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Mistérios do Professor Astromar Junqueira

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O povo de Asa Branca tinha razão: o Professor Astromar Junqueira é, de fato, um homem cheio de mistérios. Após passar muitos anos recluso, o antigo morador da terra natal de Roque Santeiro, agora aposentado e vivendo em meio à natureza, "voltou à cena" nesta entrevista exclusiva e abriu o jogo sobre os boatos que sempre rondaram sua figura.

Hoje, muitos ainda têm curiosidade sobre a vida desse antigo orador de cerimônias, que era completamente apaixonado pela doce Mocinha. Aliás, por falar em romance, Junqueira nunca se casou e tampouco se envolveu amorosamente com alguém durante todos esses anos. Ele contou que, na verdade, tem tendência a ficar só e prefere se dedicar aos estudos, apesar de se considerar um homem romântico.

Neste bate-papo, o professor mostrou que pouco mudou ao surgir usando um sobretudo preto — sua cor preferida — com a gola levantada até a altura das orelhas. Com um olhar cerrado e a voz firme, mas um tanto rouca, ele respondeu às perguntas de maneira gentil, por vezes até poética, como se declamasse as palavras.

Amante declarado de literatura e música clássica, Astromar surpreendeu ao revelar ser adepto das novas tecnologias, tendo até criado perfis fakes nas redes sociais para encontrar, quem sabe, pessoas com as mesmas características que ele. Afinal, não se acha facilmente um lobisomem em qualquer esquina, não é? Confira a entrevista na íntegra.

SABEMOS QUE VOCÊ FOI UMA FIGURA NOTÓRIA NA CIDADE DE ASA BRANCA. CONHECIDO POR SER UMA PESSOA CULTA, ACABOU SE TORNANDO ORADOR DAS CERIMÔNIAS LOCAIS E ATÉ PRESIDENTE DO CENTRO CÍVICO DA CIDADE NA ÉPOCA EM QUE FLORINDO ABELHA ERA PREFEITO. NO ENTANTO, VOCÊ TAMBÉM TINHA FAMA DE SER BASTANTE MISTERIOSO, E MUITOS ATÉ DESCONFIAVAM DE SEU COMPORTAMENTO, O QUE GEROU BOATOS PELA CIDADE. COMO FOI LIDAR COM ISSO?

Na verdade, tudo isso era um comportamento introspectivo da minha parte, não sou um sujeito tão aberto à sociedade como alguns imaginavam. Sempre fui um indivíduo discreto, reservado, e, por isso, talvez as pessoas interpretassem como algo misterioso ou indescritível, mas era apenas um comportamento, uma maneira de me posicionar na vida de forma menos aberta, por assim dizer. Mas não há nenhum preconceito de minha parte em relação às pessoas, à sociedade e às instituições, tanto que eu faço parte de algumas delas.

ANTIGAMENTE, VOCÊ ERA APAIXONADO POR MOCINHA, QUE NÃO CORRESPONDIA AOS SEUS SENTIMENTOS. ESSA REJEIÇÃO O FEZ DESISTIR DE ENCONTRAR UM NOVO AMOR OU VOCÊ SE CASOU, FORMOU FAMÍLIA?

Esse é um assunto sentimental um tanto delicado e que toca na nossa intimidade, por assim dizer. Sim, tive uma paixão por ela, esperava dela uma correspondência, algo que poderíamos dividir juntos, e isso aconteceu durante um tempo. De um ponto de vista, deu certo, mas por um curto período. De outro, houve um distanciamento entre nós, por assim dizer, e eu não sou um sujeito de

procurar muito pelos outros, tenho essa característica de esperar que os outros me procurem, e nesse período não posso afirmar que alguém tenha vindo até mim com pretensões amorosas ou afetivas.

Como tenho essa tendência a ficar só, a ser uma figura introspectiva, a me dedicar muito à leitura, aos estudos e à escrita, esse aspecto, digamos assim, de troca entre um ser humano do sexo masculino e um ser humano do sexo feminino não chegou a acontecer novamente, pelo que de certa forma eu sinto muito, porque, na verdade, eu sou romântico, gosto da literatura que fala do amor, das epifanias sentimentais, da troca das almas. Do contato físico também, não posso esconder, afinal sou um ser humano, mas digamos que eu não tenho uma pendência nem expectativa das maiores em relação a isso. Então, me dedico às atividades que alguns conhecem, que há uma certa fama minha e por causa disso é dito algo. É verdade.

INDO DIRETO AO PONTO, O POVO DE ASA BRANCA COMENTAVA QUE VOCÊ SE TRANSFORMAVA EM LOBISOMEM NAS NOITES DE LUA CHEIA, O QUE HOJE SABEMOS QUE É FATO. PODERIA NOS CONTAR COMO E QUANDO ISSO COMEÇOU A ACONTECER COM VOCÊ?

Bem... Eu sofro de insônia, costumo dormir durante o dia e à noite fico na vigília. Então, aconteceu de eu começar a passear durante a noite, noites não tão calorosas, e, às vezes, eu colocava alguma roupa que me protegia um pouco mais do vento e de algum friozinho que me batia, porque sou uma pessoa friorenta. Esse tipo de roupa começou a gerar rumores de que havia alguém misterioso andando pelas ruas da cidade.

Também aconteceu um fato banal, que foi por eu deixar crescer os pelos do corpo e, coincidentemente, eles cresceram um pouco mais do que a média, sem meu controle. Alguma coisa na minha arcada dentária também mudou um pouco a minha feição. Então, tudo isso gerou a imagem de um homem que, talvez, tivesse alguma carac-

terística animal. A mistura de, por exemplo, um cão de tamanho exagerado, que as pessoas poderiam ver como um lobo — a mistura do lobo com um homem daria a palavra "lobisomem" .

Mas, de fato, com esses acontecimentos eu passei a me comportar como tal e adquiri certos hábitos inesperados. É como se eu passasse a assumir a minha aparência introspectivamente e, assim, aconteceu de eu praticar algumas coisas que não vêm ao caso aqui e que justificam, sim, essa mitologia a meu respeito. E não posso confessar os atos que pratiquei durante essa fase, mas aconteceu.

VOCÊ JÁ PESQUISOU SE EXISTEM CASOS COMO O SEU NA FAMÍLIA, SE PODE SER ALGO HEREDITÁRIO?

Dizem que havia um indivíduo na nossa família, meu bisavô, que tinha lá seus hábitos estranhos também, e que possivelmente eu tenha herdado dele esse comportamento inusitado, mas eu especialmente não fui atrás dessas informações, porque elas não iriam me acrescentar muito. E, como para mim basta viver assim, a solidão também faz que nos afastemos das nossas raízes, dos nossos parentes, que são os primeiros a questionar a nossa postura diante do viver noturno, recolhido. Deixei meu avô para lá, deixei a minha família de lado e passei a viver só.

HOJE EM DIA, A MAIORIA DAS PESSOAS SÃO CÉTICAS QUANTO À EXISTÊNCIA DE LOBISOMENS NO BRASIL, APESAR DE EXISTIREM MUITOS RELATOS SOBRE ISSO, PRINCIPALMENTE NAS CIDADES DO INTERIOR. VOCÊ AINDA É ALVO DE PRECONCEITO PELA SUA CONDIÇÃO OU CONSEGUE LEVAR UMA VIDA "NORMAL"? COMO É SUA ROTINA ATUALMENTE?

Digamos que me tornei mais ameno em relação a isso, tenho evitado gestos, atos e provocações que reforcem essa minha herança pessoal. Sendo assim, passei a circular um pouco mais durante o dia, com vestimentas mais aceitáveis pela sociedade, diminuindo um pouco essas opiniões tortas sobre a minha pessoa, que não

eram as mais retas. Mas, sem dúvida, ao passar pelos cidadãos sempre há algum tipo de comentário em tom baixo, uma espécie de fofoca, de gozação, por assim dizer, apesar de que essas duas palavras não me caem bem, pois são muito popularescas.

NUMA ÉPOCA EM QUE A CIÊNCIA É TÃO AVANÇADA, VOCÊ CHEGOU A PROCURAR UM ESPECIALISTA OU TENTOU ALGUM TRATAMENTO PARA AMENIZAR ESSA SUA CONDIÇÃO?

Olha, nunca vi o meu modo de viver como algo doentio. Exótico talvez, ou inesperado, ou estranho, isso sim! Mas não cheguei a me incomodar a ponto de tentar mudar essas características. Na verdade, me apraz viver com elas, desde que eu não cause males maiores aos meus semelhantes e que eu também não seja prejudicado por isso. Creio ser desnecessário consultar algum especialista em transformações humanas, que creio ainda não ser uma área do conhecimento humano explorada.

POR FIM, DIFERENTEMENTE DOS TEMPOS EM QUE OS BOATOS ERAM SÓ NO "BOCA A BOCA" EM ASA BRANCA, HOJE EM DIA FICAMOS SABENDO DE TODOS OS ACONTECIMENTOS DO MUNDO — FALSOS E VERDADEIROS — POR MEIO DAS REDES SOCIAIS. POR ACASO VOCÊ É ADEPTO DAS NOVAS TECNOLOGIAS? SE SIM, JÁ PENSOU EM CRIAR UM PERFIL PARA CONTAR SUA HISTÓRIA OU TEM MEDO DE UM POSSÍVEL "CANCELAMENTO" OU PERSEGUIÇÃO?

Eu tenho curiosidade para saber quem seria parecido comigo, quem seriam os meus, não parentes genéticos, mas os meus iguais em termos de atração por certas coisas de que nós não falamos em público. No entanto, devo dizer que criei um falso perfil com características muito distintas da minha e, com isso, tenho acesso àqueles que dão a cara ao mundo eletrônico contemporâneo, como curiosidade, como uma espécie de busca de companhia — para usar uma palavra atual — virtual. Mas não que eu me exponha publicamente, isso não é do meu feitio e vou deixar o meu legado de outra forma.

Personagem: Professor Astromar Junqueira Aparece na obra: "Roque Santeiro" (versões de 1975 e 1985)

Ney Piacentini interpretou o Professor Astromar Junqueira para esta entrevista. É pós-doutorando pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Mestre e doutor em pedagogia teatral pela Universidade de São Paulo (USP). Foi orientador pelo Programa de Pós-Graduação em Direção e Atuação no Célia Helena Centro de Artes e Educação, além de professor do Instituto de Artes (IA) da Unesp e da Faculdade Paulista de Artes. Com 40 anos de ofício, é integrante da Companhia do Latão desde sua fundação, em 1997. Em 2014 recebeu o Prêmio Cooperativa Paulista de Teatro por sua contribuição ao teatro paulista.

Páginas iniciais da peça "Odorico" com observações à mão do autor, em que estuda possibilidades para o título e nomes dos personagens | Acervo Dias Gomes

Dias Gomes, década de 1940 Acervo Dias Gomes

Dias Gomes, s.d. Acervo Dias Gomes

Dias Gomes, década de 1960, no Rio de Janeiro Acervo Dias Gomes

Carta de Jorge Amado para Dias Gomes, s.d. | Acervo Dias Gomes

Dias Gomes, década de 1980, em São Paulo | Acervo Dias Gomes

Dias Gomes, década de 1980 Acervo Dias Gomes

Dias Gomes proferindo o discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, 1991 Foto: Manchete | Acervo Dias Gomes

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