Corpo Vidente, Corpo Visível (Fotografia, 2013)

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Fundação Armando Alvares Penteado PÓS-GRADUAÇÃO EM FOTOGRAFIA

Corpo Vidente, Corpo Visível: os olhares nos espaços expositivos.

Isis Ferreira Gasparini

São Paulo 2013


Corpo Vidente, Corpo Visível: os olhares nos espaços expositivos. Isis Gasparini

Monografia apresentada à FAAP Pós-Graduação, como parte dos requisitos para a aprovação no Curso de Pós-Graduação Lato-Sensu em Fotografia

Área de concentração: Artes Visuais (Fotografia)

São Paulo 2013


Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.


Gasparini, Isis Itinerário. Caminho Percorrido. Em torno do olhar: o espaço do museu. Reciprocidade em Merleau-Ponty. A dupla distância em Didi-Huberman. Corpo vidente, corpo visível: pensar com as imagens. Chegar ao próximo começo. Corpo vidente, corpo visível: os olhares nos espaços expositivos / Isis Gasparini. São Paulo, 2013. 108 p. Monografia (Pós-Graduação) – Lato-Sensu em Fotografia, Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP, 2013. 1. Olhar, 2. Espaço Expositivo, 3. Merleau-Ponty, 4. Didi-Huberman



Aos que se tornaram alicerces diante de tanta reconstrução


Agradecimento


__Tania Ferreira e Eneida de Oliveira, pelo companheirismo e incentivo constantes. __Igor Gasparini e Frank Tavanti, por tanta cumplicidade. __Rogério Gasparini, pelo suporte e confiança. __Jéssica Alonso, amiga para todas as horas e de tantas boas histórias. __Chris Azevedo, amigo com quem compartilhei outros tantos bons momentos neste retorno à FAAP. __Ateliê APipa, pelo espaço e oportunidade para desenvolver meu trabalho. __Lívia Aquino, Rubens Fernandes Junior, Geórgia Quintas e demais professores do curso, por terem sido atenciosos e oferecido contribuições precisas. __Pio Figueiroa e Carol Lopes, pelas trocas generosas e pelo direcionamento precioso a esta pesquisa. Cia de Foto, pelo acolhimento. __A querida Angélica Del Neri, pela gentileza e carinho em momentos tão importantes. __Marcelo Costa, Marcelo Paciornik e Sabrina Meira, parceiros de tantos trabalhos, mas sobretudo amigos. __Os amigos da Turma II, um presente que tornou mais prazeroso este percurso, e que quero guardar comigo. __Ronaldo Entler, por cada gesto singular na sutileza em descobrir comigo um olharoutro.



“No olhar se acha implícita a espera de ser recompensado por aquilo em direção ao qual se dirige” Walter Benjamin

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Resumo


Este trabalho reflete sobre a complexidade que o olhar assume nos espaços expositivos, sobretudo nos museus de arte. Mais pontualmente, busca destacar dessa relação uma experiência de reciprocidade, em que o espectador é também observado pela obra de arte. Para tanto, apoio-me nas teorias de Maurice Merleau-Ponty sobre a dissolução dos limites que separam sujeito e objeto e, portanto, a consciência que percebe e o objeto percebido. Também recorro a Georges Didi-Huberman, que demonstra haver na imagem uma dimensão que, sendo inapreensível pelo olhar, faz com o espectador se sinta visado por aquilo que ele vê. Paralelamente a essas reflexões, retorno a um acervo pessoal de imagens produzidas em espaços expositivos, buscando situações em que espectadores e retratos assumem posições intercambiáveis ou parecem se mimetizar uns aos outros. Por meio da manipulação da luz, busco alterar a leitura da perspectiva desses espaços, tornando ainda mais ambíguo o papel e o lugar ocupado por esses personagens. Tanto as reflexões teóricas quanto as imagens que compõem a série Corpo vidente, corpo visível são aqui tomadas como etapas que se contaminam dentro de um mesmo processo de pesquisa em artes.

Palavras-chave: olhar; espaço expositivo; Maurice Merleau-Ponty; Georges Didi-Huberman.



Itinerário

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Caminho Percorrido

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Em torno do Olhar: O espaço do Museu

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Reciprocidade em Merleau-Ponty

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Dupla Distância em Didi-Huberman

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Corpo Vidente, Corpo Visível: Pensar com as Imagens

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Chegar ao Próximo Começo

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Bibliografia

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Itinerรกrio


Esta

monografia é o resultado dos estudos realizados na Pós-Graduação em Fotografia, como parte de uma pesquisa mais ampla que iniciei em 2010, na graduação em Artes Visuais, visando entender as diferentes dinâmicas que o olhar assume em espaços expositivos diversos. Pontualmente, a questão que move esta etapa do trabalho diz respeito à possível reciprocidade do olhar entre aquele que vê e a obra que é vista. Do ponto de vista teórico, essa inversão do olhar pode ser pensada a partir de reflexões que discutem, de um lado, a complexidade do fenômeno da percepção e, de outro, o modo intenso como a história se manifesta na obra de arte. Como uma espécie de metáfora desses processos, busquei mostrar na produção fotográfica situações em que espectador e obra – sobretudo retratos – mimetizam-se e intercambiam seus papéis. A série Corpo Vidente, Corpo Visível: os olhares nos espaços expositivos consiste de um conjunto de imagens revisitadas de um acervo acumulado ao longo de quatro anos de pesquisa, editadas e tratadas de modo a transformar a leitura desses espaços, produzindo certa confusão entre o lugar da obra

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e o lugar do espectador. A reflexão teórica e a elaboração das imagens foram processos simultâneos, que se contaminaram reciprocamente. No primeiro capítulo, reconstruo minha trajetória como artista e apresento alguns de meus trabalhos para situar a presente série dentro da pesquisa que desenvolvo desde 2010, bem como para destacar as questões que se acrescentaram agora, no contexto desta pós-graduação. Neste capítulo mapeio as questões que motivam cada etapa do trabalho e que, somadas, dão forma à complexidade do olhar diante da obra. Pontualmente, trata-se de considerar o olhar como uma performance que envolve todo o corpo; questionar o papel e o lugar do espectador no espaço expositivo; pensar a diversidade de relações entre o público e a obra, incluindo aquelas que são mediadas pela fotografia.

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Considerando que a presente série fotográfica concentra-se em um tipo de espaço expositivo, o museu, recorri no segundo capítulo a textos que ajudam a entender a construção histórica que caracteriza o museu como lugar ideal para a fruição da arte. Tal busca permite compreender melhor o comportamento que os espaços dedicados à arte impõem ao público e quais são os mecanismos que contribuem para aproximar ou distanciar o espectador das obras. Para isso, tentei articular passagens muito específicas do pensamento de autores importantes como Paul Valéry e Marcel Proust


- lidos por Theodor Adorno – e ainda Brian O’Doherty, Philippe Dubois e Merleau-Ponty. Pontualmente, Merleau-Ponty é um autor que já havia atravessado etapas anteriores desta pesquisa, por meio de autores – sobretudo Alfredo Bosi – que recorrem a ele para pensar o olhar de forma ativa, como algo que atua sobre a obra ao mesmo tempo em que se deixa afetar por ela. O terceiro capítulo constitui um esforço de aproximação às bases do pensamento de Merleau-Ponty que, em meu trabalho, ajudam a nomear mais claramente esse corpo que se relaciona com outro corpo que é a obra, numa troca recíproca de olhares. O quarto capítulo traz para a perspectiva de meu trabalho outro texto de grande complexidade, O que vemos, o que nos olha, de Georges Didi-Huberman. Numa perspectiva diferente de Merleau-Ponty, Didi-Huberman desdobra a relação do espectador com a obra em dois movimentos bastante distintos, mas que também fazem do sujeito que vê um objeto que é visto pela imagem. Outros trabalhos de Didi-Huberman levaram-me ainda a conhecer a experiência e o modo muito peculiar como Aby Warburg articula as noções de tempo, história e memória, no método de estudo da arte que denominou Mnemosyne. Acumular em um arquivo registros fotográficos feitos em espaços expositivos, revisitá-los e, a partir deles, buscar manifestações sutis do olhar que se revela na edição das imagens é um procedimento que, aos poucos, passou a

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definir meu processo de trabalho. No capítulo 5, apresento efetivamente o percurso de realização do trabalho Corpo Vidente, Corpo Visível que propõe formas de materializar na imagem a reciprocidade do olhar entre espectador e obra, tal como foi discutido de modo mais abstrato nos capítulos anteriores. Este capítulo tenta mostrar ainda o modo como tais teorias não apenas explicam, mas definem concretamente os procedimentos adotados na edição das imagens.

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Caminho percorrido

De que serve a execução de projetos, posto que o projeto, em si, é já um gozo suficiente? Charles Baudelaire

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Vale começar contando algumas passagens que me trouxeram até aqui, um pouco dos interesses que me guiaram para entrar no universo das artes de um modo relativamente impensado e as escolhas conscientes posteriores com a elaboração de projetos que configuraram a pesquisa até o ponto em que está. Meu primeiro contato com as artes visuais foi por meio de pinturas, observando livros de coleções dos “grandes mestres” e visitando ainda na infância as exposições mais cobiçadas pelo grande público, o que acabou por constituir um repertório muito pautado pelo desejo de decifrar as diferentes técnicas e modos de produção e pela contextualização histórica das obras de arte. Depois, passei a buscar o domínio técnico do retrato, realizando pinturas a partir da observação de obras. Não valeria voltar tanto assim, se não fosse pelo interesse que a pintura me provoca até hoje e que percebo ter se diluído em outras possibilidades de investigação.

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Isis Gasparini, Le Gioconde. Fotografia, 2010. 88 x 133cm (cada) (3)


Posteriormente e ao o hábito de visitar para estudar. Como se aprendia a pintar

longo da graduação, criei museus com frequência Cézanne, acreditava que também pelo olhar:

“Em Paris, Cézanne ia diariamente ao Louvre. Pensava que se aprende a pintar, que o estudo geométrico dos planos e das formas é necessário.” (MERLEAU-PONTY, 2004 : p. 119)

Passei a observar muito espontaneamente as obras e, logo em seguida, as relações do público com elas. Questionava porque cada um, incluindo eu mesma, estava ali. Certa vez, fui além da observação: de um modo impulsivo registrei alguns visitantes exaltados diante de uma obra em particular, no Museu do Louvre, em Paris. As imagens produzidas viriam a constituir posteriormente uma série intitulada Le Gioconde, a primeira de uma pesquisa iniciada em 2010 com o questionamento sobre o papel e o lugar do espectador no espaço expositivo, marcando o início de um universo de perguntas que ainda motivam minha produção. A partir dessa experiência, passei a questionar o quanto o desejo de registrar um ícone tão visto e procurado, colocado num espaço expositivo, demonstra que seu fácil reconhecimento faz dele o emblema funcional da conquista de uma suposta erudição. Ao registrar as pessoas fotografando a obra e recolhendo seu próprio souvenir, algumas questões se somaram à minha pesquisa como,

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Isis Gasparini, Souvenir. Fotografia, 2012 30x40 cm (cada) (9) 120x80 cm (1) 120 x 245 cm (PolĂ­ptico)

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por exemplo, o que leva um visitante a um espaço expositivo; quem são as pessoas que procuram arte e qual é o papel da instituição na relação público-obra; o que determina uma relação efetiva com uma obra de arte e quais as possibilidades de interação existentes nesses espaços? Partindo da ideia já observada no trabalho anterior de que a fotografia constitui um atestado de presença diante da obra, produzi uma série que recebeu o nome de Souvenir, na qual as imagens das obras são apresentadas apenas ou principalmente pelo visor da câmera dos visitantes. Souvenir aborda o impulso manifestado de modo recorrente pelo público de fotografar, dentro de museus, obras de arte consagradas e trata dos riscos de esvaziamento do olhar pelo dispositivo fotográfico, na medida em que o desejo de preservar o instante, documentando-o, mostra-se mais importante do que a experiência diante da obra. O trabalho reflete sobre a substituição do olhar pelo registro que, por si mesmo, perde-se no bombardeio de imagens repetitivas. Considerando que a obra se torna consagrada exatamente ao ser reproduzida em catálogos, livros, internet e outras tantas imagens turísticas, a fotografia, que deveria servir como o testemunho de uma experiência singular, dissolve-se num gesto mecânico que apenas confirma a imposição dessa consagração.

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Isis Gasparini, Olhar outro (fotografia / videoinstalação), 2011. 01:30:00 min. em looping / área de projeção: 130 x 500cm

Isis Gasparini, Olhar outro, porém. Fotografia, 2011. 81,5 x 21,5 x 2cm (cada) (9) - 81,5 x 313,5 cm (Políptico)


Como contraponto às experiências que demarcam a perspectiva pessimista dessas relações com a arte, resolvi buscar a diversidade e a complexidade que os olhares também podem assumir nesses mesmos espaços. Assumi a hipótese de que a relação obra-espectador não se dá apenas de forma visual, mas passa por todo o corpo que, por sua vez, projeta seus sentidos e se relaciona com este outro corpo, a obra de arte. Olhar outro é o trabalho em que tentei materializar tal hipótese distinta, buscando a possibilidade da existência de traços de uma experiência efetiva de fruição, mesmo que sutil, isto é, mesmo quando o olhar não se detém sobre a obra. Essa série parte de um extenso conjunto de fotografias produzido em diferentes espaços expositivos para pensar o exercício do olhar como algo essencialmente dinâmico. Isso me levou a atravessar os limites tradicionais da fotografia, conduzindo o trabalho em direção a uma linguagem híbrida, localizada na fronteira entre a fotografia, o vídeo e a instalação. Estas possibilidades de expansão da linguagem fotográfica já haviam se manifestado em experiências realizadas anteriormente com flip books, livretos e outros trabalhos com vídeos. Da instalação Olhar Outro derivou uma nova série fotográfica, Olhar outro, porém, que evidencia a fragmentação dos olhares que, na montagem anterior, apareciam sobrepostos.

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Isis Gasparini, (Frame) Olhar outro fotografia / videoinstalacファaフバ, 2011. https://vimeo.com/29297210

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Estas imagens, assim como a palavra “porém” do título, sugerem uma ponderação que interrompe um raciocínio para dar a ele uma direção diferente, demandando uma continuidade. As fotografias foram postas em sequência, como frames que carregam a característica de narrativa fílmica de um storyboard, o qual fragmenta um fluxo para formar o todo. Na edição em vídeo de Olhar Outro, as fotografias se sobrepõem umas às outras e criam interações imprevisíveis entre os gestos dos espectadores. Com isso, comecei aos poucos a me conscientizar da importância que eu conferia aos cruzamentos entre os olhares. De um lado, há o cruzamento de olhares dos espectadores fotografados que se fundem brevemente na projeção em vídeo de sequências de retratos que se sobrepõem e se movimentam em direções opostas. De outro, acrescenta-se o olhar daquele que se coloca diante do meu trabalho em um espaço de imersão criado pela instalação, que é composta de uma tela de projeção semicircular que envolvia o corpo do espectador. Desse modo, a pesquisa pautou-se no entendimento da dinâmica do olhar como uma performance que se manifesta na gestualidade corporal do espectador, bem como na pesquisa teórica de autores e na observação de trabalhos de artistas que me possibilitaram pensar a respeito da somatória de olhares que pode estar implicada em uma imagem. Olhar

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outro construiu experiências de metalinguagem que proporcionaram a reflexão sobre as diferentes dinâmicas da percepção visual: o meu olhar diante dos espectadores que registrei e, depois, diante do arquivo que constituí; o olhar desses espectadores para as obras; o olhar do espectador da minha projeção e, por fim, o olhar da obra que, composta por tantos olhares, era capaz de observar simbolicamente aquele que se coloca diante dela. Algumas referências encontradas no desenvolvimento da presente pesquisa foram marcantes e transformaram-se em motivação para o trabalho atual. Três autores, em especial, já convidavam a pensar sobre a complexidade e a ambiguidade das dinâmicas contidas na experiência do olhar: Michel Foucault, Alfredo Bosi e Georges Didi-Huberman. Naquele momento, eles contribuíram para formulações um tanto embrionárias, mas que se desdobrariam nesta nova pesquisa, Corpo Vidente, Corpo Visível.

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Com Las Meninas (1656), Velázquez (15991660) desloca o ponto de vista tradicional da pintura e revela seus bastidores, inserindo o espectador dentro do espaço sugerido pela obra, colocando-o na posição do próprio retratado. Assim, tanto o olhar do pintor quanto o do sujeito diante da obra tornam-se objetos de representação. Partindo de Las Meninas, o texto homônimo de Michel Foucault (1999) ressalta as diferentes dinâmicas que fazem do olhar o principal


objeto da imagem. Ele nota que, destacando o reverso da cena e mostrando um quadro que dá as costas ao espectador, sujeito e objeto, obra e espectador, invertem suas posições,de modo que nós mesmos somos “olhados pelo pintor e tornados visíveis aos seus olhos”, constituindo assim uma reciprocidade de olhares. E complementa: “No momento em que colocam o espectador no campo de seu olhar, os olhos do pintor captam-no, constrangem-no a entrar no quadro, designam-lhe um lugar ao mesmo tempo privilegiado e obrigatório, apropriam-se de sua luminosa e visível espécie e a projetam sobre a superfície inacessível da tela virada. Ele vê sua invisibilidade tornada visível ao pintor e transposta em uma imagem definitivamente invisível a ele próprio.” (FOUCAULT, 1999 : p. 7)

Naquele momento, uma primeira tentativa de leitura de O que vemos, o que nos olha (1998), de Georges Didi-Huberman, instigou-me a pensar no que o próprio título sugere como uma formulação que soava bastante enigmática: a imagem que vejo também me olha. Devo admitir que a leitura permanece um desafio, mas traz apontamentos mais claros para esta etapa da pesquisa. Por fim, o texto Fenomenologia do Olhar, de Alfredo Bosi, já enfatizava o duplo estatuto do olhar como capacidade ao mesmo tempo passiva e ativa, que tanto capta algo do objeto quanto age sobre ele. Bosi,

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apoiado em Merleau-Ponty, reivindica que o olhar é simultaneamente um atributo do corpo e do espírito. Essas leituras foram significativas para que eu pensasse em meu próprio olhar dentro do fluxo de olhares que se constrói no espaço expositivo, assumindo uma posição que me integra a essas relações, ao mesmo tempo em que tento observá-las. Essa consciência convidou– me a revisitar as imagens já realizadas para buscar

nos

espectadores

os

olhares

que

haviam percebido a minha presença. A série produzida a partir dessa edição, denominada provisoriamente de Glimpser, não se resolve ainda como obra, mas constitui uma etapa intermediária da pesquisa entre Olhar Outro e o trabalho atual, Corpo Vidente, Corpo Visível. Questionar “quem” ou “o que” vê esse corpo do espectador revelou outras formas de reciprocidade. A que agora mais me interessa é o modo como a obra (sua forma, seu tempo Séie Glimpser, em desenvolvimento.

histórico) devolve o olhar para aquele que a observa no presente, de forma que ela possa


ser colocada na posição de observadora de seu próprio público. Como questões distintas se acrescentam a esta pesquisa, construí uma dinâmica de trabalho mais ou menos contínua que consiste em frequentar espaços expositivos, observar quem transita por eles, acompanhar alguns espectadores, registrar algumas cenas, produzindo um acervo de imagens que será posteriormente revisitado para buscar as relações que podem estar contidas nesta noção ampla de olhar e que nem sempre podem ser percebidas no momento em que tomo as fotografias. As leituras já mencionadas do trabalho de graduação deixaram algumas intuições que movem a presente etapa da pesquisa: a possibilidade de superar a distinção entre as noções de sujeito e objeto, corpo e espírito, visível e invisível. A oportunidade recente de ler alguns ensaios de Merleau-Ponty, já citado por outros autores, permitiu nomear estas inquietações do modo como elas aparecem neste texto, bem como situar a tradição do pensamento que deve ser superada por tais distinções.


Em torno do olhar: o espaço do museu

Você sabe como, nas exposições, sempre reparo muito mais nas pessoas que nas pinturas Reiner Maria Rilke

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Desde

Le Gioconde (2010), primeira série desta pesquisa, percebi que a compreensão das relações entre o olhar e a obra esbarram em questões mais amplas sobre o sistema das artes, mais precisamente sobre o espaço em que essa interação ocorre. Por isso, busquei entender a construção histórica que faz do museu o ideal de espaço expositivo. Tal busca permitiu entender melhor o comportamento que os espaços dedicados à arte impõem ao público e quais são os mecanismos que contribuem para aproximar ou distanciar o espectador das obras. Nesta pesquisa, todos os elementos constituintes do espaço expositivo são pensados como partes integrantes de um dispositivo que articula os modos de olhar para a obra e que compõem uma teia complexa de determinações que atuam sobre a percepção. Não apenas a arquitetura desse espaço, mas também sua curadoria, os materiais complementares como folders, catálogos e textos, a atuação do educativo, as visitas guiadas, os

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áudio-guias, entre outros, tornam-se parte da estrutura que dá à arte seu sentido público. A consciência da diversidade dos modos como o público transita nesse espaço, assim como o papel do espectador e dos elementos que influenciam essa dinâmica do olhar foram, de algum modo, demandas colocadas pelas próprias fotografias que realizei. Vale dizer que o momento da conclusão desta monografia coincide com um breve período em que trabalhei no setor educativo do Museu de Arte Brasileira da FAAP, podendo pensar essa estrutura também do ponto de vista institucional. Deve-se considerar que o sistema de exibição da arte é composto por uma estrutura complexa que envolve diferentes tipos de espaço físico.

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Em primeiro lugar, o museu propriamente dito, é uma instituição específica que abriga e conserva obras e que, em sua compreensão moderna, define-se como espaço voltado para o público, implicando uma política de visibilidade de acervos e coleções. Nesse sentido, o museu é herdeiro de experiências mais antigas de difusão de objetos de interesse cultural, como os gabinetes de curiosidades, bibliotecas, igrejas, teatro da memória, gabinetes de estudo ou ainda pelos salons de arte que se afirmam na França a partir do século XVIII. Em segundo lugar, há também as galerias de arte, espaços específicos cujas políticas de formação de acervo e de exibição ao público


estão submetidas às necessidades do mercado de arte. Em princípio, as galerias transpõem para um espaço de menor escala as condições de visibilidade definidas pela tradição dos museus. Mas, ocupando edificações muito distintas e às vezes improvisadas, assumem também formas alternativas de exibição das obras e de acolhimento do público. Em terceiro lugar, deve-se considerar a vasta diversidade de eventos que ocorrem em edições periódicas ou únicas, como as bienais, feiras e outras mostras de arte, que podem estar associadas a políticas institucionais bem definidas, mas que se apropriam de espaços que podem ou não ser específicos ao sistema das artes, como centros culturais ou mesmo museus, mas também galpões, centros de convenções ou shoppings centers. Por fim, esse sistema envolve também espaços públicos abertos que ultrapassam as paredes das instituições, permitem experimentações e inscrevem a obra na paisagem cotidiana. São intervenções no espaço coletivo que pensam a arte como desdobramento da vida social por meio de manifestações espontâneas de determinadas comunidades ou de oficinas e projetos de ação cultural. Tais experiências ora questionam, ora complementam e ora reafirmam as políticas definidas pelas instituições específicas de arte. Dentre esses espaços, aquele que interessa mais pontualmente para este projeto é o do

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museu graças à carga de significação histórica que ele absorve e ao modo mais claro com que suas políticas institucionais pesam sobre a forma de sua ocupação pelas obras e pelos espectadores. Pode-se encontrar no texto O Museu de Arte Hoje (2007), de Martin Grossmann, uma definição ampla de museu que sugere a complexidade sobre o que este espaço articula: “O museu de arte hoje é, simultaneamente, uma tradição, um espetáculo, um lugar político, uma proporção social, uma arena para processos de ação sócio-cultural, uma especulação, uma corporação, uma experiência, bem como alegoria ou metáfora para a explanação, criação e manutenção de outras dimensões de conhecimento. O museu se configura assim como complexidade, grandeza modelada por múltiplas dimensões.” (GROSSMANN, 2007)

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A título de exemplo, podemos pensar no patrimônio abrigado pelo Palácio do Louvre que, em 1793, transforma-se em um dos primeiros museus modernos constituído por obras, principalmente pinturas e esculturas, confiscadas da família real e dos aristocratas que haviam fugido da Revolução Francesa. O Louvre tornou-se um museu público devido a um projeto iluminista que, ao abrir as portas de sua coleção privada, pretendia racionalizar a ocupação de um lugar considerado até então obscuro. Hoje o Louvre cumpre funções culturais


diversas, servindo às pesquisas acadêmicas de historiadores da arte, mas também às políticas da indústria do turismo, acolhendo, portanto, públicos com interesses muito diversos. Logo no início do texto Museu Valéry Proust (1998), Adorno atribui ao museu o lugar simbólico de um “sepulcro de obras de arte”, comportando objetos sem vida que definham por si mesmos, mas que ainda assim exercem seu papel efetivo na sociedade por serem capazes de proporcionar acesso a um grande conjunto de pinturas e esculturas por aqueles que não têm proximidade com a produção artística. Contudo, segundo o mesmo autor, as tentativas de expor as obras distantes de seu contexto original – por exemplo, em castelos barrocos e rococós – são ainda mais problemáticas. Adorno aproxima dois escritos de autores da mesma geração, mas que produziram suas leituras de maneira independente, sem que houvesse entre eles um diálogo sobre o tema. O primeiro deles é O problema dos museus, de Paul Valéry, que data de 1923, um dos primeiros artigos a pensar sobre o impacto que o deslocamento da obra produz em seu sentido. Segundo Valéry, reunir obras dentro de um mesmo espaço confunde o espectador que deve, então, dividir sua atenção entre tudo o que é mostrado, tornando seu olhar sempre disperso. Essa “estranha desordem organizada” ou, ainda, essa “casa da incoerência” impõe ao visitante um comportamento próprio:

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“minha voz muda e se faz um pouco mais alta que na Igreja, mas soa um pouco menos forte que na vida comum.” (VALÉRY, 2008 : p. 32) Para Valéry, o espaço do museu traz um excesso de obras primas, as quais chama de “maravilhas independentes, mas adversas”. Elas disputam o olhar do espectador, esvaziando suas possibilidades de interação ao oferecer um acúmulo de estímulos, situação que o autor exemplifica com a seguinte analogia: “o ouvido não suportaria dez orquestras ao mesmo tempo”. (VALÉRY, 2008 : p. 32) O segundo texto comentado por Adorno é À sombra das raparigas em flor (À l’ombre des jeunes filles en fleurs), terceiro volume da obra Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, escrita entre 1913 e 1927. Para Proust, o museu é tido como um lugar ideal de encantamento. Dentro da perspectiva saudosista que demarca sua escrita, Proust compara o museu à estação de trem graças a seu simbolismo de local de partida de uma viagem.

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De alguma forma, ele prossegue do ponto em que Valéry para, discutindo essa vida póstuma das obras: “a morte das obras no museu, segundo Proust, desperta-as para a vida. Somente através da perda da ordem do vivente, na qual estavam inseridas, pode-se libertar a sua verdadeira espontaneidade”. (ADORNO, 1998 : p. 181) Apesar das diferenças, ambos os autores relacionam a presença das obras no espaço do


museu com a experiência da morte, ainda que, para eles, essa experiência possa ser prazerosa e socialmente necessária. Adorno completa: “somente onde reina aquela distância sólida entre obras de arte e observador, distância que permite o prazer, pode surgir a pergunta sobre o que está vivo e morto nas obras de arte”. (ADORNO, 1998 : p. 178)

No livro Dentro do Cubo Branco: a ideologia do espaço expositivo (2002), Brian O’Doherty discute o peso que a tradição dos museus ainda

tem

na

concepção

de

um

espaço

expositivo ideal. Segundo ele, essa herança instaura no observador, assim como no objeto de arte, a condição de algo controlado que devora a si mesmo enquanto objeto de arte. O cubo branco, como ele denomina este lugar, define-se por “não deixar o ambiente externo entrar, razão pela qual as janelas são geralmente seladas. As paredes pintadas de branco. O teto torna-se fonte de luz (...). A arte está livre, como se diz, para ‘viver sua própria vida’”. (O’DOHERTY, 2002 : p. 2) A origem do espaço de exposição como lugar que

almeja

eternizar

um

objeto,

segundo

O’Doherty, remete às tumbas egípcias, projetadas para isolar aquilo que abrigam – incluindo pinturas e esculturas – do mundo exterior. A origem pode ser ainda anterior: as cavernas paleolíticas que abrigavam pinturas em lugares de difícil acesso, quase imaculados, com o intuito de protegê-las do ambiente externo.

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Tais

espaços

estabelecem

uma

relação

simbólica ritual com o que chamamos também hoje de obra de arte. Naquele momento, o propósito da imagem, assim como da escolha do lugar que a abrigaria, estava vinculada em grande medida à espiritualidade cotidiana ou às crenças da vida após a morte. Era, portanto, uma forma de agenciar o acesso a uma dimensão eterna da realidade, distante do caráter efêmero da vida cotidiana: “A arte existe em uma espécie de visibilidade eterna que, apesar de conter grandes trechos de ‘períodos’ (contemporâneos), não abriga o tempo. Esta eternidade dá à galeria um caráter de limbo, de um lugar onde para se estar é preciso já estar morto.” (O’DOHERTY, 2002 : p. 2)

O’Doherty diz que “a presença ante uma obra de arte (...) significa ausentar-se para dar lugar ao Olho e ao Espectador”, segundo ele, tudo o que sobra de alguém que “morre ao entrar no cubo branco”. Para o autor, ao se entrar no espaço expositivo há uma supressão dos interesses individuais em favor dos interesses comuns. Trata-se de um lugar onde “não se fala em tom normal; não se ri, não se come, não se bebe, não se deita nem se dorme; 50

não se fica indisposto, não se perde a razão, não se dança, não se faz amor” (O’DOHERTY, 2002 : p.4). Os autores mencionados parecem colocar um problema comum: o museu se constitui no


deslocamento da imagem de um uso ritual cotidiano para um espaço específico. No entanto, apesar desse deslocamento, o museu quer impor ao visitante um universo de regras próprias que reproduzam algo do caráter solene dos antigos templos. Vale pensar quais são os artifícios que impõem esse comportamento dentro dos museus. Numa palestra feita por Philippe Dubois em 2013 na Escola de Comunicações e Artes da USP, o pesquisador traçou um panorama das formas como certos espaços permitem intenções com as imagens, partindo de experiências que antecedem a existência dos museus até chegar ao objeto específico de sua pesquisa: as formas de interação entre arte contemporânea e o que ele chama de cinema de exposição. Para a minha pesquisa, cabe pontuar apenas algumas colocações feitas pelo autor e que ajudam a entender o museu como um dispositivo formado por diversos artifícios, e não só como lugar ocupado pelas obras. O museu, em sua constituição, é responsável por pesquisar, conservar ou restaurar uma coleção e mostrá-la em seguida, a fim de tornar acessível um patrimônio. Porém, cabe perguntar de que modo e para quem um museu torna seu acervo acessível. Historicamente, percebemos que o museu carrega objetos que foram deslocados de seus lugares originais para serem inseridos num espaço de exposição, como um objeto de arte que visa um tipo específico de interação com o olhar.

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A partir de Walter Benjamin, Philippe Dubois fala do modo como um objeto passa de um status cotidiano para outro mais erudito, definido pelo lugar onde a obra será vista. Como os autores já citados, ele lembra também que, muito antes de integrar um museu, o objeto primário era visto por uma sociedade como elemento sagrado e, portanto, definia-se por certo valor de uso. Quando transportado para o museu, converte-se em documento daquilo que significou em seu contexto original. Retomando os termos de Benjamin, lembra que o valor de culto daquele objeto sagrado dá lugar a um valor de exposição, definido no contexto de outra sociedade.

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Como a relação com a imagem já não é regida por rituais bem demarcados, o museu arma-se de um universo de artifícios que orientam as dinâmicas do público: a sala de exposição como lugar que enquadra um conjunto de obras e limita o alcance da visão; a cenografia que pode incorporar, além das paredes, outros recursos como as vitrines que, ao mesmo tempo em que protegem o objeto, convidam à circulação ao redor dele; os cartões de identificação das obras com suas maneiras mais discretas ou mais extravagantes de se impor ao olhar e, ainda, os textos que acompanham as obras e as exposições. Tudo isso compõe o dispositivo de exibição das obras e orienta o visitante conforme uma política de ocupação do espaço, definindo seu percurso, demarcando locais privilegiados de


observação, sugerindo a duração do olhar diante de cada obra. Para Merleau-Ponty, autor que abordarei no próximo capítulo, o museu tem claros limites naquilo que pode oferecer da experiência artística. Mais do que o acesso às obras como patrimônio histórico, interessa a ele pensar a arte como processo, como vivência de um artista no embate com seu lugar e seu tempo. Esse caráter “existencial” da experiência artística é algo que se perde quando o museu se resume a acolher objetos acabados que o próprio espaço legitima como algo que se enquadra numa noção abstrata de arte. Conforme explica Carmo (2002), Merleau-Ponty “quer dirigir nossa atenção muito mais para o momento do fazer da obra que para sua contemplação após terminada” (CARMO, 2002 : p.140). Com isso, quer garantir que a vivência do

artista

não

seja

alienada

do

sentido

atribuído a esses objetos. No museu, assim como nos métodos de história da arte em que normalmente se apoia, a vida do artista aparece apenas como um conjunto de determinações do resultado, isto é, como informações utilitárias que servem para explicar a imagem que foi consagrada pelas instituições. “Merleau-Ponty desconfia do museu, justamente porque nele a obra é colocada numa posição de eternidade, sem o compromisso com a vida, acasos, dúvidas e fatalidades que guiaram o pintor.” (CARMO, 2002 : p.139)

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As condições impostas pelo museu determinam o apagamento do processo que caracteriza a origem da obra, reduzindo-a a um objeto cujo sentido se resolve em si mesmo e que é oferecido à contemplação. “No museu, aquilo que era interrogação não respondida pelo artista é transportado para o recinto sombrio das salas de exposição e visto como perfeição que devemos referenciar (...) O museu nos apresenta uma sequência que, no final, faz supor uma Razão, da qual o pintor nunca tomou conhecimento.” (CARMO, 2002 : p.141)

Assim, a relação com a arte imposta pelo museu parece tocar numa hierarquia mais profunda que Merleau-Ponty irá questionar: uma noção de olhar que se constrói pela distinção entre um sujeito que opera essa “razão” e um objeto estático que apenas ganha sentido quando apreendido por sua consciência. Tentarei avançar nessa discussão no capítulo que se segue.

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A reciprocidade em Merleau-Ponty

Para comeรงar preciso insistir nisto no campo escรณpico, o olhar estรก do lado de fora, sou olhado, quer dizer, sou quadro Jacques Lacan

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58


Com

a leitura de Merleau-Ponty, autor discutido em algumas disciplinas deste curso de pós-graduação, pude compreender melhor a complexidade do olhar dentro de uma abordagem mais profunda, que questiona a separação entre sujeito e objeto da percepção. Pude também situar minhas questões dentro de uma tradição do pensamento que impõe limites à observação dessa complexidade. Merleau-Ponty pensa a relação do ser com o mundo de modo amplo, distanciando sua abordagem das polarizações feitas pela tradição filosófica. Com sua fenomenologia, ele investe na construção de um pensamento que não separa o sujeito que conhece do objeto conhecido, de modo que, mesmo que um não se reduza ao outro, tampouco um existe sem o outro: “a consciência é sempre consciência de alguma coisa e o objeto é sempre objeto para uma consciência” (CARMO, 2000 : p. 21). Para começar, cabe entender a complexidade que o filósofo dá à noção de corpo, tema trabalhado mais pontualmente por Leandro Neves Cardim em seu livro Corpo (2009).

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Em sua obra, Cardim faz um panorama da compreensão do corpo na história da filosofia, passando

pelos

principais

autores

que

abordaram este tema. Conforme ele sugere, corpo e alma nem sempre foram pensados em uma relação de oposição, tal como a tradição da filosofia ocidental posteriormente afirmaria. Os pré-socráticos, por exemplo, estavam muito ligados a uma noção de cosmologia e de física que permitia ora delimitar suas especificidades, ora pensar sua integração, sem que isso soasse contraditório. Para eles “Era importantíssimo enterrar o cadáver para que a alma pudesse se separar do corpo e juntar-se ao reino das sombras, para, enfim, regenerar-se para um novo nascimento em um novo corpo. (...) Corpo e alma compunham um único todo indivisível, vivo, visível!” (CARMIM, 2009 : p. 21-22).

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Cardim mostrará como coube ao platonismo “o gesto teórico de fundação da oposição entre corpo e alma”, atribuindo à última todo o privilégio do conhecimento. Analisando autores que abalaram a tradição configurada por Platão, como Nietzsche, Hursell e Bergson, Cardim aborda também Merleau-Ponty, caracterizando-o como um “marco fundamental” no pensamento sobre o corpo, pensando-o inicialmente como mediador da relação entre sujeito e objeto, dissolvendo o caráter de oposição desses elementos (CARDIM, 2009: 87-8). Os desdobramentos de tal pensamento em Merleau-Ponty tornariam o corpo o lugar que


melhor demonstra a reciprocidade implicada na percepção: “O corpo apresenta aquilo que sempre foi o apanágio da consciência: a reflexividade. Mas apresenta também aquilo que sempre foi o apanágio do objeto: a visibilidade. O corpo é o visível que se vê, um tocado que se toca, um sentido que se sente. Quando a mão direita toca a mão esquerda, há um acontecimento observável cuja peculiaridade é a ambiguidade: como determinar quem toca e quem é tocado? Como colocar uma das mãos como sujeito e outra como objeto? A descoberta do corpo reflexivo e observável leva Merleau-Ponty a mostrar que a experiência inicial do corpo consigo mesmo é uma experiência em propagação e que se repete na relação com as coisas e na relação com os outros.” (MERLEAU-PONTY, 1975 : p. X)

Tomando como princípio a noção de reciprocidade em toda a teoria de Merleau-Ponty, podem-se destacar alguns aspectos relevantes e caros à presente pesquisa acerca do corpo e da percepção, cujas propriedades ao mesmo tempo ativa e passiva são enfatizadas, uma vez que a existência para Merleau– Ponty é essencialmente corporal: sua filosofia considera matéria, vida e espírito como objetos da percepção, e não do pensamento. O autor avança sempre para uma direção que visa demarcar a existência de ambiguidades que, mais do que por oposição, operam por

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reciprocidade. Dentre estas ambiguidades ele situa a experiência do corpo no mundo, de onde emergem as relações da vida perceptiva e do mundo sensível. Para o filósofo, não há um distanciamento entre aquele que olha e o mundo visto, o que resulta no entrelaçamento do sujeito e do objeto, e que faz do corpo um meio de comunicação entre a consciência e o mundo. O corpo é o sujeito da percepção, é ele quem percebe e não há outra maneira de conhecê-lo senão vivê-lo. Cardim afirma que “Movimentar o corpo e visar as coisas através dele são dois momentos de uma única totalidade. Merleau-Ponty se interessa, assim, pela capacidade humana de ‘inverter’ a relação natural entre o corpo e a ’circunvizinhança’ como o lugar de apropriação de um espaço e dos instrumentos culturais.” (CARDIM, 2009 : p. 112)

O corpo é uma estrutura, uma relação, uma unidade que se organiza. Não há percepção pontual, pois ela ocorre sempre dentro de uma relação, sendo que todas as partes do corpo se organizam espontaneamente para cumprir essa tarefa. 62

Quanto

à

arte,

importante

perceber

que,

para Merleau-Ponty, o sentido não está no sujeito ou na obra, mas na percepção da relação entre as partes. Cézanne, cuja obra é analisada profundamente pelo filósofo, traz em suas pinturas camadas dinâmicas mostradas


com o mesmo nível de visibilidade1. É assim que o tratamento de um fundo, por exemplo, colabora para a percepção de um objeto, desenhando-se menos pelo traço do que pela relação entre as cores. É assim também que a desproporção de seus objetos se equilibra na relação com o todo de sua composição (cf. MERLEAU-PONTY, 2004 : p.118). Trata-se de uma relação viva, em movimento, que revela a obra pela profundidade com a qual reconhecemos a paisagem. Na pintura de Cézanne, tal interação entre figura e fundo é análoga à capacidade do corpo apontada por Merleau– Ponty: “Nosso corpo não está aberto somente às situações reais; ele está preparado para o virtual, para situações imaginárias. A parte interrogada do corpo – quando tocada – sai do anonimato e se mostra, anuncia-se. O que era fundo transforma-se em figura. Dessa forma ele não se constitui como barreira que nos isola do mundo, mas, pelo contrário, atua como ponte que nos coloca em permanente contato com o mundo.” (CARMO, 2002 : p. 89)

Cézanne pretende recuperar a gênese como organização do mundo, que ocorre de forma espontânea, buscando o modo como aquilo que é percebido – neste caso, a paisagem – mostra-se em nós. Nesse sentido, a paisagem é também o agente do que se constitui em 1-Merleau-Ponty dedica o texto A Dúvida de Cézanne, publicado originalmente em 1945, à obra do artista. (in: MERLEAU-PONTY, 2004).

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mim e, portanto, a obra se constitui em mim: “a imagem saturava-se, ligava-se, desenhava– se, equilibrava-se, tudo ao mesmo tempo se maturava. A paisagem, dizia [Cézanne], se pensa em mim e sou sua consciência”. (MERLEAU– PONTY, 2004 : p. 119) Em sua fenomenologia, não há como separar o objeto percebido da consciência que formamos dele: “no ato de pintar e até mesmo no de contemplar o objeto pintado, há uma profusão de sentidos em que estão imbricados a coisa, o corpo e a consciência.” (CARMO, 2002 : p. 59) Se não existe um ser separado de um mundo, logo, não existe obra separada do olhar que lhe reconhece dentro desta condição. Foi, portanto, com Merleau-Ponty que pude situar aquilo que buscava em minha produção: olhar e obra como processos dependentes que só existem dentro desta relação, não há obra sem um olhar que a contemple, assim como não há espectador sem uma obra que a ele se dirija. É a partir da contribuição desse pensador que defino o título deste projeto, referenciando diretamente uma de suas formulações fundamentais que afirma ser o nosso corpo “ao mesmo tempo vidente e visível” (MERLEAU– PONTY, 2004 : p. 17). 64

“Eis o enigma: meu corpo é simultaneamente vidente e visível. Ele, que olha todas as coisas, também pode olhar-se e reconhecer naquilo que então vê no ‹outro lado› de sua


potência vidente. Ele se vê vendo, ele se toca tocando, é visível e sensível para si mesmo. É um ‹si› não por transparência, como o pensamento, que pensa tudo assimilando-o, constituindo-o, transformando-o em pensamento mas um ‹si› por confusão, narcisismo, inerência daquele que vê naquilo que vê, daquele que toca naquilo que toca, daquele que sente naquilo que é sentido.” (MERLEAU– PONTY, 1975 : p. X)

Conforme Cardim, Merleau-Ponty reconhece na obra de arte o exercício de uma unidade semelhante àquela que se estabelece, por meio da percepção, na relação do homem que percebe com o mundo percebido: “A unidade do corpo próprio é comparável à da obra de arte. Pois na arte é bastante claro o fato de que forma e conteúdo não podem se separar, ou melhor, a expressão e aquilo que foi expresso são indissociáveis, pois formam um ‘nó de significações vivas’.” (CARDIM, 2009 : p. 112)

Cardim prossegue citando diretamente Merleau– Ponty: “Um romance, um poema, um quadro, uma peça musical são indivíduos, quer dizer, seres em que não se pode distinguir a expressão do expresso, cujo sentido só é acessível por um contato direto, e que irradiam sua significação sem abandonar seu lugar temporal e espacial. É nesse sentido

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que nosso corpo é comparável à obra de arte.” (MERLEAU-PONTY apud CARDIM, 2009 : p. 113)

O exercício que proponho é o de sobrepor os elementos que o filósofo compara na seguinte analogia: o que ocorre nessa relação quando aquilo que se oferece à percepção do corpo é a própria obra de arte. Sendo a obra o modelo a que Merleau-Ponty recorre para explicar essa unidade do corpo, é bastante óbvio que a relação corpo-obra não escaparia à mesma dinâmica de reciprocidade. Uma vez que a fenomenologia permitiu compreender de modo amplo as bases dessa reciprocidade, coube recolocar a pergunta: “quem” ou “o que” vê esse corpo vidente do espectador ao colocar-se em relação com a obra de arte, de modo mais pontual. Sem dúvida a obra, em sua própria unidade, devolve o olhar ao espectador. Mas, resgatada essa totalidade, busquei especificar um dos elementos que dá à imagem uma capacidade ainda mais intensa de movimento: sua existência no tempo denso e extenso da história. É a contribuição de outros autores a respeito de tal tema que discutirei em seguida.

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A dupla distância em Didi-Huberman

Bater fotos é uma ação do tempo na qual alguma coisa é arrancada de seu próprio tempo e transferida para um tipo diferente de duração Win Wenders

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Em “A inelutável cisão do ver” e “O evitamento do vazio: crença ou tautologia”, os dois primeiros capítulos do livro O que vemos, o que nos olha (1998), Georges Didi-Huberman sugere que alguns elementos da imagem podem resistir ao olhar do espectador, já que, às vezes, não são de todo apreensíveis por nossa vontade de interpretação. Didi-Huberman

enxerga

nas

imagens

uma

condição de certo modo “fantasmagórica”, que ele explica descrevendo a experiência de estar diante de um túmulo. Ao olhar para este objeto, pesa o fato de a morte ser uma espécie de destino que projeta o ser para um lugar distante e inapreensível, mas que se faz próximo pela presença do corpo que sabemos estar contido naquele volume. Olhando para um túmulo, há aquilo que vejo, ou seja, a evidência de estar diante desse objeto plenamente visível, e há aquilo que resiste ao domínio do olhar e que me abala exatamente por não ser evidente. Trata-se de um esvaziamento que diz respeito ao destino

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do corpo, agora privado de sua fala, de seu gesto, de sua vida; um simulacro daquilo que não apreendo totalmente, mas que sei que me tornarei em meu futuro. Aquilo que não vejo, que resiste ao meu olhar exatamente porque me abala, é o que me olha profundamente. Nessa “imagem impossível de se ver” constato a minha angústia de “não saber o que vem a ser meu próprio corpo” (DIDI-HUBERMAN, 1998 : p. 38). A angústia que se instala em mim é justamente o que me abre em dois: um ser que vê, um ser que é visto. Didi-Huberman aponta duas formas recorrentes de renegar o desconforto desta condição. A primeira consiste em fixar-se naquilo que é plenamente visível, ignorando tudo aquilo que me olharia, considerando unicamente o volume visível e excluindo, assim, toda a invisibilidade. A segunda maneira seria “superar imaginariamente” a cisão a partir de um dogma que me faz tomar o volume visível como insignificante, fazendo supor que o ser ausente permanece vivo em algum outro lugar, cheio de substância, nada devendo à matéria que vejo.

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A primeira situação é o exercício da tautologia, da obviedade, que nega o que está além do volume e deseja só o que está na superfície. Assim, o volume se esgota em suas arestas bem demarcadas, plenamente visíveis ao olho. A segunda é o exercício da crença de que a realidade do ser em questão está


agora a uma distância absoluta, intransponível e, portanto, incapaz de me devolver um olhar. Em uma, o que existe está próximo demais e se entrega ao domínio do meu olhar. Na outra, o que existe está definitivamente afastado de mim: o que vejo não importa, o que me olharia já não me assombra. O que o autor deseja preservar na experiência com o túmulo – na verdade, na experiência com as imagens – é a tensão do que está próximo e do que está distante, ou seja, o que ele chama de “dupla distância”: “Abramos os olhos para experimentar o que não vemos, o que não mais veremos – ou melhor, para experimentar que o que não vemos com toda a evidência (a evidência visível) não obstante nos olha como uma obra (uma obra visual) de perda. Sem dúvida, a experiência familiar do que vemos parece na maioria das vezes dar ensejo a um ter: ao ver alguma coisa, temos em geral a impressão de ganhar alguma coisa. Mas a modalidade do visível torna-se inelutável – ou seja, votada a uma questão de ser – quando ver é sentir que algo inelutavelmente nos escapa, isto é: quando ver é perder. Tudo está aí.” (DIDI-HUBERMAN, 1998 : p. 34)

Em toda obra de arte carregada de densidade histórica, há relações que escapam à apreensão mais imediata e que podem permanecer inacessíveis ao saber interpretativo daquele que olha.

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Como no caso do túmulo, é aqui que se abre, nessa superfície da obra, uma fresta por onde sua história me olhará. Ao romper com o caráter unilateral do olhar, impõe-se uma instabilidade nos papéis do sujeito e do objeto: se o que vemos também nos olha, podemos dizer que o sujeito que contempla é, agora, objeto de um olhar devolvido pela obra. Ao olharmos para uma superfície com a aparente sensação de que tudo foi mapeado, de que tudo foi visto, supõe-se que a totalidade da superfície esgota-se no presente. O tempo, por sua vez, encarrega-se de perturbar tal ordem, impondo a experiência do anacronismo, gerando a sensação de que algo do passado não se resolve totalmente naquilo que podemos apreender dele.

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Cabe separar o duplo sentido que podemos dar à noção de história. De um lado, a história como método acadêmico: ao olhar para uma pintura, podemos supor que sua superfície possa ser totalmente apreensível pelas ferramentas propostas pela história da arte, que supõe ser capaz de decifrá-la, de descobrir todo seu sentido. Porém, resta a história como densidade do tempo, não se esgotar na superfície apreendida pelo presente. São as fissuras que nos revelam camadas anacrônicas pelas quais somos vistos. Como afirma Didi– Huberman em outro livro, Diante do tempo (2006), dedicado à experiência de anacronismo que a imagem nos impõe:


“Sempre, diante da imagem, estamos diante do tempo (...). Enfim, diante de uma imagem temos humildemente que reconhecer o seguinte: que provavelmente ela nos sobreviverá, que diante dela somos um elemento frágil, o elemento passageiro, e que diante de nós ela é o elemento de futuro, o elemento da duração. A imagem na maior parte das vezes tem mais de memória e mais de porvir que o ser que a olha.” (DIDI-HUBERMAN, 2006 : p. 31-2)

A cisão do ver de que fala Didi-Huberman torna-se possível pela negação do caráter absoluto da condição de sujeito como alguém que tem o domínio dessa percepção, cinde a percepção em dois movimentos para fazer do sujeito que vê um objeto que é visto, sugerindo uma dupla distância da imagem vista. O espaçamento criado entre olhante e olhado é um paradoxo que, mais adiante, Didi-Huberman explicará pela noção de aura em Walter Benjamim, definida como a “única aparição de uma coisa longínqua, por mais próxima que possa estar”, distância que se constrói justamente na experiência aurática (BENJAMIN apud DIDI-HUBERMAN, 1998 : p. 147). Ele prossegue, aprofundando a relação de sua tese com Benjamin: “Sob nossos olhos, fora da nossa visão: algo aqui nos fala tanto do assédio como do que nos acudiria de longe, nos concerniria, nos olharia e nos escaparia ao mesmo tempo. É a

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partir de tal paradoxo que devemos certamente compreender o segundo aspecto da aura, que é o de um poder do olhar atribuído ao próprio olhado pelo olhante: ’isso me olha’. Tocamos aqui o caráter evidentemente fantasmático dessa experiência, mas, antes de buscar avaliar seu teor simplesmente ilusório ou, ao contrário, seu eventual teor de verdade, retenhamos a fórmula pela qual Benjamin explicava essa experiência: ‘sentir a aura de uma coisa é conferir-lhe o poder de levantar os olhos’.“ (DIDI– HUBERMAN, 1998 : p. 148)

O esforço para compreender o pensamento de Didi-Huberman levou-me à exposição Atlas Suíte, pensada para integrar-se ao novo espaço do MAR (Museu de Arte do Rio) em 2013. Esta exposição, preocupada em refletir sobre a construção de uma política do olhar, permitiu dar um sentido mais claro à maneira como lido com meu acervo de imagens em minha própria pesquisa.

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Idealizada por Georges Didi-Huberman em parceria com o artista Arno Gisinger, Atlas Suíte propõe uma “exposição na época de sua reprodutibilidade técnica”2, pensando a relação entre as obras e das obras com o espaço na forma de um atlas, noção que rege também a organização da biblioteca do historiador de arte Aby Warburg, questionando as tradicionais relações entre tempo, história e memória. 2-Texto de parede da exposição Atlas Suíte (2013).


Segundo Warburg, o encontro de imagens de épocas e lugares distintos é capaz de compor pensamentos que vão além daquilo que sua contextualização permite interpretar. Diante desse princípio semelhante, sua biblioteca podia ser constantemente reorganizada pelo que ele chamava de “boa vizinhança”, ou seja, a capacidade dos livros de relacionarem-se uns com os outros para além da lógica de suas disciplinas de origem. O Atlas de Imagens que Warburg propõe (no original, em alemão, Bilderatlas Mnemosyne) é composto por 79 painéis que somam 900 imagens, principalmente fotografias em preto e branco, e articulava “reproduções de pinturas, esculturas, monumentos, edifícios, afrescos, baixos-relevos antigos, gravuras, grisailles, iluminuras, mas também de recortes de jornais, selos postais, moedas com efígies” (SAMAIN, 2011 : p. 36) sobre grandes painéis de madeira que mediam aproximadamente dois metros, constituindo peças que eram deslocadas de qualquer ordem linear previsível. Esta composição constituía um espaço de questionamento sobre os potenciais das imagens que, hoje, tem inspirado novas concepções de exposição, como a que foi organizada por Didi-Huberman. Warburg instalava os painéis com as imagens na biblioteca “para que pudessem entrar em diálogo, se pensar entre si, no tempo e no espaço, para que também pudessem ser observadas, relacionadas, confrontadas na grande arquitetura dos tempos e das memórias

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humanas”, construindo então uma “história da arte sem palavras” (SAMAIN, 2011 : p. 36). A biblioteca, construída entre 1924 e 1929, era organizada por categorias definidas e distribuídas por Warburg em quatro níveis da seguinte forma: no primeiro, localizavam-se as imagens (Bilder) desde a arte pré-clássica até a arte de seu tempo; no segundo, estavam os livros referentes à palavra (Wort), pensando na linguagem como transmissão da literatura clássica; no terceiro, a orientação (Orientierung), os

corredores

heurísticos

do

pensamento

humano: ciência, religião, filosofia; e o quarto plano era reservado para a ação (Aktion), configurada por diferentes tomadas de posição diante da história do mundo. A junção dos livros com as fotografias, as pranchas

compostas

por

reproduções

e

as imagens de imagens pretende compor “uma memória impensada da história” (DIDI– HUBERMAN apud SAMAIN, 2011 : p. 37). Em seu texto feito para a exposição Atlas: como carregar o mundo nas costas?, realizada no Museu Reina Sofia, em Madrid, entre 2011 e 2012, Didi-Huberman já expunha as ideias que foram o ponto de partida para a exposição realizada aqui no Brasil: 78

“Atlas, finalmente, deu o seu nome a uma forma visual de conhecimento: ao conjunto de mapas geográficos, reunidos num volume, geralmente, num livro de imagens, cujo destino


é oferecer aos nossos olhos, de maneira sistemática ou problemática – inclusivamente poética, com risco de ser errática, quando não surrealista – toda uma multiplicidade de coisas reunidas por afinidades eletivas.” (DIDI-HUBERMAN, 2011)

Didi-Huberman, desta vez em parceria com Arno Gisinger, diz no texto feito para a exposição Atlas Suíte, apresentada no Brasil: “É, portanto, um trabalho sobre o próprio meio fotográfico e sobre as relações complexas entre as obras e suas diferentes possibilidades de reprodução, de representação. (...) O material é remontado e repensado tendo em vista a nova versão do projeto: um modo de afirmar, como todo editor de imagens experimenta, o caráter inesgotável das constelações possíveis3.”

Por caminhos menos seguros, eu já havia identificado o poder que as imagens de um acervo adquirem quando se aceita jogar com suas possibilidades de relação, independentemente dos projetos que deram origem a elas. Da mesma forma que me pergunto o quanto uma obra olha para o espectador, passei a me questionar sobre o quanto minhas fotografias podem olhar para mim. Deixei então que algumas brechas indicassem possibilidades na devolução desse olhar. 3-DIDI-HUBERMAN; GISINGER. exposição Atlas Suíte, 2013.

Texto

de

parede

da

79


Como parto do cruzamento entre tempos nos olhares, seja o da obra, o do museu ou o do presente em que reviro meus arquivos, comecei a perceber o modo como um conjunto de imagens escolhidas dentro de um acervo recria narrativas e metáforas que transportam as imagens para outros planos de significação. A exposição e os comentários produzidos por Didi-Huberman sobre Warburg ajudaram-me a pensar as rearticulações desse acervo como um pensamento que as imagens provocam, compondo pouco a pouco um mapeamento, isto é, um “atlas” das relações entre espectadores e obra de arte. Seria instigante aproximar Merleau-Ponty e Didi-Huberman, já que o pensamento de ambos contribui para questionar a autoridade do sujeito sobre o objeto e o caráter unidirecional da percepção de um sobre o outro. Mas esta não é uma tarefa fácil, porque é preciso também reconhecer algumas diferenças importantes.

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Para Merleau-Ponty, não há distância entre sujeito e objeto, de modo que a coisa vista e a consciência da percepção fazem parte de um mesmo movimento. Já Didi-Huberman coloca o objeto em uma dupla distância que constitui dois movimentos distintos e que faz do sujeito que vê também um objeto que é visto:


“o que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável, porém é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha. Seria preciso assim partir de novo desse paradoxo em que o ato de ver só se manifesta ao abrir-se em dois.” (DIDI-HUBERMAN, 1998 : p.29)

Entendo que são dois modos distintos de relativizar o papel do sujeito que olha. Em Merleau– Ponty sujeito e objeto não se separam, de modo que toda a ação do corpo sobre o mundo é, ao mesmo tempo, uma ação do mundo sobre o corpo: o corpo vidente é também visível em um mesmo processo. Didi-Huberman, por sua vez, afirma a alternância de papéis e não propriamente uma indistinção, já que o sujeito adquire, num segundo movimento que acrescenta, a condição de objeto: aqui, o corpo vidente é perturbado por uma resposta da imagem que o torna também visível. Merleau-Ponty traz um princípio filosófico que me convida a pensar de um modo muito amplo a relação do olhar com a obra de arte. Didi-Huberman me ajuda pontualmente a nomear um processo de inversão do olhar que orientou a escolha e a edição das imagens pertencentes a esta nova série.

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Corpo vidente, corpo visível: pensar com as imagens

Foi na edição que as peças se juntaram, e não fui eu quem concebeu o quebra-cabeça Chris Marker

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Diante

do desejo de mostrar toda uma dimensão invisível contida no olhar, no início do presente curso de pós-graduação eu considerava a possibilidade de adotar procedimentos muito distintos dos trabalhos anteriores, construindo cenas, dialogando com os espectadores e dirigindo o modo como aparecem diante das obras. Naquele momento fui também motivada por

trabalhos de Rineke Dijkstra (Ruth drawing Picasso e The wipping woman) e Jeff Wall (Movie Audience) que também pensam a relação do espectador com a obra.

Rineke Dijkstra, The Weeping Woman, 2009.

Jeff Wall, Movie Audience, 1979.


Posteriormente, tanto as leituras quanto o convívio com meu acervo convidaram-me a buscar um destino mais significativo para as imagens acumuladas em estado bruto, tanto em termos de edição quanto de tratamento. Percebi que a encenação não é a única forma de garantir que as imagens apontem para os conceitos que eu busco discutir e descobri que o processo de edição e de pós-produção tem a capacidade de ressignificar as imagens e também de inseri-las em uma perspectiva mais alegórica ou ficcional. Foi esse o ponto de partida deste trabalho: revisitar um acervo de aproximadamente 3500 fotografias acumuladas ao longo dos últimos quatro anos, período em que tenho observado as relações entre o público e as obras de arte. Alguns trabalhos anteriores já haviam me indicado que o trânsito pelo acervo poderia ser tão produtivo quanto minha presença direta nos espaços expositivos e isso justifica– se por razões diversas.

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A primeira delas deve-se ao fato de que muitas das questões que movem a presente pesquisa não estavam previamente formuladas. Elas foram propostas por exercícios de aproximações e combinações entre imagens realizados em lugares e momentos distintos. Em segundo lugar, tanto o museu quanto o arquivo assumem um estatuto semelhante, revelando– se lugares de interação entre as imagens e os olhares, incluindo o meu próprio.


Retornar

às

imagens

que

permaneceram

guardadas minimiza minha autoridade sobre elas, à medida que descubro significações, elementos e detalhes que só são vistos nestes encontros posteriores. De modo semelhante àquilo que busco nos museus, há nessas descobertas algumas surpresas que, de algum modo, fazem com que eu me sinta olhada pelas imagens e pela breve história já acumulada nesse arquivo. Alguns exercícios iniciais de edição foram feitos,

em

princípio,

a

partir

de

algumas

dezenas imagens selecionadas de modo ainda intuitivo, com o objetivo de gerar discussões sobre o olhar, a obra de arte e o contexto em que se inserem. Foi ao longo do processo de orientação das pesquisas que um dos professores do curso, Pio Figueiroa, da Cia de Foto, sugeriu que eu me detivesse por algum tempo sobre uma única imagem e me concentrasse sobre a leitura de Merleau-Ponty, posteriormente discutido também por outros professores. Com esta imagem comecei a entender a possibilidade de fundir os papéis de quem olha e quem é visto. Passei então a buscar no acervo imagens nas quais eu pudesse dissolver os personagens (os retratados ou os espectadores),

operando

numa

construção

que,

devido aos apagamentos, pudesse destacar e retirar mais de uma cena de dentro da mesma

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Fotografia realizada no Metropolitan Museum of Art, que serviu como ponto de partida para a realização da série Corpo Vidente, Corpo Visível.

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fotografia, dando também às pinturas uma condição viva. O processo de trabalho firmou-se na busca de imagens que tivessem potencial para se converterem em metáforas daquilo que se quer evidenciar. Reeditadas, elas compõem discursos que assumo como construções poéticas feitas dos próprios fragmentos de experiências coletados numa espécie de pesquisa de campo. Neste período, continuei alimentando o acervo com novas imagens, mas, cada vez mais, as fotografias que produzo são pensadas não tanto como registros de acontecimentos, mas como etapas de investigação sobre algo que não se pode ver imediatamente e que não está previamente denominado. Gradativamente tomei consciência de que faço parte do fluxo de olhares que se constrói nesses espaços, assumindo uma posição que me integra a essas relações ao mesmo tempo em que tento observá-las. Isso me faz pensar que a fotografia não é um instrumento neutro, mas um dos nós dessa trama de olhares que tento compreender. Enquanto fotografo, tento apenas intuir aquilo que pode sugerir a complexidade do olhar dentro das dinâmicas constituídas nesses espaços. Nos primeiros registros que fiz em museus, as fotografias apenas reagiam aos movimentos feitos pelos espectadores enquanto buscavam ocupar um lugar que permitisse

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estabelecer algum tipo de relação com as obras. Aos poucos, tanto o corpo quanto os elementos do espaço revelaram-se instâncias que participam da dinâmica do olhar. Como ocorreu com Merleau-Ponty, o diálogo constante com esse acervo se dá muitas vezes a partir de questões pontuais que são sugeridas tanto pelas leituras teóricas quanto por aspectos percebidos nas exposições: um tipo de gestualidade, uma forma de organização do espaço, a presença de certos objetos como câmeras fotográficas e áudio-guias, uma reação do corpo a certos elementos das obras. Por sua vez, esse diálogo assume o arquivo como uma espécie de memória da pesquisa que realimenta e direciona aquilo que busco em visitas posteriores a outras exposições. Com o acompanhamento de outra professora, Carol Lopes, também da Cia de Foto, passei a estudar diferentes possibilidades de tratamento da imagem, ganhando aos poucos autonomia no uso das ferramentas de edição e buscando o sentido que cada recurso poderia acrescentar ao trabalho.

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Permitindo a manipulação das condições de luz e da perspectiva, os exercícios apontaram uma forma de dar papéis intercambiáveis aos espectadores e aos personagens retratados. Ou seja, enquanto o retrato parece ganhar vida, os espectadores assumem a condição de pintura. Isso permitiu materializar uma questão que já permeava a pesquisa: o modo como a


obra devolve o olhar ao espectador. O escuro, que se instaura na representação do espaço expositivo, apaga a distância e a hierarquia que distinguem o sujeito que olha do objeto que é olhado. Com esse foco, passei a buscar no acervo imagens que permitissem construir essa situação de intercâmbio ou de algum outro tipo de mimetização entre público e pintura. O processo foi acompanhado por diversos testes de impressão com diferentes tipos de papel, formatos e programações na saída de cada impressão, até chegar ao conjunto aqui apresentado. Está claro que ser olhado é, para Didi– Huberman, muito mais do que a ilusão de que os olhos de um personagem da pintura se voltem para o espectador. Esse olhar concreto do retrato é, neste trabalho, uma espécie de metáfora da vitalidade e da densidade histórica que qualquer obra pode adquirir, fazendo com que nos sintamos olhados por ela. Agora sou eu quem está diante de uma imagem, sendo vista por ela e por todos os agentes nela implicados. A pintura é, em princípio, uma superfície que se oferece inteira ao olhar. Mas ela é feita também de camadas mais obscuras de significação que a autoridade do olhar não alcança. Nesse sentido, vale para a pintura aquilo que discutimos no exemplo do túmulo dado por Didi-Huberman. A História da Arte,

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como método, tenta desvendar o contexto de produção da imagem para torná-la legível, para torná-la próxima desse olhar. Mas a história de uma obra de arte – desta vez, não a história como método, mas como o tempo que carrega, como a trajetória que cumpriu – impõe outra distância, uma profundidade obscura onde o olhar não penetra e os métodos de interpretação mostram-se insuficientes. É aqui que se abrem fissuras na superfície por onde a imagem nos olha. Quando nos sentimos olhados pela imagem, Didi-Huberman sugere a existência de um efeito de fantasmagoria. Assim como as igrejas, o museu é um espaço um tanto sacralizado, solene, silencioso. Tal como os cemitérios, é também o local dedicado a abrigar objetos mortos: imagens transportadas de seu lugar original para um espaço de conservação e memória. As analogias entre estes espaços reforçam com frequência a sensação assombrosa de que algo nos espia. Vale lembrar que, para Didi-Huberman, isso não é apenas uma ilusão trazida pelo realismo das obras, é um movimento real provocado pelo tempo que se adensa nas imagens.

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No tratamento e na edição das imagens, a elaboração da luz, contraste, textura, cor, perspectiva e o reenquadramento reforçam os aspectos obscuros do museu e também a ideia de fantasmagoria. Pontualmente, busquei destacar com a luz a expressão dos rostos e o olhar dos retratados, bem como a escuridão


que toma todo o ambiente do museu. Ao perturbar as referências que definem a perspectiva do espaço físico, o escuro pretende representar essa outra profundidade, as camadas construídas pelo tempo, que vão além da superfície da pintura e, nas minhas fotografias, parecem dar movimento ao olhar dos retratados. Esse modo de tratamento faz referância a luz pontual e as densas áreas escuras das pinturas barrocas. Luz e sombra são aqui artifícios que compõem as propriedades da representação, seja a pintura ou a fotografia. Por isso, são manipuláveis pela técnica. Mas a legibilidade desses elementos está também apoiada em uma experiência real: “Merleau-Ponty diz que não é apesar de os objetos se dissimularem através de reflexos, sombras e horizontes, que nós os vemos; ao contrário, afirma que graças a isso é que temos o rico espetáculo do mundo. (...) Sombra e luz acompanham nossa vivência com os objetos. Assim, não estamos diante das coisas do mundo como meros espectadores, mas entre as coisas, interagindo com elas.” (CARMO, 2002 : p. 47).

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Chegar ao Pr贸ximo Come莽o

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Diante

da tarefa de “concluir” este trabalho, confesso chegar a esta etapa com mais aberturas do que quando iniciei a Pós– Graduação em Fotografia aqui na FAAP. Lembro-me de terminar a monografia da graduação numa situação semelhante, com a sensação de que não haveria um fim possível para aquele trabalho. Retornei agora ao que havia escrito naquela ocasião e, apesar da angústia se repetir, fico satisfeita por perceber que o trabalho atual se desenvolve exatamente sobre as aberturas e as questões não respondidas que restavam naquele momento. Ao tentar entender a complexidade do olhar, eu lancei-me em um caminho que me convida a ampliar ou deslocar a pergunta que move a pesquisa a cada vez que uma resposta parece ter sido alcançada. Isso é da natureza das coisas que acreditamos serem complexas. Ao longo da pós-graduação, vivi a ansiedade de mergulhar em discussões teóricas e de tentar responder a elas por meio de autores igualmente complexos, como Merleau-Ponty e Didi-Huberman. O desejo de dar conta dessas

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leituras teve impacto no meu cronograma e atrasou a produção do meu trabalho fotográfico. Por algum tempo, eu parecia estar mergulhando numa pesquisa que seria apenas – como se fosse pouco – de ordem teórica. Mas esse foi o tempo e o processo necessários para formular as questões que me levariam de volta às imagens. Mesmo que minha compreensão desses autores ainda seja insipiente, foi Merleau-Ponty que me ajudou a nomear a reciprocidade do olhar que passei a buscar nas imagens. Didi-Huberman, por sua vez, me ajudou a compreender o modo como as imagens acumuladas em um arquivo olhavam–me de volta, provocavam-me e impunham-me elementos que não foram percebidos no momento em que foram feitas. Tem sido um grande aprendizado perceber que uma leitura, uma aula, uma discussão teórica, qualquer um desses momentos de aparente imobilidade, é também processo de criação. O que permanece aberto neste momento já se desdobra em novos caminhos. No segundo capítulo desta monografia, reuni algumas leituras sobre a noção histórica do museu

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já com a intuição de que o olhar interage não apenas com a obra, mas com esse sentido definido pelo espaço. Questões que se desdobram dessa intuição começam a guiar uma nova etapa do trabalho: de que maneira a configuração do espaço, as políticas institucionais, as decisões curatoriais participam efetivamente dessa performance complexa que é o olhar? Essa pergunta, que já estimula novas leituras, mas que ainda não se materializa muito claramente nas imagens, configurou um novo projeto que foi aceito pelo programa de Residência Artística oferecido pela FAAP, em parceria com a Cité Internationale des Arts de Paris, para o primeiro semestre de 2014. Retorno, portanto, à cidade onde, há quatro anos, as primeiras questões desta pesquisa se colocaram com a série Le Gioconde, realizada no Museu do Louvre. Esta conclusão é, portanto, a introdução de uma nova etapa de pesquisa já desencadeada. Felizmente, as dinâmicas do olhar têm se revelado um tema tão inesgotável quanto meu desejo de aprendizado.

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