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O bem-amado Odorico Paraguaçu

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Editorial

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Odorico Paraguaçu está recluso há algum tempo. Sua última aparição pública foi em 2010, quando surgiu de um jeito um pouco diferente daquele que conhecemos nos anos 1970, é verdade, mas ainda assim uma figura inconfundível. O político, que ficou nacionalmente conhecido por suas confusões como prefeito da pequena cidade de Sucupira, no litoral baiano, aceitou conceder esta entrevista exclusiva para falar sobre o seu passado e também dar suas polêmicas declarações sobre muito do que está acontecendo hoje em dia.

De terno e camisa branca, com seu chapéu na cabeça, Odorico chegou no horário marcado. Fez questão de mostrar a bandeira do Brasil e seu santo protetor, o Santo Antônio, que estavam ao seu lado. "Para o povo brasileiro de verdade, é impossível pensar — inimaginável pensar! — em pisar essa bandeira, que isso fique bem claro. E meu santo, minha devoção aos nossos santos, ao nosso senhor Jesus Cristo. Deus que está acima de todos", disse antes mesmo da primeira pergunta.

Com seu jeito impetuoso — tom de voz alterado e gestos brandos —, o ex-prefeito usou de todo o seu linguajar político e bordões para naturalizar absurdos. Passe o tempo que for, o bem-amado Odorico Paraguaçu continua chocando todo o mundo.

ODORICO, NOS ANOS EM QUE VOCÊ FOI PREFEITO DE SUCUPIRA, CHEGOU A PROIBIR A DISTRIBUIÇÃO DE VACINA CONTRA A DOENÇA DE TIFO PARA A POPULAÇÃO. E, AGORA, VOCÊ É CONTRA OU A FAVOR DA VACINA CONTRA A COVID-19? ALIÁS, VOCÊ JÁ TOMOU A SUA DOSE DA VACINA?

Bom, bom... Vamos dizer o seguinte, minha gente: bom governante é aquele que governa com o pé no presente e o olho no futuro. O que sucedeu para atrasmente ficou para atrasmente. Porém é necessário esclarecer essa situação deverasmente embaraçante para mim, um político temente a Deus, a favor sempre da vida do meu povo, sem nunquinha — nunquinha! — duvidar da minha responsabilidade com a saúde e a educação dos meus cidadãos, sendo estas as minhas principais plataformas de governo. Sempre servindo ao meu povo e cuidando zelosamente de sua saúde e da educação. É com o povo vivo e educado que a gente pode ter um governo do povo, pelo povo e para o povo!

Deixando de lado os entretantos e partindo para o finalmente, essa história pregressa foi calunice potoquista de uma imprensa marronzista, badernista e comunista! Querendo destruir a imagem do único político que presentemente, hoje, pensa em servir o seu povo e que é um servidor cristão de Deus todo poderoso. Quero deixar claríssimo: eu nunca cheguei a proibir a distribuição da vacina — nunca, nunquinha! Só estava em defesa dos meus munícipes.

Primeiramente porque aquela pressa para a distribuição das vacinas não se justifica. Você mexe com a vida do nosso povo. Segundamente porque o nosso povo não pode ser cobaia de ninguém! Terceiramente eu defendo — defendo permanentemente! — o tratamento precoce. Quartamente porque toda vacina é perigosa, causa morte, invalidez, anomalia, doenças. Isso ninguém comunica ao povo. Quintamente, o nosso povo brasileiro é forte, já tem anticorpos que ajudam a não proliferar isso daí e quaisquer outras coisas mais que venham.

Ó, mas as vacinas estão aí, não é? Defendo ardorosamente que ninguém — ninguém! — pode obrigar alguém a tomar vacina nenhuma. Nunca! Nunquinha! Tá lá na Carta Magnânima: vacina obrigatória só pros bichinhos. Desses sou um defensor juramentado. Sou defensor das vivas almas caninas e gatinas.

Agora, eu não posso falar como cidadão uma coisa e como prefeito outra. Não sei se você me entende, mas, como eu nunca fugi da verdade, vou lhe responder: eu não tomei nem vou tomar essa vacina. E pronto! Se alguém acha que a minha vida tá em risco, o problema é todo meu. Não me vacinei até hoje, tô aqui vivo e ponto-final.

E tenho dito, sem mais delongas, deixo aqui juramentado: se alguém quiser tomar a vacina, que vá. E, de repente, se você virar o Super-Homem — para não dizer outra coisa —, se nascer barba em alguma mulher, se o homem começar a falar fino, o Estado não tem nada a ver com isso. Que fique isso dito e claro.

HÁ TAMBÉM MUITOS INDÍCIOS DE QUE VOCÊ CONTRATOU UM ASSASSINO EM SUCUPIRA, O TAL DO ZECA DIABO, SÓ PARA INAUGURAR O RECÉM-CONSTRUÍDO CEMITÉRIO DA CIDADE. QUE MORALIDADE TEM UM POLÍTICO QUE MANTÉM RELAÇÃO COM O CRIME ORGANIZADO?

Isso é outra calunice! Outra situação dessa imprensa marronzista. Todos sabem do meu provisionamento pagatista. Não obstantemente, essa imprensa que lava e se enxágua no calunismo — essa imprensa demagogista, esses badernistas! — quase conseguiu botar o meu povo contra mim. Essa foi outra situação deverasmente embaraçante.

Mas Deus está no comando. E o homem de bem, homem de família cristã temente a Deus como eu, que só pensa em servir aos seus conterrâneos... Esse calunismo nunca foi comprovado! Não existe! Não existe um documentinho, um documento escrito ou qualquer registro imagístico que atestamente me envolva com o crime organizado. Isso é calunice!

Aliás, eu combato terminantemente — que isso fique claro — e proeminentemente o crime organizado, a corrupção e a violência, que é uma violência esquerdista. Essa sempre foi uma das principais plataformas de minha gestão à frente da prefeitura. Fora com essa esquerda comunista, patifeita e corrupta!

E vou lhe dizer: em relação a esse Zeca Diabo, eu como prefeito não poderia admitir que um cidadão de nossa terra fosse proibido de voltar a morar em sua terra natal. E digo mais: um homem de Cristo perdoa. E eu, como um cristão, sei perdoar. E, ademais, que eu seja julgado por Deus, e não pelos homens de má vontade. E vou lhe dizer, como diz o ditado popular: fica o dito pelo não dito... e viva São Benedito.

SEU SLOGAN DE CAMPANHA FOI "VOTE NUM HOMEM SÉRIO E GANHE UM CEMITÉRIO". MAS EU LHE PERGUNTO, ODORICO: VALE QUALQUER PROMESSA RASA PARA SE MANTER NO PODER?

Olhe, eu lembro que tive um problema sério quando prometi criar o nosso cemitério. E, quando as pessoas não querem pensar que o cidadão tem direito a ser enterrado em sua terra natal, fico sempre me perguntando: dar guarida a quem ama a tua terra e deseja no seio dela descansar o sono eterno seria uma promessa rasa? Dar a última morada a quem nasceu, trabalhou, procriou e terminou seus dias na sua cidade natal é uma promessa rasa? Ou é uma dignidade e caridade cristã? E tem mais, não é dever do prefeito cuidar da vida e da morte de seus munícipes? Isso é promessa rasa?

E outra, pergunto mais: instituir uma renda mínima é promessa rasa? Acabar com a reeleição em todos os níveis e diminuir o número de vereadores é promessa rasa? Criar um plano municipal para pessoas com deficiência é também promessa rasa? Criar um novo plano de trabalho para os homens é promessa rasa? Não aumentar imposto de natureza nenhuma é promessa rasa? Impedir a aprovação automática nas escolas municipais – que é o que estamos vendo aí a torto e a direito — é promessa rasa? Me diga!

Não me importa se ainda não consegui implantar em sua concretude esses ardorosos desejos pela sagração do povo que me elegeu. O que importa são as boas intenções que estarão sempre comigo. Mas, olha, eu já tô muito acostumado com as ingratitudes e as desaforices desse povo! Eu entrego nas mãos de Deus. Deus acima de todos!

ODORICO, VOCÊ AINDA SE CONSIDERA UM SUJEITO BEM-AMADO PELO POVO DEPOIS DE TANTA CORRUPÇÃO?

Estou cansado, mas não me entrego. Não me entrego jamais pela luta do meu povo. Mas vamos botar de lado os abstratos e partir para o concretismo: corrupção eu condeno e contra-ataco. No meu governo nunca houve corrupção! E não haverá jamais enquanto eu e os meus estiverem no poder. E, aqui entre nós, eu também sou meio de socialismo — não da ponta esquerda, mas do meio de campo caindo para a direita —, que fique bem claro, claro como todo branco.

Vamos esquecer os anteontem e pensar no depois de amanhã? Vim, estou pronto e descansado para salvar meu povo da fome, do desemprego, do analfabetismo, das enchentes, das pragas, dos feitiços e dos maus-olhados. Isso é apenasmente verdade, nada mais importa. Afinal, eu já recebi uma mensagem indicando que fui o escolhido por Deus para comandar a minha cidade — e, quiçá, o meu país.

E parafraseando Dom Pedro I: se é para o bem de todos e felicidade da nação, eu digo ao povo que fico. E para ser recebido de braços abertos. Eu, Odorico Paraguaçu, sou seu humilde servidor bem-amado. Então, muitíssimo e agradecíssimo obrigado. Fiquem com Deus — e comigo no próximo escrutínio eleitoral, que espero ardorosamente que ocorra dentro da legalidade escrita e que sejam eleições limpas, democráticas e sinceras. Deus está no comando, amém!

Personagem: Odorico Paraguaçu Aparece nas obras: "Odorico, o bem-amado ou os mistérios do amor e da morte" (teatro, 1962) e "O bem-amado" (telenovela, 1973; cinema, 2010)

Carlos Ataíde interpretou Odorico Paraguaçu para esta entrevista. Natural de Recife (PE), é estudante de antropologia (2020) na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Mestre em artes cênicas (2013) pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Bacharel em comunicação das artes do corpo — habilitação em teatro e performance (2007) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). É membro fundador do grupo de teatro Os Fofos Encenam (2001), sob coordenação artística de Newton Moreno e Fernando Neves.

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