A construção do real na criança

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A construção do real na criança

Prefácio

a íntima relação entre o universo sensório-motor e a inteligência expressa verbalmente, sobre a "continuidade funcional entre o sensório-motor e o representativo". Na verdade, este estudo de Piaget é mais abrangente do que apenas a questão da fala. Além dela, são tratados a imitação e o jogo simbólico. A razão dessa opção é fundamental na teoria piagetiana. Para ele, o que marca a passagem do estágio sensório-motor para o seguinte (pré-operatório) é a emergência da função simbólica ou semiótica, ou seja, a capacidade de trabalhar com representações. Escreve ele na "Introdução" desse livro:

v lução da i teligência. Por fim, e de forma contemporânea da llilltação e do Jogo, verifica-se a presença dos primeiros "pré-conceitos", esquemas verbais que nascem dos esquemas motores. . Tanto a imitação uanto o jogo simbólico e a fala supõem que a cnança se reporte a objetos, que os situe no tempo e no espaço, que repre ente relaç es de causalidade. Ora, o estudo da gênese desta capacidade de situar-se no universo é justamente tema do texto La construction du réel chez l'enfant.

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Esforçar-nos-emos em mostrar que a aquisição da linguagem é, ela mesma, subordinada ao exercício de uma função simbólica que se afirma tanto no desenvolvimento da imitação e do jogo quanto. naquele dos mecanismos verbais.

A capacidade de imitar tem sua gênese no começo da vida. Nos quatro primeiros meses, ela é primitiva, essencialmente "desencadeada": a criança ouve um choro e também chora, numa espécie de contágio. A partir dos cinco meses, ela passa sob o controle da intenção e se torna comportamento sistemático. Porém ainda sofre sérias limitações: o bebê somente imita o que já sabe fazer, não copia modelos novos; tampouco consegue imitar gestos de outrem que correspondam a partes invisíveis de seu corpo (abrir e fechar a boca, por exemplo). É preciso esperar até quase o início do segundo ano de vida para que tais limitações sejam superadas. E é preciso esperar ainda mais, até os 18 meses, para que a criança consiga imitar novos modelos ausentes, ou seja, que ela viu mas não imitou imediatamente após o espetáculo. Ora, esta capacidade de "imitações diferidas" traduz justamente a entrada da criança no mundo do símbolo: ser capaz de apoderar-se do mundo através de representações deste, no presente caso, de imagens mentais. Mais ainda: a atividade de imitação prepara, ela mesma, a capacidade de representação. É um esforço de acomodação (procurar respeitar as características do modelo). Mesma coisa pode-se dizer do jogo simbólico, que se desenvolve paralelamente ao desenvolvimento da capacidade de imitar, mas que representa um primado da assimilação. Aos 18 meses, a cria n ça brinca, por exemplo, de "fazer de conta". Tal capacidade de fazer de conta também traduz a presença da função simbólica e, com a imitação, está intimamente relacionada com a

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b) a construção do real . A passagem do caos ao cosmo: tal é, segundo expressão do próprio Piaget, o que o estudo sobre a construção do real vai descrever e explicar. A criança nasce em um universo para ela caótico habitado por objetos evanescentes (que desapareceriam uma ve fora do campo da percepção), com tempo e espaço subjetivamente sentidos, e causalidade reduzida ao poder das ações, em uma forma de onipotência. No final do período sensório-motor, a criança já se concebe dentro de um cosmo, com objetos, tempo, espaço, causalidade objetivados e solidários, entre os quais situa a si mesma como um objeto específico, agente e paciente dos eventos que nele ocorrem. Não é por acaso que Piaget intitula as conclusões gerais de "A e aboração do niverso". Nem por pretensão: é realmente essa grandiosa aventura mtelectual que ele nos narra e explica, ilustrada com exaustivas observações de bebês. O esquema do livro é "cartesiano". Piaget vai metodicamente por partes, reservando um capítulo para cada elemento que compõe um universo "sólido e permanente", a saber, a noção de objeto, o campo espacial, a causalidade e o campo temporal. Porém, o que é notável - e coerente - é que, na verdade, se trata com freqüência ?ªs mesmas observações de comportamentos dos bebês, só que m erpretadas _seja do onto de vista da construção, seja do objeto, se}a da causalidade, seJa do tempo ou do espaço 6• Evidentemente, Piaget não repete ipsis litteris suas observações, mas sim as enriquece dos aspectos atinentes ao tema estudado. Tomemos o exemplo da noção de objeto permanente, ou conservação do objeto, aspecto central da construção do real7 • Ela diz evidentemente respeito à construção da noção de objeto, considerado como existindo de maneira independente de ser percebido.


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Refere-se também ao espaço, uma vez que quem diz "objeto" também diz que este ocupa determinado lugar no universo. Portanto, a permanência desse objeto acompanha uma estruturação do espaço: por exemplo, os objetos podem estar uns atrás dos outros, fato que e x p lica tornarem-se momentaneamente invisíveis. Qganto à causalidade, a construção da noção de objeto permanente implica a relativização do poder da ação própria: a existência e o lugar dos objetos independem (ou podem independer) dela. A ésse objeto, a quem reconhece a independência no que tange sua existência, a criança vai também começar a atribuir causalidade própria, no sentido de ser possível causa de transformações no universo (isso fica particularmente claro em relação aos objetos-pessoa, que passam a ser vistos como fontes autônomas de ação). Finalmente, a noção de campo temporal também evolui: a criança, que antes limitava-se a lembrar a seqüência de suas ações, passa agora a rememorar a seqüência dos eventos exteriores. De fato, a noção de objeto permanente implica que a criança lembre do quadro anterior a seu desaparecimento no campo da sua percepção e o situe em relação ao que vê. Em resumo, a solidariedade entre todos esses aspectos e x p lica o fato de Piaget olhar os mesmos comportamentos infantis por vários ângulos diferentes. Há mais um aspecto a ser lembrado: a evolução da inteligência, estudada no primeiro volume da trilogia. E m A construção do real, Piaget incessantemente remete o leitor aos passos do desenvolvimento das estruturas cognitivas estudadas em O nascimento da inteligência. De fato, as progressivas construções do real (a "e x p licação") estão intimamente relacionadas aos progressos da inteligência (as "implicações"). De maneira recíproca, tais progressos não se e x p licam por processos independentes da interação com o meio. Construção do real e de estruturas cognitivas são indissociáveis. Eis a tese central do "construtivismo" piagetiano: é estruturando o real que o homem se estrutura, e a cada progresso na direção do conhecimento do mundo exterior corresponde um progresso na direção do auto-conhecimento. Citemos um trecho da "Introdução" da Construção do real (p. 6 da edição francesa, tradução minha): É quando o sujeito está o mais centrado sobre si mesmo que ele se conhece menos, e é à medida que se descobre que se situa em um universo

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e o constitui. E m outros termos, egocentrismo significa ao mesmo tempo ausência de consciência de si e ausência de objetividade, ao passo que a construção do objeto enquanto tal caminha junto à tomada de consciência de si.

Além de se chamarem "A elaboração do universo", as conclusões também poderiam levar o título de "A construção de si enquanto sujeito". c) a socialização Os estudos de Piaget sobre o desenvolvimento dos vários aspec:os da inteligência sensório-motora tiveram ampla repercussão: mU1tos autores de correntes várias empregaram as observações de Piag t p a r f rçar suas próprias teorias. Muit s v_ezes, segundo Goum-Decar1e , o fizeram de forma bástante artificial, ficando na superfície da teoria, valendo-se mais dos comportamentos observados do que do sentido psicológico que Piaget lhes atribuía. Entre aqueles que, de fato, enriqueceram a teoria piagetiana, eu sublinharia o trabalho de Spitz9 , que, através de exaustivas observações, articulou os dados e idéias de Piaget à formação do ego, pensada na perspectiva psicanalítica. Sublinharia também o trabalho de GouinDécarie 10 sobre correlações positivas entre aspectos do desenvolvimento da inteligência e do conhecimento e as "relações objetais", portanto afetivas. Trabalhos como os desses dois autores levantam justamente uma questão sobre a qual a teoria de Piaget foi sempre problematizada: as relações entre afetividade e inteligência. Para ele, investimentos afetivos - em essência realizados sobre pessoas, mas não exclusivamente - não e x p licam os processos de estruturação da inteligência. A afetividade corresponde à energética, à motivação, portanto ao que move as ações. Tomemos um exemplo. No livro A construção do real, escreve ele a respeito da relação do bebê com as pessoas: [... ] as pessoas constituem os quadros sensoriais mais fáceis de serem substantificados pela criança: é, portanto, natural que já aos 8 meses Jacqueline se comporte assim em relação a seu pai (retira um lençol que o esconde), enquanto ainda não encontra um brinquedo qualquer escondido atrás de um anteparo (p. 44 na edição francesa, tradução minha).


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Ao estudar a construção da noção de objeto permanente, Piaget acredita que os primeiros objetos permanentes sejam pessoas. O!iais são as razões? Uma primeira puramente cognitiva: tais objetos são muito presentes e ativos na vida da criança, chamando a atenção sobre eles. Outra razão pode ser acrescentada: a relação de afeto existente entre esses objetos e o bebê. Tal afeto não 'e x plica a construção da noção de objeto permanente, mas pode explicar por que os primeiros construídos são pessoas, notadamente a mãe, como mostrado por Silvia M. Bell 11 • Em resumo, cognição e afetividade caminham juntas. A segunda impulsiona a primeira, e a primeira explica como a segunda se torna possível. Como nota Berthe Reymond-Rivier,

pensar que a criança que os emprega já está começando a diferenciar "objetos sociais" de outros "inanimados". Vale dizer que está construindo um "real social", que discrimina de um "real físico". Tais esquemas abertos observam-se entre 4 e 9 meses de idade. A partir de 9 meses, os autores verificam existir uma comunicação por parte do bebê. Ele começa a ser capaz de empregar prato-imperativos e prato-declarativos. Os proto-imperativos traduzem-se por certas "ordens" que a criança dirige aos adultos; por exemplo, olhar um objeto, dirigir a mão do adulto em direção ao objeto, etc., para que seja pego por ele. Esses novos comportamentos são coerentes com as observações de Piaget: para ele, na mesma idade, a criança começa a atribuir às pessoas causalidades próprias, ou seja, considerálas como fonte autônoma de ações. Porém, Pi a g et não enfatiza a construção desse objeto social nem a comunicação implicada. Os protodeclarativos - por exemplo, mostrar um objeto para que o outro o olhe também, não para que o dê - diferenciam-se dos proto-imperativos pela intenção de comunicação. Escrevem os autores:

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não é por acaso que a angústia dos oito meses, que marca o advento das relações objetais, coincida com o início do quarto estágio, precisamente o da procura de objetos desaparecidos u .

A relação inteligência-afetividade levanta outro problema: o da socialização da inteligência. Em outro texto, Piaget deixou clara sua posição:

Enquanto nos prato-imperativos a intenção endereça-se aos objetos, nos prato-declarativos o objetivo da criança é comunicar, manter a experiêcia social, dividir a atenção com o outro e/ou transmitir informação predicativa (ou melhor, pré-predicativa) a respeito de objetos, eventos ourelações (p. 230).

No período sensório-motor, que precede a aparição da ling ua gem, ainda não podemos falar em socialização da inteligência: aliás, trata-se do único período em que podemos falar em uma inteligência puramente individual13 •

Vale dizer que só haverá socialização da inteligência graças à comunicação verbal. Porém, qual a gênese desta? Não haverá uma comunicação pré-verbal, portanto, esquemas de ação especializados ao convívio com pessoas antes do advento da função semiótica? E, se existirem, não seremos obrigados a introduzir, dentro do processo de construção da inteligência, relações sociais, portanto socialização? É essa posição de Angel Riviere e César Coll14 em artigo onde trazem novas observações e novos conceitos (baseando-se em vasta revisão bibliográfica). Falemos de três deles, ao meu ver os mais importantes. Os autores se referem a esquemas abertos, esquemas que "exigem a ação do outro para ser completado" - por exemplo, levantar os braços para ser pego no colo. Tais esquemas pressupõem a coordenação da ação própria com a de outra pessoa e, portanto, levam a

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Em uma palavra, com os proto-declarativos as crianças iniciam um "diálogo", uma reciprocidade comunicativa com seus congêneres humanos. Para Riviere e Coll, sem a presença desses esquemas de interação genuinamente social, a formação dos símbolos (mas não a da função semiótica que tem outras traduções, como por exemplo, a imagem mental) não se e x plicaria. Os símbolos são construções exigidas pelo desenvolvimento da comunicação; não seriam jamais necessários num contexto não comunicativo (p. 237).

Os conceitos que acabamos de mencionar enriquecem certamente as observações e as interpretações de Piaget. Não acredito que desmintam a afirmação piagetiana segundo a qual a inteligência sensório-motora nada deve à socialização. O que Piaget quer dizer com isto é que tal inteligência ainda não "recebe" nada dos adultos. Não
































































































































































































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