Eu e o Caminho - Histórias dos peregrinos do Caminho de Santiago

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Eu e o Caminho



Eu e o Caminho Hist贸rias dos peregrinos do Caminho de Santiago de Compostela

Isadora Mota


Copyright © Isadora Mota Publisher: Isadora Mota Edição: Isadora Mota Editor Orientador: Luis Carlos Ramos Revisão: Gabriel Kwak Projeto Gráfico, Capa e Diagramação: Sami Reininger

Mota, Isadora Eu e o Caminho. / Isadora Mota. – 2014. 218 p.; 21 cm. Lirvro Reportagem (Trabalho Conclusão de Curso) Curso de Graduação em Comunicação Social - Jornalismo, Fontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2014. Bibliografia: p. 201. 1. Caminho de Santiago. 2. Santiago de Compostela. 3. Jacobeo. 4. Histórias. 5. Peregrinos I. Título.


Sumário Introdução

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Capítulo 1 - De pescador, a apóstolo e lenda

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Capítulo 2 - A Catedral e a Cidade de Santiago de Compostela

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Capítulo 3 - Caminhos, Peregrinos, Peregrinações,...

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Capítulo 4 - Uma vez peregrino, sempre peregrino

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Capítulo 5 - O peregrino por amor

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Capítulo 6 - Um sonho de caminho

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Capítulo 7 - Um padre no Caminho

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Capítulo 8 - Uma conexão que vai além das estrelas

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Capítulo 9 - Vivendo do Caminho

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Capítulo 10 - O homem que perseguia as mulheres

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Capítulo 11 - Um legítimo latino-americano

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Capítulo 12 - Eu e o caminho

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Capítulo 13 - Os signos do Caminho

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Capítulo 14 - Não se define, não se explica e não tem final

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Os Peregrinos

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Aos meus pais, Joselma e Ulisses, pela oportunidade de realizar o sonho de fazer intercâmbio, por todo apoio e incentivo para que eu me torne jornalista. Ao meu irmão, Victor, pela eterna companhia e pelo carinho nas horas de angústia. Às amigas, Juliana, Maiara e Gabriela pela paciência, torcida e parceria nesse período de finalização do curso. Ao meu chefe e amigo, Guilherme pelo apoio e pelas folgas que proporcionaram a realização desse trabalho. E por último e não menos importante ao meu coordenador Luis Carlos pelo acompanhamento e por todos os conselhos dados neste ano trabalhando juntos.



“O equívoco é acreditar que porque ninguém vê não existe” Eliane Brum “Jornalismo é a melhor profissão do mundo” Gabriel Garcia Márquez



Introdução



Nos últimos seis meses de 2013, morei e estudei na cidade de Santiago

de Compostela, na Espanha. Como sempre fui apaixonada por histórias e lendas medievais, rapidamente me encantei pela arquitetura da cidade e, principalmente, pela beleza da Catedral de Santiago. Dessa forma, não foi difícil me adaptar ao estilo de vida de Santiago. Logo no primeiro dia me vi tomada pela paz e pela energia inexplicável daquele lugar. Quando decidi estudar na Universidade de Santiago de Compostela (USC), um colega de trabalho comentou que havia feito o Caminho de Santiago e me aconselhou a fazer também. Eu já havia escutado alguma coisa sobre o Caminho e nunca tinha pensado em fazer. Mas as historias desse colega começaram a aguçar a minha curiosidade e o desejo de aventura. Por conta dos meus compromissos acadêmicos, eu não teria tempo de cumprir toda a rota francesa Então, fui aconselhada a fazer apenas o caminho até Finisterra, o Fim do Mundo. Fiz uma busca na internet, vi algumas imagens e sai do Brasil decidida a percorrer pelo menos aquele trecho de quase 100 km para ver aquele belo pôr do sol.


Até então, eu não tinha planos de escrever um trabalho sobre Compostela ou seus caminhos e peregrinos. Estava focada apenas na experiência do intercâmbio. Contudo, conforme eu ia conhecendo a cidade e fuçando as lojas de suvenir, vi que havia algo mágico naquela cidade, um misto harmônico de crenças. Nas lojas, apesar de uma predominância católica, é possível encontrar inúmeras lembranças com símbolos pagãos de origem celta. Um mês depois de chegar à Galícia, planejei e fui fazer o Caminho de Finisterra com quatro amigos intercambistas, dois mexicanos, uma francesa e uma alemã. Eu não tinha a pretensão de escrever nada sobre a experiência que fosse além do meu diário pessoal, até o momento em que quase fomos atacados por cachorros. Logo em seguida conheci o Wilbert. Um peregrino holandês, que se tornaria personagem do meu livro. É uma pessoa tão interessante, com tantas histórias para contar, que me levou a imaginar: Quantas pessoas como ele não teriam passado por ali? Olhei para o lado e lá estava mais uma, meu amigo Carlos. Então, antes de chegar ao “Fim do Mundo”, decidi que contaria as histórias desses peregrinos. Voltei do Caminho para Santiago e, de lá, contei aos meus pais, pelo Skype, sobre aquela ideia que tive. Alguns dias depois, minha mãe me mandou uma mensagem contando da reportagem do programa Fantástico, da Rede Globo, que relatava o Caminho do Evandro e do Josimar. Os dois já foram para a minha lista de personagens. De volta ao Brasil, e às aulas na PUC, comecei a organizar o meu trabalho. Entrevistei Carlos por Skype, Wilbert por email e comecei a buscar o contato do Evandro. Encontrei pelo Facebook e, depois de alguns dias conversando, vimos que seria mais fácil fazer uma entrevista via Skype, porque nossos

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horários não coincidiam. Conforme eu ia pesquisando e conversando sobre o Caminho, os personagens iam aparecendo, como se eu estivesse percorrendo as trilhas jacobeas. Encontrei o Alberto por indicação de uma associação espanhola de peregrinos, Acacio me foi indicado por Evandro e Dom José Maria foi apontado pelo professor Fernando Altemeyer Junior, da PUC, com quem conversei sobre o poder das crenças e das religiões. Fiquei tão empolgada com um personagem que representasse o clérigo que me dispus a ir até Belo Horizonte, em uma viagem de bate e volta, se fosse preciso, para entrevistá-lo. E foi o que acabei fazendo. Solange e Paulo apareceram para mim por acaso. Eu estava fazendo uma busca na internet sobre o Caminho quando me apareceu um artigo que Paulo tinha escrito para a PUC-SP comentou a sua pesquisa de mestrado sobre os relatos dos peregrinos, em que citava parte da sua experiência. Usei o nome que assinava o artigo para fazer uma busca de contatos na internet e começamos a conversar pelas redes sociais até marcarmos as entrevistas. Nossa primeira entrevista foi tão rica em informações que achei necessário marcar mais uma para focarmos mais o assunto. Encontrar Solange foi o acaso dos acasos. Fui fazer a unha na manicure da minha rua e, quando cheguei ao local, a primeira coisa que vi foi uma tatuagem de uma vieira e um cajado de peregrino na perna da cliente que estava sendo atendida. Prontamente puxei assunto com ela, anotei os contatos e marcamos um dia para a entrevista em sua casa, que, por coincidência era a menos de 500 metros da minha casa. Apesar do trabalho de entrevistar peregrinos dentro e fora do Brasil, ter sido longo, não tive muito estresse. Deve ter sido a energia poderosa do Caminho que estava do meu lado me ajudando e colocando cada personagem na minha

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rota. Conforme eu ia avançando, eles iam aparecendo para mim e nós íamos conversando da maneira que posse possível, com ou sem a ajuda das redes sociais, aplicativos de comunicação, etc. Santiago de Compostela me marcou não apenas pela experiência do intercâmbio, mas também pela experiência do Caminho e todas as lições que me foram trazidas por meio dos meus personagens e da minha própria caminhada. Agora, planejo percorrer todo o Caminho Francês, junto com a minha família, e ter uma nova e quem sabe mais intensa experiência de peregrina.

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I De pescador, a ap贸stolo e lenda



O apóstolo Santiago é um personagem que, ao longo da história, foi cercado de lendas e mitos. Sabe-se, de fato, que ele era filho de Zebedeu e Salomé e irmão do também apóstolo João. Conhecido no nosso evangelho pelo nome de Tiago, Santiago, como seu nome já sugere, foi um dos 12 santos apóstolos de Jesus Cristo. O seu nome tem muitas versões, Diego, Jacobo, Jaime (em inglês: James) e Iago, mas, de acordo com a sua consagração, o nome pelo qual ficou conhecido o apóstolo responsável pela evangelização da Espanha é Santiago o Jacobo.

Segundo o livro de Manuel Jesús (1999), professor do Instituto de Teologia de Santiago de Compostela, o nome Santiago é a soma de duas palavras: santo e jacobo. Por isso também encontramos na literatura compostelana o termo jacobeo, designado a todo seguidor do Santo Jacobo e também dá origem ao segundo nome pelo qual é conhecido o caminho percorrido por milhares de peregrinos por toda Espanha, o Caminho Jacobeo, ou seja o Caminho de Santiago.


O nome Jacobo é muito conhecido pelos Cristãos como Jacob, ou Jacó, que na Bíblia era o irmão gêmeo de Esaú que engana o pai Isaque se fazendo passar pelo irmão para ficar com os direitos reservados ao primogênito da família. Porém, “cientificamente”, o nome Jacob significa: “aquele que quer defender a Divindade”. Quando consagrado apóstolo, o filho de Zebedeu, ganhou o apelido de “o Maior” para distingui-lo de outro Santiago, filho de Alfeu e Maria, conhecido como o menor. Não há evidências concretas que expliquem essa distinção, segundo Manuel Jesús, acredita-se que seja porque o segundo Tiago aderiu à vida apostólica após o primeiro.

A origem Existem poucas informações sobre a origem da família de Zebedeu, devido ao pouco que se conhece sobre a região da Galiléia no começo do primeiro milênio. Dados oficiais afirmam que os irmãos João e Thiago são de uma localidade de Betsaida, uma vila de pescadores no mar da Galiléia. De acordo com o Evangelho de João (1.2), outros discípulos de Jesus também vieram da mesma região, Filipe, André e Pedro, ainda segundo dados bíblicos, em Lucas (4.5), é próximo a essa região onde Jesus fez o “milagre da multiplicação”. Há outra tradição datada do século XVI, segundo a publicação de Jesús, que situa a terra natal de Santiago em Yafía, ou Yafa, cidade situada a três quilômetros de Nazaré próximo a uma estrada que leva a Tiberíades passando por Canaã, se trata de um pequeno povoado de pouco menos de 1.500 habitantes. Não há dados que provem esses boatos, mas há ali uma igreja dedicada ao apóstolo.

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Santiago “Matamouros“. Escola gótica aragonesa. Museu Lázaro Galdino


O discípulo Tiago e seu irmão nasceram em uma época de grande opressão política e religiosa, em que a Palestina ainda era parte do Império Romano. Em meio a tanta miséria, os movimentos religiosos, às vezes por iniciativa apenas de uma pessoa, levavam à população desiludida a sensação de acolhimento e esperança. Esses indivíduos, que por livre e espontânea vontade, passam os ensinamentos da tradição cristã a população eram também uma espécie de professores da população e era um período em que a educação popular estava atrelada a religião. Um desses “entregadores da palavra” que ficou conhecido por pregar a religião de Cristo foi João filho de Zacarías e Isabel, e primo de Jesus de Nazaré, segundo o Evangelho de São Lucas (1:5), e que ficou conhecido na Bíblia como João Batista, por conta de seu hábito de batizar os fiéis nas águas do rio Jordão na região da Judéia. Foi na escola ao ar livre de João Batista, onde os filhos de Zebedeu e seus amigos André e Pedro tiveram o seu primeiro contato com Jesus, que foi apresentado por Batista como o “verdadeiro cordeiro de Deus, que irá tirar os pecados do mundo”. De acordo com estudos de Manuel Jesús, quando Tiago, seu irmão João e seus companheiros terminaram sua estadia na Judeia, eles decidiram voltar a sua terra natal na Galiléia e aproveitaram que Jesus faria o mesmo caminho para seguirem juntos, algo que era comum na época para evitar ataques de saqueadores na estrada. O grupo ainda iria junto à Canaã para o casamento retratado no Evangelho de João (2:1 -11) como o local onde Jesus realizou o seu primeiro milagre, transformando água em vinho. Apesar de o primeiro capitulo do Evangelho de João citar Pedro e Filipe como discípulos de Jesus nessa

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viagem, e que a estavam como seguidores, no livro do professor de teologia compostelano era apenas uma questão de segurança, mas que serviu para estreitar a relação entre o mestre e seus futuros alunos. Ainda segundo os estudos do professor Jesús, houve uma segunda ocasião onde Zebedeu e seus companheiros se encontraram com o messias, durante a peregrinação a Jerusalém que todo judeu deve fazer pelo menos uma vez na vida. O chamado dos discípulos se deu, de fato, quando estes estavam na praia arrumando as redes quando Jesus apareceu e pediu que o seguissem, e eles assim o fizeram. Não se sabe ao certo se o grupo iniciou a marcha no mesmo momento do chamado, também não se pode afirmar se eles tinham família e que a abandonaram. O professor acredita que sim, pois nessa época casava-se muito cedo. Na Bíblia o episódio do chamado ao apostolado de Tiago o Maior aparece em três evangelhos diferentes, em Mateus (3: 18-22), em Marcos (1: 14-20) e em Lucas (5:8-11) que relatam a passagem de Jesus pelo mar da Galiléia. Ele primeiro convoca André e Pedro - também chamado de Simão – dizendo: “Vinde após mim e vos farei pescadores de homens”, logo em seguida, Jesus passa pelos irmãos Tiago e João que consertavam redes e os chama, eles também o seguem. No evangelho de Lucas, há o relato da pesca milagrosa, quando os irmãos Zebedeu e Simão Pedro não estavam tendo sorte com a pesca, mas a pedidos de Jesus jogaram outra vez as redes que voltaram cheias de peixes. Temerosos pelos milagres que presenciaram, foram acalmados pelo chamado de seu Mestre: “Não temas; doravante serás pescador de homens.” O hábito de falar em parábolas era comum nessa época onde homens com maior nível de instrução, como Jesus, buscavam a melhor forma de se fazer entender

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Santiago Peregrino


por pessoas mais simples com um nível inferior de conhecimento. Devido a essa diferença, em seu livro, Manuel Jesús levanta a possibilidade de que Jesus escolheu o termo “pescadores de homens” para criar uma associação ao ofício dos irmãos, e assim tornar mais fácil o entendimento da missão que ele lhes conferia. Como foi um dos primeiros apóstolos e o que aceitou prontamente o chamado de Jesus, Santiago, já apostolo, era considerado um dos favoritos de seu mestre. O livro de Manuel Jesús (1999), sobre a vida do apóstolo Santiago, traz dados interessantes acerca das crenças da época. Ele comenta, por exemplo, que os judeus acreditavam que a vinda do messias traria de volta o reino de Israel, formado segundo o Velho Testamento por doze tribos governadas pelos 12 filhos de Jacó, e por isso teriam sido escolhidos 12 apóstolos. A palavra apóstolo tem origem grega, significa mensageiro, aquele que entrega, mas em alguns casos também poderia ser interpretada como “comandante”. A publicação sugere que Santiago e seu irmão ambicionavam os primeiros postos desse futuro reino que triunfaria sob o domínio romano.

Evangelização da Espanha Apesar de estar muito enraizada na tradição cristã a passagem do apóstolo Santiago pela Espanha, há muitas contradições e questionamentos acerca dessa teoria. Uma das escrituras mais antigas do catolicismo, a Bíblia Sagrada pouco fala sobre o que aconteceu com o discípulo após a crucificação de Jesus. Segundo as escrituras bíblicas, em uma de suas aparições aos apóstolos – feitas ao longo de 40 dias – Jesus recomendou que seus seguidores aguardassem a vinda do Espírito Santo para que passem a espalhar a “palavra de Deus”,

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dizendo-lhes: ”Não vos pertence a vós saber os tempos nem os momentos que o Pai fixou em seu poder, mas descerá sobre vos o Espírito Santo e vós dará força; e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda Judéia e Samarita e até os confins do mundo” (At 1: 7-8). A palavra “tempos”, na fala de Cristo, deixa em aberto o quanto tempo se passou até que os apóstolos recebessem o Espírito Santo e começassem a pregar o evangelho em diversas línguas, fato descrito no Novo Testamento em Atos dos Apóstolos (2: 1- 13). Assim, é difícil precisar a data em que o filho de Zebedeu esteve na península ibérica. De acordo com a tradição bíblica, Jesus de Nazaré morreu no ano 30 e o filho de Zebedeu, primeiro apóstolo a morrer, foi assassinado (At 12: 1-2) entre os anos 43 e 44, por ordem do rei Herodes, morto em 44. Por tanto, se o Maior esteve mesmo na Espanha foi entre esse período de, aproximadamente, 14 anos após a crucificação de Jesus. As tradições ligadas ao apóstolo datam dos séculos IV e V, especialmente deste último, mas, os documentos que começam a circular pela Europa a partir de o século VII no Breviarum Apostolorum, que informa que “Santiago, o filho de Zebedeu prega, na Espanha e nas terras ocidentais”. Um calendário do monastério de Santa Catarina no monte Sinai, no Egito, com escrituras que parecem, segundo o livro do professor Manuel Jesús, ter sido escritas por alguma comunidade norte-africana, dizem que “Santiago de Zebedeu pregou na Espanha”. San Isidoro, arcebispo de Sevilha no século VII, em sua obra De ortu et obitu Patrum, onde descreve a vida e a morte de personagens do Velho e Novo Testamento, termina sua fala sobre Santiago dizendo: “pregou o evangelho na Espanha e nas terras ocidentais e introduziu a luz da pregação no fim do mundo”.

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Quanto aos meios que Santiago usou para chegar à Península Ibérica, foi provavelmente o trajeto feito de barco, algo que já era comum no século I cristão. Nessa época eram comuns as rotas marítimas pela costa mediterrânea da Espanha, Galícia e Britania, locais de comércio de estanho. O apóstolo poderia ter tomado qualquer uma dessas rotas, ele poderia ter também entrado por Andaluzia e subido por Portugal até a Galícia, a mais ligada às tradições jacobeas. Segundo as tradições espanholas, foi na Galícia aonde o filho de Zebedeo encontrou os seus próprios discípulos Atanasio e Teodoro, os dois que foram enterrados juntos aos restos de seu mestre. Há também, segundo o Calixtino manuscritos do século XII que descrevem a milagres e narrativas do apóstolo Tiago e mais antigo guia dos peregrinos – outros sete galegos foram eleitos para colaborar com Santiago: Torcuato, Tesifote, Segundo, Indalecio, Cecilio, Hesiquio e Eufrasio, foram consagrados bispos pelos apóstolos Pedro e Paulo em Roma e seguiram em missão evangelizadora pelas demais comunidades da Espanha. Outros três discípulos, eleitos em Jerusalém, Fileto, Josías e Hermógenes também foram consagrados, mas não participaram da missão hispânica, pois ingressaram no cristianismo após a morte de seu mestre. Na Galícia, depois de Compostela, a cidade que mais possui memórias do apóstolo, segundo o cronista Ambrosio de Morales, enviado do rei Felipe II (sec. XVI), é Padrón. Ali está o monte de San Gregorio, onde é celebrada a festa de Santiaguinho do Monte, onde existe uma fonte na qual se crê que foi usada pelo apóstolo e onde os peregrinos se lavam e bebem água. O monte também é o local no qual se acredita que exista uma gruta aonde o apóstolo se escondeu fugindo da perseguição dos pagãos. Em Finisterra, cidade do extremo norte do litoral galego, estão as supostas pegadas de Santiago e segundo a tradição foi o lugar

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onde a Virgem apareceu para ele. Também em Muxia, que assim como Finisterra é uma cidade de continuação da peregrinação, acredita-se que a Nossa Senhora fez uma aparição ao evangelizador da Espanha. Saindo das terras galegas, registros do século XIII falam de outra aparição de Maria para o apóstolo em Zaragoza, em que a mãe de Jesus teria de levantar o moral e animar o discípulo de seu filho a continuar a sua missão, mesmo perante a falta de resultados de suas pregações.

De volta para morrer em casa De acordo com o livro do professor de teologia, Manuel Jesús, alguns estudiosos acreditam que Santiago o Maior voltou para Jerusalém após passar seis anos na Península ibérica. Na Terra Santa, segundo o Novo Testamento, Herodes de Agripa, neto de Herodes o Grande, e perseguidor de Jesus, lhe “deu a morte pela espada” (At 12: 1-2). Assim como João Batista, o irmão de João Evangelista foi decapitado, pena dada aos acusados de incitar a idolatria coletiva e homicídio. A sentença foi executada no período da Páscoa cristã. Crê-se que a intenção de Herodes era a de intimidar e causar terror aos judeus. Há outra versão para os últimos dias do filho de Zebedeu, no livro medieval do século XIII, Legenda Áurea ou Lenda Dourada, popular em sua época por narrar histórias de santos católicos reunidas por Jacopo de Varazze, que viria a se tornar bispo de Gênova, narra que no caminho para sua execução, o apóstolo realizou seu ultimo milagre, curando um paralítico que estava no caminho. Para os armênios a decapitação do santo Jacobeo aconteceu no bairro armênio de Jerusalém, onde eles

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ergueram uma catedral em homenagem a Santiago o Maior, e uma capela onde creem que foi erguida no exato local de sua morte. Esse santuário é datado do século VII, mas o templo atual é do XII, reformado no século XIII. Além de construir uma catedral em homenagem ao evangelizador da Espanha, os armênios reivindicam a posse dos restos mortais do apóstolo que eles alegam, para o autor do livro Santiago Apóstol, terem sido roubados pelos espanhóis. De acordo com a lenda compostelana, após a decapitação, os judeus deixaram o corpo de Santiago jogado em um campo fora da cidade de Jerusalém, para não contaminar a cidade e para que fosse devorado pelas “bestas”, a intenção de Herodes era causar medo na população judaica. Mas seus apóstolos resgataram os seus restos mortais e o sepultaram em uma arca de mármore. Essa passagem foi relatada nas duas obras medievais, o De ortu et obitu Patrum, que relata a vida e morte de santos cristãos, e no Breviarium Apostolorum. Não há dados históricos que comprovem o destino do corpo do apóstolo após a sua morte, o que nos prende a lendas e crenças locais. Diz a lenda que os discípulos Atanásio e Teodoro levaram o corpo de Santiago o Maior de barco, navegando desde a Palestina, passando por Gibraltar, até chegar a Padrón na costa da Galícia. Quando buscavam um local apropriado para enterrar o seu mestre, os apóstolos chegaram à região de Castro Franco, onde vivia uma rainha pagã, galaico-romana, chamada Lupa. Os dois homens então pediram a sua autorização para enterrar o Apóstolo, mas, como não era cristã, a senhora os aconselhou a pedir autorização ao governador romano da região, o qual mandou que os prendessem acusados de disseminar a fé de Cristo.

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Com a ajuda de um anjo, os dois apóstolos conseguem fugir dos soldados romanos e voltam ao encontro de Lupa. Ela os mandou ir ao monte Ilicino, local conhecido hoje como Pico Sacro, para que buscassem dois touros, amarrassem-nos a uma carroça e levassem o corpo de Santiago para onde quisessem. No monte eles teriam sido atacados por um dragão, mas o afugentaram com o sinal da cruz e usaram do mesmo gesto para amansar os touros selvagens. Ao presenciar tais milagres, Lupa se converteu ao cristianismo e doou parte de suas terras, região de Liberum Donum, ou Libre-dom, atual Santiago de Compostela para que o Apóstolo fosse enterrado lá. Nesse local os discípulos colocaram as relíquias numa arca de mármore que seria a “Arca Marmárica” ou as “Arcas Marmóreas”, construíram sobre ela um altar e uma pequena capela, a qual ficou entregue aos cuidados dos dois até o dia de sua morte, quando foram sepultados ao lado do Apóstolo. Esse fato justifica terem encontrado três os túmulos de mármore oito séculos depois. O local foi onde mais tarde se levantaria a famosa Catedral de Santiago de Compostela. Há outra versão presente no livro do professor Manuel Jesús que diz que foi a própria rainha Lupa que enviou os touros aos discípulos para que eles levassem o corpo de Santiago para a Espanha, e que no monte Ilicino eles enfrentaram uma serpente da qual se salvaram fazendo o sinal da cruz. Até o século IV os fiéis rezavam sob o sepulcro do Apóstolo, depois começaram a construir igrejas no local, por volta do século VI o templo em homenagem a Santiago o Maior surgem em vários lugares, como Inglaterra, Galícia e Astúrias.

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Imagem do ap贸stolo localizada no P贸rtico da Gl贸ria em Santiago de Compostela



II A Catedral e a Cidade de Santiago de Compostela



Símbolo do final da jornada jacobea e objeto de desejo dos peregrinos mais

religiosos, a Catedral de Santiago de Compostela foi construída onde, de acordo com a tradição foram encontrados os restos mortais de Santiago o Maior. O templo que conhecemos hoje, com bases em construções românicas, é o terceiro feito em homenagem ao apóstolo no mesmo local. Sua construção foi iniciada no século XI, aproximadamente no ano 1075, durante o reinado de Afonso IV, o Bravo, e sob a gestão do bispo compostelano Diego Peláez. Os primeiros arquitetos foram os mestres Bernardo e Roberto, mas, ao longo dos anos, outros arquitetos tocaram o projeto.

Construída em forma de cruz latina, a catedral tem 23 mil m² de área, com braços de 100 e 70 metros de comprimento. A torre mais alta, na fachada do Obradoiro, mede 80 metros de altura, e a cúpula 32 metros. Em sua origem possuía 120 janelas, mas algumas desapareceram devido às obras que foram feitas com o passar dos anos. De acordo com informações do site da Catedral de Santiago de Compostela, a obra foi concluída em 1168 pelo Mestre Mateo,


arquiteto e escultor que dá nome à faculdade de artes da cidade. Porém, o livro do professor de Teologia da Universidade de Santiago indica que a data de conclusão da catedral românica foi 1122. É difícil precisar a data na qual o templo do Apóstolo ficou pronto, pois ao longo dos anos, conforme mudavam os reinados e a moda arquitetônica da época, a catedral ia sendo modificada. O interior românico manteve-se praticamente intacto, a maior parte das novas obras foram feitas na parte exterior. Além de alterações meramente estéticas, também foram feitas reformas de ordem prática, por exemplo, a instalação do órgão. E assim as mudanças seguiram até meados do século XIX. Hoje em dia, a estrutura desse espaço sagrado só é tocada pelo homem para manutenção e limpeza da fachada.

Seu entorno uma nova peça de arte Cercada por quatro praças, a Catedral e seu entorno exerceram uma forte influência no desenvolvimento da arte e da arquitetura não apenas na Galícia, mas também em todo o norte da Península Ibérica durante o período românico e barroco. A Plaza de la Inmaculada, conhecida popularmente como Azabachería, está localizada atrás do templo do Apóstolo e é a primeira que o peregrino do Caminho Francês encontra. No passado o lugar era conhecido como paraíso pelos peregrinos, devido à bela arquitetura da fachada românica da Catedral. Onde hoje estão localizados o Monastério e a Igreja de San Martín, foi um hospital e uma hospedaria de peregrinos, as fachadas atuais levaram dois séculos para ficarem prontas.

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Foto: Divulgação

Foto: Divulgação

Plaza Azabacheira.

Catedral de Santiago de Compostela vista de baixo.


Passando pelo arco do Palácio de Gelmírez, do século XIII, chegamos à Plaza de Espanha ou Obradoiro, nome pelo qual o local é popularmente conhecido, porque foi onde trabalharam as pedras da Catedral. Além da fachada principal da Igreja, essa praça está cercada por outros três edifícios, o Hotel dos Reis Católicos, obra do século XVI, o Palácio de Rajoy, construído por ordem do arcebispo D. Bartolomé de Rajoy y Losada para ser a prefeitura e o seminário de confessores da Catedral no século XVIII. Hoje o edifício de estilo neoclássico funciona apenas como prefeitura e a presidência da Xunta (Governo da Galicia). O último prédio, chamado de Rectorado, é o antigo Colégio de S. Jerónimo ou Colégio dos Artistas fundado pelo arcebispo D. Alonso de Fonseca, no local do antigo Hospital de Azabachería construído no século XVII. A terceira obra prima do entorno catedrático é a Plaza de las Platerías, seu nome se deve ao grêmio dos plateros (prateiros), que chegou a ter muita força na cidade de Santiago. Nessa praça pode ser vista a fachada da catedral e a fachada do claustro catedralício, uma espécie de corredor de arcos que formam um túnel, feitos em estilo plateresco, uma tendência artística do Pré-Renascimento espanhol. A Quintana é a última praça com vista para uma das fachadas da Catedral. O seu nome oficial foi mudado para Literato, em homenagem ao batalhão de jovens universitários que lutaram contra as invasões napoleônicas, de acordo com o professor Manuel Jesús, mas se bem me lembro, no local segue uma placa com o nome Quintana e é assim que todos a chamam. Para essa localidade não se usa o logradouro “praça”, porque seu nome por si só significa praça, por isso fala-se apenas Quintana, para evitar redundâncias. O lugar ainda tem duas divisões, Quintana dos Mortos, parte mais baixa da praça, onde um dia foi um cemitério e Quintana dos Vivos, local onde ficavam os escritórios e tribunais de Santiago.

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Em seu interior, a Catedral de Santiago é uma verdadeira galeria de arte, onde você encontrar vários exemplares de diferentes períodos da arquitetura espanhola. O altar principal está localizado na Capela Maior, o conjunto é uma obra do século XII, reformada nos séculos XV e XVI até que foi completamente modificada entre os séculos XVII e XVIII. Outra obra importante no interior da Igreja é o Pórtico da Glória, feito pelo famoso Maestro Mateo em estilo romântico por volta do século XII. O maestro também é o responsável pela construção das naves (corredores) da Catedral, essa obra exigiu a construção de uma nova crípta para o Apóstolo devido ao desnível entre as naves. O pórtico atual é fruto das reformas que o templo sofreu ao longo dos anos, principalmente nos séculos XVII e XVIII. A parte interna permanece a mesma, mas a externa desapareceu durante a construção da fachada barroca da praça do Obradoiro. O tema da obra do Maestro Mateo é a própria igreja, com figuras bíblicas e uma forte influência do Livro do Apocalipse. Um dos símbolos mais famosos das missas celebras na Catedral é o Botafumeiro, um incensário de 53kg e 1,5 metros de altura que pendula a 20 metros do chão pela nave lateral. A tradição do Botafumeiro na igreja vem desde o século XI, mas o seu uso, da maneira com a qual fazemos hoje, é de 1554, construído graças a uma oferenda do rei Luis XI da França. A peça original era feita de prata, mas foi roubado em 1809 pelas tropas francesas durante a guerra da independência. O atual é feito de latão revestido em prata. Usa-se o botafumeiro por causa do grande número de peregrinos que chegavam à cidade e dormiam na Catedral - durante a Idade Média, e ainda hoje, as Igrejas eram o principal abrigo das peregrinações. O excesso de peregrinos deixava a igreja com um cheiro muito forte, por isso era necessário um incensário tão

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grande para espalhar incenso e amenizar o odor. Hoje o botafumeiro é utilizado apenas nas celebrações solenes ou patrocinadas, nos dias comuns os ritos seguem os mesmo de outras igrejas com uma peça menor. Além do local de celebrações religiosas, a Catedral abriga um museu que conta a sua história e a da cidade, e um enorme e raro acervo bibliográfico, que inclui livros sobre arte, literatura, economia e comércio, música, educação, medicina e saúde, direito e administração, e da Igreja, claro. A área de documentação medieval inclui o Códex Calixtinus, primeiro guia de peregrinos do qual se tem registro e outras obras da Idade Média, como Siete Partidas del Rey Don Alonso el Nono (Sete Partidas do Rei Alonso Nono), de 1789, obra mais importante da história do direito espanhol. O original foi escrito no sec. XII em Castilha durante o reinado de Afonso X. Chamado originalmente de Livro das Leis foi um importante conjunto de leis que teve vigência em todo o império hispânico até o século XIX. Considerado, também, uma enciclopédia de valores humanos teve o seu nome modificado para Sete Partidas no séc. XIV devido à forma em que foi dividido.

A cidade Declarada, em 1985, Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO, a cidade de Santiago de Compostela é um dos maiores destinos de peregrinação cristã. Está atrás apenas de Jerusalém e do Vaticano. Fundada no século IX, época do descobrimento da cripta do Apóstolo Santiago, a cidade se tornou símbolo da luta entre cristãos e muçulmanos na Península Ibérica. Destruída e reconstruída, após anos de luta, Compostela é uma das cidades medievais mais bonitas da Europa com misto de arquitetura românica, barroca e gótica,

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tornou-se uma região única onde o velho e o novo, o cristianismo e o paganismo convivem em plena harmonia. Apesar de alguns autores falarem em “invenção”, ou “reinvenção” da cripta apostólica, a história conta que por volta do ano 820, foi descoberta uma arca de mármore na região da Galícia onde fora sepultado o Apóstolo Santiago. Os dados dessa época são pouco precisos, e muitas vezes se misturam a lendas, mas o que se sabe é que a partir desta data, o rei das Astúrias, Afonso II, o Casto, mandou que fosse construída a primeira basílica em homenagem ao apóstolo, começando um grande movimento de devoção a Tiago o Maior, evangelizador da Espanha. Porém o templo não durou muito e sucumbiu às primeiras invasões mouras do século IX e X. A cripta se tornou símbolo da resistência dos cristãos hispânicos contra os muçulmanos por resistir à destruição causada pelas batalhas e pela dominação islâmica na região. Segundo informações da UNESCO, a devoção era tanta que a vitória dos cristãos na guerra de Clavijo, contra as tropas de Abd ar Rahman II , foi atribuída a Tiago o Maior. Em 997, a cidade foi novamente tomada pelos inimigos, sob o comando de Al Mansour, e completamente destruída, da basílica, restou apenas a cripta apostólica. A reconstrução do templo e da cidade só foi retomada no século XI com a expulsão dos mouros. Diz a lenda que o Apóstolo aparecia para os soldados cristãos durante as batalhas, por isso ele também passou a ser conhecido como Santiago Matamouros. O primeiro nome que foi dado à região, do qual se tem registro é Libredón, que pode ter origem celta e significar “castro do caminho”, ou vir do latim liberum donum, que quer dizer “concessão gratuita”. Após o descobrimento da cripta, o

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Foto: Isadora Mota

Foto: Isadora Mota

Catedral de Santiago de Compostela.

Plaza de Obradoiro.


território passou a ser conhecido como “Arca Marmórica”, em referência à arca de mármore na qual estavam guardados dos ossos de apóstolo. O termo Compostela, do latim “campus stelae” (campo de estrelas) é uma que diz respeito à chuva de estrelas, que segundo a lenda teria guiado um eremita até o local onde Tiago estaria enterrado. Há também quem diga que foi o bispo Teodomiro que foi levado pelo sinal de uma estrela até esse local. Mas, como já dissemos, há poucos registros históricos sobre esse assunto. Nos documentos medievais, o termo Compostela passa a ser usado a partir de o séc. XI citado na Crônica de Sampiro e no Códex Calixtinus. Já o termo Santiago, é uma clara homenagem ao Apóstolo. Além das peregrinações, a cidade também é conhecida por abrigar uma das universidades mais antigas da Espanha. Fundada em 1495, a Universidade de Santiago de Compostela, hoje é uma das principais instituições de ensino do país com mais de 20 mil estudantes matriculados, que dá a cidade também o título de cidade universitária. Durante o final do verão, a partir de setembro dois grupos se destacam nas ruas compostelana, os estudantes e os peregrinos. Já no inverno, quando o fluxo de peregrinos é menor, apenas os estudantes dominam as ruas até a quinta-feira, quando a maioria volta para as suas casas, para passar o final de semana com a família, e a cidade parece quase um deserto no final se semana. Na linguagem popular a cidade está dividida entre zona nova e zona velha, como o próprio nome sugere a primeira corresponde à parte urbana moderna e a segunda ao centro histórico. Engana-se quem pensa que na zona velha só existem monumentos históricos, mesmo com as construções de pedra e ruas estreitas que mais parecem labirintos, essa região abriga comércio de todos os tipos, bares, residências e um mercado a céu aberto, uma feira como dizemos aqui no Brasil. Essa feira é muito conhecida e também é uma das atrações da cidade, lá

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é possível encontrar de tudo, principalmente produtos típicos da Galícia como o pulpo (polvo), prato mais célebre da província autônoma. A vida noturna na cidade é muito intensa devido ao grande número de estudantes. Como a parte mais boêmia da cidade está na zona velha, onde há os bares mais típicos e mais badalados, o governo local impõe regras severas em relação ao barulho e consumo de álcool. Para começar nenhum mercado pode vender bebida alcoólica depois das 22h, é proibido beber na rua - sujeito a multa de 100 euros - , se o seu vizinho chamar a polícia por conta do barulho são mais 200 euros de multa, e os bares/restaurantes só podem funcionar até as 2 ou 3 horas da manhã. O policiamento está por toda a cidade, onde há aglomeração, há uma viatura passando. Assim as autoridades mantêm a ordem e a conservação do patrimônio cultural da humanidade.

Um lugar, muitas impressões Santiago de Compostela es una creación sorprendente. Nació de una estrella que indicaba una tumba y floreció sobre ese sepulcro. En todo caso hablamos de una obra abierta, con páginas de cronología en espiral que se solapan como pétalos de una enigmática rosa. (La rosa de piedra - Manuel Rivas)

Com o seu ar icônico a cidade de Compostela inspirou muitos pintores, fotógrafos e escritos que tentavam traçar uma panorâmica descritiva da cidade e da região no século XIX. Algumas dessas descrições foram reunidas no livro

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Santiago de Compostela: A gran panorámica do professor de sociologia da Universidade de Porto Rico Baldomero Cores Transmo. O clima, a arquitetura e a paisagem de vales e montanhas eram os temas favoritos daqueles que tentavam imortalizar em arte a terra do apóstolo. Sobre a Catedral, Xosé (José) Maria Gil Rei escreveu, em 1838. “Ocupa quase exatamente o centro da cidade e está assentada no cume de uma colina que ela cobre de modo que para penetrar em seu interior pelo meio dia e ocidente tem que subir muitas escadas, entrando pelo norte e oriente desce outros muitos”. A entrada ocidental a qual ele se refere é a da Praça do Obradoiro, onde estava o antigo Pórtico da Glória. Já a entrada oriental é a da Praça Quintana, onde está localizada a Porta Santa que só é aberta nos anos de jubileu e no dia 31 de dezembro do ano anterior ao Jubileu. Par a o escritor galego, a catedral “apresenta aos olhos dos viajantes uma perspectiva magnífica por todas as partes, ainda que com a cor sombría das pedras que a compõem o templo, efeito das chuvas abundantes da Galícia”. O livro de Gil Rei traz também outra descrição, de Manuel Murguía que fala não apenas da cidade, mas da Galícia como um todo. “Situado Santiago sobre uma eminência, aos pés de belos vales ou rodeado de montes, grandes templos e casas baixas. Um céu quase sempre fechado, mas também com seus momentos mais calmos e transparentes. Para poucos, seus arredores passam por pitorescos e, geralmente, não lhe atribuem um clima suave. Se comparado a outras populações marítimas, sua paisagem é um tanto quanto agreste, em contra partida os campos que lhe cercam não poderiam ser mais agradáveis. Um verdejante eterno os veste, as fortes e acesas tintas do céu em seu entorno, se sente a dureza de suas montanhas, mas também o frescor de seu acusado horizonte”, disse o escritor identificado apenas pelo nome.

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Assim como o jornalista, poeta e escritor galego, Manuel Rivas escreveu sobre Santiago de Compostela, o célebre escritor e jornalista colombiano Gabriel García Márquez também se encantou com a cidade do Apóstolo. Na edição de 11 de maio de 1983, ele escreveu o artigo “Viendo llover en Galicia” (“Vendo chover na Galícia”). “Sempre acreditei, e continuo a acreditar, que não há no mundo uma praça mais bela que a de Siena. A única que me fez duvidar foi a de Santiago de Compostela, graças ao seu equilíbrio e ao seu ar juvenil que não permite pensar na sua idade venerável, mas que até parece ter sido construída no dia anterior por alguém que tivesse perdido o sentido do tempo. É uma cidade viva, tomada por uma multidão de estudantes alegres e buliçosos, que não lhe dão nem uma trégua para envelhecer. Nos muros intactos, a vegetação abre uma passagem entre as gretas, numa luta implacável por sobreviver ao esquecimento, e encontramo-nos se em cada passagem, como a coisa mais natural do mundo, com o milagre das pedras florescidas”, descreveu o escritor. Se me pedissem para descrever a cidade de Compostela eu resumiria como um cenário de filme medieval, que encanta tanto nos períodos chuvosos como nos de sol escaldante. Eu cheguei exatamente no dia primeiro de setembro, às 7 horas da manhã, na estação de trem. Estava noite ainda quando saí da estação e vi aquela construção de pedra, tomei um táxi que me deixou em frente ao prédio do Colégio Maior de Fonseca, um dos três prédios da residência universitária onde vivi por três meses. Eu olhava pela janela, via as torres dos colégios e me sentia em casa, parecia um castelo. Cheia de diferentes símbolos religiosos, desde figuras católicas a símbolos celtas, Santiago de Compostela para mim é uma cidade onde imperam energias positivas, é um lugar de calma e paz, onde se vive de forma tranquila durante o dia, e uma deliciosa boemia durante a noite nos bares do centro velho.

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Foto: Divulgação

Foto: Divulgação

Plaza de las Platerias.

Plaza de Quintana.


Assim como a mim, a cidade de Santiago também encanta os estudantes que por ali passaram. A intercambista francesa de 22 anos, Justine Cabrillana descreveu a sua experiência na cidade da seguinte forma: “A princípio, não sabia por que o céu me presenteava com esse lugar místico e chuvoso, mas, hoje, um ano depois, sei que precisava de Santiago em minha vida. Nesses tempos de guerras por todos os lados, de extremismo em cada religião, se passeias por Santiago verás que a religião também pode ser maravilhosa, sabe respeitar cada um e oferecer um lugar para uma alma perdida”. “Quando penso em Santiago eu podia me lembrar dos belos edifícios do centro, da alameda e da interminável chuva, mas o mais importante foram os amigos”, disse Carlos Pichardo Ramirez, estudante mexicano, que viveu intensamente a experiência da cidade como morador e peregrino. Não há quem não mencione o clima da cidade. Falar de Compostela é falar de história, de lendas, crenças e acolhimento. A chuva que cai do céu por meses intermináveis faz parte da cidade assim como cada pedra usada na construção da catedral. É uma cidade onde, se observar bem, nada foi jogado fora, em cada canto pode ser observado um pouco daqueles que por ali passaram. Seja na pulseira com o trisquel celta, ou no terço com a cruz de Santiago, tudo é lembrado e convive em perfeita harmonia. Acho que é por isso que seus caminhos atraem tantas pessoas, de lugares tão diferentes, porque no final da jornada todos se sentem um pouco em casa.

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III Caminhos, Peregrinos, Peregrinaçþes,...



Peregrinar, segundo uma definição simples do dicionário, é o ato de deslocar-

-se de um lugar a outro por razões religiosas. Por isso, engana-se quem pensa que esse é um hábito apenas de cristãos e muçulmanos, as peregrinações, salvo algumas exceções, existem desde a pré-história, desde que existem registros e cultos a divindades. Na tradição cristã, as primeiras peregrinações eram aos túmulos dos mártires da religião, aqueles que morreram em defesa de sua fé. As visitas aos falecidos eram uma forma de demonstrar admiração. Para o professor de Teologia da PUC- SP Fernando Altemeyer Jr, peregrinação é a presença de um valor espiritual transcendental, que se pode chamar de divino. É você fazer a sua trajetória, mas sabendo onde quer chegar, seja a um Deus, ou ao Nirvana. “A peregrinação é um conceito fundamental da Bíblia, porque o povo hebraico nasceu do nomadismo. É a alma do judaísmo, sair atrás de uma vida melhor conduzido por Deus”, diz o professor. “Já os povos pré-judaicos, peregrinar era ir a um ponto alto, então onde tiver uma montanha, encontro de rios, onde tiver algo especial é lugar de Deus e é para lá que eu vou”, conta.


É importante frisar, que quando falamos em “buscar por Deus”, não necessariamente estamos nos referindo ao Deus do catolicismo, mas sim a um ser “maior”, o divino, algo que está além da nossa capacidade de explicação, que habita um plano espiritual. Esse ser superior, pode ser chamado de Nirvana – como já foi citado pelo professor Fernando -, Alá, pode ser um cosmo, uma energia, depende da crença de cada indivíduo. Mesmo que tenha nascido de fé cristã, as rotas jacobeas, assim como outros roteiros de peregrinação, tocam aqueles que a percorre de maneiras que estão além de qualquer explicação – o que poderá ser visto nos depoimentos a seguir - , independente de qualquer religião ou ateísmo. Há quem diga também que peregrinar é um rito de passagem e uma busca interior. Paulo César Giordano Nogueira, em sua tese de mestrado sobre a espiritualidade dos peregrinos no Caminho de Santiago, escreve: “Ritos de passagem visam trazer algum tipo de ordem de sentido a uma determinada fase ou aspecto da vida. No caso do Caminho de Santiago, essa mudança ocorrerá, sobre tudo, em um nível interior”. As peregrinações cristãs nascem com a ideia de busca pelas relíquias, ou ossos, dos santos, caminhava-se, e caminha-se até hoje, em busca dos locais onde esses objetos santos estão guardados ou enterrados. Mas os antropólogos americanos John Eade e Michael Sallnow atribuem ao local de peregrinação à capacidade de absorver e refletir uma multiplicidade de discursos religiosos, de ser capaz de oferecer a uma variedade de clientes o que cada um deles busca. Sendo assim, a cidade de Santiago de Compostela é um local de peregrinação perfeito, pois se enquadra nos dois discursos.

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O peregrino

Não há registros de peregrinação para Compostela, mesmo após o sepultamento de Tiago o Maior, no início do milênio. É a partir do século IX, com o redescobrimento da cripta, ou reinvenção – para os mais céticos -, que se inicia um movimento de romaria à Galícia. De acordo com o livro Los Caminos y la Ciudad de Santiago: Crónicas Jacobeas do autor galego Frederico Pomar de la Iglesia, as peregrinações começam quase imediatamente à construção da primeira basílica de Santiago por volta de 829, por ordens do rei Afonso II, o Casto, considerado por alguns o primeiro peregrino. No livro IV do Códice Calixtino encontramos a história do imperador Carlos Magno, grande conquistador do século VIII, e apontado como primeiro peregrino. A peregrinação do imperador franco retratada nesses manuscritos medievais não passa de uma lenda, pois a história conta que Carlos Magno morreu em 814, e a primeira basílica é datada de 820/830. Segundo a lenda Santiago ajudou Carlos Magno a combater os sarracenos (mouros). Na narração do livro de Calixtino, um cavaleiro de aparência esplêndida, identificado como Santiago pedira ao imperador que libertasse suas terras galegas, que naquela época, os mouros haviam invadido. Há poucos dados sobre o início das peregrinações, de acordo com o autor Frederico Pomar os primeiros peregrinos vinham de regiões próximas e de dentro do reino. Aos poucos, começaram a surgir pessoas de regiões mais distantes, eles usavam as estradas construídas pelos romanos, ou criavam percursos alternativos para poder se proteger de acidentes geográficos e de assaltos.

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Foto: Divulgação


Não demorou muito para a peregrinação de Compostela se tornar uma das três mais importantes rotas do cristianismo, junto com a romaria à Palestina e a Roma. O escritor italiano Dante Alighieri, de acordo com a publicação de Manuel Jesús, foi quem criou os termos específicos para indicar cada viajante das rotas cristãs. Aos que seguiam para a Palestina Dante chamava de palmares, por causa da palma que eles traziam como recordação após completar a jornada. Os romeiros, como o próprio nome sugere, são aqueles que vão até Roma. Já para os que faziam a romaria a Compostela, o autor da Divina Comédia, chamava de peregrino. O nome peregrino significa “aquele que caminha por terras estrangeiras”, ou “aquele que caminha por terras distantes”. Até meados do século XV, a Galícia era a região mais distante da Europa que o homem conhecia e acredita-se que Santiago de Compostela estava em Finisterra (Fim do Mundo). Hoje, os termos romeiro e peregrino são utilizados como sinônimos para qualquer viajante por motivos espirituais. Não era apenas a busca pelas relíquias sagradas que levavam o peregrino medieval a percorrer os caminhos jacobeos. A fome, segundo escreveu Pablo Arrivas Briones (1999), também foi um impulsionador das peregrinações. O Caminho de Santiago oferecia garantia de um teto e comida para os desabrigados nos tempos difíceis da era medieval.

Todos os caminhos levam a Compostela O Caminho Francês é o mais conhecido e mais percorrido dos caminhos, por isso se tornou praticamente um sinônimo para o Caminho de Santiago.

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De maneira tradicional a peregrinação começa em Roncesvalles, cidade espanhola na fronteira com a França, ou na cidade de Saint Jean Pied-du-Port do lado francês dos Pirineus. Os Caminhos foram surgindo com o tempo conforme as pessoas iam percorrendo suas trilhas. Algumas trilhas na região existem há anos e eram percorridas pelas tribos primitivas, algumas de origem celta, que habitavam a região, e se guiavam pelas estrelas da Via Láctea que apontam em direção a Santiago de Compostela. A possibilidade de usar a Via Láctea como guia também dá ao caminho o nome de Caminho das Estrelas. De acordo com Manuel Jesús, dois foram os fatores determinantes para o surgimento do caminho de Santiago. O primeiro era o medo dos habitantes do norte, o segundo foi a presença árabe na península. As rotas estabelecidas foram, então, para fugir desses perigos. Antes de Sancho III, o Grande, rei de Pamplona, libertar Navarra dos muçulmanos, os peregrinos desviam o seu caminho pela cidade de Álava. Conforme os reinos espanhóis iam se libertando dos mouros nos rotas iam surgindo. Hoje, os caminhos que levam a Compostela são inúmeros, há peregrinos que começam da porta de suas próprias casas, mesmo que seja na Holanda. Foi o que aconteceu com um jovem de 20 poucos anos que umas amigas conheceram nas ruas de Santiago, ele caminhou por cinco meses da Holanda até a Galicia. Porém, os caminhos mais tradicionais são: Caminho Francês, Caminho Aragonês, com início na cidade de Aragón, na fronteira com França, e é o mais longo de todos com 800 km; Caminho do Norte, ou rota Cantábrica, que segue junto ao Mar do Norte; Via da Prata, a partir de Sevilha e passa por uma antiga estrada romana construída para

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o transporte de metais preciosos e o Caminho Português que atravessa Portugal de uma ponta à outra. As rotas que saem da fronteira com a França se encontram na cidade de Puente de la Reina e seguem como um só. O Códice Calixtino cita outras quatro rotas do Caminho, em que três delas também se fundem em Puente de la Reina, na província de Navarra, a de Turonese, de Lemusina e de Pediense. A quarta rota seria a de Arelatense, que sai da cidade de Alés. Entre os grandes colaboradores para a expansão do caminho jacobeo estão os monges Cluny, que fundaram mosteiros para abrigar peregrino e já foram os mais importantes do cristianismo europeu e o rei Afonso VI, responsável por abolir os impostos cobrados para entrar na Galícia – muitas vezes esse pagamento consistia em tirar todos os pertences do viajante. O rei de Castela e da Galícia também foi o responsável pela fundação de hospitais para peregrinos como o de Burgos e o do Cebreiro e incentivou outros reis e bispos a fazerem o mesmo. As construções de pontes, hospitais e hospedarias foram dando forma ao Caminho de Santiago “concluído” no final século XI. Para poder transitar de um lugar a outro, o peregrino medieval precisava de um salvo conduto que o acreditava como peregrino. Esse documento é o antecessor da carteira atual, onde os romeiros jacobeos recebem os selos do Caminho para que no final possa receber a Compostela, um certificado de que realizaram o caminho. Esse certificado, em caso de necessidade, garante ao peregrino três dias de sustento, com comida e hospedagem, no Hostal de lós Reyes Católicos.

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Um caminho para a formação de uma cultura Muito mais do que um fenômeno religioso as peregrinações tinham consequências culturais e econômicas, que contribuíram para o desenvolvimento dos reinos da Espanha. O Caminho de Santiago inspirou artistas e desenvolveu serviços e comércios. Entre os séculos IX e XIV a peregrinação ao Caminho de Santiago se tornou um dos mais importantes feitos culturais e religiosos da Europa até então. O escritor alemão Goethe escreveu “A ideia de Europa nasceu peregrinando a Santiago”. Exagero ou não, já no século XI, a rota jacobea formava a principal artéria política e comercial dos reinos cristãos. No século seguinte, segundo afirma o professor Lacarra, em sua obra Las peregrinaciones a Santiago de Compostela, de 1992, Compostela se converte no centro comercial da Península Ibérica recebendo mercadores e comerciantes de todas as partes No meio cultural, o Caminho de Santiago inspirou lendas, canções e pintores. Temos o Códice Calixtino, como exemplo de literatura, as canções de Roldári, que narram as conquistas de imperador Carlos Magno, e artes arquitetônicas com o artista galego Maestro Mateo. Mas foi na economia, onde talvez o Caminho tenha causado o maior impacto com o desenvolvimento de pensões particulares, comércios de bens de consumos e câmbios de moedas. O cambismo foi uma das atividades que se desenvolveram ao longo do Caminho. Os cambistas eram homens responsáveis pela troca de dinheiro entre um reino e outro. Como o peregrino medieval cruzava vários reinos e burgos até chegar em Compostela, eles precisavam trocar as moedas a cada trecho para poder consumir bens de primeiras necessidades. Como nem todos são santos, essa era uma das várias formas de extorquir dinheiro dos

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viajantes, já que muitos cobravam preços exorbitantes no câmbio de moedas, principalmente na entrada do Reino da Galícia. Os peregrinos mais pobres costumavam se abrigar em hospitais, hospedarias gratuitas quase sempre ministradas por instituições religiosas. Mas também existiam peregrinos ricos, membros da nobreza e do alto clero, esses preferiam se hospedar em lugares diferenciados como pensões particulares. Outro tipo de comércio se desenvolveu ao longo do Caminho, eram os vendedores de coisas uteis como roupas e sapato. Roupas eram os principais itens procurados pelos viajantes que chegavam a Santiago, porque a maioria passavam o percurso todo com a mesma vestimenta, por isso eles buscavam novos trajes para voltar para casa.

Quem são os peregrinos? Desde que começou a registrar os peregrinos que chegavam a Compostela, em 2004, o Escritório de Acolhida do Peregrino já contou com mais de 1,6 milhão de visitantes, em torno de 100 a 200 mil por ano. Em 2013 foram 215.880, o último Ano Santo, 2010, foi o período de maior movimento desde que se começou a fazer estatísticas do Caminho. Só em agosto desse ano, 51.219 peregrinos fizeram o Caminho. Os dados mostram que a maioria dos romeiros são homens, entre 30 e 60 anos e estrangeiros - vindos de outros países da Europa que não a Espanha – e que fazem o Caminho por motivação religiosa/cultural. Mesmo assim, o número de mulheres peregrinas é muito relevante, elas representam 45% dos viajantes, os espanhóis são 49%. Entre os europeus os que mais se lançam às rotas jacobeas

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são os italianos e os alemães, já entre os espanhóis os madrilenhos e andaluzes são os que mais se aventuram. A grande preferência é para fazer o caminho a pé, quase 90% deles, os ciclistas são 12% e ainda há quem faça à cavalo e com cadeira de rodas, mas estes não chegam a 1%. Ao contrário das minhas expectativas, o número de peregrinos que fazem o Caminho apenas por razões religiosas chegam a 40%, segundo dados da oficina.

Motivos para peregrinar “Temos consciência de que, por sua complexidade o Caminho de Santiago não pode ser abordado por um único referencial teórico, o Caminho abre-se a inúmeras interpretações e nisso reside sua riqueza”, disse, em sua tese de mestrado, Paulo César Giordano Nogueira. São muitos os motivos que levavam os viajantes a percorrer as rotas jacobeas, para pagar promessas, em memória de um ente querido, como forma de penitência imposta pela igreja. Esse último tipo foi um castigo muito comum aplicado na época da Inquisição no sul da França, alguns eram obrigados a caminhar algemados e acorrentados. A pena de peregrinação também era aplicada como pena judicial por delitos de cúmplice de assassinato, por exemplo. No Brasil, a peregrinação de Santiago é muitas vezes associada à temática esotérica, o que causa horror em muitos que veem isso como uma verdadeira profanação da origem cristã da peregrinação. Isso se deve porque o Caminho de Santiago, no Brasil, ganhou fama na década de 90 a partir da publicação do livro O Diário de um Mago do autor Paulo Coelho. O sucesso do best seller rendeu ao autor brasileiro uma medalha do governo da Galícia. A televisão também ajudou na divulgação

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da rota jacobea como um caminho místico em programas como o Globo Repórter de 28 de novembro de 1997 e de 23 de junho de 1999. A experiência peregrina continua fazendo parte da vida do peregrino mesmo depois que retorna à vida cotidiana. Os relatos de alguns peregrinos mostraram que as experiências e ensinamentos que eles adquiriram durante a jornada vão com eles para a vida toda. As palavras solidariedade e simplicidade são as que mais aparecem nos depoimentos de peregrinação. Alguns até repensaram os seus estilos de vida para sempre. Em sua tese sobre os relatos dos peregrinos, Nogueira escreveu: “No Caminho de Santiago o caminhante se despoja de tudo aquilo que de uma maneira ou outra lhe associe à sua vida social há pouco abandonada. Já não importam os valores que o escravizam dentro do sistema. Não existe mais sentido em vestir-se de acordo com a situação, em gastar para saciar o desejo de consumir. De certo modo todos os peregrinos são iguais, se vestem quase que da mesma maneira.” O Caminho de Santiago é um meio para vários fins, abraça aquele que busca conhecimento interior e uma experiência espiritual; aquele que apenas quer praticar trecking, ou até mesmo pode ser uma alternativa econômica de turismo. Mas no final da jornada quase todos passam por alguma transformação independente de sua crença. E o desejo por continuar a caminhar, mesmo que seja apenas pela aventura, é permanente. Já dizia a frase popular: “A Santiago nunca se chega, sempre se caminha”.

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IV Uma vez peregrino, sempre peregrino



O dito popular entre os peregrinos, “a Santiago nunca se chega, sempre se

caminha”, se encaixa perfeitamente para descrever a experiência de peregrinação da bibliotecária paulista, Solange Simões, de 58 anos. Depois da primeira vez que fez o Caminho de Santiago, ela não parou mais de peregrinar e, hoje, tem como hobby percorrer as rotas de peregrinação do interior de São Paulo e Minas Gerais. Solange não é do tipo de peregrina religiosa. Ela segue uma linha mais mística, mas que nada tem a ver com Paulo Coelho e o seu Diário de um Mago. Gosta de ler literatura antroposófica, ligada ao escritor Rudolf Steiner, uma linha de pensamento ligada ao conhecimento do homem e da natureza. Por meio de suas leituras, e estudos ela descobriu o Caminho de Santiago, também chamado de o Caminho das Estrelas. “Eu lia muito sobre a Sociedade Antroposófica, que focalizava muito no Caminho das Estrelas. É uma vertente mais mística, que crê na energia que aquele caminho todo carrega, por conta dos anos todos em que ele existia, das pessoas que passaram por ali e deixaram as suas energias e das questões ligadas à religião.”


O primeiro contato de Solange com a tradição jacobea foi durante uma viagem que fez a Madri, em 2002. Ela aproveitou a ocasião para conhecer outras cidades e acabou chegando à cidade de León. Lá, ela pode ver os peregrinos chegando, alguns para iniciar a vigem, outros apenas cumprindo mais uma etapa. Na rua principal, viu uma vieira, a concha símbolo do Caminho. Naquele momento, disse a si mesma: “Eu vou fazer esse Caminho”. E fez. Em 2006, conseguiu juntar dinheiro e convencer o seu marido a acompanhá-la. “Fui para a Espanha sem falar a língua e sem estudar. A minha maior preocupação era conseguir fazer o trecho. Eu não fiz treino nenhum, academia e nem nada. Acho que perde o clima você ficar indo na academia para treinar e fazer o caminho, porque não é uma competição. Fui com a cara e a coragem.” Na época, a família e os amigos não apoiaram muito, diziam que ela era louca de deixar dois filhos pequenos para ir “caminhar no meio do nada”. Mas sua mãe, muito católica, apoiou a jornada e ainda pediu que levasse o seu terço para benzer durante a missa do peregrino na Catedral de Santiago. “Eu estava trabalhando em um escritório de advocacia e, por isso, não poderia tirar férias muito longas”, contou a peregrina que optou por começar na cidade de Leon, a mesma que a inspirou. Seu caminho foi tranquilo, não teve grandes problemas com bolhas e câimbras. “Respeitei muito o meu corpo e caminhava entre 22 e 25 km por dia”, disse. Solange e o marido optaram por não ficar em albergues no começo, por receio de dormir em quartos coletivos. “Não tinha expectativa, não fui com motivação religiosa. Mas, no fim, acabei indo mais para o lado espiritual.”

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Tatuagem de Solange, Vieria e o cajado.

Foto: Divulgação/ Solange Simões

Foto: Divulgação/ Solange Simões

Caminho Francês: chegada ao Cebreiro.


O Caminho Português e o encontro com as origens Três anos depois, já divorciada, Solange Simões decidiu fazer mais uma vez o Caminho de Santiago, desta vez percorrendo o Caminho Português. O fato de estar sozinha foi um grande desafio para ela, a começar pelo aeroporto. Ela diz ter pavor de aeroportos, de ser roubada ou ter a bagagem extraviada. Além de proporcionar a superação de alguns medos, o caminho luso foi muito especial para Solange. Suspirando, ela descreve a sensação de superação e a alegria de poder cumprir mais esse desafio. “Sozinha, comigo mesma, eu pensava: “Solange, olha só que conquista!””. “Esse caminho teve, para mim, muito mais significado. Foi um momento de reflexão, autoconhecimento e de conhecer também as minhas origens”, comentou. Solange é neta de portugueses e conta que ao passar pelos pequenos povoados do litoral português viu senhoras vestidas todas de preto, com lenços na cabeça que lembravam a sua avó. “Foi meio que um acidente, não estava esperando”, explica a peregrina que não tinha nenhuma intenção de busca familiar quando escolheu seguir o Caminho Português. O clima hospitaleiro desse percurso também ajudou a deixá-la bem à vontade. Conforme ia passando as pessoas começavam a acompanhá-la, puxavam assunto e comentavam que tinham parentes no Brasil. “Todos têm pelo menos um parente brasileiro”, comentou rindo. Solange se identificou tanto com a rota lusa que já está planejando voltar em 2015 para fazê-la mais uma vez. “É um caminho com muito menos gente, você anda sozinha durante muito tempo e as pessoas são muito mais hospitaleiras nas cidades”, explica. Ela conta que, ao fazer o Caminho Francês, se sentiu um pouco

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decepcionada com a correria das pessoas, ao longo das etapas, para chegar cedo aos albergues. Também havia muitos “turisgeinos”, como ela mesma classificou, as pessoas que não estavam peregrinando, estavam apenas fazendo turismo, chegavam em bando, de carro, e ocupavam todas as hospedarias.

Os prazeres e as descobertas da peregrinação Solange não tinha grandes expectativas quando se lançou à peregrinação pela primeira vez, tampouco na segunda. Mas, assim como outros, acabou tendo muito mais descobertas do que poderia imaginar. A começar pela religião: mesmo sendo apresentada ao Caminho das Estrelas pela tradição mística da antroposofia, ela afirma que a religião católica é predominante nas regiões por onde passou e que a força da fé católica era capaz de contagiar a todos que ali estavam, mesmo aqueles que não eram católicos. “Eu via pessoas de países do norte europeu, que não têm tanta tradição católica, como os alemães, ajoelhados e rezando fervorosamente durantes as missas dos peregrinos. Isso é uma coisa que te toca.” Mesmo para quem já fez o Caminho uma vez, sempre acontece alguma coisa diferente numa eventual segunda vez. No caso da Solange, a segunda experiência foi melhor do que a primeira. Entre tantos aprendizados e experiências, ela revela que simplicidade é um dos valores que passaram a segui-la no seu dia a dia. “Você se desapega no sentido material, vê que é muito mais gostoso viver assim e traz esses valores para a sua vida na cidade”, diz Solange que agora diz que só viaja com mochila e leva o básico e essencial.

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Quando se lançou nas trilhas de Santiago, a peregrina paulista não buscava algo específico, como os romeiros mais religiosos, que muitas vezes vão em busca de respostas. Ela se pôs a caminhar por curiosidade, pela vontade de conhecer o Caminho da Estrela, mas acabou encontrando mais do que esperava. “Acho que a grande maioria vai sem buscar nada e acaba encontrando. Encontrei libertação de valores, mesmo com o apego a filhos e a família, eu me desprendi muito da minha culpa de mãe de fazer algo só para mim”, diz. “Ajudou-me muito a me desprender daquela competição profissional. Sempre trabalhei em escritórios de advocacia que é muito competitivo. Depois do caminho isso se tornou muito secundário. O principal está lá, no caminho.”

“O bichinho do peregrino me mordeu” Desde que fez o Caminho de Santiago pela primeira vez, Solange não conseguiu mais para de peregrinar. Com a ajuda da Associação dos Amigos do Caminho de Santiago de São Paulo ela foi descobrindo outras rotas de peregrinação no Brasil. E essa foi uma das grandes mudanças que o Caminho proporcionou em sua vida, hoje. Ela faz de três a quatro vezes por ano alguma peregrinação pelo interior de São Paulo e Minas Gerais, como o Caminho da Luz (MG) e o Caminho da Fé rumo a Aparecida (SP). “Me deu o bicho do peregrino e eu não consegui mais parar.” Solange foi tão mordida pelo bichinho do peregrino, que planeja passar o réveillon de 2014, com algumas amigas, fazendo o Caminho da Fé, no Sul de Minas Gerais. A caminhada começa na cidade paulista de Águas da Prata (divisa com MG) e passa por cidades como Ouro Fino e Paraisópolis (sul de MG) até voltar

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Foto: Divulgação/ Solange Simões

Fim do Caminho Português, chegada a Catedral.


para São Paulo, tendo como destino final a cidade de Aparecida. Peregrinar para ela é quase uma terapia, cura a sua ansiedade e lhe dá ânimo. “Para mim funcionou assim, se eu estiver muito triste ou deprimida, eu pego minha mochilinha e vou andar nos caminhos, e conhecer pessoas”, disse. Uma vez que está aposentada desde o ano passado, trabalhando apenas como free lancer para organizar bibliotecas particulares, Solange está com tempo de sobra para dar mais atenção àquilo que lhe dá mais prazer: caminhar.

Conhecendo uma autêntica peregrina Por coincidência Solange é peregrina até na data do seu nascimento: 25 de julho, dia do Apóstolo. Ela não só transformou a peregrinação em um hobby, como também em um estilo de vida. Em sua casa, pendurou símbolos do Caminho, como um azulejo com a flecha e a vieira, além de fotos espalhadas para todos os lados. Ela me mostrou um quadro de vidro emoldurado as duas credenciais preenchidas com os selos das hospedagens. Quando tenta descrever a sensação de ser peregrino, Solange mostra que lhe faltam palavras e sobram suspiros. As sensações sentidas pelos peregrinos são indescritíveis, assim como a fé e a energia que movem os viajantes. É o tipo de experiência que não se expressa em palavras: é preciso estar lá para viver. É preciso caminhar.

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V Peregrino por amor



Filho de uma família de nove irmãos, o madrilenho Alberto Solana de Quesada

é um apaixonado pelo caminho de Santiago de Compostela. Formou-se médico, mas há alguns anos largou a profissão para se dedicar inteiramente à carreira de músico, como cantor profissional do Coro da Comunidade de Madri. Já percorreu as rotas jacobeas cinco vezes e agora se prepara para fazer a sua sexta viagem, desta vez por um motivo muito especial: em homenagem ao seu irmão, que morreu no final de janeiro desde ano. Aos 58 anos, homem de muita fé, ele crê na energia e no poder do caminho, percorre as diferentes rotas por motivos que vão muito além da aventura, Alberto se sente chamado a caminhar. O primeiro contato direto de Alberto com a tradição jacobea foi aos 12 anos, quando assistiu à sua primeira missa dos peregrinos. “Impressionou-me o botafumeiro”, lembrou. Mas, quase 30 anos depois, em 1999, e que ele se sentiu chamado para fazer o caminho pela primeira vez. Era ano santo, ou ano do jubileu de Compostela, e ele foi contratado pelos Jacobeos para participar das comemorações. O Ano Jubilar Compostelano, também conhecido como Jubileu, ou


Ano Jacobeu, é comemorado desde a idade média, sempre que 25 de julho, dia do martírio do apóstolo, cai em um domingo, o que acontece a cada 5, 6, 6 (outra vez) e 11 anos. O último foi em 2010 e o próximo será em 2021. Os shows e celebrações acontecem por toda a cidade, e foi em um dos concertos na Praça do Obradoiro que a fé do músico cantou mais alto. “Ali me apaixonei por Santiago e como estávamos hospedados em Padrón, cidade que dá inicio à ultima etapa do caminho, antes de chegar a Santiago, fiz a ultima etapa do Caminho Português e aí começou tudo.” Ele descreve o chamado pelo caminho como se estivesse sido “preso” a ele naquele dia, naquele show. Depois disso Alberto fez o caminho mais quatro vezes, duas vezes o Caminho Francês, uma o Caminho Português e uma última vez a Vía de la Plata, caminho que percorre toda a Galícia. Mas veio a doença de seu irmão Paco e o peregrino passou os últimos dois anos cuidando do irmão. Para não ficar longe do caminho passou a estudar e pesquisar sobre o assunto e escreveu um blog onde descreve as histórias, as lendas, as rotas e suas experiências pessoais. “Comecei a escrever desde o principio do Caminho, mas o blog nasceu com a doença do meu irmão. Ele não podia ficar sozinho e, por isso, não pude voltar a caminhar e o blog foi uma maneira de me sentir vinculado ao mundo do qual já não sabia mais ficar sem.” Com a morte do seu irmão, Alberto planeja, agora, voltar a fazer o caminho. A rota escolhida foi o caminho inglês, com início na cidade galega de Ferrol, ao norte de La Coruña, cerca de 122 km até Compostela. “O farei com meu outro irmão, Luis, em homenagem a Paco”, disse o peregrino. Perguntei se seus irmãos o haviam acompanhado em alguma de suas peregrinações, ele me respondeu que apenas Luis havia

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feito o Caminho Francês com ele uma vez, em 2007 – por coincidência foi seu ultimo caminho até agora -, mas Paco nunca quis fazer a jornada. “Convidei Paco uma vez, mas ele nunca foi adepto de longas caminhadas e não quis ir comigo. Mas, desta vez, eu sei que ele estará comigo o tempo todo. Quero passar por Pontedeume, aonde os irmãos Solana têm raízes de uma infância feliz. Quero visitar todos os cantos onde brincávamos quando crianças. “ Pontedeume é a terceira parada do Caminho Inglês, ela está à aproximadamente 81 km de Compostela. A cidade é apenas mais uma parada para muitos peregrinos, mas para os irmãos Solana esse é um lugar muito especial. “É uma região belíssima da Galícia, onde eu e meus irmãos passávamos as férias durante a infância, dividimos muitos momentos felizes lá.” Por isso Alberto optou por fazer o Caminho Inglês, ele quer passar alguns dias na cidade para revisitar os lugares que marcaram a sua infância com seus irmãos. Não é à toa que dessa vez ele irá optar pela Compostela – certificado que todo peregrino recebe ao final do caminho – “in memória”, o que significa que fez o caminho em homenagem a alguém. Essa jornada será entre o final de agosto e começo de setembro de 2014, um bom período para caminhar, quando o verão já está no final e antes de as chuvas do outono e inverno galegos começarem.

O peregrino “O Caminho é uma oportunidade magnífica de aprender que se pode abrir mão de quase tudo e ser feliz, a solidariedade é reforçada, o companheirismo, viver com pouco, compartilhar, livrar-se dos preconceitos sociais. Caminhar

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Foto: Divulgação/ Alberto Solana

Foto: Divulgação/ Alberto Solana

Alberto Solana em o Cebreiro (2007).

Caminho Inglês (2014).


Caminho Inglês (2014). Foto: Divulgação/ Alberto Solana

Monte del Gozo (2007).

Foto: Divulgação/ Alberto Solana


como um sinal de busca te faz crescer como pessoa”, disse Alberto Solana sobre o caminho. O desejo pela aventura é o que leva a maioria dos peregrinos ao Caminho de Santiago, mas Alberto não se considera um aventureiro. “Quando se está perto dos 60 busca apenas um momento de reflexão”, diz. Para ele a partir de o momento que a pessoa começa o Caminho ele descobre um mundo cheio de vivencias físicas e espirituais onde se aprende a viver com pouco e a sentir Deus e ao Apóstolo. “Isso é muito importante, mesmo que alguns peregrinos não queiram dizer isso”, afirmou o peregrino. “Estamos em tempos em que o religioso não é bem visto”, completou. “Eu acho a religião fundamental para o homem. Busco as grandes razões teológicas, simplesmente é a fé dos meus pais, eles são fiéis à sua fé e eu finalmente cheguei a sentir essa fé e esse compromisso.” São muitas as razões que levam Alberto a caminhar tantas vezes. Ele conta que é uma forma de busca, uma maneira de romper preconceitos e “atadura sociais”. “É um encontro comigo mesmo e com Deus, porque é uma forma de contato com a natureza, porque é um ambiente de plena solidariedade”. O Caminho de Santiago pode ser muito duro para alguns. Caminhar em média 25 km por dia, durante quase um mês é muito mais difícil do que parece, as bolhas nos pés, câimbras e fadigas musculares os acompanham por todo o percurso. E essa dificuldade impressionou o músico que chegou a pensar em desistir. “Cheguei a sentir uma fadiga até a exaustão, cheguei a pensar em desistir”, comentou o homem que buscou na fé as forças para resistir.

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“De repente lhe vem uma faísca e vê-se que a fadiga se converte em prazer e superação e sentes que Deus está contigo e que nada lhe vai faltar. Você tirar forças de onde não sabia que tinha. É um sentimento indescritível.” Em seu blog pessoal, albertosolana.wordpress.com, onde ele escreveu seus estudos sobre as tradições jacobeas e suas experiências de peregrino. Sobre as dores e a fadiga ele diz: “Quanto maior foi o castigo, o sofrimento e a fadiga maior é o gozo depois”. Em sua descrição, os últimos oito quilômetros antes de entrar na cidade de Compostela, pela primeira vez como peregrino, as lágrimas que escorrem do seu rosto são oriundas das feridas dos pés, fadiga muscular e pura emoção. “Estava entrando em Santiago chorando por causa das feridas nos pés e pela emoção e alegria, são sentimentos que não se pode controlar e que não me deixam falar. Não há nada para dizer, olho e sinto, e na medida que vou entrando em Compostela, Compostela vai entrando em mim.” Ao atravessar a Rua Porta Faixeira, uma das entradas para o centro velho da cidade, e tomar a Rua do Franco em direção à Catedral, o cansaço e a dor desaparecem de seu corpo. “Os pés sabem que o trabalho duro já foi feito, que o esforço que resta é puro e então a dor desaparece, a fadiga acaba e o prazer te domina. É quando vem o desejo de agradecer e rezar”, descreveu o peregrino religioso. Conforme se aproximava do Obradoiro, a cidade o saudava com o som dos sinos das campanas, com a música dos artistas e com a beleza estonteante da arquitetura local. “Santiago me disse: passa amigo Alberto, já está em casa”. Com toda a poesia de um artista ele escreve sobre a sensação de chegar ao final de sua jornada e entrar na Catedral “Os órgãos da Catedral interpretam uma composição que ninguém parece escutar, mas que me faz flutuar. O Apóstolo Santiago me espera no camarim

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e quando subo se antecipa ao meu abraço e é ele quem me abraça Dois amigos abraçados sobre o altar maior.” Alberto desce até a cripta e se sente parte do ambiente de pedra enquanto reza e “experimenta a eternidade”. Novamente é tomado por uma mistura de sentimentos que o fazem chorar e rir de emoção ao mesmo tempo, enquanto pensa em seus familiares, amigos e pessoas que perdeu. Mas no final de suas orações termina sem pensar em nada. Em sua nova jornada, Alberto espera encontrar-se com as lembranças mais bonitas de sua infância e poder homenagear o seu irmão Paco. E, como peregrino apaixonado que é, ele não deve parar por aí, ele ainda quer percorrer o Caminho Primitivo, a rota a partir de Madri e o Caminho Francês completo, saindo da França. “Não me imponho limites, caminharei enquanto o meu corpo aguentar”, disse o homem que a cada rota se entusiasma mais pelo caminho e se sente cada vez mais experiente.

Esse foi difícil A minha conversa com Alberto realmente me surpreendeu, quando soube que ele tinha um blog, fazia vários caminhos e os estudava, jamais imaginei que fosse movido por motivos religiosos. Isso quebrou um pouco as minhas pernas. Confesso que foi difícil escrever sobre a experiência de Alberto. Ele é um peregrino movido pela sua fé no catolicismo, algo que para uma católica pouco fervorosa como eu é difícil de entender. Vejam bem, digo que sou católica, porque nasci em uma família católica, fiz primeira comunhão e acredito em alguns ritos, como o casamento na igreja, a missa de sétimo dia etc. Mas ainda assim é difícil entender tanta fé.

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Alberto me mostrou que o Caminho é muito mais complexo do que eu poderia imaginar, não se pode explicá-lo, ou contá-lo. Só entende mesmo quem o vive, quem o percorre. Cada peregrino tem algo especial que o move e não cabe a mim, ou a qualquer outra pessoa julgar. Há quem os chamem de loucos, de tão incompreensíveis, eu gosto de dizer que são enigmáticos e adimiráveis.

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VI Um sonho de caminho



Ator por formação, palestrante e marqueteiro por profissão e aventureiro

por necessidade, Evandro Bonocchi, 38 anos, morador de São José dos Campos, não é um exemplo de superação, mas sim um exemplo de motivação. “Eu não gosto dessa palavra superação. Depois que você se torna cadeirante, essa palavra fica chata”, diz, com bom humor, um dos primeiros brasileiros cadeirantes a fazer o caminho de Santiago. O outro foi o seu companheiro de aventuras Josimar Sena. Com a ajuda de mais cinco amigos, os dois chamaram a atenção nas estradas espanholas, e causaram um burburinho nas redes sociais ao atravessar a rota jacobea puxando suas cadeiras de roda usando uma handbike. Eles foram os primeiros peregrinos a realizar o caminho dessa maneira, de acordo com as informações que foram obtendo pelo caminho. O Caminho de Santiago foi um sonho alimentado por Evandro durante quase 20 anos, que ele imaginou que nunca se realizaria quando sofreu um acidente de moto em 2005, aos 29 anos. Mal sabia ele que, daquele dia em diante, sua vida estava apenas começando, e de uma forma muito mais intensa do que ele jamais


sonhou. Seu primeiro contato com o caminho foi em 1997, quando seu amigo André lhe contou sobre o livro do Paulo Coelho que ele havia lido. Evandro não quis ler o livro, mas se interessou sobre a aventura e começou a pesquisar sobre o assunto. Ele conta que na época não havia internet e a única informação que conseguiu foram quatro páginas que leu na Enciclopédia Barsa. “Coincidiu que uns seis meses depois teve um Globo Repórter sobre o assunto. Eu cheguei até a gravar no vídeo cassete para ficar vendo aquilo e me estimular a fazer”, disse Evandro. Porém, em 2005 a sua vida “deu um giro”, e ele começou a se reinventar. “Eu tive que me adaptar, rever alguns sonhos e a buscar outros, e o Caminho de Santiago foi um dos primeiros que eu descartei.” Evandro reconhece que a sua adaptação foi rápida. “Eu notava que eu não tinha o direito de entristecer, eu lembro que uma vez eu acordei de madrugada e ouvi minha mãe chorando. Se eu ficasse triste, eles também ficariam”. Sempre procurando contornar os problemas que não têm solução, ele criou um diário online para falar sobre a sua nova vida, as dificuldades, as alegrias e situações divertidas como a vez em que foi tomar banho e caiu no banheiro. “Comecei a escrever um blog sobre as minhas frustrações na cadeira de rodas, mas sempre levei meu problema com muito bom humor. Com o tempo o blog começou a ter público e as pessoas se divertiam e se motivavam com as histórias, foi quando me veio essa ideia de fazer palestras.“ Aos poucos ele foi reconstruindo a sua vida e descobrindo infinitas coisas que nunca tinha feito antes e que poderia fazer. Encontrou um companheiro para jogar basquete, passou a praticar remo e, quando chegou a sua primeira handbike, começou a pedalar. “A minha deficiência é a minha grande

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motivação, quando vejo as pessoas fazendo alguma coisa diferente, eu tento fazer também”, contou o aventureiro que até já colocou a sua cadeira de rodas em cima de uma prancha de stand-up.

A esperança de um peregrino A partir de 2009 o sonho de fazer o Caminho de Santiago começa a ficar mais próximo. Com a intenção de participar da corrida de São Silvestre, Evandro comprou uma handbike, bicicleta adaptada para cadeirantes onde o ciclista utiliza os braços para pedalar. Porém recebeu a noticia de que a organização da prova não permitia mais a participação de handbikes. Transtornos à parte, ele continuou treinando e se inscreveu para a maratona de Nova York, também correu a de Miami, fez uma peregrinação até a cidade de Aparecida e participou de uma corrida de aventura em Brotas, interior de São Paulo. E foi depois desta ultima que o seu antigo sonho de peregrino começou a voltar. “Eu pedalei na terra, no mato e no brejo. Então pensei: ‘Pô! a handbike passa nesses lugares, dá para fazer o caminho.”’ Após o nascimento do seu filho em 2012, Evandro começou enfim a planejar o seu caminho. Tudo começou pela formação da equipe da expedição, ele chamou o seu irmão mais novo Leandro Bonocchi, o seu preparador físico Miltinho Miranda, o amigo Luis Pimentel, o companheiro e também cadeirante Josimar Sena, a fotógrafa e cunhada Graziela de Souza Teixeira e André, o seu amigo de muitos anos e quem lhe falou do caminho pela primeira vez. O segundo passo foi buscar viabilizar a viagem, foi menos complicado do que podia parecer. “Eu tive

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a ideia de fazer uma camiseta com os nomes dos patrocinadores e eu fui bater de porta em porta dos empresários da região. De 10 que eu procurei sete aceitaram o meu projeto na hora”, contou entusiasmado o nosso peregrino. “Não sei se o meu olho brilhava na hora de falar, mas teve um empresário que chorou na minha frente, abriu o talão de cheque e disse: ‘Olha eu vou te pagar em três vezes.”’ Para fazer o caminho Evandro e Josimar desenvolveram uma peça de alumínio para prender na handbike e puxar a cadeira de rodas e a mochila. Eles pedalavam todos os dias pelo menos 30 km para treinar, durante três meses. Junto com o resto da equipe eles percorriam as ruas do bairro e foram ganhando o apoio dos moradores, o que foi aumentando a expectativa da aventura. A torcida cresceu mais ainda quando o grupo criou uma fã page para a Expedição Handgrinos, que já começou a funcionar antes da partida, assim as pessoas podiam acompanhar toda a preparação . “Era legal, porque começou a estimular e as pessoas começaram a viver a expectativa que a gente estava vivendo”, comentou Evandro. O planejamento inicial dos handgrinos era começar o caminho na cidade espanhola de Roncesvalles, na fronteira com a França. Eles desembarcaram em Madri e de lá seguiriam para Pamplona onde um amigo do Evandro deixou em um hotel a handbike de que ele iria usar. Mas, logo na chegada à capital espanhola os problemas começaram a aparecer, na hora de retirar as bagagens eles notaram que a bicicleta do Josimar estava completamente destruída. “O quadro parecia uma salsicha amassada, não sabemos até hoje o que aconteceu”, comentou Evandro. Como faltavam apenas 40 minutos para eles pegarem o voo para Pamplona, eles tinham de decidir rápido o que fazer, a companhia aérea só ofereceu uma passagem de

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Foto: Graziela Teixeira

Milton ajudando Josimar a calçar o tênis.

Foto: Graziela Teixeira

Equipe Handgrinos na Praça do Obradoiro.


volta para o Brasil. Nessas circunstâncias, foi decidido que Josimar voltaria para casa no dia seguinte, o André se ofereceu para ficar com ele até o embarque e depois encontraria com o resto do grupo no caminho. “Foi muito triste, estava tudo planejado e o cara ter que voltar sem nem pedalar um quilômetro”. Já em Pamplona, mas ainda inconformado com a situação Evandro começou a buscar soluções para o amigo continuar na expedição. “Eu não tinha o q fazer, liguei para a empresa que fabricava a minha handbike, mas eles estavam de férias”, comentou. O fabricante chegou a ser encontrado, porém ele não pode ajudar, porque as handbikes são feitas todas sobmedida. Mesmo assim a busca continuou e por meio da indicação desse mesmo amigo espanhol, que emprestou o equipamento ao Evandro, eles descobriram uma fundação de Madri que promove o esporte para cadeirantes. Como acontecem nos filmes, quando faltavam cerca de 40 minutos para o Josimar voltar para o Brasil a equipe da Fundación También chegou ao aeroporto com uma handbike para emprestar. “Ai a emoção da tristeza virou alegria de ver o Josimar chegar em Pamplona”, comentou Evandro. Mas antes a handbike destruída fosse o único problema do grupo. Na viagem de Madri para Pamplona a bicicleta foi extraviada, demorou três dias para chegar e quando chegou estava com uma peça faltando, a qual eles acreditam que foi roubada por alguém da companhia. “Eu estava muito estressado, porque já estávamos com as passagens aéreas compradas, tínhamos 20 dias para cumprir o caminho e já tínhamos perdido quatro”, comentou o idealizador da expedição. Mas os aventureiros não teriam muito com o que se preocupar em Pamplona, pois eles estavam com um taxista, o Juan que resolvia todos os problemas.

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“Para tudo ele dizia ‘no hay problema’ e ia lá e resolvia”, disse Evandro. “Ele tinha uma oficina na frente do nosso hotel, em frente a essa oficina tinha uma carpintaria de alumínio, nunca tinha ouvido falar nesse termo, em 10min os caras fizeram a peça.”

Finalmente peregrinos Depois de consertar a handbike, Juan levou o grupo para a cidade de Roncesvalles para que pudessem carimbar as credenciais e simbolicamente começar o caminho e depois os trouxeram de volta ao hotel. Eles só colocariam de fato as rodas na estrada dois dias depois da visita à cidade de fronteira, em Puente La Reina em Navarra. “Nós já tínhamos perdido muito tempo que não dava nem para partir de Pamplona”, contou Evandro. No primeiro dia de caminhada houve uma mudança de planos e os handgrinos fizeram uma parada na cidade de Estrella, após 30 km pedalando. A equipe estava exausta e eles caíram para descansar embaixo de uma árvore. “Aonde foi que eu fui enfiar estes caras”, pensou Evandro ao ver o estado de seus amigos logo nos primeiros quilômetros da jornada. O caminho era “infinitamente” mais íngreme do que eles imaginavam e as bicicletas rendiam muito pouco nos trechos de terra e pedra, principalmente as handbikes que tem toda a tração na parte de frente, mas o peso está na parte de trás, só o equipamento do Josimar e do Evandro pesava 40 kg cada um, por isso eles optaram por fazer a maior parte do caminho pelas estradas, onde o asfalto dava melhores condições para a viagem. Outra solução para auxiliar os handbikers foi o apoio dos ciclistas que em duplas guinchavam os cadeirantes enquanto estes seguiam pedalando.

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Com alguns dias de caminhada eles perceberam que teriam outro grande desafio pela frente que teria de ser contornado. Quando chegaram à Viloria de la Rioja, pararam no albergue do brasileiro Acássio da Paz, grande conhecedor do caminho, e passaram para ele o seu itinerário. Apesar de terem estudado que o ideal seria pedalar 70 km por dia, os handgrinos estavam fazendo apenas 40 km, o compatriota lhes informou que infelizmente eles não conseguiram completar o caminho a tempo, a não ser que passasse a pedalar 90 km por dias, o que para eles seria impossível. A solução encontrada foi seguir uma parte do caminho de van, com a ajuda do Acássio eles alugaram o veículo para seguir da cidade de Belorado até Villa Franca Del Bierso, um trecho de 200 km, que apesar de ser o mais plano, é também o mais árido, e um dos mais perigosos devido à ausência de sombra e o risco de desidratação. Ao todo eles percorreram pouco mais de 500 km efetivamente pedalando. Um dos momentos de grande emoção do caminho foi a subida até a Cruz de Ferro, monumento centenário erguido no monte Irago, um dos pontos mais altos do Caminho com pouco mais 1500 metros de altitude. A região, assim como outros pontos das rotas jacobeas, é cercado de lendas e mistérios. Uma das tradições manda que os peregrinos levem uma pedra para o monte e façam um pedido, há também o costume de deixar objetos que tenham algum significado para o viajante. Para os nossos peregrinos essa não foi uma subida tão difícil quanto imaginavam, Evandro teve ajuda dos bikers, mas Josimar não, ele fez toda a subida sozinho e ao chegar lá em cima surpreendeu seus companheiros ao homenagear Clodoaldo, um amigo de Evandro que iria fazer o caminho, mas faleceu em janeiro daquele ano, devido a essa perda Josimar recebeu o convite para fazer parte da expedição. “Eu havia sonhado com o Clodoaldo no dia anterior, e aquele ia ser o trecho mais difícil

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do caminho. Avisei para a equipe e disse que quando pensássemos em desistir que era para pensarmos nele”, contou Evandro emocionado. “Foi muito louco porque o Josimar subiu o trecho inteiro sozinho, sem a ajuda dos bikers. E ele parou para me esperar. Quando nós finalmente chegamos foi uma explosão de emoções de ter realmente chegado e o Josimar, sem a gente saber, estava levando uma camiseta do Clodoaldo e colocou lá para homenageá-lo.” A emoção foi algo que acompanhou o grupo durante todo o percurso. “Ninguém sabe mas eu chorei todos os dias”, disse o líder da expedição. Mesmo sem se considerar uma pessoa religiosa, Evandro sentia algo especial no caminho, que o ajudava a vencer a dor e o cansaço. “Em todos os momentos, eu me sentia tocado pelo divino. Não é uma coisa externa, é interna. De repente você pedalando vem uma coisa o corpo arrepia e você fala: ‘Putz’. Nem a emoção de ter o meu filho nos braços era parecido com isso, foi um negócio muito louco, uma emoção que eu nunca tinha vivido.”

Banheiros, uma relação de amor e ódio Uma das questões com que eles tinham de se preocupar diariamente eram os albergues, além de ser difícil encontrar vaga para um grupo de sete pessoas, os locais tinham que estar preparados para receber cadeirantes, principalmente os banheiros que deveriam estar devidamente equipados para permitir segurança e independência do cadeirante na hora de fazer a sua higiene. “Nós estávamos preparados para dormir no chão se precisasse e até passar sufoco com os banheiros,

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Foto: Graziela Teixeira

Pimentel e Leandro, irm達o de Evrando, ajudando-o na subida da Cruz de Ferro.


mas para a minha surpresa não tivemos problemas em 80% dos lugares em que nos hospedamos”, comentou Evandro. “Quando a gente chegava aos lugares o Pimenta (Luis Pimentel) descia para ver se tinha vaga e meu irmão já ia direto para o banheiro para ver se tinha condições. Nós sabíamos se era bom ou não pela cara dele, ele saía e já falava: Cara esse é lindo. “ O clima liberal dos albergues causou estranheza aos peregrinos novatos. Nem todos ofereciam banheiros separados para homens e mulheres, muitos eram unissex, por isso era comum ver senhoras de roupas íntimas entrando para tomar banho, mesmo quando havia homens no box ao lado. Até mesmo na hora do jantar o grupo se surpreendeu com uma mulher passando apenas de calcinha. “Pena que deveria ter uns 80 anos”, brincou Evandro. Conforme seguiam viagem começaram a perceber que os albergues estavam ficando cheios, e foram aconselhados a ligar antes e reservar lugar. Porque quando eles chegaram à cidade de Viana do Castelo, por volta das 15h, não havia mais espaço no Albergue eles foram obrigados a buscar um lugar para dormir em uma cidade próxima. A cidade parecia uma cidade fantasma, mas mesmo assim eles descobriram o dono de um bar que tinha um anexo em sua casa que ele oferecia para os peregrinos. A casa era muito boa, com geladeira cheia, cozinha bem equipada e dois quartos, mas com um pequeno problema, o banheiro não era grande suficiente para receber cadeirantes. Os donos da casa ofereceram a sua suíte, porém não era suficiente e eles preferiram ficar com o da casa. Evandro já estava acostumado a receber a ajuda do seu irmão, como a sua lesão é muito alta, na altura do tórax – vértebra D3 - , ele tem os movimentos mais

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limitados, diferente de Josimar que, se por algum acaso cair no chão, consegue voltar sozinho para a cadeira sem maiores dificuldades. Mas nesse dia, devido às proporções do banheiro, Josimar precisou da ajuda de Leandro para tomar banho. Quando reencontrou os amigos comentou: “Fazer o caminho está sendo lindo, mas um homem desse tamanho limpar a minha bunda, não tem cabimento”. “E isso é muito bacana porque é uma necessidade que se fez presente e foi criando um companheirismo e um respeito muito mais do que de irmão para irmão “, comentou Evandro sobre o episódio. Não apenas a relação entre as pessoas do grupo foi mudando, mas também os laços entre os irmãos Bonocchi foram se estreitando. Mesmo quando eles encontravam banheiros bem equipados, Leandro se oferecia para esfregar as costas do irmão e fazer uma massagem para aliviar a tensão muscular nos ombros causada pelo esforço na bicicleta. “Ele falou, eu vim aqui só para isso, eu não vim aqui para puxar você morro acima, vim aqui para te dar bem-estar”, contou o irmão mais velho novamente emocionado. “Aconteceu com o Josimar também, é preciso uma grandiosidade para permitir que o outro faça por você. E isso é muito bonito e foi tocando a todos. Tem uma foto que a Graziela tirou do Miltinho calçando a meia no Josimar, ele era muito meu amigo, talvez nem tão próximo a ele. São momentos pequeninos que, se você parar para pensar, são muito bonitos, um se doando para o outro. Tudo isso ai foi muito forte para todos nós”, relatou Evandro. “Talvez a família da gente seja a maior equipe que temos e às vezes nos esquecemos disso, de se permitir ajudar e de se doar”, completou. A situação mais difícil que os peregrinos encontraram durante o caminho foi quando a dona de um albergue em Rabadeiro se recusou a receber os dois cadeirantes.

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“Meu irmão deu um tapa na mesa e foi para cima da mulher dizendo que nós éramos cadeirantes e não leprosos, quando o marido dela chegou ele foi para cima dele também”, contou Evandro. Quando a poeira abaixou e todos se acalmaram, os donos do albergue explicaram que só se negaram a recebê-los porque não tinham uma estrutura preparada para receber cadeirantes, o que é proibido por lei na Espanha, e caso acontecesse algum acidente eles teriam que pagar uma multa.

Motivando e mudando caminhos A cada cidade pela qual o grupo dos Handgrinos passava eles chamavam a atenção, tanto de moradores quanto dos demais peregrinos. A força dos ciclistas para puxar os amigos quando necessário e dos próprios cadeirantes para pedalar com os braços puxando a própria cadeira de rodas e mochila é algo que impressiona quem conhece as dificuldades do percurso e quem acompanhou de casa via redes sociais. “Onde a gente parava parecia que era o circo que estava entrando na cidade”, brincou Evandro. “Tinha uma senhora francesa no albergue de Viana que começou a chorar muito quando nos viu. Ela disse que havia chegado há dois dias e não conseguia sair do albergue porque o seu pé estava muito ferido com bolhas, ela já estava com a mala fechada para ir embora de taxi. Mas depois que viu a gente, disse que jamais ela iria embora, que ia recuperar o pé e seguir em frente”, contou. Outro momento de superação foi a subida do Cebreiro, trecho que alguns peregrinos consideram até mais difícil do que a Cruz de Ferro, porque, apesar de ser um pouco mais baixo, cerca de 200 metros a menos, essa parte do

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caminho é mais íngreme e exige muito, principalmente de quem vai de bicicleta. Os Handgrinos demoraram cerca de seis horas para completar todo o trajeto, o qual eles consideram um dos mais emocionantes, por todo o esforço que foi feito. Quando passaram por uma placa que indicava que faltava um quilômetro para o topo, um francês passou por eles de bicicleta e, impressionado com o esforço conjunto dos trios de bikers e handbikers, pediu para tirar uma foto. Eles não podiam parar para não perder o ritmo, mas autorizaram as fotos. Ele começou a bater no braço do Evandro, enquanto ele pedalava e gritava: “Magnifique! Magnifique!”. Mas o brasileiro respondeu: “Não, magnifique são esses dois aí” e apontou para o Pimentel e para o seu irmão. “Ai o Pimentel olhou pra trás chorando bastante, acho que pelo cansaço. Esse senhor fez a gente parar e nos abraçou muito e beijou. Foi muito bonito! A exaustão te faz ficar mais emotivo.”, contou. O Cebreiro é uma das regiões mais místicas do caminho e entrada da Província Autônoma da Galícia. A cidade que ainda preserva suas construções medievais parecidas com aldeias celtas eram diferentes de tudo o que eles haviam visto até o momento no caminho. “A energia desse lugar é diferente”, comentou Evandro. A cultura e as construções galegas tem uma forte influência celta, devido aos primeiros povos que habitavam a região antes da chegada dos romanos e dos cristãos. A partir de O Cebreiro o cristianismo e o paganismo se misturam ainda mais, e para os que creem, a energia do caminho também muda junto com o cenário. “Eu não li o livro do Paulo Coelho, dizem que ele parou ali, que foi onde ele encontrou a sua espada. Eu acho que ele ‘arregou’ mesmo”, brincou Evandro.

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O diretor de uma peça de teatro Viajar em grupo não é uma coisa fácil, principalmente quando a equipe é formada por pessoas tão diferentes e que mal se conhecem. O time dos handgrinos, inicialmente, constituía-se de amigos do Evandro, as outras pessoas não tinham o mesmo nível de intimidade, por isso toda a tensão que surgia cabia ao líder da expedição resolver. “Naqueles dias de tensão no hotel em Pamplona, onde ficávamos sem fazer nada já começaram a aparecer os conflitos. As pessoas já vinham me encher o saco: Fulano de tal não tira a cerveja da mão“, lembrou. “Ai eu comecei a fantasiar isso como se eu fosse o diretor de um filme e eles eram os meus atores, os meus personagens.” Além de ter dois cadeirantes, o grupo era formado por opostos. Do ponto de vista da religião era um católico, um evangélico e uma mística, e no quesito sexual havia um homossexual, o André, e um homofóbico, o Miltinho, deste último com certeza foi de onde surgiram as maiores tensões. “No primeiro dia pedalando, o André, que não tem a mesma força e preparo que o Miltinho, o estava ajudando a puxar o Josimar. Foi quando o Miltinho falou: Bicha do %$@ não faz nada direito puta que o pariu”, contou Evandro, que no dia seguinte ainda recebeu reclamações e questionamentos por ter convidado o André para a viagem. “O André vinha falar comigo que não estava aguentando mais, e eu dizia calma no final dessa historia aqui vocês vão estar se beijando.” As ofensas continuaram ao longo do caminho, mas um incidente na região de Castela mudou um pouco o tom dos xingamentos. Quando acordou para seguir viagem Milton mal conseguia andar, de tanto fazer esforço com a bicicleta ele travou a musculatura das costas e não conseguia seguir viagem. Então ele foi ao

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posto médico para ser medicado e poder voltar a pedalar, porém a enfermeira do posto não podia aplicar a injeção necessária e a médica só chegaria às 13h, o que atrasaria muito a viagem. Mas para a sorte, ou azar, do preparador físico, André tinha uma carteira de identificação de farmacêutico e isso lhe dava a autorização de administrar a medicação. “Ele olhou para o Miltinho e disse: abaixa a calça aí que eu vou ver a sua bunda”, contou Evandro. “Nós estávamos na rua e esperando e chegou o André toda bimbona e o Miltinho parecendo um cachorro molhado, com o rabo entre as pernas. Eu perguntei o que aconteceu e ele respondeu: Essa bicha do &%@# viu a minha bunda, teve que me dar uma injeção”, lembrou Evandro rindo. Hoje, após todo o sufoco do caminho Milton esqueceu a homofobia e ele e André se tornaram grandes amigos. “Eles saem para almoçar, tomam cerveja juntos. Virou uma amizade verdadeira”, disse Evandro. “Eu achava que estava formando uma expedição onde a maior diferença seria ter dois deficientes físicos, e não foi. Nós tínhamos um evangélico e um católico, um gay e um homofóbico”, completou.

Enfim, Compostela Os últimos 17 km antes de chegar a Santiago de Compostela foram feitos sob um grande silêncio. Eles decidiram abandonar a rota pela estrada de asfalto e seguiram pelo caminho tradicional, igual aos demais peregrinos, colocando as bicicletas bosques adentro. Quanto mais eles se aproximavam do destino final, mais Evandro se emocionava. “Eu não queria que acabasse”, disse o peregrino. A

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Foto: Graziela Teixeira

Foto: Graziela Teixeira

Evandro e Milton.

Pimentel e Leandro, guinchando Evrando.


partir de o momento em que começaram a enxergar a cidade, eles notavam que a fisionomia dos peregrinos ia mudando e o silencio tomava conta do trecho. “Comecei a perceber que ninguém mais do grupo me passava, olhava no meu retrovisor via o grupo para trás e um silêncio quase fúnebre tomava conta do caminho. Eu estava cansado e ninguém me oferecia ajuda, normalmente eles faziam isso”. A razão pela qual os amigos deixaram Evandro seguir sozinho foi porque ninguém tinha coragem de ultrapassá-lo. “Você criou essa história toda, não seria justo alguém chegar na sua frente”, justificaram. Os peregrinos foram chegando pelo lado direito da catedral, onde há um túnel com uma imensa escadaria e também onde muito artistas de rua ficam fazendo suas apresentações. No dia de sua chegada havia um homem tocando, gaita de fole, instrumento muito típico da região. “Foi muito forte”, lembrou Evandro. Nesse momento, ele pôde começar a sentir o clima especial que a cidade tem, que vai muito da religião cristã. Os símbolos religiosos das primeiras civilizações locais, os celtas, tem uma forte presença em Compostela. “A cidade é muito louca”, comentou. “Foi apoteótico! Eu fui entrando na praça sem ver a catedral, quando virei de frente foi uma explosão. Além do sonho de quase 20 anos eu carregava uma responsabilidade para com os patrocinadores, e também com as pessoas que acompanhavam a gente pelo Facebook, eles faziam campanha com hashtags. Essa viagem deixou de ser só minha e virou a viagem de muita gente.” Eles chegaram a Santiago de Compostela em 18 de setembro. No dia, a cidade estava cheia de turistas e o grupo pode sentir mais uma vez a dimensão que tinha tomado essa expedição. “Tinha uma jovem estudante na Universidade de Santiago que estava lá na praça nos esperando para tomar nosso depoimento para

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um trabalho, ela acompanhou toda a nossa expedição via satélite”, contou. Na cidade eles cumpriram os rituais de todos os peregrinos, assistiram à missa de domingo, dedicada aos viajantes, foram até a oficina para retirar a Compostela – certificado de peregrino - , momento em que mais uma vez foram aplaudidos pelos demais peregrinos, mais um ato de reconhecimento pelo enorme esforço do grupo.

As lições “A coisa mais bonita que eu vi no caminho foram as pessoas que foram comigo e as pessoas com que eu cruzei”, disse Evandro. Leandro, seu irmão, ficava impressionado com a motivação que eles passavam para as pessoas. “Ele mora em Jacareí e não está acostumado com a minha rotina, mas para mim aquilo não era nada, o que me motivava era ver as senhorinhas com mochila nas costas”. Desde que voltou à sua rotina, Evandro carrega consigo um álbum de fotos do Caminho para o qual ele olha diariamente. “Eu procuro me lembrar todos os dias de tudo o que eu vivi, porque é muito fácil você sair empolgado de uma palestra motivacional, mas depois de um tempo esquecer tudo o que aprendeu. Então qualquer coisa que você se dispõe a fazer você tem que pôr em prática, tem que virar um hábito para você melhorar em tudo.” A simplicidade é outra lição que o aventureiro trouxe das rotas jacobeas e procura colocar sempre em prática. Depois de passar 20 dias com apenas três camisetas ele conta que chegou em casa e pediu para a esposa “fazer uma limpa” no seu armário e doar um monte de roupas. “O principal é perceber que a gente não precisa de muito para viver”.

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Evandro foi o quarto peregrino que eu entrevistei e foi o terceiro a me falar sobre o desapego material, Carlos, mexicano, e o Alberto, espanhol, destacaram essa como uma das grandes lições do Caminho de Santiago. Sejam eles religiosos ou não e independente da experiência que tiveram ao caminhar, o fato é que os peregrinos ao percorrem as rotas jacobeas foram tocados pelos ensinamentos religiosos.

Até onde podemos chegar “As minhas rodas estão me levando aonde eu nunca imaginei chegar com as minhas pernas”, essa foi a resposta que o Evandro me deu quando lhe perguntei se ele algum dia imaginou fazer tudo o que tem feito até agora, correr maratonas internacionais, participar de corridas de aventura e fazer o Caminho de Santiago. Pode parecer um clichê de livro de autoajuda, mas entrevistá-lo me faz perceber que sonhos são feitos para serem realizados e que não é preciso esperar que nos aconteça um acidente grave para nos darmos conta disso. Nós podemos ir aonde quisermos, basta planejar, acreditar e realizar. Hoje Evandro trabalha na área de marketing de uma empresa que fabrica cadeira de rodas e ajuda no desenvolvimento do projeto da primeira handbike brasileira. Ele segue dando as suas palestras, menos do que gostaria por conta do novo trabalho, e continua sonhando e planejando novas aventuras, novos desafios e novos caminhos para percorrer. Essa entrevista para mim foi mais do que assistir a uma de suas palestras, eu ria e me emocionava com cada acontecimento que me era contado, o que só aumentou ainda mais a minha crença da magia da cidade e do caminho, o qual pretendo percorrer, a rota completa, em breve com meu pai.

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VII Um padre no Caminho



Pode parecer estranho mas, não são muito os clérigos que embarcam na aventura

de fazer o Caminho de Santiago. De acordo com dados do Escritório de Acolhida aos Peregrinos, que faz uma avaliação dos dados quantitativos e qualitativos dos peregrinos que chegam a Compostela, menos de 1% dos romeiros são de carreira religiosa. Um desses poucos clérigos romeiros foi o arcebispo emérito da Paraíba, Dom José Maria Pires. Aos 95 anos, afastado das antigas funções, ele mora em uma casa de saúde e acolhimento para padres e irmão jesuítas, no bairro do Planalto, em Belo Horizonte. Foi lá que ele me recebeu para uma conversa. Desde pequeno, José já optara pela carreira religiosa. Aos oito anos de idade, aproveitou uma reunião de família para comunicar a todos o desejo de se tornar padre. Na época, parecia um sonho impossível. Ele morava em um vilarejo, no interior de Minas Gerais, formado apenas por uma rua. Por isso, sua madrinha o alertou que seria muito difícil um menino de sua região se tornar padre. Mas disse que, se esse fosse mesmo o seu desejo, que rezasse todos os dias para São José, padroeiro das vocações.


“Eu saía da escola de manhã e ia todos os dias à Igreja. Ajoelhava em frente à imagem de São José e dizia: São José eu quero ser padre. Levantava e ia embora”, conta o bem humorado bispo. Um ano depois, sua madrinha lhe chamou para acompanhá-la a uma viagem a Diamantina, onde ela faria um tratamento de saúde. Infelizmente, durante esse período, sua mãe sofreu um mal súbito e faleceu. Mas, antes de morrer, ela encaminhou seus cinco filhos para os padrinhos criarem. E, assim, José mudou-se para Diamantina com sua madrinha. Morando com a madrinha, em uma verdadeira cidade, ele terminou o curso primário. Em uma oportunidade, José viu o bispo Dom Joaquim Severio de Souza, que passeava pelas ruas da cidade, e foi pedir a sua benção. O jovem aproveitou a oportunidade e declarou a sua vontade de ser padre. Dois meses depois, entrou para o seminário e, aos 12 anos, começou sua carreira religiosa.

Um padre e um combatente Um fato curioso sobre a vida de seminarista de Dom José foi a época em que ele e seus companheiros faziam treinamento de tiro de guerra. Aos risos, ele conta que os seminaristas marchavam com um fuzil de 7,5 kg nas costas, atiravam e até faziam treinamento de trincheiras, tudo sob a avaliação de sargento do exército. “Naquela época, todos os jovens eram obrigados ao serviço militar. Como nós, no seminário, tínhamos uma carga de estudos muito grande, e se saíssemos íamos perder muito, conseguiram que fizéssemos o treinamento lá dentro mesmo”, explica. Ordenado bispo, Dom José teria um segundo encontro com os militares, mas dessa vez sem nenhum intuito didático. Ele fez parte de um grupo de clérigos da

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Igreja Católica que combatia, mesmo que sem armas, a ditadura militar no Brasil. “A ditadura começou a fazer aquilo com que não podíamos concordar”, diz o bispo. “Eu já sabia do golpe de 1964 antes de ele acontecer, porque o governador de Minas havia mandado uma mensagem para todos os bispos do Estado dizendo que MG ia se levantar contra o governo federal. Então já estávamos esperando por aquilo. Ai, veio o golpe, pensávamos que era para fazer o que diziam: combater o comunismo e a corrupção. Mas depois vimos que não era para isso, era uma ideia que eles tinham de se manter no poder.” Quando Dom José já estava na Paraíba, as autoridades militares começaram a emitir ordens de prender jovens e agricultores, por causa das Ligas Camponesas comandadas por Francisco Julião. “Vimos que tínhamos que tomar uma posição. Primeiro, falávamos durante as pregações e, depois, íamos onde havia perigo”, conta o clérigo. Os padres e bispos eram informados pela população de alguma ação ofensiva da polícia e se dirigiam até o local para impedir. Não havia luta, tampouco era necessário, a presença de uma autoridade religiosa coibia as ações abusivas da polícia.

O bispo peregrino Mesmo tendo passado a vida dedicando-se ao catolicismo, Dom José nunca tinha ouvido falar do Caminho de Santiago e as peregrinações à cidade de Compostela. Em 1967, um ano após terminar o seu bispado na Paraíba, um grupo de religiosos mineiros o convidou para fazer a viagem. Eles queriam um guia espiritual para a sua romaria, alguém que pudesse fazer celebrações, com quem pudessem conversar e até mesmo resolver conflitos.

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Foto: Isadora Mota

Dom José Maria Pires no lar de saúde para Jesuítas, Belo Horizonte, MG.


“Foi uma experiência legal. Quando voltei decidi que queria fazer outra vez, mas por minha conta”, disse o bispo. Quando completou 50 anos do início do bispado, em 2007, ele fez o Caminho Francês outra vez. Então, estava acompanhado de um padre que ele mesmo ordenara, uma frequentadora da igreja e uma tenente da polícia. O grupo saiu de Roncesvalles e andou por 30 dias pelo norte da Espanha. Das suas duas experiências como peregrino, ele traz muitas lições de solidariedade e simplicidade que ele conta por meio de histórias e pessoas que ele conheceu ao longo do Caminho. “É uma solidariedade perfeita. Se você tiver qualquer problema, por exemplo, você se machucou e não pode continuar. Vai ter alguém que te dê apoio até que resolva o seu problema”, conta o bispo, que no meio de uma de suas caminhadas sentiu uma forte dor no joelho que o impedia de continuar. Para a sua sorte, apareceu uma senhora, que ele nunca tinha visto na vida e tirou uma pomada para passar no local da dor. Depois do atendimento, o seu joelho melhorou e ele pôde continuar a jornada. Outro momento, em que contou com ajuda voluntária de desconhecidos, foi na segunda vez em que fez o Caminho, aos 88 anos. Logo no segundo dia, eles pegaram uma forte chuva, que os obrigava a diminuir o passo e a caminhar com mais cautela. Junto com a chuva vinha também o frio, e, apesar de vestirem capas para se proteger, as roupas não davam conta de mantê-los aquecidos. De repente uma mulher parou o bispo e lhe fez uma pergunta, mas ele não entendia o que ela falava. Quando conseguiram se entender, ele descobriu que ela estava tentando avisar que sua boca estava torta e que ele precisava parar.

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“Fazia muito frio e eu mal conseguia me mexer para tirar a mochila sozinho. Um rapaz me ajudou, ele também tirou minhas botas e as meias e trouxe um balde de água quente para que eu pudesse me aquecer. Enquanto isso, a senhora foi preparar uma caneca de leite quente para mim. Nunca tinha visto nenhum dos dois.”

Pescadores de homens Por ser um grupo muito unido e seguir à risca alguns rituais, como fazer uma oração antes de começar o dia e almoçar sempre no mesmo horário, o bispo e seus companheiros chamavam a atenção e atraiam alguns peregrinos. Na primeira vez que passou pelo caminho jacobeu, ele fez amizade com um francês que, mesmo sem entender uma só palavra, participava das orações e os acompanhou até o final. “Ele gostou muito de mim e como andava mais rápido, chegava primeiro nos albergues e reservava uma cama”, conta Dom José. As camas são uma coisa escassa no Caminho de Santiago, porque os albergues públicos – alguns gratuitos, outros apenas muito baratos – são poucos, dependendo das cidades, e não comportam muitas pessoas. De forma, na alta temporada, é comum ver as hospedarias lotadas de peregrinos dormindo no chão, ou camas amontoadas, grudadas umas nas outras. Mas cama foi o que não faltou para Dom José, seu amigo francês chegava rápido à cidade e sempre lhe garantia um lugar confortável para dormir. A cama era sempre para o bispo, nunca para ele. Na segunda experiência como peregrino, foi uma médica espírita que se juntou a ele e ao seu grupo. Uma prova que o Caminho não diferencia credos, muito menos as pessoas. Ele está ali para todos que queiram ter uma experiência

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de interiorização, de meditação e contato com a natureza. “A importância do Caminho não é para a fé católica, é para cada pessoa”, diz o bispo. “Tem gente de todo tipo, são pessoas que querem passar por essa experiência, não são apenas os católicos”, completa.

Mudanças de hábitos e soma de novos valores Para Dom José, os principais valores do Caminho são: a simplicidade, solidariedade e o valor do silêncio. Sobre esse último ponto, ele faz uma reflexão sobre o nosso dia a dia, principalmente em relação à juventude. “A gente vive ouvindo coisas, e quando não tem nada você coloca um fone de ouvido e fica escutando música”. O silêncio tem um grande poder de nos levar à introspecção, nos faz pensar, nos ajuda a refletir sobre quem nós somos e o que queremos. “Ficar ali, horas e horas caminhando em silêncio, sem conversar com ninguém é algo que mexe muito com a gente”, diz. A simplicidade é outro valor que um peregrino adquire, durante a sua caminhada, e leva pra a vida toda. O bispo conta que não passava fome, ou qualquer outro tipo de necessidade, ele apenas vivia de maneira mais simples, comia de maneira mais simples. Para dormir, bastava um teto; para vestir, uma muda de roupa limpa que pudesse trocar e para comer, aquilo que lhe garantisse o sustento, sem excessos. “Na primeira vez que fiz o Caminho, logo no terceiro dia, três mulheres que estavam com a gente esvaziaram suas mochilas e despacharam algumas roupas para o Brasil”, contou. Outro fato que chamou a atenção do clérigo foi aprender a conviver com outras pessoas principalmente do sexo oposto. “Nós que fomos criados no seminário

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temos uma certa dificuldade no relacionamento”, explica o homem acostumado apenas com ambientes masculinos. “Uma das noites em que o francês já havia me arrumado uma cama, eu fui me deitar, mas as pessoas vão chegando e vão se apertando. Quando me dei conta estava entre duas mulheres que eu não conhecia. E eu dizia: Meu Deus e agora? O que, que eu faço aqui? Virar não posso, rolar na cama muito menos”, contou. “Existem algumas coisas que para nós homens que sempre vivemos em ambiente masculino é difícil de entender, mas no Caminho você vai aprendendo e se acostuma. A primeira vez causa estranheza depois vira normal”, explica aos risos a sua situação constrangedora. A solidariedade do Caminho não era apenas entre os peregrinos, as pessoas que viviam nos vilarejos, cortados pelas trilhas, também transmitem o espírito da tradição jacobea. Por onde passavam os moradores gritavam: “Bon Camino”, uma saudação em galego dada a todos os peregrinos. Quando passaram no meio de uma propriedade cheia de belas parreiras de uvas, encontraram com o dono, na saída distribuindo os frutos de sua plantação a todos os romeiros. Nada falta aos peregrinos eles são acolhidos pela comunidade local.

Um último Caminho Otimista, Dom José Maria Pires já está fazendo planos para o seu último Caminho de Santiago, que será daqui a cinco anos, quando ele tiver completado um século de vida. “Se eu estiver com a saúde que tenho hoje, vai ser possível fazer o Caminho outra vez”, diz o senhor de 95 anos, aparência de 60 e

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Foto: Isadora Mota

Dom José Maria Pires no lar de saúde para Jesuítas, Belo Horizonte, MG.


perfeitamente lúcido. Apesar da idade, o bispo não possui nenhum problema de saúde. O seu segredo? É viver a vida sempre com bom humor, buscando sempre o lado bom das coisas. “Para mim não há tempo ruim se a gente está viajando e o carro quebra, pelo menos vamos poder descansar um pouco.” Mesmo aposentado, Dom José continua com suas atividades paroquiais, participa de encontros e palestras, viajando pelo Brasil e pelo exterior. Ele pretende, ao completar 100 anos, fazer o Caminho de Santiago e depois encerrar de vez todos os seus trabalhos. “Vou começar a me preparar para a morte”, diz aquele que está vendendo saúde. Ele conta que para a próxima peregrinação espera demorar mais tempo caminhando, ao em vez de 30, o bispo acredita que completará todos os quase 740 km em 40 dias.

Prazer BH Dom José foi o personagem mais difícil de encontrar, ele nunca estava na casa de saúde dos jesuítas. No primeiro número para que liguei diziam que não existia ninguém ali com esse nome. Depois consegui outro número, encontrei o bispo, mas disseram que Dom José estava em uma viagem à Itália. Na mesma semana que voltou ao Brasil, ele iria passar por São Paulo para uma palestra, no entanto sua agenda estava sem espaços para uma entrevista. Consegui, finalmente, um encontro em uma sexta-feira à tarde, na casa jesuíta onde ele mora. Tanta demora, e o excesso de atividades daquele senhor, me deixavam tranquila em relação à sua saúde e me davam a esperança de ter uma ótima conversa. E tive. Dom José não falava como clérigo, quando o assunto era o Caminho. Ele

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falava como um peregrino normal, que realmente foi. Foram apenas dois os momentos em que descobriram que ele era bispo e lhe ofereceram a casa paroquial como hospedagem. Ele recusou. Recusou porque, em suas próprias palavras, “no Caminho todo mundo é igual”, não existe homem e mulher, rico ou pobre, todos passam pelas mesmas experiências e são tratados da mesma forma. Durante muito tempo da preparação do meu trabalho e quando fiz o Caminho tentava entender o que era essa “coisa” que todos os peregrinos diziam que sentiam e que lhes dava força para continuar. Independente de qualquer religião, acho que isso é fé. Conversando com Dom José, ele me explicou que a fé é o “motor das pessoas” e que nossas orações, sejam para quem forem, nos lembram quais são as atitudes certas a tomar, nos ajudam a encontrar qual o caminho certo a seguir. Os peregrinos acreditam e têm compromisso com aquilo que fazem. Por isso, são tão fortes e capazes de Caminhar 800 km e, no final, dizer: “Quero fazer outra vez”. “O que salva não é a religião é a fé, é o compromisso. A religião é o alimento, a gente reza para ter força para enfrentar o dia a dia, mas é compromisso que salva”, disse Dom José Maria Pires.

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VIII Uma conexão que vai além das estrelas



I nfluenciado diretamente pela leitura do livro Diário de um Mago de Paulo

Coelho, Paulo César Nogueira, 46 anos, é um apaixonado pelo Caminho de Santiago. Desde que fez a sua primeira peregrinação, há 20 anos, já voltou às trilhas jacobeas mais de 10 vezes percorrendo diversas rotas e algumas vezes apenas pequenos trechos. Ele conta que Santiago de Compostela é o seu segundo lar, e sempre que volta, passa por dias depressivos, sentindo saudades da terra do apóstolo. Morador da Vila Mariana, em São Paulo, Paulo se formou em jornalismo, mas nunca exerceu a profissão. Para pagar seus estudos, ele trabalhou em companhias aéreas. Com o passar dos anos, seus caminhos o levaram para longe das redações e para mais perto de Santiago de Compostela. Depois de se formar, em 1993, começou a preparar sua viagem, que aconteceria em janeiro de 1995. Aos 25 anos, inexperiente, ele não previu as dificuldades que enfrentaria caminhando no inverno europeu. Ao longo dos 30 dias, sofreu as consequências de sua imprudência.


Foto: Divulgação/Paulo César Nogueira

Foto: Divulgação/Paulo César Nogueira

Caminho Francês (1995).

Paulo César Nogueira peregrinando.


“Minha viagem foi muito sofrida. Tive muito problema com bolhas nos pés e dores nas pernas”, disse o peregrino que relata ter sentido dor do primeiro ao último dia de caminhada. Seus machucados foram tão graves que, quando voltou ao Brasil, procurou uma ajuda médica para tratar das infecções. “Foi uma coisa horrível, eu tinha bolha nos ombros e sangue na minha roupa.” Difícil imaginar como foi possível, mas Nogueira passou os 30 dias com a mesma calça de moletom andando por estradas cobertas de neve. Sinto frio só de relatar. Além da vaidade, banho foi outra coisa da qual ele teve que abrir mão, porque nem todos os refúgios tinham água quente. Ele chegou a passar seis dias sem passar perto do chuveiro. “É muito engraçado como você se vê transformado diante de uma experiência dessas”, comenta Paulo.

Entre a realidade e a ficção Uma vez que foi levado ao Caminho jacobeu pela aventura vivida por Paulo Coelho, autor que sempre admirou, Paulo precisou separar a realidade da ficção. Ele buscou os mesmo lugares retratados no livro e encontrou com os mesmo personagens. Mesmo com a materialização de algumas fantasias descritas pelo autor, quando começou a caminhar teve a consciência de que estava fazendo o seu próprio Caminho, com suas próprias particularidades. Quando chegou à cidade de Foncebadon, viu trechos de suas leituras se tornarem realidade. No Diário de um Mago, o autor descreve essa etapa do Caminho como uma travessia de uma cidade fantasma, onde ele se encontrara com o demônio em forma de cão. Se era mal assombrada ninguém sabe, mas, há 20 anos,

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Foncebadon era apenas uma vila, de uma rua, com uma cruz de madeira no meio, e suas poucas casas estavam completamente abandonadas. Ansiosos, Paulo e seu companheiro não viam a hora de chegar àquela cidade misteriosa. Logo na entrada, perceberam a dificuldade que teriam: havia nevado muito naquela madrugada, e a estrada estava completamente coberta, mal dava para ver as sinalizações. Certamente, eles iriam se perder. “Porém, os espíritos do caminho começaram a agir e, antes que a gente entrasse no vilarejo abandonado, apareceu um homem, todo equipado com roupa e calçados de neve e nos ofereceu ajuda’, recorda Paulo. O nome desse homem era Ricardo. Ele já havia feito o Caminho e gostou tanto que voltava todo ano para fazer algum trecho, por isso conhecia muito bem aquela parte e se ofereceu para guiá-los. “Esse cara foi tipo um anjo, porque apareceu na cidade onde nós tínhamos mais receio de caminhar. Se ele não tivesse aparecido nós nunca teríamos encontrado a saída”, diz Paulo. Foncebadon estava abandonada pelas pessoas, mas era lotada de cachorros. Naquela época, ainda não existia uma lei que obrigasse os donos de propriedades a manterem os cachorros presos, por isso eram comuns os ataques. Isso deixava os peregrinos ainda mais apreensivos e aumentava a sensação de aventura. Paulo conta que ao longo do trecho teve de usar seu bastão de apoio umas quatro ou cinco vezes para se proteger dos cães. Os três seguiram caminhando. Ricardo ia à frente, enquanto Paulo e seu colega, Clélcio Ribeiro, 22 anos, seguiam atrás em um passo mais lento. Quando olharam para o lado, viram um cachorro enorme, da raça Mastim, um animal de porte grande com a cara toda enrugada como a de um buldogue. De tão impressionado,

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Foto: Divulgação/Paulo César Nogueira

Entrada de Foncebadon, caminho Francês (1995).


Paulo não soube definir se o cão era “horroroso” ou “maravilhoso”. Assim como aconteceu com seu “xará” escritor, ele também encontrou o seu demônio. “Quando o vimos, não conseguimos nos mexer e o cão desceu rápido em nossa direção. Eu comecei a dar risada de desespero e a gritar por socorro. O animal chegou a avançar na mochila do meu amigo. Eu dei um grito. E, como se fosse mágica, Ricardo deu um assobio e o cão foi embora.” Eles continuaram a viagem, mas Paulo andava tão devagar por causa das dores que o Ricardo chegou a achar que não ia aguentar terminar o caminho. “Meu amigo lhe disse: Ele vai sim! Há 20 dias que ele está andando nesse estado”. Mesmo assim, o guia sugeriu que pegassem um ônibus, mas eles disseram que tinham um compromisso de fazer o caminho todo andando e não abririam mão disso. Ricardo foi com eles até a Cruz de Ferro, onde pararam para tirar fotos. “Foi engraçado porque a foto (com filme de rolo) que tiramos do Ricardo ‘queimou’. Ele não aparece na foto, como se tirássemos um retrato de um anjo”, contou Paulo.

Momento de retribuir Depois de sua primeira jornada, Paulo voltou ao Caminho quase todos os anos, até 2003, quando saiu de seu emprego e decidiu trabalhar como hospedeiro voluntário ajudando nos albergues e hospedarias da região. Para isso, era preciso primeiro fazer um curso na cidade de Grañon promovido pela Federação Espanhola de Associações dos Amigos do Caminho de Santiago. Mesmo com as aulas começando apenas em março, ele mudou-se para o Caminho em janeiro e já começou a fazer os seus serviços voluntários.

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A primeira hospedaria em que trabalhou foi no Refúgio do Jesus Jato (pronuncia-se Rato) na cidade de Villa Franca del Bierzo. “Fiquei um mês lá com ele (Jesus Jato). Fiz coisas que jamais imaginei, como trabalho de pedreiro. Coisas que não tem nada a ver comigo”, conta Paulo. “Você vê que, na necessidade, aprende a fazer coisas as quais jamais imaginou”, completa. Depois de Villa Franca, foi trabalhar em outra hospedaria, onde não se deu muito bem com o hospedeiro e decidiu ir mais cedo para Grañon. Onde foi acolhido pelo Dom José Ignácio, responsável pela hospedaria da cidade. Esse período, Nogueira classifica como um dos melhores que passou como voluntário no Caminho de Santiago. “Ser hospitaleiro voluntário é muito mágico, é quase como fazer o Caminho de Santiago. Quando eu estava lá eu sentia que o Caminho passava por mim e me atravessava todo dia.” Em Grañon, Paulo ajudava na reforma e construção das casas dos vilarejos próximos, trabalhava na limpeza da hospedaria e acompanhava sempre Dom José em seus passeios. Ele era o que chamamos de “faz tudo”, o brasileiro ganhou rápido a simpatia do padre hospedeiro, que o convidou para ficar no seu albergue logo que ele terminou o curso. “Dom José me disse que eu fui o melhor hospitaleiro que passou por lá”, disse o peregrino. Paulo conta que o Brasil deixou uma herança no Caminho de Santiago. Há alguns anos, uma hospitaleira chamada Maria Paz, trabalhou como hospitaleira no albergue de Dom Jose. Na hora de rezar o pai nosso, ela fazia as suas orações com os braços abertos e as mãos voltadas para cima, um costume muito comum no Brasil. Dom José achou isso tão bonito que passou a adotar o gesto, e hoje todos na cidade rezam dessa maneira.

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“A experiência de hospitaleiro é muito interessante porque você encontra peregrinos todos os dias, de várias partes do país, e você vê que o Caminho só existe por causa dos peregrinos, são eles que fazem o Caminho.” Depois de Grañon, Paulo foi trabalhar em outras hospedarias, ao todo foram seis meses morando no Caminho de Santiago até chegar à cidade de León. Lá ele começou a pensar em voltar ao Brasil, sentia falta do seu país e de falar a sua língua. “Já estava me sentindo velho. Estava com 35 anos e tinha planos de continuar estudando e quem sabe seguir a carreira acadêmica”, contou o peregrino. “Foi um ciclo. Os peregrinos mais antigos falavam que quando você faz o Caminho, depois você tem que retribuir. E eu fiz a minha parte. Devolvi ao Caminho tudo o que ele me deu”, completou.

20 anos de Caminho Paulo César já viajou para a Índia, para a Tailândia e vários outros lugares do mundo, mas para ele não há lugar melhor que Santiago de Compostela. Desde 2005 ele vai à Espanha ano sim, ano não, alternando entre visitas a sua irmã que mora no Canadá e o Caminho de Santiago. Ele diz que nada além do Caminho lhe interessa na Espanha, nem Barcelona o peregrino conhece. O Caminho de Santiago provocou uma verdadeira transformação em Paulo. Antes de fazer a primeira viagem, ele era muito consumista, adorava comprar roupas, sapatos e livros. Chegou a ter 60 pares de calça no armário. “Depois de um mês andando com a mesma calça, você para e pensa: Para que eu preciso de tanta calça se eu só tenho duas pernas?”, contou. Voltando ao Brasil, ele relata que a mudança mais radical que aconteceu na sua vida foi a limpeza do guarda

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roupa. Hoje ele só tem camisetas brancas e pretas, para não perder tempo escolhendo roupas, poucas calças e pares de sapatos. “Você volta muito mais desapegado de tudo, das pessoas e dos bens materiais.” Para Paulo, a solidariedade é uma coisa chocante no caminho. ”Você vê pessoas fazendo coisas para você de forma que você nunca vai ver aqui em São Paulo”. O peregrino já está preparando a sua próxima viagem no ano que vem. Ele diz que o Caminho o chama, que é um lugar onde ele se sente desprendido de tudo. “Eu continuo fazendo pela liberdade que eu sinto quando estou lá. Eu gosto muito de andar. Faço o Caminho há 20 anos e não existe nenhum lugar como aquele. Sinto-me vivo lá.” Além do Brasil, a cidade de Santiago de Compostela é o lugar onde Paulo mais se sente em casa, ele diz que o clima da cidade o alimenta. Nogueira também conta que os autores antroposóficos acreditam que peregrinos como ele, que sentem uma forte ligação com o Caminho das Estrelas, têm uma ligação com o Caminho que vem de vidas passadas. Não importa quantas vezes faça o Caminho, nunca é igual. É sempre emocionante, mas nunca da mesma maneira. “Tudo depende com quem você está. É sempre único e particular”, descreve Paulo. ”O Caminho é feito de momentos que são únicos e depois ficam no passado, nunca mais você viverá aquilo”, completa.

Por acaso Encontrar o Paulo foi algo que aconteceu por acaso. Durante uma busca por conteúdo na internet, encontrei um artigo que ele publicou, contando sobre a sua tese de mestrado sobre os relatos dos peregrinos defendida na PUC-SP. Fui

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atrás e marcamos uma entrevista, a ideia inicial não era tê-lo como personagem, mas sim como especialista, usar os seus conhecimentos como base teórica para esse livro. Porém, quando começamos a conversar, tudo mudou e eu vi que ele teve, e continua tendo, uma experiência única como peregrino. Ele é uma pessoa tão espiritualizada, que seja qual for o assunto da conversa você se sente em paz. Esse peregrino de carteirinha transmite uma energia tão positiva que não te dá vontade de terminar a conversa. Sem nos darmos conta, desviamos os assuntos e acabamos falando de nossas coisas pessoais e outros assuntos para além do Caminho. É importante destacar que a sua espiritualidade e ligação com o esoterismo não começaram com o Caminho de Santiago, muito menos com as leituras de Paulo Coelho. É algo que já existia dentro dele e seus estudos e viagens apenas afloraram esse sentimento e trouxeram à tona algumas mudanças no seu estilo de vida.

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IX Vivendo do Caminho



O Caminho de Santiago tem o poder de prender as pessoas. Não é à toa que muitos peregrinos voltam a percorrer suas trilhas. Mas, para alguns essa atração extrapola o desejo de viajar e eles passam a fazer parte do contexto desse mundo mágico das peregrinações. Um desses personagens é Acácio Augusto Castro da Paz, 56 anos, que há 15 largou tudo o que tinha no Brasil para abrir uma hospedaria no meio das rotas jacobeas.

Carioca, Acacio morava em Florianópolis, Santa Catarina, onde tinha uma empresa de assessoria na área da saúde para compra e venda de medicamentos. Como muitos de sua geração, ele se inspirou a fazer o caminho após ler Diário de um Mago, de Paulo Coelho. A oportunidade veio em 1998. Acacio aproveitou a Copa do Mundo da França para estender as suas férias e fazer o Caminho Francês saindo da cidade de Saint-Jean-Pied de Port. O empresário passou 34 dias caminhando, mas quando voltou para o Brasil sentiu que esse tempo não foi o suficiente e que ainda tinha muito mais a conhecer no Caminho.


“Quando vim fazer o caminho em 1998, não tinha nenhuma intenção de ficar por aqui. Mas, quando voltei ao Brasil, observei que o caminho oferecia muito mais que realmente estes dias.” Após sete meses, Acacio voltou a morar no Rio de Janeiro e, em maio de 1999, voltou ao Caminho de Santiago mudando completamente o seu estilo de vida. “Caminhei muitas vezes neste ano de 1999 antes de decidir ficar. Acabei fazendo a volta desde Finisterra até Genebra, na Suíça, a pé e no Inverno”. Também conhecido como Caminho de Genebra, essa rota, de mais de 1.600 km, foi criada nos anos 90 para facilitar a ida dos peregrinos suíços a Santiago. São 350 km até a cidade de Le-Puy-en-Valey, na França, onde se encontra com outras rotas do Caminho de Santiago. São cerca de dois meses de caminhada, passando pelos Alpes Suíços, norte da Espanha até chegar ao extremo noroeste espanhol. Essa longa jornada proporcionou ao nosso peregrino um longo período de reflexão, quando decidiu rasgar a passagem de avião que tinha para voltar a Santiago e fazer todo o percurso a pé mais uma vez. Esse foi um ano intenso para Acacio, ele conta que fez o Caminho de Santiago durante cerca de um ano, parando apenas em março de 2000 para se recuperar. “Acabei ficando mais de três meses me recuperando”, disse o peregrino. “Somente assim pude aprofundar-me mais sobre os motivos e os porquês”, concluiu. Como forma de agradecimento por tudo o que o Caminho lhe deu, Acacio resolveu passar um tempo trabalhando como voluntário nos albergues. Foram sete anos de trocas, onde ele oferecia o seu trabalho e recebia uma cama e alimentação, até decidir montar a sua própria hospedaria.

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“Foram anos difíceis onde meu maior aprendizado foi receber e dar todo o tempo. Posso garantir a você que nunca me faltou nada durante estes sete anos. Não tive nenhuma remuneração e tudo chegava quando eu pedia.”

O Refúgio Acacio da Paz e Orietta Enquanto fazia o Caminho de Santiago pela segunda vez, Acacio conheceu a italiana Orietta. Eles se encontraram por várias etapas e ficaram amigos. “Caminhamos de Finisterra até Pamplona juntos depois eu segui até Genebra na Suíça”, conta Acacio. Juntos, trabalharam como voluntários em albergues, ele por sete anos e ela por quatro. “Caminhar é sempre uma boa forma de poder conhecer um pouco mais um do outro.” Pode parecer um conto de fadas, mas no começo, o relacionamento não foi fácil. Nesses quatro anos, Orietta ia e voltava, se revezando entre sua vida normal e o Caminho. Entretanto, sua relação com o Caminho ficava cada vez mais forte a cada viagem. Esse período foi fundamental para que eles pudessem se conhecer melhor. Nessa época Acacio já havia optado por viver no Caminho. “Claro que tudo agora parece mágico e fácil, mas foram anos difíceis tanto para mim quanto para ela“, disse o peregrino. Depois de quatro anos juntos em vários albergues como voluntariado, decidiram dar início a um novo projeto, o refúgio em Viloria de Rioja foi o seu primeiro passo. A primeira sede do refúgio foi uma casa que alugaram por um ano. Em seguida compraram o atual local onde está o Refugio Acacio e Orietta. Para concluir o

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refúgio, Acacio contou com o apoio de vários amigos incluindo o autor Paulo Coelho e sua esposa Christina Oiticica. “Sem eles, nada disso seria possível”. “Escolhi fazer um refúgio porque não estava mais gostando de fazer voluntariado nos albergues dos outros. Já era hora de começar nosso próprio projeto. Eu e Orietta decidimos abrir um refugio pequeno com 10 camas e poder compartir com os que escolhem estar cada dia entre nós.” Acacio conta que na época em que abriu o refúgio não tinha nada no pequeno vilarejo. Oito anos depois, a cidade conta com outro albergue, um hotel e outros estabelecimentos como bares e restaurantes estão sendo construídos. “Não tem um motivo especial por ter escolhido Viloria de Rioja. Como eu conheço todo o caminho sabia que poderia fazer algo em um povoado pequeno”, diz o hospedeiro.

Uma boa faxina Acacio é católico, mas acredita que a energia do Caminho vai muito além da religião. Morando e vivendo do Caminho ele tem contato com diferentes culturas e crenças todos os dias e, por isso, deve estar aberto a todas as trocas de experiências. Hoje, ele já não consegue se identificar com nenhuma religião específica, apenas vive do que o Caminho lhe dá. Para ele, ser peregrino é muito mais do que colocar uma mochila nas gostas e sair se aventurando no meio de trilhas e estradas. “A maioria caminha com o lado romântico”, diz Acacio, que já não busca mais credenciais, selos e Compostelas. Ele apenas caminha, e quando caminha diz entrar em estado de transe sentindo a

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Foto: Divulgação/Acacio da Paz

Acacio da Paz e sua esposa Orietta.


Foto: Divulgação/Acacio da Paz

Foto: Divulgação/Acacio da Paz

Entrada Refugio Acacio da Paz e Orietta.

Acacio peregrino.


energia que a natureza do Caminho lhe traz. “Ser peregrino é cruzar os campos das estrelas e apenas caminhar com ética”, explica. Acacio e sua esposa Orietta, há alguns anos, iniciaram um projeto de “limpeza” do Caminho. Todos os anos, durante o inverno, eles tornam a percorrer a rota jacobea a fim de tirar das trilhas a sujeira física e espiritual que contaminam o percurso. “Imagine quantas pessoas caminham aqui? Quantos chegam deixando suas dores e suas penas por este caminho? Quantos desejam que o caminho dê alguma coisa a eles? São muitas pessoas que circulam e a grande maioria inconscientemente não imagina a força que isso tem”, diz o peregrino. “Esta foi uma forma que Orietta e eu resolvemos, ha alguns anos, de caminhar no Inverno para limpar o que ninguém vê. Dedicamos-nos a fazer algo mais amplo do que limpar a sujeira (física) que cada um joga aqui nestes 819 km”, disse Acacio.

Viver o Caminho Acacio e sua esposa são um verdadeiro exemplo do que é viver o Caminho de Santiago, não apenas porque moram nele, mas porque vivem 100% do seu tempo os ensinamentos da peregrinação. Muitos peregrinos relatam que, depois de passar pela experiência jacobea, passaram a enxergar a vida de novos ângulos com menos apego material, mas acabam voltando a sua rotina. Já Acacio com o seu refúgio decidiu fazer do desapego o seu estilo de vida, sem extravagâncias. Dinheiro? Use apenas o necessário, para o que for necessário. Se você precisa pegue, se não precisa deixe para o outro, e assim viver de forma compartilhada.

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Hoje ele j叩 n達o pensa mais em voltar ao Brasil, a n達o ser que seja para algum projeto ou palestra. Sua vida agora n達o tem mais nada a ver com a daquele jovem que se formou em economia no Rio de Janeiro. Agora ele vive de caminhar, Acacio encontrou o seu caminho no Caminho de Santiago de Compostela.

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X O homem que perseguia as mulheres


Foto: Isadora Mota

Wilbert Wils, Caminho de Finisterra.


Após seguir pela direção errada, quase virar comida de cachorro (uma his-

tória para o próximo capítulo) e finalmente tomar o caminho correto, eu conheci Wilbert Wils, um senhor de 74 anos que estava finalizando o caminho português seguindo para Finisterra. Ele perguntou o que fazíamos ali, já que a concha apontava para o outro lado e nos olhou do jeito de quem diz: “Pobres crianças amadoras”. Esse senhor me pareceu interessante. Por isso comecei a explicar-lhe o nosso erro, contar a nossa “aventura” para poder puxar assunto e saber um pouco mais sobre aquele homem. Logo de cara, o seu nome me chamou a atenção, pois sempre imaginei que no dia em que eu tivesse um porquinho de estimação ele se chamaria Wilbert, como o do filme A menina e o porquinho. Lógico que o pet suíno dela se chamava Wilbur, mas para mim Wilbert é mais bonito. Além de tudo, Wilbert me parecia um nome jovem e combinava perfeitamente com o espírito daquele senhor. Seguimos juntos pelo caminho, eu, Carlos, Iris, Wilbert e uma moça alemã da qual não me lembro o nome. Durante toda aquela manhã de caminhada segui ao


lado do simpático peregrino me esforçando muito para seguir o seu forte ritmo de caminhada. “Você caminha bem, tem um bom ritmo”, ele comentou. Na hora, eu pensei: “Como esse velhinho é ‘marrento’. É lógico que eu consigo acompanhá-lo, ele tem quase o triplo da minha idade”. Esse comentário me deu mais vontade de seguir ao seu lado, senão por orgulho, pelas incríveis histórias que aquele senhor peregrino teria para contar. Aquela era a terceira vez em que Wilbert estava fazendo o Caminho de Santiago. Ela já havia feito o Caminho Francês, em 2010 e o Caminho de Puy na França, em 2012. Nesta última caminhada, Wilbert começou em Lisboa seguiu pelo Caminho Português até Santiago e em seguida fez o Caminho a Finisterra, onde nos conhecemos. Mas nessa época ele já era um peregrino experiente e o que faz dele personagem interessante foi a sua vida amorosa.

Caminhar para “dar um tempo” Quando soube que eu era brasileira, Wilbert comentou comigo de uma namorada paulistana que ele teve. Por causa dela ele veio parar em terras tupiniquins, onde viveu por seis meses na região da Vila Olímpia, zona Sul de São Paulo. “Mas não me adaptei, a cidade é muito violenta”, comentou Wilbert sobre o fim do seu romance. Cheguei a questionar o porquê de ele não ter levado a amada - da qual preferiu que eu não citasse o nome - para a Holanda. E ele respondeu que a paulistana tinha uma filha e ela não queria afastar a menina do pai. Essa curta história me ajuda a introduzir outra sobre a vida de Wilbert. O ano de 2009 foi para Wilbert uma época “desastrosa”, em suas próprias palavras.

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No mês de maio ele sofreu um acidente vascular cerebral (AVC); em julho, fez uma cirurgia bariátrica para colocar um balão no estômago e, no final do ano, se divorciou. “Todos os eventos foram inesperados”, comentou o peregrino. Na época ele namorava uma americana, vivia na Holanda, mas passava a maior parte do tempo nos Estados Unidos para onde estava planejando se mudar para viver com a mulher. “Eu tentei uma recuperação o mais rápido que pude para poder viver com minha mulher nos Estados Unidos”, contou Wilbert. “Foi aí que eu descobri que ela queria se divorciar.” Como nenhuma notícia ruim vem sozinha, vieram os problemas financeiros. Alguns anos antes Wilbert foi roubado pelo seu corretor, os seus negócios eram compartilhados com a família e o que lhe sobra de dinheiro foi investido na sua quase futura casa nos Estados Unidos quando veio a crise imobiliária. “Eu não tinha mais de onde tirar dinheiro. Basicamente me vi jogado na rua aos 69 anos.” Em meio a tantas desventuras, Wilbert teve total apoio da família. A fim de se reerguer ele buscou fazer cursos e tirou o diploma de terapeuta e conselheiro. Foi nesse período, quando se reestabelecia em seu país natal que nosso personagem começou a pensar em fazer o Caminho de Santiago para se reencontrar. “Eu já tinha ouvido falar do Caminho e esse me pareceu ser o momento certo.” Wilbert começou a caminhar na cidade de Vezelav, a sudeste de Paris, e como todo peregrino de primeira caminhada ele cometeu o erro de viajar com uma mochila muito pesada e sofreu com as bolhas nos pés e o cansaço. Após alguns dias de caminhada e se refugiar sozinho em uma pequena cidade ainda

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na francesa, onde foi aconselhado por outros peregrinos a tomar um trem até Saint-Jean-Pier-de-Port perto da fronteira com a Espanha e seguir pelo Caminho Francês tradicional. “Comecei no dia três de maio, caminhei 30 km entre os Pirineus e a cidade de Roncesvalle”, contou Wilbert que completou a primeira etapa em seis horas. Foi uma tarefa difícil devido ao clima do local. “Nevou na região depois de muito tempo e muitas pessoas tiveram que ser resgatadas por lá. Eu tive que ajudar um ciclista que estava congelando“, diz. Cerca de 1200 anos antes de Wilbert passar por lá, esse trecho do caminho ficou famoso depois que o exercito basco impôs uma derrota ao exército do rei Carlos Magno responsável pela expansão do reino Franco no século VIII. Diz a lenda que o Apóstolo Santiago apareceu para o rei e lhe disse a direção para que chegasse até o seu túmulo em Compostela.

O homem que perseguia as mulheres Durante sua caminha Wilbert conheceu muitas pessoas, mas uma em especial, da qual ele não cita o nome, mas com quem praticamente apostou corrida durante várias partes do caminho, chamou sua atenção. “Eu caminho mais rápido do que todo mundo, menos ela”, me contou o peregrino durante a manhã em que caminhamos juntos. De tanto tentar alcançar a peregrina durante o caminho, o peregrino holandês hoje vive na Islândia com sua atual esposa. “Eu tinha que fazer um grande esforço para acompanhá-la. Ela hoje é minha mulher.”

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Wilbert conta que chegou a Santiago de Compostela no dia 26 de maio e durante esses 23 dias de caminhada conheceu muitas pessoas que estavam ali por diferentes motivos, “a maioria estava só precisando ’dar um tempo’”. A maior lembrança que ele disse ter dessa experiência é caminhar. É engraçado porque esse foi o mesmo comentário que meu amigo Carlos fez e é a mesma sensação que eu tenho. Você caminha, caminha e só quer caminhar, “você vive o agora”, como bem definiu o holandês. Depois de fazer o caminho Wilbert relatou não saber o que tirou de tal experiência. Mas, segundo ele, sua família lhe deu essa resposta. “Eles me disseram que eu mudei muito, que fiquei mais calmo e centrado. Eu podia sentir isso, você anda, anda, colocando um pé na frente do outro e isso é tudo o que importa.”

Minha inspiração Wilbert foi uma pessoa incrível de conhecer, na hora imaginei que se fosse escrever algo sobre Santiago de Compostela ele teria de ser um personagem e garanti uma foto, que, modéstia à parte, ficou muito boa. Tudo nele me chamou a atenção, desde o seu nome engraçado (com todo o respeito), até os seus relacionamentos e espírito jovem. Eu o apelidei carinhosamente de “o homem que perseguia as mulheres”, porque dos três relacionamentos que teve, e me contou a respeito, em todos as mulheres viviam em outros países e ele foi atrás delas para viver esses romances. Mesmo que não tenham dado certo ele atravessou continentes por elas. Eu achei isso muito romântico e corajoso da parte dele.

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Para mim, Wilbert não é um stalker, ele me pareceu um homem forte, determinado, romântico e corajoso como poucos. Jamais poderia usar o termo “fim da vida” para ele nesse texto apesar de sua idade avançada, 74 anos. Wilbert se reergueu aos 70 anos. Quantos são capazes de fazer isso e continuar fazendo descobertas como ele fez e acredito que ainda faça? Esse senhor holandês é mais que um personagem, é também uma inspiração de como podemos nos reinventar e que a vida só acaba quando nós decidimos.

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XI Um legĂ­timo latino-americano



“Quando fazemos o caminho com os amigos temos a oportunidade de nos

conectar mais com as pessoas”, me disse Carlos, em nossa entrevista por Skype. Meses após o caminho, quando paro para analisar essa frase, vejo que é a mais pura verdade. O carinho que tenho e o laço que criei com as pessoas que caminharam comigo persistem até hoje. Somos pessoas de mundos e histórias tão diferentes, mas mesmo assim criamos uma identidade comum. E Carlos, sem sombra de dúvida, foi uma grande surpresa. Carlos Pichardo Ramirez é um jovem que de 23 anos que me foi apresentado por um amigo mexicano que conheci logo que cheguei a Santiago de Compostela. Ele me contou que havia feito o Caminho de Santiago logo que chegou à cidade, fiquei muito interessada, porque eu já tinha viajado com a ideia de ir até Finisterra. Conversamos sobre ir até o “fim do mundo” e na primeira oportunidade que tivemos, entre as aulas da universidade e os temporais do outono galego, partimos. O jovem Ramirez me foi apresentado como mexicano, e seu sotaque deixa isso muito claro, mas depois de algumas conversas descobri que ele era, na verdade, latino-americano,


uma mistura de diferentes culturas da América do Sul. Boliviano por parte de mãe, guatemalteco por parte de pai, mas nicaraguense de nascimento, Carlos é um legitimo latino-americano. Seus pais deixaram seus países para trabalhar como voluntários na Nicarágua depois da revolução sadinista – que pôs fim a 40 anos de ditadura no país no final da década de 70 – sua mãe foi voluntária em um programa de alfabetização e seu pai era sacerdote da ordem dos jesuítas, mas largou o sacerdócio para casar-se. Um ano após o nascimento de Carlos e seu irmão gêmeo Luis, a família deixou a cidade de Manágua e foram viver na Cidade da Guatemala, capital guatemalteca. Quando Carlos tinha cinco anos de idade sua família se mudou para a Bolívia para viver na casa dos seus avós maternos. “Na Bolívia vivíamos a dois quarteirões o Palácio do Governo e todo o tempo havia passeatas, tiroteios e mortes.”, contou ele que pouco saía do edifício onde morou até os 11 anos, quando foi viver no México.

O sonho de ser político A primeira cidade em que viveu no México foi Cuernavaca onde, ainda no ensino médio, começou a se envolver com política e a participar de manifestações. Ele conta que em 2006 o governo da cidade queria destruir uma área arborizada. Para tentar impedir a obra, Carlos, seu irmão e mais um grupo de amigos se amarraram às árvores. “Éramos cerca de 30 pessoas e de repente chegaram entre 1500 e 2000 policiais com escudos, capacetes e cassetetes para nos tirar de lá”, lembrou o estudante. Por sorte, naquele ano o exercito zapatista¹ estava em uma expedição pelo país e apareceu a tempo de ajudá-los. Os cassetetes dos policiais não poderiam enfrentar as armas dos zapatistas. O Exército Zapatista de Libertação Nacional

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Carlos na Cruz de Ferro.

Foto: Divulgação/ Carlos Pichardo Ramirez


Carlos peregrinando. Foto: Divulgação/ Carlos Pichardo Ramirez


comanda uma comunidade autônoma no sul do México, na região de Chiapas, desde 1º de janeiro de 1994. O movimento armado é de maioria indígena e foi inspirado em Emiliano Zapata que liderou a luta pela reforma agrária no país no início dos mexicanos na região controlada pelos zapatistas que não entram nem o governo nacional e nem o narcotráfico. Em 2009 Carlos foi morar na capital mexicana e lá decidiu estudar filosofia na Universidad Autónoma Metropolitana para no futuro entrar para a vida política. Na universidade Carlos fez parte do conselho acadêmico universitário representando cerca de 10 mil estudantes e segue participando das manifestações nas ruas mexicanas. Apesar de ter convivido com agitações políticas durante sua infância na Bolívia, o que realmente influenciou a sua decisão de se tornar um político foi o trabalho de seu avô, que trabalhava para o governo boliviano desenvolvendo projetos de casas para pessoas de baixa renda. “É isso que acredito que me influenciou, a política é uma forma de ajudar as pessoas”, contou. “Acredito que o governo não pode mudar os problemas de todas as pessoas, o trabalho do governo é educar as pessoas para que possam resolver seus próprios problemas. A mudança que se pode fazer é por meio da educação”, disse o estudante sonhador.

Caminhar, estudar e caminhar Em dezembro de 2012, depois de analisar a grade da universidade Carlos Ramires decidiu se candidatar a uma bolsa de intercâmbio para a Universidade de Santiago

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de Compostela. “Eu já havia escutado sobre o caminho, e eu gosto muito de caminhar. Então pensei: o que é melhor do que caminhar onde todo mundo caminha?”. O aspirante a político e filósofo chegou à cidade do apóstolo em agosto e mal teve tempo de conhecer o lugar. Ele pegou a sua mochila e embarcou para Sahagún, uma cidade antes de Leon, que está a 331 km de Santiago. Esta distância equivale a quase metade do tradicional Caminho Francês. Como não havia se preparado para a jornada ele teve algumas dificuldades nos primeiros dias. “Normalmente os principiantes ou turistas começam a caminhar depois de Leon, mas eu escolhi começar antes onde caminham os peregrinos mais experientes”, contou Carlos. “Eu tive sorte porque o meu primeiro albergue foi um albergue paroquial, que não tinha custo. Havia muita gente e foi onde conheci todos os meus amigos”, completou. Simples, ele tinha em sua mochila apenas um saco de dormir, uma camiseta, um shorts, uma jaqueta, um boné, meias e roupas íntimas para 15 dias de caminhada - mesmo assim após três dias sua mochila arrebentou. “Eu lavava a roupa quando chegava no hostel e deixava secando a noite toda. No dia seguinte vesti o que estava na mochila e recolhia a do varal”, esclareceu Carlos sobre como é possível viajar com apenas uma muda de roupa. Quando começa a falar sobre o caminho a sensibilidade desse jovem latino-americano vem à tona e fica fácil entender por que ele escolheu estudar filosofia ao em vez de direito ou economia para se tornar um político. Ele conta que quando caminhava se esquecia do mundo exterior. “Você se dá conta de que a vida já não tem nada a ver com trabalho, escola, com nada, é só caminhar”, me contou

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Carlos com brilho no olhar, um sorriso ingênuo e um tom de voz encantado, como uma criança contando a sua aventura no primeiro dia na escola. Todos os dias os peregrinos despertavam às 5 ou 6h da manhã e caminhavam. Saíam cedo para evitar passar muito tempo embaixo do sol quente do verão espanhol. Principalmente antes de chegar na Galícia, onde era muito seco e não havia árvores. Sempre que usava a palavra “caminhar” para me contar da sua jornada, o seu tom de voz mudava e eu podia sentir o seu entusiasmo. Estava claro que não era religiosidade do caminho que o motivava, era o prazer de caminhar, de conhecer pessoas diferentes e se aventurar por estradas vazias. “Quanto menos você busca mais você encontra”, foi a frase que ele me disse que mais me marcou, porque foi exatamente o que eu senti quando fui até Finisterra. “Se caminhas buscando respostas divinas, ou uma benção, ficas tão focado nisto que não aproveita o caminho”, completou. Quando perguntei a ele o que ele encontrou, a resposta foi tão simples quanto a sua mochila: “Paz”. “São as coisas mais simples as que mais se desfruta. Foi difícil, mas no final eu descobri que apenas teria que sentir e caminhar”.

O fim de um caminho, o começo de outro “Quando cheguei a Santiago não olhei a catedral como tal, olhei a Praça do Obradoirio e todos os peregrinos. Foi o que mais me impactou. Ver todos os peregrinos com um sorriso de ter chegado, ver todas as bicicletas jogadas no chão”, contou Carlos ao lembrar da chegada à cidade de Santiago de Compostela.

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Diferente de outros peregrinos, que deixam a cidade dois ou três dias depois de chegar, Carlos permaneceu em Santiago para seguir com seus estudos de filosofia. E mais tarde continuar caminhando até Finisterra, ou Finisterre – em galego. “Eu gostei mais de chegar a Finisterra, foi como chegar ao final de um caminho, chegar à parte mais distante do continente. Lá você vê que não tem mais para onde caminhar. Eu já cheguei até aqui”, comentou ele sobre a experiência. “A coisa mais importante que aprendi nessa experiência é que uma vez que se é peregrino, nunca o deixa de ser. Terás sempre a vontade de caminhar”, disse Carlos ao me contar que continua caminhando pelo México. “Uma vez tinha que visitar uma prima em uma cidade a 15km da Cidade do México, e fui caminhando. Foi apenas um dia de caminhada. Eu já não queria mais deixar de caminhar”.

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Foto: Isadora Mota

Carlos em Finisterra.



XII Eu e o caminho



Para começar a contar a minha própria experiência de peregrina, roubarei

do meu amigo Carlos a frase com que ele encerrou a nossa entrevista: “Que seu coração te leve a onde os seus pés já não possam mais”. Essa frase resume bem o que eu senti quando cheguei ao farol de Finisterra. A região do extremo nordeste espanhol é um lugar muito especial, com um pôr do sol tão bonito que nem parece que aquele lugar, por anos conhecido como “fim do mundo”, faz parte da temida Costa da Morte, onde muitas embarcações já se perderam nas águas do Atlântico. O nome Finisterra – Fisterra em galego, e Finisterre em espanhol – significa “Fim do Mundo”, pois durante os séculos, antes de começarem as grandes navegações nos séculos XV e XVI, acreditava-se que aquele era o fim da terra, o ponto mais ocidental do mundo até então conhecido. Desde antes de as conquistas romanas até as aventuras de Cristóvão Colombo, pensava-se que não havia nada além daquele mar-horizonte onde o sol desaparecia todos os finais de tarde. Apesar de tradicionalmente o Caminho de Santiago terminar


na Catedral, é lá, no topo do farol de Finisterra, onde os peregrinos encontram o sinal “0 km” que marca, para muitos, o final da peregrinação. A rota até Finisterra, ou até Muxia – outra região mística da Galícia -, são as únicas que tem início na cidade de Compostela. Historicamente não há uma razão para os peregrinos continuarem a viagem até o litoral, mas há uma ligação com a tradição jacobea descrita no livro III do Códice Calistino - escritura do século XII considerado o primeiro guia do Caminho de Santiago – que conta que discípulos do apóstolo Santiago viajaram até a cidade de Dugium, hoje Finisterra, para pedir autorização de um governador romano para poder enterrar os restos de seu mestre na atual Santiago de Compostela. Há muitas lendas e ritos envolvendo a região, isso, aliado ao desejo de chegar ao “fim do mundo” tem atraído por séculos milhares de peregrinos a seguir caminho por mais 89,4 km até a Costa da Morte. Os mistérios da região vêm desde a época dos romanos, muitos associados ao “milagre do sol”. Segundo a tradição, no local existia o lendário Ara Solis, altar pagão de ritos de adoração ao sol e de fecundidade, e era para onde iam, todas as tarde, as legiões romanas para ver o sol “desaparecer” no mar. Diz a lenda que o altar foi destruído pelo apóstolo Santiago para que ele pudesse construir o santuário de San Guillermo, hoje desaparecido. Outra história que liga Finisterra à tradição jacobea diz respeito à concha, símbolo mais antigo dos peregrinos. Entre outros significados, de acordo com a lenda, para provar que fizeram o caminho completo, os peregrinos ao chegar à praia pegavam uma concha, que estão espalhadas pelas areias à beira mar e a levavam de volta para mostrar aos seus amigos e familiares. Lendas ou não, essas conchas existem de

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verdade e ficam ali espalhadas por toda praia onde batem as ondas do mar. Elas são lindas, grandes, iguais àquelas dos filmes, como as que toda criança sonha um dia encontrar na praia. Lembro que quando chegamos à Finisterra meus amigos, Carlos e Maria, estavam feito crianças enchendo um saco plástico com elas. Guardo até hoje, com todo o carinho, uma delas que Maria me deu antes de eu voltar para o Brasil.

A caminhar Logo que saiu o resultado do meu intercâmbio, um colega de trabalho me aconselhou a fazer o caminho de Santiago de Compostela. Como eu não teria tempo hábil para realizar toda a jornada, ele me apresentou a alternativa de fazer o caminho de Finisterra, que são cerca de 100 km entre a cidade de Santiago e o farol da praia de Finisterra, e para o qual são necessários, em média, quatro dias. Interessei-me pelo assunto e busquei algumas imagens na internet, as fotos das paisagens do litoral galego me encantaram e me apaixonaram por essa ideia: “Que aventura seria poder caminhar por lá”. Então tratei de colocar essa viagem na lista de coisas que eu não poderia deixar de fazer durante a minha estadia na Europa. Depois de combinar com Carlos que íamos andando até Finisterra, ficamos esperando o momento certo, estávamos no final de setembro e as chuvas do final da primavera galega não davam nenhum diazinho sequer de trégua. Esse foi um ponto que me surpreendeu sobre essa terra, desligada que sou, não pesquisei direito o clima do local e mal sabia que aquelas águas constantes que caíam do céu são típicas da região e iriam me acompanhar por pelo menos duas estações inteiras. Por isso vivíamos de olho pra previsão do tempo em busca de um final

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de semana de sol, pelo menos três dias nos quais pudéssemos caminhar tranquilamente sem grandes contratempos. Um dia, no começo de outubro, Carlos e Iris, uma amiga mexicana, me avisaram que o final de semana faria bom tempo. Como não tínhamos aula na sexta-feira, mas teríamos na segunda, decidimos fazer o caminho em três dias. Para isso teríamos que caminhar mais durante o dia e sair mais cedo para aproveitar o máximo possível a luz da manhã, porque não é recomendável caminhar durante a noite. O plano era caminharmos 33,5 km no primeiro dia, 38 km no segundo e 17 km no último, e no final, voltaríamos todos de ônibus para Santiago. Marcamos de nos encontrar às 6 horas na Praça do Obradoiro, por isso saí mais cedo da festa de quinta-feira para estar bem descansada e disposta para a longa caminhada. Mas, para a minha tristeza, quando eu acordei e olhei pela janela, estava chovendo. Não, não estava apenas chovendo, como costumamos dizer aqui no Brasil: “Estava caindo o mundo”. Era um temporal tão forte, que formava uma cortina de água tão espessa que mal dava para enxergar o caminho da residência universitária, onde eu morava, até a Catedral. Como nem Carlos, nem Iris responderam as mensagens que mandei para eles pela manhã, imaginei que eles não estariam no local combinado, mas, só para desencargo de consciência, passei na frente da Catedral antes de ir para o prédio onde moravam para nos encontrarmos para decidir o que fazer em relação ao aguaceiro. Quando cheguei ao apartamento deles encontrei Iris acordada e Carlos meio sonâmbulo, como eu já imaginava que ele estaria. Conversamos e decidimos esperar a chuva passar, pois estava impossível para nos meros amadores começarmos a caminhar com aquele tempo. Eles arranjaram um quarto vazio para eu dormir, porque a chuva não dava sinais de que ia parar tão cedo.

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Fui acordada pela chegada repentina do dono dos quartos alugados daquele apartamento que vinha cobrar o aluguel. Carlos foi me acordar, porque como o preço cobrado é por quarto, eu não poderia estar ali dormindo, a não ser que fosse o quarto de um dos meus amigos. Era cerca de meio-dia e a chuva já dava sinais de que iria melhorar, decidimos então começar o caminho de ônibus até a cidade mais próxima e seguir o resto do dia a pé. Então fomos até a estação de ônibus e pegamos o primeiro que saía em direção a Negreira, cidade a cerca de 21 km de Compostela. De Negreira, seguimos os 12 km restantes até Vilaserio, um povoado pequeno, de no máximo duas ruas, com casas bem rústicas que me encheram os olhos. Apesar de ter feito a maior parte do caminho de ônibus, esses 12 km que ficamos por andar não foram nada fáceis. A maior parte a rota era através de fazendas e bosques, o solo estava encharcado por causa do temporal, e claro, como toda boa peregrina amadora, que não tinha lido nada sobre o caminho eu estava usando os piores tênis possíveis para esse tipo de aventura. Eu vestia um Adidas, todo furado embaixo, ótimo para trilhas em Bonito ou em Brotas, mas no Brasil, não para o lamaçal dos bosques galegos no inverno. Esse contratempo não estragou a viagem, só a tornou mais divertida, eu percorria os trechos de mato desviando das poças pisando em outras e me sentindo uma verdadeira exploradora. Nesse trecho, comecei a perceber a simplicidade do caminho, passávamos no meio das propriedades e de povoados, se é que se pode chamar assim, de apenas suas casas. Eram fazendas de plantações, não vou arriscar dizer do que porque minha percepção de garota da cidade é muito falha para essas coisas. Nessas fazendas existem pequenas casas, algumas feitas de pedra e outras de madeira, onde são colocadas a carne de porco para secar e fazer aqueles presuntos e outras variedades de carne de porco

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Eu e Maria caminhando. Foto: Justine Cabrillana


maravilhosas que se come na Galícia. Essas pequenas casinhas chamam a atenção, pois parecem estar lá há muitos anos, são similares a muitas construções rústicas e ruínas que encontramos no caminho, pode-se supor que estão ali desde a época do tataravô do atual proprietário, ou até mesmo antes. Mesmo assim, as propriedades não deixam de possuir maquinas e colheitadeiras modernas, é uma mistura de velho e novo que encontrei em outras cidades da região. Outro fato que começou a me despertar para o quão especial seria essa viagem foi ver Carlos e Iris colhendo frutas, maçãs e uvas e as comendo pelo caminho. Como não sou muito fã de vegetais fiquei só observando e me lembrando das histórias da infância contadas pelo meu pai no interior do Rio de Janeiro, na chácara da minha bisavó. Chegamos à cidade de Vilaserio já no final do dia e sem luz natural, passo por alguns trechos no meio do bosque com paredes de pedra que pareciam cenas de filme de terror, no estilo Bruxas de Blair. Sim bateu aquele medo, e para descontrair tirávamos fotos engraçadas tirando um sarro da situação. As casinhas da cidade eram de pedra as ruas de terra e apenas uma luz no poste iluminando a rua deixou o lugar com um cenário de filme. Hospedamo-nos no único albergue do local, onde jantamos um belo bocadillo de jamón, colocamos nossos tênis encharcados para secar com jornal dentro, jogamos as meias fora – óbvio – e fomos dormir.

Mais um pouco de amadorismo Saímos de Vilaserio antes de o sol nascer, por volta das 6h30, quase 7 horas da manhã, o plano era aproveitar o máximo possível da luz do dia. Porém, esquecemos que estávamos no outono europeu – quando o sol nasce mais tarde e se põe mais cedo – e quando começamos a caminhar a estrada ainda estava escura, iluminada

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apenas pelos postes de luz Não víamos nada além das listras brancas de sinalização da estrada e uma casa no fundo de uma plantação, com uma iluminação avermelhada, lembrando uma fogueira. Em um ponto da estrada, os postes de luz desapareceram e Carlos, Iris e eu ficamos no escuro, no meio da estrada. Fazia frio e tivemos que usar as lanternas dos celulares para enxergar alguma coisa, Carlos achava que não tinha problema caminhar no escuro, mas eu confesso que estava morrendo de medo, aquela casa à nossa esquerda deixava, mais uma vez, o cenário igual a um filme de terror, por isso não quis abrir mão da luzinha do meu celular. Após um tempo de caminhada, com algumas risadas e contos de terror, nos deparamos com uma seta branca no chão sinalizando uma rua à esquerda. Foi quando Carlos disse: “Olhem uma flecha”, indicando que deveríamos seguir por ali. Como todo o caminho é guiado por setas e conchas da cor amarela, na hora desconfiei e sugeri que seguíssemos em frente. Mas aquela era a minha primeira vez caminhando, Carlos já havia feito o Caminho e argumentou: “flecha é flecha”. Depois de tentar iluminar o breu ao nosso redor, com as nossas singelas lanternas, e não encontrar nada, eu e Iris acabamos cedendo, mas sob a condição de que se em 30 minutos não víssemos nenhuma outra sinalização do caminho, voltaríamos para a estrada. O caminho que tomamos era todo cercado por imensas árvores e tronco bem alto, continuávamos quase sem iluminação até que avistamos uma casa na parte mais alta da rua com um poste de luz. Na hora pensei: “É um povoado”, e me adiantei à frente de meus companheiros, um cachorro apareceu lá no alto, mas como todos os cães no Caminho estão presos, não me preocupei e continuei até que meus amigos me chamaram a atenção quando percebemos que o animal estava avançando e não estava preso. No momento em que eu parei, ele parou também e começou a latir até que outro cachorro chegou. Ficamos assim, todos parados

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sem saber o que fazer. De repente os dois cães começaram a avançar em nossa direção e Carlos gritou: “Palos” – como chamávamos os bastões de caminhada. Na mesma hora eu e Iris ficamos fsegurando os bastões como se fossem lanças e apontávamos para os animais. Já adianto que a cena estava ridícula, nós apontando para os cachorros com “tom ameaçador” e já nos imaginávamos lutando com as feras como víamos nos filmes. Quando os animais pararam de avançar nós começamos a caminhar para trás, sem dar as costas para eles e mantendo a posição de luta, com os joelhos semiflexionados, as lanças a postos e os olhares atentos. Faltavam poucos minutos para amanhecer, então resolvemos que era melhor voltar para a estrada e esperar até que os donos da casa acordassem e prendessem as feras. Mas para a nossa feliz e vergonhosa surpresa, já com a luz do dia, qual foi a primeira coisa que vimos ao olhar para a estrada? Sim, era ele o tão esperado e debatido sinal do caminho, na sua forma mais clara, um azulejo com o desenho de uma concha amarela em um fundo azul presa em um totem de pedra. Ele estava ali o tempo todo, bem em frente à seta falsa no chão, ao lado do local em que debatíamos qual seria a rota certa a seguir. Ele indicava para seguirmos em frente e não para virar para lugar nenhum. Foi nesse momento que eu conheci o Wilbert. Ele estava no mesmo albergue que nós, fez o normal e mais prudente: saiu quando o dia estava mais iluminado e com seus passos rápidos nos alcançou no momento em que voltávamos para o caminho correto. Depois desse começo, é difícil lembrar algo mais marcante dessa segunda etapa de viagem. Durante toda a manhã caminhamos com Wilbert, conversamos, sobre psicologia, religião, criação do mundo, sobre sua vida e outros caminhos que havia feito. A paisagem local se transformou, deixamos de caminhar por fazendas e grandes plantações e passamos a ver mais campos abertos e bosques. Deveríamos

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fazer uma parada na cidade de Olveira para nos encontrar com Maria, grega, e Justine, francesa, duas amigas que tomaram um ônibus em Santiago para nos encontrar e terminar a viagem conosco. Mas, pessoas atentas que somos, passamos reto do ponto de encontro e só nos demos conta quando estávamos no meio de uma montanha, com uma bela paisagem de campos, morros e lagos. Como ainda não tínhamos feitos besteiras suficientes, ainda estávamos famintos, pois deixamos para trás a última cidade onde poderíamos almoçar e estávamos muito longe da próxima. Não vou dizer que eu avisei que estávamos passando por Albeiroa, onde planejávamos almoçar, porque ia parecer mais estúpido ainda confessar que mais uma vez acreditei no senso de direção inexistente de Carlos. A partir desse momento, concordamos que levaríamos mais a sério a minha intuição. Precisávamos atrasar um pouco a nossa caminhada. Para que Justine e Maria pudessem nos alcançar, paramos em uma pequena ponte de pedra sobre um riacho de águas transparentes onde Carlos e Iris resolveram molhar os pés para relaxar. Morri de inveja dos dois, mas eu não podia fazer o mesmo, a essa altura eu já tinha percebido um incômodo na superfície dos dedos dos pés e na planta. Anos de balé nas costas me ensinaram que esse incômodo era resultado de bolhas que se formaram e já estouraram e se transformariam em dor caso eu retirasse os tênis e os colocasse outra vez. Essas bolhas são comuns em pés peregrinos, por isso costuma-se passar vaselina antes de vestir as meias para diminuir o atrito que causa as feridas, mas no meu caso não foi suficiente. Seguimos caminhando. Não demorou 10 minutos e as meninas nos alcançaram. Voltamos a caminhar pela estrada, ainda com muita fome, eu só pensava nas lições da minha mãe: “Siga seu sexto sentido, filha”. Ah! Se eu a tivesse escutado e insistido para pararmos naquele povoado. Para a nossa sorte, vimos uma casa no

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Foto: Justine Cabrillana

Carlos e Iris, inĂ­cio do caminha deFinisterra.

Foto: Isadora Mota

Pausa para o descanso.


Foto: IsadoraMota Foto: Iris GracĂ­a

Fim do caminho de Finisterra.

Eu no caminho de Finisterra.


meio da estrada onde funcionava um pequeno restaurante caseiro, onde paramos para comer um bocadillo. Aproveitei que a parada ia ser maior e tirei o tênis, lavei os pés e improvisei um curativo com pomada e lenços de papel e vesti duas meias para diminuir o espaço dentro do tênis e tentar evitar o atrito. Nem sei se isso era o certo a fazer, mas resolveu e eu estava seguindo meus instintos (rs). Comemos, descansamos e partimos, agora tínhamos de acelerar um pouco para não chegar muito tarde à Cee, cidade onde passaríamos a noite.

Descobrindo uma grande amiga Eu já conhecia Justine, éramos companheiras na equipe de handebol da universidade, mas Maria apenas tinha visto em uma ou duas festas. Simpática, alegre e falante como todo bom grego logo começamos a conversar, não me lembro muito bem sobre o que provavelmente sobre os homens brasileiros e latino-americanos, ela adora os latinos. Como toda boa atleta Justine seguia a frente com Iris, Carlos estava no meio e eu em ultimo lugar, Maria se revezava entre mim e Carlos. Ficar para trás não era um problema, é comum mesmo quando se caminha em grupo, é importante que cada pessoa ande no seu ritmo para evitar o cansaço. Por vezes as meninas paravam e perguntavam se eu estava bem, por conta dos meus pés, e respondia que estava tudo tranquilo. Entramos por umas trilhas de mata e serras cheias de pedras, o que começou a incomodar minhas feridas, diminui mais ainda o ritmo ao ponto de perder de vista meus amigos que iam à frente. Foi um ótimo momento para sentir o caminho, sem ninguém para conversar, só me restava pensar e sentir. Enquanto divagava pela vida, vi meus pensamentos presos à imagem do meu avô, que

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sofria de câncer em estágio avançado, naquele momento eu não tinha grandes motivos para caminhar a não ser o desejo pela aventura e adrenalina, mas como muito peregrinos já disseram, você muda durante o caminho, ou melhor algo mudar você, mesmo não sendo uma pessoa religiosa eu sentia uma energia especial em cada pedra que eu pisava. Desse momento em diante lembrança do meu avô dominou os meus pensamentos até o último quilômetro, e eu tinha um motivo para caminhar. Não ia cair na ilusão de pedir pela cura do meu velhinho, pois eu sabia que isso era impossível, mas eu só queria que ele não sentisse dor, queria voltar ao Brasil a tempo de vê-lo bem, de fazer uma graça, mas que ele estivesse ativo como sempre foi e que não sofresse. Lógico que nesse período eu chorava, de maneira discreta, mas chorava. A energia, as lembranças daquele lugar me contavam profundamente e me emocionavam muito. Nos momentos em que eu ameaçava desabar em lagrimas aparecia Maria, saltitante e com um sorriso no rosto, ou para fazer algum comentário, ou simplesmente para me fazer companhia. E assim fomos lado a lado, até o alto do farol de Finisterra, não me lembro das nossas primeiras conversas, mas sei que até hoje elas continuam, mesmo aqui no Brasil mantenho contato com ela e falamos pelos cotovelos como boa brasileira filha de cariocas e uma descendente de gregos.

Enfim, o mar Saíamos da região de mata e nos deparamos com o mar, lembro-me de ver Maria gritando: “Isa el mar”, eu tinha comentado que estava sentindo saudades de uma praia e de tomar um banho de mar. Fizemos uma parada para tirar fotos e admirar a paisagem, era uma bela vista do Atlântico, que

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nos deu uma força inacreditável para continuar caminhando, eu queria muito chegar e me jogar nas águas de Finisterra. Apesar de toda a gana de chegar a essa última descida até a cidade de Cee foi feita bem devagar e com muita cautela, meus pés estavam bem machucados e a mistura de pedra com areia deixava o caminho muito escorregadio, quase cai várias vezes. Eu fui tão devagar que na entrada da cidade, Carlos, que tinha ficado para trás para escrever sobre a vista em seu diário, conseguiu me alcançar. E foi bom que tivéssemos chegado juntos, pois pude ajudá-lo a caminhar, ele estava com muitas câimbras e teve de se apoiar em mim até chegarmos ao hostel onde as meninas nos esperavam. Para variar só um pouquinho, nos perdemos e levamos pelo menos uma hora andando pela cidade até encontrá-las. Credenciais carimbadas e banho devidamente tomado, vesti um chinelo e sai com as meninas para jantar, de tão cansado Carlos dormiu e só acordou no dia seguinte. A felicidade de completar os 38 km era tanta que comemos um belo pulpo galego, calamares (lula) e bebemos uma deliciosa cerveja para relaxar voltar ao hostel e no dia seguinte completar os 17 km restantes.

Rumo a Fim do Mundo Acordamos tranquilamente, nos preparamos fiz meus curativos de lenço de papel e seguimos para Finisterra. Paramos para tomar café da manhã em um bar que parecia um local comum, até vermos que ele tinha na parede um certificado de licença para a perturbação da ordem pública. Daí até chegarmos à

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praia, as lembranças são poucas, liderei o nosso grupo por todo o percurso, a vontade de chegar era tanta que tenho a impressão de que do bar fomos direto para a praia, as paisagens, se revezavam entre florestas e estradas, serras com vista para o mar e trilhas em mata fechada. Enfim chegamos ao mar, a praia era linda com a beira-mar forrada de conchas cinematográficas. Enquanto Justine tirava fotos de todos nós sem que percebêssemos, eu subi em um monte de pedras que entrava no mar para molhar os pés e escrever alguma coisa em meu diário. Iris sentava na areia observando e rindo de Carlos e Maria que pareciam duas crianças caçando conchas e correndo pela areia. Não demorou muito e Carlos se jogou no mar, logo fui a próxima, mergulhava contra as ondas como se quisesse ir mar adentro, até me esqueci o medo que tenho de entrar sozinha no mar. Mas aquele momento era tão meu que só queria estar sozinha. Secamo-nos ao sol, vestimos nossas roupas e fomos procurar um lugar para almoçar antes de seguir pelos três últimos quilômetros até o topo do farol para assistir ao famoso pôr do sol. Mas nem todos ficamos para esse espetáculo, o ultimo ônibus sairia muito antes então Iris, Justine e Maria preferiram voltar no mesmo dia, já eu e Carlos optamos por ficar e pegar o primeiro ônibus do dia seguinte. Subimos todos juntos, acho que nunca caminhei tão rápido em toda a minha vida, assim como Alberto Solana descreve a sua chegada à Catedral, eu não sentia mais dor nenhuma nos pés. Ao chegar ao farol fiz o meu primeiro ritual jacobeo e queimei algo que foi importante durante o meu caminho. O mais comum é os peregrinos queimarem meias e tênis, mas eu escolhi uma caixa de remédios para a dor, e pedi que a fumaça levasse qualquer moléstia e sofrimento para longe do meu avô.

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Foto: Justine Cabrillana Foto: Maria

P么r do sol em Finisterra.

Queimando uma caixa de rem茅dios.


A gaita de fole, o sol e eu encontrei o meu lugar Após cumprir todos os rituais era hora de curtir o momento. Desci sobre as pedras presas na encosta, sentei e senti o sol bater no meu peito, enquanto escutava o som da gaita de fole tacada por um homem com trajes e pinturas celtas. A emoção foi incontrolável, eu chorava feito uma criança, já não sabia mais qual era o real motivo, pensava na minha família, na aventura que vive, no prazer de realizar um sonho de intercâmbio e de me enfiar no meio do mato para caminhar. Enfim, vira tudo uma coisa só e seu corpo responde com lágrimas. Maria se sentou do meu lado e se surpreendeu com o meu choro, ela me abraçou e me fez companhia. Falamos do prazer de chegar lá caminhando e da energia positiva e forte que sentíamos naquele lugar. Depois que as meninas partiram, me juntei a Carlos para observarmos juntos o sol desaparecer no mar e pensamos: “Esse é o mais próximo que vamos chegar de casa nos próximos meses”. Refletíamos sobre o quão fácil é acreditar que o mundo acabava ali, a pequena embarcação, pelo menos aparentava ser pequena, que passava à nossa frente no mar parecia que ia ser engolida por aquele imenso Atlântico. A força das ondas batendo nas pedras da costa da morte e a sensação de que não há nada além daquela linha onde o sol se põe. É eu realmente fui ao fim do mundo. O sol sumiu e nós começamos a nos despedir de Finisterra. Paramos para comprar os suvenires para a família e para nós mesmos e voltamos para o hostel. Quando estava deitada eu só pensava que precisava fazer o caminho completo, desde a França, e que convidaria a minha família para vir comigo, meu pai e meu irmão com certeza topariam. E eu estava certa. Quando voltei para Santiago e liguei para a minha família, a primeira coisa que meu pai me disse foi que em dois anos se aposentaria e nós faríamos o Caminho juntos.

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XIII Os signos do Caminho



Ao longo dos séculos, muitos foram os símbolos utilizados para identificar

o Caminho de Santiago. Todo aquele que conhece um pouco da tradição jacobea reconhece os signos do Caminho, pois, desde o século IX, todos os símbolos têm relação direta com Tiago, o Maior, seu sepulcro, o templo que o acolhe, a cidade que o rodeia e os caminhos que levam até o lugar.

Flecha amarela A flecha ou seta amarela é um dos símbolos mais recentes de representação da rota jacobea. Esse sinal começou a ser usado como marca de orientação por Dom Elías Valiña, pároco (padre) da Igreja do Cebreiro, ao longo do caminho galego. Nos anos 60 do século XX, quando o Caminho foi reorganizado e foi acolhido pelo governo, a seta passou a ser incorporada pelas lojas de suvenir, que começaram a vender camisetas, chaveiros, azulejos e demais objetos de decoração com o desenho da seta.


A Via Láctea Durante a Idade Média não havia muitas formas de sinalizar o Caminho de Santiago. Por isso a Via Láctea, galáxia à qual pertence o nosso sistema solar, mas, vista da Terra parece uma faixa brilhante e difusa de estrelas, foi durante muito tempo, a principal guia dos peregrinos para a cidade de Compostela. A importância da Via Láctea era tão grande que chegou a ser considerada sinônimo do Caminho. Os peregrinos antigos a chamavam de “Caminho de Santiago” nas literaturas mais antigas. “Compostela foi durante séculos a meta de um caminho traçado por terras europeias pelas pegadas de peregrinos, que para não se perderem, olhavam para os signos estelares do firmamento”, disse em 1982 o Papa João Paulo II. Hoje esse é um símbolo quase esquecido pelos peregrinos ligados à tradição cristã. A Via Láctea é mais lembrada pelos viajantes que tendem ao misticismo.

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A urna e a estrela A urna e a estrela, juntos, fazem menção à lenda do descobrimento da cripta com os ossos do Apóstolo Santiago. Diz a lenda que um eremita guiado por uma chuva de estrelas foi quem encontrou o local onde Tiago Maior estava enterrado. Apesar de não ser um símbolo tão conhecido, a urna com a estrela pode ser vista esculpida em diversos pontos da basílica e em outros edifícios próximos à Catedral.

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A vieira, a concha A vieira, ou concha, é o símbolo mais antigo da tradição jacobea que os peregrinos levam costurados em seus chapéus, roupas e mochilas. Presente em diversas culturas. Para os romanos, é símbolo da deusa Vênus. Já para os gregos, representa Afrodite, em ambos com significados parecidos de vida e renascimento. Na tradição católica, a concha está associada ao batismo, como instrumento utilizado para derramar a água. Mas no que diz respeito ao Caminho de Santiago, esse signo está cercado de lendas. Há uma lenda do século XVI que narra a história de um príncipe que foi a cavalo para a Galícia para conhecer e orar em frente à tumba do Apostolo Santiago, quando sofreu um ataque de uma serpente. Assustado, o cavalo disparou e o cavaleiro foi jogado ao mar. A ponto de se afogar, o príncipe rezou a Santiago e, minutos depois, seu corpo emergiu das águas totalmente coberto de conchas de vieira. Assim, a concha passou a ser utilizada como símbolo de proteção.

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Outra hipótese, e a mais contada, é a de que a concha, elemento abundante da costa galega, era utilizada como forma de comprovação de que o peregrino realizou o Caminho de Santiago. Escavações em antigos cemitérios encontraram diversos corpos sepultados cobertos por conchas. Acredita-se que essa era uma forma de identificar os peregrinos e devotos do apóstolo na hora em que estes chegassem ao céu.

A cruz de Santiago Junto com a vieira, a cruz de Santiago é um dos símbolos mais conhecidos do Caminho. Se virarmos ao contrário, a cruz ganha o formato de uma espada com a baínha em formato de flor de Lis. De acordo com o livro de Federico Pomar de la Iglesia, Los Caminos e la Ciudad de Santiago, esse signo, nesse formato, refere-se às lendas do Apóstolo guerreiro que ajudou os cristãos na luta contra os mouros.

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Tal sĂ­mbolo aparece em vĂĄrios retratos da nobreza medieval e era muito usado pelos membros da Ordem dos Cavaleiros de Santiago, um grupo de cavalheiros que fizeram o caminho e, como forma de agradecimento, dedicavam-se a proteger os peregrinos ao longo das rotas jacobeas.

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XIV N達o se define, n達o se explica e n達o tem final



O Caminho de Santiago tem muitos começos, mas nenhum final. Como já

foi falado em capítulos anteriores: “A Santiago nunca se chega, sempre se caminha”, não é à toa que, sempre que podem, os peregrinos voltam para fazê-lo mais uma vez. As palavras são poucas para descrever o que prende às pessoas as estradas do norte da Espanha, eu prefiro falar em magia. Tudo o que diz respeito a Santiago de Compostela é mágico.

A mágica da tradição jacobea está no tempo em que ela existe, são mais de 1200 anos de história. Muitas pessoas passaram por aquelas trilhas e deixaram suas marcas e suas vibrações. O desejo pela aventura também chama os viajantes, a ideia de caminhar no meio do nada, passar por montanhas e florestas faz os nossos níveis de adrenalina subirem. Essa soma de religião, espiritualidade e aventura leva todo o tipo de pessoa ao Caminho tornando-o a casa de todos. As histórias contadas nos capítulos desse livro mostram que, por mais diversos que sejam os motivos que levaram as pessoas a peregrinar, todos passaram pela mesma experiência de simplicidade e solidariedade, e têm suas vidas


transformadas por elas. Até aqueles que se definiam como não religiosos relataram terem sentido algo que não conseguiam explicar com palavras, mas podiam sentir em seus corações. Este último e curto capítulo não tem a pretensão de definir, ou concluir, o que é ser um peregrino e o que é o Caminho de Santiago. Esses significados são únicos, dependem da experiência de cada um, é algo para ser vivido e não explicado.

Um segundo Caminho Enquanto fazia esse trabalho, tive a oportunidade de fazer o Caminho outra vez. A cada entrevista, os personagens me levavam como eles pelos seus caminhos. Quanto mais contato e proximidade eu conhecia, mais eu podia imaginar e sentir, na pele, o que cada um passou. Algumas entrevistas foram feitas por Skype, Facebook, email e presencialmente. Os meios influenciaram no resultado da entrevista, não na qualidade, mas sim no envolvimento, ver o personagem me ajudou a sentir o que eles sentiam e algumas vezes até me emocionar junto com eles. No começo eu esperava provar que, hoje em dia, a maioria dos peregrinos do Caminho eram aventureiros, que a religião estava restrita aos ritos e aos monumentos. Mas, fui surpreendida, e um dos peregrinos mais fissurados na tradição jacobea era também o mais religioso. Esperava escutar histórias de superação, mas as palavras que mais ouvi foram simplicidade e solidariedade. Todos me proporcionaram experienciais incríveis, não só profissionais, mas também de vida. Aprendi muito com eles. Tive que me libertar de minhas

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próprias crenças e preconceitos religiosos e aprendi a ouvir mais e perguntar menos e a olhar nos olhos ao invés de me preocupar com as anotações no bloquinho. Acima de tudo aceitei que, as vezes, suspiros definem mais do que palavras e o brilho no olhar explica mais do que todo um livro.

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Bibliografia



TRANSMONtE, Baldomero Cores – Santiago de Compostela – A Gran Panorámica. Coedición Follas Nova/Monte Casino FABIO, José Antonio – Guía católica para el Camino de Satiago. Ed. Gaudete LAfUENtE, Mauel Jesús Precedo – Santiago Apóstol – Vida; Peregrinaciones; Catedral compostelana. Coedición Follas Nova/Monte Casino, 1999 IGlESIA, Federico Pomar de la Iglesia – Los caminos y La ciudad de Santiago – Crónicas Jacobeas. Prólogo de Mauel C. Díaz y Díaz. Coedición Follas Nova/Monte Casino NOGUEIRA, Paulo César Giordano – A Literatura odepórica e a peregrinação jacobea: um estudo sobre a espiritualidade nos relatos de viagem dos peregrinos do Caminho de Santiago – PUC-SP, 2008 BÍBlIA SAGRADA SItES: http://peregrinossantiago.es http://www.caminhodesantiago.com.br/ http://whc.unesco.org/en/list/347 http://www.catedraldesantiago.es/



Os Peregrinos


Foto: Iris GarcĂ­a

Isadora e Carlos em Vilaseiro.


Foto: Iris GarcĂ­a

Carlos, Isadora, Justine e Maria.


Acacio e Orietta. Foto: Divulgação/ Acacio da Paz


Paulo caminhando na neve (1995). Foto: Divulgação/ Paulo César Nogueira


Foto: Divulgação/ Solange Simões

Solange, Caminho Francês.


Foto: Isadora Mota

Dom JosĂŠ Maria Pires.


Foto: Maria

Isadora Mota.


Foto: Isadora Mota

Vista do Parque da Alameda - Catedral de Santiago de Compostela.


Foto: Isadora Mota

Vista da Catedral de Santiago de Compostela.


Foto: Isadora Mota

Carlos e Isadora p么r do sol em Finisterra.


Foto: Divulgação/ Alberto Solana

Monte del Gozo - Alberto Solana.


Equipe Handgrinos. Foto: Graziela Teixeira


Foto: Isadora Mota

Wilbert Wils, Caminho de Finisterra



Esta obra foi impressa em S達o Paulo no ver達o de 2014. No texto foi utilizada a fonte Dumbledor 1, em corpo 16, com entrelinha 18 pontos.



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