Nova era de intolerência

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NESSES dias de uma crise acirrada acerca do que os antipatizantes do feminismo e os homofóbicos, disfarçados de salvadores da família e da humanidade, denominaram de “ideologia de gênero”, entendida como uma política gay de formação/transformação de crianças desde a mais tenra idade em homossexuais, a ser inserida na educação brasileira, deparei, na casa de um amigo, com o livro “Heróis e Exílios: ícones gays através dos tempos”, de Tom Ambrose, de 2011, publicado pela editora Gutenberg. Esse apareceu para mim num momento oportuno de reflexões sobre essa nova era de intolerância em que estamos vivendo, aqui no Brasil. Li, inicialmente, o último capítulo, intitulado “O fim do exílio”, que me permitiu questionar se não estamos de volta aos tempos em que o exílio parece ser a única saída, quando se deseja a vida. Eis aqui um resumo-comentário desse texto.

Ambrose começa abordando a “nova era de intolerância”, que é religiosa e homofóbica, em parte do Oriente, na África e no Sudeste da Ásia, devido à ascendência do fundamentalismo religioso. Diz-nos que o moderno extremismo contra os gays é um eco sinistro da homofobia

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Por Dr. Ismar Inácio dos Santos Filho Letras-UFAL/Campus do Sertão 24/06/2015

No início do capítulo “O fim do exílio”, Tom Ambrose faz menção ao título, ao afirmar que no Ocidente os homossexuais não são mais perseguidos, não sendo, portanto, impelidos ao exílio, visto que, segundo pondera, “a tolerância é legalmente consagrada na maior parte das democracias”. Porém, se esperamos, devido ao título, uma abordagem de como as democracias construíram tal tolerância, legalmente aceita, estranhamos o caminho diferente seguido pelo autor, já que na maior parte do texto trata da intolerância. No entanto, mesmo que o tratamento da questão seja outro, diferente do que primeiramente inferimos, a reflexão é muito oportuna e necessária, de modo a fazer-nos perceber o que é possível que aconteça em terras brasileiras, já que estamos vivenciando momentos de grandes e graves intolerâncias às liberdades morais e sexuais. O capítulo, então, discute a intolerância no mundo não ocidental, informando sobre práticas homossexuais desde períodos históricos outros e como essas sociedades lidaram com os homossexuais.

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NA ERA DA INTOLERÊNCIA, REFLEXÕES NECESSÁRIAS!


A abordagem histórica se fez importante para Tom Ambrose esclarecer que a tolerância aos homossexuais teve fim a partir do momento em que os fundamentalistas subiram ao poder, tendo, portanto, a ascensão da homofobia com a Primeira Guerra Mundial. Para o autor, essa nova era homofóbica começou atacando aos gays, denominando-os de “pedófilos corruptores”, atacando, assim, líderes políticos por sua suposta homossexualidade. Essa nova era de intolerância é denominada de “cruzada homofóbica”, que se configura como uma nova crítica à homossexualidade, sendo, portanto, essa tratada como “retrocesso”, o qual deve ser banido, banindo, portanto, autores considerados “degenerados”, queimando seus livros. Outra estratégia é a criação de uma “legislação religiosa” imposta à nação, para a qual a “sodomia” recebe pena de morte, fundada numa “punição religiosa”, na qual não se deve ter piedade, tampouco compaixão, e que, assim, “Louvado seja Deus”. Essa cruzada homofóbica se estende até aos dias de hoje, frente ao que denominam de comportamentos imorais, que, segundo sustentam esses “inquisidores”, devem os homossexuais ser torturados e executados. É a construção de um “Estado

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Num contraponto, Ambrose, a partir dos estudos da pesquisadora e escritora feminista Janet Atary, realizados a partir de textos antigos, informa-nos que os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo são característicos da sociedade iraniana ao longo de toda histórica, sob a forma de “amor grego”, no qual “um homem mais velho ensina e protege o mais jovem”. Em Antenas, por exemplo, era tutelado de “regras de comportamento e cortejo”. Cita também que na Pérsia, ainda no século XIX, havia a manutenção de concubinos-meninos, como uma prática comum de o homem manter um garoto, além da esposa. Ispis verbis explica que “talvez, surpreendentemente, tais tradições ainda eram comuns no início do século XX, quando a

sociedade iraniana continuava a aceitar as práticas homoeróticas, tanto masculinas quanto femininas”.

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europeia e que se configura a partir de uma interpretação rigorosa e violenta de preceitos religiosos. Relata que no mundo islâmico, por exemplo, 26 países tratam a homossexualidade como “ilegal”, sendo essa punida com brutais penas, com a execução, além de implementarem campanhas contra relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo, levando muitas ao exílio em outros países. Para esse autor, essas atitudes frente à homossexualidade se assemelham àquelas enfrentadas pelos homossexuais na Alemanha nazista, que eram punidos com prisão e morte.


que o que é chamado de “problema gay” é uma estratégia de desvio da atenção para o regime de corrupção. Na África, apenas a República da África do Sul recusou-se a assumir tal perspectiva homofóbica, e tornou-se um país líder mundial nos direitos civis para os homossexuais, tendo proscrito legalmente a discriminação de gays e lésbicas. A Europa progressivamente aceita a homossexualidade.

Ambrose comenta sobre a questão na Arábia Saudita, informando que lá a sodomia deve ser tratada com a morte, mesmo que essa atitude seja rara. No entanto, comenta que, de modo antagônico, muitos homens que mantem relações com outros homens não se sentem gays, pois a relação entre eles seria apenas uma satisfação de desejo e de necessidade temporários; não é identidade. Assim, “um homem também não perde a masculinidade com um encontro desse tipo, desde que desempenhe o papel ativo no sexo”. Para o autor, na África o assunto é dividido. Cita o caso de Uganda, onde, para religiosos cristãos, os homossexuais devem receber prisão e punição. Nesse entendimento, os políticos reagem ao que denominam de rápido crescimento do número de gays e lésbicas, criminalizando a homossexualidade. O argumento se sustenta na noção de que a homossexualidade é contra a vontade de Deus. Porém, Tom Ambrose salienta também

Nos Estados Unidos, nessa nova era de intolerância, a homossexualidade foi associada ao comunismo, à subversão. Afirma o autor, no entanto, que, num outro extremo, “a sociedade sexualmente aberta e tolerante (...) começa a se esboçar, pelo menos no Ocidente. Segundo ele, essa outra postura se deveu/deve à atitude de gays de não se intimidarem. Cita, então, o caso “Stonewall Riots”, de 1969, nos Estados Unidos, no qual os gays reagiram contra seus opressores, provocando-os. Explica também que a identidade gay surge na Europa do século XVIII, quando se deu a emergência de uma “cultura gay”, decorrente da

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Outra estratégia é a criação de uma “legislação religiosa” imposta à nação, para a qual a “sodomia” recebe pena de morte, fundada numa “punição religiosa”, na qual não se deve ter piedade, tampouco compaixão, e que, assim, “Louvado seja Deus”. Essa cruzada homofóbica se estende até aos dias de hoje, frente ao que denominam de comportamentos imorais, que, segundo sustentam esses inquisidores, devem os homossexuais ser torturados e executados. É a construção de um “Estado policial”.

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policial”. Diria que é a construção de um Estado policial religioso.


Referência AMBROSE, Tom. O fim do exílio. In. Tom Ambrose. Heróis e Exílios: ícones gays através dos tempos. Belo Horizonte: Gutenberg, 2011, p. 189-198.

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Após a leitura desse texto, questiono-me se não estamos vivendo aqui no Brasil uma “nova era de intolerância”, que se configura como religiosa e homofóbica. Questiono-me se não estamos também construindo uma legislação religiosa: o caso em que diversas instâncias legislativas proibiram os estudos de gênero e de sexualidade no sistema educacional e construíram emendas para esse fim parece assim se configurar. Do mesmo modo que aconteceu em períodos passados e em sociedade outras, parece que precisamos mesmo de mais “surtos de criatividade” para melhor lidar

com tais estratégias de ira contra @s bich@s. Precisamos reagir à construção de um Estado policial religioso que está em andamento no Brasil. Com tais considerações, recomendo a leitura do capítulo aqui resumido-comentado, e também do livro no qual esse texto se encontra.

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migração dos gays para a cidade e também da resistência desses à perseguição. Ambrose continua esclarecendo que somente aí as “pessoas sexualmente atraídas por outras do mesmo gênero começaram a se definir em termos de sua sexualidade”. Para ele, antes disso, existiam “atitudes homossexuais”, não “pessoas homossexuais”. Logo, “a diferença entre ‘o homossexual’ e ‘o heterossexual’ era, assim, uma novidade”. Na conclusão, cogita a possibilidade de construirmos novamente essa noção, dirimindo diferenças entre os sujeitos, diferenças que a nosso ver são as causas da homofobia. Pondera, ao final, que tais períodos de embates foram importantes para que existissem reações, “surtos de criatividade” que possibilitaram novos modos de ser e de pensar a homossexualidade.


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