PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Monografia: Trabalho de Conclusão de Curso
O EROTISMO E A PROSTITUIÇÃO: do imaginário libertino às praticas do comércio sexual em Belo Horizonte
Renato Palhares
Belo Horizonte 2010
Renato Palhares
O EROTISMO E A PROSTITUIÇÃO: do imaginário libertino às praticas do comércio sexual em Belo Horizonte
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção de título de Bacharel em Ciências Sociais. Orientadora: Fernanda Cimini Salles
Belo Horizonte 2010
Renato Palhares “O erotismo e a prostituição: do imaginário libertino às praticas do comércio sexual em Belo Horizonte”
A Monografia “O erotismo e a prostituição: do imaginário libertino às praticas do comércio sexual em Belo Horizonte”, elaborada por Renato Palhares e aprovada por todos os membros da Banca Examinadora, foi aceita pelo Departamento de Ciências Sociais como requisito à obtenção de título de BACHAREL EM CIÊNCIAS SOCIAIS. Belo Horizonte, 2010.
----------------------------------------------------------------------Fernanda Cimini Salles (orientadora) - PUC - MINAS
----------------------------------------------------------------------Manoel de Almeida Neto - PUC - MINAS
----------------------------------------------------------------------Regina de Paula Medeiros - PUC - MINAS
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos que contribuíram para a realização deste trabalho. Em especial à professora, orientadora e mestre Fernanda Cimini Salles, que tornou possível a realização deste trabalho, com dedicação, paciência e muita generosidade. Também à doutora e professora Regina de Paula Medeiros que deu
as
orientações
iniciais
e
seu
apoio,
sempre
que
necessário,
proporcionando uma maior tranquilidade para a pesquisa. À minha família, esposa e filhas, pela compreensão e apoio irrestrito em todos os momentos.
EPÍGRAFE
A puta “Quero conhecer a puta. A puta da cidade. A única. A fornecedora. Na rua de Baixo Onde é proibido passar. Onde o ar é vidro ardendo E labaredas torram a língua De quem disser: Eu quero A puta Quero a puta quero a puta. Ela arreganha dentes largos De longe. Na mata do cabelo Se abre toda, chupante Boca de mina amanteigada Quente. A puta quente. É preciso crescer esta noite inteira sem parar De crescer e querer A puta que não sabe O gosto do desejo do menino O gosto menino Que nem o menino Sabe, e quer saber, querendo a puta.” Carlos Drumond de Andrade
SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO........................................................................................ 07 2 O LUGAR E O PODER DO EROTISMO NA TRADICIONAL FAMÍLIA MINEIRA: DA PORNOGRAFIA E LIBERTINAGEM EUROPÉIAS À PROSTITUIÇÃO EM MINAS GERAIS............... 12 2.1 PROSTITUIÇÃO: UMA PROFISSÃO DESDE SEMPRE....................... 12 2.2 PROSTITUIÇÃO, PORNOGRAFIA E ARTE.......................................... 13 2.3 DA PORNOGRAFIA A LIBERTINAGEM............................................... 16 2.4 AS TÉCNICAS DO CORPO .................................................................. 20 2.5 O IMAGINÁRIO ERÓTICO, A PROSTITUIÇÀO NO BRASIL (MINAS GERAIS) E A TRADICIONAL FAMÍLIA MINEIRA................................. 22 2.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE O CAPÍTULO............................... 30
3 EROTISMO E PROSTITUIÇÃO EM BELO HORIZONTE........... 33 3.1 A PROSTITUIÇÃO NO BAIRRO BONFIM – FORMAS LOCAIS DE COMÉRCIO SEXUAL.............................................................................. 33 3.2 BREVE DESCRIÇÀO DE UM HOTEL DE PROSTITUIÇÃO EM BH...... 40 3.3 O ENCANTAMENTO EROTIZADO DO CLIENTE E A NEGOCIAÇÃO DOS PROGRAMAS........................................................ 44 3.3.1 Os preços da prostituição................................................................... 46 3.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE CAPÍTULO..................................... 49
4 PROSTITUIÇÃO, PODER E TRABALHO........................................ 51 4.1 AS RELAÇÕES DE PODER, A PROSTITUIÇÃO E A LUTA DA MULHER.............................................................................................. 51 4.2 EROTISMO E PROFISSÃO...................................................................... 56 4.3 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CAPÍTULO.............................................. 58
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................. 59 6 REFERÊNCIAS........................................................................................ 63
1. Introdução
Iniciamos este trabalho fazendo referência à figura de Gabriela Leite, Idealizadora da famosa grife Daspu, que lançou em 2008 sua autobiografia: “Filha, Mãe, Avó e Puta”, onde conta entre outras coisas, como largou a faculdade de filosofia para se tornar prostituta. No livro relata também sua falta de vocação para ser mãe, e algumas histórias da época em que se prostituía, apresentando também ao longo do texto, em forma de lição para a profissão, os dez mandamentos de uma prostituta, conforme a seguir:
1. Serás discreta. Jamais apontarás um homem na rua e dirás que ele é teu cliente; 2. Não beijarás na boca. Beijo na boca é afetivo, só o darás a quem quiseres; 3. Não terás cafetão. Não cairás nesta cilada, sob pena de acabares na sarjeta; 4. Não revelarás a fantasia do próximo. A fantasia do teu cliente é secreta e sua identidade jamais poderá ser violada; 5. Não te apaixonarás pelo teu cliente;6. Não sairás da zona para morar com o cliente, sob pena de na primeira briga ele jogar na tua cara: "Fui eu que te tirei da vida!" E tu voltarás para a zona com o rabinho entre as pernas; 7. Terás ética. Nunca misturarás diversão e trabalho, mas deverás desfrutar das duas coisas; 8. Cobrarás. Dentro da zona jamais poderás receber um cliente sem que ele pague por teus serviços; 9. Desconfiarás da cafetina. Por mais que a dona da casa seja boazinha, não poderás ficar na mão dela. Terás que mostrar, com educação, que tu também és esperta; 10. Terás orgulho da tua profissão e usarás camisinha. (LEITE, 2008, p. 5-192) Os dez mandamentos da autora servirão como referência para nossa discussão sobre a profissão de prostituta, vis-à-vis nossas considerações sobre a prostituição, o imaginário e o erotismo. Toda profissão busca enfatizar os aspectos que a caracterizam e a fazem ser objeto de busca e perenização. A prostituição parece zombar disto tudo no sentido em que permeia algo que remete aos desejos mais íntimos, principalmente dos homens e que se relacionam às suas fantasias, tendo um mercado aberto e que se insinua para além das tentativas de sua extinção ou de sistematização. Neste sentido, é uma profissão “desde sempre” e que vai,
portanto, ao encontro dos desejos humanos, à necessidade de relações objetais variadas, que já bastante trabalhadas pela Psicologia, remetem também ao primado das relações sociais cotidianas. O que pretendemos pontuar é como a prostituição pode se perpetuar mesmo não tendo uma sistematização, mesmo sendo questionada e rechaçada sob vários aspectos tanto por homens como pelas mulheres e de ideologias e políticas diferentes? Como existe sua procura pelas mulheres – por motivos diversos - e também pelos homens mesmo em um universo de “democratização
do
desejo”
e
de
relações
mais
diretas
e
menos
preconceituosas relacionadas aos desejos sexuais e realizações de fantasias? O estudo da prostituição proporciona um recorte importante do imaginário social de qualquer sociedade ao possibilitar visualizarmos os diversos papéis desempenhados por homens e mulheres, pelos símbolos e signos que se relacionam com a mesma, dos contratos formais e verbais, dos espaços de comunicação e de ação política, de forma a ajudar na análise e compreensão do comportamento erótico e também da sociedade. Para melhor compreendermos essa realidade, importante se faz verificar alguns períodos da história que podem proporcionar uma visão mais ampliada da constituição da prostituição. O estudo se justifica também face aos conhecimentos que pode desvelar e que, estão relacionados com a prostituição, perpetuada por diversas práticas seculares e recorrentes em diferentes sociedades, e que se justapõem intrinsecamente com as questões em que se acha relacionada. Constitui-se de um grande universo de significações inserido no imaginário social e erótico, que se abre em consonância ao fazer social, relacionando-se também com a política, a religião, valores sagrados e profanos, etc., denotando também características de cunho moral e ético. Especialmente a prostituição e o erótico vão ao encontro das questões da mulher, inserindo-a como protagonista de seu fazer, e também da hipótese de que ela se estabeleceu como viabilizadora dos desejos e ambições masculinas, mas também como aquela que tem uma leitura do social, que confronta o poder e sua posição e que tem o seu fazer relacionado com a luta das mulheres em geral.
Permeada pelo erotismo latente, vamos verificar como a prostituição se conforma ou expande e quais suas diferenças e similaridades nas sociedades enfatizadas. Relativo à história passada no continente europeu e relacionada com a literatura pornográfica, vamos estudar como foi sua propagação e quais seriam seus possíveis objetos e figuras em destaque dentro de um período de grandes transformações e movimentos sociais. No Brasil, localizaremos sua irrupção no estado de Minas Gerais no período onde havia a exploração mineral e da mão-de-obra escrava. Em sentido mais amplo, vamos verificar se o erotismo que permeia a prostituição em todas as esferas se constitui como uma característica comum e basilar de sua conformação. Neste sentido, o objetivo de nosso trabalho será verificar nos períodos históricos de grande manifestação de questões relacionadas à prostituição e da efervescência do erótico, as suas principais características, os movimentos que proporcionou e as transformações que se sucederam. Também analisar de forma específica o que significou para a conformação dos espaços, da cultura e das questões relacionadas à mulher, quais sejam: O uso do seu corpo, a subordinação dos desejos, as questões que relacionam gênero e significados, poder e lutas femininas e feministas. Nosso estudo se dará pela análise das principais obras e autores relacionados ao tema, através de uma revisão bibliográfica capaz de abarcar elementos históricos, bem como das obras que discorrem sobre o imaginário, o erótico e sobre as estruturas sociológicas. Em termos metodológicos, nossa abordagem se aproximará dos conceitos referentes à Fenomenologia ou “Sociologia da vida Cotidiana” conforme Minayo (2000, p.55). O que pretendemos investigar aponta para as características contidas no método que sinaliza para uma epistemologia que investigará o mundo vivido pelas prostitutas na prostituição, - no que se relacionam com o erótico - tentando fazer a conexão entre o vivido e o revelado pela história e o que é experimentado no cotidiano.
De outro lado, e em
especial, enfatizaremos os aspectos denotados (de primeira ordem) pelas diversas práticas, mas procurando as origens das manifestações dos comportamentos e movimentos decorrentes, conforme abaixo:
Os objetos das ciências sociais são construtos em segunda potência. [...].O ponto de partida são os “construtos de primeira ordem” usados pelos indivíduos ou senso comum, ainda que contenha idéias vagas, imbuídas de emoção, fragmentadas e ambíguas. (MINAYO apud SCHUTZ, 2000, p. 56)
O que nos interessa é desvelar o que contém no discurso e nas práticas das mulheres em prostituição e que já se constitui como um saber (de senso comum e diluído nas diversas manifestações e práticas) que possa estar manifestado, mas não compreendido e relacionado a outras questões como aquelas que dizem respeito à própria mulher e seus movimentos e lutas. Por fim, faremos uma pequena pesquisa exploratória em um hotel em Belo Horizonte para o levantamento e conhecimento do ambiente onde a prostituição ocorre de forma ampliada, servindo também para relacionarmos a teoria com um exemplo real da irrupção do erotismo e a prostituição. A estruturação dos capítulos aponta para o universo pesquisado da seguinte forma: no primeiro capítulo, “O lugar e o poder do erotismo na tradicional família mineira: da pornografia e libertinagem européias à prostituição em Minas Gerais” vamos verificar historicamente como foi estabelecida a irrupção e disseminação da pornografia no continente europeu, sua relação com o erotismo e o surgimento de personagens, manifestações e movimentos diversos. Após, faremos uma pequena exposição sobre o corpo e suas técnicas, verificando sua relação com a prostituição. Também analisaremos a conformação da prostituição em Minas Gerais e sua relação com as questões sociais, como pobreza e escravidão. Aqui enfatizaremos aspectos relacionados ao poder, o lugar em que insere e sua confrontação com a Tradicional Família Mineira. Para tanto, nos valeremos da leitura deste imaginário, procurando elencar os pontos principais e sociológicos que denotem uma possível sincronia entre os acontecimentos e o espaço/tempo em que esta prática se insere e perdura. O segundo capítulo “Erotismo e prostituição em Belo Horizonte” faz um breve relato sobre o estabelecimento da prostituição na cidade em torno de um ambiente boêmio, altamente erotizado, procurando estudar a conformação dos espaços face ao comércio sexual. Para tanto, estudaremos os bairros Bonfim e
Lagoinha que se localizam na regional Noroeste da cidade e congrega parte da região central de Belo Horizonte. Mais a frente, vamos – através de uma pesquisa exploratória – levantar alguns dados de um hotel da cidade e demonstrar o que significam e qual a sua dimensão dos valores arrecadados com a prática. Também faremos uma descrição sumária deste hotel procurando aproximar os conceitos expostos neste trabalho de um ambiente real onde a prostituição se manifesta e perdura. O terceiro e último capítulo “Prostituição, poder e trabalho”, analisa a prostituição, sua relação com o poder e a luta da mulher. Aqui estudaremos como a relação entre a prostituição e erotismo se mistura com as reivindicações das mulheres em relação à profissionalização e às práticas utilizadas. Nas “conclusões sobre a pesquisa”, vamos tentar responder e consolidar as principais perguntas que formulamos ao longo do trabalho. Para tanto, vamos compor nossas reflexões tentando identificar e relacionar os diversos pontos levantados, estabelecendo qual a relevância do erótico em relação à prostituição, do imaginário social e dos possíveis movimentos que proporcionou.
2. O lugar e o poder do erotismo na tradicional família mineira: da pornografia e libertinagem européias à prostituição em Minas Gerais
O capítulo pretende analisar o universo simbólico em que a prostituta se insere e que perpassa o imaginário erótico e as fantasias sexuais de diferentes gerações. Sem a pretensão de esgotar o assunto, percorreremos a leitura de textos e artigos, desde aqueles relacionados à literatura pornográfica dos séculos XVI ao século XVIII, - onde surge a figura da prostituta libertina e dos primeiros questionamentos sobre o corpo - até os textos mais modernos que tratam da prostituição, bem como do processo histórico do comércio sexual. Em seguida, situaremos historicamente a prostituição em Minas Gerais, contrapondo sua emergência à tradicional família mineira – TFM.1 O objetivo é compreender como se deu a conformação do comportamento erótico em nossa sociedade, buscando perceber as relações entre essas fantasias e a prostituição.
2.1 Prostituição: uma profissão desde sempre
A prostituição é uma profissão que possui símbolos que permeiam outros aspectos da sociedade, tais como as relações que são estabelecidas, o seu significado na história, a conformação dos espaços, bem como as questões políticas, religiosas e econômicas relacionadas.
Qual é o seu
universo e o que abrange, o que significa, onde se estrutura, quais os seus papéis sociais e os seus valores, são algumas possíveis perguntas que surgem quando estudamos o tema. Aqui, vamos tentar responder a algumas delas, procurando evidenciar quais os significados principais que a prostituição mostra e faz irromper quando a mencionamos e que também permeiam o imaginário, os papéis sociais e os valores mais arraigados relacionados.
1
A partir deste ponto, nos referiremos à Tradicional Família Mineira pela abreviatura: TFM.
2.2 Prostituição, pornografia e arte:
O movimento pornográfico, se assim o podemos chamar, inicia-se na Itália no século XVI e posteriormente na França e Inglaterra entre o século XVII e XVIII. A pornografia adquiriu existência simultaneamente como prática literária e visual e categoria de pesquisa acompanhando a emergência da modernidade. Relacionada aos principais momentos históricos esteve viva no Renascimento, na Revolução Científica, no Iluminismo e na Revolução Francesa. No período compreendido entre os séculos XV e XVIII, vários foram os artistas que tentaram retratar o corpo e seus significados em suas pinturas, esculturas e textos literários, especialmente, o corpo que retratava a mulher em suas várias facetas. De um lado, muitas vezes, a mulher era exaltada e colocada à altura de uma santa. De outro, em sentido inverso, referenciando um universo mais mundano, como uma prostituta. Como toda mulher imaginada da época, os extremos de gênero feminino eram comuns e servia também para situar este corpo que demarcava as distâncias e preferências sociais e conceituais. Pois que, este “corpo referencial” denotava uma capacidade de nele serem depositadas uma série de significados culturais, que foram desvelados através da literatura pornográfica, a partir de sua publicação, assimilação e internalização pela população. Importantes obras foram assim publicadas, iniciando este movimento que demarca a irrupção tanto da pornografia, como também das questões relacionadas ao corpo e à mulher. No século XVI, Pietro Aretino escreveu duas obras pornográficas (Ragionamenti e Diálogos) que iniciaram a desmistificação de vários destes aspectos fazendo face, inclusive, às questões políticas e à igreja. Em prosa e na forma de diálogos, divulgou conversas entre prostitutas revelando detalhes e aspectos que já se encontravam no imaginário social. As gravuras eróticas, com posições sexuais, revelavam os corpos e também tiveram papel importante pelo desvelamento explícito da anatomia humana.
A arte e literatura da época, mais que subversiva, ostentava o objeto e objetivo da crítica. Uma pornografia “pura” como salienta Hunt (1999) usava e abusava da sensualidade, do erotismo e mesmo da representação explícita dos órgãos sexuais face às necessidades políticas da época, sendo então, um contragolpe ao fazer político e também, servindo como recorrência forçada de evolução no espírito social, na diminuição dos preconceitos, re-naturalização e recursividade dos corpos domesticados. Buscavam-se também novas formas de saber sobre o corpo da forma que nos aponta a autora com referência em Foucault:
[...] a pornografia deve ser considerada produto das novas formas de regulamentação e dos novos desejos de saber. (HUNT, 1999, p.11) O corpo, neste sentido, passa a ser objeto de maior interesse e de estudo, tanto na perspectiva da medicina, quanto no que referencia o estudo da cultura e seus significados.
A curiosidade despertada por este corpo que,
encoberto por vários séculos, agora se desnudava diante de algo irresistível, como o desejo de redescobri-lo, o que vai ao encontro dos anseios de todas as pessoas. Relacionado à prostituição, a pornografia possibilita assim, uma nova forma de pensar os costumes, os desejos, o papel das mulheres e os significados políticos e culturais. A produção literária tão expressiva no período surgia, então, como categoria de pensamento, representação e regulamentação, sendo que os novos desejos de saber relacionados ao corpo foram utilizados de forma referencial à irrupção de possíveis e intrincadas perspectivas, seja com referência à mulher, aos costumes, cultura dentre outros. No que concerne ao corpo que se desvela e se esconde, novas formas de pensá-lo foram concebidas. Ali se transladou da representação do obsceno e do imaginário erótico que denotava, à sua apresentação explícita à sociedade. Uma verdadeira transformação refletida nas obras de fácil acesso, especialmente em meados do século XIX, às amplas camadas da população. Um maior conhecimento do corpo se deu, e neste caso, não apenas do corpo da mulher, mas frequentemente esboçando figuras do órgão sexual masculino. Mesmo que de forma sensual, plenamente pornográfica e mundana, muitas
vezes com sentido jocoso, ampla camada da população se viu “contemplada” pelo acesso às expressões eróticas. Fato que serviu como elemento desmistificador
e
semente
para
gerações
futuras
de
abertura
e
democratização, no sentido em que iniciou a discussão à respeito de questões sexuais dentre outras, de forma mais aberta, direta e popularizada. Esta literatura, de sentido libertino, em muitos momentos serviu como mote para possíveis questionamentos do fazer político e social, tanto do fazer das mulheres como dos homens e autoridades da época. Uma característica importante a se destacar nesta discussão refere-se à demarcação das diferenças entre gêneros, o que inicia a abertura de novos espaços de diferenciação tanto para o homem, mas, em especial às mulheres que iniciam uma nova trajetória rumo a sua libertação e valorização. Em outra esfera, o erotismo presente na arte servia também como desmistificador das autoridades políticas absolutistas que se percebem a mercê de novas práticas através do desnudamento de seu universo elitizado.2 Especialmente as obras literárias que buscavam fazer face às questões religiosas, políticas e morais, acabavam por transgredir a chamada boa moral e a ordem social. Deste modo, os autores sofriam repressões e sansões devendo, portanto, serem condenados. A contradição da censura, então, se estabelece no desejo que promove em muitos de conhecimento de algo sentido subjetivamente como natural, refletindo na busca continuada de livros, gravuras e histórias sobre o assunto. A inauguração da tradição pornográfica revelava, então, os seguintes aspectos: a) a representação explícita da atividade sexual; b) a forma do
2 A despeito do período analisado, não estamos demarcando somente este como único e rico de manifestações eróticas da humanidade. De acordo com Zanchett (2007), Pompéia (Cidade da Itália, império romano) “foi totalmente sepultada pelas pesadas cinzas vulcânicas do Vesúvio em 24 de Agosto de 79 d.C. Ficou soterrada e desconhecida por mais de 1600 anos quando foi encontrada por acaso. Desde então, tornou-se um sítio arqueológico extraordinário que atrai milhares de turistas todos os anos. As escavações revelaram em detalhes a forma de vida e costumes dos habitantes do tempo da Roma Antiga. Pompéia sempre foi cercada de mistérios e proibida para historiadores da arte. As obras artísticas ali descobertas são um verdadeiro testemunho sobre a vida erótica de seus habitantes. (grifo nosso)”. O que estamos enfatizando é que o período enfocado neste trabalho marca a irrupção da literatura pornográfica onde esta foi mais enfatizada e rica de produções em volume e qualidade.
diálogo entre mulheres; c) a discussão sobre o comportamento das prostitutas; d) o desafio às convenções morais da época.
2.3 Da pornografia à libertinagem
O
surgimento
da
pornografia
denunciava
a
efervescência
da
necessidade da manifestação de várias perspectivas relacionada ao erótico latente da própria sociedade. Também, manifestava e demarcava importantes diferenças de gosto e ambientação e que se relacionavam às questões de gênero. De um lado a mulher, por tantos séculos, negada em seus desejos mais íntimos relacionados a questões diversas como: referenciados ao seu corpo, à liberdade, ao amor, à participação na sociedade, ao trabalho, etc., e de outro os homens que também, procuravam novas formas de manifestação das idiossincrasias de gênero masculino.3 A pornografia foi assimilada majoritariamente pelos homens, – estruturalmente mais atentos e sujeitos aos efeitos dos textos pornográficos mas faz surgir em decorrência, o romance como gênero literário que marca a preferência e referência das mulheres.
4
No período enfocado, a pornografia vai também ao encontro da ideologia da libertinagem, localizando na prostituta, - que encarna estes ideais o protótipo a ser freqüentado pelas figuras masculinas para dar vazão aos desejos eróticos. Tanto o romance como os textos pornográficos associavam-se à libertinagem e remetiam seus leitores aos efeitos da imaginação. O primeiro, por dar vazão às mulheres e aos seus desejos aprisionados pelo status quo essencialmente masculino, possibilitando a elas viverem, ao menos na forma de sonhos ou imaginação, os ideais relacionados aos corpos femininos, 3
As maneiras de sentir, pensar e agir afeitos aos homens revelava seus desejos e suas formas de manifestação. Neste sentido, estamos tratando o conjunto destas e relacionadas ao gênero masculino, que se encontravam incrustadas nas formas sociológicas vigentes no período e reveladas à maneira de Durkheim (1983) como fatos sociais. 4
Esta literatura pornográfica acaba por atrair também a atenção das mulheres, pois que as colocavam em evidência, lhes dava voz e discutia seu comportamento, seus desejos e a própria cultura.
satisfeitos e realizados. E os textos pornográficos, de forma mais objetiva, direta e positiva, levando a ações reveladoras das facetas vigentes de uma sociedade essencialmente masculina. Aqui o corpo feminino é o objeto masculino de desejo, de manipulação e de prazer e que então, era retratado nos textos pornográficos, como coisa, luxúria e voluptuosidade exclusiva do homem, correspondendo em simetria à própria estrutura social que assim também se constituía com a hegemonia masculina de poder, liberdade e prazer. Os textos pornográficos tinham grande aceitação também pelos seguintes aspectos: De um lado pelo seu caráter racional e, de outro pela oportunização de possibilidades de realizações ou afirmações de posições políticas e religiosas. Os libertinos eram então percebidos como livrepensadores abertos à experimentação sexual e literária denotando aspectos transgressores não imaginados, muito menos passíveis de serem percebidos em seu alcance e amplitude. Aqui cabe pontuarmos que o imaginário masculino circunscrevia-se em torno da pornografia, que retratava neste período, exatamente a figura da prostituta libertina. Este imaginário erotizado concretizava-se em torno desta mulher que muitas vezes, representada e idealizada, era realmente acessível aos homens e impunha-se pelas práticas libertinas e figuras características existentes. As artes e literaturas sensuais, os teatros e ambientes freqüentados pelos homens estavam carregados dos signos e símbolos, que referenciavam as fantasias sexuais imaginadas e alimentadas pelos textos pornográficos. Em outra via, o interesse do erotismo feminino ia ao encontro da literatura romanceada e que retratava os aspectos relacionados ao amor sensual e erigidas em torno de um tipo ideal de homem que se distanciava da realidade da época. As construções imaginadas destoavam, portanto, quanto ao foco: de um lado as mulheres sonhavam com algo que não encontrava correspondência, apoio e legitimação nas práticas e costumes vigentes. Sua realidade se construía próxima aos sonhos e desejos de difícil realização, do sagrado. De outro, os homens coadunavam com os ideais pornográficos e davam vazão aos seus desejos na realidade indo ao encontro do profano, representado por esta mulher, que se impunha, inclusive com ideais libertários.
Por conseguinte, como salienta Alberoni (1988) “o erotismo se apresenta, então, sob o signo do equívoco e da contradição” (ALBERONI, 1986, p.12). Este autor enfatiza que os desejos de homens e mulheres são bastante diferentes e o que cada um imagina e busca, com freqüência difere do que o outro oferece ou pode dar. O que se dá com a pornografia se aproxima desta consideração na medida em que proporciona aos homens uma possibilidade de imaginação de uma realidade possível e da realização de seus desejos e de prazer no encontro com a prostituta. No entanto, na maioria das vezes, a concretização de seus desejos e práticas confronta-se com uma mulher que não tem interesse erótico real naquele homem que ali se apresenta, senão no que este pode proporcionar a ela de outras formas. Não há encontro dos desejos e o mesmo se dá apenas na imaginação. Na prostituição, a figura da prostituta é a encarnação da mulher desejosa de sexo ardente e que promete realizar os desejos mais íntimos do homem. Trata-se de uma viagem ao fictício porque esta mulher – na maioria das vezes - não sente o desejo sexual que vende. De outro lado a mulher, que então passa a ler os romances, busca um ideal de homem que se distancia frontalmente daquele existente (que busca a pornografia), mas idealizam outras figuras que permitem a delicadeza do encontro pleno e com outras significações. Na prostituição fica visível a distinção por referência, ambientação e comparação dos desejos explicitados. Portanto, a prostituta libertina, teve um papel preponderante no imaginário social no período histórico enfatizado anteriormente, seja na literatura pornográfica – especialmente a francesa – ou como agente de transformação das relações e formas de fazer. Retratadas em algumas obras como heroínas, em outras como alcoviteiras, as cortesãs eram detentoras de um saber sobre si mesmas, bem como das sociedades em que viviam. O segundo aspecto a ser notado, remete às oportunidades de relacionarem com importantes e influentes freqüentadores de sua alcova, que traziam um leque de pessoas proeminentes da sociedade: clérigos, políticos, senhores, mesmo príncipes, girando em torno da riqueza e da vida boêmia. Quanto aos aspectos pessoais, detinham um vasto conhecimento das relações que se estabeleciam entre os diversos atores da sociedade, das
relações políticas e religiosas, dos aspectos sociais proeminentes e que denotavam as facetas mais importantes do mundo em que viviam. Tudo isto significava certo poder de negociação de vantagens pessoais e um arcabouço de conhecimentos e histórias que davam subsídios a escritores imaginativos. Por atuar em diferentes instâncias (política, religiosa, familiar, mundana, etc.) frequentemente se tornava uma fonte para detectar mudanças nas atitudes e convicções, o que Hunt (1999) a classifica como um “barômetro social”, indicando novas posturas em relação às velhas hierarquias políticas.
Dependendo do autor, a prostituta ridiculariza ou louva seus clientes, entre os quais se encontra toda espécie de homens, desde velhos aristocratas até burgueses novosricos. Pode criticar a sociedade ou observar complacentemente, e sua alcova pode se um espaço de agitação política ou de meros jogos amorosos. A prostituta revela também uma grande variedade de atitudes em relação à sexualidade feminina e ao papel social das mulheres. Pode ainda evidenciar a política sexual da época, quer o pornógrafo retrate a prostituta como vítima ou como predadora. (HUNT, 1999, p.242) A prostituta libertina possuía características, por assim dizer, qualidades, bastante valorizadas por ampla camada da população, especialmente dos freqüentadores e clientes contumazes: independente, sensual, sensível e experiente, saudável e dotada de apetite sexual muito intenso, mulher de negócios e artista, que proporciona sexo “variado”, inteligente, altiva e razoável, não estando doente ou disforme, sendo capaz de zombar das distinções sociais e enganar os ricos e poderosos. Considerada uma criatura de rococó5, 5
De acordo com o texto contido no site: http://www.historiadaarte.com.br/rococo.html, “Rococó é o estilo artístico que surgiu na França no século XVIII como desdobramento do barroco sendo usado inicialmente em decoração de interiores. Os temas utilizados eram cenas eróticas ou galantes da vida cortesã (as fêtes galantes) e da mitologia, pastorais, alusões ao teatro italiano da época, motivos religiosos e farta estilização naturalista do mundo vegetal em ornatos e molduras e tendo como características, o uso abundante de formas curvas e pela profusão de elementos decorativos, tais como conchas. laços e flores.” A prostituta libertina em simetria ao estilo assimilava as mesmas características e se vestia da aura daquele estereótipo, portando-se elegantemente e inserindo-se em ambientes eróticos, bem decorados, intimistas e alegres e que também possuíam leveza, caráter intimista, sendo muito animados e também exuberantes.
de um período próximo da filosofia materialista e à vontade com o prazer sensual “variado”, transforma-se em grande objeto de desejo capaz de provocar infinitas fantasias masculinas, bem como de inveja e vontade de libertação feminina de forma ampla. Uma mulher assim, tão poderosa, uma mulher pública em um período, em que se confundiam os limites entre o público e o privado, era algo que provavelmente provocava grandes reflexões. A prostituta libertina torna-se, neste imaginário, rica e estimada: Que vida! Que status! Os prazeres da mesa e os da carne se sucedem vinte vezes por dia. A vida da prostituta é fascinante! (HUNT, 1999, p. 255)
2.4 As técnicas do corpo
O conhecimento dos mecanismos de seu corpo e do alheio permitia à prostituta libertina criar, estabelecer e perpetuar técnicas diversas no atendimento aos clientes. As técnicas do corpo fazem parte “das maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo” (Mauss, 2003, p. 401). Interessante refletir que segundo esta perspectiva, as técnicas são referidas a cada sociedade de forma que, prostitutas do Brasil podem praticar certos atos sexuais, circunstanciados e de acordo com alguns costumes, mesmo que os fins sejam os mesmos. E, neste caso podem diferir de uma francesa, que tem outras referências. Quando uma mulher se insere no mundo da prostituição, provavelmente já teve algumas experiências sexuais. Em todo caso, o meio e a prática a possibilita se adaptar e conhecer as melhores formas de “domesticar” o corpo
para obter o máximo de desempenho. Nesse sentido, técnicas poderão ser-lhe ensinadas por uma colega mais próxima, ou transmitidas entre gerações, de forma a evitar o desgaste do corpo no exercício da profissão vis-à-vis a satisfação do cliente. Mauss (2003) propõe uma classificação das técnicas do corpo e aqui vamos destacar algumas: 1) Em relação ao rendimento: relata que se trata de um adestramento humano que geralmente está relacionado à infância, mas que em nosso caso, refere-se às habilidades adquiridas pela prostituta, o “saber como fazer”. Neste sentido, os benefícios referem-se ao sucesso pessoal e ao “descanso” do corpo por reunir as melhores formas de atingir os fins desejados. 2) Transmissão das técnicas do corpo: é possível ensinar ao outro as formas de fazer algo, especialmente quando o que se tem é um objeto de desejo e prazer. Há que se dar ênfase nos detalhes que são essenciais. Segundo Hunt (1999), as cortesãs francesas do século XVI ao XVIII eram preparadas para o exercício da profissão e contavam com uma pessoa conhecedora do meio e das técnicas (uma “appareilleuse”) que lhe ensinavam alguns segredos, por assim dizer, do corpo e dos costumes, e que a capacitavam para o melhor atendimento aos clientes. Destaca que as mãos tinham um papel muito importante para elas visto que serviam também para o prazer e colocando-as como “o instrumento mais valioso de uma prostituta” para “avivar o frouxo e o apático”. (HUNT, 1999, p. 250) Mauss (2003) referencia também uma enumeração biográfica das técnicas do corpo, dividindo-as em técnicas da infância, da adolescência e da fase adulta. Nesta última, cabe-nos destacar o que o autor chama de técnica de reprodução, no caso em estudo, significa as posições sexuais adotadas de forma ótima pelas prostitutas. Ressaltamos que essas técnicas podem ser segundo Mauss (2003, p.419) “normais e anormais” com toques, beijos, respirações, o uso de instrumentos, isto tudo, relacionando-se com a moral e com os costumes. Entre
os
séculos,
XVI
e
XVIII,
surgiram
diversas
práticas,
frequentemente usadas pelas prostitutas, que iam ao encontro dos desejos dos clientes retratados com pormenores em algumas obras. Costumes nem sempre tão óbvios variavam desde ao coito simples, a práticas masturbatórias ou
aquelas que remetiam à sodomia e a castigos seguidos da realização do ato sexual. As varas (Século XVIII) eram usadas, especialmente em clérigos que faziam pedidos bizarros, como ser punidos antes do ato sexual para ter ereção. Consolos e outros instrumentos eram utilizados na sodomia, denotando e significando, em muitos casos, aspectos relacionados à inversão dos papéis e ao poder feminino de transpor a ordem social estabelecida. As técnicas do corpo, aliadas aos instrumentos e às habilidades adquiridas proporcionavam uma forma de atuar, das mulheres, que encontrava reciprocidade no imaginário masculino. O que fica enfatizado é que o erotismo idealizado por cada homem, suas fantasias sexuais, sejam baseadas nas leituras pornográficas ou não, encontravam ambientes de realização nas diversas práticas e formas de atuar das prostitutas. É notável, portanto, o poder do erotismo libertino, de se transformar de ideário pornográfico em formas concretas de atuação e realização deste imaginário essencialmente masculino, por meio não só da literatura em plena produção, mas também das técnicas do corpo disponíveis inclusive com o despertar da medicina para seu estudo e formas de atuação em sintonia com as figuras do homem e da prostituta libertina retratadas na pornografia, e da mulher nos romances.
2.5 O imaginário erótico, a prostituição no Brasil (Minas Gerais) e a Tradicional Família Mineira.
A prostituição em Minas Gerais se mistura com a própria história da formação do Estado, dos seus costumes, do imaginário e do erotismo que permeia de forma basilar a própria sociedade, especialmente no período da exploração mineral. Também, este imaginário social é composto por diversas imagens, significados, dentre outros, que representam de maneira direta ou reflexa a realidade. Trata-se, pois, de uma construção coletiva que forma uma memória que vai, paulatinamente, fazendo parte do contexto e tornando-se constituinte
do que ocorre nos espaços. Nestes, podemos detectar as percepções dos diversos atores em relação a si mesmos, bem como dos diversos grupos que se formam, e do que se estabelece de maneira a facilitar a compreensão das relações e negociações. Estas percepções, no entanto, podem ou não corresponder à realidade. Eivadas por significações de difícil interpretação até mesmo para aqueles já habituados nas leituras da psicologia e da própria sociologia. O imaginário erótico, expressa, dentro deste contexto, um conjunto de práticas, uma rede de significados, de representações e de idéias que envolvem não só o universo da prostituta, mas de toda a sociedade. Os símbolos acabam por revelar o que se esconde ou o que está por detrás, o que dá sentido ao aparente desorganizado. As imagens acabam por definir para cada indivíduo, por referências simbólicas, como uma sociedade é estruturada, o que ela é e os meios de que dispõe para se estabelecer. A imaginação é, assim, um modo de ver e uma forma em que a consciência apreende o cotidiano e o elabora. Seja na vida cotidiana comum ou na prostituição, podemos ver e significar, mas alguns indícios podem prenunciar uma conformação de espaços, uma prática ou uma tradição. Uma descrição detalhada de uma situação cotidiana, qualquer que seja nos levaria a uma aproximação do real, sendo que este real já ali está, ou já se apresenta como dado.
Clifford Geertz (1989) referencia uma “hierarquia
estratificada de estruturas significantes”, que revela estruturas superpostas, que contém inferências e implicações e também significados que são produzidos, percebidos e interpretados por todos e a todo o momento, tornando-se objeto precioso para o estudo de diversas instituições:
[...] a maior parte do que precisamos para compreender um acontecimento particular, um ritual, um costume, uma idéia, ou o que quer que seja está insinuado como informação de fundo antes da coisa em si mesma ser examinada diretamente. (GEERTZ, 1989 p.19) O estudo do imaginário erótico suscita então, a leitura dos significados e dos símbolos que são visíveis e outros nem tanto. O recurso da imaginação está recheado de conceitos e memórias do que se viu, viveu e sentiu e pode, mesmo assim, destoar da realidade visível e risível. Assim, o imaginário social
se forma no esboço de manifestações coletivas, das repetições, das práticas e sensações, dos estereótipos e do arrepio da pele. O sentido em que se dá à prostituição para alguns, pode significar sensações agradáveis, mas para outros a aversão e o medo. Ambos, neste caso, podem arrepiar-se, por afastamento ou atração. Assim, parece-nos constituir o imaginário social, um conjunto de símbolos, signos, códigos, funções e práticas que se põem, se justapõem e comumente se opõem, sendo muito presentes no universo da prostituição. No entanto, Cornelius Castoriadis (1982) nos adverte: Considerar o sentido como simples “resultado” da diferença dos signos é transformar as condições necessárias da leitura da história em condições suficientes de sua existência. E certamente, essas condições de leitura já são intrinsecamente condições de existência, pois só existe história porque os homens comunicam e cooperam num meio simbólico. (CASTORIADIS, 1982, p.167-168) Uma rede complexa de significados promove os sentidos que, por vezes, são transformados em outras perspectivas e situações. Uma condição para a averiguação do que nos apresenta é a comunicação e a linguagem capaz de tornar inteligíveis, o que percebemos do outro, de uma determinada situação e do que vemos e imaginamos. Para entender o que aquela pessoa que anda é (qualquer que seja, em qualquer lugar e a qualquer hora), torna-se necessária a comunicação, um sistema de códigos e uma apropriação dos seus sentidos, “uma descrição densa” Geertz (1989). A prostituição e o erótico, por vezes, retornam de forma desafiadora aos estudiosos do tema, esta rede de signos, dos seus valores e sua forma de assimilação pela sociedade. Na prostituição percebemos, em paralelo, o quanto de erotismo está presente, como se manifesta e quem atinge. Onde quer que se constitua, a prostituição traz, de um lado, adeptos felizes - clientes, prostitutas, cafetões, etc. - bem como forte oposição: Famílias, religião, pessoas comuns, etc. Por outro lado, transeuntes, alheios àquele fato (a prostituição) ignoram o que se passa e cuidam simplesmente de seu cotidiano.
A oposição, nesse enfoque, é onde melhor transparece o conflito existente entre prostituição e as normas da sociedade. A cidade de Belo Horizonte, por vezes classificada por abrigar a TFM será assim, objeto de nossos estudos e de considerações relativas ao cenário por ela esboçado ao longo da história e dos resultados observáveis. A TFM composta por pai, mãe e filhos e cuja pessoa de referência é do sexo masculino conforme Longo, Ribeiro (2006), tem forte implicação com o tema do erotismo e da prostituição, inserindo-se ao longo da história na regulação
e
determinação
das
ações
sociais
e
conseqüentemente
influenciando também a prostituição. Falar da história das mulheres e da prostituição em Minas Gerais e em Belo Horizonte, requer, então, recorramos a fatos revelados por diversos teóricos e ocorridos na constituição de Minas Gerais, especialmente nos séculos XVII e XVIII e meados do século XIX. A história das mulheres em Minas Gerais se mistura com a própria descoberta do ouro, – objeto de sonhos e imaginação, de homens e mulheres ávidos da riqueza imediata que este poderia proporcionar - o que promoveu uma enorme imigração para o estado, até então (fins do século XVII) capitania de São Paulo. A mulher mineira ali inserida enfrentou desde o início as agruras, misérias
e
preconceitos
predominantemente
de
masculino,
toda
ordem.
vestiu-se
com
Dentro papéis
de
um
universo
secundários,
de
invisibilidade e de subordinação. De acordo com Luciano Figueiredo (2004), as mulheres trabalhavam em funções secundárias e ficavam à margem da sociedade, proporcionando uma conformação social tradicional das mesmas e determinando seu destino:
[...] ocupadas na panificação, tecelagem e alfaiataria, dividindo com os homens estas funções, cabendo-lhes alguma exclusividade quando eram costureiras, doceiras, fiandeiras e rendeiras. Ainda como cozinheiras, lavradeiras ou criadas reproduziam no Brasil os papéis que tradicionalmente lhes eram reservados. (FIGUEIREDO, 2004, p.142)
O autor relata incursões das mulheres também na função de parteira, na Lavagem de ouro e carregando gamelas. No comércio, eram-lhe legadas funções como a venda de doces, bolos, frutos, e hortaliças, dentre outros. No entanto, e a despeito de todo o seu trabalho, as mulheres foram identificadas como um perigo para a região de Minas Gerais por carregarem junto a si estigmas e realidades conflitantes:
As mulheres congregavam em torno de si segmentos variados da população pobre mineira, muitas vezes prestando solidariedade a práticas de desvio de ouro, contrabando, prostituição e articulação com os quilombos. (FIGUEIREDO, 2004, p.146) Os diversos papéis desempenhados pelas mulheres proporcionavam uma manutenção das condições precárias de vida, como pobreza, e subordinação. No entanto, também uma boa articulação nos ambientes visitados da sociedade durante a prática da venda ambulante, pela mobilidade e freqüentação, pela possibilidade de participação política e interferência na constituição das relações e espaços. Também, a despeito da tentativa do controle de suas ações, principalmente pelo Estado, as mulheres conseguiam a incursão velada em diversas frentes de trabalho, inclusive tendo na prostituição um meio de vida possível, às vezes eventual, mas amplamente disseminada na sociedade mineira. A prostituição em Minas Gerais parece ter sido, naquela época, adotada como uma prática complementar ao comércio ambulante. Vários relatos históricos revelam que os tabuleiros, muitas vezes, funcionavam como um disfarce para a prostituição, e onde as escravas cumpriam suas “obrigações” com seus patrões. Também, as vendas (mercearia) eram objeto de preocupações do governo:
Nas vendas, muitas delas dirigidas por mulheres, diferentes grupos sociais se reuniam para beber e se divertir; em seu interior escondiam-se atividades escusas como contrabando de ouro e pedras, abastecimento de quilombos e prostituição. (FIGUEIREDO, 2004, p.153)
A origem da prostituição e das meretrizes mineiras, bem como de modelos de casas de prostituição podem ter indícios de sua formação neste período. Entremeadas pelas condições financeiras e a escravidão, e se disseminando não somente na população escrava, a prostituição acaba por ser aceita e fazer parte da cultura popular em Minas Gerais. No entanto, aquelas mulheres continuavam a ser objeto de investidas de políticos que viam naquela prática uma ameaça à moral, por serem a elas reputadas
o
“contágio
dos
povos
e
estragos
dos
bons
costumes”
(FIGUEIREDO, 2004, p.156). Os complicados caminhos da prostituição, no entanto, revelam importantes facetas da cultura e do universo feminino, especialmente no estado de Minas Gerais onde parece ter atingido uma proporção mais elevada do que outros pontos da colônia pelos seguintes fatores, de acordo com o que nos referencia Figueiredo (2004): a) Em especial pela extrema mobilidade de contingentes dedicados à mineração; b) Pelas exigências burocráticas por parte da igreja e do estado que tornavam o matrimônio quase inacessível à grande maioria; c) Pelo grau de erotização proporcionado pelo fácil acesso às mulheres, principalmente as escravas e os mais pobres, que se viam à mercê dos senhores da época e de um sistema econômico e social que favorecia a poucos. Diante disto, para os diversos grupos de mineradores solitários e em permanente movimento, a constituição de laços perenes era improvável. A prostituição estava disseminada por todo o estado, mas se concentrava próxima dos núcleos urbanos de maior importância, como Vila Rica e especialmente Barbacena que as abrigava mais abertamente:
[...] célebre entre os tropeiros, pela grande quantidade de mulatas prostituídas que a habitam, e entre cujas mãos estes homens deixam o fruto do trabalho. Sem a menor cerimônia vêm oferecer-se essas mulheres pelos albergues; muitas vezes os viajantes as convidam para jantar e com elas dançam batuque, essas danças lúbricas. (FIGUEIREDO, 2004, p.157) As “negras de tabuleiro”, figura comum neste período, marcavam a presença feminina no comércio das vilas e cidades por serem visíveis e ter
mobilidade na distribuição no varejo de gêneros alimentícios dentre outros, sendo vitais para o abastecimento das zonas mineradoras. Interessante salientar que neste período era comum o estabelecimento de prostíbulos eventuais chamados de Casas de Alcouce. A casa de alcouce era um prostíbulo eventual onde o alcoviteiro propiciava o encontro entre homens e mulheres. Esta atividade garantia certa renda para o alcoviteiro que arranjava os encontros, e não foram poucos os homens que alcovitaram suas familiares, assim como senhores que alcovitavam suas escravas. O crime de alcovitice era considerado grave tendo, inclusive, vasta legislação nas Ordenações Filipinas constituía-se em agravante homens que alcovitassem suas familiares. (JÚNIOR,2008). As chamadas “casas de alcouce” 6 foram amplamente disseminadas nas vilas e cidades mineiras. Suas instalações – geralmente em domicílios de pessoas pobres - aproximavam-se de residências familiares, próximas a órgãos dos governos e nas periferias, tendo sua administração entregue aos escravos e
escravas,
que então,
garantiam a “invisibilidade” aos verdadeiros
proprietários dos lugares e a oportunidade de aumentar seus rendimentos. A prostituição achava-se assim, amplamente disseminada na população, especialmente nas camadas mais pobres a ponto de, em alguns casos, irromper os limites do público e do privado (similar à prostituta libertina - ver página 7). Cabe salientar aqui que, muitas vezes, as relações familiares, fraternas e maternas eram invadidas pelo comércio sexual, por um ambiente erotizado e que destruíam as fronteiras que delimitam uma família. As 6
De acordo com o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, Alcouce significa: de origem duvidosa, ou casa de prostituição, bordel, prostíbulo e o alcouceiro ou alcoiceiro, o seu dono. No Brasil, a palavra “Alcoviteiro” guarda relação próxima com o “Alcouce” por denotar alguém que serve de intermediário em relações amorosas. Ambas referenciam locais de encontros amorosos. Da mesma forma, guarda estreita relação com expressão francesa “Rendez-Vous”, literalmente “encontrar você”, que inclusive serve para denominar no Brasil algumas casas de encontros. Algumas características das casas de alcouce em sua origem referenciam ambientes iluminados, com rica mobília, onde as mulheres trajavam sedas, onde haviam comidas e bebidas de bom gosto que atraiam a mocidade e os libertinos de uma grande cidade, servindo como imagem ou protótipo de algumas casas que vieram a ser constituídas posteriormente no Brasil, como o “Rendez-vous” que se aproximavam morfologicamente e idealmente deste modelo.
intrincadas relações comerciais estabelecidas promoveriam também algumas mulheres na formação de prostíbulos de fato, para sua própria administração. Em Conceição do Mato Dentro, que possuía um elevado índice de prostituição por servir de entreposto do comércio com o norte da capitania, a seguinte situação era comum: [...] a mulata forra Adriana, “além de alcovitar mulheres para homens [...], consente que na sua casa se desonestem dando a sua própria cama para sua torpeza.” (FIGUEIREDO, 2004, p.159) Esta verdadeira invasão do tecido familiar pelo meretrício revela uma dramática realidade nas Minas Gerais na medida em que – como enfatizado acima - expõe a família da prostituta aos revezes da profissão de forma a destruir os limites do sagrado e do profano. Assim, muitas meretrizes atuavam nos domicílios que partilhavam com os parentes. Esposas, filhas, enteadas e cunhadas eram envolvidas pela prostituição de forma a esta, ser um caminho provável de sobrevivência para as mulheres pobres.
Pais consentiam na prostituição de sua prole, como Luís Pereira, cujas filhas ele permitia que “usem mal de si, tanto duas que moram junto a ele em casa separada como também uma que tem consigo”. Muitas viúvas parecem ter trilhado o caminho do meretrício e, assinalando uma embrutecedora realidade criada diante da morte do marido, arrastavam suas filhas consigo. (FIGUEIREDO, 2004, p.163) A negociação, muitas vezes, se dava até pelos próprios pais incapazes do provimento dos lares. Bem assim, também alguns homens faziam “vistas grossas” para suas mulheres que saíam para conseguir algum dinheiro. Outras figuras também surgiam neste ambiente como homens que viviam de ajustar “casamentos”, verdadeiros rufiões que se beneficiavam das fragilidades daquelas mulheres e as inseriam no meretrício. A história revela destarte, várias facetas daquela sociedade e relaciona pobreza, política, a escravidão e a economia com a prostituição. Esta parece fazer parte do “status quo”, inserida na cultura e no imaginário popular do período, rompendo os limites do público e do privado, do sagrado e do profano
e tendo influência importante na conformação dos espaços, no surgimento de propostas de controle das mulheres, dos casamentos e da moral vigentes. A prostituição achava-se disseminada, inexoravelmente e morfologicamente nas relações cotidianas, no comércio, nas famílias, constituindo em formas de fazer, de ser e de estar, comungadas e tornadas partes do sistema vigente até então. Marcada nos corpos daquelas mulheres em especial, nas famílias, em seu imaginário e no social. Também para os homens que se serviam das mesmas em vários sentidos, por razões econômicas e de prazer. Ambos participavam da construção desta sociedade, assim, não planejada, pois que permitia o surgimento de espaços conforme as conveniências. Sobretudo, como atores ignorados socialmente, estas mulheres e homens sofriam da falta de organização e planejamentos políticos, da exploração mineral e humana e dos reflexos da colonização. A prostituição como recorte desta sociedade revela-se, se institui, dissemina-se, estabelece valores e padrões, se “profissionaliza”, referencia conceitos, estabelece papéis sociais e inscreve-se no imaginário social, fazendo parte desde então, das relações sociais e da cultura de Minas Gerais.
2.6 Considerações finais sobre o capítulo
Inicialmente, destacamos neste capítulo, o erotismo presente no imaginário que circunda o universo da prostituição, tentando localizar onde podem ser lidos seus símbolos e significados e as principais questões que relaciona. Entre estas, percebemos de forma inseparável a religião, a política, a cultura, etc. Neste sentido, pudemos perceber como a prostituição e sociedade reciprocamente se influenciam. Nesta discussão, surgiram outros aspectos que foram trabalhados, onde relacionamos o advento da arte e da pornografia erótica e que trouxeram para a pauta das discussões, as questões da mulher: Estas questões estão diretamente relacionadas à sua libertação, uma possibilidade de veiculação de sua voz e discussão de comportamentos, do conhecimento do universo feminino para o grande público, e também ao uso e descoberta do corpo como
um “instrumento” que viabiliza ações políticas que vão de encontro a preconceitos seculares e status quo ordinariamente centrados na figura masculina. Também do conhecimento de seus mecanismos e apropriação conscientes pelas mulheres e do seu uso para si mesmas. Aqui relacionamos também, como as formas vigentes basilares daquela sociedade, permeadas por um forte erotismo latente, encontra maneiras de sua expressão através da pornografia, bem como seu “objeto lúdico” transformado e “encarnado” pela figura da prostituta libertina. Estes aspectos proporcionaram ações mobilizadoras, transformadoras e de cunho questionador das relações e da sociedade e que foram assimiladas, através da literatura pornográfica, romances, folhetos e outros e também por ações das mulheres que incorporam o discurso em seu benefício. O que se discutia também se relacionava com a libertação da mulher, do conhecimento do seu corpo e seus movimentos políticos, da irrupção dos seus desejos mais íntimos de forma possível. Incluía a mudança de paradigmas, de relações familiares olhadas de outro ângulo, e do início da saída da mulher de forma mais contundente para o trabalho independente, o que poderia significar a perda do controle sobre o seu corpo e a concepção, especialmente de seu desejo que ruma em sentido contrário aos do homem. Questões relacionadas ao poder aparecem entremeadas na discussão, com as aquelas de cunho político, social e religioso e que acabam por culminar em reformas sociais mais amplas. No contexto, a figura da prostituta libertina parece se constituir como simbólica desta luta feminina e que compõe o universo de manifestações de novas práticas, tanto na prostituição, como no fazer social e na cultura. Ali ela se encontra haurida de grandes significações - fonte do imaginário masculino se identificando com ambientes de iguais características e com elevado grau de erotização. Mais adiante no texto, enfatizamos e contextualizamos a prostituição em Minas Gerais, desde sua criação, destacando a origem e as transformações sofridas naturalmente nas relações e outras induzidas pelas necessidades políticas e sociais na transformação dos espaços. Para tanto, mostramos que no período da mineração em Minas Gerais, as incursões das mulheres com a mesma, estavam ligadas intrinsecamente -
principalmente nas camadas mais pobres - com a prostituição que era amplamente disseminada na população e também, com um ambiente bastante erotizado. Neste aspecto, destacamos que a família comum neste período, encontrava-se relacionada também com a prostituição, inclusive com práticas que incluíam os filhos, enteadas e outros, e mesmo pais que entregavam seus entes queridos para o comércio sexual em confrontação com a ética e moral da TFM. Enfatizamos neste caso, a invasão do seio familiar e a conseqüente destruição de fronteiras entre o sagrado e o profano. A TFM, de cunho burguês assim, confrontada e ameaçada, demandava ações políticas, morais e religiosas que tinham o objetivo de fazer frente a todas estas questões relacionadas também à prostituição e fazer prevalecer sua conformação. A TFM, mesmo com seu elevado grau de conservadorismo e puritanismo não consegue eliminar as manifestações do imaginário erótico deste período que se perpetua, aliado a outras características da sociedade, como o sistema político, a cultura e a economia. Também, as questões relacionadas ao trabalho da mulher aparecem e ainda estão neste período no limiar da marginalidade, mas com necessidades e desejos de participar mais ativamente dos destinos da sociedade. De outro lado, a irrupção do erótico encontra também um ambiente propício para sua transformação na realidade da prostituição. Neste ponto, encontramos uma similaridade com a prostituição retratada mais acima (européia), porém com características bem distintas: enquanto aquela se realizou com base na pornografia e sua ampla divulgação, no caso brasileiro, a prostituição teve como origem e disseminação a ampla mobilidade dos trabalhadores da mineração pela escassez de mulheres, às formas sociais de domesticação e escravização dos corpos, da economia e do sistema político. Assim, a TFM passa a confrontar a prostituição e o que ela significava, mas sem a possibilidade de sua supressão. A prostituição estava amplamente disseminada pela sociedade.
3. Erotismo e prostituição em Belo Horizonte
Este capítulo tem como objetivo analisar os lugares/espaços de manifestação do erotismo na capital mineira para tentarmos desvendar alguns aspectos do como este universo simbólico se traduz em estigmas, costumes e práticas que movimentam toda uma rotina social e uma economia subalterna relacionada à prostituição.
Para tanto, procederemos a uma análise das
formas locais de comércio sexual no bairro Bonfim para compreendermos a rotina movimentada pelo imaginário erótico em Belo Horizonte. Por fim, buscaremos entender como este universo simbólico do erotismo é parte crucial do trabalho da prostituta, que mobiliza aspectos do imaginário masculino como estratégia não só de sedução, mas também de negociação de seu corpo.
3.1 A Prostituição no Bairro Bonfim – formas locais do comércio sexual
Para continuação deste estudo, é importante demarcarmos alguns fatos que servirão de base para nosso enfoque, especialmente, aspectos relacionados à constituição da cidade de Belo Horizonte e alguns de seus bairros. Inaugurada em 12 de Dezembro de 1897, mesmo ainda em obras, a chamada Cidade de Minas abrigava novos atores que ajudaram a construí-la. Em 1901, (conforme o site www.idasbrasil.com.br) por vontade popular, foi solicitada a mudança do nome para Belo Horizonte, o que somente em 1906 se concretizou. No seu início, a cidade recebia diversas pessoas (imigrantes, predominantemente italianos e espanhóis) interessadas nas oportunidades que existiam e outras que surgiriam no decorrer de sua efetiva concretização. A ocupação territorial inicial, em torno da vila operária que ali se formava, admitia o surgimento de locais que servissem como alternativa para a diversão da população que se estabelecia. De
acordo
com
o
site
da
prefeitura
de
Belo
Horizonte
(http://portalpbh.pbh.gov.br), o período desde a inauguração da cidade (1897) até meados de 1930, evidencia o estabelecimento estrutural da cidade e a
concretização das vilas operárias, sendo a base da formação do tipo de relações e classes que ali se estruturariam. O padrão das relações, entremeadas por questões econômicas, religiosas e sociais, se estabelecia em consonância com o tipo de atividades que surgiam paulatinamente. Mais especificamente, no período compreendido entre 1893 -1897 houve um grande crescimento populacional, o que desencadeou o surgimento das primeiras favelas da cidade. Neste contexto surgem na região, o bairro Bonfim, a Lagoinha7 e a Pedreira Prado Lopes. Também, o Cemitério do Bonfim, o mais antigo de Belo Horizonte, foi inaugurado, no período, exatamente no dia 7 de fevereiro de 1897. Diversas intervenções urbanas ocorridas no entorno do cemitério, sobretudo em meados da década de 30 com a criação de vilas operárias na zona suburbana, contribuíram para o desenvolvimento da região. Entre 1930 e 1950, transformações mais intensas ocorreram como a criação da Cidade Industrial. O desenvolvimento da região estava configurado, sendo feitos outros investimentos importantes, como a abertura das avenidas Antonio Carlos, Pedro II e Tereza Cristina e a construção do Conjunto Habitacional do IAPI, projeto do arquiteto Oscar Niemeyer. No bairro Bonfim, localiza-se a zona boêmia mais antiga da cidade, que tem peculiaridades e histórias desvendadas por vários pesquisadores, fazendo parte importante da história e do imaginário sobre o bairro e sobre a prostituição. No período enfocado, pleno de significações, é que também a figura da prostituta se torna mais visível na cidade, onde se inseriu ou se revelou, fazendo parte do imaginário local e da história do bairro Bonfim. De acordo com Medeiros (2001), a prostituição surgiu naquele local para atender a demandas de pobres e ricos, variando desde casas discretas até algumas mais requintadas, bem como dancings, para os serviços sexuais. Concomitantemente surgem as casas de prostituição, dancings, rendezvous dentre outros tipos de estabelecimentos: Inventiva cultural de alguns,
7
O bairro Lagoinha segundo Medeiros (2001, p. 59) foi assim denominado “pela proliferação de lagoas que compunham o local”, e seus habitantes, essencialmente Italianos, viviam em chácaras.
destino conjuntural para outros. Desta forma, algumas mulheres se deparavam com ocasiões que favoreciam a prostituição, e sua inserção se dava também, muitas vezes, de forma não planejada. Outras, de maneira objetiva e determinada, se imbuíam de características próprias (beleza, dotes físicos, sensualidade, etc.) e de coragem suficientes para enfrentar, além das agruras decorrentes da prática, outras referentes a questões relacionadas a valores e tradição. Importante ressaltar que a região não se caracterizava somente pelos aspectos relacionados à prostituição, mas tratava-se de uma zona boêmia que atendia a anseios culturais, funcionando também, como local para encontros de amigos. Este período revela-se também, por permitir transparecer fortes influências da religião sobre os fenômenos sociais, usos e costumes, sendo a chamada tradição mineira sobrecarregada de valores oriundos da igreja. Neste aspecto, a mulher que se inseria na prática da prostituição sofria pressões tanto da sociedade, quando da igreja, polícia, dentre outros. A prostituição em Belo Horizonte, circunscrita à região do bairro Bonfim durante um grande período, sofreu transformações e intervenções do Estado e da Prefeitura e também várias migrações ocorreram. Com o crescimento da cidade, outras áreas foram ocupadas e relacionadas à prática da chamada “vida fácil”, conformando os espaços e constituindo outros. Neste sentido, a prostituição se efetivava e ajudava na conformação dos espaços. Segundo Medeiros (2001), o crescimento do bairro Bonfim, pela falta de espaços no núcleo central da cidade, levou à destruição de alguns outros, que eram substituídos, e ocupados por pessoas de baixa renda. Mesmo colocado à margem, o bairro continha características de riqueza e diversidade cultural, bem como servia de local de possibilidades de realização de práticas de perversão e de prazer, assim como de ações políticas significativas.
A
prostituição, predominante no bairro Bonfim, compunha este cenário e fornecia elementos significativos para o imaginário do local. O estabelecimento de casas de prostituição de várias configurações atendia a um público diverso e permitia a visitação do bairro por ricos e pobres, artistas, políticos, e pessoas comuns (operários) em busca de diversão, prazer e programações culturais. O local atraía pelas diversas manifestações que ali ocorriam e por conter formas e histórias imaginadas, por possuir diversidade de escolhas e de manifestações
de desejos diversos. As mulheres que ali se estabeleciam estavam cercadas de todo este simbolismo, e procuravam angariar vantagens ao máximo daquele clima que por ali era predominante. Neste clima, algumas mulheres se aproveitavam da posição que ocupavam, se colocando em destaque no cenário da prostituição. Medeiros (2001) destaca a mulher que trabalhava no chamado ‘rendez-vous’ como aquela detentora de status diferenciado das demais mulheres de outras casas de prostituição. Aqui cabe pontuar sobre algumas diferenças do rendez-vous em relação a algumas casas de prostituição. Segundo Medeiros (2001):
Os rendez-vous eram casas discretas e requintadas que tinham ambientes para dançar, beber quartos para o serviço sexual, ambiente para conversas íntimas. Eram servidas boas bebidas, especialmente o vinho fino. Era um local procurado por homens para satisfação erótica, para conversas relaxadas entre amigos e para as transações políticas. (MEDEIROS, 2001, p. 68) Estes ambientes tinham um caráter festivo e descontraído, inclusive pela permanência de músicos no local. Importante salientar que segundo a autora, estes ambientes eram muito freqüentados por homens famosos. De um lado, para dar visibilidade social à sua virilidade e de outro, pelo espaço de desafogo da burguesia. Em complemento, e nos termos de Freitas (1985) os rendez-vous são tipos de motéis, mas que: [...] não têm luz vermelha característica, alugam quartos para casais “convencionais”, não estabelecem horários para as prostitutas, não servem de moradias para elas, mantêm fechadas as portas [...] e ainda: [...] supõem uma rotatividade de clientes bem reduzida [...] (FREITAS, 1985, p. 27) Este autor considera em forma de categorias os termos “rua”, “zona”, rendez-vous e “motel” como constituintes de uma escala de estratificação interna de ocupação. O espaço denominado rendez-vous, classifica-se como “superior” por suas características como: ser mais discreto e reservado, menos
vulnerável, podendo, no entanto, ser de alto ou baixo padrão, e geralmente de rendimentos menores para as prostitutas, por não possuir alta rotatividade de clientes. Verifica-se destarte, que também na prostituição existe uma hierarquia de valores. O que fica evidenciado é que, por diversas razões (por virtude, por sorte, por destino, ou outros fatores), uma determinada mulher se adaptava, a um estilo de vida, que melhor a ela se conformava e, assim, desfrutava do que dali podia assimilar em seu proveito, como o poder, o dinheiro, dentre outros, e o status de observadora das relações sociais em posição privilegiada. A zona de prostituição, por ser também freqüentada por clientes das camadas mais altas da sociedade (políticos, médicos, artistas, etc.), tornava aquelas mulheres como receptoras privilegiadas e que participavam de aspectos relevantes relacionados à sociedade. Nesse sentido, a prostituta parece ser aquela que acessa e consegue fazer uma leitura dos homens, dos papéis sociais e da sociedade em que se situa. No bairro Bonfim, os clientes que variavam de acordo com o local de freqüentação, bem como de acordo com as diversas práticas oferecidas, compunham os espaços, as histórias, as práticas se expondo, assim, a possíveis observações e compreensão do que ali se passava e das relações estabelecidas.8 Aqueles espaços sofriam também intervenções de diversas ordens. Podemos mencionar o que Medeiros (2001) referencia em seu texto que, na constituição dos espaços, levou-se em conta o papel social das prostitutas e o controle dos corpos e da vigilância. Este último se caracterizava pela atuação da polícia “... presença marcante e notável na zona de prostituição” (MEDEIROS, 2001, p. 92), nem sempre de maneira sutil, mas que garantia a ordem, bem como dos órgãos públicos, na tentativa de limitar suas ações e também de evitar a irrupção - numa perspectiva sanitarista - da propagação de 8
Aqui podemos inferir um ambiente de permanente discussão, rico em manifestações culturais, políticas e religiosas e que poderia propiciar às prostitutas o conhecimento de aspectos de forma privilegiada da sociedade. Enfatizamos este aspecto importante e notável, ou seja: a capacidade da prostituta de tornar-se um instrumento capaz de medir o ambiente, cultural, político, social, etc. Percebe-se, que o mesmo acontece, em todos os tempos e lugares onde a prostituição se manifesta, seja na Europa, com a prostituta libertina, ou no bairro Bonfim em pleno século XX.
doenças. Em 1981, a distribuição da prostituição encontrava-se da seguinte forma, segundo Freitas (1985): Os ‘Rendez-Vous’, na região do bairro Bonfim, especialmente próximo à Rua Jaguarão e Arceburgo. As chamadas “Zonas” em ruas do bairro Lagoinha, e no centro na Rua Guaicurus e imediações. O chamado “trotoir” feminino avançava pelas ruas Paraná, Guarani e Olegário Maciel, e imediações da Rua Bonfim na Lagoinha. Já o “trotoir” de travestis ficava circunscrito à Avenida Santos Dumont.9 (FREITAS, 1985, p. 29).
Aqui, cabe destacar as contribuições de Medeiros (2001) que em sua análise pontua a noção de valor da prostituição (e sua relação com os espaços) enquanto promotora do comércio de áreas diversas, garantindo a sobrevivência da população e sua permanência:
O Bonfim hoje é o resultado de um processo histórico em que se cruzam a boemia, a prostituição, a religiosidade, o comércio de antiguidades, uma importante rede de serviços formais e informais e a solidariedade. (MEDEIROS, 2001, p. 66).
A prostituição torna-se um traço marcante do bairro por estar no limiar destas questões, inter-relacionada de forma estrutural, por se mostrar presente no cotidiano. As formas que a comunidade encontra de viver, agir e sentir, desde o modo que as pessoas se vestem, como o comércio de uma maneira geral, as amizades que eventualmente se formam, dentre outros aspectos, encontram relações e se traduzem em vínculos fortes com a prostituição, e assim, faz parte do imaginário das pessoas que ali habitam, bem como das que por ali transitam 10.
9
“Trottoir” é uma palavra francesa que quer dizer "calçada". No caso, significa o(s) lugar (es) por onde as pessoas passeiam e aproveitam para se conhecerem. No caso da prostituição, significa os espaços de que serviam as mulheres e travestis para o encontro com o objetivo sexual. O autor destaca os espaços e sua conformação diante das variações de atividades e tipos de práticas existentes. 10
Logicamente que aqui nossa análise referencia apenas símbolos, que percebidos por moradores ou transeuntes, podem ou não se aproximar do real, mas que por tratar-se de
Saliente-se também que, como resultado das transformações históricas demarcadas acima, o bairro ainda retém marcas das transições ocorridas, seja por iniciativa pública ou privada relacionadas a espaços físicos, ou pelo próprio clima de boemia que era uma de suas características marcantes e ainda inscritas no inconsciente coletivo: O inconsciente da história que a história produz, incorporando as estruturas objetivas que ele produz nesta quase natureza que é o habitus. (MEDEIROS, 2001, p. 66).
A autora, em sua referência à noção de Habitus do sociólogo Pierre Bordieu, demarca o que vai sendo incorporado ao imaginário social, às práticas, fazendo parte das ações de cada pessoa freqüentadora do bairro ou ali moradora e se traduzindo em formas sociológicas de vida e de relacionamento. A prostituta ali inserida, porta em si, as causas e efeitos destas perspectivas históricas, dos movimentos e ações em reciprocidade e repercute também seus atos de forma multifacetada.
“invenções ou imaginações” que determinada pessoa eventualmente pode inferir diante da realidade, necessariamente não a reflete nem a determina. Assim, como exemplo do que queremos significar, uma mulher que transita pelo local com roupas mais ousadas e num dia de calor, pode ser confundida (sem o ser) com uma prostituta, simplesmente por estar naquele local cheio de símbolos. De outra forma, um homem casado que conversa com uma prostituta pode denotar, aos olhos dos outros, que ele possa ter algum interesse sexual nesta. No entanto, os laços que unem aquelas pessoas podem ser de várias outras naturezas, como de amizade ou de solidariedade. Os estigmas da prostituição, como a sensualidade, o desnudar do corpo, ou a ousadia, também estão relacionadas ao imaginário social. Cornelius Castoriadis trata das questões relacionadas ao imaginário no livro intitulado: “A Instituição Imaginária da Sociedade”, relatando que “quando falamos do imaginário queremos significar alguma coisa “inventada” quer se trate de uma invenção “absoluta” (“uma história imaginada em todas as suas partes”), ou de um deslizamento, de um deslocamento de sentido, onde símbolos já disponíveis são investidos de outras significações que não suas significações “normais” ou “canônicas” (“o que você está imaginando”, diz a mulher ao homem que recrimina um sorriso trocado por ela com um terceiro). Nos dois casos, é evidente que o imaginário se sapara do real, que pretende colocar-se em seu lugar (uma mentira) ou que não pretende fazê-lo (um romance) (CASTORIADIS, 1982, p.154). Nos termos de Castoriadis é natural que nossos sentidos nos conduzam para este tipo de conclusão, pois que, muitas vezes estamos também envolvidos em situações que nos impedem da crítica diante do que se nos apresenta: relações entre o simbólico e o imaginário, de imagens que representam outra coisa (uma função simbólica), delírio e fantasia.
Trata-se de dimensões de ação que não são totalmente conscientes e que valorizam o aprendizado passado. A noção de Habitus torna-se central, portanto, como Renato Ortiz referencia Bordieu em sua obra: “Pierre Bordieu: Sociologia”:
[...] sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, como princípio que gera e estrutura as práticas e as representações que podem ser objetivamente ‘regulamentadas’ e ‘reguladas’ sem que por isso sejam o produto de obediência de regras, objetivamente adaptadas a um fim, sem que se tenha necessidade da projeção consciente deste fim ou do domínio de operações para atingi-lo, mas sendo, ao mesmo tempo, coletivamente orquestradas sem serem o produto da ação organizadora de um maestro. E ainda: O habitus tende, portanto, a conformar e a orientar a ação, mas na medida em que é produto das relações sociais ele tende a assegurar a reprodução destas mesmas relações objetivas que o engendraram. (ORTIZ, 1983, p. 15) Cada agente é então, produtor e reprodutor de ações de outrem, em interação e de modo objetivo, que ultrapassam em muito, intenções conscientes, cognitivas e de sentido explícito.
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A análise do habitus proposta pelo autor Renato Ortiz (1983) parece ir ao encontro do que verificamos em nossa pesquisa. Vários fatores são importantes para podermos compreender o fenômeno da prostituição. O habitus é percebido em todas as etapas do trabalho, seja conformando novas ações ou servindo para perpetuar outras. O não sabido pelos indivíduos encontra-se no “inconsciente coletivo” (Medeiros, 2001) e atua na coletividade na medida em que contribui para as ações cotidianas, seja na permanência ou na mobilidade de ações e saberes. Assim, a análise realizada por Freitas e Medeiros do bairro Bonfim, nos revela uma gama de diferentes formas de manifestação do erótico e do 11
Cabe ressaltar que as regras da profissão de prostituta, bem como a de qualquer outra existente no local, não significam a obediência a regras do passado, pois que, em consonância com uma sociedade dinâmica, bem como com relações de trabalho modificadas, inserem novas dimensões que são contemporaneamente afirmadas, no espaço-tempo em que se situa.
comércio sexual (trottoir, rendez-vous, zona, motéis, etc..) em Belo Horizonte. Conforme estes autores, entender a prática da prostituição nesses espaços passa não somente pela sua observação, mas também pela compreensão dos elementos que conformam o imaginário social que se manifesta no erotismo O imaginário em referência do bairro Bonfim pode ter características similares a outras sociedades, mas tem peculiaridades que remetem à própria história do local bem como dos signos, mitos e tradições distintivas que o conformam onde se manifesta, proporcionando novas formas de saber sobre esta realidade.
3.2 Breve descrição de um hotel de prostituição em BH
O estudo da prostituição proporciona um leque de observações que podem assim, ser analisadas sob vários aspectos. A pesquisa de campo, especialmente, possibilita a coleta de dados e observações exploratórias que podem ajudar a elucidar como se manifesta, neste caso, o desejo de participar desta profissão, diante de estigmas e adversidades imensas. Cabe-nos perguntar o porquê de tantas mulheres se envolverem com a prostituição? Se sua entrada se dá somente por interesses financeiros imediatos, relacionados à sua condição precária de vida ou por outros motivos não tão óbvios? Ou se têm outras perspectivas que nós ainda não compreendemos? Aqui, também, vale investigar qual o sentido que cada mulher atribui às suas ações cotidianas? Especificamente, no que estamos estudando, cabe verificar qual a relação que cada mulher admite entre o sentido que dá à sua vida e sua inserção na profissão. A prostituição será tratada assim, como objeto em si à maneira de Freitas que revela: “a ênfase volta-se, ou para especulações sobre as causas, as funções sociais e as perspectivas da prostituição na idade moderna”... “ou para uma abordagem da prostituição enquanto atividade prática” (FREITAS, 1985, p. 9). A fim de buscarmos diminuir a distância entre teoria e as questões trazidas pelas práticas da prostituição em Belo Horizonte, e facilitar sua compreensão e leitura, realizamos uma pequena incursão (aproximação
exploratória do objeto) em um hotel localizado na Rua Guaicurus número 660, no centro de Belo Horizonte, próximo à Rodoviária, denominado “Brilhante”. Escolhemos este hotel
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por ser considerado como de “alta rotatividade”,
sendo bastante freqüentado por clientes que permanecem ali por pouco tempo, se limitando ao seu objetivo primordial de estar no local: o de sua satisfação sexual. As práticas ou comércio sexual predominantes no hotel brilhante diferem um pouco daquelas referidas anteriormente e características do bairro Bonfim. Aqui se trata de um hotel onde a permanência no seu interior é limitada, onde existe padrão no preço do programa e a exposição mais direta das mulheres ao público masculino. Neste sentido, facilita a agilidade na consecução da prática. Não obstante, em ambos locais estudados, pode-se fazer uma leitura dos elementos mais significativos do erotismo que se manifesta em Belo Horizonte. O bairro Bonfim é situado na mesma regional (Noroeste) onde se localiza o hotel Brilhante, que está no limite com o centro da cidade. Esta localização facilita o acesso e a mobilidade de um público maior e de maneira rápida, visto que o centro da cidade, como local de trabalho e de passagem, abriga pessoas de todas as classes sociais. Como nosso trabalho enfatiza o erotismo e suas manifestações diversas, bem como sua relação com a prostituição, justifica-se a incursão que fizemos neste hotel também pelos seguintes motivos: trata-se de um local tradicional de Belo Horizonte inscrito no imaginário social da cidade e pertencente à mesma regional dos bairros enfocados. Freitas (1985, p. 29)
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Segundo Marcel de Almeida Freitas (2007), o Hotel Brilhante foi construído na década de 30 pela comunidade libanesa juntamente com a Igreja Ortodoxa São Jorge (na chamada Cidade Baixa) em estilo art-decó por Romeo di Paoli e possui desativado um elevador de treliças. O autor salienta que a Secretaria Municipal de Regulação Urbana (gerência de Patrimônio) só tomou conhecimento de sua existência a partir de um encaminhamento de um pedido do próprio autor para tombamento do prédio. A Cidade de Belo Horizonte também possuía a seguinte divisão segundo este autor: “o eixo da Av. Afonso Pena é, do ponto de vista do relevo, a parte alta da capital, e as regiões vizinhas ao Ribeirão Arrudas, que ‘cerca’ boa parte da área central, são as ‘várzeas’. Entretanto, curiosamente, essa diferenciação tem forte consonância no âmbito simbólico, pois a Av. Afonso Pena segue para o ‘alto’, para a Serra do Curral (xodó dos belorizontinos), enquanto que a zona de baixo meretrício e de comércio popular e/ou de atacado ‘desce’ para as imediações da Rodoviária e do Ribeirão Arrudas que, com o passar do tempo, foi se tornando o ‘esgoto’ da área central, tanto em termos simbólicos (culturais e inconscientes) quanto concretos (advindo do descaso para com o meioambiente).” (FREITAS, 2007, p. 9).
inclusive, delineia um mapa com a ”Distribuição da prostituição de “rua” e de bordel em Belo Horizonte - 1981” enfatizando que este tipo de hotel estava presente também (em menor grau) no bairro Bonfim, mas predominava no centro da cidade, sendo conhecido como “zonas”. No hotel Brilhante também se manifesta de forma relevante o erotismo, visto estar localizado em uma rua conhecida como pertencente à uma zona de prostituição, sendo retratada amplamente nas principais referências utilizadas neste trabalho. Ademais, vários são os hotéis vizinhos (mesma rua e adjacentes – em torno e ao longo de 3 a 4 quarteirões) que têm um funcionamento semelhante, mantendo assim uma aura de erotismo e certa boemia em torno das práticas que por ali acontecem. A estrutura física do hotel Brilhante pode ser assim descrita, conforme nossas observações: trata-se de um prédio de 3 (três) andares. O acesso se dá pela Rua Guaicurus. Logo à sua entrada existe um balcão onde fica o porteiro que faz a “triagem” eventual dos clientes, das prostitutas e outras pessoas afins, ligadas à prostituição. Este balcão fica de forma paralela à entrada de modo a permitir ao funcionário do estabelecimento solicitar (se achar necessário com os critérios estabelecidos) a identidade dos possíveis clientes, para exercer a segurança, e ou para detectar eventuais adolescentes que queiram entrar no estabelecimento, dentre outras funções. Após passar pelo porteiro, o cliente sobe as escadas (à esquerda 15 degraus, mais 15 degraus à direita), entrando no ambiente do hotel (2º andar). Este hotel possui 56 quartos distribuídos nos 2 (dois) andares (28 quartos por andar) dispostos da seguinte forma: chegando ao 2º andar, avistamos à frente um grande corredor com quartos dispostos dos dois lados. As paredes foram reformadas e contam com pedras de mármore e granito em toda sua estrutura, conferindo ao local um padrão melhor de acabamento em relação a outros hotéis da região. O local possui som ambiente que fica ligado constantemente. Ao fundo e no meio do corredor (de ambos os lados), a arquitetura se abre (maior profundidade nas laterais) e permite a composição de mais quartos.
À frente, - a aproximadamente 20 (vinte) metros da entrada
principal - existe uma nova escada que dá acesso ao 3º andar do hotel. Para aproveitar bem todos os espaços, a gerência montou estruturas de forma a que, mesmo embaixo das escadas, existem quartos que são utilizados para a
prática da prostituição.
O ambiente possui um ar “pesado” por causa das
poucas janelas existentes não comportarem, o grande contingente de pessoas que circulam, bem como a poluição pelo uso de cigarros. A circulação do ar se dá mais pela força de grandes ventiladores que ficam ligados constantemente, ou de ventiladores de teto, que alternam o funcionamento. A iluminação está disposta da seguinte forma: avista-se no teto, de 4 em 4 metros, 2 (duas) lâmpadas fluorescentes: uma vermelha e outra azul, dando ao ambiente um toque de boemia, mesmo durante o dia. Este hotel é considerado pelas prostitutas e clientes, o de melhor padrão desta região. Os quartos têm em torno de 3x2 metros. Cada quarto possui também, de forma padrão, uma cama, um armário, um criado, um banheiro com ducha, papeleira, etc. Alguns quartos são maiores e bem localizados podendo ter valores de diárias diferentes. A limpeza básica é feita pelo hotel e a manutenção pela mulher que ocupa o espaço. As mulheres recebem o quarto limpo, se encarregando das roupas de cama (lençóis, travesseiros, fronhas, etc.) e devem entregar o quarto nas mesmas condições recebidas. Este hotel possui uma gerência que se localiza nos fundos do prédio, após as escadas, bem no final do corredor e com acesso restrito. Neste local é onde são negociados: o preço da diária e as regras gerais da permanência da mulher nos quartos do hotel 13. A descrição do hotel Brilhante é importante também, por permitir entrevermos um exemplo real e significativo da prostituição em Belo Horizonte. Tanto em quantidade de programas que por ali são realizados, quanto pelo imaginário erótico que este hotel representa: é um hotel tradicional, localizado na região central da cidade, relativamente próximo do bairro Bonfim, inclusive e com fácil acesso/ligação entre uma região e outra pelos viadutos Leste e/ou Hansen Araújo, Praça da Rodoviária ou Vaz de Melo e Avenida Pedro II.
3.3 O encantamento erotizado do cliente e a negociação dos programas
13
Não tivemos acesso ou referências de contratos formais entre as prostitutas e os hotéis. A negociação de sua estada se dá de forma verbal e mediante o pagamento das diárias e despesas diversas.
Neste tipo de hotel descrito acima,
14
as mulheres geralmente ficam
deitadas na cama e com pouca roupa, ou até totalmente nuas: geralmente usam tanguinhas e sutiãs sensuais, sendo que algumas usam shorts curtos. Ficam geralmente de bruços, mostrando as nádegas de forma a facilitar a visão de quem entra no quarto, ou que espreita de longe, para despertar o desejo de forma rápida. Algumas ficam na porta recebendo os clientes. Outras fazem gestos incitando/chamando os mesmos a entrarem em seu quarto e/ou dançam para atraí-los mais rapidamente numa espécie de ritual erótico. Cada mulher age de forma a destacar o que tem de melhor (sensualidade, lingerie, partes do corpo, etc.) e para despertar no cliente o desejo de estar com ela. Invariavelmente, cada mulher porta também, como material que faz parte do encantamento do cliente e para sua distração, um aparelho de som portátil o qual, normalmente fica ligado, geralmente com músicas de funk, samba, rock ou popular. Na porta ou na própria cama, e após a abordagem do cliente é que são negociados 15 os preços e o tipo de programa a ser feito. No entanto, existe em cada hotel uma tabela básica de preços. No hotel Brilhante, em Outubro de 2010 o programa básico custava R$ 25,00 (vinte e cinco reais). Importante salientar que a mulher tem a flexibilidade de negociar um preço menor ou maior, em decorrência da negociação de variações e práticas, bem como de atendimento de desejos diversos e diferentes do coito comum:
As práticas de conteúdo bem definido e de fácil verbalização, o preço e o tempo, são itens que podem ser objeto de acordos prévios. (FREITAS, 1985, p. 30-31) Qualquer que seja a negociação, cada mulher deve arrecadar o suficiente para pagar à diária (R$ 100,00 cem reais). Este hotel disponibiliza cada quarto em dois turnos, totalizando então 116 diárias (o hotel possui 58
14
As observações sobre a rotina das prostitutas e da estrutura do hotel foram efetuadas entre os dias 1 e 20 de Outubro de 2010, no hotel Brilhante em Belo Horizonte, baseada em conversas informais com clientes, funcionários do hotel e algumas mulheres 15
Na perspectiva de Freitas (1985, p. 30), “o programa é a unidade elementar da atividade da prostituta”, pois se constitui no momento em que se dá a negociação de rotinas, identidades e disputa pelo controle da interação com o cliente, ou seja, negociase o tempo do programa, seu preço e as práticas sexuais.
quartos). O hotel abre por volta das 08h00min (oito horas da manhã) e fecha em torno das 23h00min (vinte e três horas). Cada mulher paga uma diária por turno ou 7 (sete) horas de trabalho. Se houver disponibilidade de quartos, a mulher pode dobrar de turno. Neste caso terá de pagar 2 (duas) diárias. Geralmente as mais novas e atraentes conseguem fazer este tipo de negociação, conseguindo auferir maiores ganhos em decorrência de sua disponibilidade e capacidade. Os clientes transitam pelos corredores procurando alguém que chame sua atenção ou desperte o seu desejo. Geralmente ficam olhando o interior dos quartos: O que tipicamente se verifica no interior de uma “zona” é uma infinidade de homens transitando pelos corredores, observando as prostitutas de cada quarto. (FREITAS,1985, p. 26) Quando uma porta se abre existe a tendência de vários homens correrem (concorrência) em sua direção para conseguir ver a mulher, ou de ter a chance de ser o primeiro a estar com ela. Em alguns casos, pode ocorrer aglomeração na porta dos quartos e uma “disputa” para ver e falar com a mulher. O mesmo ocorre quando uma porta se fecha:
Quando se interessam por alguma, entram no quarto para negociar um “programa” (preço e práticas). Se chegam a algum acordo, a prostituta fecha a porta e a “multidão” que geralmente se fixa em volta de cada porta (quando esta está aberta), se dissolve, saindo em busca outras portas abertas. (FREITAS,1985, p. 26) Em nossa observação, percebemos que neste hotel a freqüentação se dá por clientes de várias faixas sociais e etárias. Foram observados, desde homens de terno, de camisa social, até homens jovens trajando bermudas. Trabalhadores e pessoas aparentemente sem ocupação de todas as camadas da sociedade. Alguns têm o olhar desconfiado ou a forma de andar mais agressiva. Outros denotam atitudes estranhas, como olhar fixo em outras pessoas, nas mochilas, ou bolsos e por aproximarem em atitude ameaçadora, como se fossem trombar em quem interferir em sua passagem.
3.3.1 Os preços da prostituição
A prática da prostituição, dependendo de onde é estabelecida, por quem e como, pode proporcionar ganhos significativos para a mulher.. De outro lado, os hotéis também têm garantido diariamente para os proprietários uma arrecadação significativa e altamente rentável na exploração das mulheres que ali se estabelecem. No caso do hotel Brilhante, calculamos uma estimativa dos ganhos da prostituição a partir das informações coletadas durante as observações exploratórias e também tomando como referência o que Freitas (1985) demonstra: A rotatividade de clientes na “zona’ é altíssima: dificilmente menos de 20 para cada prostituta em um dia. [...] Cada quarto é alugado à prostituta que nele deve permanecer durante todo o período da “batalha”. (FREITAS, 1985, p.26) Nesta pesquisa exploratória tivemos a oportunidade de conversar com um gerente do hotel, vários clientes e com 3 (três) mulheres. Com o gerente do hotel verificamos os preços praticados no estabelecimento, que segundo o seu relato são assim definidos: Diárias: R$ 100,00 (cem reais) e valor médio do programa: R$ 25,00 (Vinte e cinco reais). Os valores foram confirmados pelas 3 (três) mulheres que conversamos (diárias e valor do programa básico
16
) e por vários clientes (valor do programa
básico). Desta forma, montamos uma tabela tomando como base estes valores. Como se trata apenas de uma estimativa que visa demonstrar que o comércio erótico também movimenta quantias consideráveis, vis-à-vis a quantidade de programas efetuados e à alta rotatividade verificada no local, acreditamos não 16
Segundo o relato das mulheres que trabalham no local: o programa básico, é composto por uma “chupada e três posições”.
comprometer a pesquisa com nossa estimativa baseada em dados coletados de forma exploratória e não estruturada. Na tabela criada relacionamos a periodicidade, quantos programas cada mulher faz, quanto recebe por dia o quanto paga ao hotel. As unidades usadas relacionadas à periodicidade são: hora, dia, semana, mês, ano e turnos trabalhados. Quanto aos programas, estimamos uma média com referência em nossas conversas no local, bem como tomando como base dados demonstrados por Freitas (1985, p. 26). Dos valores arrecadados na linha do que chamamos periodicidade (dia, mês, ano), subtraímos o valor da diária. Temos, portanto, em cada linha o valor que sobra para a mulher. No exemplo a seguir podemos visualizar melhor: Uma mulher que faz 2 (dois) programas por hora (o que é uma média plausível diante dos relatos obtidos na pesquisa) totaliza 14 programas por dia em apenas 1 (um) turno. Este valor possibilita a ela - já retirando o valor da diária - um saldo significativo, ou seja: Para um ganho com 14 programas, R$ 350,00 (trezentos e cinqüenta reais). Subtraindo o valor pago pela diária ao hotel: R$ 100,00 (cem reais) totaliza um saldo no dia de R$ 250,00 (duzentos e cinqüenta reais). Se ela mantiver esta média durante o mês poderá arrecadar/receber até R$ 7.000,00 (se trabalhar de segunda a sábado e por 7 horas a cada dia). Ora, sabe-se que muitas mulheres dobram de turno, bem como cobram valores maiores chegando a fazerem inclusive, uma média até 3 (três) programas por hora: 17
17
Leite (2008, p.92) considera que a cidade de Belo Horizonte é mais favorável para ganhar muito dinheiro e relata que em 1982, ocasião em que estava na cidade, no dia da eleição para governador, “a zona, que já era lotada, estava fora de controle”. Relata que somente neste dia fez 78 (setenta e oito) programas.
Por outro lado, o hotel cobrando para cada diária o valor de R$ 100,00 (cem reais), tendo 58 (cinqüenta e oito) quartos em 2 (dois) turnos garante diariamente, os seguintes valores: R$ 100,00 x 56 x 2 = R$ 11.600,00 (Onze mil e seiscentos reais) diariamente. Ressalte-se que este valor é líquido e “certo”, pois fruto do trabalho da mulher e pago por esta no final de cada turno. A mulher que não consegue cumprir ou pagar o quarto é impedida de continuar a utilizar os quartos do hotel até que salde sua dívida. Estes valores são bastante significativos, pois recebidos de maneira informal. No mês, pode significar um ganho para o hotel de valores em torno de R$ 325.000,00 (trezentos e vinte e cinco mil reais e no ano R$ 3.897.600,00 (três milhões oitocentos e noventa e sete mil reais. O montante movimentado no hotel anualmente corresponde à arrecadação total de todas as mulheres, sem os descontos das diárias ou: R$ 13.641.600,00 (Treze milhões seiscentos e quarenta e um mil e seiscentos reais). Pelo escopo do trabalho não temos como levantar se incidem ou não impostos sobre os valores ou como são apurados e cobrados do hotel. Assim, pela informalidade verificada torna-se bastante difícil o levantamento real dos valores taxados. Contudo, os números estimados são suficientes para revelar que o erotismo, o comércio sexual e outros pressupõem uma verdadeira “economia da prostituição e do erótico (grifo nosso)”. Ainda assim, tais valores podem indicar fatores da perpetuação da prostituição nos espaços urbanos. Ademais, o conhecimento destes dados
pode contribuir para o conhecimento da amplitude das questões relacionadas ao erotismo, à prostituição ou comércio sexual. Esta visão de uma economia subalterna e proporcionada pela estimativa com base nestes dados preliminares demonstra que existem outros fatores que devem ser considerados para uma análise da prostituição. No entanto, mesmo aqui, corroboramos que estes valores assim demonstrados, se dão também pela viabilidade das questões preliminares relacionadas ao erótico e ao imaginário, e que servem como motores que impulsionam a freqüentação destes lugares, revelando um comércio sexual, uma economia, uma atividade constante, repetida e perene.
3.4 Considerações finais sobre o capítulo
Neste capítulo contextualizamos a prostituição na cidade de Belo Horizonte, destacando que sua história se harmoniza com a própria fundação da cidade e que suas práticas têm no bairro Bonfim um símbolo original e perene. Percebemos que a inserção da prostituta não se deu apenas de fato, nos espaços e nas ruas da cidade, mas também no imaginário popular. Inicialmente, através do ambiente boêmio, sendo viabilizada posteriormente pelas possibilidades de realização do erótico e servindo como fonte de referências diversas. A prostituta, portanto, se achava relacionada à prostituição em si, ao ambiente festivo, sensual e boêmio que freqüentava, ou como símbolo de transgressão e de discriminação, interferindo inclusive, na conformação dos espaços, especialmente nos bairros Bonfim e Lagoinha. Ademais, percebemos que o imaginário interferiu nas mobilidades, preferências e escolhas pessoais de boa parte da população destes bairros, que se referenciam de forma imbricada, aos locais de moradia, às questões relacionadas aos pertencimentos e identificações. Na pesquisa exploratória, percebemos que o imaginário erótico disseminou-se também para outras partes da cidade manifestando-se de maneiras diversificadas. Também, que os bairros Bonfim, Lagoinha e centro da
cidade fazem parte de um “mapa” da prostituição real, pertencendo à mesma regional da cidade. Por fim, identificamos que a presença da prostituta nos hotéis de alta rotatividade, proporciona também uma análise de valores praticados no comércio sexual, que virtualiza uma verdadeira economia, de existência subalterna, (apenas estimada neste trabalho) que parece movimentar valores consideráveis.
4. Prostituição, poder e trabalho
Este capítulo enfatizará o universo da prostituta e algumas questões relacionadas ao enfrentamento pela mulher de sua realidade, consoante suas conquistas e movimentos e que, na nossa perspectiva se relacionam também, à prostituição. Neste sentido, analisaremos as relações de poder imbricadas na prostituição e na luta da mulher retratada nos movimentos literários. Para tanto recorremos a uma apreciação do modo como o imaginário erótico proporciona a modificação dos papéis desempenhados pela mulher, através da análise de alguns acontecimentos históricos e da conformação resultante. Por fim, mostraremos como o erotismo sempre esteve relacionado com o trabalho das prostitutas, determinando-o e favorecendo sua perenização.
4.1 As relações de poder, a prostituição e a luta da mulher
As diversas conquistas e movimentos afeitos às prostitutas são assimilados, tanto por elas mesmas no exercício da profissão, quanto pelos diversos movimentos femininos e feministas, e servem como instrumentos de luta pela emancipação das mulheres. Quando referenciamos a constituição da família ocidental, nos deparamos inexoravelmente com as relações estabelecidas desde sempre, e que remontam ao predomínio da autoridade do homem sobre a mulher e do primado de seus desejos. Segundo Badinter (1985), a mulher sempre se deparou com um duplo poder masculino, seja o marital ou paterno e que determinavam as relações e as formas de fazer e estar:
Por mais longe que remontemos na história da família ocidental, deparamos com o poder paterno que acompanha sempre a autoridade marital. A acreditar nos
historiadores e nos juristas, essa dupla autoridade teria sua origem remota na índia. Nos textos sagrados dos Vedas, Árias, Bramanas e Sutras, a família é considerada como um grupo religioso do qual o pai é o chefe. Como tal, ele tem funções essencialmente judiciárias: encarregado de velar pela boa conduta dos membros do grupo familiar (mulheres e crianças), é o único responsável pelas ações destes frente à sociedade global. Seu poderio exprime-se, portanto, em primeiro lugar, por um direito de julgar e punir. (BADINTER, 1985, p.29)
No século XVII, reinava o poder absoluto da dupla autoridade apoiada por práticas seculares e pelo predomínio do princípio da autoridade, legado Aristotélico que pregava ser ele natural. Também da teologia que o afirmava divino, e finalmente dos políticos absolutistas que o pretendiam divino e natural. Aqueles que se julgavam melhor preparados, da forma como salienta Badinter (1985): A condição do Pai-Marido-Senhor todo-poderoso não pode ser explicada senão pela sua essência. Criatura que mais ativamente participa do divino, seus privilégios devem-se apenas à sua qualidade ontológica. É “natural” que a mais acabada das criaturas comande os demais membros da família, e isso de duas maneiras: em virtude de sua semelhança com a divina, como “deus comanda suas criaturas”, e em virtude de suas responsabilidades políticas econômicas e jurídicas como um “Rei comanda seus súditos. (BADINTER, 1985, p. 33)
As duas maneiras estruturais daquelas sociedades referendavam as atitudes masculinas até então, proporcionando um papel secundário às mulheres, que normalmente se submetiam ao desejo e poderio masculino. De um lado, o proceder masculino se revela coerente com os textos bíblicos e uma ideologia cristã, essencialmente apontando a mulher como inferior e remetendo-a constantemente a um papel de submissão: da mulher ao marido, dos filhos aos pais, igualando assim, no exercício de sua liberdade, tanto mulheres quanto crianças no papel de seres de obediência. O homem tem um duplo papel que funciona como uma barreira, que impede a manifestação dos desejos das mulheres e crianças que funcionavam como peças de uma engrenagem maior. Numa perspectiva assim tão evidenciada, os desejos eróticos evidentemente, estavam também solapados e destinados a fazer parte
de uma necessidade secundária, principalmente se comparados com outras prioridades da luta da mulher no período, como a busca da liberdade de expressão e a própria luta contra a predominância masculina. Imbuídos de tal poder, era “natural” que os homens procedessem daquela forma, pois as diversas conformações sociais dali tinham origem ou se alinhavam às circunstâncias que denotavam uma coerência com as formas jurídicas assim delimitadas e vigentes. A prostituta libertina confronta-se com todas estas questões sofrendo, além destas pressões, as agruras decorrentes da própria sociedade que também a julga e condena. Além de tudo, como vimos anteriormente, ela também encarna a mulher erotizada, fonte de desejos e poder. Nesse sentido, a decisão da mulher, circunstancial ou não - ou por outras razões que não vamos investigar aqui - de seguir a profissão de prostituta a remete a uma forma de proceder em suas ações subvertendo os diversos discursos e valores impostos, seculares e vigentes nas sociedades predominantemente de autoridade masculina e a conduz ao enfrentamento de todos os dilemas relacionados à profissão e também à sua condição de mulher. Esta forma entremeada de se inserir e se estabelecer na sociedade, diante do insondável, misturam-se então com questões não pretendidas, mas subjacentes (desejo, liberdade, prazer, poder, realização pessoal, etc.), pois relacionadas aos diversos papéis da mulher e da profissão polêmica. Porém, inexoravelmente constituinte do seu ser quando do estabelecimento de sua condição de prostituta e, que por neste lugar se colocar, conjuga algo talvez impensado, quiçá revolucionário. A prostituta assim, mais uma vez, fascina e ameaça, destrói conceitos e pré-conceitos criando outros, e inicia um movimento de desejo e repulsa, de abnegação de si e do seu corpo e do cumprimento de um importante papel na libertação e lutas femininas. A inserção desta mulher na profissão – em um período de ampla divulgação de uma literatura que facilitava a conformação de sua figura e ideais (libertinos) - implica também na negação frontal com o primado da autoridade masculina de longa data, de fazê-la permanecer na esfera privada e familiar.
Neste momento, contra todos e tudo, esta mulher começa a se estabelecer no mercado de trabalho, sob uma perspectiva informal, mas trazendo uma série de questões que permeiam o imaginário social, especialmente o feminino. As ações desta mulher sofrem assim um redirecionamento no sentido de passar a confrontar a figura masculina, até então imbuída do poder máximo na sociedade. Por conseguinte, o fazer das prostitutas oferece, destarte, dupla confrontação à moral vigente: à família e aos homens e uma terceira de viés, às próprias mulheres. A primeira diz respeito à renúncia à família e à ideologia cristã. Ambas se vêem ameaçadas em relação aos seus valores morais e normas, diante das atitudes daquelas mulheres que se lançam na vida mundana e profana, ao encontro dos seus desejos, abandonando o que se enxerga como mais sagrado, e que referenciam diretamente as relações fraternais, paternais, religiosas e maternais em especial.
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A segunda
confrontação se direciona à figura masculina ou o poder paterno e marital que se ressente ao ver escorrer pelas mãos a prerrogativa do controle, da punição, do julgamento e da vigília. A figura masculina, pais, irmãos e maridos se vêem destituídos de ações que possam impedir uma atitude tão inesperada e libertária. Por fim, temos a configuração de uma atitude paradoxal frente às próprias mulheres que denuncia o duplo caráter de suas ações: De um lado, as prostitutas ameaçam o “status quo” e deixam vulneráveis as mães de família, namoradas e noivas, pela possibilidade de assédio e freqüentação de seus homens àquelas mulheres marginalizadas, e que inclusive, carregam também o estigma das doenças venéreas, do valor venal do sexo e do prazer.
De outro, as prostitutas levantam, talvez sem que
soubessem, uma ou mais bandeiras do movimento feminista, mormente aquela referente à sua liberdade frequentemente solapada e eivada de falsas ideologias.
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A despeito das práticas hoje existentes, também a maternidade e o amor materno no século XVII eram questionados, como afirma Badinter (1985). Relacionadas a outros aspectos como a conquista de poder, de liberdade, dentre outros, algumas mulheres usavam da prerrogativa das amas de leite para exercer outras atividades.
O significado de suas ações também pode ser avaliado sob a perspectiva da não intenção de procedimento. Este conceito revela um efeito não calculado, mas não menos eficaz e duradouro e que, circunstancialmente inserido nas estruturas sociais, pode suplantar (mesmo que pela falta de método) aqueles movimentos planejados e providos de metas e direção. Os efeitos provocados e não perceptíveis à primeira vista são também desestruturadores. Desta forma, o que é assimilado pela coletividade de forma inconsciente também passa a fazer parte de suas ações cotidianas. O que não é perceptível cognitivamente encontra, mesmo assim, outras estruturas psicológicas e simbólicas, ou sócio-psíquicas e culturais, tornando-se significantes de algo ou de uma ação. A não intenção de procedimento possui ainda características de imprevisibilidade, invisibilidade e eficácia, não perceptíveis a olhos de crença, especialmente o masculino que era objeto de enfrentamento. No momento em que se cria uma literatura voltada para o público masculino, que claramente favorece a manifestação de seus desejos, sendo também uma forma de extravasá-los, não estavam previstos alguns efeitos como aqueles que favoreceriam a luta feminina. Um último aspecto a ser considerado relaciona-se à vontade de poder das mulheres que, costumadas desde sempre a um papel secundário, têm também suas ambições e buscam, sempre que podem um lugar diferente em que possam alcançar e permanecer em evidência: Quando tem ambições (mundanas, intelectuais, ou profissionais, como acontece hoje) e meios para realizálas, uma mulher é infinitamente menos tentada do que outras a investir seu tempo e sua energia na criação dos filhos. As mulheres de sociedade de Balzac, pouco receptivas às teorias burguesas de Rousseau, sonhavam à sua maneira reinar sobre os seus semelhantes. Muitas dessas mulheres foram dotadas de vontade de poder. Seu único problema era saber como satisfazê-lo dada a sua situação particular. No século XIX, quando o trabalho feminino, mesmo intelectual, é totalmente desvalorizado aos olhos da ideologia dominante, só resta às mulheres das classes superiores uma alternativa: ter vida mundana e brilhar aos olhos do mundo, ou ser mãe de família e reinar no seio do lar. (BADINTER, 1985, p. 164)
Ora, a prostituta libertina ou a cortesã, como apresentado anteriormente, exerceu este papel libertador e questionador. À sua maneira conquistaram posições proeminentes na sociedade face à ideologia dominante. No caso em estudo, a escolha da vida mundana também significa a elisão de elos seculares e a conquista de novas posições e independência de escolha. Esta nova liberdade, inicialmente restrita a classes superiores, se traduz em possíveis e poderosas armas de luta e reivindicações posteriores das mulheres. Outro aspecto a ser notado relaciona-se aos cuidados femininos, à higiene e à prática médica que têm de se adaptar para atender a este novo público. O estabelecimento de novos padrões que atendam à nova profissão, às novas mulheres e prostitutas também teriam de ser pensados.
4.2 Erotismo e profissão
O mercado sexual sempre esteve presente na sociedade, estando intrinsecamente relacionado ao erotismo que o permeia e determina. Nos períodos enfocados o imaginário erótico predominou por prerrogativas e características relacionadas a cada época. Se no ambiente da prostituta libertina, a literatura pornográfica facilitava a disseminação da liberdade sexual e incentivava o comércio sexual, também ia ao encontro de desejos das mulheres de sua libertação do primado masculino, aliado às questões de pobreza e lutas femininas e feministas. Isto favorecia a inserção das mulheres na profissão. No caso de Minas Gerais, as questões relacionam-se ao comércio de escravos, à mineração e mobilidade e também relacionada à pobreza, remetem a mulher, similarmente ao modelo europeu, à dominação masculina, aos revezes dos efeitos da economia e às tentativas de libertação dos domínios masculinos. Mais uma vez, muitas mulheres foram objetos de desejo e dominação e remetidas ao comércio e exploração sexuais pelas circunstâncias enfocadas.
Uma erotização do cotidiano sempre esteve presente, em todas as épocas, e a mulher, concomitantemente e similarmente, colocada em ambientes em que é vista como um objeto de desejo e de dominação, de prazer e luxúria, e fruto da imaginação masculina. Hoje, a despeito das conquistas e de posições que a mulher ocupa na sociedade, continuamos a perceber, na mídia, na internet, dentre outros veículos de comunicação, a contínua propagação de um imaginário em torno do feminino e que remete ao seu corpo e o que este pode proporcionar de prazer e fantasias eróticas. Em sentido contrário, estas questões favorecem àquelas mulheres que querem se inserir na profissão e à própria sistematização e regulamentação das práticas das prostitutas. A regulamentação em debate, em seu cerne, referencia o movimento das mulheres, suas lutas e reivindicações, desde sempre, bem como os estigmas sentidos e revelados por práticas e reações da sociedade no dia-adia, diante das possibilidades de efetiva consecução da regulamentação. No entanto, as proposições dos órgãos oficiais e ações de entidades da sociedade civil - segundo o relato de algumas mulheres em Barreto (2008) -, destoam em alguns aspectos, do real da proposta de regulamentação, pois não referenciam o treinamento adequado das profissionais inseridas na prostituição (inclusive no que alude às técnicas do corpo), bem como dos benefícios legais já previstos para outras categorias. Muitas vezes, os programas e projetos existentes, através de cursos, políticas e outros, treinam as mulheres para atuar em outras profissões, na intenção de criar alternativas para a saída das mesmas da prostituição, o que parece rumar no sentido inverso do pretendido e ao encontro dos anseios, não das prostitutas, mas de uma boa parte da sociedade tradicionalista, que as julgam, estigmatizam e condenam. Mesmo que a regulamentação da profissão de prostituta não seja objeto de estudo deste trabalho, vale finalizarmos deixando falar a mulher que dela conhece:
Rosa questiona ainda os cursos oferecidos às prostitutas, afirmando que seria importante que ensinassem estas a se prostituir e não oferecer apenas os cursos tradicionais (como de informática e artesanato).
[...] Rosa: Diz que tá tendo curso de computação, eu não tenho certeza também não, faço nem idéia, né? Mas no trabalho assim de auto-estima, a pessoa aprender a se prostituir, porque prostituição é igual vendedor, a pessoa desempregou quer virar vendedor, você já reparou? Pessoa cisma assim, “Ah, vou ganhar dinheiro lá pra zona”. Não é assim, tudo tem truque, você não vai chegar pra lá e ganhar não, a não ser que você chegue muito bem de frente, pra chegar e ganhar, né? (BARRETO, 2008, p. 45-46)
4.3 Considerações sobre o capítulo.
Neste capítulo retratamos a luta da mulher, no que esta se relaciona à prostituição e à sua necessidade de conquista de novos espaços na sociedade. Neste sentido, tentamos evidenciar alguns aspectos da prostituição e do ambiente erotizado promovido pela literatura pornográfica e que proporcionou o questionamento do papel masculino, do seu poder e da posição da própria mulher. Demonstramos assim que ocorreu uma verdadeira confrontação dos papéis, tanto masculinos como femininos, entremeados pela figura da prostituta libertina, podendo significar aspectos não percebidos ou planejados, mas inevitáveis diante da força em que estes fatos ocorreram. Mais à frente, destacamos como certo poder conquistado pelas mulheres - inseridas naquele universo - abriu caminhos para todas as outras, seja em procedimentos inevitáveis para atendimento deste novo status, ou como símbolos de lutas.
Também como suporte da valorização de seus
desejos de realização amplos, voltados para as perspectivas do seu erotismo, do seu corpo e prazer, ou como uma forma de favorecer resultados futuros de reivindicações postergadas, mas inevitáveis face às suas conquistas e significações. Após, iniciamos algumas reflexões relacionadas à regulamentação da profissão e o fazer histórico das mulheres, assim como das intrincadas conseqüências e questionamentos relacionados tanto aos estigmas, quanto às
práticas, e que considerados na análise como insumos essenciais para a viabilização das reivindicações pretendidas.
5. Considerações Finais
Este trabalho de pesquisa permitiu a releitura da prostituição sob uma perspectiva histórica, de forma a extrair elementos que corroboraram as práticas seculares, na medida em que permitiram estabelecermos relações entre os diversos temas surgidos, relacionados à mulher, à cultura, à política dentre outros, sob o primado do erotismo e da prostituição, aspectos retratados em perspectivas históricas distintas. O erotismo expresso no imaginário das diferentes realidades foi o “motor” que impulsionou os diversos aspectos evidenciados no trabalho. Na manifestação literária e pornográfica, fica evidente a irrupção de novos desejos de saber e a valorização do corpo (especialmente da mulher) como dotado de sentidos e valores, que denotavam aspectos relacionados à prostituição, bem como servindo para manifestações dos desejos femininos e feministas e como insumos importantes no conhecimento daquele universo e de suas intrincadas significações. Deste
universo,
surgem
diversas
manifestações
e
simbologias,
verdadeiros conhecimentos e necessidades surgidas e mescladas com as práticas
mundanas,
protagonizadas
nas
figuras
surgidas
à
época.
Especialmente a prostituta libertina encarna diversos desejos e saberes, permitindo ser objeto de uso - objeto masculino - e de considerações filosóficas e políticas e relacionadas ao profano, em essência, por incorporar a libertinagem com
os indícios
preponderantes de motivações eróticas
masculinas e por permitir, de viés, a invasão de um universo não pretendido, qual seja, o do sagrado e do familiar e de suas intrincadas relações com o imaginário popular e cultural que faziam a contrafação ao primado do masculino e de relações seculares e patriarcais. Na realidade brasileira, os estudos relacionados à prostituição, no período da mineração, especialmente em Minas Gerais, permitiram a análise de alguns aspectos importantes e que se relacionam à Tradicional Família Mineira, aos costumes de época e práticas afins. Aqui também o erótico se encontra como pano de fundo, permeando as relações entre senhores e escravas e as camadas mais pobres da população. Em destaque, esta análise
social revela sua origem na mobilidade necessária para atender os anseios dos trabalhadores na exploração do ouro e da oportunização de práticas relacionadas à prostituição e que encontram reciprocidade no sistema vigente, que solapa as oportunidades, especialmente das mulheres escravas. No entanto, as fortes influências de aspectos políticos e econômicos, bem como questões de cunho moral proporcionaram a invasão do seio familiar, demarcando o declínio das fronteiras entre o sagrado e o profano. Estes aspectos, ao mesmo tempo em que ameaçam a família burguesa e o sistema político, servem para consecução de práticas masculinas e disseminação da prostituição de viés alcoviteiro. Aqui também as diversas práticas serviram como insumos para, especialmente as mulheres, lutarem pelos direitos, tanto femininos quanto relacionados à própria profissão e que serão expressos na forma de reivindicações mais adiante na história. Nesta análise, encontramos algumas similaridades e conformações sobre a prostituição e erotismo no Brasil e a sua manifestação européia, que permeiam os seguintes aspectos. Primeiro, a prostituição e o erótico são fenômenos que se difundem por diferentes causas, em épocas e sociedades diferentes. Podem ter um objeto lúdico, como o produzido pela prostituta libertina, que imaginada, permite seu surgimento no bojo de uma literatura popular e pornográfica, mas que interfere na conformação da sociedade, das relações entre homens e mulheres e da família. Invadem o sagrado quando produzem movimentos com prerrogativas de libertação e de prazer, autênticas demarcações de novas posições libertadoras que confrontam práticas e costumes e se encontram com ideários e práticas de mesma origem. Mesmo sem as perceberem racionalmente, os diversos movimentos as assimilam, o que é tornado possível e incorporado ao social e nas práticas, enriquecendo suas lutas e formas de saber. Pode também a prostituição, como no Brasil, não possuir um movimento em prol de sua manifestação e difusão e dos desejos relacionados, nem ter uma figura emblemática que encarne suas manifestações, mas estar refletida e referida nas práticas alcoviteiras e entremeadas com o sistema econômico, político e tradicional como o refletido no advento da mineração e do escravismo mineiro.
Contextualizando a prostituição em Belo Horizonte, verificamos que o erotismo pode conformar os espaços e as rotinas, sejam aqueles relacionados às próprias práticas, ou referentes à sociedade. Nossos estudos permitiram a visualização de espaços como os da região do Bonfim que foram construídos e legitimados em torno das práticas da prostituição, do ideário erótico e dos conflitos decorrentes de sua ocupação por famílias ligadas à religião de um lado, e por pessoas mais mundanas e confundidas com o comércio sexual, libertinas e boêmias de outro. De outra forma, o comércio comum se estabeleceu e também serviu a este ideário, também ocupando, servindo e conformando os espaços. O estudo da prostituição revelou, assim, a perspectiva erótica, que apenas travestida de subliminar, permeia e frequentemente determina o resultado das relações sociais. Não obstante, encontra na prostituição e nos instrumentos de viés pornográfico sua voz (literatura, revistas e outros) que evidencia sua força nas conseqüências ou resultados dos desejos e de imaginários latentes, comumente não percebidos pela sociedade. Assim, o erotismo e o estudo da prostituição permitiram também a identificação da mulher prostituta funcionando como um barômetro social, fenômeno observado nas práticas da prostituta libertina, bem como naquelas verificadas em Minas Gerais, nas alcovas da mineração e nas escravas empobrecidas, mas que faziam também, sua leitura da sociedade e se aproximavam das elites, clérigos, políticos e artistas. Estes aspectos as facultavam o conhecimento de realidades não tão óbvias para as pessoas distanciadas daquele universo. Um domínio de saber e um conhecimento de seu corpo e do alheio que a explora, mesmo sendo este cliente, dominado pela imaginação de seu deleite e poder eróticos. Ademais, na observação em um hotel de Belo Horizonte, ficou evidente que, em alguns casos, a prostituição proporciona ganhos significativos a algumas mulheres e que o comércio sexual constitui-se como uma “economia” de dimensões significativas. Tanto para as mulheres em conjunto, como para os diversos hotéis, os valores movimentados são significativos o suficiente para poderem ser percebidos pelas autoridades, no sentido da construção de mecanismos
para
a
consecução
de
políticas
que
visem
tanto
a
profissionalização da prática, quanto para a diminuição do estigma que provoca
nas pessoas ali envolvidas. Nas questões relacionadas à profissionalização ficou enfatizada a assertiva das mulheres quanto às suas reais necessidades e que relacionam perspectivas não previstas nas regulamentações já existentes, como cursos voltados para a prática da prostituição. Por fim, destaque-se que a pesquisa da prostituição, do erotismo e da mulher, revelou várias facetas das lutas femininas e feministas, que se relacionam ao seu corpo, à sua libertação, aos seus desejos, dentre outros e que foram tratados como sinais importantes incursos ao longo da história: alguns servindo de marco e delimitação de condutas, movimentos e ações que mudaram seu fazer e sua compreensão do mundo, e outros servindo de conhecimento de si mesmas e de provocação de mudanças na cultura, no imaginário e no real, traduzindo práticas em saberes e sonhos, e em possíveis realizações. No que concerne à profissão, de concreto, ficam as recomendações dos 10 (dez) mandamentos de Leite (2008) que informais, se aproximam do real e no nível das precauções, referem-se a aspectos comportamentais, éticos e outros, também importantes. No nível dos debates subjazem aspectos complexos e pouco notados, mas essenciais para a regulamentação da profissão, referindo-se tanto às suas práticas, quanto às confrontações e resistências existentes na sociedade e às próprias prostitutas que, por vezes, relutam face à regulamentação.
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