse parcelamento, diferente do anterior (Jatiúca Velha), foi implantado junto com infraestrutura urbana básica, o que contribuiu para a mudança de perspectiva do bairro perante a cidade, abrindo caminho para que seja hoje visto como nobre.
Figura 21: Mapas da evolução urbana da planície litorânea de Maceió: 1945 - 1960. Fonte: Núcleo de Estudos Morfologia dos Espaços Públicos - MEP, 2017, escala 1:20.000.
Outro importante parcelamento do solo implantado nessa época foi o Loteamento Stella Maris. Voltado para alta renda, com lotes grandes e um extenso corredor verde que percorre todo loteamento, fechando as ruas para acesso local através de Cul-de-saq, ele contrasta morfologicamente com seu entorno.
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Figura 22: Loteamento Stella Maris, Jatiúca. Fonte: Base Cartográfica Oficial de Maceió com alterações da autora, 2000.
Tanto os conjuntos da COHAB, quanto o Loteamento Stella Maris estavam oficialmente localizados no bairro de Mangabeiras até o ano 2000, quando foi promulgada a Lei do Abairramento, que estabeleceu a quantidade de bairros da cidade de Maceió, além de re delimitá-los. Até então, Maceió contava com 25 bairros. Com o novo abairramento, a cidade ficou com 50 bairros e a Jatiúca e Mangabeiras sofreram transformações em seus limites oficiais. A atual delimitação do bairro de Mangabeiras e as áreas recém-parceladas (figura XX 1970-1979) compunham, no Plano de Desenvolvimento de Maceió de 198161, a “ZR5”(Zona Residencial 5), justamente porque apesar de ter o solo completamente parcelado, a presença de vazios urbanos na área era marcante. “Na direção norte, encontra-se o bairro de Mangabeiras, marcado pela predominância de vazios urbanos de fins especulativos. (...) Como corredor de uso misto consolida-se progressivamente o da Avenida Júlio Marques (Av. Jatiúca).” (MACEIÓ, 1981, p. 51)
A Jatiúca Velha também é caracterizada no plano: “A presença de vazios urbanos e de uma habitação de alto padrão, marcam o cenário das proximidades llitorâneas da Jatiúca. À medida que se penetra no bairro, no sentido oeste, observa-se uma ocupação maciça do espaço, pela habitação popular.” (MACEIÓ, 1981, p. 51)
Nota-se que o plano indica também a consolidação da Av. Jatiúca (que na época já tinha mudado de nome para Júlio Marques) como corredor de atividades 61
Maceió, 1981.
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múltiplas, apontando a historicidade e importância do papel do comércio e serviços nos principais eixos viários do bairro, sendo a Av. Jatiúcao corredor mais antigo, portanto, o de ocupação mais consolidada. A Av. João Davino também é indicada como corredor de atividades múltiplas, além da Av. Gustavo Paiva. Antes de 2000, o limite territorial dos bairros usado pela Prefeitura correspondia ao estabelecido pelo censo do IBGE, que começou a publicar informações por bairros a partir do censo de 1970. É possível constatar que a área que hoje é oficialmente o bairro da Jatiúca já o era antes do abairramento, pois fazia parte de uma localização geográfica homogênea na memória dos citadinos, na literatura, e até em documentos oficiais oriundos de cartórios e de órgãos dos governos estaduais e municipais.62 3,1 - Eu sou muito da Jatiúca, porque eu morei acho que....eu morei em muitos lugares de Maceió, sempre na parte baixa. Morei muito tempo na Pajuçara, morei um tempo na Ponta Verde, mas o lugare – se eu for olhar em número de anos, e assim, de experiências mesmo – foi a Jatiúca. Mas em lugares diferentes da Jatiúca, em momentos muito diferentes. E aí é muito engraçado, porque...Mangabeiras é um bairro que pra mim diz muito pouco - hoje em dia as pessoas usam mais, mas pra mim, uma parte do que hoje é Mangabeiras, na minha memória é Jatiúca.
Juliana Michaello, professora universitária, ex-moradora da Av. João Davino. A implantação da COHAB em Alagoas é o reflexo da política de habitação nacional promovida em 1964 pela ditadura militar e tinha como objetivo suprir o deficit habitacional gerado pelo êxodo rural, promovendo habitação de cunho popular financiada pelo BNH (Banco Nacional de Habitação)nas cidades brasileiras. Em Maceió, a companhia implantou conjuntos habitacionais na baixada costeira norte, área estigmatizada e periférica justamente pelo preço da terra ser muito baixo, viabilizando a construção, já que era responsabilidade da Companhia adquirir a terra onde seriam implantaos os conjuntos e construí-los. 1.1 - A metodologia que a COHAB aplicava era a metodologia através da inscrição. Você chegava aqui, se inscrevia, trazia uma declaração de renda, e a partir da declaração de renda você tinha como ser contemplado. - Você vinha aqui se inscrever, pessoalmente, já com o comprovante de renda?
62
Normande, 2000.
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- Justamente. Pra poder ter um mapa assim de como era até que era desenvolvido o conjunto, qual era o local. Isso no início, porque da metade pra cá, o local não dependia mais disso. O local era onde a gente poderia adquirir o terreno. Entendeu como é? Pela inscrição se via, porque o terreno aqui em baixo era um valor, terreno no Farol era outro valor, terreno no Tabuleiro era um valor bem pequeno. - Mas a pessoa comprava o terreno... - Não, veja bem...ai nesse caso da inscrição, sim. No começo, era como eu te disse, a inscrição formalizava o local, tá certo? A gente começou a construir por onde? Jacintinho, Poço e Jatiúca. Jacintinho: Castelo Branco Jacintinho. Aí depois passou pra o Castelo Branco Jatiúca, ai depois veio pra o Santo Eduardo, no Poço. Ai, não...depois do Castelo Branco deu um pulo pra Cruz das Almas, Jardim Beira-mar, depois Santo Eduardo. Aí a partir daí a gente já teve que pegar outro patamar. Aí a inscrição não definia mais o lugar, entendeu? [...] Antes era assim: pela renda você já sabia qual era o local e que tipo de casa era [...] tem conjunto que pela renda você dava pra pegar apartamento com três quartos ou apartamento com dois quartos, casa de dois quartos ou casa de três quartos, no mesmo local. Aí quando o mercado foi se expandindo pra o Farol, Tabuleiro, aí a aquisição foi mais...uma renda um pouco maior, porque os terrenos eram mais caros - Lá em cima? No Tabuleiro? - No Farol. Aí no Farol tinha um programa, que chamava-se “Terrenos Próprios”. Aí esse Terrenos Próprios, você tinha o terreno e financiava a habitação. [Falamos um pouco sobre casas construídas através do programa na Gruta de Lourdes] - E de quem era o terreno dos Conjuntos? - Olha, o terreno dos Conjuntos era o seguinte...a COHAB comprava. - De alguém...particular ou prefeitura... - Particular, sempre particular. A gente fazia o negócio, o BNH mandava o dinheiro, e a gente comprava. - Então a COHAB comprava o terreno... - E construía.
Adonai, funcionário da COHAB (hoje CARHP – Companhia de Recursos Humanos e Patrimoniais)
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Figura 23: Prédio da Companhia de Habitação Popular de Alagoas, Poço. Fonte: Acervo Misa, s/d.
Como visto nos capítulos anteriores, boa parte da população que migrava para Maceió não conseguia comprovar renda, pois tendo pouca ou nenhuma escolaridade, dificilmente conseguia um emprego no mercado formal. Não tinha, portanto, acesso aos programas habitacionais da Companhia, que exigiam comprovante de renda para efetuar a inscrição.63 O BNH passou por três fases, deixando a desejar no tocante aos objetivos sociais preconizados na ideologia de sua criação. Em sua primeira fase, o período de sua formação, os programas eram direcionados à construção de casas para as classes de baixa renda (de um a três salários mínimos); A segunda fase, marcada pelos investimentos em habitação popular irrisórios e decrescentes, ampliou o financiamento para a aquisição de moradias destinadas a famílias com renda de um a cinco salários mínimos, nas quais se priorizavam famílias com quatro a cinco salários, além de financiamento de obras de infraestrutura urbana. Em sua fase final, o banco retomou os programas habitacionais voltados para a população de rendas mais baixas.64 63 64
Zacarias, 2004. Azevedo, 1988.
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Foram implantados quatro conjuntos habitacionais na Jatiúca, dos quais somente o primeiro conjunto implantado na Jatiúca foi direcionado às famílias com renda máxima de três salários mínimos, o Conjunto Castelo Branco. Os outros “três conjuntos, Pio XII, Santa Cecília e Pratagy, foram os únicos conjuntos da COHAB que desde seuprojeto não se destinaram a uma população de menor poder aquisitivo”65, sendo direcionados a famílias com rendas entre três e cinco salários mínimos.
Figura 24: Conjuntos da COHAB que compõem o “bairro novo”, Jatiúca. Fonte: Base Cartográfica Oficial de Maceió com alterações da autora, 2000.
Esta prioridade fez com que consideráveis setores da classe média baixa passassem a ter nos conjuntos da COHAB uma alternativa para a solução de seus problemas habitacionais.66
65 66
Marroquim, 2017, p. 98. Zacarias, 2004, p. 30.
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“Através das entrevistas com os ex-funcionários, podemos concluir que o que levou a Companhia a construir nestas áreas foram os prováveis interesses políticos e a forte influência dos proprietários das grandes glebas situadas nestas áreas.” (ZACARIAS, 2004, p. 42)
Francisca confirma em depoimento as conclusões de Zacarias, ao falar da compra do terreno onde seria implantado o Conjunto Castelo Branco: 8,1 - O meu tio Reinaldo Rodas, era o presidente daqui do aeroclube, foi ele que vendeu esse terreno todo pra o Dr. Luís Renato de Paiva Lima, da COHAB, que ele comprou pra fazer esse conjunto, e o aeroclube foi lá pra cima, pra onde é o Tabuleiro.
Francisca de Almeida Silva, 76 anos, aposentada, moradora do Conjunto Castelo Branco. Os conjuntos inicialmente foram entregues sem a total implantação do sistema de abastecimento de água, como se pode verificar na fala de Francisca, o que gerou muitas críticas dos moradores à COHAB: 8,2 - Antes era terrível né, quando nós viemos morar aqui, era tudo areia, os meninos pequenos ainda...eu só vim quando ligaram a água, quando eu fiz o muro da casa... porque quem vinha gastava mais com água do que com a parcela que pagava da casa, entendeu? -E tinha que mandar buscar água é? - Era, era....vinha uns carroceiros e trazia a água pra gente. Mas pramim não porque eu digo ‘eu só mudo – que eu morava no Farol – eu só vou pra lá quando fizer o muro’, porque os meninos pequenos...eu digo ‘eu vou fcar lá sem água’... e quem já morava aqui dizia não vá porque você vai se arrepender. Aí quando botaram água eu fiz um muro, aí eu vim-me embora. - E demorou muito tempo pra vir a água? - Não, não, demorou não...chegou logo, não demorou não pra chegar a água...foi... - Aí mandei ligar a água... aí vim-me embora pra cá e tô até hoje. - E tinha energia também? - Energia tinha - Tinha energia desde o começo? - Tinha, tinha desde o começo. Agora, as casinhas conjugadas, sem muro, sem nada: era um murinho baixinho. Em cada uma, um pé de coqueiro, era coqueiro? Era um pezinho de coqueiro, uma coisa muito simplória.
Francisca de Almeida Silva, 76 anos, aposentada, moradora do Conjunto Castelo Branco.
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O saneamento básico também foi feito poucos anos mais tarde, como conta Glaciete, moradora do Conjunto Pratagy desde 1975: 7.1 - Eu acho que a gente veio na década de 1970, a Glaciene disse que é 75, pode ser nessa época mesmo a Amélia Rosa... - É, mas é mesmo, porque os prédios foram construídos em 1974 - Então o que eu lembro da Amélia Rosa é isso... [Fomos interrompidas] - É como eu lhe falei, a Avenida Amélia Rosa, o que eu lembro é essa avenida sendo construída e o saneamento...o saneamento mesmo, da avenida pra abrir esse canteiro - Aí depois do saneamento foi que botou o asfalto? - É, justamente. A gente só tinha acesso de pegar ônibus na Avenida Jatiúca, isso aí eu lembro. - O calçamento era só na Jatiúca, né? - Só na Jatiúca. - Era asfalto já? - Era...a Avenida Jatiúca era mais antiga em termos de construção de pista em relação à Amélia Rosa...Eu acho que precisou fazer saneamento, entendeu? E construir as duas vias...
Glaciete Pereira Tavares, 53 anos, auxiliar de enfermagem, moradora da Av. Amélia Rosa, no ConjuntoPratagy. Junto com o saneamento, foi construída a via e o canteiro da Avenida Amélia Rosa. A ocupação formal da área com habitação para população de classe média e infraestrutura urbana valorizou a região, afastando gradativamente o estigma de periferia. “Essa valorização da terra gerou em consequência, a especulação imobiliária, o que fez com que mutuários vendessem suas casas a um preço bem maior do que haviam comprado, principalmente àquelas mais próximas à orla.” 67
67
Zacarias, 2004, p. 43.
46
Figura 25: Avenida AmĂŠlia Rosa Fonte: Acervo MISA, 1979.
Figura 26 e 27 respectivamente: Pedra fundamental da Avenida AmĂŠlia Rosa, 1979. Fonte: Acervo pessoal da autora.
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7.2 - Tu andava no bairro? - Andava tranquilamente, a gente ia pra praia...andava muito na praia menina! Pegava cada bronze! E era deserto né, porque dali...daquela região que hoje tem o estacionamento da Estácio[Av. Amélia Rosa], aqueles prédios, tudo ali era sítio. É tanto que em uma parte daqueles apartamentos da praia...ali tinha uma igreja...seu pai deve lembrar... - Na Ponta Verde, né? - Não, na Jatiúca mesmo... não tem aquele apartamento de esquina, um bem grandão...aí vem o Patmos...pronto, ali era tudo sítio. E ali, em um desses locais desses prédios construídos atualmente, existia uma capelinha. - De São Sebastião, é? - Eu não lembro o nome não...mas dava pra ver essa igrejinha. Olhe...o Armazém Guimarães, era tudo sítio...o único prédio que você via assim, era o Hotel Jatiúca...mudou muito...
Glaciete Pereira Tavares, 53 anos, auxiliar de enfermagem, moradora da Av. Amélia Rosa, no ConjuntoPratagy.
Figura 28 e 29: Paisagem e uso da praia de Jatiúca, 1979; Paisagem aérea orla de Jatiúca, 1988. Fonte: Acervo pessoal da autora; Acervo Luiz Duarte Araújo.
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De modo geral, ainda nos anos 70 e 80 a sensação de vazio na paisagem era predominante, a ocupação descontinuada da malha urbana ditava o ritmo da paisagem, sonolento e tranquilo. 3,2 - [...] ó pra você ter uma noção de onde eu já morei e o que eu considero Jatiúca: agora, antes de me mudar, eu morava na Avenida João Davino, que era quase a finisterra da cidade, né? Então era o fim do fim do mundo, porque pra lá só tinha Cruz das Almas, que era o fim do mundo. Então [era] essa ideia de que a João Davino era um grande marco assim, porque tinha o hotel Jatiúca, que marcava o fim da cidade. Eu criança, ainda tinha o Sítio Jatiúca, ali na frente, eu era bem criança, mas eu lembro. O Stella Maris era um grande hiato de mato, e um sítio ali, por ali. Então, aquilo tudo era muito mato, então o hotel Jatiúca.... - Perto da praia mesmo? - Muito! Na minha memória de infância, não tinha nada assim... - Isso foi anos o que? - Anos 80. Quer dizer, você tinha uma ou outra construção, mas a sensação que a gente tinha era que o hotel Jatiúca era como se fosse, como se hoje a gente tivesse falando da Garça Torta, quer dizer, de um bairro muito afastado. Hoje em dia, talvez nem a Garça Torta, porque a Garça Torta já começou a se integrar mais. Mas essa ideia de que um bairro mais afastado. Como se fosse muito distante do resto da cidade mais adensado, que tava ali na Pajuçara, na Ponta Verde, na parte baixa né. Apesar de que você tinha umas construções emblemáticas assim já, então eu lembro quando construiu o Meliá, eu lembro quando foi construído o Náuticos, esse prédio que eu morei (...) que foi o primeiro flat da cidade, e que tinha uma característica nesse ponto também que era bem no marco final da orla, mas que tinha essa ideia de ser um marco até de modernidade, mas uma modernidade também esquisita, porque era um flat mas no final a gente sabia que o uso era de “matador” dos coronéis, né? Eles levavam as meninas pra lá, tinha todo um estigma. Quando eu me mudei pro prédio já não tinha mais esse estigma, mas assim, por um tempo teve todo uma estigmatização assim... - Justamente porque não tinha nada... - Não tinha nada ao redor! Tinha muito pouca coisa ao redor. Tinha muita casa, mas assim, ainda com muito espaço vazio sabe, muitos terrenos baldios, muitos! E poucos prédios, pouca verticalização. Ela vai começar mesmo, pesada, na década de 90, pra 2000 assim. Então vamo lá, eu já morei na Álvaro Calheiros, ali na altura do shopping, por ali, numa casa que foi até meu pai que construiu e que era muito estranho, porque tinha muito terreno baldio ao redor da minha casa, e antes ali era o loteamento Marilu, se não me engano, não era um loteamento, era uma favela...
Juliana Michaello, professora universitária, ex-moradora da Av. João Davino.
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Figura 30 e 31:Paisagem aérea Jatiúca 1988 e 2018. Fonte: Acervo Luiz Duarte Araújo e Google Earth.
Figura 32: Quadra 15 do Conjunto Castelo Branco, na Av. Amélia Rosa Fonte: Acervo pessoal da autora, 1979.
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O bairro seguiu um ritmo muito lento de adensamento e transformação desde a década de 70, quando a área foi completamente parcelada, provavelmente devido à recessão econômica dos anos 1980, conhecida como a “década perdida” 68. Como se pode observar nas imagens aéreas tiradas em 1988 (Figura 30), fica evidente a existência de muitos vazios urbanos e a pouca verticalização na área. O processo de ocupação dos vazios e verticalização começam a se intensificar a partir do final dos anos 1990. O adensamento se deu principalmente na área do Loteamento Stella Maris, onde existia o maior número de vazios urbanos, que inclusive, foram sendo ocupados com edifícios verticais com mais de quatro pavimentos, de médio e alto padrão. Existiam também grandes casas de alto padrão nessa área. 4.1 - [...] não existia toda a infraestrutura de pavimentação, rua, locomoção, era areia, barro mesmo...eu cresci jogando bola na esquina de barro mesmo, o pé furado. - Era tudo de barro era? - Era terra, terra, terra, terra. - Tu lembra quando asfaltaram? - Na rua que eu morei, um bom tempo... eu acho que 2003/2004...demorou um pouquinho pra asfaltar...eu lembro! - O que é que tu lembra assim...de lembrança de infância do bairro? Como era teu cotidiano no bairro? - Rapaz, eu era muito travesso né [...] tinha uma casa da árvore, eu brincava na casa da árvore...tinha um campinho de barro, a gente ia pro campinho de barro [...] pipa, bicicleta, bola. No São João, ia todo mundo pra lá, jogar bomba na rua, porque como era uma área grande né, tinha essa possibilidade [...] - Era casa ou prédio já? - Existia um prédio ou outro. Então na rua que eu morei, na primeira rua, existia um prédio que era o edifício Canto do Mar. Na rua que eu morei, atrás, não existia prédio. Então começou o surgimento...ai um prédio aqui, um prédio lá...no princípio, a cada três ruas era um prédio...eram poucous prédios. A rua que eu morava era bem tranquila, por mais que tenha o ginásio do [Colégio] São Lucas, não tinha tanta movimentação de carro – tinha, às vezes quando era festa, né? mas hoje, quando eu passo por lá, é cheio de carro, porque tem prédio na esquina...[...] - E quando você olhava pra praia, tinha prédio? Perto da praia - Não, tinha poucos. A minha vó por sinal, morava na Jatiúca. - Isso era o que, anos 90 né? Ou começo de 2000? 68
Caldeira, 2000.
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- Anos 90, é! Ela morava no edifício Daniela, em frente ao CSU [Colégio Santa Úrsula] agora como a rua era muito extensa, muito grande, a gente via os fogos de lá...foi passando o tempo, em 2010...você não podia mais, porque era prédio em cima, prédio em cima, prédio em cima, prédio do lado...então ocupou todo o espaço. É, apesar de morar em prédio, os prédios fuderam a vida da gente.
Felipe, 29 anos, publicitário, moradordo Stella Maris. Enquanto isso, na Avenida Amélia Rosa e seus entornos, aconteciam diferentes transformações na malha urbana, principalmentereformas e expansões das casas que a COHAB entregara. Surgiram também pequenos comércios locais e muitas vezes anexados à própria residência dos moradores. 2.1 L - Nós só viemos mexer nela [na casa] em 1986 não foi? T - Foi. Por falta de dinheiro L - Muita gente que morava aqui, demorou muito pra refromar, num foi Thiago? T - foi L - Muita gente que morava aqui começou bem depois, bem depois mesmo... - E como é que era a dinâmica da rua? L & T- Como assim? - O pessoal ficava na porta? Tinha muita casa? ... L - Ah, os meninos brincavam na rua, essa dai acho que ainda brincou [apontou para a neta] T - Os meninos brincavam tudo na rua, não tinha a violência que tem hoje né...todo mundo ia pra rua pra conversar, pra bater papo...ver as crianças brincar... - Antes de asfaltarem era areia, ai eles brincavam na areia adoidado...iam jogar bola lá embaixo, que tinha um campinho...chegavam em casa preto...chegavam em casa desmantelados...
Thiago Nunes de Andrade e LionesNeuma Lins de Andrade, 78 e 72 anos, aposentado e aposentada, são casados e moram no Conjunto Santa Cecília. Depoimentos muito parecidos – como o de Liones e Thiago, Felipe, Francisca e Castelo - de uso da rua em diferentes ambiências do bairro e em diferentes décadas indicam um clima geral de tranquilidade e sociabilidade urbana: movimento de pessoas nas ruas, relação entre vizinhos, ocupação e uso das calçadas. Esse clima mudou, a especulação imobiliária transformou a paisagem urbana da área, e a mudança da imagem do bairro perante a cidade. Maceió se expandiu – e espraiou tão rapidamente que em poucas décadas – 1980 a 2010 - um lugar considerado 52
periferia passou a ser visto como central e, mais recentemente, elitizado. As casas “simplórias” dos conjuntos da COHAB sofreram tantas reformas e ampliações, que hoje é quase impossível se ver uma casa ainda com o projeto original.
Figura 33: Casa original (talvez a única) da COHAB na Av. Amélia Rosa, Conjunto Pratagy, 2018. Fonte: Acervo pessoal da autora.
Outra transformação no espaço bastante significativa foi a implantação do Shopping Center Iguatemi em 1989, que impulsionou a valorização da região e a especulação imobiliária.A partir dos anos 2000, e principalmente a partir de 2010, acontece a mais significativa transformação urbana do bairro, que mudaria a paisagem e conferiria um novo status – de bairro nobre – para a área: a transformação da Avenida Amélia Rosa. A avenida, que era ladeada pelas residências – muitas vezes já reformadas – dos conjuntos habitacionais da COHAB, começa a se tranformar no corredor gastronômico da cidade. Esta mudança foi percebida e citada por todos os entrevistados, sobretudo no que diz respeito ao aumento do trânsito e ao uso do solo, como explicita Francisca: 8.3 - De uns tempos pra cá a senhora sentiu diferença no movimento? [da avenida] - A diferença de movimento porque você vê que hoje é um comércio né, comércio de alimento, de roupa, de tudo aí...hoje a Amélia Rosa é um comércio mesmo, valorizou demais isso aqui. A maioria aqui já vendeu as casas né, hoje é mais comércio. Então houve esse crescimento medonho, como toda Maceió né, porque a Ponta Verde não existia né [...] o crescimento foi enorme, de consultório médico, de dentista, de tudo, e aí um grande avanço.
Francisca de Almeida Silva, 76 anos, aposentada, moradora do Conjunto Castelo Branco. 53
Figura 34: Shopping Iguatemi em construção, 1988; Shopping atualmente, 2018. Fonte: Acervo Luiz Duarte Araújo; Google Earth.
As diferentes ambiências, muitas originárias do processo de formação e consolidação do bairro, enfatizam o caráter diverso da Jatiúca e geram vários bairros dentro do bairro. Essas ambiências são reconhecidas pelos moradores do bairro de diferentes maneiras, de acordo com cada experiência urbana e com o trajeto cotidiano no bairro de cada morador. A minha Jatiúca tem as seguintes ambiências: 1) A Jatiúca dos conjuntos: É a minha Jatiúca, muito presente no meu imaginário urbano pessoal, pois é a parte do bairro em que moro e onde mais circulo. É também a ambiência com a qual mais me identifico, formada pela Avenida Amélia Rosa e os conjuntos habitacionais da COHAB que a rodeiam.É muito influenciada pelo comércio existente na avenida e pela feirinha da Jatiúca. Os edifícios do Conjunto Castelo Branco são um enclave de padrão popular em meio à elitização da área eajudam a mitigar a voracidade do processo de transformação urbana. É essa a ambiência na qual vou me aprofundar a partir de agora, pois além da identificação pessoal, considero que sua transformação impactou o bairro como um todo. 54
2) A Jatiúca Velha: É a segunda parte do bairro com a qual mais me identifico, tanto por memórias pessoais quanto porque circulo por lá no meu cotidiano atual. É sem dúvida a ambiência mais pobre do bairro, e sua parte original, onde a Jatiúca nasceu e se formou. Sua mais marcante delimitação é a Avenida Jatiúca, referência comercial e de serviços para todo o bairro – e até para os bairros vizinhos – é a partir a avenida que a Jatiúca Velha começa, estendendo-se no sentido sul. À medida que se aproxima da praia, o padrão construtivo vai aumentando – assim como em todos os bairros da planície costeira central a partir da Pajuçara –; nessa ambiência específica, a diferença de uma esquina para outra é gritante. 3) O Stella Maris: É a segunda área mais elitizada do bairro, cujas construções têm padrão semelhante ao da Ponta Verde – o reduto do “granfinismo” atual. Alta verticalização, muitas ruas com fachadas totalmente cegas, com muros de edifícios colados uns nos outros. Possui uma área verde – O Corredor Cultural Vera Arruda - muito interessante e subutilizada depois de ondas de assaltos pouco tempo depois de sua inauguração. Grandes empreendimentos também se localizam nessa área, como supermercados (dois) e um grande centro centro médico. 4) A
Jatiúca
da
Mangabeiras:Possui
dois
corredores
comerciais
importantes, um elitizado – a Avenida Álvaro Calheiros – e outro majoritariamente de comércios sem glamour e serviços – a Avenida João Davino –; sobretudo de serviços automotivos à medida que se aproxima do entroncamento com a Av. Gustavo Paiva. É uma área que considero bastante parecida com a Jatiúca dos Conjuntos, pois abrange um leque considerável de diferentes faixas da classe média. É majoritariamente residencial – assim como todas as outras ambiência – apesar de possuir muitos comércios – principalmente nas grandes avenidas. 5) A orla: É a área mais elitizada do bairro. Composta por edifícios residenciais de alto padrão, hotéis de quatro e cinco estrelas, e grandes comércios e serviços como locadora de carros, postos de gasolina, rede de fast foods, lojas de móveis, etc.
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Figura 35: Mapa ambiências do bairro da Jatiúca, 2018. Fonte: Base Cartográfica Oficial de Maceió com alterações da autora, 2000.
Durante as entrevistas, perguntei a cada um dos entrevistados e entrevistadas “até onde ia a sua Jatiúca” e me deparei com o reconhecimento de muitas das ambiências que acabei de identificar, como o reconhecimento de ambiências de Castelo – a seguir . Posso concluir, portanto, que os vários bairros da Jatiúca são reconhecidos por seus moradores, ainda que as interpretações e limites variem. Nossos trajetos cotidianos na cidade indicam que tipo (ou quais tipos) de 56
cidade experimentamos e vivenciamos, mas há reconhecimentos de espaços que extrapolam nossa própria experiência. Mesmo que não frequentemos certos lugares, ainda assim somos capazes de identificar e classificar os diferentes lugares da cidade. Somos capazes de reconhecer, ainda que superficialmente, nossa cidade. Somos capazes de pensar nossa própria cidade. 10.1 - Na cabeça do senhor, até onde vai a Jatiúca? - Mas o começo? Onde começa? A extensão? - Isso. - A Jatiúca começa na Praça da Bíblia, ali – que tem um posto de gasolina né, próximo – ai vai até o final da praia. Porque aqui tem Stella Maris, que é ai por trás do Castelo Branco...ai tem Ponta Verde e Jatiúca que é essa área aqui que nós estamos. - Agora, a Jatiúca vai até aonde? - Ela se estende lá depois da avenida Jatiúca né...ai tem Santa Fernanda, Santo Amaro, Santa Sofia, né...as ruas...são antigas né...Jatiúca antiga ali. - E pra lá... - Stella Maris. Ali é uma comunidade nobre né, praticamente né [...] ali atrás era considerado como... alli atrás era uma lagoa, ali primeiro... - E é? - Era uma lagoa. Pessoal lavava roupa, né...pescava...ai depois foi... - Ali, perto do shopping é? - Ali tudinho , por trás...não tem a torre ali, da Oi? Não tem o Colégio São Lucas...que vai até o Gbarbosa, ali...aquilo ali era tudo meio que um rio, mas como a comunidade, a Jatiúca e adjacências, a sociedade..os construtores né? Viram com bons olhos...eles ‘acharam por bem’ de aterrar tudo aqui ali e fazer prédio, e hoje não tem mais nada pra construir ali, que é tudo prédio, né? - O senhor acha diferente o Stella Maris daqui? - Com certeza. Ali é considerado um bairro da elite. Stella Maris e Ponta Verde é um bairro de elite. Então, a gente mora aqui num bairro de elite né? [risos] mesmo não sendo elite, mas nós estamos imprensados aqui, né? [risos]
Hildon Fidelis da Silva (conhecido como Castelo), 70 anos, aposentado e dono de banca de jornal naAv. Amélia Rosa, morador do Conjunto Castelo Branco.
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REFLEXÕES SOBRE A CIDADE REAL
“Lucro, máquina de louco” Baiana System, 2016.
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5. A dinâmica está no cotidiano: experiência urbana O cotidiano na cidade implica práticas e rituais de consumo que transformam a forma de vivenciar as partes do bairro, transformam a experiência urbana.69 Um exemplo claro são as padarias. Há uma padaria na av. Amélia Rosa, muito antiga. Desde que me entendo por gente existe uma padaria naquele lugar. Antes, era uma padaria de bairro, “o Peixoto”; como todo bom e velho comércio de bairro, eraconhecido pelo nome do dono. Por volta de 2011 a “padaria do Peixoto” mudou de administração, sendo implantada no mesmo ponto, outra padaria, que ficou funcionando por um ou dois anos mais ou menos, e logo depois mudou novamente de administração. Dessa vez, a nova padaria era moderna, cheia de doces, biscoitos diferentes e bolos de confeitaria. Pouco tempo depois, essa nova padaria, a “Ferreti”, abriu um restaurante, que vendia café da manhã e da tarde70. Depois abriu para o almoço. E foi expandindo e se modernizando rapidamente, de modo que deixou de ser uma “padaria de bairro” para virar uma referência na avenida e em seu entorno, atraindo também consumidores de outros bairros, e pessoas que trabalham na vizinhança. Há outra padaria, na feirinha da Jatiúca, muito antiga e muito conhecida, e que inclusive está o lugar previsto em projeto para ser a padaria do Conjunto Castelo Branco, aonde agora vou com mais frequência, visto que é mais barata que a Ferreti, encaixando-se melhor no meu ritual de consumo particular. O fato é que quando a Ferreti se instalou no lugar do antigo “Peixoto”, ela mudou meu modo de usar o bairro, pois agora faço com mais frequência um caminho que costumava usar esporadicamente. O bairro é o lugar onde o indivíduo vivencia a cidade em seu mais profundo aspecto; é através dos trajetos cotidianos que se constitui a experiência urbana, as interações sociais e o consumo. 71 Portanto, ao alterar um trajeto cotidiano, altera-se também a experiência urbana no bairro. Fazem parte da experiência urbana os caminhos percorridos no dia a dia e sua dinâmica intrínseca. “Um sistema de espaços existe em conexão com um 69
Mello & Simões, 2013. Café da tarde é um hábito típico de Alagoas e de alguns estados do Nordeste, virando inclusive atração turística, o “café regional” - é a refeição noturna, e se constitui de comidas tipicamente nordestinas como cuscuz, tapioca, macaxeira, inhame, banana assada, sopa, etc, servidas com café. 71 Mello & Vogel, 1983. 70
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sistema de valores”72 que refletem não só a dinâmica dos espaços locais, mas também a dinâmica social local. A relação das pessoas entre si, e delas com o espaço habitado.É o levar o lixo para a lixeira na calçada, ir à padaria, ir ao mercadinho comprar algo que faltou - às pressas - para preparar o almoço, levar as crianças na escola, encontrar com um vizinho no meio do caminho e conversar rapidamente, ficar na porta conversando e vendo o movimento 73, ir ao barzinho da esquina, ir até a parada de ônibus esperar o transporte coletivo e encontrar as mesmas pessoas todos os dias, etc.
Figura 36: Moradoras conversando na porta de casa, 2018. Fonte: Acervo pessoal da autora, 2018.
A instância mais próxima da dinâmica urbana local experienciada por um indivíduo é o “balé das calçadas”. “Sob a aparente desordem da cidade tradicional, existe, nos lugares em que ela funciona a contento, uma ordem surpreendente que garante a manutenção da segurança e a liberdade. É uma ordem complexa. Sua essência é a complexidade do uso das calçadas, que traz consigo uma sucessão permanente de olhos. Essa ordem compõe-se de movimento e mudança, e, embora se trate de vida, 72
Mello & Vogel, 1983, p. 04 Essa é uma prática muito comum no interior de Alagoas e veio junto com o êxodo rural para Maceió. É unânime, botar cadeira na porta é aquele tipo de coisa que quando se fala em voz alta causa imediato quentinho do coração do ouvinte e do falante, que abre um sorriso nostálgico de prazer. É o significado mais tenro de qualidade de vida no inconsciente coletivo do povo de Alagoas. Mesmo que você próprio não faça, a prática é sinônimo de calmaria e segurança urbana, coisa apreciada por todo e qualquer ser humano. 73
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não de arte, podemos chamá-la, na fantasia, de forma artística da cidade e compará-la à dança – não a uma dança mecânica, com os figurantes erguendo a perna ao mesmo tempo, rodopiando em sincronia, curvando-se juntos, mas a um balé complexo, em que cada indivíduo e os grupos têm todos os papéis distintos, que por milagre se reforçam mutuamente e compõem um todo ordenado. O balé da boa calçada urbana nunca se repete em outro lugar, e em qualquer lugar está sempre repleto de novas improvisações.” (JACOBS, 2011, p.52)
O balé da calçada,é constituído dos movimentos cotidianos dos moradores com suas ruas: comprar pão, passear com o cachorro, andar até o ponto de ônibus, ir à feira, abrir a loja, varrer a calçada da própria casa, entre muitas outras possibilidades de movimentos rotineiros que, se observados em conjunto, caracterizam a relação direta entre os moradores e o espaço público da rua. “A rua é um lugar de passagem. Caminho que leva ao trabalho, ao lazer, ao culto e às compras. Ela mesma, aliás, serve a todas essas atividades. Por isso, mais do que uma simples passagem é um lugar onde se desenvolvem os ritos da sociabilidade. As calçadas, que acompanham o correr de casas e o traçado da via pública são importantes neste particular, pois definem um espaço físico e social que serve à mediação entre a casa e a rua. De certo modo, podemos dizer que as calçadas pertencem às casas.” (MELLO & VOGEL, 1984, p. 06)
Para Jacobs74, o balé das calçadas é fundamental para a manutenção da segurança das ruas, pois é esse movimento de pessoas que faz a vigilância espontânea das ruas residenciais, os “olhos da rua”. E quanto mais olhos na rua, menos vulnerável à violência urbana aquela rua está. Os estabelecimentos comerciais contribuem bastante para o movimento nas calçadas, e quanto maior e mais variada a gama de comércios, maior é a dinâmica urbana gerada,e consequentemente, maior o movimento de pessoas na rua, ou seja a vida urbana. E quanto mais pessoas na rua, maior é a vigilância espontânea e mais seguras elas estarão. Para isso os comércios, as janelas, as portas e as fachadas dos prédios devem estar voltados para a rua. Não adianta ter muitos comércios se eles não têm relação alguma com a rua. Ou uma rua residencial composta somente por casas – que têm uma escala mais amigável do que prédios altos, e favorecem a relação com a rua – isoladas por muros altos, impedindo tanto a visão de quem está dentro da casa em direção à rua, quanto a de quem está na rua olhando em direção à casa. A 74
Jacobs, 2011.
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relação de proximidade e visibilidade com a rua é fundamental para a manutenção da vitalidade urbana. “O requisito básico da vigilância é um número substancial de estabelecimentos e outros locais públicos dispostos ao longo das calçadas do distrito; deve haver entre eles sobretudo estabelecimentos e espaços públicos que sejam utilizados de noite. Lojas, bares e restaurantes, os exemplos principais, atuam de forma bem variada e complexa para aumentar a segurança nas calçadas.” (JACOBS, 2011, p. 37)
Uma vizinha abriu um pequeno restaurante na rua lateral, que dá acesso à entrada do meu prédio. A implantação de um novo uso – o comercial -em uma rua puramente residencial impactou significativamente a dinâmica local da rua, aumentando muito o movimento de pessoas. Mas o principal fator causador do impacto foi o uso da rua pela dona do estabelecimento. O lugar não tinha arcondicionado, o que fazia com que a porta de entrada permanecesse aberta durante todo o tempo de funcionamento, que se estendia até às 22h, já que servia almoço e jantar. A dona do restaurante e uma outra vizinha do meu prédio, todo final de tarde dispunham cadeiras na calçada sombreada, em frente ao restaurante, para conversar. Não era raro encontrar outras vizinhas acompanhando essa prática. Esse restaurante, felizmente, cresceu, e esse espaço ficou pequeno. Minha vizinha alugou um outro espaço, maior, na quadra seguinte. A rua perdeu o movimento que tinha alcançado. Até que outra vizinha abriu nesse mesmo lugar em que fora o restaurante, um outro negócio que vende shakes75, e que tem arcondicionado. O que significa que a porta de entrada permanece fechada. Além disso, a dona investiu em um adesivo, provavelmente para proteger a porta de vidro da incidência direta do sol. O adesivo cria uma barreira visual da rua para o interior do estabelecimento, além de funcionar apenas algumas horas por dia. A diferença é muito nítida na sensação de segurança da rua. Um transeunte que perceba um movimento suspeito, por exemplo, fica sem rota de fuga, não há onde se abrigar. Essa é a grande vantagem que comércios abertos para rua trazem: a sensação de que se acontecer algo e você estiver andando na rua, tem para onde se dirigir, tem um refúgio, conta com quem possa socorrê-lo. Obviamente, isso é uma sensação; a realidade é que alguém poderá lhe socorrer ou não. Não há como prever.Mas uma coisa é fato: a presença de comércios abertos não impede, mas 75
Bebida preparada para ser ingerida em substituição a uma refeição.
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inibe a ação de possíveis assaltosa transeuntes. “Quanto mais portas se abrem para rua, mais espaço público é passível de utilização e mais intenso o seu aproveitamento por parte da ‘casa’”.76Muitas pessoas andando na rua também provocam esse efeito de inibir assaltos, aumentando a sensação de segurança dos lugares.77
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MELLO & VOGEL, 1983, p. 7. Jacobs, 2011.
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6. A importância da diversidade na construção da vitalidade urbana
O comércio de bairro em Maceió atende bem a um pequeno raio de residências, mais ou menos, quatro quadras, ou um raio de cerca de 200m78, se o objetivo é tonar-se um comércio ‘ao alcance da mão’. Se as pessoas tiverem de andar mais do que isso para utilizar um serviço do cotidiano, elas usam o carro, em bairros de média e alta renda. Nos bairros onde as pessoas não têm carros, a tendência é o serviço necessitado surgir espontaneamente dentro do raio de 200m, muitas vezes de maneira informal –quando as pessoas usam um cômodo da própria casa para montar um pequeno comércio, ou vendem artigos pela janela da fachada frontal, ou ainda montam banquinhas na calçada. O que acontece em bairros elitizados é que as pessoas têm pouca sensação de segurança nas ruas, e por isso utilizam o carro para se locomover em segurança. Então, a rede de serviços de bairro ‘ao alcance da mão’ não é necessária, posto que uma distância muito pequena (que seria ideal para caminhar, até 200m) é muito desconfortável se percorrida de carro. A distância ideal para se percorrer de carro em busca de um serviço do cotidiano é por volta de 1km. Ou seja, o raio de residências contempladas por estabelecimento aumenta de tamanho, causando a diminuição no número total desses estabelecimentos, sendo estes maiores e mais complexos do que os de bairro ‘ao alcance da mão’. O cenário que resta é: três padarias são suficientes para atender a um bairro inteiro, quando os moradores desse bairro não andam a pé, em busca dos serviços do cotidiano, que é o que acontece no bairro da Ponta Verde, por exemplo, em que os moradores vão à padaria de carro. E o que está acontecendo na área próxima à orla, na Jatiúca, a padaria que existia na esquina da Rua Dep. Luiz Gonzaga Coutinho com a Avenida Amélia Rosa, não existe mais, ficando um raio grande de residências, visto que estão sendo implantados muito edifícios verticais no entorno, sem padaria, o mais básico serviço cotidiano de bairro. Fazendo com que os moradores andem mais de 500m para
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A superquadra de Brasília tem 280m x 280m. Um conjunto de quatro superquadras formam a Unidade de Vizinhança, com serviços essenciais do dia a dia, como escolas, creches comércios locais, igreja, clube, etc. Jacobs fala sobre a necessidade de quadras curtas como uma das condições para a diversidade urbana, responsável pela vitalidade das cidades. Para ela, percorrer mais de 250m para chegar a um comércio ou tomar um ônibus é um problema sério para a dinâmica urbana.
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comprar pão no supermercado Gbarbosa ou nas padarias da Av. Amélia Rosa mais próxima do platô do tabuleiro, ou façam isso de carro. Quanto maior e mais complexa a teia de usos diferentes do solo e as variações entre os tipos num mesmo uso – por exemplo: a Ferreti, uma padaria/restaurante “gourmetizada”, e a padaria da feirinha, que é simples, de bairro –, e entre as horas de funcionamento dos diversos usos, maior é a capacidade de receber desconhecidos79. Desconhecidos são as pessoas que estão em um bairro que não é o de sua residência. Enquanto você é morador no seu bairro, você é também desconhecido no bairro em que você trabalha, por exemplo. “As cidades grandes estão, por definição, cheias de desconhecidos. Qualquer pessoa sente que os desconhecidos são muito mais presentes nas cidades grandes do que os conhecidos – mais presentes não apenas nos locais de concentração popular, mas diante de qualquer casa. Mesmo morando próximas umas das outras, as pessoas são desconhecidas, e não poderiam deixar de ser, devido ao enorme número de pessoas numa área geográfica pequena.” (JACOBS, 2011, p. 30)
A Jatiúca, por exemplo, é um bairro que abarca muitos desconhecidos que trabalham nos edifícios empresariais, ou nos bares e restaurantes. Sem contar os frequentadores desses bares e restaurantes, ou das diversas lojas. A orla da praia é outro espaço que recebe muitos estranhos, inclusive uma grande quantidade de turistas. “As ruas devem não apenas resguardar a cidade de estranhos que depredam: devem também proteger os inúmeros desconhecidos pacíficos e bem-intencionados que as utilizam, garantindo também a segurança deles. Além do mais, nenhuma pessoa normal pode passar a vida numa redoma, e aí se incluem crianças. Todos precisam usar as ruas.” (JACOBS, 2011, p. 36)
A Avenida Amélia Rosa é um grande trunfo para o bairro, justamente por estar rodeada de estabelecimentos dos mais diversos direcionamentos de consumo e renda. Principalmente lugares para comer, que se mostram um grande atrativo de pessoas, e logo, de “estranhos”. A onda é tão grande que outros estabelecimentos estão abrindo ao longo dos principais eixos viários de ligação entre os bairros, trazendo vitalidade e aumento significativo do movimento de pessoas para ruas antes puramente residenciais, com movimento estritamente local de moradores.
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Jacobs, 2011.
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O movimento que mais chama atenção é o expressivo número de bares, restaurantes e lanchonetes distribuídos ao longo da avenida, que se tornou a referência gastronômica da cidade. Isso atrai um grande movimento de pessoas que, se mantém durante todo o dia, devido às diferentes horas de funcionamento dos estabelecimentos, inclusive à noite e madrugada, graças aos bares. Lara, assim como todos os entrevistados nesta pesquisa, identifica a diversidade da avenida como positiva em suas vivências pessoais no bairro: 5.2 - Vou na esquina tem uma infinidade, assim tem opção de todo tipo, se você quiser ir num restaurante mais legal, tem. Se quer ir num restaurante mais simples, tem. Se quer comer sanduíche e um suco R$10,00, tem. Tem todo tipo de opção.
Lara Almeida, 22 anos, estudante, autônoma e consultora, moradora do Conjunto Castelo Branco.
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7. Amélia Rosa: plural e viva
A dinâmica das ruas da Jatiúca dos Conjuntos durante os anos 1970 e 1980 era muito diferente, bastante movimentada pelos próprios moradores, como conta Francisca, que mora no Conjunto Castelo Branco desde sua implantação: 8.4 - Antes as pessoas ficavam na porta? Você sentiu alguma diferença entre antes e agora? - Sim, sim! Isso aí acabou, isso de tarde. A gente era tudo sentada na porta, vinha um vizinho, vinha a vizinha, se ficava até às vezes, no verão, às vezes até uma hora da manhã, se ficava conversando, batendo papo. É isso que eu vejo, meus filhos, André, Andriano, que já estão na faixa de 48/50 anos, brincavam na rua com a meninada daqui, do mesmo tempo deles...não tinha problema, ninguém se preocupava! Agora você não vê mais as crianças na rua...agora não, já de bastante tempo! Não é? Ninguém vê mais criança brincando na rua...isso aí mudou muito. - Eu tava dizendo a Lara, falando que acho que a gente foi a última geração a brincar na rua. - Foi! Vocês ainda brincaram na rua? - Brincava! Aqui no meinho do prédio - É, eu acho que foi a última mesmo porque a Alice mesmo, a Alice tem um medo tão grande [risos] Só tem comprimento! Mas ela é medrosa, e eu acho até bom que ela assim seja, né? Porque faz medo hoje...eles atacam, tá uma coisa séria! - Mas ainda tem gente né? Dona Cícera fica na porta... - É, mas é assim, como se diz, é de tarde...pouquinho, uma coisa assim...mas não é como era antes, antes era movimento! V – Minha mãe tinha uma “espriguiçosa”, botava na porta, se deitava e dormia... não..
- Pra você ver...era gente assim passando só, tanta gente! Hoje você não vê movimento V - Quando é feriado ainda épior! - Sábado e domingo então...É que as pessoas se escondem mesmo. É o que é ruim hoje é isso, essa falta de zelo pelas pessoas. - Mas, e nem com esses comércios da Amélia Rosa, não aumentou a quantidade de gente na rua? - Não...aumenta pra lá né? Mas eu digo assim, antes você ia passando pra lá, pra cá, falava alguma coisa... - Os próprios moradores daqui? - Os próprios moradores, é. Hoje, não...hoje chegou ali, fez o seu lanchinho, vai-se embora, acabou.
Francisca de Almeida Silva, 76 anos, aposentada, moradora do Conjunto Castelo Branco. 67
A paisagem da avenida era composta basicamente pelas casas da COHAB, o que lhe conferia uma certa monotonia, pois os projetos dos conjuntos previam somente residências e no máximo alguma área verde nas sobras de terra loteável, como é o caso do Conjunto Pratagy.
Figura 37: Conjunto Pratagy, Jatiúca. Fonte: Base Cartográfica Oficial de Maceió com alterações da autora, 2000.
Esse tipo de produção do espaço habitacional, muito comum na época – e ainda hoje -, é muito criticada por planejadores urbanos, por não proporcionar os espaços e equipamentos fundamentais para a vida urbana de qualidade. O projeto do Conjunto Castelo Branco foi diferenciado nesse sentido, pois previa praças, espaços destinados a equipamentos públicos como escola, posto de saúde, clube recreativo e até supermercado. Contempla duas tipologias habitacionais (edifícios de três pavimentos e casas) com dois ou três quartos, que, como visto anteriormente, abrangia um leque mais variado de rendas, dinamizando a malha urbana e promovendo o convívio entre diferentes classes, democratizando o espaço urbano, ainda que estas não se distanciassem tanto no espaço social.
Figura 38: Conjunto Castelo Branco, Jatiúca. Fonte: Base Cartográfica Oficial de Maceió com alterações da autora, 2000.
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As reformas e ampliações demoraram um pouco para começar a acontecer, segundo Liones e Thiago citado anteriormente, já na década de 1980. Diante desse cenário, os comércios existentes estavam concentravam-se na Av. Jatiúca, além de pequenos comércios informais anexados às residencias dos moradores. Muitos desses comércios cresceram e se estabeleceram no bairro, tornando-se referências tanto afetivas quanto geográficas para os moradores. Durante as entrevistas, foram muitas as referências de comércios locais existentes há mais de 15 anos de moradores dos conjuntos, citadados pelos entrevistados. Comércios esses cuja estética geralmente é “sem glamour”. Entrevistados se referiam a eles chamando-os pelo nome do dono, em vez do nome do estabelecimento, expondo a relação pública de reconhecimento entre moradores locais e o raio de abrangência do comércio. Entrevistados descreviam tais estabelecimentos como “comércio de bairro”, “comércio feio”, “comércio daqui”, indicando uma relação de intimidade e pertencimento. Um dos entrevistados, inclusive, Seu Castelo é o dono deuma tradicional banca de revista na Avenida Amélia Rosa, uma das últimas.
Figura 39: Seu Castelo e a Família na Banca de revista, s/d. Fonte: Acervo pessoal Hildon Fidelis.
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Figura 40: Porongaba, 2018. Fonte: Acervo pessoal da autora, 2018.
Apesar da existência de comércio local, a Avenida Amélia Rosa e seus entornos eram majoritariamente residenciais até os anos 2000, quando começam a surgir lojas de alto padrão e restaurantes nas quadras próximas à praia, que não pertenciam a nenhum loteamento. Como a pizzaria Armazém Guimarães e as lojas de móveis à beira-mar.
Figura 41: Primeira loja elitizada da Avenida Amélia Rosa, 2018. Fonte: Acervo pessoal da autora.
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A partir daí, a paisagem urbana da Avenida sofreu mais uma transformação, tendo suas casas substituídas por comércios, serviços e principalmente bares e restaurantes, verificando-se um boom nos últimos cinco anos, quando o novo uso do solo atingiu toda a extensão da avenida, gerando uma onda de vitallidade no bairro, principalmente à noite, devido ao movimento gerado pelos bares. Essa onda de vitalidade mudou significativamente a dinâmica local, que tinha sofrido um esvaziamento em razão do aumento da violência urbana. Contudo, há uma distinção clara entre os padrõescomerciais ao longo da avenida: 9.1 - Da metade pra lá é totalmente diferente da metade pra cá, em questão de estética [...] tem uma mistura, mas é como se fosse um degradê, que vai diminuindo um e aumentando o outro.
Everson Roberto da Silva Moraes, 31 anos, arquiteto e urbanista, morador da Jatiúca Velha. Esse degradê, citado por Everson, segue a lógica de valorização econômica do solo: quanto mais próximo da orla, mais caro é o solo urbano, portanto, maior é o padrão do estabelecimento comercial. Ao tempo que há comércios totalmente impessoais e elitizados, o bar “pega bêbo”80 da esquina resiste. Apesar da visível substituição de casas de padrão popular e médio por restaurantes, bares e lojas, o morador que possui um imóvel tem a possibilidade real de montar um negócio e continuar no bairro. Esse movimento também é visível pelo aumento de comércios locais no bairro, sobretudo ao longo dos seus principais eixos viários. Os comérciosde bairro, geralmente, têm um padrão estético e de consumo mais baixo do que os negócios implantados mais recentemente. São os comércios de bairro, os comércio “feios”, que fornecem a verdadeira diversidade de opções para o lugar. Sem eles, as opções estariam todas voltadas para uma faixa única de renda e padrão de consumo, de classe média alta. A sociabilidade urbana e o clima despojado dos comércios de bairro são um fator importante e muito característico do bairro, que contribui muito para a geração de vitalidade. Especialmente nas áreas mais antigas da Jatiúca, é essa “feiura” dos comércios, que funciona como catalisadora de pessoas e ocupações nas ruas e em pontos estratégicos, virando ponto de encontro de vizinhos e moradores do bairro.
80
Gíria regional para designar um bar simples, muitas vezes tido como mal frequentado.
71
Lembro-me de que, quando era criança, não existiam grandes pontos de comércio no conjunto Castelo Branco – onde moro –; os poucos existentes eram muito locais e simples, principalmente os que se aproximavam da fronteira direta com a Av. Jatiúca e com a Jatiúca Velha. O clima despojado e a “falta de preocupação com a estética” do comércio local eram um traço marcante, o que gerava um sentimento de intimidade e pertencimento na população. Uma de minhas brincadeiras de infância era montar uma espécie de bazar, junto com amigas vizinhas, e vender tranqueiras catadas em casa. O objetivo era, claro, comprar doces e balas. Apesar de existir uma bombonière na feirinha, existia uma outra, informal, na sala da casa de uma moradora do conjunto. Era o prédio que ficava em frente ao meu, e a dona do apartamento térreo vendia seus produtos pela janela.
Figura 42: Bazar - brincadeira de infância na rua, Conjunto Castelo Branco, Jatiúca. Fonte: Acervo pessoal da autora, 2002.
Glaciete conta sua experiência própria, com comércio informal: 7.3 - Sim, aí como é que tu lembra do bairro? Você brincava no bairro? Era criança ou já era mocinha? 72
- Já era adolescente. Eu lembro que aqui nessa casa, por exemplo, meu pai montou um armazenzinho pra vender...tipo: linha, agulha, entendeu? Depois ele se mudou – meu pai era muito cigano – e a gente foi pra Penedo, na década de 1980, e alugou essa casa a um conhecido dele – que esculhambou a casa – Aí foi na época que a minha mãe se separou dele, e a gente retornou pra cá. - E tinha muito comércio, assim como o do seu pai, assim, das pessoas ter comércio dentro de casa? - Não mulher...tinha...ali onde hoje é uma papelaria era uma farmácia, que a esposa desse rapaz que montou essa farmácia mora vizinho à Ferreti – a padaria atual – era a única farmácia, que eu lembro, do bairro.
Glaciete Pereira Tavares, 53 anos, auxiliar de enfermagem, moradora da Av. Amélia Rosa, no ConjuntoPratagy. Outra dinâmica antiga de comércio informal do bairro, existente até hoje, é a presença dos ambulantes. São muitos, e passam vendendo cuscuz, macaxeira, ovos. E nos fins de semana, os “pombeiros”81, que vendem siri de coral e sururu, muitos deles moradores da Jatiúca Velha.
Figura 43: exemplos de uso e dinâmicas informais na Jatiúca. Fonte: Acervo pessoal da autora, 2018.
A feirinha é outro exemplo, muito popular entre os moradores, e um dos lugares mais espontâneos do bairro. Isso é reconhecido pelos moradores, como fica claro na fala de Diogo: “A feirinha é ótima! É feia, mas é ótima”.
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Nome antigo dado a pescadores que vendiam peixe de porta em porta nos sítios de Jatiúca, Ponta Verde e Pajuçara. Normande, 2000.
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Figura 44: Feirinha da Jatiúca Fonte: Acervo pessoal da autora, 2018.
Há também comércios informais por temporada, como o de Josuel, que vende fogos de artifício em época de São João, na frente de sua casa, localizada nas imediações da feirinha.
Figura 45: Josuel, vendendo fogos de artifício na porta de sua casa. Fonte: Acervo pessoal da autora, 2018.
Os comércios estabelecidos no bairro, que até hoje são referências e quase sempre se diferenciam esteticamente dos novos, são também referências culturais e 74
trazem consigo, sempre que mencionados pelos entrevistados, a sensação de pertencimento e enraizamento. 6.1 - A Amélia Rosa não era tão movimentada quanto hoje, né? - É, era bem pouquinho carro... - Comércio acho, que era pouco aqui. Comércio, eu só lembro do “Porongaba”, da padaria...o resto eu não lembro não...era muito pouco...acho que se desse 22h de um sábado, era deserta a rua...hoje em dia, 2h da manhã tá movimentadão.
Diogo Pereira Tavares Oliveira, 25 anos, engenheiro civil, morador do Conjunto Pratagy. Os depoimentos colhidos nesta pesquisa, fruto da vivência de moradores antigos do bairro, põe a nu que o comércio informal no bairro é histórico, assim como seu conflito. Esse traço é ainda muito presente nas dinâmicas locais, gerando novos conflitos devido ao processo de elitização do bairro. Afinal, a ordem natural da dinâmica urbana não é monótona, e sim o resultado da disputa de interesses locais. O movimento recente do aumento dos comércios no bairro traz consigo também, novos conflitos, principalmente relacionados ao surgimento dos bares e food trucks. O movimento à noite é expressivo principalmente por causa dos bares. Ainda que estes contribuam significativamente para a segurança dessa parte do bairro, é comum moradores reclamarem: “Os bares e, na verdade, todo o comércio, são malvistos em vários bairros precisamente porque atraem estranhos, e estes de forma alguma são encarados como uma vantagem.” (JACOBS, 2011, p. 42)
10.2 - De noite aqui é uma festa, parece um céu, parece que não existe nem crise né....é o Boteco da Bola, alli, é cheio. É banda de 7 as 10h, de 10h à meia-noite, de meia-noite até umas horas da manhã né... - Incomoda? - O sono né. Incomoda demais até. - O pessoal do prédio do senhor reclama também? - E então! Do barulho. Nós já falamos com o dono ai, duas vezes, ele disse que ia resolver o problema e tal...
Hildon Fidelis da Silva (conhecido como Castelo), 70 anos, aposentado e dono de banca de jornal naAv. Amélia Rosa, morador do Conjunto Castelo Branco. 75
Muitos bares da avenida lotam, e as pessoas costumam ficar bebendo e conversando em pé nas calçadas, até no canteiro central da rua, e até nas ruas transversais à Avenida. Além do barulho, expresso na fala de Seu Castelo, acima, outra reclamação frequente dos moradores é o mau comportamento de muitas pessoas no espaço público próximo a de suas residências. No caso dos edifícios do Conjunto Castelo Branco, os apartamentos localizados no térreo têm as janelas da sala e dos quartos voltados para a rua, sem nenhuma intermediação. Assim, se duas pessoas resolvem conversar perto da fachada do prédio, por exemplo, elas estarão muito perto da área mais íntima da casa dos moradores. Esse contato muito próximo obviamente incomoda os mesmos não só pelo barulho, mas pela invasão de privacidade, gerando inúmeros conflitos. Na frente da minha casa tinha um bar que ficava tão lotado que as pessoas ficavam no canteiro e até do outro lado da rua. Esse bar recebia tanta gente que um ambulante começou a parar no canteiro da av. Amélia Rosa para vender churrasquinho e cerveja aos clientes do bar, sem com isso atrapalhar as vendas do dono do estabelecimento. Eu, enquanto moradora e mulher jovem, adorava a existência desse bar,principalmente porque ele tinha a vantagem de ficar aberto e muito movimentado na rua até às 6h da manhã, o que me rendia, particularmente, 24h de entrada em casa com segurança, devido ao movimento de pessoas gerado em frente ao meu prédio. Movimentação noturna faz toda a diferença na sensação de segurança e na dinâmica urbana, mas eu odiaria pessoas conversando ou fazendo qualquer outra coisa do lado de fora da minha janela e retirando minha privacidade. O que não acontecia comigo especificamente devido à localização de meu apartamento, mas ocorria com vizinhos de prédio. O incômodo foi tanto que eles se organizaram e fizeram um abaixo-assinado para fechar o bar. O bar fechou, não sei se exatamente em razão disso, mas as reclamações gerais dos moradores envolviam barulho, uso de álcool e outras drogas, pessoas urinando nos prédios e fazendo sexo. Glaciete, narra o incômodo com um bar perto da casa dela: 7.4 - Uma coisa que eu acho errado né, no bairro são os bares. Eles ficam em altas horas, por exemplo, esse bar agora, bola num sei da vez, bola de num sei de que, ele não me incomoda o som 76
dele, mas você imagine se eu morasse vizinho a ele. Já tinha interditado. Porque demora, é muita música, eles ainda pegam o acesso, vamo supor: aqui é o bar, esse espaço aqui um pouco da pista, aonde tem um ponto de ônibus, eles ainda botam cadeira. Entendeu? E a prefeitura não vê isso. Alguém tá comendo bola. Juro a você, uma vez eu desci do ônibus, tinha como se fosse uma divisória, aqui tá as cadeiras onde tu tá, e aqui eles fizeram uma divisória para o pedestre, bem estreito. Eu achei um absurdo.
Glaciete Pereira Tavares, 53 anos, auxiliar de enfermagem, moradora da Av. Amélia Rosa, no ConjuntoPratagy. Outro bar que também atraía muito movimento para a rua, o Latino, fechou devido às reclamações de moradores dos prédios do Conjunto Castelo Branco, levando a que o proprietário que alugou o espaço para o bar não renovasse o contrato. O bar se localizava na rua tranversal à Av. Amélia Rosa, a rua que dá acesso aos prédios. O movimento de pessoas era tão grande que ocupava a rua inteira, muitas vezes impedindo a passagem de carros. O conflito entre moradores e clientes do bar foi tão grande que moradores despejaram areia na calçada do prédio para que as pessoas não sentassem na calçada. Eu, claro, adorava o bar: a sensação de reunir tanta gente, de pé, ocupando a rua em detrimento do carro, e a oportunidade de encontro de pessoas anônimas que a cidade proporciona, isso é, pra mim, o espírito da vida pública na cidade moderna. Vale ressaltar que eu morava a duas quadras do bar, e portanto, não via nem sombra dessa grande vitalidade urbana na minha janela, quando decidia ir pra casa, dormir. Essa questão de bares em zonas residenciais é delicada justamente pela medida entre a vitalidade urbana e a segurança que o movimento de pessoas proporciona e o incômodo dos moradores. A falta de espaços de discussão das questões urbanas gera também a falta de educação e limites das pessoas na convivência cotidiana na cidade e na mediação dos conflitos de interesse, que são inevitáveis à dinâmica na cidade. Apesar dos conflitos, essa onda de vitalidade que a Avenida Amélia Rosa ganhou é amplamente reconhecida por todos os entrevistados, sendo vista como positiva. Foram citados vários aspectos pelos entrevistados, quando perguntados se gostavam de morar na Jatiúca, tais como: tem tudo, tem variedade, dá para fazer tudo a pé, é prático, tem lazer (esse ponto em específico foi citado majoritariamente pelos jovens), tem boa relação com os vizinhos (esse outro, foi citado pelos idosos), 77
tem transporte público, é central, tem boa mobilidade, tem boa sensação de segurança (principalmente na avenida Amélia Rosa), Everson comenta sobre o que mais gosta no bairro: 9.2 - É o melhor bairro da cidade, não tem quem me faça dizer outra coisa, é perto de tudo, hoje em dia eu tenho usado mais a bicicleta, eu consigo ir pra praticamente todo lugar que eu quero ir, eu vou de bike daqui. Daqui a 15 minutos eu tô na praia, 20 minutos eu tô na Cruz das Almas. 25 a 30 minutos eu tô no Barro Duro, na Serraria, no Centro. Aqui é o melhor lugar. [...] Questão de transporte é o fator mais decisivo que eu tenho pra gostar daqui, é o principal. Eu consigo andar aqui três horas da manhã com menos medo do que andaria em outro lugar. Eu não dependo de carro. Se eu quiser pegar o carro eu pego, se eu não quiser, eu não pego. [...] É o que me faz andar de madrugada aqui, é saber que tem gente na porta.
Everson Roberto da Silva Moraes, 31 anos, arquiteto e urbanista, moradora da Jatiúca Velha. A população local sabe o quão benéfico esse movimento de pessoas na rua é para a vitalidade dos lugares, o que é claramente percebido nos discursos dos moradores e tem várias implicações na experiência urbana por diversas perspectivas diferentes. Seu Castelo, por exemplo, diz que o que mais aprecia em morar no bairro é a banca de revistas da qual é dono, que confere animação a seus dias: 10.2 banca.”
“Isso aqui é minha terapia. [...] Eu dou um valor muito grande ao meu trabalho, aqui a minha
Hildon Fidelis da Silva (conhecido como Castelo), 70 anos, aposentado e dono de banca de jornal naAv. Amélia Rosa, morador do Conjunto Castelo Branco. Francisca afirma: 8.5 - Esses dias fui levar Alice num aniversário lá no Jardim do Horto, eu digo “deus me livre eu morar aqui, meu deus!” Aquelas mansões, com aqueles muros cobrindo tudo, você passa ali, pra pessoa passar a pé, deus me defenda, eu não queria nunca uma morada daquela! Prefiro mais até a minha morada aqui, popular, aonde as luzes tão sempre acesas, aqui a hora que você chegar de noite, se você olhar, sempre tem uma luz acesa, entendeu? Eu gosto também muito daqui por isso.
Francisca de Almeida Silva, 76 anos, aposentada, moradora do Conjunto Castelo Branco.
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A dinâmica urbana antiga, uma relação mais pessoal com os espaços públicos e principalmente com as calçadas, característica muito presente no imaginário urbano dos moradores da Jatiúca, quando somada à nova dinâmica, de muita diversidade e majoritariamente impessoal, resulta em um mix de vitalidade de ideias opostas e complementares. 5.3 - É mais casual[ o tipo de movimento de pessoas da Amélia Rosa], tá mais encaixado no seu dia a dia, sabe? É tipo ‘eu vou passar pela Amélia Rosa, que eu vou fazer isso, então, já vou comer aqui’. Ou ‘eu vou pra esse bar porque tá na esquina da minha casa e tal’. Quando as pessoas vão pra (algum lugar) em outras regiões, elas planejam ir pra lá, sabe? Não é tão orgânico quanto você ir pra algum lugar na Amélia Rosa. Se você não sabe pra onde ir, vai para a Amélia Rosa e decide quando chegar, o que vai fazer.
Lara Almeida, 22 anos, estudante, autônoma e consultora, moradora do Conjunto Castelo Branco. Dona Francisca, apesar de reconhecer a diferença do movimento local de antes em relação ao que é agora, percebe a nova dinâmica urbana (que tem resquícios da antiga) como positiva em sua relação pessoal com a cidade: 8.6 - Eu amo morar aqui justamente por ser perto da avenida Amélia Rosa, por esse movimento. Porque de qualquer maneira né, onde tem mais movimento, eles (possíveis assaltantes) ficam mais acuados.
Francisca de Almeida Silva, 76 anos, aposentada, moradora do Conjunto Castelo Branco. Integrar e acolher idosos à dinâmica urbana é fundamental para a saúde mental de todos nós e para a boa convivência urbana nos diversos estágios da vida. Cidades inclusivas precisam acolher as diversas experiências urbanas, como Dona Francisca tão lucidamente percebe: 8.7 - A feirinha que deixa a gente muito próximo assim, das pessoas. E conheço bastante gente. E eu gosto assim porque quando é de tarde chega essa aqui ói [toca no branco da amiga] fica batendo papo. Entendeu? Quando eu menos espero, já tão chamando aqui [seu jardim] de “praça da alegria”[risos] mas é mesmo. Eu adoro morar aqui por isso.
Francisca de Almeida Silva, 76 anos, aposentada, moradora do Conjunto Castelo Branco.
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A relação de proximidade com a rua que os moradores da Jatiúca dos Conjuntos possuem gera acontecimentos como a decoração de ruas em eventos festivos, a exemplo de Natal, São João e da Copa do Mundo de Futebol. Na Copa do Mundo deste ano (2018), algumas quadras da Rua Paulo Falcão foram enfeitadas com fitinhas coloridas em verde e amarelo e bandeiras do Brasil pintadas no asfalto em frente a algumas casas. Ruas enfeitadas indicam relações entre vizinhos minimamente articuladas, que possibilitem a organização necessária para comprar enfeites e decorar a rua. Afinal, ninguém decora uma rua sozinho, e ninguém sai de sua rua para decorar a rua alheia sem ter alguma ligação afetiva com quem mora ali. Decorar uma rua normalmente é iniciativa de um ou mais moradores da própria rua, como me confirmou um morador da Paulo Falcão, quando perguntei quem tinha enfeitado a rua. Ele me disse que alguns moradores da quadra dele se organizaram para enfeitar a rua, depois a quadra vizinha decorou também, a quadra seguinte fez o mesmo, até que a rua estava quase completamente enfeitada
Figura 46: Rua Paulo Falcão decorada para a Copa do Mundo. Fonte: Acervo pessoal da autora, 2018.
Uma rua decorada revela afeto e pertencimento, é como decorar sua própria casa; não se faz para vender algum produto, mas para se sentir bem naquele lugar, que lhe pertence. Como uma demonstração pública de afeto com o lugar. É a valorização afetiva do lugar que reflete como as pessoas enxergam a si mesmas 80
pertencendo àquele lugar, e consequentemente como elas enxergam o próprio lugar.82 Ruas articuladas que montam decoração, no entanto, não necessariamente têm capacidade para receber desconhecidos. Não necessariamente têm um balé das calçadas muito ativo, não necessariamente são dinâmicas e cheias de movimento, e portanto, não necessariamente são seguras. Podem ser muito vivas ou podem ser monótonas. Mas sua existênciaé um forte indício de uma rede de afetos entre vizinhos. Rede essa suficientemente consistente para a aprovação da intervenção por parte do resto dos moradores da rua, evidenciada pela permanência dos enfeites. “(...)quando vão sendo construídos sentimentos de pertencimento e aparecem ações de apropriação simbólica do espaço, o indivíduo está moldando um lugar para si enquanto reconstrói a própria identidade” (DUARTE, 2013, p. 31)
82
Duarte, 2013.
81
8. Amélia Rosa: Dinâmica urbana em transformação A “animação” nas ruas, de pessoas andando a pé - facilitada e incentivada também pela presença do canteiro central sombreado
– junto com os
estabelecimentos de alto padrão, atrai mais pessoas de outros bairros e confere um status para a avenida, que se espraia para todo o bairro todo. Esse status atrai uma onda de estabelecimentos e empreendimentos elitizados que se instalam no bairro, substituindo as residências e os comércios locais. Os moradores sentem a imagem do bairro mudar: 6,2 - A Jatiúca se tornou um lugar bem-visto, valorizado, de uns anos pra cá, ai assim, como eu sou raiz, querendo ou não, eu ainda vejo aquela Jatiúca antiga, que pra mim não era valorizada. Aí a gente nem compara né ‘pô, eu sou...moro na elite’, não pra mim não sinto acho que por causa disso. Tanto é que tem uma secretária lá, da Casal, quando eu disse ‘ah, eu moro na Jatiúca’ ela fez ‘eita, mora bem!’ eu não tenho essa imagem sabe? Acho que é porque a gente é daqui. Mas essa galera que é de fora, que vê como o bairro cresceu e valorizou diz “oia, tem dinheiro!”. Não é nem minha a casa né [risos] mas “oia, tem dinheiro!”
Diogo Pereira Tavares Oliveira, 25 anos, engenheiro civil, morador do Conjunto Pratagy. 5.3 - Porque é perto da praia, as pessoas têm essa coisa de que perto da praia é bom. Mesmo aqui sendo a região mais comum, não sendo a região mais rica, que é perto da praia né, que tem aqueles prédios. Falar Jatiúca, as pessoas associam à praia e dão mérito maior [...] vejo que as pessoas percebem como privilégio morar aqui [...] acho que a parte mais próxima da praia corresponde a essa expectativa.
Lara Almeida, 22 anos, estudante, autônoma e consultora, moradora do Conjunto Castelo Branco. Essa onda de elitização dos estabeleceimento e residências encontra uma onda contrária, a dos comércios “feios” que resistem às transformações urbanas. O encontro dessas duas ondas opostas gera diversidade e, com isso, vitalidade e segurança para a Avenida. O equilíbrio entre a elitização e a casualidade dos comércios é o que mantém a vitalidade e a segurança da Avenida Amélia Rosa e de seus entornos. A Jatiúca “raiz” que Diogo menciona ainda está muito arraigada nos moradores antigos, que se beneficiam das mudanças; mas a memória afetiva está no padrão do passado, na raiz, e é esse sentimento de pertencimento que alimenta a permanência e a resistência dos moradores antigos ante as pressões do mercado. 82
Outro fato importantíssimo é o fato de muitos moradores antigos serem proprietários de seus imóveis, os quais foram adquiridos há 30 anos, com financiamento do BNH. 8.8 - A senhora pretende se mudar? - Deus me livre! Isso aqui pra mim é bom demais! Tem a feirinha perto, tem tudo! Padaria, farmácia, o que a gente quer, nós temos aqui, não é? Shopping, tudo. Não penso nunca em sair daqui, não. Eu sou igual a seu pai. Seu pai não quer sair daqui não. E tem gente até que censura, “mas o Geraldo, ainda mora aqui”. Eu digo, “Oh gente, a casa é dele, ele gosta de morar aqui. Por que ele vai se embelezar por Ponta Verde? Tudo isso é bobagem, minha gente”.
Francisca de Almeida Silva, 76 anos, aposentada, moradora do Conjunto Castelo Branco. A nova vitalidade que se apresenta na avenida, formada muito em função dessa onda de elitização, que começou nas áreas próximas à orla, tem valorizado a área, que se tornou o espaço cool da cidade, o centro gastronômico descolado com cervejarias artesanais alagoanas e bares dos mais variados tipos. Essa valorização aumenta o preço da terra e dos aluguéis, gerando gentrificação83, ao tempo que a vitalidade criada por essa elitização permite a permanência dos moradores antigos, através do comércio de subsistência. O novo status da avenida e do bairro permitiu, na prática, a ampliação do mercado consumidor, possibilitando a permanência de muitos moradores antigos, que seriam expulsos paulatinamente pelo aumento do custo dos serviços cotidianos. É exatamente o encontro desses dois movimentos opostos que cria a diversidade necessária para sustentar a vitalidade da Amélia Rosa e o incentivo ao andar a pé.
Figura 47: Diagrama de consequências da elitização Fonte: Material produzido pela autora, 2018. 83
Substituição da população original por uma de maior poder aquisitivo.
83
Observa-se que surgiram recentemente muitos comércios de moradores locais – principalmente na parte da avenida mais próxima do tabuleiro. Um exemplo facilmente percebido – também pelos entrevistados – é a recente instalação de food trucks na quadra 13 do Conjunto Castelo Branco. Nada menos que nove ‘carrinhos’ de comida, instalaram-se perto do André, que vende acarajé ao lado do ponto de ônibus há mais de vinte anos. A onda dos food trucks começou com apenas um carrinho, o Galego, morador do conjunto, que vende pastel e caldo de cana. Durante muitos anos eram só os dois, depois chegou outro, e depois mais um, todos moradores do conjunto. A partir daí, chegaram ‘carrinhos’ de não-moradores do bairro, até não caber mais nenhum. Essa onda proporcionou um movimento constante de pessoas, além de aumentar a iluminação, até às 23horas, o que não existia há dez anos. Recordo-me que ao descer do ônibus às 20horas e encontrar a rua deserta, a padaria fechada, o André também já tinha recolhido o ‘carrinho de acarajé’, a sensação era a de que já seria madrugada.
Figura 48: Food Trucks na Av. Amélia Rosa Fonte: Acervo pessoal da autora, 2018.
Essa nova ocupação fez tanto sucesso que surgiram food trucks também na quadra 15 do mesmo conjunto há cerca de um ano, também de moradores locais, os reconheço do bairro. Essa nova movimentação é reconhecida por moradores 84
locais e de outras partes do bairro como benéficas, ainda que alguns critiquem alegando a ocupação de área pública para uso privado. 8.9 - E esses carrinhos aí, o que é que a senhora acha? F - Eu acho certo, eu não recrimino não, porque é uma maneira de eles ganharem dinheiro com dignidade né, trabalhando. V – Os pessoal (sic) que mora nos prédios é que não gostaram - Não gostaram por quê? V - Porque botaram na frente dos prédios... F - Mas é bobagem isso, porque não atrapalha em nada! É o povo, que geralmente não quer ver a...sempre tem alguma coisa pra discordar! Porque na minha opinião não atrapalha em coisíssima nenhuma! Atrapalhava assim, se fosse pra vender cerveja, e eles ficassem gritando, ficassem com esculhambação. Aí era outra história! Mas é lanche normal, as pessoas são pessoas educadas, a maioria que vai é tudo gente mais ou menos, vão fazer o seu lanche e vão embora. - E os donos são daqui também, né? F - E os donos também são daqui, é uma maneira de eles ganharem dinheiro...eu acho mais do que justo.
Francisca de Almeida Silva, 76 anos, aposentada, moradora do Conjunto Castelo Branco. O conflito faz parte da dinâmica urbana das cidades, e qualquer intervenção no espaço agrada a uns e desagrada a outros. Por isso é tão importante que a população discuta sobre as intervenções feitas nos seus espaços cotidianos e suas consequências individuais e coletivas, tomando decisões e resolvendo pequenos conflitos localmente, ou seja, participando ativamente da vida política urbana, a qual afeta o cotidiano de todos nós. “A primeira coisa que deve ficar clara é que a ordem pública – a paz nas calçadas e nas ruas – não é mantida basicamente pela polícia, sem com isso negar sua necessidade. É mantida fundamentalmente pela rede intrincada, quase inconsciente, de controles e padrões de comportamento espontâneos presentes em meio ao próprio povo e por ele aplicados. (...) A segunda coisa que deve se entender é que o problema da insegurança não pode ser solucionado por meio da dispersão das pessoas.” (JACOBS, 2011, p. 32)
O lugar, mais do que um ponto geográfico, é um espaço objeto de afetos, que carrega simbologias e significados no imaginário das pessoas: “(...) é um espaço qualificado, ou seja, um espaço que se torna percebido pela população por motivar experiências humanas a partir da apreensão de estímulos ambientais.” (CASTELLO, 2007, p. 47)
85
Lugar é, portanto, o resultado da interação entre pessoas e ambiente. 84O tipo de movimentação nas calçadas e a relação das pessoas com a rua indicam um conjunto de valores associados ao uso do espaço. Mostram uma forma de usar a cidade. Essa forma de usar a cidade varia de acordo com o contexto social em que aquele grupo de pessoas (moradores de uma determinada rua, por exemplo) está inserido.85 Essa relação com o espaço, a “prática do espaço, cria os lugares e os valores que são caros à comunidade do praticante.”86. Cada indivíduo tem sua própria cidade, tem a visão do que é a cidade dele, que condiz com sua autoimagem. A forma como ele usa a cidade depende muito do jeito que ele enxerga a vida. Isso é a experiência urbana. Essa experiência é marcada e limitada por estilo de vida, hábitos de consumo, gostos pessoais, ocupações e, finalmente, as representações que os habitantes da cidade têm de seus muitos bairros, regiões, esquinas, avenidas, ruas, etc. Cada indivíduo da cidade tem sua própria cidade particular dentro da grande cidade. O conjunto desses percursos diários forma a experiência urbana e, consequentemente, a cidade particular de cada indivíduo.87
84
Castello, 2007. Mello & Vogel, 1984. 86 Mello & Vogel, 1984, p. 5. 87 Mello & Simões, 2013. 85
86
JATIÚCA E A ELITIZAÇÃO DO MEDO
“Todas as cidades já estão em chamas Consumidas por um desejo voraz” Banda Eddie, 2010.
87
9. A elitização do medo e o assassinato da sociabilidade urbana A Jatiúca começa a vivenciar a explosão da violência urbana – que se intensificou a partir de 1980 nas grandes cidades brasileiras88 - mais intensamente a partir dos anos 2000, quando os muros começaram a ser erguidos. 2.2 - E o povo ficava na porta aqui? Até quando? T - Na época que nós chegamos aqui e muitos anos depois, o povo passava o dia todinho aí na porta, na rua...era tranquilo - Foi até quando isso? - Isso até começar a violência, né? L - 2005 T – 2000, 2000 e pouco...foi...nos anos 2000 foi que começou a violência pesada
Thiago Nunes de Andrade e LionesNeuma Lins de Andrade, 78 e 72 anos, aposentado e aposentada, são casados e moram no Conjunto Santa Cecília. O consequente esvaziamento das ruas gerou a morte da sociabilidade urbana, muito presente no bairro. 8.10 - Os ricos começaram a se trancafiar, fazer seus palacetes, acho que pro pobre não ver: quanto mais o povo se trancou, se fechou nessas muralhas, foi pior ainda.
Francisca de Almeida Silva, 76 anos, aposentada, moradora do Conjunto Castelo Branco. Andar e/ou estar nas ruas, um hábito comum na história do bairro, tornou-se um ato para “corajosos”. Lara, que já foi assaltada no Loteamento Stella Maris, desde o ocorrido recorre ao transporte colaborativo ‘uber’ até para trajetos de 15 minutos. Mas anda a pé na Avenida Amélia Rosa, por se sentir segura com o intenso movimento de pessoas que a rua possui. 5.4 - Eu ando a pé pela Amélia e naquele trecho que liga ela com o Stella Maris. Qualquer outra paralela ou transversal eu não ando.
Lara Almeida, 22 anos, estudante, autônoma e consultora, moradora do Conjunto Castelo Branco. 88
Caldeira, 2000.
88
Felipe adimite ser “uma dessas pessoas que só anda de carro”: 4.3 - Você se sentia seguroassim, de andar pelo bairro? - Há muitos anos, sim. - Ai de uns tempos pra cá? - Não. - Depois que você vira vítima, você acaba meio assutado, sabe? - Aí tu não anda mais no bairro? - Depende pra onde eu vou [conta uma história de quase assalto] - Aí tu acha que é a mesma coisa na Amélia Rosa? - Não tanto, porque é povoada. Hoje em dia tem os food trucks , no Castelo Branco. Aí você tem food truck, tem uma igreja que é povoada, um centro, que é povoado, o The Square. É mais povoado. Quando você tem mais gente, a possibilidade de você praticar uma merda é menor.
Felipe, 29 anos, publicitário, moradordo Stella Maris. Diogo também menciona que “essas ruas aqui do Stella Maris sempre foram perigosas”. Fica evidente que as pessoas sentem mais medo de andar a pé onde o movimento de pessoas é menor, independentemente de onde morem, num cenário em que todos têm medo da violência urbana, principalmente do assalto à mão armada, e que reconhecem essa relação de sensação de segurança e quantidade de pessoas nas ruas. Basicamente, todos chegaram à conclusão de que o Loteamento Stella Maris é composto por casarões ou prédios de alto padrão, e é perigoso andar a pé nele. As
mudanças
espaciais
e
seus
instrumentos
estão
transformando
significativamente a vida pública e o espaço público. À medida que o crime violento cresceu, principalmente os ligados ao roubo da propriedade, as pessoas sentiram necessidade de se proteger atrás de fortalezas: os muros, cercas elétricas, sistemas de segurança com vigilância 24 horas por dia e controle de entrada e saída com base em princípios de classificação de pessoas que são incuídas ou excluídas dos espaços fortificados.89 89
Caldeira, 2000.
89
“O espaço público é cada vez mais abandonado pelas camadas mais altas. Na medida em que os espaços para os mais ricos são fechados e voltados para dentro, o espaço que sobra é abandonado àqueles que não tem como pagar para entrar. Como os mundos privatizados das camadas mais altas são organizados com base nos princípios de homogeneidade e exclusão de outros, eles são por princípio o oposto do espaço público moderno.” (CALDEIRA, 2000, p.313)
Em Maceió, o uso do espaço público vem mudando, acompanhando as mudanças
nacionais
e
mundiais.
Antes
do
século
XX,
as
ruas
eram
majoritariamente ocupadas por grupos marginalizados, como os negros e as prostitutas. Com as reformas urbanas, a rua é ressignificada e se torna o espaço de convívio das camadas sociais mais altas. Depois, vieram o modernismo e o estilo internacional de se produzir o espaço público e o privado. “O planejamento urbano modernista aspirava transformar a cidade em um único domínio público homogêneo patrocinado pelo estado, eliminar as diferenças para criar uma cidade racionalista universal, dividida em setores de acordo com funções urbanas: residência, trabalho, recreação, transporte, administração e cívica. Brasília é a incorporação mais completa desse novo tipo de cidade e de vida pública.” (CALDEIRA, 2000, p. 311)
Le Corbusier e o planejamento urbano moderno representam outra crítica à cidade industrial. Ele “introduziu os arranha-céus em seus projetos, bem como o automóvel e considerações sobre o fluxo rápido de trânsito.”90 Elementos como a antipatia pela rua e a destruição de sua unidade têm consequências profundas atualmente: “A construção da Brasília modernista no final dos anos 50 cistalizou um modernismo internacional em sua transformação do espaço público e comunicou-o ao resto do país. O modernismo tem sido o idioma dominante da arquitetura e do planejamento urbano brasileiro até hoje. Como tal, ele também tem sido associado a prestígio e tem ajudado a criar espaços e a vender residências para a elite brasileira desde os anos 50.” (CALDEIRA, 2000, p. 310)
Os ideais modernos de espaço público democráticos, com ruas abertas à livre circulação de pessoas e veículos, acabaram gerando o efeito oposto ao intencionado. “Brasília é hoje a cidade mais segregada do Brasil, não a mais igualitária. Ao destruir a rua como espaço para a vida pública, o planejamento modernista também minou a diversidade urbana e a possibilidade de coexistência de diferenças. O tipo deespaço que ele
90
Caldeira, 2000, p. 310.
90
cria promove não a igualdade – como pretendido – mas apenas a desigualdade mais explícita.” (CALDEIRA, 2000, p. 311)
A elitização do medo é, portanto, a combinação do planejamento urbano e influência modernista, modelo usado pela elite e pelas classes médias no Brasil, com o autoenclausuramento desses estratos em “enclaves fortificados”91 para se proteger da violência urbana. O mercado imobiliário se utilizou do medo das pessoas para ressignificar o sentido de enclausuramento, atribuindo valores excludentes e elitizados aos empreendimentos, como fica evidente nos anúncios, que se utilizam de palavras como “exclusividade”, “segurança” e “tranquilidade”. Vende-se a liberdade de não ter medo por meio do enclausuramento e da homogeneidade social. “O enclausuramento foi uma estratégia imobiliária e de marketing que se tornou dominante nas décadas seguintes: hoje, os procedimentos de segurança são requisito em todos os tipos de prédios que aspirem a ter prestígio” (CALDEIRA, 2000, p. 261)
Figura 49: Propaganda de um centro empresarial na Avenida Amélia Rosa Fonte:The Square Park Office;< http://www.thesquaremaceio.com.br/> Acesso em: 15 de Outubro de 2018. 2018. 91
“Trata-se de espaços privatizados, fechados e monitorados para residência, consumo, lazer e trabalho. A sua principal justificação é o medo do crime violento. Esses novos espaços atraem aqueles que estão abandonando a esfera pública para os pobres, os ‘marginalizados’e os sem-teto.” (CALDEIRA, 2000, p. 211)
91
“O uso de meios literais de separação é complementado por uma elaboração simbólica que transforma enclausuramento, isolamento, restrição e vigilância em símbolos de status.” (CALDEIRA, 2000, p. 259)
A produção do mercado privado se utiliza de linguagens modernistas para produzir espaços segregados, que é exatamente o contrário da ideologia moderna. “Os elementos da arquitetura e do planejamento modernistas que sovrevivem na nova forma de enclaves são aqueles que destroem o espaço público e a vida social modernos: ruas mortas transformadas em vias expressas, construções esculturais separadas por vazios e ignorando o alinnhamento das ruas, muros e tecnologias de segurança enquadrando o espaço público como residual, enclaves voltados para o interior, separação de funções e destruição de espaços diversos e heterogêneos.” (CALDEIRA, 2000, p. 313)
92
10. Jatiúca e a elitização do medo
A elitização do espaço da Jatiúca vem acontecendo desde o processo de formação do bairro, quando aindaera um lugar periférico e com péssimas condições de habitabilidade, - “um fim de mundo”, como disse Francisca, em depoimento. A infâmia também se estendia à população que habitava o lugar, concretizando umarelação de troca de estigmas perversa. O lugar é estigmatizado por não ter infraestrutura urbana, configurando-se como indigno para se morar; portanto, quem o aceitava como morada era também indigno. Por outro lado, a população pobre, vinda do interior e sem escolaridade, que carrega próprio estigma, quando se instala afeta o lugar. Este passa a ser reconhecido como um “lugar de pobre”, e todos querem evitá-lo. “Um endereço na cidade, fala não só de uma localização no espaço físico, mas também de uma designação no espaço social.”92 Essa população, estigmatizada e sem acesso à educação é a base da pirâmide social, a “ralé brasileira”, a classe social de excluídos definida por Jessé Souza93 em seu livro “A ralé brasilera”, chamada assim provocativamente, para denunciar seu abandono. Segundo o autor: “Os ex-escravos da ‘ralé de novos escravos’ continuam sendo explorados na sua ‘tração muscular’, como cavalos aos quais os escravos de ontem e de hoje ainda se assemelham. (...) O recurso que as empregadas domésticas usam é, antes de tudo, o corpo, trabalhando horas de pé em funções repetitivas, com a barriga no fogão quente, do mesmo modo que faxineiras, motoboys, cortadores de cana, serventes de pedreiro, etc.” (SOUZA, 2017, p. 103)
O que aconteceu na Jatiúca foi que, para “dignificar” a área e valorizar a terra para a exploração da orla como território de luxo, o poder públicoignorou as pessoas que já moravam no bairro (a “ralé”) em péssimas condições de habitabilidade e implantou os conjuntos da COHAB, direcionados à classe média, ou seja, pessoasque já são “dignas” socialmente. O poder público como agente do poder privado, ao invés de dignificar a vida das pessoas que já moravam ali antes, por meio de implantação de infraestrutura urbana, serviços de drenagem e pavimentação, saneamento básico, equipamentos públicos, como escolas e postos
92 93
Mello & Simões, 2013, p. 67. Souza, 2017, p. 66.
93
de saúde, etc; exclui-as doprocesso de disputa capitalista, por não considerá-las camadas sociais “dignas”, aoignorar suas demandas e não minorar suas carências advindas do processo histórico de formação social. Exemplo claro disso é que moradores dos loteamentos da Jatiúca Velha tinham problemas muito mais sérios de infraestrutura (alagamentos) e nunca usufruíram de infraestrutura urbana. Já na Jatiúca dos Conjuntos, apesar de os conjuntos terem sido entregues sem pavimentação e sem saneamento, essas obras foram feitas cerca de dois anos depois de entregues. Elitizar é uma forma de“dignificar” um espaço ocupado pela ralé. Desde essa época, já era elitização. Diferentemente do processo de gentrificação, que expulsaa população original, o que houve foi a ocupação das terras disponíveis pela classe média e uma “urbanização organizada”, através da implantação de infraestrutura por parte do poder público, transformando a área de lugar indesejado em lugar passível de ser ocupado, principalmente pelas camadas mais baixas da classe média. O processo em curso atualmente continua sendo a elitização. Com a expansão da cidade de Maceió para as áreas do Tabuleiro, ao longo da Avenida Fernandes Lima, ação em muito motivada pela COHAB, com a construção de conjuntos habitacionais nessas localidades, a planície costeira se estabeleceu como “a parte baixa da cidade” que inclui não só uma localização geográfica, mas tem uma simbologia implícita que significa “lugar dos ricos”, sendo agora a “parte alta da cidade” o novo “lugar dos pobres”. Esse processo incorporou uma sensação crescente nos moradores de que é um privilégio morar na Jatiúca - não só por ser na “parte baixa”, mas pela proximidade com o bairro da Ponta Verde, o “bairro desejo” das camadas médias e altas de Maceió. A população que veio morar na Jatiúca nos anos 1970 tinha condições de ascender socialmente, pois teve acesso a privilégios como educação e emprego formal, e muitos ascenderam de fato. Outros encontraram uma maneira de se beneficiar através da ampliação do comércio local, montando um negócio, o que permite sua permanência no bairro. Portanto, o que houve e o que há na Jatiúca é elitização, que foi se acentuando, primeiro com a substituição de residências por comércio, dando dinamicidade ao tecido urbano e atraindo cada vez mais pessoas de outros bairros nobres para consumir e morar aqui. Isso leva à substituição de casas por edifícios verticais “estilo Ponta Verde”, ou seja, enclaves fortificados: um 94
símbolo muito claro de sucesso social. A forma de ascender socialmente no Brasil está mais ligada à identificação e à reprodução dos costumes modernos do que à renda em si.94 “Quando a modernidade europeia chega ao Brasil de navio, na esteira da troca de mercadorias, seus valores não são uma mera mercadoria de consumo. (...) A noção de tempo, a condução da vida cotidiana, a economia afetiva necessária para o aprendizado dos novos ofícios e profissões é completamente diferente da que imperava anteriormente. O que é tido como bonito, como bom, como legítimo de ser perseguido na vida, a noção de sucesso e de “boa vida” muda radicalmente. Muda, enfim, a configuração valorativa da sociedade como um todo.” (SOUZA, 2017, p. 69)
Pode-se dizer que o acontece na Jatiúca não era e ainda não é gentrificação, que é o processo de substituição paulatina de pessoas de uma área degradada por pessoas de padrão de consumo maior, elitizando e encarecendo o comércio e serviços do lugar, criando as condições para a expulsão velada das camadas originais do bairro, que não têm condições financeiras de manter o novo padrão de consumo que se estabelece no lugar95. Isso é o que vai acontecer a partir da minha geração. A minha geração não vai conseguirá permanecer no bairro em decorrência do preço da terra urbana. 6.3 - Agora, como ele (o bairro) valorizou muito, aí a questão financeira pesa um pouquinho (risos). Aí se a gente quiser comprar uma casinha mais barata, não acha por aqui.
Diogo Pereira Tavares Oliveira, 25 anos, engenheiro civil, morador do Conjunto Pratagy. O processo de mudança pelo qual a Jatiúca passa é a elitização do medo: a combinação dos elementos modernistas de produçãoda cidade com o medo da rua pela explosão da violência urbana, um processo vivenciado em cidades de todo o Brasil. A forma de morar na cidade segundo a elitização do medo é se trancafiando. A classe média e a elite vivem trancafiadas, tanto dentro de apartamentos com guarita, câmera de segurança, como em condomínios fechados, etc, quanto dentro de carros. Quando as pessoas param de usar a rua, os espaços da cidade ficam
94 95
Souza, 2017, p. 69. Medeiros, 2017.
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ainda mais vulneráveis à violência urbana, fruto da desigualdade social, consequência da formação urbano-social brasileira. O bairro é composto majoritariamente por famílias de classe média, tanto média alta quanto média baixa. Mas a classe média baixa usa mais a rua e percebe essas dinâmicas locais do uso da rua como positivas. Ao mesmo tempo, essas mesmas pessoas acham que o certo é morar “estilo Ponta Verde”, que é o sinônimo de sucesso na vida, e não por acaso, o mais próximo do comportamento urbano da elite, que busca exclusividade e segregação das classes de mais baixa renda. As dinâmicas locais e o uso da rua no bairro incitam justamente o contrário da segregação. É a dinâmica local que faz com que os moradores dos diferentes estratos sociais consigam conviver pacificamente e possibilita principalmente a convivência com a “ralé” que mora no bairro, cujo discurso do senso comum presente em nossas cabeças e veiculado intensamente nas grandes mídias julga ser uma grande ameaça à “ordem pública”: “(...)fator que perdura até nossos dias é que o medo dos escravistas da ‘rebelião negra’ se transforma e é substituído pela definição do negro como ‘inimigo da ordem’. Sendo a ‘ordem’ percebida já no seu sentido moderno de significar decoro, respeito à propriedade e segurança.” (SOUZA, 2017, p. 78)
O medo das revoltas de escravos, que permanece no inconsciente social, agora de outra forma, sob o estigma do assalto, da lesão à propriedade privada, gera um pânico geral nas pessoas, que despovoam as ruas e encontram refúgio atrás de suas fortalezas pessoais, cada classe com a sua. Por trás do medo da violência há também a necessidade de se diferenciar das camadas sociais que estão abaixo, gerando a elitização do medo. Não basta estar seguro dentro da fortaleza, mas ela também tem de ser parecida com a fortaleza que as camadas acima construíram. O comércio informal ser malvisto socialmente é também uma consequência do marketing imobiliário que aproveita esse pressuposto já presente no inconsciente coletivo para atacar justamente as feridas sociais de todos:a tentativa de se diferenciar dos pobres, vistos socialmente como indignos. Esta visão de mundo contribui para que as pessoas sejam influenciadas a consumir o que o mercado imobiliário define como um bom produto. O mercado detém o poder de dizer o que é bom e o que é ruim para as cidades. A violência na cidade não só é lucrativa para o 96
mercado imobiliário, como para o mercado de segurança privada, como para o mercado automobilístico; este é também lucrativo para as construtoras de estradas, e construtoras de habitação e assim é o ciclo do dinheiro que produz cidades segregadas e perigosas. Cidades onde, “morar melhor, divertir-se melhor, onde melhor é sinônimo de mais. Aí está o que vem a ser, afinal, a proposta de viver ‘modernamente’’.96 Quanto mais um lugar se “valoriza”, mais a ralé que o habita é empurrada para outros bairros. E assim, todas as classes acima desta também vão sendo empurradas para fora dos “centros valorizados” conforme aumenta a elitização do lugar. Por isso, para um bairro se manter diverso, é fundamental a existência da ralé nos lugares, e de outras camadas de classes intermediárias. Quanto maior a diversidade de classes, maior a dinâmica urbana. A elitização na Jatiúca é percebida não só pelo processo de verticalização, substituindo casas existentes por prédios residenciais e/ou comerciais, mas pela mudança no padrão dos comércios. Ao tempo que o comércio local espontâneo popular existente é substituído por um comércio voltado para a classe média, surge uma nova onda espontânea de comércio “informal” local, os food trucks. Principal consequência disso é o aumento do fluxo de “estranhos” no bairro, durante todas as horas do dia e da noite. Isso gera valorização econômica e aumento da especulação imobiliária. “Os olhos” do mercado se voltaram para o bairro. A ameaça ou iminência da gentrificação e ao mesmo tempo em que esse aumento de “estranhos” ampliou o mercado consumidor do bairro e favoreceu o ambiente para que os moradores abrissem comércios, se beneficiando do movimento adicional de pessoas e possibilitando sua permanência no bairro através da geração de renda. Ao mesmo tempo em que esse aumento de desconhecidos é uma ameaça de expulsão, é também uma possibilidade de permanência através de geração de emprego e renda. A apropriação do espaço pela população local é o principal fator que impede a gentrificação. Para isso é necessário ter uma vida de bairro ativa. A existência em abundância dos comércios de bairro e o uso da rua são fundamentais para isso. A questão da padaria é sintomática e muito significativa na identificação do processo urbano da elitização do medo. O exemplo da Ferreti, a padaria 96
MELLO & VOGEL, 1983, p. 12.
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gourmetizada da Avenida Amélia Rosa, traduz o que essa pesquisa mostrou sobre como os moradores dos conjuntos pensam a Jatiúca. A padaria tem um detalhe que faz toda a diferença e contribui enormemente para o seu sucesso no bairro: a Ferreti tem essência de padaria de bairro, com estética de “espaço gourmet estilizado” Apesar da estética, do tipo de serviço e dos preços de “espaço gourmet” o atendimento é idêntico ao da padaria de bairro. O que significa dizer que os funcionários e funcionárias conhecem os clientes pelo nome, e vice-versa. Fofocas e notícias são trocadas em clima amistoso, e há um sinal de reconhecimento e gentileza no trato mútuo entre os frequentadores do estabelecimento.
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11. Perspectivas: para onde vamos? “Moradores de todos os grupos sociais argumentam que constroem muros e mudam hábitos a fim de se proteger do crime. Entretanto, os efeitos dessas estratégias de segurança vão muito além da garantia de proteção. Ao transformar a paisagem urbana, as estratégias de segurança dos cidadãos também afetam os padrões de circulação, trajetos diários, hábitos e gestos relacionados ao uso de ruas, do transporte público, de parques e de todos os espaços públicos. (...) A ideia de sair para um passeio a pé, de passar naturalmente por estranhos, o ato de passear em meio a uma multidão de pessoas anônimas, que simboliza a experiência moderna da cidade, estão todos comprometidos numa cidade de muros.” (CALDEIRA, 2000, p. 301)
O espaço da cidade é a materialização das relações sociais; ele expõe os conflitos e principalmente as desigualdades entre os grupos sociais. Assim, a desigualdade entre os grupos fica nua, exposta, clara e concreta no ambiente da cidade. Em formas construídas ou não. No abandono de certos espaços públicos. Nas diferentes condições de saneamento de áreas. Na ocupação de área de risco por construções precárias. Nos diferentes padrões construtivos das edificações. Na existência ou não de calçamento em ruas. Tanto os diferentes grupos sociais produzem e formatam os espaços para atender a seus interesses e necessidades, e com isso refletem sua condição (posição) social perante os outros grupos, como as consequências dos conflitos das relações entre os diferentes grupos sociais criam novos espaços. Esse processo fica evidente quando pensamos nas migrações intraurbanas na cidade, consequência do processo de espoliação da terra urbana, ou seja, a valorização econômica de certa área em detrimento de outra, o que leva os grupos dominantes a migrarem para o novo território “desejo”, pois estes têm condições deescolher onde morar, ou seja, dinheiro para migrar até o novo território valorizado, forçando outa migração, a dos pobres, dessa terra que foi valorizada. Ou seja, um grupo é expulso de um lugar por outro grupo, na dança das cadeiras da cidade. O grupo que expulsa reformata o lugar para atender suas demandas, e o grupo expulso cria outro território no espaço da cidade. “Assim, verifica-se o território como elemento fundamental na constituição da identidade cultural, uma vez que esta se dá em contraste com a diferença do outro. E a relação de poder está imbricada em um processo identitário e o território auxilia e objetiva tal processo.” (Faria & Passarelli, 2017, p. 6)
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Para mim, a “arquitetura-fortaleza” não só não é uma realidade inevitável como é também uma realidade reversível. As pessoas reconhecem que ruas vivas são mais seguras, e se elas pensam mais conscientemente sobre o seu próprio lugar na cidade, elas têm condições de escolher morar ou não em fortalezas segregacionistas. Não é uma realidade inevitável quando as pessoas percebem ser mais vantajoso e seguro morar em lugares vivos que têm relação direta com a rua. E quando elas entendem que a presença do diferente (pobre) é fundamental para a diversidade da qual ele se beneficiam diretamente, e que é a responsável e pela segurança e vitalidade urbana. Estar entre os seus traz vantagens, e é confortável. A questão é que as pessoas não enxergam duas opções reais de escolha sendo: 1)arquitetura-fortaleza; 2)cidades vivas; elas só enxergam a primeira opção, que é maciçamente vendida e adotada pelo mercado imobiliário e pelas elites.
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Essa discussão deve extrapolar os muros da universidade e da luta dos movimentos sociais por moradia digna. Temos de fazer propaganda, como eles fazem. Convencer ou sensibilizar as pessoas de que a ação delas contribui significativamente para a dinâmica das cidades; e que suas escolhas e comportamentos na urbe afetam diretamente seu cotidiano e sua qualidade de vida. Que eles vendem violência disfarçada de sonho da ascensão social. Que diminuir a desigualdade social beneficia a todos e todas. Não é uma questão de seu bonzinho ou de ter empatia pela dor do outro. É pela sua própria qualidade de vida e convivência urbana . Por um uso mais frutífero dos espaços e pelas vantagens e oportunidades que a cidade pode oferecer. “habitantes de todos os grupos sociais têm uma sensação de exclusão e restrição”98 (p. 174) A perspectiva imediata para a Jatiúca dos Conjuntos é o desequilíbrio da vitalidade. A elitização e “gourmetização” constante da área tendem a valorizá-la cada vez mais, gerando a gentrificação da população original. Essa população já está se desfazendo de seus imóveis, especialmente nas áreas próximas à praia e ao longo da Avenida (ver figura XX). A próxima geração – a minha – já não consegue alugar ou comprar um primeiro imóvel na área. A possibilidade de permanecer no bairro seria migrar para uma área menos valorizada entro da própria
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Caldeira, 2000. Caldeia, 2000, p. 174.
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Jatiúca, ou seja, a Jatiúca Velha. Isso gera o processo de expulsão da população orginal da Jatiúca Velha.
Figura 50: Diagrama da elitização no bairro de Jatiúca, 2018. Fonte: Material produzido pela autora.
Com a saída dos moradores originais e a elitização, o bairro perde as raízes da informalidade e sociabilidade urbanas, perde, portanto, a diversidade, geradora da vitalidade atual. Isso é prejudicial não só pela É importante que se criem espaços de discussão dessas dinâmicas urbanas do cotidiano e do engajamento político. Nesse sentido, o desenvolvimento do diálogo em uma comunicação não-violenta é fundamental para a construção do senso de cidadania e pertencimento por parte dos moradores das questões urbanas que os rodeiam, transformando assim a realidade local. Nós, enquanto arquitetos, podemos (e devemos) fornecer não só informação sobre a cidade real, mas formas diferentes de se discutir o cotidiano. Durante essa pesquisa, descobri que todos sabem o que é uma boa cidade. Mas quem não vive em uma tem dificuldade de acreditar em sua concretude. A tendência é considerar que não é uma possibilidade real. Vive-se com a sensação de insegurança constante, e de que essa insegurança não está relacionada a um lugar específico, mas à cidade em geral. É o pensamento muito presente de que ‘em todos os lugares há violência, portanto todos os lugares são iguais’. Essa desesperança geral na experiência urbana faz com que as pessoas se tranquem 101
dentro de carros e condomínios fechados, é muito comum no discurso de moradores de cidades grandes brasileiras. Quem anda a pé no dia a dia, para acessar lazer, serviços, resolver problemas, comer, fazer compras, etc., vive numa boa cidade, e sabe disso.99O discurso dos entrevistados evidencia o que os pensadores da cidade vêm dizendo desde a década de 1960: é preciso andar a pé.
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Gehl, 2004 e Jacobs, 2011.
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