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cursos d’água linha do trem rota de carroceiros distribuição de água áreas verdes
VISITAS louise ganz
Belo Horizonte JA.CA 2016
DO ESPAÇO HABITADO 3 LEITURAS 15 Elisa Campos_visitas: operando ecologias e a imaginação crítica 16
Frederico Canuto_urbanismo de guerra: silêncios 21
Janaina de Paula_a memória das águas 25
PINTURAS 27 COM OS MORADORES 47
ISBN 978-85-64194-11-3
DO ESPAÇO HABITADO
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Percorrendo um pequeno trecho nas margens do ribeirão Arrudas, entre a avenida Amazonas e o Anel Rodoviário, encontramos fazendas leiteiras, cooperativas agrícolas, nascentes limpas, pequenos bosques, recantos para repousar, diversos sistemas de produção de energias renováveis, terras de propriedade coletiva para experimentação de novos modos de morar, além do ribeirão limpo, despoluído e descanalizado, envolto por praias e vegetação densa, onde os moradores do entorno voltaram a pescar e nadar. Quando Belo Horizonte foi projetada, no final do século XIX, os cursos d’água que estariam na
zona urbana foram totalmente ignorados. Nos anos 20, deu-se início à retificação e canalização dos mesmos, pois naquela época acreditavam que canalizá-los resolveria os problemas de enchentes, epidemias e desmoronamentos. E a partir dos anos 50, muitos desses canais já eram sinônimos de redes de esgoto e foram fechados, visando aumentar as vias para o trânsito de automóveis. Mas, finalmente, após árduos esforços e mudanças de mentalidade, carros são raramente utilizados e não são necessárias mais grandes avenidas; os córregos que correm para o Arrudas e o próprio ribeirão foram reinseridos na paisagem da cidade. 1
Aqui já foi uma fazenda de um proprietário só. Hoje, esta é uma cooperativa com a função de compartilhar o uso da terra entre diversas pessoas interessadas no plantio de hortaliças e flores. Dividida em pequenos lotes de 5 metros de largura por 30 metros de comprimento, as áreas são usadas por moradores da região e cada um tem o direito de uso por um período definido na cooperativa. Nas extremidades das faixas de terra ficam armazenados materiais e sementes, além dos pontos de venda do que é produzido no local. 2
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Motivados por Lígia, os moradores da rua Recreio fizeram um projeto pioneiro no bairro. Como a rua desembocava no ribeirão por uma escadaria, não havia movimento de carros. Eles decidiram quebrar e retirar o asfalto ao longo daquele quarteirão e calçar parte da rua com bloquete, manter algumas partes com terra, outras com areia ou com plantio de ervas medicinais e comestíveis, formando pequenos jardins nutritivos.
Em alguns trechos plantaram árvores para sombrear e colocaram mesas e bancos. Na rua Camanducaia e no trecho final da rua Lagoa da Prata, ambas paralelas à rua Recreio, fizeram o mesmo projeto. Uma moradora especialista em farmácia e nas funções medicinais das ervas mantém uma farmacinha caseira onde produz remédios e cosméticos. Os vizinhos plantam e cuidam das ervas. 3
Os carroceiros, em oposição à explosão de automóveis que havia nas ruas da cidade, se firmaram nesta região. Hoje eles são em número muito maior, já que seu serviço, assim como o das bicicletas de carga, é extremamente necessário. Eles fazem a rota para a coleta do lixo orgânico nas casas e pequenas fábricas e levam para as áreas de compostagem - um método que transforma alguns tipos de lixo orgânico em adubo para a agricultura. A compostagem é algo fundamental hoje, já que muitas das terras no entorno do ribeirão foram destinadas novamente a funções como plantio, criação de animais, cooperativas, praças e bosques. 4
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Hoje raramente a energia vem de hidroelétricas. Após a crise hídrica pela qual passou o Brasil, a dependência da água como fonte de energia acabou; ela foi substituída por outras formas de energia limpa, como a solar, a eólica e o biodigestor. A paisagem mudou muito nesses últimos anos: vemos esses sistemas em quase todas as casas, tanto para o aquecimento da água quanto para a produção de energia. A autoprodução de energia pelas próprias
comunidades tornou o morador independente das concessionárias e ninguém mais paga contas altas. É necessário fazer manutenções, mas com o passar do tempo todos se adaptaram e se acostumaram com isso. “O sol brilhou para nós e só tem nos trazido coisa boa. Hoje somos produtores de energia solar”, afirma, orgulhosa, a dona de casa Antônia. “Quanto maior a incidência solar, maior geração, e temos agora uma microusina coletiva.” 5
Belanísia pensou muito antes de comprar o terreno onde construiu sua casa, pois a terra estava constantemente alagada devido à presença de uma nascente no local - a água brota no barranco e é vista por Belanísia como um tesouro. Ela decidiu comprar o terreno e drenar a água, direcionando-a para um reservatório e para as caixas d’água de sua casa e de vários vizinhos. A água, que é bastante limpa, é usada em piscinas, num lava a jato e chega em mais de 10 casas.
Um grupo de moradores, motivado pela existência da água, resolveu construir uma piscina para o uso coletivo, além de pequenos canais a céu aberto para criar um sistema onde animais podem beber água. Na vizinhança há um terreno plano e aberto para o ribeirão Arrudas, antes usado na coleta de lixo - ali ficavam as caçambas, as carroças que recolhiam lixo e os cavalos. Os barrancos foram plantados com espécies de capins; as canaletas e a piscina
usam a água da nascente. O local, antes árido e seco, se transformou em uma área fresca. As caçambas foram retiradas pois os locais de compostagem, para onde os carroceiros levam o lixo, agora são espalhados pela região. As carroças e os cavalos, que pastam nas áreas cobertas por capim, permanecem neste local. Aqui, portanto, a água é o motivo da organização do espaço, com os canais e a piscina. 6
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O bosque com árvores centenárias é a área mais bonita das margens do ribeirão. Abandonado por sua proprietária, o local foi aos poucos sendo ocupado por grupos de pessoas sem moradia. Para que o local não perdesse a beleza vegetal e a exuberância das árvores, um plano de ocupação foi proposto: para organizar a implantação das novas casas, definiu-se áreas para edificar e áreas a serem mantidas verdes e fossas sépticas, de redes de água e de energia foram instaladas.
Cada morador que ali vier a construir poderá ocupar como quiser o setor edificável, seja com barracos de papelão, madeira, tijolos ou outros. Assim, hoje, estas espécies de plataforma em rede estão aos poucos se estruturando e o grupo de moradores cria suas próprias regras de vizinhança e de ocupação do solo. Todos entenderam que nada resolve garantir apenas uma casa, é preciso garantir também equipamentos coletivos, serviços básicos, direitos fundamentais e um ambiente saudável. 7
No início, havia apenas mangueiras no pomar. Nesse trecho do ribeirão estava a área mais sombreada, onde carroceiros paravam seus cavalos para descansar - provavelmente, um dia foi parada de tropeiros. Mas agora existem muitas árvores frutíferas de espécies que possibilitam colheitas em épocas diferentes do ano, misturadas espécies nativas e não nativas, que também dão frutos apreciados por aves e animais. São mangueiras, amoreiras, laranjeiras, limoeiros, mamoeiros, bananeiras, goiabeira,
jaboticabeira, cajueiro, pitangueira, pequizeiro, dentre outras. O equilíbrio ecológico é baseado na diversidade e muitas vezes uma espécie vegetal cujo fruto não é comestível, como os de angicos e jacarandás, serve de abrigo às aves, bem como atrai, com suas flores e sementes, uma multidão de insetos que naturalmente serve de alimento aos pássaros e mamíferos. Para o cuidado das árvores é necessária a poda, a adubação e a colheita, trabalho realizado por grupos responsáveis pelo pomar, em sistema de cooperativa. 8
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O córrego Cercadinho é muito bonito, com suas curvas e áreas sombreadas. Foram décadas com o lixo acumulando e mais tantas para a limpeza, a interrupção do esgoto despejado sem tratamento e os moradores deixarem de jogar lixo. Este córrego nunca foi canalizado e haviam vários pontos onde ainda existiam terras devolutas e áreas não ocupadas, o que facilitou o trabalho de revitalização, a criação de bacias de contenção e a ampliação do entorno verde. No local onde ele deságua no ribeirão Arrudas sempre existiu um grande terreno onde hoje está a fazenda leiteira. Em alguns pontos ao longo do córrego há locais de venda do leite e de esterco. O sistema das leiterias é semelhante ao das décadas de 1950 e 60: cada pessoa traz seu vasilhame para buscar o leite.
O esterco produzido é mais uma fonte de adubo para todas as áreas de plantio da região, incluindo os ervanários das ruas Lagoa da Prata, Camanducaia e Recreio e a cooperativa do outro lado do ribeirão. Os carroceiros fazem o transporte para os locais de destino do esterco. 9
Na década de 1930 a mãe de Antônia chegou para morar nesta região e ocupar uma área nas margens do ribeirão. Do barranco, as crianças pulavam dentro do rio para nadar e pescar. Posteriormente, o Arrudas foi retificado e distanciado de suas terras, mas a casa permaneceu dentro de um pequeno bosque, uma espécie de oásis nas margens do ribeirão já árido, sujo e canalizado. Durante uma década, várias praças foram feitas nas margens asfaltadas e permaneceram mortas e sem uso.
Hoje, com o ribeirão voltando ao seu leito original, sem canalização e limpo, a casa de Antônia expandiu-se para além de seus muros, pois a praça que ali havia foi transformada pelos moradores em área de uso intenso. Moradores dos condomínios e das casas que estão diante da praça decidiram intensificar o seu uso, varrendo, plantando, cuidando dos brinquedos, promovendo jogos, encontros, passeios, caminhadas, e assim organizando, de modo coletivo, o espaço da praça. 10
LEITURAS
VISITAS: operando ecologias e a imaginação crítica Elisa Campos
Visitar alguém é uma prática que parece relacionar-se a outra época distante da nossa, ou a outro contexto diferente do das grandes cidades. Como fazer caber, num cotidiano preenchido por compromissos inadiáveis e exigências de sobrevivência e satisfações imediatas, o costume de dedicar um tempo a alguém para conversar e compartilhar da delicadeza de um momento de encontro? Visitar exige tempo e, normalmente, uma abertura para o outro, uma escuta, sendo também a constituição mesma de um tempo-espaço em suspensão, preservado, protegido da rotina que nos engole numa inércia utilitária e necessariamente produtiva. Um projeto de arte proposto sobretudo a partir de visitas (e vejam que está no plural!) nos coloca, portanto, diante de outra relação com o tempo e com o outro, e, assim como os protagonistas desse projeto, somos convocados para o encontro, a troca e a reflexão crítica sobre nossa época. No caso, as visitas foram a estratégia encontrada por Louise Ganz para criar uma aproximação com a comunidade do bairro Salgado Filho, região da cidade escolhida para trabalhar diante de três motivações principais: a presença de recursos hídricos na região, sendo um tema de interesse recorrente nas pesquisas da artista e trazendo uma riqueza de questões para o desenvolvimento da proposta; a familiaridade já usufruída com o bairro por já tê-lo frequentado antes; e, por fim, o fato do Centro Cultural Salgado Filho, administrado pela Fundação Municipal de Cultura, ser dos poucos equipamentos de cultura instalados em bairros periféricos da cidade que possuem uma galeria para exposições artísticas. A presença do rio tem uma importância crucial na proposta e, de alguma forma, conecta-se com um trabalho anterior realizado pelo Thislandyourland, parceria entre Louise e Ines Linke: Percurso – Distribuição de Água, realizado em 2007. O trabalho se constituiu como uma ação em que a dupla realizou uma caminhada sobre a trajetória
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do cano de distribuição que leva água do Sistema Rio das Velhas à região metropolitana de Belo Horizonte. Localizando várias espécies vegetais nesse trajeto, foram aos poucos circundando-as com tecido branco, formando manchas espalhadas e contrastantes com o verde da vegetação. Tal percurso, posteriormente apresentado a partir de seus registros fotográficos em exposição no Palácio das Artes (Belo Horizonte), naquele momento chamava a atenção para a paisagem, mas também para os recursos hídricos que abastecem as cidades e que permanecem ocultados em suas instalações subterrâneas, fazendo com que nossa percepção deixe de ser afetada, nos mantendo assim anestesiados quanto à possível crítica sobre suas inserções artificiais e de duvidável arquitetura na paisagem, além de nos manter cegos para a exploração violenta e constante que fazemos da natureza. Tal tema, resgatado agora no projeto Visitas, não poderia ser mais pertinente. A presença do ribeirão Arrudas como parte integrante da paisagem do bairro Salgado Filho já foi fundamental para fertilizar o solo, conferir vida, alimento, equilíbrio ao ecossistema e lazer à comunidade, mas em nome do “progresso” foi canalizado a partir de 1997, fazendo com que hoje seu testemunho seja expresso somente através dos odores fétidos que emanam dos bueiros por sua água contaminada. Enquanto vários países se mobilizam em direção ao resgate e restauração de seus rios, em Belo Horizonte o quadro atual no caso do ribeirão é esse: apenas 3,3 dos seus 47 quilômetros estão sem canalização, sendo 46 quilômetros de água poluída, incluindo naturalmente o trecho que passa pelo Bairro Salgado Filho. Num momento em que vivemos um dos mais terríveis desastres ecológicos de nosso país, com a desoladora lama de rejeitos da exploração de minério em nosso Estado atravessando e devastando 650 quilômetros do Rio Doce e adentrando por volta de 10 quilômetros de mar no litoral capixaba, todo e qualquer foco que se dê a essa questão deve ser valorizado, a fim de nos sensibilizar e mobilizar contra o sistemático comprometimento de nossos recursos naturais, em especial do rios, ribeirões e córregos que irrigam e dão vida ao planeta. Os moradores mais antigos do Salgado Filho foram, como mencionei antes, os protagonistas desse projeto realizado por Louise, e é
através deles que compreendemos o histórico dessa região, desde sua primeira ocupação, nos anos 40. Convidados pela artista a falarem sobre suas histórias no bairro (registros disponíveis no livro, na exposição e no site visitassalgadofilho.wordpress.com), em relatos e através de imagens que generosamente cederam em empréstimo à artista, nos dão acesso ao momento anterior à canalização do rio em que pescavam à sua margem, banhavam-se em suas águas cristalinas, sendo cenário recorrente das brincadeiras infantis. Recriamos em nosso imaginário um local ainda com resquícios rurais, com fazenda de gado leiteiro, plantio de hortaliças, encontros e festas animadas, futebol e conversas na calçada. Ajudados ainda pelas telas de Louise apresentadas na galeria do Centro Cultural, onde vemos reinterpretadas, através de uma sensível combinação gráfica e pictórica, as fotos dos álbuns de família de algumas das pessoas visitadas, nos percebemos diante dessa realidade perdida porém guardada com carinho na memória de Antônia, Angelina, Belanísia e tantos outros. E é também a partir desses relatos e imagens que Louise nos apresenta mais outro registro importante dessa vivência junto à comunidade do Salgado Filho, dessa vez traduzida através de suas utopias do espaço habitado. Construindo imagens fictícias através de fotomontagem digital, vemos uma projeção possível de futuro que se espelha no passado, em colagens bem humoradas que reinserem o que foi perdido com o enriquecimento de um olhar contemporâneo sobre os recursos naturais, tecnológicos e humanos à nossa disposição, trazendo a atualidade crítica de sua reflexão e debate: compartilhamento da água em espaços públicos; criação de gado leiteiro nas margens de córregos despoluídos; introdução de tecnologias para o aproveitamento da energia solar, eólica e o biodigestor; coleta seletiva e aproveitamento do lixo orgânico para compostagem; ampliação e cuidado das áreas verdes, cultivo de hortaliças, ervas medicinais, pomares e a implementação de uma cooperativa no bairro; jardins apropriados pela comunidade como espaços de lazer com jogos e atividades para crianças. Com isso vemos materializar-se um projeto possível de eco-bairro, tão pertinente nas discussões sobre o presente e o futuro das cidades no mundo todo, extremamente promissor, mas ainda distante de nossas práticas sociais locais.
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Por esse motivo, cabe refletir sobre a articulação criada por Louise no projeto Visitas, com todas as suas camadas: escuta, revelação e valorização do doméstico como construtor da própria história, provocação e agenciamento das relações sociais na comunidade, produção de imagens e construção de ficções que denunciam a realidade... isso para apontar somente algumas. Diante dessa multiplicidade de situações nos aproximamos e vivemos uma ideia a qual deveríamos nos dedicar mais que é a de Ecossistema, trabalhado aqui a partir do campo da arte. Torna-se esclarecedor o que Boaventura de Souza Santos desenvolve em sua obra Gramática do tempo (2010) apontando “cinco ecologias” possíveis para enfrentar as teorias hegemônicas de globalização, capitalismo neo-liberal e cientificismo ocidental que balizam a vida política, ética e econômica contemporânea, sendo estas apontadas pelo sociólogo como “monoculturas” que devem ser combatidas. Essa abordagem apresenta cinco ecologias, designadas pelo autor como: ecologia de saberes, das temporalidades, dos reconhecimentos, das escalas de pensamento e ação, e das produções e distribuições sociais, lembrado que conceitua como ecologia “a prática de agregação da diversidade pela promoção de interacções sustentáveis entre entidades parciais e heterogêneas” (SANTOS, 2010: 105). Somos assim convidados a refletir sobre a diversidade e sobre novas lógicas de implementação de micropolíticas como processos com um potencial transformador. A ecologia de saberes reconhece e valoriza a contraposição ao rigor científico a partir da identificação, voz e importância de outros saberes com seus respectivos critérios, operando nas práticas sociais. A ecologia das temporalidades evidencia que a lógica do tempo linear é apenas uma entre as múltiplas concepções de tempo, reconhecendo assim que as práticas relativas às diferentes culturas se baseiam em regras e códigos temporais também distintos. A ecologia dos reconhecimentos busca novas articulações entre os princípios de igualdade e diferença, criando a possibilidade de “reconhecimentos recíprocos” e um exercício de compreensão do outro que se contrapõe à lógica dos sistemas hierárquicos impostos social e economicamente. A ecologia trans-escalar aponta para a recuperação de aspirações universais apagadas e questões locais/globais alternativas e contra -hegemônicas, que, segundo Boaventura Souza Santos, podem ser
experimentadas através de uma “imaginação cartográfica”, ao lidar com mapas cognitivos que operem em diferentes escalas e articulações entre o local e o global. Por fim, a ecologia das produtividades propõe a recuperação e a valorização das lógicas alternativas de produção e organização econômica, através por exemplo das cooperativas operárias, da economia solidária e das empresas autogeridas. Tais “ecologias” apontadas parecem ser de alguma forma tocadas dentro das diferentes articulações propostas por Louise em Visitas e, no seu caso, atuam sobre a estrutura mesma de uma imaginação crítica, expressiva e aberta à diversidade e às formulações possíveis de pertencimento, sobretudo ao situar-se no próprio lugar nevrálgico das relações sociais, ou seja, no espaço da comunidade e ao valer-se da arte como elemento integrador e mobilizador. Colocando em perspectiva a trajetória de Louise Ganz, desde sua formação em arquitetura e artes visuais e seu interesse pela paisagem urbana e pelas relações construídas com diferentes comunidades nas múltiplas ações já realizadas, vejo esse projeto como um momento de admirável integração de todos esses domínios a que tem se dedicado, enriquecidos ainda por sua prática pictórica, então resgatada de forma potente e sensível. De alguma forma a diversidade de sua formação se reflete em Visitas e possibilita nos levar por essa teia de relações, ações e reflexões que emanam desse contexto urbano específico iluminando questões extremamente críticas da atualidade global.
Elisa Campos é artista plástica, professora e pesquisadora da EBA UFMG.
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Urbanismo de guerra: silêncios Frederico Canuto
Walter Benjamin escreve em seu texto Experiência e Pobreza sobre a volta de soldados dos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial numa Europa esfacelada. Entre as trincheiras, resguardando posições, e anos depois, de volta à vida civil, o filósofo alemão percebe o silêncio ou a falta de narrativas dos soldados em suas digressões sobre suas vivências na guerra. Vivências, com certeza, densas e marcantes, mas incapazes de produzir experiências de fato.
“Não, está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa geração que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história. Talvez isso não seja tão estranho como parece. Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de guerra que inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não continham experiências transmissíveis de boca em boca. Não, o fenômeno não é estranho. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano.” Experiências não produzidas por estes corpos miniaturizados pela escala do progresso. Estas experiências desmoralizadas não significaram produzir uma nova narrativa que exponha e produza um sentido a partir de uma vivência, não se transformaram em conheci-
mento apreendido, seja testemunhal, histórico, social. Tal percepção do filósofo se dá justamente porque quer compreender o que resta de tais vivências, quais os rastros que permaneceram como lições históricas para a sociedade que vem depois. Tal colocação acima é posta porque de alguma forma remete a uma guerra silenciosa travada nas cidades desde a Modernidade e a uma experiência estética que tal evento cotidiano é capaz de engendrar nos corpos. Uma guerra que produz uma mudez, sendo que esta acomete as cidades justamente para produzi-las como espaço do silêncio ou da falta de sentido ou do sentido previamente dado: a contínua destruição e reconstrução do tecido urbano, solapando memórias, destruindo vivências que se perdem pela marcha inexpugnável do tempo histórico. Na geografia das cidades e em sua relação com a morfologia de rios, montanhas e na geobiologia dos biomas, o que se percebe é um movimento de progresso que age como um bulldozer: destrói a frente tudo que está lá, redesenhando acrítica e utilitariamente o território como espaço conquistado, lógico, racional e aberto ao futuro, sempre. Belo Horizonte, desde seu projeto e posterior construção pela comissão construtora capitaneada pelo engenheiro Aarão Reis em fins do século XIX, foi definida como cidade que vence a natureza, vence rios e montanhas para construir uma paisagem da racionalidade e da Modernidade. Montanhas foram cortadas ao longo do século XX para dar lugar a grandes avenidas que servem para alargar seus limites e metropolizar seu crescimento, como se pode ver nas fotografias da avenida Amazonas tiradas pelo fotógrafo mineiro Wilson Batista durante sua construção. Ecossistemas dilacerados e substituídos por artifícios novos que imitam ou produzem uma nova natureza como o Parque Municipal de Belo Horizonte ou como o Parque Ecológico da Pampulha, erguido sobre uma área assoreada da lagoa da Pampulha. Animais expulsos de seus velhos e novos habitats como ocorre com as capivaras moradoras do entorno da lagoa da Pampulha e que foram enjauladas a mando da Secretaria de Meio Ambiente. Ao tampar seus cursos d’água, transformando-os em galerias subterrâneas ou em fundos invisíveis da cidade que numa concepção higienista de urbanismo significa pólo atrator de doenças e insalubridade, além de ser objeto que traz fealdade à paisagem modernista, a natureza torna-se exílio condominial de luxo.
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A Guerra contra as águas produziu fenômeno próximo ao da Guerra segundo Walter Benjamin. Pessoas lembram-se de passagens em sua infância de momentos de prazer ou lazer relacionados à água mas não conseguem construir nenhuma experiência relacionada à mesma porque o fechamento do rio ou sua supressão se dá por motivos técnicos tão distantes do cotidiano e com justificativas baseadas numa técnica intransponível e politicamente manipulada que narrativas construídas são sempre nostálgicas e pouco reveladoras de um olhar mais crítico em relação à produção desta Modernidade. As vivências deste processo de isolamento e desaparecimento das águas na cidade são apenas testemunhos sentimentais, incapazes de produzir novos sentidos. O esforço de escritores sobre suas vivências sobre a guerra e as marcas deixadas pela mesma a fim de construir uma experiência da guerra não é apenas de produção de uma imagem de mundo, mas de fundação de uma linguagem e de um povo segundo uma outra lógica que não uma racionalista. As guerras, como dirá o filósofo alemão Theodor Adorno, são prova da falência do projeto racionalista moderno justamente porque são consequência de uma racionalidade que serve como motivo às maiores atrocidades cometidas em guerras, como, por exemplo, a pensadora alemã Hannah Arendt coloca em Eichmann em Jerusalem ao discorrer e traçar um quadro da banalidade do mal por detrás da práxis racionalista de Eichmann, oficial alemão responsável pelo planejamento e gestão de campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. O esforço da escuta destes que voltam da guerra está então não em uma vontade arqueológica ou arquivística de catalogação das diversas vivências, mas de produção e exposição de novas epistemologias baseadas não numa funcionalidade, mas em afetos, em histórias cotidianas, em lógicas outras. Sentar-se à mesa das pessoas e resgatar falas e eventos que há muito já passaram e que, em ultima instância, já estão deformados ou reenformados pelo tempo é justamente a tarefa: resgatar para produzir experiências que nada mais são que ficções que buscam construir novos mundos. Ao ver tal trabalho não-arqueológico, porque não se está em busca de uma origem ou de um discurso pré-existente sobre este mundo,
erra-se por outros mundos vividos onde a água não é apenas entidade controlada e que passa por tratamentos e mecanismos para jorrar na pressão correta da torneira residencial ou do chuveiro do banheiro e nem de forma selvagem para acionar turbinas nas usinas hidrelétricas. A água não é recurso ou produto, ela não pertence a ninguém. Se ela tem vida própria, ela é então alguém que tem direito à vida tal como qualquer um. Repensar as relações humanas e as águas para além do utilitarismo e mais próximo da afetividade é reescrever novas experiências, outros tipos mais próximos a outros recortes epistemológicos. Não se trata de pensar rios e águas para usufruto humano, mas como produtores em relação de novos regimes de afetividade que possam ser construídos com aquilo que é mais próximo.
Frederico Canuto é arquiteto / urbanista, professor e pesquisador da EA UFMG.
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A memória das águas Janaina de Paula (...) daqui de cima, não se vê nada; há quem diga: “Está lá embaixo” e é preciso acreditar; os lugares são desertos. À noite, encostando o ouvido no solo, às vezes se ouve uma porta que bate. Ítalo Calvino Sigo o fio de água que corre por entre as imagens – escritas e desenhadas – de Louise Ganz. Sigo seus passos, seu olhar atento, a delicadeza de quem visita um espaço margeando o impossível de uma memória que se perde para que, numa narrativa distante, num fio de conversa lançado adiante, possa ser recuperada. E o que se recupera dessa memória senão seu próprio esquecimento? No movimento insistente de apresentar-se nas pausas, nos intervalos, nos brancos que recobrem a narrativa, somos chamados a inventar, nesse lugar mesmo de uma memória que nos abandona, uma escrita que nos abrigue. Eis o seu passo. A invenção de um espaço, marcado pelo fio das águas que escorrem da narrativa de cada um dos moradores desse lugar existente e inexistente, real e imaginário, pertencente ao domínio urbano da cidade, mas também à superfície dos sonhos daqueles que, habitando um lugar, desejam a sua poética. Talvez tenha sido exatamente isso, a poética de um espaço, que Louise tenha recolhido das narrativas tecidas pelos moradores do Bairro Salgado Filho. Como Ítalo Calvino, em As cidades invisíveis, ela experimenta a cidade ampliando as possibilidades de “exprimir a tensão entre a racionalidade geométrica e o emaranhado das existências humanas”1. Como um visitante “que se demora diante de uma paisagem”2 , seguindo a expansão da árvore que risca com suas curvas um céu estendido no chão, cria uma outra geografia para captar o mistério guardado nas
1. CALVINO. As cidades invisíveis. 2. idem.
aparências simples e nas imagens cotidianas. No fio da memória de um rio que não existe mais, bordando as margens de um nome vegetal – Arrudas – e recortando as rotas dos silêncios e das sombras, Louise permite, com o seu traço, que o fluxo do tempo não se detenha. Tudo está ali nos desenhos em sépia, no assombreado das formas, na imagem perdida no fundo de uma cena, na brincadeira das crianças, na roupa vermelha esquecida no varal, na mudez dos objetos que habitam as casas, na dureza inquebrantável das coisas inanimadas, como se a passagem do tempo estivesse escrita no gesto de uma pintura que incorpora o orgânico. E, no entanto, nada está ali, a não ser como memória vertida em água. “A arte supõe então a coragem”3, escreve Silvina Rodrigues Lopes no prefácio à tradução do poema de Holderlin. Coragem de buscar as formas justas que permitam traçar uma barreira móvel e delicada entre o interior e o exterior, a natureza e o mundo, o contínuo e o descontínuo dos espaços, seguindo a passagem vertiginosa dos tempos que se “desenrolam entre passado e futuro, sem oscilação de um extremo ao outro, sem repouso”4. “A arte supõe então a coragem”, para que o silêncio da natureza não emudeça, tornando-se “só agregado controlável ou só ameaça”5, e as vidas não desapareçam face à imensidão que nos rodeia. A arte supõe a coragem de fazer existir o indisponível, o inútil, o imprevisível, o nome que convoca o desconhecido. Eis a “responsabilidade da forma”6, trazida por Louise Ganz, que salvaguarda na cidade um lugar da memória dessas águas e nos permite habitar o mundo escutando o que nele resta das sombras, dos desertos, dos sons e das ausências.
3. LOPES. Pelo infinito. p. 8. 4. GENET. O ateliê de Giacometti. p. 48. 5. LOPES. Pelo infinito. p. 8. 6. BARTHES. Aula, p. 17.
Janaina de Paula é psicanalista, professora e pesquisadora Capes/PNPD na Letras UFMG.
PINTURAS
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COM OS MORADORES
angelina Louise: Fala um pouco sobre sua vida aqui. Angelina: Meu pai nasceu onde é hoje o Hospital André Luís. Ali que minha avó morava, ele foi criado ali. Minha mãe era de Ponte Nova mas essa Ponte Nova aqui, perto de Betim, entre Betim e Esmeraldas, não sei se você já ouviu falar, na beirinha do Rio Paraopeba. Mamãe nasceu e foi criada lá. Aí papai casou com ela e eles veio pra cá. E aí nós tudo nascemo já aqui, nossa casa antiga era aqui mais embaixo, mais perto do rio, o Arrudas. E aí foi onde nós tudo nascemo. Uma família de onze irmãos. O mais velho já é falecido, Compadre Manoel; depois é o Antônio, que nós não chegamo a conhecer; depois, abaixo dele, é a Ana; abaixo da Ana, Maria; abaixo da Maria, eu; abaixo de mim, Ezaltino; abaixo de Ezaltino, Anelita; abaixo de Anelita, Paulino; abaixo de Paulino, Brasilina; abaixo de Brasilina, as caçulas, Leonilsa e Leonilde. Uma delas já falecida e a outra tá ainda aí. E é até solteira. A casinha nossa era mesmo na beirinha do córrego, depois que veio pra cima, era o rio onde nós tudo lavava roupa, vasilha, pescava. E aqui do outro lado era o Mato da Lenha, depois Salgado Filho. Papai mexia com tropa, com cargueiro. Comprava a lenha, pegava lenha, e punha nós pra vender na Nova Suiça,
no Calafate, no Prado. Nós andava por aí afora tudo. E aí quando a gente ia de lá prá cá, a única casa que tinha era a nossa e a do tio Francisco. Ali na frente e já lá pra baixo uma cunhada de mamãe. E era só umas quatro casas desse lado aqui. Do outro lado era só mato. Quando era pra fazer o Salgado Filho, nós é que derrubou a lenha. O papai comprava na mão das pessoas. E do lado de cá tinha os trilhos, e a gente ia seguindo pra ir na missa, seis horas da manhã, e depois voltava tudo nos trilhos. A missa era com o antigo padre, acho que era alemão. Meu tio trabalhava pra ele e tinha uma charrete pra conduzir ele pros lugares. Ali mais pra frente, do outro lado, era uma fazenda de criação de gado, tirava leite pra vender. A única fazenda nesse meio. Esse pedaço nosso era chamado de “O povo do cercado”. Já do outro lado a família dos Cândido, onde é o André Luís. No rumo que a Norma mora pra cima era Vargem do Felício, hoje Betânia, que era do pessoal dos Gomes. Tinha o Francisco, o Manoel, o Zé Gomes, e a esposa do Francisco, a Dona Chica. Lá onde nós falava Várzea era só plantação de hortaliça. Às vezes nós ia lá trabalhar na roça. Aí já era a família dos Alves, ainda tem muitos deles. Eles mexiam só com lavoura. Nós ia cedo, e plantava de tudo: repolho, tomate, esses trem… Onde hoje é Bonsucesso, veio uns japoneses, uma famíla de japoneses, e a gente trabalhava pra eles também. Era só
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plantação de horta. E chegava fim de semana e eles levavam pro Mercado. Depois que nós tiramo as lenha do outro lado que veio as casas populares. De certa altura pra cá, no rumo da igreja, do lado baixo, onde é o asilo, era uma igrejinha pequenininha, uma capelinha. Empareado com ela o asilo dos idosos. Ali a gente ia fazer visita pra eles. Ali onde era o grupo não tinha nada. Depois de eu casada, aí construíram o colégio municipal, e meus meninos estudaram lá. Tinha umas poucas casinhas, o pessoal falava Vila Velha. Logo que derrubou a mata veio gente invadir, na beira do córrego. Hoje fala favela, mas naquele tempo a gente nem sabia o que era favela. Era vilazinha. Quando começou a construção das casas populares eu era solteira. As minhas duas irmãs mais velhas começaram a namorar rapazes que veio trabalhar na construção. A Ana, que é a irmã mais velha, casou. O rapaz era de Diamantina. E a outra, a Maria, quando inaugurou as casas ela casou com um vigia. Ela até morou numa das primeiras casinha popular. Aí foi povoando, aqui na nossa parte já tinha mais casa, mas mesmo assim era muito pouco. Essa parte aqui foi doada pelo pessoal dos Alves pro meu avô. Ali onde era a casa de minha avó, no rumo, tinha uma mina d’água, onde hoje nós atravessa, naquela rua embaixo. Nós lavava roupa, panhava água pra beber. Era uma bica uma beleza, onde é a igreja Nossa Senhora da Conceição.
Até ainda pouco tempo a água caía no boeiro na porta da igreja. Uma beleza, a água. Os que moravam ali perto usavam essa água, diz que ela tá enterrada ali. E do lado de baixo do André Luís ainda tem uns arvoredos, um terreno grande. Ali era uma chácara. Hoje não sei nem quem é o dono. Acabou a casona que tinha ali, muito bonita. Papai mexia com animais, ele subia, atravessava a linha do trem e soltava eles lá. Era dali a família do meu esposo. O lugar tinha o nome de Embaúba. A casa da minha sogra era onde hoje fica o cemitério Parque da Colina. E do outro lado era o Patrocínio. O João Patrocínio, da flora Patrocínio, que hoje é dos meninos dele. Ali podia contar as casas. A estrada de ferro a gente pegava pra ir pra Ponte Nova e Betim. Era tudo as casas e a igrejinha de São Geraldo. As famílias eram só essas, e os dali foi casando parente com parente, teve muito filho deficiente, com problema. Depois é que veio entrando mais gente de fora. Quando chegou as casas populares papai já nem mexia com a lenha, não tinha mais fogão de lenha. Ele entregava nas padarias e nas casas de família. Ali onde é hoje a rua Junquilho e a Silva Lobo, nós tinha a freguesia pra entregar. O nome Mato da Lenha deve ser coisa do pessoal dessa fazenda, o dono chamava José Onório. Depois mudaram lá pro Calafate e pro Palmeira. Depois das casa popular mudou bastante. Logo que derrubou a mata já mudou bastante, mas ainda ficou muito
morador da vila velha, nas casinhas. Na beira do rio nós punha uma pinguela de coqueiro pra passar em cima.
Louise: Quando a senhora fala parece que está caminhando pelos lugares. Angelina: É, a gente não esquece, não. A gente andava a cavalo e a pé. Só tinha trilho, nada de avenida. Quando queria ir lá em Ponte Nova, depois de Betim, ia a pé ou a cavalo. Andava o dia todinho. Louise: A senhora tem saudade disso? Angelina: Eu tenho. Vou fazer 68 anos de casada. O dia que eu fui casar eu atravessei a pinguela pra ir na casa paroquial, nessa época nem tinha igreja. Louise: A senhora tem foto do casamento? Angelina: Acho que sim… Louise: Conta um pouco mais de sua infância aqui. Angelina: Nós brincamos muito, era muita brincadeira, reza também. Era mês de maio que a gente ia lá na igrejinha de São Sebastião, com meus tios – Tio Francisco morava aí na frente, e Tio Joaquim. Nós ia com eles e voltava, e de lá da cabana vinha a minha sogra. Eu nem lembro que eu tava menina. Mamãe que contava. Eles vinha com Nossa Senhora Visitadora. Ela tá aí até hoje. Aí vinha e deixava na casa nove
dias enquanto a gente rezava os nove dias. O divertimento que tinha era esse. No grupo, nós começamo a estudar lá no Emília Cerdeira, na Betânia, hoje já mudou o nome. Às vezes nós estava lá, e era hora do recreio, papai passava, pedia a professora, Dona Emília Cerdeiro, pra ver se ela podia deixar nós sair da aula pra ir com ele lá para o mato. Ia com ele e a Maria, minha irmã que é mais velha do que eu. Ela tinha medo porque o papai parava pra conversar com todo mundo que ele encontrava. E nós e os animais desanimava e deitava. E depois, pra animar de levantar era aquele custo… e ela chorava, gritando o papai. E nós ia lá no Bonsucesso, que era o lugar que ele pegava lenha, vinha, trazia aqui pra casa, no outro dia cedo carregava aquelas carguinhas pequenas, e punha a gente pra ir pra Nova Suiça e Calafate, pra vender. Quando não vendia tudo, ia para aquela casa onde hoje é o EPA, nem sei o nome daquela rua depois do EPA… Tinha uma dona ali muito conhecida nossa, ela ficava com dó, coava café, dava pra gente. E nós tirava a lenha que não vendia e deixava guardado pra no outro dia ir pegar. Tinha muita gente boa na rua, lá quase onde hoje é a Silva Lobo, tinha também um moço que tinha uma mercearia, nós passava já de noite, quando descarregava tudo, papai montava a gente na garupa dos animais, vinha na garupa. Quando chovia demais chegava aqui, do outro lado do córrego, e tava transbordando, não tinha jeito
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de nós passar pra cá. Aí parava lá na casa da minha avó, tirava as cangalha dos animais, deixava lá guardado, deixava eles lá, porque era tudo mato. Aí papai subia com a gente. Já indo pra Betânia, tinha um encanamento que trazia água lá da serra, passava por cima do córrego, o encanamento, a água ia pra esse instituto que tinha na Gameleira. Tinha esse cano grosso, e aí papai montava, e mandava a gente agarrar nas costas dele, a água quase chegando em cima, pra atravessar pra nós ir embora pra casa. Era aquele sacrifício, né? Quando foi pra passar do segundo pro terceiro ano no grupo, o papai tirou a gente dos estudos, dizendo que não, que menina não precisava de estudo, não. Era aquela ignorância. Oh, meu Deus! Mas a gente tem saudade, era tudo sacrificado. Mas era bom, os vizinhos eram como se fossem a família, qualquer problema que tinha eles vinham pra ajudar. E a ocasião que mamãe pôs veneno no bolo sem saber, pensando que era fermento! Papai comprava e punha na dispensa, negócio pra machucado de animal. Ela foi pegar de noite pra fazer a broa, achou que pegou o bicarbonato e fez o bolo. Quando foi de manhã na hora de ir pra aula ela já tinha coado o café, e um tio nosso veio pra trabalhar aqui e ficou morando com a gente, e nós que éramos menores. Nós todos tomamos café, passamo mal, ela chamou o papai, ele correu até a casa do irmão dele, que foi lá pro lado da Nova
Suiça pra comunicar. Aí veio a ambulância, mas ficava do outro lado do rio, e levaram nós tudo pro pronto socorro na Rua Tamóios, onde hoje é a Igreja de São José. E ficamo o dia todo lá pra tomar o medicamento. A polícia veio e levou o papai, que era o único que não tinha comido, aí desconfiaram dele. Aí mamãe falou que eles vieram aqui olhar onde estavam as coisas e aí mamãe viu o que pegou.
Norma: E olha só, diz que no dia que eu nasci, eles chamaram o táxi e ele ficou do outro lado do rio. Meu pai teve que carregar minha mãe. Aí nós tinha que atravassar o rio. Pra comprar o gás a gente tinha que atravassar o rio. E tinha aquele óleo preto, que descia de descarga da Mannesman, aquilo agarrava na perna e de noite, pra lavar aquele óleo… era um custo pra tirar a sujeira. E o dia que meu avô morreu, a padaria até fechou quando passou o cortejo, ele era muito conhecido. Todo comércio que tinha fechava pra passar o enterro. 11
antônia Antônia: Eu era bebê e minha mãe me levou pra perto de Barbacena e lá fui criada até sete anos com minha avó. Meu pai não gostava de ficar parado em um lugar, ele gostava de trabalhar e viajar, por isto ela me levou recém nascida pra minha avó criar. Minha avó comprou uma cabrita e eu fui criada com o leite dela, e depois com uns três
anos de idade eu mamava direto no peito dela. Com sete anos mudamos pra cá, e a vizinha lá de cima, a dona Rosalita, tinha umas cabritas que ela trazia pro rio passando por aqui e eu pegava uma cabrita e levava escondida ali atrás no quintal para mamar. Minha mãe viajou muito com meu pai, até cair aqui, na beira do ribeirão Arrudas. Meu pai trabalhava na construção daquele viaduto e moravam do outro lado. O sonho da minha mãe era sair da pobreza, e ela via esse terreno aqui com um casebre, com cara de abandonado, e um dia decidiu atravessar e conversar com o senhor que sempre estava aqui capinando. Minha mãe conseguiu comprar o terreno. O rio passava aqui do lado onde havia uma baixada, e meu pai pulava e mergulhava. Tinha um senhor, o Manuel, que tirava areia e formou uma bacia funda. Quando chovia abria por todo lado nas margens, mas aqui não. A água era muito limpa, e as mulheres aqui de cima desciam todas pra lavar a roupa. O mulherio vinha com os meninos três vezes na semana, e eu adorava, porque minha mãe ia trabalhar e eu ia pro rio brincar com a meninada. Elas ficavam ali até 5 horas da tarde, esperando as roupas lavadas secarem. Minha mãe buscou minha avó, e a única árvore que tinha era uma mangueira. Minha avó plantou todas essas árvores e muitas verduras, e tinha muita mina d’água em toda essa região. Minha mãe saia com o balaio cheio de verduras pra vender
no Salgado Filho, no Cercadinho, na Nova Suiça. O primeiro cocô que desceu nesse rio eu vi, eu estava com 14 anos e fiquei apavorada, Daí tudo acabou... em 1950 cortaram o rio, retificando-o. Eu pescava muito antes, meu pai me ensinou a pescar e a nadar nesse rio. A minha infância foi maravilhosa, não tive moléstia, doenças, nada. Uma vida muito saudável.
Louise: O que você gostava muito aqui na região e que não tem mais ou que podia voltar a existir? Antônia: Eu não sei se queria algo, pois gosto muito do progresso eu estou achando tudo muito bom. O que eu mais queria era essa praça, e quando minha mãe comprou o terreno falaram na prefeitura que ia ter uma praça e isto demorou quase 50 anos. Tirou o rio daqui porque se ele continuasse aqui não ia ser bom, e também ele já estava poluído. Louise: Pode dar alguns exemplos de progresso? Antônia: Como aqui é residencial não tem rua de lojas, que seria bom, mas o progresso é uma coisa que é bom pra você. Louise: Se o rio voltasse a ser limpo, isso seria progresso? Antônia: Isso é um jeito de progresso que a gente nunca pensa. Ele era lindo, tinha até canoa que subia e descia. Isso
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poderia ser progresso, sim. Revitalizar o rio. Isso ninguém está esperando. Acho que o progresso tem que ser mais voltado pra natureza, plantar árvores, cuidar dos rios e das nascentes, revitalizar as margens. Os fazendeiros hoje não deixam mais entupir os mananciais das fazendas, e isso porque ganham para preservar e desse modo acabam ganhando com a água boa e o terreno. Isso é progresso. 12
antônio Louise: Antônio, conta sobre a sua vida no bairro Salgado Filho. Antônio: Esse bairro era conhecido por mim porque eu sempre gostei de fazer passeios. Eu pegava o ônibus e ia até o final da linha, e foi assim que conheci os extremos de Belo Horizonte, como o Santa Lúcia, a Pampulha… Todos os bairros de Belo Horizonte que tinham linha de ônibus eu ia pra conhecer. E fui trabalhar numa casa de louças na Rua Tamóios, no Centro, onde eu era faturista. A loja era de um português e coincidentemente lá eu conheci um colega que residia aqui na rua Capetinga. Ele chamava pra ir pra casa dele, então eu comecei a frequentar aos sábados. Ele tinha muita afinidade com músicas… isso foi antes de 1960. Por volta de 1957. Então eu vinha. Tínhamos muitos amigos e amigas e a gente se reunia pra conversar e ouvir música, muitas vezes acabava virando um bailinho. Não tinha que usar roupa
especial, era uma coisa de fundo de quintal, mesmo. A gente preparava um lanchinho, comprava pão de forma, mortadela, cortava o pão, fazia uns sanduichinhos, fazia tira-gosto com azeitona, queijo e salsicha e colocava no vinagre com pimenta. A gente chamava de sacanagem ou capetinha. Sacanagem era com muita pimenta malagueta. Fazia também o ponche pras garotas, que consistia numa mistura de gelatina com maçã picada, e outras coisas que não me lembro bem. Era uma bebida deliciosa. E o Cuba Libre, consistia em um copo lagoinha, ou também chamado de americano, onde se colocava dois dedos de rum – carta de ouro, coca-cola, mais gelo e uma rodela de limão. Ficava delicioso e a gente bebia, não ficava bêbado e era uma bebida barata. A cerveja a gente não usava. Daí o baile transcorria na sala da casa. As músicas eram as tradicionais, como o bolero. Depois veio o rock, o twist, o samba-canção, a seresta. A música sertaneja não era muito evidente.
Louise: Quando você veio morar no bairro? Antônio: Eu vim morar aqui com a minha mãe. Nessa casa mesmo. Eu comprei o lote, comecei a fazer a construção, minha madrinha me auxiliou. Minha mãe trabalhava pra uma família, e a senhora tornou-se minha madrinha, que me ajudava muito nos estudos. Em 1962 eu comprei o lote, e
mudamos em 1967. Tínhamos muita dificuldade, não tinha energia elétrica. O centro espírita aqui da frente, do outro lado da rua, cedeu pra nós um fio para puxar a luz e a gente tinha só uma lâmpada. Aqui não tinha uma rua aberta ainda, a pavimentação veio bem depois. Essa rua aqui era muito difícil pois era uma cratera, só passava carroça. O homem da carroça vinha ziguezagueando e saindo dos buracos. Só se passava mesmo a pé. Depois vieram chegando as melhorias.
O nosso bairro tinha muita formiga, algumas faziam o formigueiro no telhado e outras faziam umas crateras no chão. A tendência desses buracos era aumentar e erodir. Aqui em casa as formigas chegaram na cisterna e começaram a fazer perfurações, elas carregavam material orgânico e isso começou a interferir na qualidade da água, além da cisterna começar a desmoronar. Ela não era revestida. Muitas das casas aqui tiveram desabamento de cisterna.
O bairro não era aprovado, depois o prefeito, se não me engano o Amintas de Barros, resolveu fazer a regularização como Salgado Filho. Antes era o conjunto das casas populares, que era chamado de Mato da Lenha.
Naquela época era difícil comprar leite. Tinha uma vaquinha da Itambé que ficava ali na esquina. Ele buzinava, tinha uma caminhonete com o tambor pra leite, e a gente ia com os vasilhames para comprar o leite. No centro era diferente, mas aqui era assim. Tinha uma padaria na baixada, com forno a lenha, era um pão delicioso. Depois foram surgindo outras padarias.
Louise: Como era o acesso à água aqui? Antônio: Quando eu mudei pra cá não tinha água na rua porque o nosso bairro não era aprovado. Foi feito depois, na época a empresa chamavase DEMAE. Não tinha esgoto nem água. A gente teve que reunir com os vizinhos pra receber a água do DEMAE. Mas rede de esgoto não tinha. Apenas depois com a COPASA. Minha casa tinha cisterna, e era fácil achar um cisterneiro naquela época. Com apenas doze metros encontramos água, que era límpida, mas não sabíamos se era potável, mas de qualquer modo era a que usávamos pra molhar horta, beber, tomar banho... O banho era com balde, chamado banho chapchap, ou banho Tcheco.
Louise: Você é o presidente do bloco de carnaval do bairro. Antônio: O bloco União do Oeste foi criado em 2013. A gente sempre falava da falta de festa no bairro hoje. O futebol acabou, a banda e a escola de samba também. Então resolvemos pensar em algo. Reunimos um grupo de moradores e fomos conversar no Centro Cultural para pedir apoio para fazer um bloco de carnaval. A primeira coisa foi a necessidade de uma percussão. Saímos na rua com alguns instrumentos e tivemos apoio de umas pessoas. E tivemos aula com uma professora de
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percussão. Aprendemos a tocar e cantar juntos. Somos umas 20 pessoas. Queríamos resgatar a elegância, a beleza do carnaval antigo. Hoje, alguns blocos têm a característica de fazer reinvindicações, como a da legalização da maconha, ou uma ideia de ocupação do espaço, para reivindicar o espaço público. O nosso bloco não tem esses propósitos, queremos a alegria. Tocamos as marchinhas de carnaval mais antigas e o maracatu. Nosso bloco é um grupo de pessoas amigas que gostam de carnaval, e percorremos as ruas do bairro, saindo do Centro Cultural até a pracinha. Eu nasci em 1942, em Belo Horizonte. Os carnavais antigos aconteciam na rua e muito em clubes. Na rua tinha os blocos caricatos, que saíam em caminhões. Nos salões, como no teatro Francisco Nunes, no Cine Brasil, na Guarani, na rua Curitiba, no Sindicato dos Bancários, na Colônia Portuguesa e no Banco Real, o baile pegava fogo. Na rua era divertido, tinham fantasias interessantes, da moda. As moças andavam em grupos. Elas pegavam uma fronha, furavam dois buracos para os olhos, costuravam duas orelhas de gato e desenhavam a boca, os bigodes. As mais ricas se vestiam de melindrosas, com roupas coladas. O índio era outra roupa barata. Apito na boca e bombinha de água, e o lança perfume, que depois foi proibido pelo Jânio Quadros. Às vezes a pessoa punha água com pimenta na bombinha, e isso era um confusão. Tinha a
batalha de confetes, na rua da Bahia, na concentração do pré-carnaval. Nessa época todos iam para o Centro.
Louise: O que você gostava muito aqui no bairro e que não tem mais? Antônio: Tinha uma feira de frutas e legumes na rua que sai da pracinha, que sumiu daqui, mas algumas ainda existem em BH. Na época os produtos vinham do Ceasa, e agora as redes ABC recebem produtos de programas sociais da prefeitura. 13
belanísia Louise: Você pode mostrar a nascente d’água que tem em sua casa e contar umas histórias sobre ela? Belanísia: Eu escutei muita história de gente que vinha apanhar água aqui, que mora lá pra cima. Era água demais. Hoje é que o pessoal não dá mais importância, tem COPASA. Mas antigamente era a bica onde todo mundo vinha buscar água. A COPASA veio aqui pra canalizar e jogar lá no rio Arrudas. Quando canalizaram o rio, eles vieram drenar essa água aqui, um desperdício. Projeto mal feito, né? Mas eu consegui recolher ela. Ela brota 24 horas, e daqui pra baixo ela é usada pelos vizinhos. A mina tá mais pra frente, na outra casa que eu construí. Fui eu quem canalizou tudo. Quando eu mudei pra cá, ninguém queria. Ficava
essa água aí, jorrando. Não pode uma coisa dessas, um desaforo, tanta água e ninguém usando. Então eu pus as manilhas. Depois disso todo mundo viu que não pode ficar jogando água fora. Agora, nessa época, ela está menos, mas quando chove, minha casa fica minando água. Tive que fazer uns tubulões enormes. Olha aquela casona ali ao lado, ela é toda mantida com essa água, e também a piscina. O lava a jato também usa só essa água. Aqui na minha casa eu não tenho uma piscina porque eu prefiro fazer um reservatório. Eu posso pôr muita manilha aqui, será um reservatório imenso. Eu mexo com muita obra. Essa casa ali foi a primeira que construí. Essa água escorria aqui 24 horas. O que eu já gastei aqui dava pra construir uma casa. Vem cá pra ver a mina. Escuta o barulho. Ela nasce nessa bananeira. A dona ali fez um pocinho, tipo bonitinho, e a água cai ali e desce nas manilhas até lá em casa. Quando eu comprei esse pedacinho na mão de um senhor, isso aqui tudo era terra e lama. Depois que comecei, tomei gosto pela coisa. Adoro esse pedacinho aqui onde moro. Já fazem 14 anos que dizem que vão tirar a gente daqui, indenizar pra passar o metrô. Mas nunca aconteceu. Eu adoro isso aqui.
Louise: Você conhece outras pessoas que têm nascentes em casa e que se interessam pela água? Belanísia: Eu não conheço ninguém.
Só depois que eu canalizei tudo que as pessoas se interessaram. O terreno foi secando e as pessoas ganhando confiança em construir. Eu fiz uma rede de canos para distribuir a água. Aquele vizinho ali, eu levei pra ele. Eu amo morar em lugares assim, tipo essa vila aqui, esses cantinhos. Aqui é tudo invasão. A maioria das pessoas é muito carente. Se está faltando comida, eles vão usar os 40 reais pra comer, e não pra comprar um cano. Então, se faço pra mim, faço pra eles também. Aqui tem 8 famílias, e todos pegam água. Eu tenho minha casa e essa que eu vendi para aquela senhora. Tem também outra obra que estou fazendo. Vem cá pra eu mostrar. Ali eu não pensei em levar a água não, pois a COPASA chega fácil naquela parte. Aqui vai morar o meu filho. Eu compro essas areazinhas e construo. Essa eu paguei treze mil. Aqui é com contrato de compra e venda, a dona que me vendeu nasceu e se criou aqui. Aqui onde nós estamos pisando era a chácara, essa árvore enorme aqui ao lado é um jatobá. Tinha um abacateiro imenso, tinha pés de laranja, tinha tudo. Eles sobreviviam disso. Mas quando a prefeitura vem, eles não querem saber, arrancam tudo. Sabe como é: favelado, pra tudo chama a polícia. Então vira uma confusão, todos gritando que não pode arrancar as casas nem as árvores, daí entram em um acordo.
Passante: Oi, dona Bela, tá boa? Deus abençoa sua casa!
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Belanísia: Aqui as pessoas me tratam assim.
também, com tudo: verduras, chuchu, abóbora, cebolinha.
Louise: O que a senhora acharia de ter energia solar?
Por aqui quase todo mundo plantava muita coisa, os lotes eram grandes, então a gente podia plantar na frente e no fundo. Depois o meu irmão construiu no fundo, e fez na frente uma loja. Teve que fazer uma garagem, então o jardim foi embora.
Belanísia: Você fala de não precisar de ter energia da CEMIG? Seria uma maravilha. 14
eva Eva: Veja essas fotos, essa era a quadrilha. Esse lugar era uma quadra de futebol, chamava “Noite da poeira”. Essa foto é na frente da casa, no alpendre. Louise: Me fala do seu jardim. Eva: Aqui tinha umas folhagens bonitas. Minha mãe gostava muito de plantas, então aqui tinha muitas plantas: cipó Imbé, que eram umas folhas grandes; tinha roseira. Ela dava uns cachinhos assim, da cor rosa, bem clara. Tinha dália, aquela planta que a gente não vê mais. Tinha de várias cores: cor de vinho, amarela, branca... mas acabou, mesmo. Nosso quintal tinha muita fruta: banana, manga, romã, figo, ameixa, amora. As amoras eram uma beleza. Os galhos caíam pro outro lado dos vizinhos, e eles comiam também. Tinha urucum, ameixa, coco, jambo, abacate. O abacateiro dava uns abacates enormes. Tinha um pé de umbu, imenso. A parreira de uva era muito bonita. Mãe colhia e as crianças chupavam muita uva. Tinha a horta
Entre as casas não tinha muro, era cerca, os meninos da vizinhança passavam embaixo da cerca, tinha até marca onde eles passavam. A gente convivia muito com os vizinhos. As crianças brincavam muito nos quintais. Tinha casa que era bem no fundo e ficava o espaço maior na frente pra eles brincarem de bola e as meninas de boneca. Olha essa foto aqui: esse rapaz gostava muito de tirar foto, então ele vinha muito aqui pra frente de casa. Como a gente tinha muita planta, ele achava bonito e vinha fazer as fotos. A gente ia muito na casa das pessoas. Hoje não fazemos mais isso, eu não conheço mais ninguém.
Louise: Fala um pouco da sua infância. Eva: Eu comecei a estudar no colégio Tiradentes, no Prado. Pra escola eu ia a pé. Devia demorar uma hora, passava pela linha de trem até a Gameleira e pegava o bonde ate o colégio. Eu tinha uma amiga que morava na Nova Suiça, e na volta a gente voltava a pé, vinha conversando e nem via passar o caminho.
Eu nasci na Lagoinha. Viemos pra cá faz uns cinquenta ou sessenta anos. Aqui tinha tanta criança, daí conhecemos todo mundo. A gente quase não via carro aqui. Podia brincar a vontade. Depois, quando chegou o ônibus, o ponto final dele era bem aqui em frente. Então a gente sentava na porta e ficava vendo todo mundo chegando. Ficava cheio de rapazes e moças. Passava o caminhão de lixo aqui na frente, mas engraçado que ele não parava pra pegar o nosso lixo… ia direto pra onde hoje é o Betânia.
Louise: Foi sua mãe quem construiu a casa? Eva: Sim. Ela começou com um quarto, depois foi aumentando. Nessa parte aqui tinha um pé de laranja. Minha mãe ganhou o lote, mas teve gente que ganhou casinhas. Eram dois cômodos bem pequenos. Veio um grupo de pessoas que foram removidas lá do alto da avenida Afonso Pena. Mas depois, com o tempo, alguns venderam. Na rua de cima tinha muita casa popular. Depois do ponto de ônibus também. Elas eram todas iguais. Aos poucos elas foram se transformando. Tinha quintal, tudo muito organizado. Mas depois os filhos iam casando e construindo nos fundos, aumentando as casas. A gente saía em turma, pra todo lado. Eu era muito amiga das vizinhas. A gente era convidada demais pra ir em festas. A Vitória, minha vizinha, gostava de festa, a gente ia dançar.
Íamos também nos clubes no Centro da cidade, como o Clube Sírio Libanês, a Colônia Portuguesa, o DCE da faculdade; íamos no bairro Cruzeiro e no Barro Preto. Quando eu mudei pra cá não tinha luz. Tinha uma mina d’água ali embaixo, na baixada perto do hospital André Luís. O pessoal buscava água e ia lavar roupa. Aqui em casa tinha uma cisterna. Mas hoje pra andar aqui nessa rua é um custo. É difícil atravessar de um lado pro outro, tem ônibus, carro, moto. Aqui não tem árvore na rua. Até plantaram um ipê em frente a loja, mas os moleques passam destruindo tudo. 15
helena Louise: Me conta a história do campo de futebol. Helena: Sim, era o Grêmio Recreativo América Suburbano. Era da época do meu pai e dos meus tios, que jogavam bola lá. Isso foi na década de 60. Meu pai tinha o time, e era a minha mãe quem lavava a roupa dos jogadores. Então a quadra não era cimentada. Era um campinho, cercado com arame farpado. Esse imóvel foi dado pro time, inclusive hoje a quadra tem esse nome. Hoje tem uma pessoa que toca a quadra e fica lá pra alugar. O time jogou durante toda a minha infância. Tinha a torcida do bairro. E vinham times de outros bairros pra jogar aqui. Se fosse comparar, seria
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igual o América é hoje. Era um time bom, importante. Mas como foi falecendo os tios, meu pai e a turma toda, o time foi acabando. Meu pai morreu com 40 anos. Eram todos aqui do bairro.
Louise: Conta sobre a torcida... Helena: Outros times vinham jogar e traziam suas torcidas. Vinha o time do Barreiro. Tinha uniforme, verde e branco. Lembro como se fosse agora, meu pai saindo com a camisa, a chuteira, todo importante pra ir jogar. Essa é a história, essa é a minha história. É o que eu conheço do time e da quadra. A quadra é patrimônio do Salgado Filho. Louise: Você ia pra quadra? Helena: Eu ia com minha mãe. Lá tem uma arquibancada, de onde assistíamos os jogos. Mas a gente também ia brincar na quadra. A criançada jogava vôlei, amarrava uma corda de um lado pro outro, que virava a nossa rede. A rua não tinha calçamento, era terra, e a gente jogava queimada, vôlei... O time acabou nos anos de 1970. Era uma associação. Foi uma coisa da comunidade. Hoje o grupo não está mais vivo, só filhos e netos. Louise: Aqui no bairro ainda tem lugares onde crianças podem brincar, ou ter uma vida tipo a que você teve na rua, mais soltas? Helena: Não, aqui não existe mais. Aqui só tem essa praça, mas não é
como a gente brincava. Era na rua, na terra, queimada na rua. Isso era muito bom, muito saudável... quem dera se ainda as crianças pudessem brincar assim! Tínhamos nossos times de queimada, a gente ia pra outros bairros jogar. Aqui no Nova Cintra, na Betânia, todos tiveram times, mas o América Suburbano foi o único que existiu formalmente.
Louise: Você tem um grupo de quadrilha. Fala um pouco disso. Helena: Tenho dois grupos de quadrilha: o Grêmio Recreativo Paixão Junina e Pipoca Doce. São os meus dois “filhos”. A gente participa de eventos, do concurso do Arraial de Belô, estivemos em Brasília em agosto pro concurso brasileiro de grupos de quadrilha. Lá ficamos em 6o lugar, dentre 20 grupos. Estávamos representando Minas Gerais, o Salgado Filho. Representamos a cultura mineira. Esse ano falamos sobre a seca. Foi uma polêmica que a gente levantou, pois falamos sobre água, sobre a necessidade de preservar as nossas nascentes. Conforme o enredo a gente leva o cenário, os agregados - é tipo um enredo de escola de samba. A Pipoca Doce falou sobre o ouro, de Minas e os bandeirantes. Sobre os escravos, como eles tiravam o ouro, até chegar hoje, nas máquinas. Essa cultura já vem desde os meus avós. Tinha a festa de rua, que eles faziam na rua, com barraquinha. Na época dos meus avós era roupa de
remendo, calça de remendo, era roupa típica da época. Mas agora modernizou, a roupa não é mais aquela de chitinha, vamos agregando elementos.
Louise: Você sabe se tem nascentes aqui no Salgado Filho? Helena: Aqui tem, a água jorra o dia todo. É enorme. Antes de ser loteado, nesse lugar era uma fazendinha. Um senhor comprou o lote e a nascente ficou dentro. Ele fez um quadrado, como uma piscina, onde brota a água. Louise: Qual é sua profissão? Helena: Sou cabeleireira, há mais de 30 anos. Já tive salão no Barroca, Prado, Padre Eustáquio. Aqui faz quatro anos. Hoje estou aqui mais perto de casa, não gasto condução, vou em casa e volto. Preciso ter praticidade. Louise: Você acha que se todos pensassem como você, de ter um trabalho perto de casa, isso teria um efeito importante sobre a cidade? Helena: Acho que sim, isso depende do que a pessoa tem no empreendimento dela. Por que muitas vezes o bairro não cresce. Por exemplo, esse bairro nosso não cresce comercialmente, quase nada mudou muito desde minha infância. Agora é que está acontecendo uma pequena mudança aqui. Isso é pelo fato de que o imóvel aqui passa de pai pra filho, as pessoas não vendem, não alugam. Por um lado isso é bom, faz aqui ser um bairro bom de
criar filho, é tranquilo. A minha rua tem morador do tempo do meu pai. Tem uma moradora com 90 anos, mais velha que minha mãe. Nasceu e criou com a gente, na rua. Minha mãe lavou roupa no rio Arrudas. Era água muito limpa. Na margem do rio tinha muita mina d’água. Eu pegava peixinho e levava pra casa. Todos morriam, mas eu pegava todo dia. Meu apelido era Piaba. A história do Salgado Filho é assim. Aqui chamava Mato da Lenha, não sei porquê. Minha mãe buscava lenha por aqui, mas sei lá se era esse o motivo do nome. Tinha muita flor, muito campo, uma verdadeira roça iluminada, isso aqui. A gente corria no meio do mato. Eu nasci em 1954, minha história é uma história gostosa. Minha mãe casou aqui. Viveu a vida toda aqui. A história que eu vivi aqui é maravilhosa, quem dera nossos filhos pudessem ter essa vivência. Era correr no meio do mato, pegar flor, fazer casinha. De manhã o orvalho nas flores. Uma história inesquecível.
Louise: Que lindo! Você acha bom canalizar o rio? Helena: É por causa do progresso... A minha mãe falou: “eu nunca vou ver esse rio canalizado”, mas viu. Eu gostaria que fosse diferente, eu não acho bom canalizar. Acho que as pessoas acham bom porque esse rio, quando chovia, ele arrancava as casas que tinha envolta. Aí eu via porco descendo, fogão, sofá, casas, telhado, tudo que descia de lá de cima pra cá.
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E fazia muita cratera em volta. Alguns prédios foram condenados, o rio ia comendo os barrancos. As paredes da escola começaram a trincar. Se a gente pudesse ter esse rio limpo... o que acho que nunca vai acontecer, nunca. Nunca mais nós vamos ter o Ribeirão Arrudas limpo, isso aí é fato, não existe mais jeito de limpar. Porém a tecnologia avança pra um lado e prejudica outro, porque é uma coisa que a gente podia cultivar pra ter futuramente, é uma história que meus filhos não conheceram. Eu conheci, meus pais conheceram, mas os filhos, os meus filhos não vão nem saber contar! Porque eles não viram nada, não vão ver nada disso que eu vi. A não ser que saiam daqui, vão pro interior… Pra eles conhecerem um rio limpo, tem que sair daqui. Aqui no Barreiro tem muita nascente… E tem córrego que também é jogado lixão, então são coisas que os nossos governantes podiam pensar, porque Minas Gerais tem muita coisa bonita. Rios maravilhosos. 16
iolanda Iolanda: Eu tenho 3 filhos. Lá na frente mora meu filho, aqui ao lado as duas filhas, Maria e Helena. Esse lote aqui é tudo nosso. Depois que eu mudei pra cá, passados uns dez anos, o Juscelino começou a mandar pessoas para morarem aqui. Ele doou lotes, mas o meu não foi doado.
Nós morávamos na Pedreira Prado Lopes, meu pai, minha mãe... Aí precisaram do terreno lá na época para construir o IAPI, e tirou a gente e passou pra cá. Aqui não tinha água, luz, nada. Eu vim pra cá no final dos anos de 1930. Nessa época meu pai estava furando uma cisterna na Ressaca e ele caiu e quebrou todo, só não quebrou a cabeça. Aí levaram ele pro hospital e, passado um tempo, ele sarou. O INPS dele ela era muito pouco, então ele falou pra mim: “ô, minha filha, eu não estou podendo cuidar de vocês”. Aí ele arrumou a casa de uma dona pra eu trabalhar, eu tinha dez anos. Depois de um tempo falei pro meu pai: “eu não quero ficar trabalhando ali, não, trabalhando de escrava...”. Ele me disse: “então, você vai se casar!”. “Casar com quem?”, eu perguntei. Não tinha rapaz nenhum aqui no bairro. Mas meu sogro morava aqui atrás, e tinha uns rapazes lá, e nós éramos tudo parente, primos. Eu não sabia. Nós brincava, não tinha luz, brincava de pegador no meio do mato, tinha vaca, trilha no mato. Então, com 16 anos eu casei, casei com meu primo, esse da casa de trás. Aqui, onde moramos hoje, era o barracão de um velho que meu sogro cuidava dele... era de lata, aquelas latas de 20 litros, aberta e remendada. De lata! E eu vim morar aqui, eu e o rapaz. Fui casar na igreja do Calafate. Ficamos vivendo aqui. Meu marido trabalhava no Edifício Mariana, que está lá até hoje na rua São Paulo. Ele era engraxate da porta-
ria, me tratava com dinheiro de engraxate. Engraxava sapato o dia inteiro. Ele morreu novo e eu fiquei com os meninos pequenos. Cinco. Fui então fazer faxina, eu trazia roupa da casa dos outros pra lavar aqui. Era cisterna. Não podia levar as roupas das pessoas pra lavar no rio, pois ele já estava sujo. Descia aquela sujeira da Mannesman, e era aquela sujeira... Nem a minha eu não lavava mais no rio. Fiquei muitos anos fazendo isso. Mas Deus ajudou que eu venci, criei meus meninos, todos estudaram.. estão todos com saúde e pronto.
Louise: A senhora construiu a casa? Iolanda: Antes do meu marido morrer, tinha o prefeito que deu pra ele o material. As casas populares foi o Juscelino e o Otacílio Negrão de Lima. Mas foi o Celso Mello de Azevedo que deu o material pro meu marido fazer a casa. Ele fez junto com meu sogro. Eu tinha que buscar areia lá no rio, eu estava grávida. Mas eu trazia pro meu sogro fazer massa, pra eu e minha cunhada rebocar. Fizemos essa casa aí. Não tinha água... Uma vez, o Celso Mello de Azevedo mandou colocar uma torneira lá naquela esquina da quadra. Era pra todo mundo, e nós tinha que buscar água no balde. Não podia lavar roupa lá porque era muita gente.
Louise: E veio chegando muita gente? Tudo aqui era lote?
Iolanda: Não, foi aos poucos. Tudo aqui era aberto, mas tinha o fiscal da prefeitura. Seu Paulo. Se você falasse com ele que ia mudar pra cá, que eram cinco famílias, ele vinha e media os cinco lotes. Não tinha que pagar nada. Só depois de muito tempo que nós estávamos aqui que nós começamos a pagar IPTU. O Seu Paulo vinha todo dia, sempre tinha muita gente chegando e pedindo pra medir lote. Aqui era tudo coqueiro e mais pra frente tinha uma fazenda. Do outro lado do rio morava a dona Maria. Depois a Mendes Junior tomou dela. Hoje tá vazio, tudo livre. Puseram umas máquinas lá e um vigia, tá tudo murado. Eu não entendo o que aconteceu. Repara depois, tá lá aquele lotão vago. Será que não podia dar esse terreno pra outros morarem? Ou vender? Mas não, tá lá, fechado. Agora, eu tô aqui até hoje, eu tenho escritura do terreno, pago imposto.
Louise: Podemos falar mais sobre o dia-a-dia aqui, sobre as antigas fazendas e terras... Iolanda: A fazenda ficava lá atrás. Mas a prefeitura tomou as terras, porque não pagavam imposto, e deu pro povo morar. Do lado de cá distribuíram daqui até o André Luís. Do lado de lá tinha um conjunto de casinhas que a prefeitura tomou. Do outro lado não distribuíram os lotes não. Eu andava muito por aqui, eu ia pra beirada do rio. No domingo tinha uns rapazes que tiravam areia, com
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umas barcas, e a gente entrava nas barcas e ia brincar com os meninos. Depois começou a descer sujeira, no ano quando fizeram a Mannesman, acho que pelos anos de 1950. Depois nunca mais parou as porcarias. Essa água era boa demais, tinha uma ponte pequenininha, a gente descia e ia lá. Nas margens tinha muitas bicas. Eu levava os meninos, dava banho neles, lavava roupa, punha pra secar, depois vestia eles. Eu saía daqui, ia na gameleira fazer compra, ia a pé, pegava a linha de trem e ia seguindo. Trazia na cabeça. E tô bem, não morri não. Já tô com 87 anos. Eu vi tanta coisa boa aqui, os meninos brincavam na rua, ficavam até 10 horas da noite brincando. A casa nunca teve muro, só cerca de arame. As moças iam dançar no forró da Nova Cintra. Os rapazes buscavam elas, levavam e traziam de volta. Eu deixava a porta aberta, nunca trancava. Mas hoje, não posso mais dar bobeira aqui.
Louise: O que mudou? Iolanda: Tudo piorou. Mesmo com todo o conforto que tem aqui, com armazém, com ônibus, não se pode mais ficar tranquila. Aqui mesmo, na porta, os vizinhos compraram um carro e logo foi roubado. Não pode facilitar... O rio tinha cheiro de cocô, de bicho morto. Já foi tão limpo... mas depois piorou tudo. A primeira missa que fizemos no bairro foi num lote vazio pra lá da
padaria. Meu sogro que organizou. Ele combinou com o padre do Calafate. Por aqui tinha muito bambu, e nós cortamos e enfeitamos tudo. Enfeitamos o lote e a casa onde ia ter o almoço. Teve muita comida, muito doce... foi uma missa muito bonita! Teve congado. Mas hoje, sempre que me pedem pra fazer festa, eu falo “os festeiros morreram”. Hoje não tem jeito. Aqui nem nome tinha no bairro. A gente chamava de Pé Vermelho. Depois ficou Mato da Lenha. A terra era muito vermelha, você não podia vestir roupa branca, ficava tudo vermelho... Agora, tá essa rua aí, tudo bonitinho, mas nós que tivemos que pagar essas pedras pra calçar. Tudo isso nós fizemos há muito tempo.
Louise: Fala mais um pouquinho do Seu Paulo, o fiscal. Como era o serviço dele? Iolanda: Ele ficava sempre aqui. Demarcava a partir de um projeto no papel. Ele vinha pra organizar o bairro, porque aqui era tudo mato! Ele ficava ali onde hoje tem um boteco, perto da loja da ração e do Centro Cultural. E foi por ali, nessa mesma rua, que veio um cara do interior e pegou os lotes todos, de uma esquina a outra. Eles ficaram sabendo que estavam distribuindo, e vieram do interior, onde eles tinham uma fazenda. Chegou e cercou tudo, pegou pra ele. Ai... se eu soubesse que era assim, tinha cercado um monte de lote... eu era muito nova, não tinha cabeça pra entender isso. Muita gente
pegou lote aqui. Pegavam, cercavam e depois vendiam. A não ser essa família que veio do interior, que tá lá até hoje.
Louise: Tinha fazendas leiteiras por aqui? Iolanda: As fazendas que tinham gado, que andava tudo solto por aí, era lá do outro lado da Lagoa da Prata. Mas eles não traziam leite pra vender, não, traziam cachaça. A coisa que mais tinha pra vender era cachaça. Louise: A senhora conhece muita gente? Iolanda: Os meus conhecidos morreram todos. Mas mesmo assim todo mundo me conhece. Os muito velhos não tem mais. 17
jandira Louise: Você é de onde? Jandira: Sou da roça, de Mutum, mas fui criada em Mantena, norte de Minas. Meu avô tinha uma fazenda lá, e era a coisa mais linda. Tinha um morro com uma mina d’água e meu avô construiu umas casinhas brancas pros meeiros morarem, e eu dizia que queria casar, morar lá no alto e ter dez filhos. Meu avô fez daquelas bicas de madeira e levou água até na porta de nossa casa. Na janela da cozinha ficava o caninho com a água pra minha avó lavar as vasilhas e embaixo tinha um tipo de coxo grande onde minha avó lavava roupa. A água vinha cristalina
pra gente, era coisa de sonho mesmo. Eu fui feliz demais na minha infância. Mas o que eu mais gostava era esse lugar no morro. Juntava a água dos três morros e embaixo formava o rio. Eu casei com 16 anos e vim pra cá. E tive três filhos maravilhosos. Gosto muito de planta e de cuidar do meu quintal. Quando eu ia pedir uma mudinha o povo não queria dar, então eu falei que ia plantar pra distribuir. Essa semana mesmo eu dei muita hortelã pras pessoas fazerem quibe. Tem muita gente que vem aqui me pedir. Eu tenho mudinha de maracujá doce, de manga, já está enorme! Eu plantei essa samambaia pra você - cabelo de negro. Essa rosa daqui é branca essa outra é amarela. Esse lírio tem amarelo e vermelho. Essa manga é tommy, vou colocar em um saquinho plástico pra você. Ó, meu mamão, docinho... esse é o maracujá doce, essa a uva, que também vai dar. O maracujá pode ralar a casca e fazer uma farinha que é boa pra diabetes, e a folha pode picar e comer como a couve.
Louise: Conta um pouco de sua vinda pro Salgado Filho. Jandira: Eu morava numa favela no Jardim América e a gente precisou sair de lá. Um amigo do meu marido falou que tinha um lote aqui, mas sem escritura, e então nós compramos dele. O patrão do meu marido, que era uma pessoa muito boa, nos deu o
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material pra gente construir. Fizemos um barraco de adobe com dois cômodos, cozinha e quarto, e já tínhamos dois filhos. Eu trabalhava muito, era diarista, levava meus filhos pequenos cedo pra escola e depois eles voltavam e ficavam sozinhos o dia todo. Eles mesmos faziam comida, tudo. Fomos morando sem escritura e sem pagar imposto, pois não tinha nada no nosso nome. Depois fui trabalhar de faxineira no Fórum, não sabia ler e aprendi um pouco com os meus filhos. Uma vez quando eu estava de férias, fui passear no Fórum para visitar meus colegas e vi no quadro de informações que iria acontecer um leilão no dia seguinte de terrenos e casas. Quando olhei melhor, vi o número do meu lote e fiquei desesperada. Passou ali um rapaz conhecido e eu pedi para ele ler no quadro, pra confirmar se eu tinha entendido certo. Ele então confirmou e disse que iria me ajudar, que ele era advogado.
seguimos. Tirei escritura do lote de uso capião. Hoje tá tudo certo. 18
luiza Louise: Dona Luiza, me conta como que a senhora chegou aqui nessa casa. Luiza: Eu morava na casa do meu pai, na Rua Junquilho. Meu pai morava d’um lado da casa e eu morava do outro. Aí chegou um rapaz, que veio da terra do meu marido, e falou assim: “ô, Luiza, você tem vontade de ter uma casa? Vai cedinho na prefeitura fazer inscrição que eles estão dando casas.”
Me mandou subir e fez todos os documentos, ligou pra prefeitura e pediu para me esperarem que eu já ia lá entregar tudo. Tinha que fazer tudo rápido, porque o leilão já era no dia seguinte. Na prefeitura me avisaram que tinha um imposto, era muito alto para mim, e eu não tinha como pagar, mesmo tendo sido parcelado em 15 vezes.
Aí levantei cedinho mesmo, fui na prefeitura, a fila já estava enorme, mas enorme demais. Eu pensei em ir embora, não ia dar pra eu chegar lá. Quando eu quis sair o… esqueci o nome do médico, que era meu médico. Lá de cima da escada ele me chamou. Todo mundo olhou pra mim. E então ele falou: “a senhora vai embora? Não vai não. Não vai, não, que eu vou… Você vai tirar sua casa”. Aí, eu voltei, sentei lá, fiquei lá quieta. O dia todo! Quando foi de tarde, que já tava quase acabando a fila, ele me chamou: “Luiza, passa na frente dos outros aí, vem cá pra me dar os dados pra te dar sua casa. A primeira casa que vai sair eu asseguro que vai ser a sua”. Acreditei muito não. Mas fui com fé em Deus, né.
Falei pros meus filhos, choramos muito pensando que ia perder o lote. Mas meus filhos me ajudaram e con-
Quando fizeram vinte dias, meu marido, que trabalhava dentro da prefeitura, chegou e falou assim: “adivinha o que
que eu tenho aqui na mão?”, falei “ah, eu não sei, como eu posso adivinhar?”. “Adivinha!”, “não…”. “Aqui, tá preparada pra ter uma casa?”. No outro dia, eu mais meu pai levantamos cedinho para conhecer a casa. Ela estava ali, toda nova, toda arrumada. Ele estava pegando água na torneira, jogando no chão, tirou a poeira toda da casa, passou pano em tudo. Foi embora, quando cheguei aqui meu pai estava rindo. Falei: “ô, pai, o senhor tá rindo de que?”, aí ele foi e falou assim: “uai, minha filha, você tá dentro da sua casa, seus irmãos tudo têm casa, você quer que eu chore? Pois é, tô alegre!”. Nós estamos aqui até hoje, tem muitos anos, nem sei quantos anos que tem. Toninho falou comigo outro dia; esqueci. Sessenta e oito! Graças a Deus, todo dia quando eu rezo eu agradeço a Deus por ter me dado a minha casa, ter criado meus filhos todos aqui, é bom demais, viu! Eu tô achando bonita sua roupa!
zonas, ele chegou com uma latinha enrolada num papel e falou “Luiza, adivinha o que eu tenho aqui na mão”, “ah, pai como é que eu vou adivinhar?”, “Adivinha!”, “Eu não sei, não.”. “Sua mãe plantou pra você, cuidou, e agora tem uma mudinha bonita aí pra você por no seu quintal!”. A árvore tá aí até hoje… O manacá. Tá, tá aí até hoje. Tem muitos anos, quantos anos? Sessenta e oito… Ah, eu vim nova, eu tô velha! Você não repara de eu deitar não, viu, o braço tá doendo. Quando eu vim pra cá, o Vicente mais o Toninho eram pequenininhos. Não sei quantos anos mais não. Então, eu dava uma arrumada na cozinha, nós andávamos pelo bairro todo. Pra conhecer as ruas. É bom demais, eu muito feliz porque tinha conseguido a casa, muito bom! O Toninho mais o Vicente eram pequenos.
Louise: E a senhora ia no rio? Iam nadar ali no Rio Arrudas?
Louise: Obrigada. Como era o quintal da senhora? Quando a senhora veio pra cá plantou muita coisa?
Luiza: Nadar, não. Eu levava os filhos lá, deixava eles entrarem na água. Mas olhando com medo deles afogarem, né. Depois a gente ia embora.
Luiza: Plantei, plantei horta muito grande, cuidei dela muito bem, mas agora que eu tenho cento e quatro anos tem que ficar como está, né?
Louise: E a senhora tinha criação de bichos? Tinha galinha, cachorro…?
Louise: E aquela arvorezinha que tem lá na frente, o manacá? Luiza: Foi meu pai, ele morava ali na Nova Suiça, ali perto da Avenida Ama-
Luiza: Eu tinha. Eu tinha uns dois ou três cachorros… Ah! Galinha eu tinha muita. Sabe quantas galinhas e galos eu tinha? Entre galinha e galo eu tinha oitenta! Era muito mesmo e também era uma fartura de ovos. Não tenho o
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que reclamar da vida, não. Minha vida foi muito boa, viu. Marido era veterinário, ele trabalhava só metade do dia. Quando ele não trabalhava de manhã, ele trabalhava depois do almoço. Ele atendia bem, naquele sossego. 19
maria Louise: Me fala sobre a tradição do congado. Fala sobre seu avô.
Maria: Minha vida foi com meu avô e avó, e não com meus pais. Ele me deu toda a trilha, a experiência da vida. Eu morava com eles. Eu nasci em 24 de dezembro de 1949. Minha avó era catadora de papel, ela andava daqui até o centro da cidade, tinha os pontos lá. Ela criou a gente desse jeito, criou filhos e netos, e ajudava no congado também, dava de comer pra todo mundo. Meu avô era pedreiro, ele mesmo fazia os adobes. Aqui embaixo tinha uma vala, era onde tirava a terra pra fazer a massa. A gente ajudava ele fazer os adobes amassando com o pé. Eu tinha entre 5 e 6 anos. Aqui na esquina, até pouco tempo, ainda tinha uma casa feita com o adobe do meu avô. A fôrma de adobe ele punha na beirada do fogão de lenha, e eu ficava sentada encima ouvindo e aprendendo as músicas do congado com ele. Não tenho uma foto, guardo tudo na memória e esta é a história. Enquanto vida eu tiver eu prometi pro meu avô que não ia deixar o congado acabar. Daí tomei a iniciativa de levá-lo pra
frente. Um dia falei com Santo Antônio: “me dá um homem que gosta de congado”. E ele veio: é o companheiro que eu tenho. Ele é do bairro Aparecida, onde tem o congado. Eu tentava levar o congado no Salgado Filho, mas daí formamos uma guarda que hoje tem 42 anos, lá no Aparecida. E essa é a minha missão. Onde eu vou eu sou conhecida. Me chamaram até pra ser candidata a vereadora, mas eu não quero, não. Eu só não continuei aqui porque não tenho mais vontade. Não conheço mais ninguém aqui, mas lá no Aparecida é só eu descer do ônibus que até os cachorros me conhecem. 20
mindinha Louise: Conta da sua história no bairro e no bar. Mindinha: Eu mudei pra cá em 1947. Eu vim na inauguração das casas populares. A fundação era na pracinha. Eu vim com 3 anos de idade pra cá. Ali pra cima era tudo mato, coqueiros, a terra vermelhinha. A gente ficava tudo sujo. Minha casa era nessa rua mesmo. No dia da inauguração foi bonito. Meu pai foi na Fundação, que era a sede das casas, pegar a chave. Aí o alemão falou assim: “ô, Totonho, não pega uma casa aqui na praça, não, aqui vai ser ruim, vai ter barulho. Vou te dar a chave de uma casa muito boa, com terreno maior.” O alemão nos trouxe
aqui nessa casa, com 540 metros quadrados de terreno. Mamãe e papai gostaram. Eu lembro dos primeiros dias, a gente ficava brincando no quintal. Eu e minhas irmãs saímos um dia andando no bairro e nos perdemos, mas uma senhora ali em cima achou a gente e trouxe de volta. A rua era terra vermelha. A gente ficava vermelhinha...! As outras casas ainda estavam vazias. Aqui do lado tinha uma casa que tinha o time de futebol Mato da Lenha. Na época do carnaval, papai vestiu de mulher e mamãe de homem. E tinha festa nas casas todas. A gente subia na cerca pra ver eles do outro lado. Era bom! Depois meu pai adoeceu, ele teve derrame e ficou muito ruim. Ficamos aqui sozinhas, mamãe ficava com papai no hospital. Agente andava até a Gameleira pra pegar bonde pra ir na Santa Casa. Proibiram ele de fumar, a gente chegava na pracinha e ele estava fumando. Ele enfiava o cigarro no bolso e queimava a roupa. No hospital a gente enchia a banheira e ficava brincando. Era engraçado. Aqui no bairro a gente fez muita amizade. A gente andava de uma casa para outra, era tudo com cerca, não tinha muro. Hoje muita gente mudou, morreu, e a gente vai crescendo também. A família muda, tem filhos, netos.
Louise: Você viveu em outro lugar?
Mindinha: Eu nunca mudei daqui. O bar eu abri em 1985, eu precisava ficar em casa por causa dos meus dois filhos. Precisei montar uma coisa pra mim. Fui na padaria e perguntei pro dono de lá se ele me ajudaria. Ele falou: “como posso te ajudar?”, eu disse: “me empresta uma caixa de cerveja e uma de refrigerante para eu começar.” Daí combinei com o Evaldo, jogador de futebol, um pagode. De uma caixa eu fiz duas, fiz três, e fui aos poucos crescendo. Aqui no bar às vezes coloco as mesinhas ali do lado de fora. Faço carne com mandioca, fritas, bife acebolado. Agora não tenho feito nada, não tem dado movimento. Mas se chegar freguês eu faço, sempre tenho coisas em casa. Eu não gosto de sair daqui, não. Fico aqui... Gosto de viajar, mas não tenho dinheiro.
Louise: Como foi sua juventude aqui? Mindinha: Toda vida trabalhei; comecei em gráfica. Também trabalhei no Calafate, na casa de uma senhora. Fim de semana ia pro clube do trabalhador, em Betim. Ficava lá o dia todo. A noite ia dançar. Isso era nos anos 1960 e 1970. Era bom, gostoso! A gente ia de ônibus, quando não tinha ônibus a gente tinha que andar até a Gameleira e Calafate pra ir pra cidade. A gente andava a pé demais. E gostava. Andava muito. Teve a época que veio o bonde, o trólebus, e depois o ônibus. Dentro do ônibus eu conheci meu marido. Eu estava vindo de uma viagem
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e estava com uma amiga, estávamos no ônibus pra vir pro bairro. Eu estava sentada e ele em pé, e ele olhando pra mim. Quando eu fui descer, ele foi correndo na frente e me deu a mão pra descer. Achei engraçado. Começamos a conversar. Ele também trabalhava no Centro. Depois de um tempo gente começou a namorar. 21
norma Louise: Oi, Norma, me fala um pouco como era esse lugar aqui onde vocês moram. Norma: Aqui era tudo aberto. A gente se comunicava pela janela gritando: Angelina!, Ana!, Maria!! Minha família mora toda aqui, são sete tias e três tios. Aqui não era uma fazenda, mas era um terrenão. Todos moravam aqui e não tinha muro entre as casas. Louise: Por que fizeram muro entre as casas? Norma: Aqui era tudo do meu avô e com o tempo foi sendo invadido. Foram construindo em volta e daí resolvemos cercar uma parte. Minhas tias não tinham documento, então não tinha como garantir a posse da terra. Quando vinha o advogado pra ajudar, elas pagavam com um lote. E assim a terra foi sendo ocupada por gente que vinha de outros lugares. Minhas tias e minha mãe se encontram todos os dias. Temos a Conferência
que é da família toda. Conferência de São Vicente de Paula. Construímos o salãozinho com mutirão. A Conferência funciona assim: nós somos dezesseis pessoas e reunimos para o grupo de oração, para o AA e também ajudamos famílias necessitadas, com remédio, fralda, cadeira de roda, muletas e com os mutirões. Quando precisa ajudar uma pessoa a construir a gente se reúne para decidir e formar o mutirão. Tem barracão que a gente construiu pra pessoas com dificuldades. Cada um doa um pouco e assim fazemos alguns cômodos, ou uma reforma, colocamos telhado, arrumamos instalação elétrica, pintamos. Às vezes até doamos um pedacinho de lote. O mutirão reúne muita gente da família e amigos. Raramente precisamos pagar um pedreiro. A Conferência tem presidente, vice-presidente, tesoureiro e secretário. 22
vitória Louise: Conta sobre como sua família chegou em Belo Horizonte. Vitória: Nós viemos em 1958. Primeiro veio eu e meu pai, de trem. Eu tinha 13 anos. Viemos de Dores do Indaiá. Minha mãe foi criada na roça. Nós viemos na frente, porque eu sou a mais velha dos filhos, e depois veio minha mãe com os meus irmãos e a mudança. Era tudo muito difícil. Meu pai comprou uma casa, que não era das popula-
res. Era um lote que a prefeitura tinha doado, com uma casa sem terminar, por fora nem rebocada era... As casinhas populares eram bem bonitas; pequenas, mas bem arrumadas. Telhadinho, porta, janela e alpendre. No fundo do terreno do meu tio tinha uma bica. Ali a gente lavava a roupa, pegava água pra beber. Era muito limpinha. Minha irmã Marina que lavava a roupa da família. Eu com treze anos comecei a trabalhar. Lá no final da rua Campo Formoso ficava o rio Arrudas. Tinha uma ponte que a gente atravessava e pegava o trem. Naquela época falava subúrbio, que era o trem que ia pra cidade. A gente também podia ir a pé até a Gameleira e pegar o bonde. Ele seguia a rua Campos Sales, a Platina e o final era na Carijós. Nossa casa era de chão batido, o fogão era a lenha, o banheiro era uma privada lá no fundo do quintal, uma fossa. Com o tempo a gente foi terminando de construir a casa, arrumar, pintar. Eu trabalhava na fábrica de bala e biscoito Confiança, na Gameleira. Comecei com 14 anos. Eu ia a pé seis horas da manhã, pela linha do trem. A fábrica era na rua Campos Sales com Amazonas. Depois eu arrumei um emprego na Gráfica Tamóios, e depois levei minha irmã Marina. Minha outra irmã, Nenê, também arrumou emprego em gráfica. A Célia, mais nova, estudava, ela gostava. Quando saí da Gráfica Tamóios fui pra Gráfica Santa Maria, que era muito grande. Eu só parei de trabalhar quando casei.
Meu noivo queria que eu parasse antes, mas eu não podia, senão não tinha como comprar o enxoval. Depois que eu saí do emprego, minha mãe queria que a Célia começasse a trabalhar, que era bobagem estudar. Mas Célia gostava de estudar, não parou. Então ela estudou e trabalhou. Na fábrica de biscoito e bala eu embalava as balas, arrumava nas caixinhas. Tudo era manual, eram 8 horas de trabalho. Na gráfica a gente encadernava os talões, os blocos. Na outra gráfica era o jornal que a gente ajudava a empacotar.
Louise: Como era a vida no bairro? Vitória: Na nossa época de mocinha fazíamos muita hora dançante. Todo domingo, cada vez era em uma casa. Nós tínhamos muitos amigos. Fazíamos ponche, um vinho caseiro. Tinha também alguns bailes à noite que nós íamos. Na nossa casa meu pai abriu um bar. Aí já tinha ônibus. Antes ele era sapateiro. Quando nós mudamos pra BH, meu pai era um sapateiro excelente em Dores. Se mostrasse um sapato de uma revista ele fazia igualzinho. Era o sapateiro das madames. Então, um amigo dele fez uma proposta pra vir pra Belo Horizonte e trabalharem juntos. Ele disse: “você trabalha bem e nós dois juntos vamos crescer.” E disse que ele ia trabalhar e morar na avenida Amazonas. Meu pai veio e se decepcionou, não era nada daquilo que o homem tinha falado. Então, no início, meu pai começou com conserto
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de calçado, abriu uma portinha na Gameleira. Depois ele veio pro Salgado Filho. Mas o conserto de sapato não crescia, daí ele abriu o bar ao lado de casa. O ponto final do ônibus era na porta da minha casa, então era movimentado. Os motoristas, os trocadores, os passantes passavam todos por ali. Minha irmã Nenê ficava atrás do seu Osório, um senhor que sempre passava lá, e ela pedia pra ele pagar uma “caca-cola”. Minha mãe nessa época ajudava muito com costura. Pegava camisas já cortadas (chamava de carregação) e era só passar na máquina. Fazia em casa. As duas primeiras coisas que ela comprou a prestação, que eu ajudei: uma máquina de costura e um rádio. As vezes eu acordava 5 da manhã e ela estava costurando, e eu ia dormir, e ela estava costurando. Ela ganhava por peça. Era difícil, mas a gente era muito feliz. Depois veio o último filho, a rapa do tacho, o Fernando. Meu pai era um amor, ele confiava na gente demais. Ele agradecia muito pelas filhas que tinha. Muito carinhoso com a gente e a gente com ele. Minha mãe também era muito boa, mas era mais brava, mais exigente.
Louise: Quando eram meninas, vocês iam ao rio? Vitória: Não. Era só descer a Camanducaia e chegava no ribeirão Arrudas.
Mas a gente não ia muito. A gente mais brincava perto de casa, sentava na rua. Eu não lembro muito das brincadeiras, porque trabalhava muito cedo.
Louise: Como era o acesso aos alimentos no bairro – leite, verduras, comércio? Vitória: Não lembro. Acho que tinha que ir mais longe pra comprar coisas, aos domingos a gente ia à missa na Gameleira. Ah, sim! Lembro que meu tio tinha um armazém, na Campo Formoso, na descida, perto do Hospital André Luís. Louise: O que aconteceu com a bica? Vitória: Fez rua, foi tampada. A água era limpinha. Era uma nascente que tinha ali. Aí vão destruindo as coisas, o progresso. Meu pai era muito conhecido no bairro, se você perguntar se lembram do seu Agenor, da dona Felícia, muita gente vai lembrar. A dona Neném, nossa vizinha, tinha um pé de amora que caía no nosso quintal e a gente passava por baixo da cerca. Na nossa casa não tinha nenhuma planta. Minha mãe não gostava, mas a dona Neném tinha muita fruta.
Louise: Como era a vida das crianças, dos filhos? Vitória: As casas não tinham muro, então as crianças iam pro jardim dos vizinhos. Um dia eu deitei à tarde com meu filho, que era ainda muito
pequeno, e acabei adormecendo. Quando acordei não o vi. Ele foi para o quintal da vizinha, e estava lá gangorrando. A vida das crianças foi muito boa. Eles tinham tanta liberdade, que num domingo meio chuvoso, estavam as três crianças, Fernando, Pida e Tânia, e passou na rua uma banda de música e as crianças acompanharam a banda. Nós não percebemos. Só mais tarde notamos que eles tinham desaparecido. Procuramos nos quintais dos vizinhos e nada. Eles acompanharam a banda, atravessaram a ponte do rio Arrudas, atravessaram a linha de trem, e, na hora que a banda ia entrar no trem subúrbio, um rapaz viu a Pida chorando e a reconheceu. Ele levou eles de volta pra nossa casa. Olha só, imagina! Eles deviam ter uns 5 anos de idade. Uma aventura que eles fizeram. 23
P. 28/29 Pinturas diversas Tinta Acrílica sobre tela 2015
P. 38 Sem título Tinta Acrílica sobre tela 2015 | 40x30cm
P. 30 Fotografia Arquivo da moradora Eva
P. 39 (superior) Sem título Tinta Acrílica sobre tela 2015 | 40x30cm
P. 31 Sem título Tinta Acrílica sobre tela 2015 | 40x30cm
P. 39 (inferior) Sem título Tinta Acrílica sobre tela 2015 | 40x30cm
P. 32 Sem título Tinta Acrílica sobre tela 2015 | 30x30cm
P. 40 Álbum de fotografias Arquivo da moradora Angelina
P. 33 Fotografia Arquivo da moradora Jandira
P. 41 Sem título Tinta Acrílica sobre tela 2015 | 20x20cm
P. 34 Sem título Tinta Acrílica sobre tela 2015 | 30x20cm
P. 43 Série Casas Populares Tinta Acrílica sobre tela 2015
P. 35 Sem título Tinta Acrílica sobre tela 2015 | 70x50cm
P. 44 Casas Populares Tinta Acrílica sobre tela 2015 | 30x30cm
P. 36 Sem título Tinta Acrílica sobre tela 2015 | 40x30cm
P. 45 Casas Populares Tinta Acrílica sobre tela 2015 | 30x30cm
P. 37 Sem título Tinta Acrílica sobre tela 2015 | 120x80cm
P. 46 Casas Populares Tinta Acrílica sobre tela 2015 | 30x30cm
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Louise Ganz é artista visual e arquiteta, doutora em Artes Visuais pela EBA - UFRJ e professora do curso de Artes Plásticas da Escola Guignard - UEMG. É pesquisadora em arte, enfocando os temas natureza, utopias e geopolítica. Vive e trabalha em Belo Horizonte.
Agradecimentos Equipe do Centro Cultural Salgado Filho, moradores do bairro Salgado Filho: Jandira, Antônio e Cleusa, Eva, Helena, Maria, Iolanda, Belanísia, Antônia, Vitória, Luiza, Mindinha, Angelina, Norma e Welson. Exposição Visitas Centro Cultural Salgado Filho, Belo Horizonte. 7 a 30 de novembro de 2015 Gerente do CCSF Álvaro Sales Desenho de exposição Louise Ganz e Elisa Campos Pinturas Louise Ganz Fotomontagens Isabela Izidoro e Louise Ganz Publicação Visitas Coordenação Louise Ganz Projeto gráfico Isabela Izidoro Imagem da capa pintura de Louise Ganz Fotomontagens Isabela Izidoro e Louise Ganz Textos Elisa Campos, Frederico Canuto e Janaina de Paula Pinturas Louise Ganz Fotografias arquivo dos moradores e Daniel Carneiro Entrevistas Isabela Izidoro e Louise Ganz Transcrição das entrevistas Frederico Resende Revisão Isabela Izidoro Impressão Formato Artes Gráficas Tiragem 500 exemplares Fonte Din Alternate Papel do miolo Chambril Avena 90g Papel da capa Couché Fosco 300g Site Visitas visitassalgadofilho.wordpress.com Webdesign Isabela Izidoro Produção Regina Ganz Assessoria de Imprensa Raquel Utsch Serviços Administrativos Proartminas Contato louiseganz@gmail.com
Este trabalho foi realizado com o patrocínio do Fundo Municipal de Cultura (FMC) de Belo Horizonte Patrocínio
Realizado com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte
VISITAS (lat visitare)
1. Procurar alguém em sua casa, para o cumprimentar, para saber de sua saúde, para conversar etc. 2. Ato de ir ver alguém por cortesia, por dever, ou por simples afeição. 3. Entrar em construções, edifícios, lugares etc. para ver ou observar. 4. Percorrer viajando certas regiões por interesse ou curiosidade.
Visitas é um trabalho de construção da história a partir da microescala do espaço cotidiano. Foi realizado no bairro Salgado Filho, em Belo Horizonte, durante o segundo semestre de 2015, com o patrocínio do edital Descentra Cultura, da Fundação Municipal de Cultura, cujo objetivo é ativar a experiência artística em todas as regiões da cidade. Foram feitas visitas aos moradores para conversarmos sobre a história de suas vidas nesse bairro e conhecer os modos como organizam, inventam e constroem seu espaço cotidiano. Em cada casa há uma história, ora narrada pelas fotografias, ora pelos objetos pessoais, plantas, livros, quintais, móveis ou memórias orais. Durante o período das visitas foram feitos desenhos, pinturas, entrevistas e textos, expostos no Centro Cultural do Salgado Filho. Da intimidade do espaço das casas, este trabalho se desdobrou em passeios no entorno do Ribeirão Arrudas, que margeia o bairro e é referência constante na memória dos moradores do Salgado Filho. A presença da água como elemento natural era misturada às necessidades da população, como lavar roupas, tomar banho, nadar ou passear. As bicas d’água, sempre lembradas como fonte de água para cozinhar, lavar e beber, levou-nos a visitar locais onde algumas nascentes ainda existem, e a história das fazendas onde eram plantadas hortaliças para o abastecimento do mercado central nos fez conhecer áreas verdes nas margens do ribeirão e de seus afluentes mais próximos.
Entretanto, estamos diante hoje não de fazendas, rios, córregos e bicas d’água, mas sim da poluição e canalização do ribeirão ou do aterramento de nascentes, que foram excluídos da vida cotidiana. O ribeirão cumpre o papel de eixo rodoviário, de saneamento e de drenagem como resultado do projeto positivista e sanitarista da cidade; é uma barreira entre as duas margens e é área asfaltada, árida e inóspita. Antes conhecido como Mato da Lenha, o Salgado Filho oficializouse como bairro na década de 1940, com a construção de 300 casas populares, ainda hoje existentes em algumas ruas, com sua fisionomia original. As histórias narradas trouxeram a presença do trem, do trólebus e do caminhar para se chegar ao centro da cidade, a vida nas ruas, as brincadeiras infantis, os bailes nas salas de visita, as amizades entre vizinhos, os quintais produtivos e os jardins arborizados e floridos. Quando os moradores contam suas vidas, eles fazem referência constante ao espaço, seja da casa, da cidade ou da geografia. Através de suas narrativas podemos perceber o tempo, passado, presente e futuro como camadas sobrepostas e vivas, e não como tempos estanques e distintos. A memória aqui não é apenas um registro do passado, mas é algo que nos permite pensar o futuro.
PatrocĂnio
Realizado com recursos da Lei Municipal de Incentivo Ă Cultura de Belo Horizonte
ISBN 978-85-64194-11-3