60 dias dentro de casa - Um diário ilustrado do isolamento (amostra)

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A M O ST R A

60 dias dentro de casa Um diรกrio ilustrado do isolamento IVAN JERร NIMO

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Sumário Introdução · 6 Da janela · 8 Objetos · 19 Ambientes · 57 Autorretratos · 79 Agradecimentos · 84 Sobre o autor · 85

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60 dias dentro de casa Um diรกrio ilustrado do isolamento IVAN JERร NIMO

Florianรณpolis, SC 2020


Introdução

A sexta-feira 13 de março de 2020 foi o dia que para mim marcou o início do isolamento. Nesta noite, ocorreu o lançamento de um zine no centro de Floria‐ nópolis. Eu estava um pouco resfriado, mas nada que preocupasse al‐ guém com rinite. Os primeiros casos de Covid-19 no Estado não chegavam a uma dezena e, no país, eram 150, ainda sem registro de mortes. Foi o assunto da noite, mas não fez ninguém evitar beijos e abraços. Dois dias depois, na segunda-feira, peguei o computador na empre‐ sa onde trabalho e trouxe-o para casa. E desde então, minha mulher Carol e eu só saímos para comprar comida e resolver as tarefas que ainda não podem ser feitas online. A gata Beterraba fica em casa, como sempre. Até então, eu mantinha uma rotina de desenho. Registrava a arqui‐ tetura da cidade e ia a sessões de modelo vivo nos fins de semana ou depois do trabalho. Com a pandemia, desenhar na rua entrou para a lista de atividades banais que teriam de ser suspensas. Mesmo depois de relaxarem as medidas de afastamento, não me pa‐ rece recomendável permanecer sentado em uma calçada por duas ho‐ ras, tempo que levo para completar um desenho. Pior seria ficar em uma sala fechada, cheia de outros artistas, para retratar uma pessoa pe‐ lada logo à sua frente. A saída (perdoe o trocadilho) foi desenhar dentro de casa.


Representar um prédio de doze andares ou um objeto de dez centí‐ metros impõe as mesmas questões: proporção, perspectiva e, princi‐ palmente, o que incluir e o que deixar de fora. Estes desenhos não são resultado do tédio doméstico — estou entre os privilegiados que mantiveram o trabalho sem muitas mudanças — mas uma adaptação. Assim como teve gente que passou a se exercitar na sala de casa, mudei os motivos de desenho. Comecei a registrar o que estava à vista: os ambientes da casa e aqueles objetos que, de tanto que são vistos, não recebem mais nossa atenção. Porém, me perguntava sobre a validade de ficar desenhando en‐ quanto várias pessoas estão com uma doença perigosa, para a qual não há vacina nem tratamento, ou passando por dificuldades financeiras. Temos tentado ajudar: contribuímos com campanhas de auxílio e compramos no comércio local diretamente com os estabelecimentos, e não através de aplicativos. Na Segunda Guerra Mundial, durante os anos em que foi mantido prisioneiro dos japoneses no Sudeste Asiático, o ilustrador inglês Ro‐ nald Searle não só registrou clandestinamente sua experiência em de‐ senhos, como conseguiu mantê-los a salvo e levá-los ao seu país depois que foi solto. O correspondente de guerra iraquiano Ghaith Abdul-Ahad frequentemente recorre a esboços para mostrar os cená‐ rios de conflito em países como Líbia e Iêmen para o jornal britânico The Guardian. Nos Estados Unidos, o publicitário Danny Gregory co‐ meçou a desenhar como forma de se manter psicologicamente são de‐ pois que sua esposa sofreu um acidente que a deixou paraplégica. O que importa no desenho, afirma ele, não é o resultado, mas o processo. Apesar de nem de longe estar passando pelas mesmas dificuldades, os desenhos (e textos) deste livro são meu registro de um período muito estranho. Produzi-los foi minha maneira de aproveitar o tempo.


Da janela

Fico impressionado como a luz muda em tão pouco tempo. Este é o poste que vejo da sacada do apartamento. Quando começo a pintá-lo, o sol bate em todos os lugares: no transformador, na rua, nos carros estacionados e nas minhas costas. Minha preocupação é não tomar um torrão na nuca e no braço. Às quatro da tarde, a sombra chega até a calçada no fundo e cobre quase todos os carros. Às cinco, só o poste recebe luz. Resta uma faixa de sol laranja, que é a cor dos fins de tarde de outono. Pintura feita no 56º encontro, desta vez online, do Urban Sketchers Florianópolis, movimento que organiza saídas de desenho de observa‐ ção. Continuamos sem ir pra rua.

Poste com transformador Tablet, caneta digital e aplicativo 3.508 × 4.961 px 16 de maio de 2020

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“Quero ver se essa paisagem vai render um desenho decente” me per‐ gunto assim que arrumo as canetas, pincéis e tintas na sacada e dou uma longa olhada para avaliar o ângulo. O conjunto de prédios resi‐ denciais onde moramos não é histórico, muito menos pitoresco, essa palavra deselegante. Lembro-me de uma tirinha da Mafalda em que ela está viajando de trem e comenta sobre a paisagem que vê pela ja‐ nela: “Que barraquinho miserável”. O senhor ao lado dela logo corri‐ ge: “Pitoresco, menina!” Depois de três semanas desenhando objetos dentro de casa, é bom reacostumar o globo ocular a focar objetos a mais de cinco metros de distância. Não estou desenhando sozinho. Depois que começaram as medidas de isolamento, é o primeiro encontro online do Urban Sketchers Flo‐ rianópolis. Carol está na sala e, pelo aplicativo de chat, os participantes postam desenhos e selfies, cada um em sua casa. Sinto falta de encontrar os amigos pessoalmente e ver a vida passar pela calçada, mas reconheço que desenhar dentro de casa é mais con‐ fortável. Tenho música ambiente, café com grãos selecionados de Mi‐ nas Gerais, pincéis de todos os tamanhos e água corrente à vontade. Fora o banheiro limpo. Os traços saem pouco decididos, sinto que retrocedi uns dois anos. Mas nada que um pouco de cor não resolva. Os fins de tarde outonais têm cores bonitas.

Jardim Albatroz Caneta ponta fina e aquarela 21 × 29,7 cm 4 de abril de 2020

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Este volume traz mais de quarenta desenhos feitos pelo designer Ivan Jerônimo nos primeiros dois meses de isolamento causado pelo surto de Covid-19 em 2020. Acostumado a desenhar na rua, o autor começa a registrar seu próprio apartamento: do poste em frente à sacada ao aquecedor de água desativado na área de serviço. O traço solto, sem retoques, nos faz rever a relação que temos com esses objetos e ambientes tão comuns. Aqui, os textos ilustram as imagens e não o contrário. Mas, principalmente, o livro traz a versão do autor para um cenário que, de repente, se tornou o mesmo no mundo inteiro: o interior de uma casa. Livro impresso

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