A arte da gentileza

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EMPATIA

Expansão da consciência

MESMO NÃO SENDO MÚSICO, uma vez tive a oportunidade de ter nas mãos um soberbo violino que datava do século XVIII. O que mais me impressionou, ainda mais do que suas linhas harmoniosas ou a beleza dos veios de sua madeira, foi que, ao segurá-lo, era possível senti-lo vibrar. Não se tratava absolutamente de um objeto inerte. Ele respondia às diversas vibrações que porventura fossem produzidas ao redor: outro violino, um bonde passando na rua, a voz de alguém. Se pegarmos um violino comum, feito em série, isso simplesmente não acontece. Pode soar qualquer som ao redor, e o instrumento permanecerá indiferente. Para obter a sensibilidade extrema e a ressonância extraordinária do antigo violino, os luthiers tiveram de lançar mão de um excepcional conhecimento da madeira e da sua maturação exata. Eles se apoiaram na tradição artística e no ofício de gerações sem conta, dotados do talento necessário para o corte preciso da madeira e o acabamento refinado do instrumento. Essa maravilhosa capacidade de responder aos estímulos externos não é em nada passiva — trata-se de uma virtude ativa. É a capacidade que o violino tem de entrar em ressonância, paralela à sua capacidade de produzir um som de extraordinária qualidade — uma música com alma, capaz de comover e inspirar.

Nós, seres humanos, somos — ou pelo menos podemos ser — como esse violino. Desde o berço somos capazes de entrar em ressonância com outras pessoas. Os recém-nascidos choram quando ouvem outro bebê chorando. Pouco a pouco, a empatia, que a princípio não passa de uma simples capacidade instintiva de entrar em ressonância, se desenvolve e se toma a capacidade de compreender os sentimentos e o ponto de vista dos outros: a capacidade de nos identificarmos com nosso semelhante.

Mas se essa capacidade não se desenvolver suficientemente ou for abafada, passaremos por sérias dificuldades. Se formos insensíveis às emoções alheias, cada relacionamento se tornará uma charada indecifrável. E se virmos as pessoas não como pessoas, mas como coisas, como uma geladeira ou um poste, seremos capazes de manipulá-las e até de desrespeitá-las. Mas quando, pelo contrário, a empatia se desenvolve plenamente, nossa existência se torna incomensuravelmente mais rica. Tornamo-nos capazes de sair de dentro de nós mesmos e de entrar nas pessoas. Os relacionamentos, então, tornam-se fonte de interesse e de estímulo emocional e espiritual.

Ferrucci, Piero. A arte da gentileza. Alegro. 2004. p. 90‐100.


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Por mais rico e vasto que seja nosso mundo interior, ele ainda é um sistema fechado, para todos os efeitos bem delimitado e contido. Nossos pensamentos, preocupações e desejos: tudo se limita a isso? Às vezes, é o que parece. Mas sair desse mundo e penetrar em outros — nas paixões, medos, esperanças e sofrimentos de outros seres humanos — assemelha-se a uma viagem interplanetária, apesar de constituir proeza muito mais simples. Se nos fechamos para os outros, ficamos fora de equilíbrio, enquanto participar de suas vidas nos ajuda a ficar mais saudáveis e felizes. O excesso de foco em si mesmo está correlacionado com o aumento da depressão e da ansiedade. Sabemos com certeza o seguinte: as pessoas que se preocupam mais consigo mesmas e menos com as outras têm maior propensão a se sentir temerosas ou insatisfeitas.

A empatia foi sempre necessária à nossa sobrevivência desde os tempos pré-históricos: os seres humanos só se desenvolvem plenamente em comunidade. E isso é impossível se eles não puderem ler as emoções e intenções de seus semelhantes. Nas pequenas e corriqueiras questões do dia-a-dia também vale o mesmo princípio: alguém que tenta furar a fila, ou joga lixo na rua, ou faz barulho quando há gente querendo dormir, só faz isso porque é incapaz de conceber a reação dos outros. A empatia é um pré-requisito da comunicação, da colaboração e da coesão social. Sem ela, voltamos à barbárie — ou deixamos de existir.

A empatia é a melhor forma de melhorar qualquer relacionamento. Alguma vez você já assistiu a uma discussão em que nenhuma das partes demonstrou a menor intenção ou capacidade de ver as coisas do ponto de vista do outro? Que coisa dolorosa. E no entanto, isso acontece, e podemos vê-lo diariamente no campo das relações internacionais. A empatia é a coisa que mais falta, e a que mais ajudaria a resolver antiquíssimos e perigosos preconceitos e problemas raciais. É por isso que ela é tão importante hoje em dia.

Devido à crescente mobilidade de um número cada vez maior de pessoas, vemo-nos cada vez mais cara a cara com indivíduos pertencentes a outras culturas. Eles cresceram em ambientes totalmente diferentes do nosso. Têm outra religião, aparência física diferente. Seus costumes, comidas, roupas, seu modo de ver a sexualidade, de lidar com o tempo, suas regras de etiqueta e sua concepção de dever, de trabalho e de dinheiro — praticamente tudo — é diferente. Nossa primeira reação não raro é a desconfiança. Já foi demonstrado que o preconceito racial tem raízes profundas, e que a desconfiança não é um sentimento racional, mas baseado numa reação

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emocional imediata que está fora do nosso controle. Sendo assim, até mesmo aqueles que afirmam não ter preconceitos na verdade os têm.

Treinar a empatia é talvez uma das necessidades mais urgentes de nossos programas educacionais, em todos os níveis. Yehudi Menuhin, o grande violinista, certa vez declarou algo extraordinário numa entre vista: se a juventude alemã tivesse aprendido a admirar não apenas a música de Beethoven, mas também a cantar e a dançar a música tradicional judaica, o Holocausto não teria acontecido.

Mas a empatia não se limita a resolver problemas; ela faz com que nos sintamos melhor. Estudos demonstraram que as pessoas mais capazes de exercer a empatia são também mais realizadas, mais saudáveis, menos dogmáticas e mais criativas. Apesar de todas essas vantagens, a empatia suscita uma boa dose de resistência. A disposição de se identificar com o semelhante para compreendê-lo é vista por alguns como uma fraqueza. Não obstante, essa é a melhor solução para todos. No momento em que alguém se sente compreendido, e percebe que estamos reconhecendo a validade de seu ponto de vista e a legitimidade de suas reivindicações, essa pessoa muda. Desse modo, pode-se evitar incontáveis complicações.

Algum tempo atrás, tive de frear bruscamente para não atropelar uma criança que atravessou a rua correndo. O carro que vinha atrás de mim não conseguiu parar a tempo de evitar a colisão. Quando saímos do carro e nos aproximamos, eu vi que ele estava pronto para a briga. Mesmo antes de ter proferido palavra, pude perceber que estava em modo de emergência. Mas nem o carro dele nem o meu havia sofrido qualquer dano. Então, fui o primeiro a falar. Eu poderia ter dito: "Eu estou certo". Isso era verdade, mas inútil, quando não danoso. Então, o que eu disse foi: "Eu estava indo rápido e freei de repente. Você não podia adivinhar. Desculpe. Você está bem?". Na mesma hora o sujeito mudou. Cada linha de seu rosto se alterou quase imperceptivelmente. Numa fração de segundo, ele baixou a guarda. Sim, estava bem. Vi a surpresa em seus olhos: seu oponente estava interessado no que ele estava sentindo. Depois disso, vi alívio: não havia motivo para brigar. Finalmente, ele simplesmente apertou minha mão e foi embora. Admito que se meu carro tivesse sofrido algum dano meu nível empático poderia estar bem mais baixo. Seja como for, o que poderia ter se transformado numa discussão cheia de raiva e descontrole foi resolvido em questão de segundos.

Ou seja, a empatia é um meio que temos ao nosso dispor de trazer alívio e satisfação a nossos semelhantes. Não é coincidência que, de acordo com muitos psicoterapeutas, a empatia seja um

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ingrediente essencial para o sucesso do relacionamento terapêutico. Pessoas com problemas não precisam de diagnósticos, aconselhamento, interpretações, manipulações. Elas precisam de total e completa empatia. Quando elas finalmente sentem que alguém compreende aquilo por que estão passando, naquele momento se tornam capazes de se libertar de seu sofrimento, e se curam.

Algo parecido acontece no campo da medicina. Já foi demonstrado que quanto mais empático um médico se mostrar, mais seus pacientes o considerarão competente. Infelizmente, também já foi demonstrado que estudantes de medicina têm maior capacidade empática no início de sua residência do que no final. Não deveríamos esperar um pouco mais de preparo nesse aspecto para uma profissão cujo objetivo é ajudar as pessoas?

Por outro lado, quando alguma coisa é exagerada, mesmo sendo boa, estraga. Podemos facilmente ter uma overdose de empatia. Podemos ouvir os problemas e as angústias das outras pessoas e nos identificar tão completamente que acabamos exauridos, arrasados, talvez até furiosos. Podemos perder nosso centro. Vou lhes contar uma história curiosa. Já no final da vida, minha mãe, ainda com boa saúde, algumas vezes sofria um lapso mental. Um dia, ela me disse que, ao dirigir, às vezes punha-se de tal forma no lugar das outras pessoas que, quando o sinal fechava para ela, pensava: "Está verde para elas", e então, colocando-se no lugar delas, avançava o sinal vermelho. Ela só percebia o que tinha feito depois de ter avançado diversos sinais vermelhos e de ter se surpreendido com a indignação de outros motoristas. Essa história é simbólica. Empatia cega é um perigo. Temos primeiro de ter certeza de estarmos sintonizados com nós mesmos e com nossas próprias necessidades, senhores de nosso próprio tempo e espaço. Temos de ter nossa própria vida sob controle antes de tentarmos resolver o problema dos outros. Do contrário, corremos o risco de sofrer algum acidente.

A empatia é um dos ingredientes da inteligência emocional sem o qual não é possível viver efetiva e plenamente. Uma boa capacidade empática significa vantagens na escola, na busca de um emprego, na conquista de relacionamentos satisfatórios e na comunicação com as crianças. Imaginemos um publicitário incapaz de prever a reação das pessoas, um músico sem qualquer identificação com sua plateia, um professor incapaz de entender seus alunos ou um pai indiferente ao que seus filhos estão passando. Como eles vão enfrentar essas situações?

Um aspecto revelador da empatia, um verdadeiro teste, é quando nos alegramos com o sucesso alheio — uma virtude que os budistas chamam de mudita. Digamos que um amigo seu conheça

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repentinamente o sucesso, ou o filho dele mostre talentos que seus filhos nem sonham ter, ou, ainda, esteja vivendo uma nova e intensa relação, do tipo que você sempre desejou. Qual é a sua reação? Você fica feliz por ele? Ou disfarça um íntimo desconforto porque não aconteceu com você? Fica fazendo comparações ou imaginando por que você não teve a mesma sorte, ou sente inveja? O contentamento empático pelo sucesso alheio é raro, a não ser talvez aquele que sentimos por nossos filhos, que percebemos como continuações de nós mesmos. Não é fácil nos sentirmos incondicionalmente contentes pela alegria concedida a outra pessoa e negada a nós. Se conseguimos isso, quer dizer que percorremos um longo caminho.

Mas a empatia não é uma qualidade meramente festiva e livre de preocupações. Pelo contrário; ela tem mais a ver com o fracasso do que com o sucesso; mais de sofrimento do que de alegria. É exatamente quando as coisas estão indo mal que a empatia é benéfica. Sem dúvida, ficamos satisfeitos quando alguém compartilha de nossos momentos felizes. Mas é quando estamos sofrendo que precisamos de alguém que nos compreenda.

Para que a empatia seja plena e verdadeira, a pessoa que a sente precisa ter uma relação saudável com o próprio sofrimento e com o de seus semelhantes. O sofrimento é, por definição, aquilo que mais abominamos. Se pudermos, fugiremos dele. Evitar o sofrimento é na verdade o fundamento da saúde, e reduzi-lo ao mínimo é sinal de sabedoria. Mas uma certa dose de sofrimento é inevitável na vida. Todos somos frágeis. Mais cedo ou mais tarde, todos ficamos doentes, todos cometemos erros, todos fracassamos, nos decepcionamos com o que a vida nos reserva, perdemos uma pessoa amada. Todos sofremos. E temos de aceitar esse sofrimento.

Como você enfrenta o sofrimento? Não é fácil. Alguns fingem não senti-lo, sorrindo sem parar: "Não foi nada". Alguns se orgulham dele: "Minha enxaqueca é mais forte que a sua". Alguns gostam de ostentá-lo, descrevendo suas dores em detalhes: "Vou te contar como foi fazer cada uma dessas obturações". Alguns culpam Deus ou o destino, acreditando-se alvo da ira divina ou da adversidade: "Isso sempre acontece comigo!". E alguns não param de reclamar, mesmo quando a dor já passou — e não só quanto às dores sofridas, mas também àquelas que ainda podem vir a sofrer, como se não quisessem ser pegos de surpresa. Alguns lutam o tempo inteiro, tenham ou não motivo para isso. E, finalmente, alguns simplesmente se deixam ficar desesperançados e deprimidos, e renunciam à vida: "Para mim, acabou".

Tudo isso são formas ineficazes de lidar com o sofrimento. Elas podem talvez nos dar alguma ilusão de consolo, mas, basicamente, apenas perpetuam ou aumentam o sofrimento, ao invés de

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eliminá-lo. A melhor forma de enfrentar o sofrimento é diretamente, com sinceridade e coragem. Para entrar nele, como num túnel, e sair do outro lado.

O mito de Quíron tem muito a nos ensinar sobre essa atitude. Quíron nasceu de um estupro: seu pai, Cronos, o rei dos deuses, transformou-se em cavalo para perseguir uma mulher, alcançou-a e estuprou-a. O filho que nasce é monstruoso — metade cavalo, metade homem — e é imediatamente rejeitado por sua mãe. Assim, Quíron nasce cercado pela desonra e pelo sofrimento. De início, ele procura negar a terrível verdade. Com a ajuda de Apolo, passa a cultivar tudo o que é nobre e inteligente — o lado humano. Torna-se especialista na arte da medicina, das ervas, da astrologia, do arco e flecha. Sua fama se espalha de tal forma que os reis o querem como tutor de seus filhos e filhas. Mas, um dia, Quíron é acidentalmente ferido no joelho por uma seta envenenada. Se fosse um simples mortal, teria morrido, mas é filho de um deus, e, portanto, imortal. Só lhe resta sofrer.

Ele sofre em silêncio: sua capacidade de locomoção está comprometida e ele se torna dependente de sua filha. A seta o atingiu na parte posterior do corpo, a parte em forma de animal, da qual ele se envergonha e a qual tenta o máximo possível esquecer, uma vez que ela lhe traz a lembrança da dolorosa rejeição sofrida. Nesse estado, Quíron não pode se tornar instrutor de reis, mas apenas ajudar os pobres e sofredores. Ele se dedica a essa tarefa com extraordinária competência. Por mais que tente aliviar o próprio sofrimento, não consegue. Mas com seu conhecimento, sensibilidade e capacidade empática, adquirida por intermédio do sofrimento, ele é bem-sucedido em aplacar o sofrimento dos outros. Ele se transformou no médico ferido.

A certa altura, Quíron fica sabendo que sua dor terminará se ele renunciar à imortalidade. Ele deve abrir mão do último de seus privilégios. Decidido a fazer isso, ele empreende uma descida de nove dias ao submundo. Finalmente, Júpiter o eleva até os céus, transformando-o na constelação que ainda podemos ver nas noites claras de verão. Por fim, ele encontrou a paz e a união com o Cosmos que sempre buscara.

Quíron não é um herói viril como Aquiles ou Hércules. É um anti-herói. Ele vence por causa, e não apesar, de sua fragilidade. Ele se torna empático e passa a curar as pessoas somente quando não tenta mais afirmar a todo custo seu talento e inteligência. Ele conquista a suprema realização, a união com o Todo, somente quando, em lugar de combater a dor, ele a aceita.

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Aqueles que têm uma relação conturbada com a dor possuem baixa capacidade de sentir empatia. Se eu negar meu sofrimento, será difícil para mim me identificar com o sofrimento dos outros. Se eu me gabo do meu sofrimento, verei os outros como concorrentes e provavelmente não serei sensível a seus problemas. O sofrimento próprio é a base da empatia.

Naturalmente, nossa empatia é maior para com aqueles cujo sofrimento é semelhante ao nosso. Alguém que foi maltratado quando criança será capaz de entender outra pessoa com o mesmo tipo de trauma. A vítima de um acidente de carro, ou de abuso sexual, ou alguém que foi à falência, ou que perdeu um filho, pode entender melhor outras pessoas vivendo tragédias semelhantes. E pode ajudá-las também da melhor forma. Com efeito, o tipo de trauma sofrido se transforma no gênero de serviço prestado.

Essa é a forma mais difícil e dolorosa de desenvolver empatia. É uma forma que não desejo a ninguém, mesmo sabendo que, de algum modo, é o destino de todos. O sofrimento, em doses diversas, acompanha toda a vida. Mas nem todos os seus efeitos são trágicos. Quando enfrentado com honestidade, o sofrimento pode render frutos de imenso valor. Ele vai fundo dentro de nós, nos abre, às vezes violentamente, nos faz amadurecer, nos faz descobrir emoções e recursos dos quais não tínhamos ideia, desenvolve nossa sensibilidade, e talvez nossa humildade e sensatez. Trata-se de um duro lembrete daquilo que é essencial. Ele pode nos ligar a nossos semelhantes. Sim, é verdade que o sofrimento é capaz de nos endurecer ou de nos deixar mais céticos, mas ele também pode nos tornar mais gentis.

Felizmente, existem outras formas além da dor para se desenvolver a empatia. O estudo e a prática das belas-artes — literatura, pintura, e, acima de tudo, dança — sem dúvida incluem entre seus benefícios uma maior capacidade para sentir empatia. Mas o método mais fácil e mais direto consiste em nos colocarmos no lugar de outra pessoa. A primeira pessoa a adotar essa técnica foi Laura Huxley em seu livro You Are Not the Target. Ela fez assim: depois de termos tido problemas com alguém importante em nossa vida, tal como uma discussão com nosso marido ou esposa, podemos relembrar o episódio nos identificando com o outro lado. Se conseguirmos isso, poderemos ver o mundo, incluindo a nós mesmos, de um ponto de vista diferente, e surpreendente. Já vi pessoas que fizeram esse exercício conseguirem coisas extraordinárias. Elas se deram conta de que nunca haviam efetivamente conhecido o outro.

Uma vez, eu me encontrava no gabinete de Laura Huxley e o aparelho de som estava tocando uma música magnífica, um dos concertos para piano de Mozart. Na sala ao lado, Laura estava

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fazendo ligações para ajudar uma jovem tailandesa grávida que havia chegado recentemente aos Estados Unidos. Eu podia ouvir a voz de Laura ao telefone, e, apesar de não poder identificar as palavras, eu sabia sobre o que ela estava falando. Percebi em sua voz a preocupação por aquela menina, o desejo de ajudá-la. Normalmente, prefiro ouvir música sem a interferência de outros sons. Mas, dessa vez, as palavras de Laura se misturavam magicamente à música de Mozart. Eu sentia que Laura havia se colocado no lugar da jovem tailandesa e compreendia como ela estava se sentindo desprotegida, quão sozinha e desesperada estava num país estrangeiro, e, como se não fosse o bastante, ainda por cima esperando um filho. A voz de Laura se tornou parte da música de Mozart; era como se a música estivesse me ajudando a conhecer a beleza da solidariedade, e a voz em busca de auxílio estivesse me ajudando a compreender a enorme riqueza da música de Mozart. Naquele momento, eu compreendi o significado da compaixão: participar do sofrimento de outros seres humanos com identificação intensa e sincera.

As crianças são capazes de sentir compaixão intensa e imediata, talvez até mais fortemente do que os adultos. Nós, adultos, já passamos por muita coisa e temos nossas defesas. Quando passamos por um bêbado dormindo na rua, ou por uma velha mendiga, talvez sequer os notemos. Mas as crianças não estão protegidas das mazelas e do sofrimento do mundo. Lembrome de quando meu filho Jonathan tinha quatro ou cinco anos e viu, pela primeira vez, um semteto: um farrapo humano, como se vê tantos nas grandes cidades. Para nós, isso é normal: estamos acostumados. Mas não para uma criança. Jonathan olhou para aquele homem coberto de farrapos, cabelo comprido e desgrenhado, o rosto amargo, murmurando qualquer coisa e revirando o lixo. Primeiro, o rosto de Jonathan mostrou perplexidade; depois, uma expressão de infinita piedade, misturada com indignação: como uma situação tão abjeta poderia existir? De outra vez, Jonathan viu uma senhora decrépita, curvada e doente, subindo uma escadaria, cada degrau custando um enorme esforço. Naquele momento, Jonathan descobriu que o sofrimento da velhice faz parte da vida. Eu não sei o que ele estava pensando naquela hora, mas sei que seu coração estava doído, que ele estava sentindo compaixão. Às vezes, é preciso ser criança para redescobrir nossos sentimentos.

A compaixão é o resultado final e mais nobre da empatia. É uma virtude espiritual, porque nos retira de nosso egoísmo e ganância. Ela inclui a todos, até mesmo os menos capazes, os menos agradáveis, os menos inteligentes. Ela nos deixa abertos e nos une a nossos semelhantes. Ela preenche nosso coração.

Ferrucci, Piero. A arte da gentileza. Alegro. 2004. p. 90‐100.


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Mas poderíamos definir a compaixão de outra forma: relacionamento em sua forma mais pura. Não é raro que, em nossos relacionamentos, o ato de julgar reine soberano. Nós gostamos de julgar: faz com que nos sintamos superiores. Ou talvez reste uma dívida antiga, ou um desejo de vingança (prato que podemos saborear, mas não digerir). Talvez nosso mal seja a competitividade, ou então o impulso de dar conselhos, ou ainda o gosto por fazer comparações indevidas. Ou talvez vejamos o próximo como um meio para atingir um fim. Tudo isso são interferências que prejudicam e distorcem os relacionamentos.

Agora, imaginemos um relacionamento, qualquer relacionamento, em seu estado puro. Vamos imaginar que ele esteja livre de julgamento, de malícia, de comparações etc. Estamos diante do outro sem véu nem defesa. Tornamo-nos imediatamente aptos a entrar em ressonância. Libertados do fardo, sentimo-nos mais leves. Esquecemos nossa pressa. Estamos livres. Então a empatia é possível. Assim como o conhecimento. Se eu e você estamos abertos um ao outro, sem barreiras entre nós, então eu sinto o que você sente, e vice-versa. Eu me sinto compreendido por você e você por mim. Se você está sofrendo, eu quero que seu sofrimento termine, e se eu estou sofrendo, eu sei que você vai me oferecer o seu apoio. Se você está feliz, eu também estou, e se as coisas estão indo bem para mim, eu sei que você também ficará satisfeito.

E talvez não precisemos de mais nada.

Ferrucci, Piero. A arte da gentileza. Alegro. 2004. p. 90‐100.


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