caminhADA - uma experimentação situasionista sob a perspectiva de gênero

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tcc trabalho de conclusão de curso arquitetura e urbanismo faculdade escola da cidade são paulo I dezembro de 2017 orientadora I amália santos isadora panachão palma pinto


uma experimentação situacionista sob a perspectiva da mulher



resumo O trabalho se propõe a revisitar teorias de transformação da cidade e apropriação do espaço público sob a ótica da desigualdade de gênero e explorar formas de vivenciar a cidade que levem em conta a experiência feminina. O objetivo é exaltar o caminhar feminino como um ato político: usando experimentações psicogeográficas (em dois percursos cotidianos de mulheres) e intervenções pontuais na paisagem urbana (através da aplicação de cartazes). Pretende-se transmitir uma mensagem empoderadora que contribua para o aumento da sensação de segurança e conclame mulheres a usar o caminhar como uma forma consciente de resistência política, articulando diretrizes situacionistas, teorias feministas e a discussão sobre direito à cidade.



agradecimentos

Agradeço à todos que me auxiliaram durante esse processo, em especial a orientadora Amália Santos, a professora e arquitetata Carol Tonetti e a arquiteta e designer Maria Cau por comporem minha banca final e partilharem comigo seus pontos de vista. Agradeço às parceiras de orientação Heloisa Oliveira, Maria Pia e Nicole Cahali pelas reuniões descontraídas cheias de discussões importantes. À Nicole em particular, pelos anos de companheirismo e por compartilhar comigo o seu processo de pesquisa. À Priscila Almeida que aceitou fazer parte desse trabalho e dividiu comigo uma pedaço do seu cotidiano. À todos os outros colegas de formação e amigos que me apoiaram: Ao Francisco Leão pelo livro emprestado, a amizade infinita e pelas conversas elucidativas; ao Daniel Korn, ao Vitor Pissaia, ao Léo Schurmann, e à Luiza Thomaz por todas as dicas; aos queridos Débora Filippini e Matheus Martins pela cumplicidade e o encorajamento; à Bruna Marchiori que me apresentou a Priscila e cuja personalidade radiante alegrou meus seis anos de formação. Por fim, agradeço à minha família: meu pai, pelo suporte e amor incondicional, e minha mãe pela paciência de ler e reler meus textos, por seu interesse infinito pelo tema, por me ouvir, me instruir e ser a mulher inteligente, criativa e carinhosa que tenho o orgulho de chamar de exemplo.


sum Ă rio


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introdução

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as teorias feministas no mundo ocidental

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a simbiose entre esféra pública e esféra privada

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direito à cidade, mobilidade e o valor do caminhar

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a internacional situacionista

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os artifícios situacionistas

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a figura da mulher pela internacional situacionista

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o caminhar da mulher como ato de resistência

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trajetos

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anexos

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bibliografia


introdu çÃo O tema do trabalho surgiu da inquietação diante da falta de figuras femininas estudadas ao longo do curso de arquitetura. Mesmo em uma faculdade onde a maioria do corpo discente é composto por mulheres e onde lecionam arquitetas e urbanistas reconhecidas no meio profissional, é raro deparar-se com qualquer menção à contribuição de mulheres para a construção da cidade e da sociedade atual. A estranheza desse fato abriu discussões sobre o tema em diversas faculdades de arquitetura do país e acabou por convergir no seminário internacional “Onde Estão as Mulheres Arquitetas?” [1] que, a partir da leitura do livro homônimo de Despina Stratigakos, debateu a falta de visibilidade do protagonismo feminino na área. Ao longo do seminário outras questões foram levantadas sobre a relação entre a questão de gênero e o direito a cidade [2]. Percebeu-se que, embora na academia se discuta a importância dos espaços públicos enquanto locais de expressão da cidadania e dos direitos democráticos,


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[1] ocorreu nos dias 16 a 19 de maio de 2017 no Centro Cultural São Paulo CCSP. Organizado por Catherine Otondo e Marina Grinover do Base Urbana em parceria com a AACCSP e o CAUsp. contou com a presença de estudantes e profissionais da área, além de coletivos feministas - como o “arquitetas invisíveis”e o “coletivo Carmen Portinho” - engajados na questão. Palestraram, dentre outras: a professora doutora Joana Mello de Carvalho e Silva, (FAU-USP), professora doutora Ana Gabriela Godinho Lima (FAU-Mackenzie), professora doutora Maribel Aliaga (FAU-Universidade de Brasília-UnB), professora doutora Ana Paula Koury (Universidade São Judas Tadeu), Despina Stratigakos (Institute for Advanced Study in Princeton, Nova York), professora doutora, Lizete Rubano (FAU-Mackenzie), professora doutora Paula Santoro (FAU-USP), professora doutora Carolina Tonetti (Escola da Cidade), professora doutora Marta Bogéa (FAU-USP), professora doutora Helena Ayoub (FAU-USP) e professora Tania Fontenele (Universidade de Brasília–UnB), PhD arch. Maria Andrea Tápia (Escola de Arquitetura, Arte y Desenho da Universidade Nacional de Rio Negro) e professora doutora Paula Santoro (FAU-USP), [2] “O direito à cidade é muito mais que a liberdade individual para acessar os recursos urbanos: é o direito de mudar a si mesmos por mudar a cidade. É, sobretudo, um direito coletivo, ao invés de individual, pois esta transformação inevitavelmente depende do exercício de um poder coletivo para dar nova forma ao processo de urbanização. O direito a fazer e refazer nossas cidades e nós mesmos é, como quero argumentar, um dos mais preciosos, e ainda assim mais negligenciados, de nossos direitos humanos.” David Harvey (setembro–outubro de 2008) sobre o conceito elaborado por Henri Lefebvre no livro “Le Droit a la Ville” de 1968.


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pouco se explora as questões de desigualdade social e de gênero que limitam o acesso de parcelas da sociedade a esses ambientes e, por consequência, a esses direitos. Entende-se que parte do problema deriva do fato de que a maioria das teorias usadas para se ensinar arquitetura datam dos primórdios do século XX, quando essas questões não eram discutidas com amplitude. A necessidade de atualizar essas conjecturas para a realidade do século XXI é, no entanto, evidente. Dentre essas correntes teóricas, destaca-se o movimento situacionista como uma das mais interessantes em termos de propostas para desenvolvimento de um espaço urbano que estimule relações pessoais e fomente o engajamento ativo na contestação contra a alienação social. O ideal de livre experimentação artística, as derivas como ferramenta de exploração e reconhecimento do meio urbano e a apropriação do espaço público como propulsor de transformações sociais são os pilares do discurso do fundador do movimento, Guy Debord [3] que, ainda hoje, ecoa no imaginário daqueles que se propõem a pensar a cidade. Em contraponto à ordem valorizada pelos arquitetos modernistas, os situacionistas viam no caos a resposta para o empoderamento da sociedade civil e se esforçavam para inverter a lógica da relação desta com o crescimento do meio urbano que a cercava. Assim, não mais seriam os arquitetos e o urbanistas os responsáveis por transformar a cidade e a sociedade, e sim os próprios cidadãos é que se encarregariam de mudar a arquitetura e o urbanismo para melhor corresponder às novas demandas do pós guerra. Ocorre, porém, que nem todo indivíduo desfruta, na prática, dos mesmos direitos e liberdades que qualificam um cidadão ideal, ou seja, aquele que pode usufruir plenamente de sua cidadania. Há grupos sociais historicamente oprimidos e explorados que nem sequer tem a li-


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berdade de andar na rua sem que sua integridade mental e física seja posta em risco (Negros, mulheres e LGBTQs que não se enquadraram no padrão neoliberal, notadamente caracterizado por homens, brancos, heterossexuais e proprietários) e que, por tanto, não tem a mesma oportunidade de experienciar a cidade da forma proposta pelos situacionistas. Dessa forma, conclui-se que o direito básico de ir e vir é essencial para o exercício de tais práticas revolucionárias e ignorar a existência de desigualdades que restringem o usufruto dessa liberdade por aqueles que mais anseiam ser ouvidos sobre representatividade no espaço público é novamente limitar o poder de transformação apenas àqueles que já desfrutam do privilégio de serem considerados cidadãos plenos. A partir dessa percepção fez-se o recorte do tema do trabalho que se propõe a revisitar tais teorias de transformação da cidade e apropriação do espaço público sob a ótica da desigualdade de gênero e explorar formas de experimentar a cidade que levem em conta a experiência feminina. Articulando as diretrizes situacionistas, as teorias feministas e a discussão sobre direito a cidade através da exposição dos trajetos cotidianos de duas mulheres de diferentes partes de São Paulo e por intervenções pontuais na paisagem urbana por meio de cartazes.

[3] Ver anexo 1: Manifesto Situacionista escrito por Guy Debord em 1960 complemento: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.035/696




teori As femin istAs


as teorias feministas no mundo ocidental

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“Homer’s Odysseus travels the world and sleeps around. Odysseus wife, Penelope, stays dutifully at home, rebuffing the suitors she lacks the authority to reject outright” [4] Solnit, 2001 : 235

A ascensão da sociedade liberal-capitalista deixou às margens de seu progresso grupos que não correspondiam à pretensa homogeneidade dos cidadãos [5] imposta pela parcela dominante - notadamente composta de homens brancos heterossexuais e proprietários – negando-lhes exatamente os direitos universais de igualdade e liberdade que baseavam toda a teoria política. É nesse cenário que a fagulha do pensamento feminista ganha corpo e se reconhece como ação política organizada empenhada em reivindicar para mulheres a igualdade de oportunidades e acesso aos espaços públicos prevista pela universalidade neoliberal como característica fundamental do conceito de cidadania. Trata-se da fase emancipacionista do feminismo inicial (que surgiu no século XIX e perdurou até meados do século XX) em que se entendia que a solução para o problema da desigualdade entre os sexos dependia somente da inclusão formal das mulheres ao sistema político democrático vigente, o que, por si só, garantiria a elas [4] Odysseu de Homero viaja o mundo deitando-se com quem bem entende. A esposa de Odysseu, Penélope, permanece obedientemente no lar, contornando os pretendentes que ela não tem a autoridade de rejeitar. [5] ideia de que toda a sociedade é igual ao modelo de cidadão universal idealizado pela doutrina política neoliberal (notadamente caracterizado pela parcela dominante de homens brancos proprietários) que renovou os conceitos de Adam Smith, John Locke e Jean-Jaques Rousseau para a realidade do pós guerra - e, nas últimas décadas do século XX, teve seus preceitos aplicados pelas grandes potências mundiais ( o E.U.A de Ronald Reagan e o Reino Unido de Margareth Thatcher) não só em suas próprias economias como também nas dos países de terceiro mundo e nas daqueles arruinados pelos conflitos recentes (através do plano Marshall de recuperação).


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o mesmo modelo de direitos antes reservados apenas aos homens. Em outras palavras, para feministas liberais como Mary Wollstonecraft e John Stuart Mill, a igualdade universal era o objetivo e a incorporação das mulheres ao sistema era o meio. Sendo para tanto necessário que elas fossem “educadas como homens” afim de desenvolver competências políticas que as capacitassem para pleitear espaço e representação na esfera pública. No entanto, é preciso lembrar que tentativas de supressão das desigualdades de gênero por vias legislativas, como a redação da Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã [6] pela ativista revolucionária francesa Olympe de Gouges em 1791, ocorriam pontualmente desde o final do século XVIII no contexto das revoluções burguesas. Porém, por serem iniciativas advogadas por mulheres, eram paradoxalmente mal recebidas pelo próprio corpo revolucionário que brandia a bandeira da igualdade democrática, sendo, por vezes, cruelmente sufocadas e combatidas. [6] ver anexo 2. Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne foi escrita em 1791 por Marie Gouze, nome verdadeiro da escritora revolucionária Olympe de Gouges (1748 – 1793), e é uma resposta crítica e satírica a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão redigida logo após a Revolução Francesa (documento que revogou os direitos feudais e inaugurou a nova ideologia liberal-parlamentarista do pós revoluções burguesas). O documento de Olympe de Gouges, mimetiza os 17 artigos da versão aprovada pela Assembleia Nacional da França, questionando o porque dos novos direitos conquistados pela revolução não se estenderem também às mulheres da sociedade francesa. De Gouges foi sentenciada a morte sob a acusação de “trair a natureza feminina” por ter “querido ser um homem de Estado e esquecido as virtudes próprias a seu sexo” depois de se opor publicamente aos ideais machistas de Robespierre e Marrat (pensadores que, embora tidos como progressistas, acreditavam na superioridade biológica masculina e na consequente subjugação da mulher ao homem). Ela foi guilhotinada em Paris no dia 3 de novembro de 1793 pelos próprios companheiros de revolução que lutaram ao seu lado pela queda da autocracia monárquica.



fotografias de vigilância de militantes sufragistas,1913. fichas criminais da polícia inglesa http://www.npgprints.com/image/403969/criminal-record-office-surveillance-photograph-of-militant-suffragettes


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É por esse motivo que a luta pelo - e consequente conquista do - sufrágio feminino, que se arrastou até década de 1920 (década de 1930 para o Brasil sob Getúlio Vargas), pode ser considerada uma vitória simbólica, porém importante para o movimento, uma vez que consistiu o primeiro avanço em prol da delineação dos direitos das mulheres que não pode ser por fim murchado pela violenta reação da sociedade patriarcal. Ainda assim, nos anos que se seguiram (e de fato ainda hoje), a representação feminina na esfera política permaneceu insignificante, o que evidenciou que a questão de gênero demandava, mais do que apenas o reconhecimento formal/legal da cidadania das mulheres, um questionamento profundo das hierarquias sociais dentro e fora das instituições públicas. A verdade é que o indivíduo abstrato do pensamento liberal (igual a todos independente de suas circunstancias concretas) ,não por acaso, ignora brutamente as desvantagens sociais históricas sofridas pelos grupos dominados, já que, para o lógica liberalista, a opressão de certas parcelas sociais é fundamental para a manutenção do poder daqueles que se entendem cidadãos racionais aptos a desfrutar das liberdades civis. Tal dinâmica pode parecer contraditória, mas esteve presente na conformação da teoria liberal desde sua gênese, como admitiu John Adams (líder patriota na guerra da Independência norte-americana e, posteriormente, segundo presidente dos Estados Unidos) em carta de 1776 destinada à Abgail Adams, sua esposa : “Depend upon it, we know better than to repeal our masculine systems.”[7] [7] ver anexo 3 para ler a carta de John Adams e as de Abigail Adams sobre sua petição pelo direito das mulheres norte americanas. tradução: Esteja certa, nós somos suficientemente lúcidos para não abrir mão do nosso sistema masculino.


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A retórica liberal é, portanto intrinsecamente paradoxal e nunca pretendeu estender seus ideias de igualdade e liberdade às mulheres (muito menos aos demais grupos oprimidos) já que depende da assimetria nas relações de poder entre os gêneros para manter a rígida divisão entre a esfera pública (domínio masculino) e a privada (de âmbito feminino) que permite a imposição dos interesses da parcela dominante. Com essa reflexão, a partir dos anos 1960, o movimento feminista assumiu uma posição crítica diante das tendências universalistas do pensamento liberal e - assim como ocorreu com os demais movimentos de emancipação de outros grupos dominados - reconheceu a necessidade de identificar os mecanismos de exclusão que mantinham mulheres longe dos instrumentos de poder político, passando a lutar ativamente pela revisão da essência patriarcal da sociedade liberal e não mais pela mera incorporação das mulheres ao sistema vigente. À essa guinada objetiva do movimento feminista, dá-se o nome de feminismo da diferença. As feministas dessa época foram capazes de destacar, dentre muitos mecanismos alienantes, a divisão hermética entre as esferas pública e privada como principal condição propiciadora de desigualdades entre gêneros. Mas de onde exatamente surgiu a justificativa para a consolidação dessa cisão tão categórica? Tal noção deriva de teorias contratualistas [8] de filósofos políticos como John Locke e Jean-Jaques Rousseau, teorias estas que datam dos séculos XVII e XVIII. Basicamente, para esses contratualistas, a razão é um atributo inato ao homem, mas necessário para que ele possa desenvolver a capacidade moral e intelectual que [8] teoria política cuja a ideia central diz que o Estatal (governo das leis) foi criado a partir de um contrato firmado entre pessoas que consentem em se organizar como um sociedade sob o governo de regras democráticas. Hobbes, Locke e Rousseau são nomes proeminentes da filosofia contratualista.


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o torna capaz de abandonar seu estado natural (regido pelas leis animais da natureza) e adentrar um estado civilizado de liberdade em que se consente em viver numa sociedade política. Esse processo de racionalização é chamado por Rousseau de contrato social e é por meio dele que, nas palavras do próprio filósofo, o homem “pode realizar sua natureza enquanto homem moral, já que a passagem de um estado para o outro opera uma verdadeira transformação no indivíduo: de um animal estúpido e obtuso, para um ser inteligente e de fato um homem.” Em contraponto, a mulher segundo o pensamento liberal é incapaz de compreender a razão – por, supostamente, ser extremamente governada pela lei natural – e por isso encontrar-se num estado pré-político, precisando do auxílio e comando de homens para se adequar a civilidade moderna. Conforme demonstrado por Samantha Nagle Cunha de Moura em seu artigo intitulado A Separação Entre Esfera Pública e Privada: um confronto entre John Locke, Jean-Jaques Rousseau e Carole Pateman de 2014, Rousseau possuía uma visão bastante particular quanto ao papel das mulheres na sociedade liberal chegando a afirmar que elas “eram naturalmente mais fracas e mais apropriadas para a reprodução, mas não para a vida pública e que, por tanto deveriam ser educadas para agradar os homens e serem mães” servis e castas, enquanto que aos homens caberia o dever de governar “essas frívolas criaturas” (Moura, 2014: 21). Esse discurso do destino biológico que diferenciaria a predisposição racional de homens e mulheres baseou toda a construção do discurso liberal e foi responsável por naturalizar o confinamento das mulheres ao âmbito doméstico e, em seguida tornar o espaço doméstico política e publicamente irrelevante.




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Como bem aponta Samantha Moura: “a mulher rousseauniana é subversiva por natureza: não tendo as capacidades morais para participar ativamente na vida civil, ela é uma constante fonte de desordem, um perigo iminente que pode levar a destruição do Estado e, por isso, deve ser segregada e confinada no espaço doméstico” (Moura, 2014: 23) Teóricas feministas como Carole Pateman - uma das principais pensadoras do feminismo da diferença - foram responsáveis por apontar pela primeira vez na história moderna do pensamento político que, em sua grande maioria, os teóricos clássicos que embasavam o ideal liberal incorriam invariavelmente na mesma noção de que as capacidades de compreender e participar do contrato social variavam conforme o sexo, o que levou Pateman a escrever em 1988, sobre o contrato sexual implícito (porém, muito bem mascarado) nas teorias contratualistas, evidenciando que, sob o contrato social “a diferença sexual é a diferença entre a liberdade e a sujeição” (Pateman, 1993: 21) Para Pateman, o contrato original é dividido em dois sub contratos. O primeiro (contrato social), mais enaltecido e divulgado, legitima o governo Estatal das leis sobre os homens. Já o segundo (contrato sexual) legitima o poder dos homens sobre as mulheres, certificando a eles superioridade política e garantia de acesso sistemático aos corpos femininos subjugados já que retira das mulheres a capacidade de consentir e a autonomia de decidir sobre a própria vida. Essa teoria reveladora tem mérito justamente por demonstrar cientificamente a vinculação direta do liberalismo com o patriarcalismo e, mais ainda, a relação de ambos com o capitalismo (Moura, 2014: 23).


1. Penélope tecendo enquanto é pressionada por seus pretendentes. No mito, Penélope contorna as investidas dos homens que a cortejam afirmando que só poderia se casar novamente depois que terminasse de tecer um tapete. Todo o dia os homens vão à sua casa para ve-la tecer, toda noite Penélope desfaz o trabalho feito durante o dia. 2. fotografias de vigilância de militantes sufragistas nas fichas criminais da polícia inglesa - 1913 3. “Baillements Hysteriques”, Albert Londe e Martin Charcot, 1890. A imagem da “mulher histérica”compõe o catálogo da Nouvelle Iconographie de la Salpetriere (espécie de enciclopédia que categorizou e organizou os distúrbios do sistema nervoso que mais tarde basearia os estudos da neurologia moderna).


esferA pĂşblicA priv ADA


a simbiose entre esfera pública e esfera privada

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“citazenship is predicated on the sense of having something in comum with strangers, just as democracy is built upon trust in strangers. An public space is the space we share with strangers” [9] Solnit, 2001: 218

Ficou claro, já a partir dos anos 1970, que desse confinamento da mulher ao âmbito privado nasceram questões mais complexas como a divisão sexual do trabalho [10] (que designa, num primeiro momento, o trabalho produtivo aos homens e o trabalho reprodutivo às mulheres) e a subsequente desvalorização de todas as atividades consideradas femininas diante da esfera pública; problemáticas que concretizam a falta de autonomia física, ideológica e financeira da população feminina. Mas o que exatamente define a esfera pública e, mais ainda, o que a difere da sua equivalente privada? Sabe-se que, no sentindo clássico, esfera pública é o âmbito político de soberania da democracia e das leis onde imperam os princípios universais da razão e da justiça e em que, na teoria, todos os indivíduos são iguais [9] cidadania é predicada no sentindo de se ter algo em comum com estranhos, da mesma forma que a democracia é construída na base da confiança em estranhos. Um espaço público é um espaço que dividimos com estranhos. [10] O trabalho produtivo é realizado na esfera pública e profissional resultando em remuneração, produção de bens ou serviços com valor econômico. Já o trabalho reprodutivo engloba as atividades ligadas ao trabalho doméstico não remunerado e que dizem respeito a gestão familiar como o cuidado com saúde e educação de filhos, idosos e dependentes. Na sociedade patriarcal o trabalho produtivo é designado aos homens e depende da subjugação das mulheres ao trabalho reprodutivo, o que limita a autonomia feminina em relação aos homens uma vez que eles detém o capital e controlam as fontes de renda. Com a entrada da mulher na força de trabalho é comum que elas acumulem as duas funções laborais (produtiva e reprodutiva) arcando com os cuidados domésticos e com o emprego remunerado na chamada dupla jornada de trabalho.


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perante a sociedade democrática, porém na prática ignora-se a existência de desigualdades entre públicos distintos e seus conflitos. É, na concepção liberal capitalista, o espaço da expressão do trabalho produtivo e da subjetividade masculina. Já a esfera privada é um âmbito estritamente doméstico e de soberania da família, onde imperam as relações de caráter pessoal e íntima regidas pela lógica afetiva e em que, na teoria, os indivíduos possuem particularidades e individualidades concretas, mas na prática, se reforçam estereótipos de gênero e os mitos da vocação servil biológica da mulher. Também é onde se restringe a legitimidade daquilo que deve ser contestado na esfera pública, ignora-se as relações assimétricas de poder dos núcleos familiares tradicionais e menospreza-se a vulnerabilidade daqueles mais frágeis na hierarquia familiar em nome da privacidade. É, na concepção liberal capitalista, o espaço do trabalho reprodutivo ligado à identidade feminina, ainda que sob comando masculino; reduto das necessidades biológicas, resguardado da intervenção do Estado e despido de qualquer sentindo político. Como reforçado por Flávia Biroli no livro Feminismo e Política de 2014: “A garantia da privacidade para o domínio familiar e doméstico foi vista como uma das ferramentas para a manutenção da dominação masculina. A compreensão de que o que se passa na esfera doméstica compete apenas aos indivíduos que dela fazem parte serviu para bloquear a proteção aqueles mais vulneráveis nas relações de poder” (Biroli e Miguel, 2014: 32). A crítica à dualidade das esferas é a questão central do movimento feminista pós anos 1960, pois expõe as relações de poder na vida cotidiana e os limites da universalidade como posição neutra para definição dos direitos civis, mas também evidencia que a construção de


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uma sociedade verdadeiramente democrática depende da vinculação da vida política com a vida social, partindo do entendimento que os direitos e poderes que se estabelecem em uma esfera afetam diretamente os direitos e relações que desenvolvem na outra, e que, por tanto, a politização da âmbito privado é imprescindível para o equilíbrio das relações de gênero em ambas as esferas. Essa politização decorre da abertura para a interferência pública no âmbito privado para garantir a autonomia de todos os indivíduos integrantes da família com iniciativas como a criminalização do estupro marital e da violência doméstica, e a desconstrução social da divisão sexual do trabalho. O slogan feminista “o pessoal é político” nasce desse desejo de se politizar a esfera privada sem abrir mão completamente da privacidade e das liberdades individuais


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que garantem o direito ao aborto legal e a livre expressão da sexualidade, por exemplo, mas sim atentando para a necessidade de intervenções pontuais para regulamentação do âmbito privado naquelas situações onde há opressão e injustiça contra os tradicionalmente vulneráveis. Depois de elucidada a questão da intercomunicação entre as esferas, outra questão à cerca do âmbito público pode ser lançada: afinal, de que consiste um espaço público físico? A professora de sociologia e copresidente do departamento de sociologia da universidade de Columbia, Saskia Sassen, dirá (em uma entrevista concedida à revista aU em 2013) que, sob o prisma do olhar arquitetônico, os espaços públicos são uma característica fundamental de qualquer cidade verdadeira, já que um terreno altamente


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construído mas carente desses espaços – como ocorre ao redor de grandes condomínios murados que “destroem a ideia de bairros como espaços completos, com suas sub-economias e atividades culturais” – é, não mais, que um adensamento desurbanizador [11]. Sassen ainda completa: “Hoje, por todas essas tendências de desurbanização e o crescimento da desigualdade, vejo as ruas da cidade como um espaço urbano fundamental para o uso público. As ruas precisam ser diferenciadas daquela clássica noção europeia de espaços mais ritualizados para a atividade pública, com a praça e o bulevar como instâncias mais emblemáticas. O espaço das ruas, que obviamente inclui praças e qualquer espaço aberto disponível, é mais cru e menos ritualizado.” É por isso que, na discussão atual sobre direito à cidade e apropriação social dos espaços públicos, a rua é tida como o espaço de reivindicação política mais democrático e acessível, consolidando-se como um “espaço emergente onde os que tem menos poder podem fazer história à sua maneira”. [11] entrevista disponível em: http://au17.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/232/o-que-e-

espaco-publico-292045-1.aspx


1. anúncio publicitário em que se lê “se seu marido descobrir que você não esta fazendo pesquisa de mercado para achar o café mais fresco...” 1952 2. revista feminista Women’s Liberation, 1968 3.retrato de Maria da Penha Maia Fernandes, a biofarmaceutica e ativista que inspirou a lei contra a violência doméstica no Brasil. 4. manifestante na greve das mulheres (women’s strike), agosto 1970. no cartaz se lê: nós representamos as mulheres negras e do terceiro mundo, as mais exploradas e oprimidas na raça humana.


direito À ciDAde mobi liDA de


direito à cidade, mobilidade e o valor do caminhar

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“only citezens familiar with their city as both symbolic an pratical territory, able to come together on foot and acustumed to walking about their city, can revolt.” [12] Solnit, 2001: 217

O feminismo da diferença advoga pela heterogeneidade do âmbito público por acreditar que é essa a chave para uma sociedade mais democrática. Então por quais formas as diferentes identidades podem se apropriar desse espaço? Reivindicar representatividade por meio de cargos públicos é uma forma. O cenário político brasileiro para as mulheres é, no entanto, desanimador: segundo pesquisa realizada pela Inter-Parliamentary Union em 2014 [13], no Brasil , embora representem 52% da população eleitoral, as mulheres ocupam apenas 9% das cadeiras na câmara dos deputados e 10% das do Senado. Em São Paulo, apenas 9% da câmara de vereadores é composta por mulheres e apenas 11,4% das cidades do município elegeram prefeitas. O estudo também conclui que, diferentemente do alegado pelos partidos políticos do país, a baixa quantidade de mulheres que tem suas campanhas apoiadas pelas legendas não é consequência de falta de interesse por parte delas em se candidatar às vagas pleiteáveis, e sim da pouca oportunidade que lhes é dada para sequer alcançar uma posição no partido em que suas candidaturas sejam levadas a sério. Outra forma é ocupar fisicamente os espaços públicos da cidade de forma massiva e organizada e usar deles para reivindicar transformações sociais como feito em São Paulo durante as passeatas de Julho 2015, nos protestos dos estudantes secundaristas da rede pública em 2016 e [12] apenas cidadãos familiarizados com suas cidades como território simbólico e prático, capazes de se juntar a pé e acostumados a caminhar por elas, podem se revoltar [13] pesquisa disponível em: http://archive.ipu.org/english/Surveys.htm


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na parada LGBTQ e na marcha das vadias que acontecem anualmente na cidade. Infelizmente, não é raro que o próprio poder público coíba essas iniciativas cívicas de conclamação de “tomadas das ruas” em prol de um objetivo reivindicatório, através de artimanhas legais que proíbam a ocupação dos espaços da cidade para fins políticos e liberem o uso da força policial contra manifestantes pacíficos. Também ocorrem casos em que há “a eliminação da possibilidade de aglomerações através do desenho urbano ou do incentivo à dependência do automóvel” que é difícil de rastrear, mas, seguem sendo cruelmente antidemocráticos já que “quando espaços públicos são eliminados, elimina-se também o próprio público” (Solnit, 2001: 218). Mas não só por grandes atos públicos, passeatas, marchas e aglomerações políticas é que se ocupa o espaço público. De fato o mais comum é usufruir dele em uma escala mais corriqueira, nos deslocamentos cotidianos; aquele transitar diário entre casa, trabalho, dever ou lazer. É durante esses deslocamentos que a maioria da popula-


ção ocupa, quase sem perceber, o espaço público em todo seu potencial revolucionário e exerce o mais primordial de todos os direitos civis que é o de ir e vir livremente. Seria ingênuo pensar, no entanto que essa liberdade de mobilidade plena é comum a todos os cidadãos. Na prática, o direito ao acesso à cidade não é universal se pensarmos nas diversas camadas de desigualdades sobre as quais a sociedade urbana foi estruturada. O grau de mobilidade urbana de um indivíduo pode variar de acordo com fatores como cor da pele, classe social, local de origem, entre outros. O fato é que um homem negro da periferia não experiência a cidade com a mesma liberdade de um homem branco de classe média alta, pois, como observa Rebecca Solnit: “Black men nowadays are seen as working class women were a century ago: as a criminal category when in public, so that the law often actively interferes with their freedom of movement.” (Solnit, 2001: 242) [14] O infeliz caso do ator que foi espancado por seguranças após ser “confundido” com um assaltante, o ocorrido em que uma criança foi impedida de sentar-se num banco público em uma das mais gentrificadas ruas de são Paulo porque “ali não era lugar de pedinte” e os diversos casos diários de “enquadros policiais” em que jovens negros são abordados e revistados de maneira agressiva por “andarem de maneira suspeita” são apenas alguns exemplos dentre milhões de ocorrências diárias em que o racismo limita o livre transitar de pessoas negras por determinadas áreas da cidade. O acesso à cidade também não é neutro quanto ao gênero: segundo pesquisa do IBOPE 2015 [15] , mulheres são maioria dentre os passageiros de transporte público e também dentre os que preferem o deslocamento a pé, enquanto que homens compõe a maior parte dos motoristas de automóveis particulares.

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[14] homens negros ainda são vistos atualmente como as mulheres da classe trabalhadora eram vistas no século passado: como uma categoria criminal quando em público, por isso a lei frequentemente interfere na sua liberdade de movimento. [15] pesquisa disponível em: http://www.ibope.com.br/pt-br/noticias/Documents/RSB%20


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Outra pesquisa de 2015 do METRO [16] mostra que as mulheres tem motivos de deslocamentos muito diversificados quando comparados aos dos homens. Isso se deve ao fato de elas ainda serem as únicas responsáveis por desempenhar o trabalho reprodutivo na maior parte dos lares brasileiros, fazendo deslocamentos que envolvem por exemplo o trânsito entre casa, trabalho, supermercado, escola, creche, posto de saúde, casa de familiares dependentes, lazer, dentre outros destinos (uma responsabilidade herança da divisão sexual do trabalho), enquanto os homens se deslocam principalmente para atender as necessidades do trabalho produtivo resumido no transitar entre casa e trabalho. Essas dados, contribuem para o entender em que níveis mulheres tem sua liberdade de locomoção reduzida em uma cidade como São Paulo, que tende a privilegiar carros em detrimento de pedestres e valoriza uma lógica de mobilidade urbana que atende prioritariamente as demandas do deslocamento ligado ao trabalho produtivo, mas torna-se insuficiente quando deve atender a complexidade de um deslocamento ligado ao trabalho reprodutivo. Nas palavras de Haydée Svab, autora do mestrado Evolução dos padrões de deslocamento da região metropolitana de São Paulo: “há um pacto social que valoriza as funções produtivas de tal forma que as coloca acima das reprodutivas. Assim, tudo refletirá esse pacto: o desenho das calçadas onde sobram guias rebaixadas para carros e faltam rampas de acessibilidade, a rua que é literalmente palco de disputa entre modelos individuais e coletivos”. Para Svab, é preciso avançar na questão da equidade gênero por meio de políticas municipais que tornem a cidade mais “caminhavel” e que priorizem ônibus. mas o que fazer quando apenas 15% dos cargos de liderança nas secretarias municipais que lidam com mobilidade urbana são ocupadas por mulheres? Svab destaca a importância do engajamento daqueles que realmente vivenciam a cidade nas metodologias participativas que contribuem para formulação de políticas públicas mais inclusivas, na medida em que valorizam a particularidade das experiências ao mesmo tempo que


contemplam a heterogeneidade social, (como ocorreu durante as reuniões abertas de debate do plano diretor de São Paulo em 2015) e explica: “assim poderia se dar a oportunidade para a mulhere negra periférica, a branca de classe média, a transexual, o idoso com mobilidade reduzida e a criança que vai a escola, entre tantos outros perfis, expressarem suas demandas a partir de suas vivencias, influenciando as decisões do poder público”. [17] Porém, novamente é preciso ressaltar o fato de essas medidas demandarem que a sociedade se mobilize de maneira organizada para apresentar requisições ao poder público, o que demanda tempo livre e autonomia política, coisas pouco oferecidas pelo regime de trabalho contratual da maior parte da população brasileira. 27%20Mobilidade%20Urbana%20Setembro%202015.pdf [16] pesquisa disponível em: https://cidadeape.org/category/pesquisa-origem-destinodo-metro/


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Em outras palavras, para que essas iniciativas funcionem, cabe à população buscar a instituição pública para ter suas demandas ouvidas (interrompendo sua rotina com todos os empecilhos que isso possa acarretar). O fato de serem raros os cidadãos que dispõem dessa flexibilidade, juntamente das dificuldades de divulgação que iniciativas como essa enfrentam, tornam os esforços de aproximar política públicas e sociedade ainda mais árduos. Diante dessa reflexão fica óbvia a importância de se trazer a política para o cotidiano da população e insistir nas micro apropriações políticas do espaço público no contexto dos deslocamentos diários da sociedade. É preciso encarar o deslocamento como um ato de resistência e retomada do caráter cívico do espaço comunal conquistado em meio à profusão de “cercamentos” dos espaços privados. Apropriar-se do espaço público de forma política diariamente, ainda que de maneira sutil, é resistir à violência real e à sensação de insegurança para não perder o espaço conquistado, para não retroceder e voltar a relegar as mulheres ao confinamento doméstico. Essa resistência pode ser feita através de grandes passeatas, mas também está presente no simples ato de caminhar pela cidade. Como qualificou Rebeca Solnit, em seu livro manisfesto Wandelust – a history of walking: “walking is about being outside, in public space, and public space is being abandoned and eroded in older cities, shadowed by the fear. Strange places are Always more frightrning then known ones, so the less one wanders the city, the more alarming it seems, while the fewer the wanderes the more lonely and dangerous it realy becomes” (Solnit, 2001: 11) [18]. Daí despende-se a relevância do caminhar enquanto ferramenta de apropriação do espaço público e de combate à alienação político-social, já que é através dele que se conhece a cidade em que se vive e familiariza-se com seus significados práticos e metafóricos. Nas palavras de Solnit, “caminhar é uma demonstração corpórea de convicções políticas ou culturais e uma das mais universalmente acessíveis formas de expressão pública.”(Solnit, 2001: 217) e portanto é, em si, um ato político.


1. Dilma Vana Rousseff, economista e primeira mulher eleita presidente(a) do Brasil (2011 - golpe do impeachment em agosto de 2016) 2.mulheres passageiras de ônibus.

[17] mestrado de Haydeé Svab disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/ disponiveis/3/3138/tde-30092016-142308/pt-br.php [18] andar é sobre estar do lado de fora, no espaço público, e espaços públicos tem sido abandonados e erodidos nas cidades mais velhas, sombreados pelo medo. Lugares estranhos são sempre mais assustadores que lugares conhecidos, então, quanto menos se caminha pela cidade, mas alarmante ela parece, enquanto que quanto menos caminhantes, mais solitária e perigosa se trona a cidade.


inter nAcio nAl situAci onistA


a internacional situacionista

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“ Eu tomo meus desejos por realidade porque acredito na realidade dos meus desejos” frase pixada em muro da universidade de Sorbone durane a greve geral de maio de 1968 na França.[19]

A consolidação do capitalismo depois da segunda guerra mundial embrenhou nas populações ocidentais o consumismo como valor sócio econômico da modernidade. A fetichização das commodities (bens de consumo) levou ao esvaziamento de desejos subjetivo e à comercialização deles, substituindo a satisfação de aspirações passionais pela satisfação de necessidades fabricadas pelo capitalismo. Essa alienação do desejo fez da felicidade sinônimo de aquisição de objetos, amplamente incentivada pela publicidade, e mascarou efeitos colaterais significativos da adoção do ideal liberal-capitalista: o distanciamento social dos indivíduos e a desconexão deles com as questões sociais comuns por um fenômeno chamado individualismo. É nessa época, também, que a publicidade consolida a associação da figura feminina ao simbolismo do desejo moderno de consumo e sucesso, usando-se da erotização do corpo da mulher para sexualizar os produtos ofertados nas propagandas. Essa sensualização do consumo (fruto da fetichização do das commodities) levou, nas palavras de Guy Debord, a “degradação do erotismo e do desejo à um espetáculo vazio, como uma strip-tease anticlimática”. [19] a greve geral de maio de 1968 foi resultou de um longo período de volatilidade e descontentamento civil que culminou na ocupação de universidades e fábricas de toda França. A universidade de Sorbonne foi notoriamente tomada pelos estudantes revoltados (insuflados pelos ideais socialistas) juntamente dos poucos integrantes reminiscentes da I.S.(que foi definitivamente dissolvida logo após os eventos da greve geral pelo próprio Guy Debord que temia que suas ideias sobre a sociedade do espetáculo fossem fagocitadas e distorcidas pelo próprio sistema capitalista que criticava).


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Nasceu, nesse contexto, em 1958, a Internacional Situacionista (I.S.) a partir da aliança entre poetas, artistas, escritores, críticos e cineastas dissidentes do Letrismo e do grupo CoBRA que, influenciados pelas correntes vanguardistas dadaísta e surrealista, se uniram sob a liderança de Guy Debord com objetivo de “superar a arte” ( Dampsey, 2011), vinculando discurso político e produção artística radical para abolir a noção de arte como atividade especializada separada da vida cotidiana. Através da publicação da série de revistas que leva o nome do movimento, os situacionistas apresentaram ao mundo seu manifesto contra a chamada “sociedade do espetáculo”[20] e seus vícios alienantes. Como apontou o professor mestre em história da Universidade de Princeton, Thomas Y. Levin, em seu artigo intitulado Geopolitics of Hibernation: the drift of situationist urbanism: “O desejo ocupava um lugar proeminente na teoria e na prática situacionista. Primeiramente, ele era a base sobre a qual o grupo formulou sua definição de revolução: para a I.S., a revolução simultaneamente requisitava e justificava uma transformação radical na estrutura e no caráter do desejo”. O debate sobre o desejo na sociedade capitalista, por tanto, carregava importância política, filosófica e simbólica, sendo a expressão dos “desejos corporais” um ato revolucionário de defesa da liberdade política e sexual [21]. Os integrantes da I.S. se contrapunham aos arquitetos e urbanistas modernistas (por eles tidos como organizadores do espaço, apaziguadores de conflitos e alienadores do desejo), já que viam no caos a fonte mais fecunda da motivação revolucionária, aproveitando-se dele para compor seus manifestos que visavam fazer do próprio espaço público – campo profícuo para incentivar relações e conflitos - um palco de transformações sociais. [20] termo cunhado por Guy Debord para designar a sociedade liberal capitalista. Em seu livro de 1967 La Société du Spectacle, Debord articula sua teoria crítica baseada nos ideais marxistas.


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reuniĂŁo de membros da Internacional Situacionista, 1960.


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Eles propunham a criação de um novo urbanismo em que a sociedade é quem transforma e educa a arquitetura e a urbanidade à sua volta. Nas palavras de Guy Debord: “ Defendemos o urbanismo unitário como negação do urbanismo que não constrói nada sobre o terreno e sim sobre o papel. Buscamos um urbanismo de novas espacialidades que permitam modos de vida em consonância com processos de subjetificação apropriados, que integrem a cidade em uma rede permanente de interações com as devidas ressonâncias nas construções intersubjetivas inerentes a pluralidade da vida comum. [...]o novo urbanismo é inseparável das transformações econômicas e sociais felizmente inevitáveis. É possível se pensar que as reivindicações revolucionárias de uma época correspondem a ideia que essa época tem da felicidade. A valorização dos lazeres não é uma brincadeira. Nós insistimos que é preciso se inventar novos jogos” (Debord, 1960) Três métodos eram usados pelos situacionistas para sustentar suas teorias revolucionárias nas práticas artísticas urbanísticas. Eram elas: a construção de situações, o detournemant e a pscicogeografia. Construção de situações é a criação de objetos de arte em circunstâncias não convencionais como uma forma de protestar a onda de comercialização da arte moderna que despia tanto obra como artista de seus potenciais político-instigadores, transformando-os em uma mercado[21] É curioso notar, porém, que o argumento situacionista em defesa dessa liberdade seja abertamente inspirado na valorização da figura do Marquês de Sade pelos intelectuais da época (as obras do marques foram redescobertas no pós guerra e sofriam nova onda de censura pela parcela conservadora da sociedade) A Filosofia na Alcova (uma das mais importantes obras do Marquês de Sade, de 1795), por exemplo, quando lido a partir de uma perspectiva crítica feminista, revela-se como um texto de discurso misógino em que o corpo da mulher, sua função e natureza, são concebidos de modo essencialista relegando a mulher a um lugar subalterno.


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fundadores da I.S. em Cosio ‘dÁrroscia, Itália 1957. da direita pra esquerda: Guiseppe Pinot Gallizio, Piero Simondo, esposa de Simondo, esposa de Debord, Guy Debord, Asger Jorn, and Walter Olmo.


Art ifĂ­cios situAci onistAs


os artifícios situacionistas

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“Não pode haver música ou pintura situacionista, apenas o uso situacionista desses meios.” revista I.S., julho de 1958

ria mais palatável para o consumo burguês. As Pinturas Industriais de Pinot Gallizio, por exemplo, eram pintadas em telas de 45 metros de comprimento com diversas técnicas inusitadas (jatos de tinta spray, resinas, marcas de máquinas industriais) e depois recortadas e vendidas por metro como uma forma de zombar as galerias de arte por seus preços exorbitantes e peças “exclusivas”. Détournemant (deturpação ; desvio, numa tradução literal) é a técnica de se apropriar de imagens ou objetos existentes (readymades) e alterá-los para subverter seu significado original. Pintar por cima de quadros de natureza morta comprados em brechós, recortar páginas de livros clássicos, usar imagens de anúncios publicitários para ilustrar manifestos políticos são exemplos da aplicação da técnica usada pelos integrantes da I.S. durante suas experimentações artísticas. Psicogeografia é o termo usado para designar uma série de táticas de percepção espacial-sensitiva do espaço urbano destinadas a avaliar o “impacto psicológico da cidade sobre seus habitantes” (Dampsey, 2011: 214). Dentre essas táticas está a Deriva: o ato de caminhar sem destino pré definido pelas ruas de uma cidade registrando de forma subjetiva e sistemática as impressões do percurso. Esse caminhar incerto porem focado, sujeito ao acaso dos eventos climáticos e ao caos da modernidade urbana, consiste de um comportamento lúdico-construtivo que, para os situacionistas, permitia o arejamento do pensamento arquitetônico-urbanístico da época que valorizava demasiadamente a racionalização e a ordem do pensamento projetual.


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A deriva foi particularmente esmiuçada pelos teóricos situacionistas por ser sua principal ferramenta de pesquisa. Debord se debruçou sobre ela em seus ensaios-manifestos chegando a explicitar as melhores maneiras de realiza-la: “Pode-se derivar sozinho, mas tudo indica que a repartição numérica mais frutífera consiste em muitos pequenos grupos de 2 ou 3 pessoas chagando a uma mesma tomada de consciência, o recorte das impressões desses pequenos grupos devendo permitir conclusões objetivas. [...] A duração média de uma deriva é um dia, considerando como o intervalo de tempo compreendido entre dois períodos de sol. Os pontos de partida e chegada, no tempo, em relação ao dia solar, são indiferentes, mas é preciso notar, entretanto, que as ultimas horas da noite são geralmente impróprias para a deriva. [...] sobretudo a deriva se desenvolve frequentemente em algumas horas deliberadamente fixadas, ou mesmo fortuitamente durante muitos breves instantes, ou ao contrário durante muitos dias. [...] é quase impossível determinar com alguma precisão o momento em que o estado de espírito próprio de uma deriva dá lugar a de outra.” (Debord, 1960)


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pรกginas dos livros memoires de Asger Jorne Guy Debord e the naked city, tambem de Debord


figurA DA mul her


a figura da mulher pela internacional situacionista

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“[...] among essays on police brutality, functionalist architecture and industrialization – essays all invested with a clear sense of import and urgency – are found photographs of sexy, flirtatious woman. [...] What are sexually charged images such as these doing in a periodical whose twelve issues published some of the most incisive critiques os alienation, capitalismo and spectacle to appear after world war II?” ( BAUM, 2008) [22]

As revista-manifestos da I.S. estão recheadas de reproduções de fotografias readymades de celebridades femininas, modelos nuas e anúncios publicitários mostrando belas mulheres em poses provocantes ou em situações sugestivas. Como nas magazines, nos filmes e na propagandas de onde eram tiradas, essas imagens compunham a fantasia da feminilidade e pretendiam representar o desejo, porém não da forma como se originalmente intendia. Uma vez apropriadas e deturpadas pelos situacionistas sob o conceito de detournemant, e vinculadas ao conteúdo incendiário de suas revistas críticas, essas imagens passavam a carregar uma profundeza de significados que antes lhes faltava e tornavam-se elas mesmas a expressão visual da crítica à alienação do desejo. Como apontou Kelly Baum em seu ensaio de 2008 intitulado The Sex of the Situationist International: “This images do not represent the sorts of polymorphous pleasures embraced by situationists. Those pleasures were impetuous, unmedicated and calculated to disarm conventional morality. The pinups sample in is, on the other hand, would seem to represent desire at its most anemic and impoverished, precisely becaus they are pinups, precisely because they confine desire to the four [22] em meio a ensaios sobre brutalidade policial, arquitetura funcional e industrialização – ensaios investidos de claro sentindo de importância e urgência – se encontram fotografias de mulheres sensuais e coquetes. O que fazem imagens sexualmente carregadas como essas num periódico cujos doze volumes publicaram algumas das mais incisivas críticas sobre alienação, capitalismo e espetáculo a aparecer depois da Segunda Guerra Mundial?


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corners of an image. As such, this type of soft-core erótica might be said to epitomize the becoming-image of desire under capitalismo and spectacle.” [23] (BAUM, 2008: 34) Segundo tal crítica, as peças publicitárias, em seu estado original, usavam-se da figura ultra-sensualizadas de mulheres irreais para excitar o consumidor, mas logo o frustravam justamente por evidenciar a incompatibilidade da realidade com o ideal de felicidade exibido na propaganda. Assim o consumidor ficava mais vulnerável aos apelos do consumismo, por se ver obrigado a substituir a satisfação de um desejo sexual, despertado pelo anúncio, pelo prazer da compra do produto anunciado. Resistir à comercialização das relações eróticas pela sociedade do espetáculo era uma preocupação central do debate situacionista, sendo para tanto necessário, nas palavrar de Guy Debord: “considerar uma ação ideológica consistente para combater, no nível das paixões, a influência dos métodos da propaganda do capitalismo tardio: para contrastar concretamente, à toda oportunidade, outros modos de vida desejáveis contra os reflexos do modo de vida capitalista; para destruir, por todos os meios hiper-políticos, o ideal burguês de felicidade”. Essa interpretação, no entanto, toma o “consumidor” por um sujeito inescapavelmente masculino, ignorando por completo os efeitos desse tipo de publicidade sobre a população feminina que também a assiste e consome.

[23] essas imagens não representam o tipo de prazer polimorfo abraçado pelos situacionistas. Esses prazeres eram impetuosos, irremediáveis e calculados para desarmar a moral convencional. Os recortes de pin-ups, por outro lado, parece representar o desejo da forma mais anêmica e empobrecida, precisamente por serem pin-ups, precisamente por confinarem desejo aos quatro cantos de uma imagem. Assim, esse tipo de imagem erótica soft-core pode torna-se símbolo de um desejo minguado sob o capitalismo e o espetáculo.



imagens “deturpadas� que ilustram as revistas da I.S.


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De fato, em todo o manifesto situacionista, o papel (e em muitos casos a própria existência) da mulher na sociedade capitalista nunca é sequer questionado. Como observou Susan Rubin Suleiman em seu ensaio intitulado Subversive Intent: gender, politics and avant-garde: “the situationist apper to have been more os a ‘men’s club’ than the surrealistst. When they waren’t ignoring women, they were treating them as sex objects in the most banal sense” [24]. Em resumo, para os integrantes da I.S., a mulher irreal da propaganda excitava o homem mas também o frustrava para que ele tivesse que suprir seu desejo comprando. Nessa leitura, o homem é, portanto, a única vítima da publicidade enganosa e a mulher irreal, uma ameaça a ser combatida. [24] Os situacionistas parecem ter sido ainda mais similares a um “clube do bolinha” do que os surrealistas. Quando não estavam ignorando mulheres, eles as estavam tratando como objetos sexuais no mais banal dos sentidos. Susan Rubin Suleiman, Subversive Intent: Gender, Politics and the Avant-Garde (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1990), p. 214, n 44.


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Ken Knnab sem título, 1970 [25]

Observa-se aí, a fusão/confusão que os situacionistas fazem entre a mulher real e a imagem publicitária da mulher irreal. Para eles, a figura da mulher virou símbolo da simbiose entre o erotismo moderno e a sociedade do espetáculo, configurando, não só um sintoma da crise do desejo, como também a sua própria causa. Assim, fica claro que os situacionistas criticam o uso da imagem de mulheres pela publicidade, não porque estas as objetifiquem e oprimam, mas porque ferem a virilidade e os anseios dos homens sujeitos à ela. Diante dessa conclusão, no entanto, é preciso notar que essa visão falo-centrada dos situacionistas é fruto de estereótipos de gênero inerentes à sua época e é, justamente por esse motivo que, não só os situacionistas, como a maioria dos movimentos radicais artísticos políticos dos anos 1960, reproduziam em suas práticas revolucionárias as tendências excludentes do patriarcalismo, paradoxalmente alienando mulheres de seu potencial insurgente.

[25] adesivo para ser colado sobre a imagem de mulheres em propagandas onde se lê: olá, homem! sou uma foto de uma mulher que não existe. mas meu corpo corresponde ao estereótipo do qual você foi condicionado a desejar. como sua esposa ou namorada dificilmente se parecem comigo, você está naturalmente frustrado. Aqueles que me colocaram aqui te pegaram bem onde queriam - pelas bolas. Com a sua masculinidade desafiada, você fica nas mãos deles. Eles podem te convencer a comprar os objetos que eles fizeram você pensar que precisa, ao invés de tomar o que você realmente deseja. E, uma vez que a imagem de satisfação que eles balançam na sua frente fica cada vez mais distante - como uma cenoura em frente a um burro - você continua trabalhando infinitamente para pagar por mais e mais das coisas que já lhe pertencem. Se continuar a “viver” assim, você nunca ficará satisfeito até o dia de sua morte. Otário.


1. Michele Bernstein, artísta, escritora e crítica. integrou a I.S. do começo ao fim do movimento. A maioria dos textos sobre o movimento se referem à ela como “mulher de Guy Debord”. Henri Lefebvre, em entrevista à Kristen Ross em 1983, falou sobre sua realação com os integrantes da I.S. e comentou a dinâmica da relação entre Debord e Bernstein [26] 2. Elena Verrone (artista) e Michele Bernstein. 3. propaganda de cigarros.

[26] H.L.: Ninguém poderia entender como eles sobreviviam. Um dia um de meus amigos (alguém para quem eu tinha apresentado Debord) lhe perguntou, “você vive de que ?” E Guy Debord respondeu muito orgulhosamente, “eu vivo de minha sabedoria” [Risos]. De fato, ele deve ter tido algum dinheiro; eu acho que a família dele não era pobre. Os pais dele moravam no Cote d’Azur. Acho que não tenho realmente a resposta. E além disso, Michele Bernstein tinha arranjado um modo esperto para ganhar dinheiro, ou ao menos um pouco de dinheiro. Ou pelo menos isto foi o que ela me contou. Ela disse que fazia horóscopos para cavalos, que eram publicados em revistas de corrida do gênero. Era extremamente engraçado. Ela determinava a data de nascimento dos cavalos e fazia seus horóscopos para predizer o resultado da corrida. E acho que houveram revistas deste tipo que publicaram e pagaram-na. K.R.: Então o slogan situacionista “nunca trabalhe” não se aplicava às mulheres ? H.L.: Sim, se aplicava, porque isto não era trabalho. entrevista disponíel em: http://guy-debord.blogspot.com.br/2009/06/henri-lefebvre-einternacional.html


camin hAr A DA mul her


o caminhar da mulher como ato de resistência

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“walking is a primary cultural act and crucial way of being in the world, those who have been unable to wal out as far as their feet would take them have been denied not merely exercise or recreation but a vast portion of their humanity” [27] Solnit, 2001: 245

Nos dias de hoje seria inconcebível defender um conjunto de práticas políticas que ambicionem revolucionar o direito a cidade sem levar em conta as discussões levantadas por movimentos marginalizados como o Movimento Negro, o Sem Teto, e o próprio Movimento Feminista. Mas isso não significa dizer que toda a reflexão feita sobe o tema pelos situacionistas deva ser desconsiderada. É preciso apenas trazê-la para a atualidade através de discussões que reconheçam suas limitações relativizando o contexto em que elas foram elaboradas e as problemáticas sociais por elas deixadas de fora. Ao que diz respeito à questão de gênero, mas especificamente a questão da voz da mulher nessas práticas transformadoras, deve-se identificar que tipo de impedimento se apresentaria à mulheres que desejem por em prática as diretrizes propostas pelos situacionistas. A estratégia da deriva em particular, parece ser especialmente problemática ao levar em conta o fato de que, historicamente, as mulheres foram sistematicamente punidas por executar essa simples liberdade de caminhar por onde bem entendem, sem que sua integridade física e mental fosse posta em risco.

[27] caminhar é um ato cultural primordial e uma forma crucial de se estar no mundo. aqueles que tenham sido impedidos de andar o mais longe que seus pés podem os levar tiveram negados, não só exercício ou recreação, mas uma vasra porção de sua humanidade.


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A existência de uma polícia da moral adotada por muitos países ocidentais, no final do século XIX, para fiscalizar as mulheres fora do âmbito privado, por exemplo, gerou muitas consequências danosas à autonomia das populações femininas, ao tentar regulamentar a prostituição impondo regras duras às prostitutas sem consequências, porém aos clientes que as solicitavam: “Many European governments attempted to regulate prostitution by limiting the circunstances in witch it could be carried out, and this often became a limitation of the circumstances in witch any woman could.” [28] (Solnit, 2001: 237) Isso porque, para sociedades preocupadas em controlar a sexualidade feminina, o caminhar da mulher, assim como seu próprio corpo, são construídos como instâncias performáticas inevitavelmente sexuais. Essa necessidade de controle advém, como explicitado anteriormente, da cultura patriarcal em que a propriedade e a herança eram passadas do pai para os filhos; daí a importância de se certificar a paternidade da prole através do isolamento domiciliar da mulher, protegendo a legitimidade da árvore genealógica por meio da separação física da esposa do possível convívio com demais homens. A obsessão em se colocar sempre uma barreira física entre a mulher e o espaço público (seja ela caracterizada por quatro paredes, um vagão de trem exclusivo ou um véu sobre o rosto) também é característico do pensamento patriarcal. Conforme qualificou a historiadora Gerda Lerner “mulheres domésticas, servindo sexualmente um homem e sob sua proteção são designadas ‘respeitáveis’ por serem veladas (literalmente cobertas por um véu); mulheres que não estão sob a proteção e controle sexual de um homem são designadas ‘mulheres públicas’ e portanto, desveladas (literalmente descobertas, sem véu).” [28] muitos governos europeus tentaram regular a prostituição limitando as circunstâncias em que ela poderia acontecer e isso frequentemente virou uma limitação das circunstâncias nas quais qualquer mulher poderia andar.


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Duas leituras podem ser feitas sobre a sociedade patriarcal a partir da afirmação de Lerner: a primeira é que o fator visibilidade (no sentido de possibilidade de ser visto ou não) da mulher é tida como sinônimo de disponibilidade/acessibilidade sexual. A segunda vai no sentido de dizer que a palavra e a vontade de uma mulher tem pouco valor quando se trata de investidas sexuais indesejadas, sendo imprescindível uma barreira física entre homens e mulheres para garantir a integridade feminina. Pode-se apontar ainda a separação entre “mulher respeitável” (do lar) e “mulher pública” (da rua) como uma distinção que contribui para qualificar a sexualidade feminina, na visão patriarcal, como uma questão de gestão pública e não privada e que delega à mulher a necessidade de justificar sua presença no espaço público através de atividades tidas como “aceitáveis” (sair para ir as compras, por exemplo era a única forma pela qual uma moça burguesa do século XIX poderia experimentar a vida urbana sem ter sua moral questionada. Uma vez fechadas as lojas, também se fecham as portas para o mundo exterior), ao mesmo tempo que lhe retira o poder de desisão sobre assuntos que dizem respeito ao seu próprio corpo. As marcas dessa associação são reproduzidas inclusive na linguagem cotidiana em que, com a mesma naturalidade com que se aceita o masculino como sendo o genérico da humanidade, se reproduzem termos e expressões que sexualizam o andar feminino. Como exemplifica Rebecca Solnit: “Among the terms for prostitutes are streetwalkers, woman of the streets woman on the town and public woman (and of course such phrases as public men, man about town and a men of the streets mean very diferente things than do their equivalent atached to women).” [29] (Solnit, 2001: 234) [29] dentre os termos para prostitutas estão andarilhas, mulheres da rua, mulheres da cidade e mulheres públicas (é claro que frases como homem público e homem das ruas tem significados bem diferentes dos seus equivalentes relativos à mulheres).


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De certa forma, o constante assédio que as mulheres experienciam em seus deslocamentos cotidianos funciona como mais um mecanismo de distanciamento delas da esfera pública, exigindo que sempre estejam alertas e temerosas, sendo constantemente lembradas do seu “papel de seres sexuais, disponíveis e acessíveis aos homens” (Solnit, 2001: 240) como um aviso de que elas, não são de fato iguais à eles. Existe realmente uma diferença primordial referente ao tipo de medo que homens e mulheres experimentam ao andar por cidades com altos índices de violência urbana: para homens (principalmente hétero-normativos) o mais comum é o medo da possibilidade de assaltos e agressões de motivação econômica, enquanto que para mulheres, soma-se a esse o medo da violência sexual. A realidade é que a presença feminina no espaço público com frequência se transforma em uma invasão do seu espaço pessoal (e em muitos casos de suas partes íntimas) seja de forma verbal ou física, justamente por causa da conotação sexual que à ela foi imposta. Isso porque, na concepção patriarcal, o deslocamento feminino pelo espaço público é mais comumente entendido como uma performance do que como forma de locomoção (a mulher não anda para chegar à algum lugar ou pela sua própria experiência, mas para se por à vista da plateia masculina) o que a torna aberta e suscetível a qualquer tipo de atenção masculina que possa receber. Por isso não são raros os casos de assédio sexual e estupro (registrados todos os dias na cidade com frequência alarmante) que ocorrem em lugares como ônibus, trens e metrôs, mas que tem a legitimidade da denúncia da vítima questionada simplesmente por atribuir a ela a responsabilidade de se “resguardar” do alcance de possíveis agressores.


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O relato da própria Rebecca Solnit sobre o momento em que se deu conta desse paradigma - quando foi aconselhada por vizinhos a não andar sozinha à noite pelas ruas do bairro de São Francisco para onde tinha acabado se mudar – é esclarecedor nesse sentido: “it was my responsability to control my own and men’s behavior rather than society’s to ensure my freedom. I realized that many women had been so sucessfuly socialized to know their place that they had chosen more conservative lives without realizing why. The very desire to walk alone das been extingueshed in them.” (Solnit, 2001, 241) [30] Contudo, é importante frisar que a questão do conforto da mulher ao caminhar na rua perpassa, mais do que a real condição de segurança dos espaços por ela percorridos, a noção da sensação de segurança que ela tem ao se deslocar por esses lugares. Vários fatores influem nessa percepção: boa iluminação pública, calçadas ativas (sem grandes extensões de muros cegos), térreos vivos abertos para atividades comerciais e culturais, horários estendidos de funcionamento de equipamentos públicos, comércios e transporte (para garantir vida noturna segura) e calçadas mais largas são alguns deles. Mas, principalmente, conforta a sensação de que não se está andando sozinha; de que, por aquele mesmo caminho, por aquelas mesmas situações, também passam centenas de outras mulheres, muitas vezes ignorantes ao fato de que elas compõe uma massa poderosa de andarilhas.

[30] era minha responsabilidade controlar, não só meu próprio comportamento, como também o comportamentos dos homens, ao invés de ser responsabilidade da sociedade assegurar a minha liberdade. Eu percebi que muitas mulheres foram socializadas para ‘saber seu lugar’ com tanto êxito que elas mesmas acabam por escolher vidas mais conservadoras sem entender o motivo. O próprio desejo de caminhar sozinha havia sido extinto nelas


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Diante desse cenário pareceu relevante ao trabalho explorar a exaltação do caminhar feminino através de experimentações psicogeográficas em percursos cotidianos de mulheres e intervenções pontuais na paisagem urbana. o intúito é transmitir uma mensagem empoderadora que contribua para o aumento da sensação de segurança e conclame mulheres a usar o caminhar como uma forma consciente de resistência política.


1. personagens offred e ofglen (da série the handmaid’s tale baseada no livro honônimo de Margareth Atwood) que, sob um regime militarreligioso de extrema direita se veem obrigadas a cumprir o papel de “útero ambulante” gerarando filhos para as famílias dos generais no comando. Na distopia, a sociedade é separada “funções sociais”, as mulheres não tem autonomia sobre suas próprias vidas, relegadas aos trabalhos domésticos, e o estupro é uma condição institucionalizada. Offred sobre o golpe que lhe retirou todos os direitos: “Quando eles massacraram o congresso, nós não acordamos. quando eles culparam o terrorismo e suspenderam a constituiçao, nós tambem não acordamos. eles diziam que seria temporário. nada muda instantaneamente. Numa banheira que vai lentamente esquentando, você é cozinhado vivo sem perceber.” 2. Prostitute in the Streets of Paris, 1960, do fotógrafo Robert Doisneu.




trAjetos Obs: a partir desse momento tomarei a liberdade de usar a primeira pessoa, já que minha experiência pessoal compõe um dos trajetos de experimentação realizados para essa parte do trabalho. Reconhecer a minha condição social privilegiada nesse ponto é importante para frisar que, embora eu faça parte do grupo demográfico genérico “mulheres” (e enfrente os estigmas psico-sociais que disso decorrem), de maneira alguma a minha experiência pessoal pode ser tomada como representativa da população feminina como um todo. Novamente entra em cena a questão das diversas camadas de desigualdades históricas que fazem com que a minha vivência seja completamente diferente da de uma mulher negra, pobre, mãe, gay ou trans por exemplo.


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trajetos

“revolutions are Always politics made bodily, when actions become the usual form of speech” [31] Solnit, 2001: 220

Acabei por trabalhar a psicogeografia situacionista como uma forma de pesquisar as questões de gênero envolvidas no caminhar urbano. Porém, a ideia de fazer isso através de uma longa deriva concreta pela cidade de São Paulo me pareceu um tanto caricata. À mim interessava mais o andar cotidiano, o caminhar rotineiro, aquele que normalmente fazemos (quase que sob um estado de transe) todos os dias de um compromisso ao outro, sempre com um ponto de partida e um de chegada muito bem delimitados. Elegi, por tanto, dois trajetos que compunham o dia a dia de duas mulheres diferentes: O primeiro, meu próprio, consiste de um caminho que faço à pé pelo menos três vezes por semana: da minha casa até uma academia. O segundo, é da Priscila Almeida, também estudante de arquitetura que gentilmente se dispôs à compartilhar comigo o trajeto que faz todos os dias da sua casa em Barueri até a sua faculdade na Mooca.

[31] revoluções são sempre política feita com o corpo quando ações se tornam a forma usual de discurso.



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isadora

Faço esse percurso às segundas, quartas e sextas, em 4 horários diferentes (pela manhã: ida às 8h e volta às 10h. Pela noite: ida às 19h e volta às 21h) Percebi que me sentia mais confortável andando de dia do que de noite, talvez pelo fato do fator luz solar contribuir para aumentar a minha sensação de segurança, mas, para além disso, porque tinha a impressão de que no período da manhã havia mais mulheres andando na rua. Desenvolvi um método para contar quantos homens e quantas mulheres cruzavam meu caminho do começo ao fim do percurso. Com um contador manual em cada mão eu somava, na mão esquerda as mulheres e na direita os homens. Os números eram curiosamente equilibrados nos períodos das 10h e das 19h, mas flutuavam bastante durante a manhã (muito mais mulheres do que homens) e a noite (mais homens que mulheres). Compus um diário de anotações onde escrevia pensamentos, sensações e relatos de momentos interessantes durante o meu percurso. A partir dessas anotações, ilustrei o meu trajeto.


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idade : 24 anos estudante de arquitetura casa

0.72 km 8 min.

academia

horรกrios : 8h 10h 19h 21h


a minha rua tem calçadas largas, é arborizada. à noite a iluminação projeta uma longa sombra à minha frente, assim posso ver se tem alguem andando atrás de mim antes que a pessoa se aproxime demais. alguém desenhou simbolos feministas em algumas lixeiras da rua, logo depois outra pessoa pixou por cima ofensas machistas e frases com agressões sexuais.


na rua Barão da Passagem a calçada é muito estreita, os muros são altos e cegos e não há postes de luz. há uma delegacia de polícia. à noite a frente da DP é mal iluminada. tenho que passar por ali quando tenho que ir à farmácia.


a rua Carlos Weber é tomada por comércio e tem vida noturna agitada. durante a manhã o fluxo de mulheres é intenso: são as empregadas doméstias andando da estação de trem até o miolo do bairro residencial (onde o transporte público não chega por causa do veto da city lapa). um grupo de jovens negros passa por mim rindo, eles vestem o uniforme do SESI, um deles grita para um colega um colega que está do outro lado da rua “vai ficar aí sozinho? cuidado que você toma um enquadro hein? hahaha”. o amigo ri, mas atravessa a rua para se juntar ao grupo.



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priscila

Encontrei com a Priscila na faculdade São Judas Tadeu às18h30. A ideia era acompanhá-la durante o caminho até sua casa em Barueri. Priscila faz esse percurso todos os dias, geralmente às 7h e às 19h, Fizemos o percurso conversando até o terminal de ônibus de Barueri combinando trechos à pé, de ônibus, metrô e de trem. Depois, pedi que ela me mandasse fotos do seu caminho, das coisas para as quais ela geralmente olhava durante seu longo trajeto. À partir das fotos dela, fiz uma montagem para ilustrar a experiência que fizemos juntas.


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idade : 23 anos estudante de arquitetura faculdade

42 km 108 min

horรกrios : 7h 19h

casa


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o parque da Mooca foi fechado pela prefeitura para “lidar com o tráfico na região”. andar ao redor do parque murado demora muito e é perigoso. a opição é pegar um ônibus até a esrtação Bresser Mooca. um colega da Priscila, porém, não se importa de pular o muro e atravessar o parque vazio sozinho.


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na linha vermelha do metrô, trens cheios. o objetivo é ir até a estação Barra Funda, no entanto, se voltarmos uma estação no sentido contrário temos a chance de pegar um vagão mais vazio. da estação Belém até a estação lapa fazemos a viagem sentadas.


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baldiação para CPTM, linha diamante. há menos pessoas no trens. sentamos, são 11 estações até Barueri.


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na estaçã Domingos de Morais os trens são tomados de camelôs vendendo de tudo, desde comida à fones de ouvido e pen drives. os vendedores falam alto. Priscila me conta que na maior parte das vezes não escuta o que eles falam, ja que aproveita o tempo da viagem para ler ou adiantar algum trabalho da faculdade. já na estação Santa Terezinha os camelôs desaparecem. quando faço meu caminho de volta pra casa há guardas do metro monitorando os vagões.


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na estação Barueri. Priscila me conta que por causa do corte dos benefícios do bilhete único, ela não pode pegar o ônibus intermunicipal do terminal até sua casa. a alternativa é pegar um outro ônibus, fora do terminal, na rodovia que separa a cidade de um grande campo militar cercado. as vezes troca de bilhete com o irmão, já que ele usa pouco o transporte público (ele tem um carro) e não se importa de esperar no ponto deserto.


ada Ada significa “aquela que é próspera”. Uma mulher não anda sozinha; junto dela andam centenas de outras mulheres. Junto de todas anda Ada, a protetora das andarilhas. Caminhar é uma das mais universalmente acessíveis formas de expressão É a forma de expressão primordial do direito de ir e vir livremente. Caminhar é, em si, um ato político. Caminhe com Ada.





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A vontade de exaltar o andar da mulher enquanto ferramenta política culminou na criação de um cartaz a ser espalhado pela cidade. Em ressonancia com a prática situacionista de detournnament, a montagem do cartaz foi feita a partir de recortes de figuras femininas publicadas em revistas voltadas para o público masculino (playboy) com o objetivo de resignificar aquelas imagens para que passem a dialogar diretamnete com as mulheres pedestres com uma mensagem conclamatória. 4 variantes possíveis foram elaboradas e é possível acompanhar a aplicação dos cartazes pelas ruas da cidade através da #caminhADA pelo instagram.

CONCLUSÃO A marcação do território urbano por meio dos cartazes, chamando as mulheres para ocuparem o espaço público, é uma forma viável e simples de politizar o caminhar e concientiza-las de que o enfrentamento do medo coloca-as diante do fundamental: se reconhecerem como um grupo que tem direito à cidadania plena. Garantir que elas possam caminhar livremente pela cidade, sem serem molestada apenas por serem mulheres, é um caminho de muitos passos, que tem sido construído à luz de diversas ações de mulheres, tanto teóricas quanto militantes, ao longo da história. Ada pretende mostrar que esse caminho não é solitário. sob seu olhar somos lembradas de toda a luta que foi feita até aqui e que deve continuar sendo feita sem medo.





Anexos


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manifesto internacional situacionista

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declaraçao dos direitos da mulher e da cidadã

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cartas de Abigail e WJohn Adams



manifesto internacional situacionista Publicado na revista Internacional Situacionista 4, 1960

Uma nova força humana, que o status existente não poderá reprimir, cresce a cada dia com o irresistível desenvolvimento técnico e com a insatisfação de sua utilização possível em nossa vida social privada de sentido. A alienação e a opressão na sociedade não podem ser mantidas em nenhuma de suas variantes, mas sim, apenas rejeitadas em bloco com essa mesma sociedade. Todo progresso verdadeiro fica evidentemente suspenso até que a multiforme crise atual encontre uma solução revolucionária. Quais seriam as perspectivas de organização da vida numa sociedade que, de maneira autêntica, “reorganizasse” a produção sobre a base de uma associação livre e igualitária de produtores? A automatização da produção e a socialização dos bens vitais reduzirão cada vez mais o trabalho como necessidade exterior e proporcionarão, finalmente, plena liberdade ao indivíduo. Desse modo, liberto de toda responsabilidade econômica, de todas as suas dívidas e culpas com relação ao passado e ao seu próximo, o homem terá à sua disposição uma nova mais-valia incalculável em dinheiro, pois essa mais-valia não pode ser reduzida à medida do trabalho assalariado: o valor do jogo, da vida livremente construída. O exercício dessa criação lúdica é a garantia da liberdade de cada um e de todos no âmbito da única igualdade garantida com a não-exploração do homem pelo homem. A libertação do jogo é a sua autonomia criativa, que supera a velha divisão entre o trabalho imposto e o ócio passivo. A Igreja queimou, em outras épocas, supostos bruxos para reprimir as tendências lúdicas primitivas conser-

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vadas nas festas populares. Na sociedade dominante de hoje, que produz em massa desconsolados pseudo-jogos de não-participação, uma atividade artística verdadeira é forçosamente classificada no campo da criminalidade. É semiclandestina. Aparece sob a forma de escândalo. O que é isso, na verdade, a não ser a situação? Trata-se da realização de um jogo superior, mais exatamente, da provocação para jogar esse jogo que constitui a presença humana. Os jogadores revolucionários de todos os países podem unir-se à I.S. a fim de começar a sair da pré-história da vida cotidiana. A partir de agora, propomos uma organização autônoma dos produtores da nova cultura, independente das organizações políticas e sindicais existentes no presente momento, pois nós negamos a capacidade de se organizar outra coisa a não ser o acondicionamento do existente. O objetivo mais urgente que estabelecemos para para uma primeira campanha pública dessa organização quando ela sair de sua fase experimental inicial é a tomada da U.N.E.S.C.O. A burocratização unificada, em escala mundial, da arte e de toda a cultura é um fenômeno novo, que expressa o profundo parentesco entre os sistemas sociais coexistentes no mundo, que se baseiam na conservação eclética e na reprodução do passado. A resposta dos artistas revolucionários a essas novas condições deve ser um novo tipo de ação. Como a existência mesma dessa concentração direcionada da cultura, localizada num único edifício, favorece a sua confiscação por meio de um putsch; e como a instituição carece completamente de possibilidades de um uso que tenha sentido fora de nossa perspectiva subversiva, sentimo-nos justificados, diante dos nossos contemporâneos, para nos apoderarmos de um tal aparato. E o faremos. Estamos


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decididos a nos apoderar da U.N.E.S.C.O., ainda que seja por pouco tempo, já que estamos seguros de nela realizar, rapidamente, uma obra que permanecerá como a mais significativa, pelo fato de esclarecer um longo período de reivindicações. Quais deverão ser principais características da nova cultura, principalmente em comparação com a arte antiga? Contra o espetáculo, a cultura situacionista realizada introduz a participação total. Contra a arte conservada, é uma organização do momento vivido diretamente. Contra a arte fragmentária, será uma prática global que conterá, de uma só vez, todos os elementos utilizados. Tenderá naturalmente para uma produção coletiva e, sem dúvida, anônima (na medida em que, ao não armazenar as obras como mercadorias, dita cultura não estará dominada pela necessidade de deixar marcas). Suas experiências se propõem, no mínimo, a realizar uma revolução do comportamento e um urbanismo unitário dinâmico, susceptível de se estender para todo o planeta; e de se propagar, em seguida, para todos os planetas habitáveis. Contra a arte unilateral, a cultura situacionista será uma arte do diálogo, da interação. Os artistas - como toda a cultura visível - chegaram a estar completamente separados da sociedade, assim como estão separados entre si pela concorrência. Porém, inclusive antes que o capitalismo ingressasse nesse pântano, a arte era essencialmente unilateral, sem resposta. Essa era encerrada em seu primitivismo será superada graças a uma comunicação completa.


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Até que todo o mundo chegue a ser artista num plano superior, isto é, inseparavelmente produtor-consumidor de uma criação cultural total, assistiremos à dissolução rápida do critério linear de novidade. Quando todo o mundo for situacionista, por assim dizer, assistiremos a uma inflação multidimensional de tendências, de experiências, de “escolas” radicalmente diferentes, e isso não mais sucessivamente, mas sim, simultaneamente. Inauguramos agora o que será, historicamente, o último dos ofícios. O papel de situacionista, de leigo-profissional, de anti-especialista, é, no entanto, uma especialização até o momento de abundância econômica e mental em que todo o mundo chegará a ser “artista”, num sentido que os artistas não alcançaram: a construção de sua própria vida. Aos que não nos compreenderam bem... dizemos-lhes com um irredutível desprezo: os situacionistas, de quem vocês acreditam ser juízes, os julgarão mais cedo ou mais tarde. Nós os esperamos na mudança de sentido que é a inevitável liquidação do mundo da escassez em todas as suas formas. São esses os nossos objetivos, e serão os futuros objetivos da humanidade. 17 de maio de 1960


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declaração dos direitos da mulher e da cidadã

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A tradução para língua portuguesa deste texto é de Selvino José Assmann, doutor em Filosofia (Pontificia Università Lateranense, PUL, Itália), professor titular em Filosofia da História do Departamento de Filosofia (UFSC), professor do Doutorado Interdisciplinar do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (UFSC).

Para ser decretada pela Assembléia Nacional nas suas ultimas sessões ou na próxima. Preâmbulo As mães, as filhas, as irmãs, representantes da nação, reivindicam constituírem-se em Assembléia Nacional. Considerando que a ignorância, o esquecimento ou o menosprezo dos direitos da mulher são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção no governo, resolveram expor, em uma declaração solene, os direitos naturais inalienáveis e sagrados da mulher. Assim, que esta declaração, constantemente presente a todos os membros do corpo social, lhes lembre sem cessar os seus direitos e os seus deveres; que, sendo mais respeitados, os atos do poder das mulheres e os atos do poder dos homens possam ser a cada instante comparados com o objetivo de toda instituição política; e que as reivindicações das cidadãs, fundamentadas doravante em princípios simples e incontestáveis, sempre respeitem a constituição, os bons costumes e a felicidade de todos. Consequentemente, o sexo superior em beleza e em coragem, em meio aos sofrimentos maternais, reconhece e declara, na presença e sob a proteção do Ser Supremo, os seguintes Direitos da Mulher e da Cidadã.


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Artigo primeiro A Mulher nasce livre e permanece igual ao homem em direitos. As distinções sociais só podem ser fundamentadas no interesse comum. Artigo segundo O objetivo de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis da Mulher e do Homem. Estes direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança, e, sobretudo, a resistência à opressão. Artigo terceiro O princípio de toda soberania reside essencialmente na Nação, que nada mais é que a reunião da mulher e do homem: nenhum corpo, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que não emane expressamente deles. Artigo quarto A liberdade e a justiça consistem em restituir tudo que pertence a outrem. Sendo assim, o exercício dos direitos naturais da mulher não tem outros limites senão a perpétua tirania que o homem lhe impõe; estes limites devem ser reformados pelas leis da natureza e da razão. Artigo quinto As leis da natureza e da razão proíbem todas as ações nocivas à sociedade; tudo que não é defendido por tais leis, sábias e divinas, não pode ser impedido, e ninguém pode ser constrangido a fazer aquilo que elas não ordenam.


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Artigo sexto A lei deve ser a expressão da vontade geral; todas as cidadãs e cidadãos devem colaborar pessoalmente ou por seus representantes, para a sua formação; ela deve ser igual pra todos: todas as cidadãs e todos os cidadãos, sendo iguais frente a ela, devem ser igualmente admitidos a todas as dignidades, postos e empregos públicos, de acordo com sua capacidade, e sem qualquer distinção a não ser por suas virtudes e seus talentos. Artigo sétimo Nenhuma mulher pode ser exceção; ela é acusada, presa e detida nos casos estabelecidos pela lei: as mulheres obedecem, assim como os homens, a esta lei rigorosa. Artigo oitavo A lei só deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias, e ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada anteriormente ao delito e legalmente aplicada às mulheres. Artigo nono Com toda mulher declarada culpada, deve ser exercido todo rigor da lei. Artigo dez Ninguém deve ser molestado por suas opiniões, mesmo que sejam de princípio; a mulher tem o direito de subir ao cadafalso; mas ela deve igualmente ter o direito de subir à tribuna, contanto que suas manifestações não perturbem a ordem pública estabelecida pela lei.


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Artigo onze A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões constitui um dos direitos mais preciosos da mulher, dado que esta liberdade garante a legitimidade dos pais em relação aos filhos. Toda cidadã pode, portanto, dizer livremente: “eu sou a mãe de um filho que lhe pertence”, sem que um preconceito bárbaro a force a esconder a verdade; sob pena de responder pelo abuso dessa liberdade nos casos estabelecidos pela lei. Artigo doze A garantia dos direitos da mulher e da cidadã necessita de uma utilidade maior; tal garantia deve ser instituída para vantagem de todos, e não para a utilidade particular daqueles a quem ela foi confiada. Artigo treze Para a manutenção da força pública, e para os gastos administrativos, as contribuições da mulher e do homem devem ser iguais; ela participa de todos os trabalhos ingratos, de todas as tarefas pesadas; ela deve, por conseguinte, ter a mesma participação da distribuição dos postos, dos empregos, dos cargos, das dignidades e da indústria. Artigo catorze As cidadãs e os cidadãos têm o direito de verificar por eles mesmos ou por seus representantes a necessidade da contribuição pública. As cidadãs só podem aderir a ela através de uma partilha igual, não apenas nos bens, mas também na administração pública, determinando a quota, o tributável, a cobrança e a duração do imposto.


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Artigo quinze O conjunto das mulheres, igualada aos homens na contribuição, tem o direito de pedir contas de sua administração a qualquer agente público. Artigo dezesseis Toda sociedade em que a garantia dos direitos não é assegurada, nem é determinada a separação dos poderes, não tem Constituição; a Constituição é nula se a maioria dos indivíduos que compõem a nação não contribuiu para a sua redação. Artigo dezessete As propriedades pertencem em conjunto ou separadamente a todos os sexos; para cada um, elas constituem um direito, enquanto a necessidade pública, legalmente constatada, evidentemente não o exigir, sob a condição de uma justa e prévia indenização. Pós-âmbulo Mulher, acorda! A força da razão faz-se ouvir em todo o universo: reconhece teus direitos. O poderoso império da natureza já não está limitado por preconceitos, superstição e mentiras. A bandeira da verdade dissipou todas as nuvens da parvoíce e da usurpação. O homem escravo multiplicou suas forças, precisou recorrer às tuas (forças) para romper seus grilhões. Tornado livre, ele fez-se injusto em relação à sua companheira. Mulheres! Mulheres, quando deixareis de ser cegas? Quais são as vantagens que obtivestes na Revolução? Um


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menosprezo mais marcado, um desdém mais perceptível. Durante os séculos de corrupção vós só conseguistes reinar sobre a fraqueza dos homens. Vosso império esta destruído; o que vos sobra? A convicção das injustiças do homem. A reivindicação de vosso patrimônio, fundada sobre os sábios decretos da natureza: o que teríeis a temer por uma empresa tão bela? A boa palavra do Legislador das núpcias de Caná? Temei que nossos Legisladores franceses, corretores desta moral, há muito pendurada nos galhos da política, mas que não é mais oportuna, vos repitam: mulheres, o que há de comum entre vós e nós? Tudo, tereis de responder. Se eles se obstinam, em sua fraqueza, em pôr esta inconseqüência em contradição com os seus princípios, oponde corajosamente a força da razão às vãs pretensões de superioridade; reuni-vos sob os estandartes da filosofia; empenhai toda a energia do vosso caráter, e vereis logo estes orgulhosos se transformando, não em servis adoradores rastejando a vossos pés, mas em orgulhosos por compartilharem convosco os tesouros do Ser Supremo. Quaisquer que sejam as barreiras que se vos possam opor, está em vossas mãos superá-las; basta que o queirais. Tenhamos agora em conta o pavoroso quadro do que vós fostes na sociedade; dado que, neste momento, se trata de uma educação nacional, estejamos atentos para que nossos sábios Legisladores pensem sãmente sobre a educação das mulheres. As mulheres fizeram mais mal que bem. A coação e a dissimulação foram seu quinhão. O que a força lhes havia arrebatado, a astúcia lhes devolveu; elas apelaram para todos os recursos de seu charme, e o mais irrepreensível não lhe conseguia resistir. O veneno, o ferro, tudo lhe era submetido. Elas mandavam no crime assim como na virtude. O governo francês, sobretudo, dependeu, durante séculos, da administração noturna das mulheres; o gabinete nada conseguia manter em segredo para sua indiscrição: embaixada, comando, ministério, presidência,


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pontificado, cardinalato; enfim, tudo que caracteriza a parvoíce dos homens, profana e sagrada, tudo foi submetido à cupidez e à ambição deste sexo outrora desprezível e respeitado, e depois da revolução respeitável e desprezado.

Referência: GOUGES, Olympe de. Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne. In: Bibliothèque Jeanne Hersch. Textes fondateurs. Disponível em: «http://www.aidh.org/Biblio/Text_fondat/FR_03.htm» Acesso em 11 fev 2007


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Transcrição de trecho da carta de John Adams: “As to your extraordinary Code of Laws, I cannot but laugh. We have been told that our Struggle has loosened the bands of Government every where. That Children and Apprentices were disobedient-that schools and Colledges were grown turbulent -that Indians slighted their Guardians and Negroes grew insolent to their Masters. But your Letter was the first Intimation that another Tribe more numerous and powerfull than all the rest were grown discontented. This is rather too coarse a Compliment but you are so saucy, I wont blot it out. Depend upon it, We know better than to repeal our Masculine systems. Altho they are in full Force, you know they are little more than Theory. We dare not exert our Power in its full Latitude. We are obliged to go fair, and softly, and in Practice you know We are the subjects. We have only the Name of Masters, and rather than give up this, which would compleatly subject Us to the Despotism of the Peticoat, I hope General Washington, and all our brave Heroes would fight.” Tradução de trecho da carta: Quanto ao seu extraordinário código de leis, eu só posso rir. Nossa luta, na verdade afrouxou os laços de autoridade em todo o país. Crianças e aprendizes desobedecem, escolas e universidades se rebelam, índios afrontam seus guardiões e negros se tornam insolentes com seus senhores. Mas a sua carta é a primeira intimação de uma tribo, mais numerosa e poderosa do que todos estes descontentes [...] Esteja certa, nós somos suficientemente lúcidos para não abrir mão do nosso sistema masculino.”


carta de John Adams

para Abigail Adams, 14 de abril de 1776

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transcrição carta de Abigail Adams

para Marcy Otis Warren, 27 de abril de 1776

He is very saucy to me in return for a List of Female Grievances which I transmitted to him. I think I will get you to join me in a petition to Congress. I thought it was very probable our wise Statesmen would erect a New Government and form a new code of Laws. I ventured to speak a word on behalf of our Sex, who are rather hardly dealte with by the Laws of England which gives such unlimited power to the Husband to use his wife Ill. I requested that our Legislators would consider our case and as all Men of Delicacy and Sentiment are adverse to Exercising the power they possess, yet as there is a natural propensity in Human Nature to domination, I thought the most generous plan was to put it out of the power of the Arbitrary and tyranick to injure us with impunity by Establishing some Laws in favour upon just and Liberal principals. I believe I even threatened fomenting a Rebellion in case we were not considered and assured him we would not hold ourselves bound by any Laws in which we had neither a voice nor representation. In return he tells me he cannot but Laugh at my extraordinary Code of Laws. That he had heard their Struggle had loosened the bands of Government, that children and apprentices were disobedient, that Schools and Colleges had grown turbulent, that Indians slighted their Guardians, and Negroes grew insolent to their Masters. But my Letter was the first intimation that another Tribe more numerous and powerful than all the rest were grown discontented. This is rather too coarse a complement, he adds, but that I am so saucy he wont blot it out. So I have helped the Sex abundantly, but I will tell him I have only been making trial of the Disinterestedness of his Virtue, and when weigh’d in the balance have found it wanting. It would be bad policy to grant us greater power say they since under all the disadvantages we Labour we have the ascendency over their Hearts. Abigail Adams to Mercy Otis Warren, April 27, 1776


transcrição carta de Abigail Adams

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para John Adams, 7 de maio de 1776

I can not say that I think you very generous to the Ladies, for whilst you are proclaiming peace and good will to men, Emancipating all Nations, you insist upon retaining an absolute power over Wives. But you must remember that Arbitrary power is like most other things which are very hard, very liable to be broken and notwithstanding all your wise Laws and Maxims we have it in our power not only to free our selves but to subdue our Masters, and without violence throw both your natural and legal authority at our feet. Abigail Adams to John Adams, May 7, 1776


biblio grAfiA


121

BAUM, Kelly. The Sex of the Situationist International, October Magazine nº126

October Magazine Ltd. And Massachusetts Institute of Technology (MIT), 2008 Disponível em: http://www.mitpressjournals.org/doi/ abs/10.1162/octo.2008.126.1.23?journalCode=octo

BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e Política, editora Boitempo, 2014 DAMPSEY, Amy. Estilos, Escolas e Movimentos: guia enciclopédico da arte moderna, editora Cosac Naify, 2011 DEBORD, Guy. Teoria da Deriva, revista Internacional Situacionista nº2, 1958 DEBORD, Guy. Manifesto Internacional Situacionista, revista Internacional Situacionista nº4, 1960 MOURA, Samantha Nagle Cunha. A Separação entre Esfera Pública e Privada: um confronto entre John Locke, Jean-Jaques Rousseau e Carole Pateman, disponível em Revista Gênero e Direito nº1, 2014. PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual, editora Paz e Terra, 1993 SOLNIT, Rebecca. Wanderlust: a history of walking, editora Penguin Books, 2001


122

bibliografia complementar BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Liquida, editora Zahar, 2001 HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos: o breve século XX, editora Cia das Letras, 1995 LEFEBVRE, Henri. O Direito a Cidade, editora Centauro, 2001 PIERUCCI, Antônio Flávio. O Desencantamento do Mundo: todos os passos do conceito de Max Weber, editora 34, 2013 GOUGES, Olympe de. Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne. Bibliothèque Jeanne Hersch, Textes fondateur, 1791 disponível em:http://www.aidh.org/Biblio/Text_fondat/FR_03. htm» Acesso em 11 fev 2007



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