Crítica de arquitetura no Brasil: 1985 - 2010

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Crítica de arquitetura no Brasil 1985-2010 Jaime Solares Carmona Orientador: Prof. Dr. Luiz Antonio Recamán Barros

Trabalho Final de Graduação FAU USP

São Paulo Julho 2015


A crítica é, em si, uma obra de arte.

Oscar Wilde


Roberto Segre

in memoriam

 Â


Agradeço à minha família pelo apoio dado ao longo de todo este processo, não só do TFG mas de graduação e formação como pessoa. Obrigado mamãe, papai, e maninhas do meu coração (Ana, Jaime, Daniela e Diana) que eu amo além da razão. Aos meus grandes amigos e amigas, cuja sorte de ter por perto não é nada pequena. Aline Bravo, Bruno Mentone, Adriano Tao, Vitor Araújo, Marcela Fukue, Sheila Quilice, Tatiane Teles, Andressa Fernandez, Pedro Giunti, Rafael Igayara, Ana Paula Oliveira, Alice Mahlmeister, Frederico Costa, Leandro Leão, Raphael Grazziano, Caio Paula, Bianca Luchesi, Jéssica Barabanov, Andrea Barcelos, entre tantos outros que poderia citar. Um agradecimento especial à melhor transcritora de São Paulo, Laura Vaniqui. Ao meu companheiro, amigo e namorado Artur Duduch, por ter tido paciência e esmero para me ajudar tanto quando precisei. Obrigado também aos funcionários da biblioteca, que são profissionais exemplares no trato com as pessoas e com os livros, em especial à Amarílis Corrêa que tanto ajudou no acesso aos índices, e à querida Rejane Alves por sua simpatia e solicitude. Agradeço aos arquitetos entrevistados, que foram sempre muito gentis: Ana Luiza Nobre, Edson da Cunha Mahfuz e Ruth Verde Zein. Também a Fernando Lara por sua colaboração online e a Camila Valladão, por seus meus ouvidos e olhos no Mackenzie. Por fim, um agradecimento especial ao meu orientador Luiz Recamán, um mestre absolutamente presente durante toda a pesquisa, exemplar em sua atenção, generosidade, paciência e inteligência.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 1

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BASES E CRITÉRIOS 1.1 Bases da pesquisa 1.1.1 O lado de fora: jornais, teses e dissertações 1.2 Critérios da pesquisa 1.2.1 O protagonismo da cidade no pensamento arquitetônico 1.2.2 Antologia 1.3 Duas torres pluralistas 1.3.1 A revista projeto 1.3.2 A revista arquitetura & urbanismo – AU 1.3.3 Módulo 1.4 A Academia como espaço de exceção 1.4.1 Os periódicos 1.4.2 Duas importantes exceções 1.5 Arquitetura no campo editorial da cultura 1.6 O pensamento estudantil 1.7 Muito texto, pouca crítica e um blog 1.7.1 Um obelisco impressionista 1.8 Livros 1.9 Nunca como antes: periódicos internacionais

9 10 14 17 19 21 22 27 31 34 34 38 39 40 41 43 48 50 55

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BREVE DISCUSSÃO CONCEITUAL 2.1 Origens 2.2 Definições formais 2.3 Definições conceituais 2.4 A crítica em dois momentos: 30 e 50

58 58 61 69 76

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OS TEMPOS DA CRÍTICA 3.1 Brasília consciência cindida 1975 | 1985 3.1.1 Ditadura e a oclusão da crítica 3.1.2 No mesmo Rio 3.2 Tempos de questionamento 1985 | 1991 3.2.1 O pós-modernismo a partir da crítica 3.2.2 A geração Sevilha 3.3 Tempos de alinhamento 1991 | 2000 3.3.1 O moderno revirado 3.4 Tempos de placidez 2000 | 2010

85 85 87 89 94 100 105 108 112 115

CONCLUSÃO BIBLIOGRAFIA ANEXO A entrevista com Ana Luiza Nobre ANEXO B entrevista com Edson da Cunha Mahfuz ANEXO C entrevista com Ruth Verde Zein

129 131 142 151 156


INTRODUÇÃO

Na arquitetura brasileira é comum que tenhamos alguns pontos cegos. Encurralados entre o desejo de construir um futuro novo para um homem novo, e a necessidade de inventar um passado capaz de dar alma ao corpo em fabricação, não houve espaço para a pausa. Numa marcha cada vez mais veloz, sublimando contradições ou escancarando a crueza das edificações, o desafio foi sempre positivo: construir uma arquitetura capaz de salvar-nos do atraso e da opressão. Sorte do país que não precisa de heróis, mas nós precisávamos. E seu otimismo, sua beleza, suas certezas e suas premiações foram deitando-nos no torpor de que o que o Brasil mais precisava era de boa arquitetura e que ela nos arrancaria da selvageria. Porém as metrópoles cresceram mais do que prevíamos; as reações a nossa estética bruta não foram como esperávamos (ou como mal nos propusemos a esperar); a nova capital funcionava bem, tanto para a democracia quanto para a ditadura; parecíamos haver fracassado. E começaram a surgir as dúvidas. A economia estagnava, a política florescia, a cultura se reanimava. Uma série de esperanças dividiam espaço com as aflições de ter de volta uma liberdade mínima, um espaço mínimo. Novamente capazes de agir, mas com poucos recursos: não seria essa a formulação perfeita para a inovação? Soma-se a isso o desejo de explorar formas desconhecidas, discursos inéditos, caminhos abertos. Pela primeira vez conseguíamos construir amplamente uma crise no projeto maior de desenvolvimento linear das forças produtivas e artísticas. O modelo não se sustentava mais. O projeto não será mais suficiente dentro da disciplina arquitetônica, ou pelo menos não enquanto um protagonista indelével: a história, a teoria e a crítica consolidam-se como campos privilegiados para se repensar nossa profissão. É nesse contexto que se inicia nossa pesquisa. Foi necessário retroceder quarto de século para compreender, afinal, qual era o estado da arte da crítica de arquitetura no Brasil hoje. E por mais arbitrário que pareça o recorte temporal, ele mostrou-se suficientemente justificável e fundamental, pois são as transformações pelas quais passa o campo, na virada dos anos 1980 para os 1990, e de como a crítica perde seu ímpeto questionador do primeiro período chegando aos anos 2000 parcialmente atávica, que anunciam a crise silenciosa pela qual passa a disciplina. A partir de uma curiosidade sempre premente: por que fazemos arquitetura como fazemos? por que parece que quase nada mudou desde os anos sessenta? onde estão as críticas negativas a esses modelos? – que fomos instigados a levar adiante esse trabalho de dimensões por vezes intimidadoras. Primeiramente porque não encontramos, ao longo dos vinte e cinco anos de estudo, um livro, artigo ou pesquisa que se dedicasse exclusivamente ao tema de maneira complexa e aprofundada, baseada em dados estatísticos e análises históricas, principal desafio metodológico de nossa empresa. Logo percebemos que a reiterada a 6


firmação “não há crítica de arquitetura no Brasil” – frase de efeito que, admitimos, declinamos a concordar no início de tudo – foi-se mostrando mais e mais um obstáculo aos arrazoamentos que pretendíamos encontrar. Substituímos, afinal, a certeza de uma ausência pela dúvida de uma presença, e fomos construindo uma práxis capaz de conciliar teoria e prática. Tendo sido vilipendiada por tanto tempo, a crítica de arquitetura ansiava por uma reflexão atenta e rigorosa acerca de sua condição. Eis, portanto, o principal objetivo deste trabalho: compreender como se desenvolveu a crítica no Brasil, quais foram os debates teóricos envolvidos, as obras que direcionaram atenções, os temas que dividiram os pensamentos, as idéias e o corpo ideológico que foi desconstruído, reafirmado ou ignorado. Compreender portanto a relação profunda que existia, no campo ampliado da arquitetura, da análise do artefato construído com a sua projetação, da história dentro da qual a ação se dá com as teorias que a sustentam e interpretam, do edifício frente às demandas históricas de tais tipos e programas, etc. A arquitetura entendida em sua completude, do primeiro risco ao último pensamento. Montar uma narrativa panorâmica da crítica, muito além de análises descritivas ou de sistematizações que pretendem-se neutras. Para tanto lançamos mão de uma estrutura de análise capaz de articular um estudo diacrônico dos artigos críticos a partir de análises estatísticas e comportamentais dos mesmos em seus respectivos suportes de divulgação; um estudo teórico-conceitual e histórico da crítica no Brasil e mundo; e uma seção final que analisasse qualitativamente todos os debates e problemáticas lançados pela crítica em seu respectivo período. O ponto inicial da onde partimos foi a montagem de uma ampla base de artigos críticos enquanto fonte primária, que permitiu tanto a construção do Índice Brasileiro de Crítica de Arquitetura - IBCA1 (de acesso livre ao público), quanto o substrato a partir do qual elegeríamos uma antologia dos artigos mais relevantes para aprofundar-nos sobre determinados temas e épocas. Adicionamos ainda à pesquisa, e de forma a enriquecer nossas fontes e aguçar a percepção do real, três entrevistas com importantes nomes da crítica nacional que representavam, cada um, um pólo do debate arquitetônico no país, fugindo de perguntas genéricas ou amplas demais, e focando-me em questões específicas das trajetórias de cada um. Os três períodos estudados - 1985 a 1991, 1991 a 2000 e 2000 a 2010 representam aproximações cronológicas por afinidade de comportamento da matéria crítica, respeitando momentos decisórios na movimentação dos fluxos de crise instaurados. Os anos-limite 1985 e 2010, não por acaso, concentram dois eventos absolutamente relevantes no cenário brasileiro: o primeiro marca o ano da redemocratização do país e a morte do maior arquiteto da escola paulista, João Batista Vilanova Artigas; enquanto que o último comemora o cinqüentenário de nossa maior 1

www.ibcarq.com

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obra moderna: Brasília. Além disso, é sabido que de vinte em vinte anos, mais ou menos, surge uma nova geração. Nosso desejo, nesse sentido, foi sobrepor e contrastar as duas gerações que viriam a se constituir ao longo de nosso estudo, e também aquelas intermediárias, para assim desenhar um quadro de agentes que atuam dentro da disciplina crítica, hoje e ontem. Perpassando todo o debate, e dialogando sincronia com diacronia, o segundo capítulo versa de maneira breve, porém espessa, sobre as definições formais e conceituais da crítica, dando assim suporte teórico ao tema, indicando a disciplina em seus termos, para depois levantar questões formativas da crítica nacional desde suas origens. No fundo queríamos sustentar a ainda pálida hipótese de que a crítica de arquitetura só viria a se constituir enquanto campo relativamente autônomo e maduro no país a partir dos anos 1980, em especial na sua segunda metade. A partir disso, poderíamos compreender como ela chega aos dias de hoje distante, próxima ou divergente de suas instituições e intuições iniciais. Compreender suas “insuficiências, suas suficiências, onde está melhor, onde está pior”2 para então poder elaborar uma atuação consistente e renovadora do campo: foi esse, afinal, nosso maior objetivo.

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ZEIN, Ruth Verde. Entrevista pessoal ao autor Jaime Solares Carmona. ANEXO C.

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I

BASES E CRITÉRIOS

Analisar a crítica de arquitetura no Brasil – país de dimensões continentais – dentro de um período de quarto de século é tarefa um tanto inglória. E assim o é não apenas pelo volume de material a ser estudado, mas especialmente porque foi necessário articulá-lo a uma série de outras problemáticas, como debates teóricos, questões de historiografia, os limites entre crítica e exposição de projetos, quais textos podem ser considerados crítica, etc. Ou seja, compreender a dinâmica interna desse campo recortado da arquitetura (fortuitamente distanciado do urbanismo, num procedimento nem sempre fácil e que será logo explicado) e ir caminhando ao mesmo tempo que aprendo por onde caminhar. Na medida em que esse tipo de pesquisa histórica de um fazer crítico é tema pouco explorado no cenário arquitetônico brasileiro, quase tudo teve que ser definido ou redefinido. Para tanto um aspecto tornou-se fundamental desde o princípio: construir uma base de artigos e textos como fonte primária para qualquer tentativa de salto analítico posterior. Esse material produziria um índice a partir do qual poderia, de um lado, ter uma primeira visão panorâmica do percurso da crítica nesses vinte e cinco anos, e por outro, um substrato para análises mais aprofundadas. O resultado dessa primeira aproximação resultou num universo amostral foi de 1028 artigos1, e já nos trouxe um dado de grande interesse: quase 88% dos artigos levantados foram escritos por autores ou autoras que não tiveram mais do que três artigos publicados, de autoria própria ou em coautoria, e que indica ora a dificuldade de se manter a atividade crítica no país, dentro ou fora da academia, ora uma série de arquitetos que apenas publicaram resultados de dissertações, pesquisas ou observações oportunas, sem constituir um corpo crítico sistemático. Na outra ponta vemos que menos de 2% do total de críticos publicou mais do que 25 artigos o que significa, numa distribuição grosseira e considerando uma escrita sistemática ao longo dos anos da pesquisa, uma média de pelo menos um artigo por ano.

Gráfico 1: número de artigos / autor

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Índice integralmente disponível no site www.ibcarq.com

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Naturalmente que um ou outro texto que analisavam a crítica como objeto – numa incursão paralela à que faço agora – existiram, formando um cenário de fontes secundárias fundamentais. Contudo eles serão parte de uma leitura que irá confrontá-los com o material construído, confirmando tendências e debates, ilustrando contradições, ou adicionando perspectivas novas ao estudo. Em paralelo a tudo isso foi fundamental ter sempre presente o panorama da arquitetura como um todo, das condições de sua produção, dos momentos políticos, das ideologias em formação ou desencanto, das obras paradigmáticas que desenhavam a gravidade do campo disciplinar. Contudo houve a necessidade premente de afastar qualquer tentativa pessoal de fazer crítica sobre a produção ou pensamento arquitetônicos. Meu objeto é apenas um: a própria crítica. Farei afinal uma metacrítica, uma análise de como se desenvolveu essa forma de agir na arquitetura nas últimas décadas para, enfim, compreender seu estatuto hoje. Dessa forma, e munidos dessa compreensão do escopo do estudo, certo desnorteamento inicial é gradualmente substituído por um senso de proporção e escala. Surgem logos dois problemas centrais, relativos ao trato com essa base ampliada e a necessidade de certas definições: a. Quais serão meus critérios de seleção? b. Quais serão as bases consultadas?

1.1 Bases da pesquisa Antes de mais nada expliquemos a definição geográfica do estudo – o “no Brasil” Regra geral definimos que a crítica nativa se estrutura a partir de escritos feitos tanto por brasileiros no Brasil, quando por brasileiros fora do país ou estrangeiros cujo tema seja a arquitetura nacional. Incluímos também brasileiros falando de arquitetura internacional. Desta forma, excluímos brasileiros radicados que falam de obras produzidas fora do país; publicações estrangeiras reeditadas no Brasil (que não sejam sobre o país), e textos escritos por estrangeiros no Brasil sobre temas externos à nossa arquitetura. Em seguida, definimos sobre quais bases trabalhar a fim de localizar com acurácia um universo circunscrito que fosse suficientemente relevante para representar todo pensamento da crítica no país. Digo acurácia em contraposição ao conceito de precisão, na medida em que o primeiro se relaciona a uma estratégia de aproximação sucessiva do objeto de estudo, quase que num movimento de equilíbrio entre o fora e dentro, o que é aceitável e o que se elimina; e o segundo diz respeito a uma acepção inegável de um fato concentrado, fala de uma verdade que não permite a dúvida. Desta forma, desenvolvemos a certeza de que não vasculhamos todo o material possível, mas aqueles que se mostraram os mais importantes, o que nos dá certa tranqüilidade da pertinência de nossa análise. Nesse sentido, resolvemos aprofundarmo-nos nas bases que permitiriam um acesso amplo a suas publicações, de forma que o panorama desenhado a partir daí tivesse alto grau de fidelidade e aferição. Por essa razão, excluímos 10


totalmente o tópico 2 e parcialmente o 4 da classificação dos periódicos a seguir, segundo estudo de Adriana Crema, Hugo Segawa e Maristela Gava2: 1.

periódicos voltados predominantemente à publicação de trabalhos originais derivados de investigações desenvolvidas em centros ou grupos de pesquisa, programas de pós-graduação, instituições independentes e a produção intelectual, artística, arquitetônica, urbanística, paisagística e de design de profissionais de reconhecida credibilidade entre os pares;

2.

anais de encontros científicos ou profissionais contendo a publicação completa de conferências, comunicações, mesas-redondas e painéis, promovidos por instituições de reconhecida credibilidade e consolidação no meio acadêmico ou profissional, ou eventos pontuais organizados com todos os requisitos técnicos e científicos que atribuam equivalência qualitativa a eventos periódicos;

3.

revistas especializadas que, mesmo não cumprindo aspectos formais de qualificação acadêmica, são reconhecidas no meio como veículos de práticas, idéias, proposições, inovações e reflexão continuadas, caracterizando-se como fontes de consulta ou atualização do estado-da-arte da produção recente;

4.

revistas, jornais, cadernos culturais e técnicos de diários e publicações nãoespecializados e de circulação ampla ou reconhecimento qualitativo nacional ou internacional, voltados à publicação de artigos, ensaios, análises, comentários e resenhas significativos para a difusão e o debate de aspectos correlatos à área e que ampliem a audiência dos temas para um público amplo e leigo;

5.

revistas de arquitetura, arte, construção e decoração dirigidas a público leigo, que possam constituir repertório informacional da produção recente na área;

6.

portais e páginas de Internet especializados na área.

Não negamos a enorme importância que os artigos publicados em seminários, mesas-redondas, palestras, etc. têm no cenário da crítica de arquitetura, muitas vezes como espaços onde a fala fluida permite um debate mais rico e com mais confrontos de idéias. Porém o sem-número de eventos relacionados à arquitetura e urbanismo feitos no Brasil e até fora, nos últimos 25 anos, assim como o acesso aos mesmos foi fator que impediu-nos de fazer uma pesquisa com aceitável rigor. Infeliz exclusão, portanto, foram os textos desenvolvidos nos seminários DOCOMOMO Brasil, assim como os referentes à ANANPARQ (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo), locais que merecem mais atenção por ser, talvez, os mais importantes órgãos articuladores de fóruns de debate para jovens e também experientes pesquisadores. 2

CREMA, Adriana; SEGAWA, Hugo; GAVA, Maristela. Revistas de arquitetura, urbanismo, paisagismo e design: a divergência de perspectivas. Arquitextos, São Paulo, ano 05, n. 057.10, Vitruvius, fev. 2005 http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.057/506

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O mesmo ocorre quando falamos dos periódicos de classe, como jornais do IAB de cada estado, pois além do problema do caso anterior, em sua maioria seu conteúdo fala de questões profissionais e notícias em profusão, o que esgarçaria sobremaneira o substrato de análise. Quanto ao penúltimo tópico, a seleção foi parcial, pois consideramos para o estudo as mais importantes revistas de arte e cultura do país, porém não jornais e seus cadernos culturais por motivos que discutiremos adiante. Em seguida, eliminamos os dois extremos do que considerei o espectro de bases possíveis de consulta, que vai das publicações em veículos de grande circulação (jornais) até aqueles textos de circulação extremamente restrita, caso das pesquisas acadêmicas relacionadas a trabalhos finais de graduação, mestrados e doutorados – a chamada literatura cinza. Contudo, foi inevitável cruzar vez ou outra por artigos de jornal ou uma tese de doutorado, e ainda que não tenha sido feito um estudo aprofundado dessas fontes, fomos capaz de perceber problemáticas mais ou menos inerentes a eles, que levantam questões outras, fora do alcance deste estudo. Em tempo, fato fundamental a se compreender nesse panorama são as importantes mudanças ocorridas nos anos 80 no mercado editorial brasileiro. De um lado o surgimento da revista AU – Arquitetura & Urbanismo, e de outro o fortalecimento da Projeto, inaugurada no final dos anos 70; o surgimento dos primeiros cursos de pós-graduação no país e o estímulo à pesquisa e docência; o crescimento das editoras com espaços para publicações específicas na área de arquitetura; enfim, nas palavras de Abílio Guerra: São os artigos escritos e publicados nesse ambiente intelectual, entrelaçando jornalismo especializado e pesquisa acadêmica, revistas comerciais e periódicos universitários, que dão a base inicial para a formação do espaço de pesquisa sobre arquitetura moderna brasileira, ou simplesmente do “campo”, como diria Margareth da Silva Pereira.3 Esse fértil ambiente editorial foi um dos fatores mais importantes do enorme crescimento que a crítica de arquitetura passou a sentir nos anos 1980, reconfigurando certa presença disciplinar antes suprimida no período militar pela censura que causou o degredo de muitos arquitetos e a intimidação do jornalismo e crítica nas páginas das revistas. Formou-se, podemos dizer, um definido campo disciplinar da crítica no Brasil. Hoje, contudo, o problema parece ser outro. Nosso mercado editorial ainda é muito frágil, assim como seu público consumidor. Ainda na pesquisa antes mencionada: As formas de distribuição constituem fator problemático entre os periódicos especializados e científicos e espelham com mais ênfase a precariedade da circulação e consumo de revistas em geral no mercado editorial brasileiro. A especificidade dos conteúdos reduz em muito a audiência das nossas publicações para venda avulsa. Mesmo algumas revistas de maior tiragem, com patrocínio comercial, não são distribuídas em bancas. A circulação dirigida, por assinatura, não tem vigência entre as publicações acadêmicas, sobretudo pelo fantasma da falta de regularidade e duração, tampouco uma circulação internacional, pela barreira do idioma. Restam a permuta e doação, formas consideradas de menor valor na avaliação dos periódicos, mas que 3 GUERRA, Abílio (org.). Textos Fundamentais sobre a história da arquitetura moderna brasileira: v.1. São Paulo: Romano Guerra, 2010, p. 15.

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constituem a regra no âmbito das nossas publicações de perfil científico. Há de se relativizar este critério diante da realidade brasileira.4 Por fim, vale atentar que eliminamos vídeos de palestras, entrevistas, mídias audiovisuais em geral, por entender que por flertarem com questões de visualidade, tempo e expressão interpessoal diferem do rigor e consistência que uma crítica se propõe, no plano da escrita e do sistemático, além de serem materiais sempre em flutuação, muitas vezes de acesso altamente restrito. Desta forma, constituímos uma base de consulta assim dividida, por número de bases pesquisadas: 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7.

Periódicos acadêmicos (17) Revistas comerciais (3) Revistas culturais (4) Revistas estudantis (2) Periódicos internacionais Sites (10) Livros

No próximo gráfico, desenvolvido a partir do já citado índice de crítica de arquitetura, poderemos notar a tendência geral que será confirmada ao longo deste estudo, de como um campo disciplinar crítico nasceu e se consolidou nos anos 1980, teve processo lento e gradual de perda de importância ao longo dos 1990, e foi reorganizado e ampliado a partir do ano 2000, atingindo níveis otimistas de artigos críticos/ano. Como veremos, esses fenômenos dizem muito não apenas de nossa crítica, mas da arquitetura como um tudo no país, e que o cenário hoje apesar de parecer indubitavelmente mais positivo pode ser enganoso.

Gráfico 2: número de artigos / ano

4

Ibidem.

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1.1.1 O lado de fora: jornais, teses e dissertações A literatura cinza apresenta o problema fundamental de, ao mesmo tempo que tem acesso altamente restrito – se considerarmos as distâncias geográficas para consulta das teses, monografias etc. de outras faculdades fora da cidade de São Paulo, além da limitada digitalização que esse mesmo material fornece – constitui um mundo de textos densos, cujo escopo nem sempre era suficientemente compreendido apenas pela leitura de um resumo, ou abstract. Ainda assim, não nos furtamos a uma ligeira pesquisa em amplos bancos de teses e dissertações, quer seja: a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações5 e o Banco Digital de Teses e Dissertações da USP6. Partindo da formulação precisa do tema de pesquisa – panorama da crítica de arquitetura no Brasil – estabeleceu-se um plano conceitual de termos afins, como “análise arquitetura” e “estudo obra arquitetura” culminando numa pesquisa simples e ampla, de termos como “crítica”, “ensaio”, “juízo” somados ao termo truncado “arquitet*”. A primeira conclusão foi que não havia, até então, um estudo geral sobre a crítica de arquitetura no país sobre o qual poderia me apoiar, fato que surpreendeu de alguma maneira. Porém também deixou claro os riscos tomados neste estudo. Apesar disso, houve dois trabalhos muito interessantes (ambos recentes): a dissertação de mestrado “Robert Schwarz, arquitetura e crítica”, de Camila Gui Rosatti7; e “Crítica como criação: procedimentos e estratégias comunicacionais dos exercícios críticos no Brasil”, de Galciani Neves8. Cabe destacar que apesar do primeiro trabalho ser de uma arquiteta falando sobre arquitetura, ele parte de uma perspectiva mais ampla, ou seja, do fazer arquitetônico entendido como fato cultural dentro da crítica literária de Robert Schwarz. A segunda pesquisa também não diz respeito diretamente à arquitetura, mas à crítica de arte e seus modelos de pensamento no Brasil. Nenhuma delas, portanto, utiliza-se ou analisa os instrumentais próprios da disciplina. Quanto aos jornais, podemos afirmar sem dúvidas que seu não-estudo foi um infeliz vácuo deste trabalho. Como provar a ausência ou inexpressão da crítica neles, sem uma ida consistente às bases? É um tanto paradoxal, portanto, que consigamos tirar essas conclusões sem ao menos ler uma página de jornal, porém uma análise menos científica e mais corriqueira do tema permite-nos concluir sem muito esforço que quando se fala em arquitetura, ou é sobre uma obra polêmica, paradigmática ou envolvida em casos de corrupção, ou nos obituários. Nos períodos estudados, a arquitetura não voltou a fazer parte de um debate cultural mais amplo no país, como o cinema ou o teatro ou como foi nos anos 50. Falta-lhe público, mas também falta-lhe espaço para chegar a ele. Mesmo nos espaços de cultura, cadernos especiais, etc., nossa área é continuamente relegada a segundo plano. E só ir a uma banca 5

http://bdtd.ibict.br/ http://www.teses.usp.br/ 7 ROSATTI, Camila Gui. Robert Schwarz, arquitetura e crítica. 2010. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo. 6

8 NEVES, Galciani. Crítica como criação: procedimentos e estratégias comunicacionais dos exercícios críticos no Brasil. 2014. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

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neste exato momento, comprar todos os jornais, e vê-se a escassez de notícias sobre arquitetura, que dirá crítica de arquitetura. Ainda assim – e talvez mais para comprovar a regra do que para questioná-la – podemos citar casos excepcionais em que o pensamento arquitetônico esteve na ordem do dia. Dois exemplos são o texto “O pós modernismo não é nada” de Charles Moore em 1985 na Folha de São Paulo9, e outro o emblemático artigo de Max Bill na revista Manchete10. Contudo, em esporádicos e em certa medida constantes episódios de nossa história recente, arquitetos ocuparam colunas de jornais. Assim foi com Luiz Fernando Janot e Sérgio Magalhães na sessão “Opinião” do jornal carioca O Globo, ou com Guilherme Wisnik e sua coluna no “Ilustrada” do Folha de São Paulo, entre tantos outros. Essa ocupação, contudo, nem sempre parece estar livre de críticas. Talvez pela visibilidade, tais articulistas são duplamente cobrados em representar a arquitetura nessas mídias. Um exemplo de tal cobrança foram os artigos irônicos do Blog do Alencastro11, que questionam a falta de objetividade e desvio temático dos artigos do crítico paulista. Segundo pesquisa do site, cerca de 1/3 dos artigos do colunista são sobre temas incertos, externos à arquitetônica: Ora, o que tem o Zico a ver com a arquitetura? Não existem temas mais urgentes? Se a Folha de S. Paulo fosse um jornal com uma larga cobertura arquitetônica e a coluna de Wisnik fosse um complemento, tudo bem. O problema é que a cobertura arquitetônica do jornal é pífia, o que (praticamente) resume o espaço em questão ao único território para as discussões do tema. E aí é que está o problema.12 Apesar disso (talvez exatamente por isso) não podemos negar a importância que esses espaços constituem para a crítica de arquitetura no Brasil. Contudo, são sempre experiências com prazo de validade, e vez ou outra o espaço não é simplesmente substituído por outro profissional para falar de arquitetura, mas de outros temas à parte. Nessa situação, o desafio é muito mais amplo. É fazer a arquitetura surgir dentro do cenário cultural do Brasil, como evento de relevo na vida das cidades e dos cidadãos. E a própria natureza da crítica faz constitui esse papel fulcral de ponte entre os mais altos debates acadêmicos e o dia a dia de nossas cidades e arquitetura. Esse pensamento conduze-nos a compreender a crítica numa retroalimentação enquanto evento social que responde ao mesmo tempo que gera a demanda do debate arquitetônico: La falta de crítica, o incluso – casi – de noticias arquitectónicas en los medios, es un indicador de la desvaída presencia de la arquitectura en la cultural, del alarmante desinterés y desinformación de la opinión pública acerca de la temática. Y cierra un círculo vicioso. Ante la falta de difusión, información, 9

MOORE, Charles. O pós modernismo não é nada. Folha de São Paulo, São Paulo, ____, ____ ago 1985. AQUINO, Flávio de. Max Bill critica a nossa moderna arquitetura. Manchete, São Paulo. nº 60, ____, ____ jun 1953. 11 ______. Arquitetura partida. (BLOG DO ALENCASTRO, 23 out. 2006. Disponível em: http://blogdoalencastro.blogspot.com.br/2006_10_01_archive.html; 10

______. Forma & Espaço. (BLOG DO ALENCASTRO, 11 set. 2006. Disponível em: http://blogdoalencastro.blogspot.com.br/2006_10_01_archive.html 12

Ibidem.

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crítica y debate, la presencia disciplinar se hace cada vez más débil e incierta y, como consecuencia de este retroceso, la cultura toda se empobrece.13 Dessa forma, o que temos no país são “muitas opiniões e pouca crítica”14, em geral ativadas quando obras paradigmáticas na paisagem urbana surgem, ou quando nomes como Oscar Niemeyer ganham honrarias no exterior. Quase sempre, também, quem escreve os artigos não são jornalistas especializados em arquitetura, muito menos críticos de arquitetura. Pudemos contatar, porém, num breve vôo pela crítica de arquitetura nos jornais fora do país, como nossa ausência nesses veículos não é fato isolado, existindo felizes exemplos de uma relação mais saudável entre jornalismo e o pensamento e produção arquitetônicos. Através do trabalho do crítico inglês Martin Pawley, verificamos que, em países de forte tradição arquitetônica como Inglaterra, a crítica de arquitetura figura em espaços consagrados, tendo o autor contribuído para os mais importantes jornais ingleses, como o The Observer e The Guardian. Um fato interessante para comparar esta situação à nossa: o livro “The Strange Death of Architectural Criticism” 15 é uma antologia dos principais textos do autor ao longo de sua carreira, de 1968 a 2005. Caso semelhante foi do já citado crítico de arquitetura Guilherme Wisnik que em seu livro “Estado Crítico: à deriva nas cidades”, reúne 54 artigos em sua maioria publicados em sua coluna na Folha, no período de 2006 a 2007. Interessa agora, para vermos que não estamos sozinhos no abismo que separa o público da arquitetura, citar o caso da revista uruguaia Marcha, dos anos 50, que tem em sua “carta dos leitores”, em mais de uma vez, a reclamação de que todas as áreas culturais tem sua seção garantida nos jornais, para crítica de debate, mas a arquitetura não: Toda actividad artística está registrada por la prensa diaria. Para informar sobre Música, Pintura, Escultura, Teatro o Cine los diarios envían críticos a exposiciones, conciertos y funciones, para publicar acertadas o menos acertadas informaciones críticas. El público forma sus juicios por estas críticas y la voz del artista o productor halla su eco estimulador o censor…siempre útil y vivificante. Ahora bien (…) ¿ por qué, preguntamos, nadie se ocupa de las obras de Arquitectura? 16 Esse mesmo pensamento percorre todo o recorte temporal de nosso estudo. Afirmações semelhantes foram e certamente serão feitas repetidas vezes ainda, pois, afinal, o problema parece ser endêmico e estrutural. Há os que levantem a questão dos interesses econômicos do jornal e do capital especulativo agindo em contra da liberdade de discussão dos males do mercado imobiliário mais predador para a qualidade da cidade e da arquitetura; há os que se restrinjam aos espaços específicos da academia; há os que conseguem atingir um público maior em programas de televisão, porém sem a construção de uma crítica consistente de arquitetura. Enfim, o cenário não é simples, e de alguma 13

MEDERO, Santiago (comp.). Arquitectura em Marcha: 1950-1956. La crítica arquitectónica em el semanário Marcha. Montevideo: Banda Oriental, 2014, p. 13. 14 GUERRA, Abilio. A universidade e a crítica de arquitetura no Brasil.Arquitextos, São Paulo, ano 15, n. 173.02, Vitruvius, nov. 2014. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/15.173/5332 15 JENKINS, David. The Strange Death of Architectural Criticism – Martin Pawley collected writings. London: black dog publishing, 2007. 16

MEDERO, Santiago (comp.). Op. cit., p. 36-39.

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forma é pouco alentador. Talvez por isso Ruth Zein tenha afirmado que hoje a crítica tem se refugiado na academia, frente à aparente impermeabilidade do mercado ao pensamento crítico: No Brasil, a crítica de arquitetura nas mídias de maior divulgação, como os jornais, esbarra no mercado imobiliário. Uma vez fui chamada por um grande jornal para fazer uma coluna semanal de informação sobre arquitetura, mas queriam que não fosse nada muito erudito. Então, sugeri publicar um guia prático de arquitetura voltado a quem ia comprar um imóvel; na primeira matéria ia dizer que o comprador devia ir com bússola, e ensinar como avaliar se o apartamento ia ter sol... Fui barrada: alegaram que isso não podia ser, pois a maior fonte de renda do jornal.17 Fato é que nenhum desses fenômenos deve abalar o chamado social do crítico de arquitetura, de articulador dos conhecimentos arquitetônicos entre o leigo e o profissional arquiteto, entre o edifício e o usuário, entre o significado e o interlocutor. Pois, como afirmou o uruguaio Ramón Almeida, “La labor crítica es, em todos los ordenes, una necesidad social.”18 A tarefa não é fácil. Porém é necessária.

1.2 Critérios da pesquisa A esta altura da pesquisa, mostrou-se necessário desenvolver um critério para definição do que é crítica, a fim de localizá-la e estudá-la. A pesar disso, ao contrário do que seria esperado, não nos lançaremos à complexa missão de defini-la a priori. Podemos considerar que percorremos caminho contrário: a partir de uma aproximação segura da produção do pensamento arquitetônico geral, radiografando debates, identificando agentes, localizando ideologias, vimos o que é e como se estrutura uma certa reflexão da disciplina. O que pretendomos com essa inversão é ver, como resultado, se constitui-se ou não um campo crítico, a partir portanto não de definições mas de aferições empíricas do desenrolar da arquitetura nessas quase três décadas de estudo. Nesse sentido trabalhamos com o conceito de topoi: aquilo que se sabe o que é, mas não sabe-se definir. Por essa razão é que instituímos caminho dedutivo de uma amostra ampla de artigos até uma antologia representativa, que condensasse as principais questões de cada momento analisado. Assim pudemos ir identificando um campo de idéias no qual tais artigos críticos estejam imersos, como se comporta tal espaço e quais seus limites teóricos, históricos, etc. Com isso em mente, e retornando o conceito de acurácia, desenvolvemos um critério operacional do que considerar na pesquisa. Basicamente utilizamo-nos de dois critérios positivos para seleção das fontes primárias: _se o artigo ou texto analisa um artefato arquitetônico; 17 SAYEGH, Simone. Entrevista: Crítica brasileira. Ruth Verde Zein e Alice Junqueira Bastos. (PROJETO/DESIGN, ed. 201, dez 2002, pp. 64-66) 18

MEDERO, Santiago (comp.). op. cit., p. 68.

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_se o artigo ou texto discute questões relativas à disciplina arquitetônica. Dessa forma tentamos manter uma distância segura dos debates disciplinares mais complexos, de definição do que é crítica de arquitetura, quem pode exercê-la, quais seus objetivos, etc. Naturalmente que, por ser muito abrangente, esse critério inicial foi sendo aperfeiçoado. Anterior a essa definição, contudo, foi a compreensão da diferença entre crítica e opinião. Enquanto que a primeira se encontra dentro de um esforço rigoroso da busca do conhecimento sobre determinado objeto, a opinião – ou doxa - parte de uma valoração altamente pessoal de certa arquitetura, sem lastro teórico consistente, desenvolvida em determinado meio ou ambiente que não procura a sistematização do conhecimento e a geração de debates aprofundados. Nesse campo podemos localizar, mesmo que em contraponto, as descrições e comentários corriqueiros que circulam em enorme volume até mesmo nas revistas especializadas – senão especialmente nelas, e na Internet. Como veremos no próximo capítulo, a crítica não se pretende neutra ou fugaz. Apesar de ser formalmente muito plástica e por vezes etérea, a crítica ainda assim pressupõe um juízo claro de compreensão de determinado fato do conhecimento humano. Ela possui um dado artístico inerente, que passa por questões como autonomia do discurso e da estética, em diálogo com determinada obra. Dessa forma, apesar de rigorosa, a crítica também é invenção, e foge de uma suposta busca exata e ascética da ciência. Em assim sendo, uma miríade de questões complicadoras foi-se colocando, como a diferença entre crítica e história, ou o que é arquitetura, construção ou urbanismo, entre tantas outras. Neste início, consideramos uma definição superficial para distinguir a crítica de seus pares conceituais por questão de foco: caso o texto falasse clara e predominantemente da estrutura do pensamento arquitetônico e sua sistematização (teoria) ou do estudo de fatos e fenômenos passados dentro de uma lógica historicizante (história), procuramos deixá-lo de fora do índice. De maneira geral, o foco era o pensamento sobre a obra e sua análise crítica, sendo fácil desconsiderar textos que discutissem tecnologia, técnica e os instrumentais da prática do desenho ou do projeto. Ainda dentro dos debates disciplinares, evitamos artigos que versassem conceitualmente sobre patrimônio, restauro e memória, indo desde a revitalização de uma centralidade urbana degradada até os debates teóricos de determinado projeto de restauro. Certamente estudos de obras paradigmáticas como a reforma da Pinacoteca do Estado, de Paulo Mendes da Rocha e equipe, não foram descartados, até porque em geral se valiam de uma avaliação holística do problema arquitetônico colocado. Por ser área de encontro dos mais diferentes saberes da humanidade, a arquitetura muitas vezes sintetiza debates muito além de sua capacidade analítica. Por essa razão, não consideramos artigos de tom filosófico, artísticos, sociológicos, etc. que não colocassem a arquitetura como questão central. Ela não poderia servir de simples objeto-argumento para o desenvolvimento de pensamentos posteriores: ela deveria ser o objeto final da pesquisa. Por fim, temas como cenografia ou expografia, que circundam a disciplina, mas que constituem campos com certa autonomia, também não forma incluídos nesta pesquisa, assim como memoriais descritivos ou textos técnicos que acompanham algumas publicação das obras. Ao término da etapa primeira de nossa triagem, pude notar certa prevalência de determinados assuntos, o que era até esperado, que são: 18


_Brasília: a construção da nova capital é um fato tão importante na organização da historiografia do período (inclusive como o marco-limite no meu estudo, uma espécie de horizonte sempre visível) que constitui um assunto à parte, ainda mais pois em 2010 ocorreu o cinquentenário da cidade. Porém só considerei artigos que problematizassem a capital sob novas perspectivas, não simples relatos pessoais ou estudos históricos; _Grandes mestres nacionais: em um ou outro momento eles polarizam de forma muito potente os debates de arquitetura, a exemplo de Lina Bo Bardi nos últimos anos, ou da morte de Éolo Maia em 2002. Podemos antever sua importância quando da revalorização seletiva de certos nomes nos anos 90, como o de Paulo Mendes da Rocha e Niemeyer, especialmente no cenário internacional; _Habitação: tema tão caro à arquitetura desde tempos imemoriais, mas que no século XX atinge uma importância central. Hoje na cidade, cerca de 70% das edificações são habitação, tornando-a o principal programa em termos absolutos. No nosso caso a maior parte dos artigos versa sobre HIS, conjuntos habitacionais, etc., ou seja, o tema da habitação para as menores faixas de renda; _Tipologia: entende-se sua importância no perpasse por temas intemporais da arquitetura e sua forma material. Envolve debates de temas e tipos na disciplina; _Urbanismo de fronteira / arquitetura marginal: ainda mais no Brasil, quando a chamada “cidade informal” ocupa uma importância espacial e temática nas grandes cidades que impede uma discussão profunda da arquitetura nacional sem passar por aqui (considerando que mais da metade das edificações no Brasil são feitas “sem arquitetos”, ou seja, são autoconstruções em situações muitas vezes precárias). Por motivos que serão melhor detalhados adiante, excluímos o último tema de nosso estudo.

1.2.1 O protagonismo da cidade no pensamento arquitetônico A princípio foi realmente difícil separar arquitetura e urbanismo, e muitos textos faziam um deslizamento temático que fluía entre um e outro, como de fato acredito que a prática da profissão deva proceder de alguma forma. Contudo, logo vi que ampliar o objeto de minha pesquisa para abarcar também o urbanismo iria impossibilitar um grau satisfatório de profundidade. Também, dada minha formação na FAU USP e observando o atual cenário da arquitetura nacional, pude notar como de alguma forma há uma terrível assimetria entre o estado da arte dos debates teóricos e críticos sobre urbanismo e os problemas da cidade contemporânea, e aqueles sobre o projeto de edificação. Certo descompasso foi sendo gradativamente confirmado ao longo do trabalho, e sem dúvida idéias de possíveis razões explicativas foram surgindo.

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A mais forte e, portanto a mais arriscada, é a que localiza nos anos 197019 (fora, portanto, no período analisado) uma crise disciplinar que gerou uma dispersão do pensar a arquitetura. De um lado houve os que resolveram aprofundar as questões históricas da arquitetura, de outro os que preferiram sublimar as críticas do desenho e se direcionaram ao projetar, e, por fim, houve aqueles que de alguma maneira vendo os limites da arquitetura como fator social de mudança, foram para o urbanismo a prática política. Esse último grupo, representado por nomes como Ermínia Maricato, Nabil Boundouki e Raquel Rolnik, constituíram agentes centrais na reformulação das políticas urbanas em governos progressistas, e também foram importantes historiadores e teóricos da questão das cidades. Podemos a essa altura notar a limitação de minhas afirmações, dado que todos os nomes e cenário comentados dizem respeito ao contexto específico de minha faculdade. Contudo não deixam de ser profundamente representativos daquela década que precedeu os anos 1980 e o início do que compreendi ser o surgimento do campo disciplinar ampliado da crítica de arquitetura. Essa cisão está apenas recentemente sofrendo mudanças, tímidas ainda e talvez muito pouco conscientes de seus caminhos. Numa comparação médica, se o procedimento de separação de um tomo do cérebro chama-se lobotomia, o atual momento desenha uma espécie de “lobotomia inversa”, uma tentativa talvez ainda malograda de costurar de volta alguma dimensão perdida do debate arquitetônico nacional. Certamente é uma afirmação ousada, se considerarmos que a cidade é, para a atual geração de arquitetos, especialmente em São Paulo, tema precioso e redentor da prática cada vez mais afastada da realidade urbana do país. Talvez um dos pontos culminantes dessa lobotomia invertida tenha sido a X Bienal de Arquitetura de 2014, que, segundo seus curadores (Ana Luiza Nobre, Guilherme Wisnik e Ligia Nobre), “não é sobre arquitetura, ou sobre a edificação, e sim sobre cidade20”. Para não recair em citações fora de contexto, o interlocutor Guilherme Wisnik de fato explicita como a partir da cidade e de uma distribuição polinucleada da programação da bienal, ele vai ativando espaços de cidadania entrecruzados com arquiteturas de reconhecida qualidade urbana, como o Sesc Pompéia. Infelizmente o que podemos notar hoje é que a metrópole enquanto tema virou substrato seguro do pensamento arquitetônico, tema que não encontra oposição interna na academia quando – atentemos a isto – vem de um arquiteto projetista para justificar certas escolhas formais ou referenciar este ou aquele pensamento. De alguma forma é como se um inimigo em comum - a cidade do capital financeiro - permitisse a união dos fronts de nossa disciplina. O inimigo existe, e é fundamental criticá-lo, porém ele é de alguma forma exógeno. Numa asseveração um tanto deslocada, porém não infundada e infértil, podemos fazer um paralelo desse fenômeno com o comportamento da crítica nos anos 70: Ao invés de comportar uma dimensão crítica na cultura arquitetônica, por meio da qual a arquitetura poderia integrar trocas dialéticas com seus vários contextos, ele (Manfredo Tafuri) observa que a cultura arquitetônica apenas estimulava uma resposta crítica àquilo que negava. Ao invés de provocar os

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LIRA, José Tavares Correia de. A história e o fazer da arquitetura. Desígnio, São Paulo, nº 11/12, p. 11, 2011. 20 Joanna Helm. AD Entrevistas: Guilherme Wisnik. 29 out. 2013. ArchDaily Brasil. Disponível em: http://www.archdaily.com.br/149607/ad-entrevistas-guilherme-wisnik.

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agentes intelectuais da arquitetura em um discurso crítico, os historiadores montavam o problema.21 Ou seja, o que fazemos hoje é montar e remontar o problema da cidade, mas sem de fato gerar trocas dialéticas entre ela e a arquitetura; antes diria que alcançamos um simples diálogo fortuito.Não encontramos, dentro da academia, uma voz consistente que defenda o mercado imobiliário, o grande capital como projetista da cidade, o lucro como lógica projetual, etc. Isso possibilita algum consenso interno, e o consenso é inimigo da crise. Enquanto espécie de “fundo redentor”, a cidade não conseguirá atingir todo seu potencial crítico enquanto objeto no seio do debate arquitetônico. Um forte exemplo dessa confusão que se gera, e que de alguma forma nos estimula a discernir mais ainda entre arquitetura e urbanismo, é a fala inicial de Lauro Cavalcanti em seu texto “A Fértil Nostalgia do Moderno”:“A arquitetura brasileira não atravessa uma boa fase. Nossas cidades são feias.”22 É muito inocente acreditar que essa afirmação diz respeito apenas à cidade entendida enquanto composição de edifícios. Ele fala da cidade como organismo complexo, como fenômeno humano de nossa modernidade. Nesse sentido, há um cruzamento, diria até uma sobreposição, de arquitetura e urbanismo que, se em determinados âmbitos do debate da arquitetura é fundamental e uma evolução no pensamento urbanístico, em outro – e é este o caso – significa a obliteração de uma área pela outra. A mesma fala pode ser vista em diversos outros momentos, como na entrevista dada à revista Projeto/Design de Marcelo Ferraz, onde ele relaciona má qualidade arquitetônica à má qualidade urbana.23 Tudo isso levou-nos a querer dissecar ainda mais a arquitetura de seu par-gêmeo, o urbanismo. Feita tal decisão, um primeiro passo foi eliminar temas como território, paisagem, planejamento urbano, gestão habitacional, etc. Parte-se do entendimento que essas áreas têm-se desenvolvido com relativa autonomia e talvez até com maior amplitude teórica do que a arquitetura nesses últimos vinte e cinco anos, lidando sempre com temas afins como política, economia, sociologia, etc. Que seja feita, contudo, uma fundamental ressalva. Não ignorei os projetos de arquitetura de dimensão urbana, caso do Memorial da América Latina, de Oscar Niemeyer, por exemplo. A questão é sempre a mesma: arquitetura no centro do debate, ele desenvolvido a partir dela, por mais que sua escala varie de um pavilhão de cinco metros quadrados, até o planejamento de uma cidade inteira, como foi o caso de Caraíba, de Joaquim Guedes.

1.2.2 Antologia Como dito no início deste capítulo, uma vez definida a base ampla que geraria o índice, partiríamos para a definição de uma antologia contendo aqueles textos considerados os mais importantes, por período, para compreender o cenário geral da crítica. Nesta etapa seria necessário atualizar certos critérios de seleção. Se antes o simples fato do texto 21

LEACH, André. Criticalidade e operatividade. Desígnio, São Paulo, nº 11/12, p. 31, 2011 CAVALCANTI, Lauro. A Fértil Nostalgia do Moderno. BRAVO! São Paulo, n. 46, p. 90, jul. 2001 23 FERRAZ, Marcelo. Entrevista. Projeto/Design, ed. 265, 2002 22

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analisar uma obra ou discutir aspectos do pensamento arquitetônico a qualificava como crítica, agora buscamos outras características, observadas a partir de quatro qualidades esperadas num texto crítico de excelência. Ao mesmo tempo, tivemos que equilibrar essa seleção com textos que fossem não só críticos, mas representativos de determinados debates de sua época, tanto pelo conteúdo quanto pela quantidade de citações entre pares que o mesmo recebia, indicando ser referencial para tal momento. A primeira das qualidades que busquei nos textos foi, portanto, o reconhecimento no cenário arquitetônico nacional, a partir das comentadas citações, e também do número de artigos publicados nos mais diferentes locais, indicando uma resposta adequada a critérios mínimos de publicação, diversos e afins às linhas editoriais de cada suporte. Em seguida considerei a relevância que o artigo tinha alcançado, a partir de sua estruturação ao redor de grandes temas em debate, análise de obras paradigmáticas, introdução de novos debates, etc., ou seja, uma procura atenta dos objetos de estudo. O terceiro critério foi a consistência, que lida com as referências teóricas utilizadas, sua articulação conceitual com a obra ou tema em análise, a autoconsciência e clareza de exposição de tais filiações do pensamento, rigor metodológico e assim por diante. Todos esses princípios buscaram afastar a crítica de uma simples contribuição de juízo pessoal. Por fim, e a que considerei a mais definidora do que é uma crítica, observamos a capacidade de julgamento do texto, em contraposição a qualquer superficialidade que não adentrasse no cerne dos problemas envolvidos na arquitetura então apresentada. Esse juízo pressupõe também a colocação clara de um problema de valor, a partir de uma intenção crítica de decisão ou crise. Esse “desejo de julgamento” é em certa medida intuitivo, partindo de questões pessoais construídas e desenvolvidas ao longo do processo de pensamento do crítico.Nenhum valor é criado de forma não-subjetiva. Porém subjetivo não quer dizer arbitrário, e a crítica precisa entender-se enquanto discurso localizado no mundo de definições da disciplina. Na prática os critérios apenas ajudaram a ter em mente o que se buscava nos artigos. Apesar disso, baseamo-nos, acima de tudo, numa intuição desenvolvida e amadurecida a partir desse primeiro contato com as bases, operacionalizando critérios complexos e subjetivos, tendo sempre em mente o panorama de nossa produção, sem simplificar questões. Esta antologia – ou coletânea de artigos críticos referenciais – servirão cada um a seu tempo – para o desenho final do comportamento da crítica nos capítulos vindouros.

1.3 Duas torres pluralistas Podemos dizer, com alguma tranqüilidade, que as revistas comerciais constituíram a mais importante base de artigos do período, fora os sites. Tanto por sua extensão (ambas percorrem o quarto de século do estudo), quanto pela diversidade de temas e autores que por elas passaram. Foi nas revistas AU e Projeto que se formou toda uma geração de jornalistas, críticos, articulistas, fotógrafos, etc. de arquitetura, que permanecem até hoje em atividade. E, fato não menos importante, é que elas ainda têm impacto no mundo profissional por sua circulação em mídia impressa e digital. 22


Além disso, hoje podemos encontrar uma série de outros periódicos comerciais que falam direta ou indiretamente sobre arquitetura nas bancas de jornal, inclusive publicações que existem há um tempo considerável. São os casos de revistas como Finestra, Casa Vogue, bamboo, etc. Podemos adicionar à lista aquelas revistas de arquitetura de circulação extremamente restrita, mas que no geral não trazem contribuições relevantes ao debate crítico de arquitetura, como é o caso da revista Nosso Caminho, editada pela família Niemeyer desde 2008. Não consideramos essa publicações, pois além de, por vezes, serem de um período posterior ao ano de 2010, não têm na arquitetura seu núcleo articulador. Falam ora de construção e tecnologia, ora de decoração e artes, apenas gravitando ao redor do tema central da pesquisa, sendo espaços muito pouco férteis para o desenvolvimento de uma crítica séria de arquitetura. Mesmo assim, artigos como o “Menos é mais”, de Cecília Rodrigues dos Santos publicada na Casa Vogue de 2005 são exemplos de exceção que infelizmente não considerei por serem pontos muito fora da curva. Em assim sendo, podemos dizer que os periódicos que selecionamos para nosso estudo têm certas qualidades que o destacam de seus pares em circulação. Porém, antes de chegarmos ao atual formato dos mesmos, existiram experiências anteriores marcadas por alinhamentos ideológicos mais ou menos claros – as chamadas revistas de tendência: No Brasil, revistas como Habitat e Módulo dos anos 1950 e Acrópole dos anos 1960 (com menos rigor) aproximaram-se das linhas editoriais de tendência, como Arquitetura refletiu as posições da corporação nessa mesma década, até o fenecimento da imprensa de arquitetura no início dos anos 1970. O ressurgimento das publicações regulares nos anos 1980, com o Projeto (a partir de 1979) e AU (desde 1985), não marcou a retomada de “revistas de tendência”, mas refletiu as incertezas de um país no limiar da redemocratização, o atordoamento pós-moderno e a concordata da modernidade brasileira.24 A conclusão acima não é simples, e traz desdobramentos que serão vistos neste tópico. O reconhecimento da AU e Projeto como revistas com predominância de divulgação de projetos, e não de idéias, vai conduzir a uma prática irregular de crítica nas mesmas. Via de regra, certa pluralidade no conteúdo a ser publicado foi um fenômeno muito importante de descompressão das várias correntes arquitetônicas que buscavam espaço para surgir e discutir. Uma maior atenção à produção fora do eixo Rio-São Paulo, certa sintonia com os debates teóricos na América latina e no mundo, assim como uma propensão maior a discutir questões disciplinares e do mercado profissional marcaram e ainda marcam esses periódicos. Num primeiro momento, especialmente nos anos 1980, essas revistas foram protagonistas de uma revitalização do campo arquitetônico, para logo e gradualmente perderem fôlego crítico na década seguinte, até chegarem ao atual regime de cada vez menos espaço estável para o debate e questionamento da arquitetura produzida, dentro e fora do Brasil. Bruno Padovano, em mesa-redonda com os mais importantes nomes da arquitetura brasileira em balanço sobre a década de 80, fala especificamente da crítica de arquitetura: 24

CREMA, Adriana; SEGAWA, Hugo; GAVA, Maristela. Op. cit., loc. cit.

23


Nosso problema é a ausência de uma crítica mais técnica às obras e projetos. No entanto, temos de admitir que nos anos 80 começou a surgir pelo menos o embrião de uma atitude geral e de uma imprensa mais críticas. Eu citaria a revista Projeto, por um lado não muito crítica na apresentação dos projetos, mas por outro bastante aberta a diferentes correntes, apresentando também textos teóricos, na seção Ensaio & Pesquisa. Ensaios, aliás, que começaram tímidos, citando principalmente autores estrangeiros, para depois evoluir e se aprofundar criticamente. Citaria também o aparecimento da revista AU, com teor mais crítico e teórico que a Projeto (...). Enfim, acho que o confronto entre as duas revistas está ajudando ambas a crescer. Creio até que elas superaram a própria produção de arquitetura; sem dúvida estão entre as melhores coisas da década. (grifo nosso). 25 As revistas comerciais formataram assim o espaço mais amplo para o lançamento da crítica e dos debates daí originados após a abertura política que se ensejava. Há de se considerar, porém, que com o tempo o que foram virtudes lentamente transformaram-se em vícios. Quando perguntadas sobre uma “crítica morna”26 nos anos 1990, Ruth Zein e Maria Alice Junqueira Bastos falam de uma unanimidade, um certo alinhamento de pensamentos que foi progressivamente esvaziando toda “crítica e catarse dos anos de 1980”. Mais alarmante ainda talvez seja uma fuga dos críticos dessas revistas para a academia, sectarizando o debate e aumentando ainda mais a distância entre a arquitetura e o usuário. O diagnóstico das autoras termina com um balanço nada animador. Falam que há cada vez menos espaço para a crítica nas revistas de arquitetura, e como desdobramento natural, uma maior “dissociação entre o debate acadêmico e profissional.”, fato também confirmado pela crítica Ana Luiza Nobre em entrevista ao grupo Entre.27 Desta forma, a ausência de uma linha editorial clara, que foi um sintoma e um remédio para a arquitetura no primeiro período da pesquisa, vai lentamente apresentando suas limitações. Nas palavras de Mauro Neves, ao contrário da revista Módulo que é tendenciosa (por isso, representante da ideologia da escola carioca e Niemeyer), a Projeto e AU são “plurais em demasia”.28 Cabe um pequeno devaneio neste momento, que finalmente explicará o nome desta seção. Em 1990 surge a imagem da Torre Pluralista, projeto a serexecutado primeiramente no Campo Belo e depois no Morumbi, cedendo cada pavimento do edifício para importantes – e muitas vezes divergentes – nomes da arquitetura paulista e nacional do período. Uma babel moderna, ou melhor, um Frankenstein do capital especulativo que por sorte (ou azar) não foi construído. Até Paulo Mendes, para quem ser moderno não parece ser suficiente29, aceitou participar do projeto. Assim como a Torre Pluralista, as revistas do estudo mostraram ser uma novidade absolutamente atraente num primeiro momento, mas que, permanecendo um monumento ao pluralismo, logo tiveram sua força debilitada. 25

VÁRIOS AUTORES. Debate crise anos 80. PROJETO, ed. 129, 1990, p. 155.

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SAYEGH, Simone. op. cit., p. 65. PERROTTA-BOSCH, Francesco; MAIA, Gabriel K.; MENEGUETTI, Mariana; AZEVEDO, Valmir; MAIOLINO, Carolina. Entrevista Ana Luiza Nobre e Guilherme Wisnik. Entrevista, São Paulo, ano 11, n. 042.02, Vitruvius, jun. 2010. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/11.042/3454 28 VÁRIOS AUTORES. Debate crise anos 80. PROJETO, ed. 129, 1990, p. 156. 29 Sutil referência ao texto E como ficou chato ser moderno. Agora serei eterno, de Carlos Eduardo Dias Comas. (AU, edição 146, 2006, p. 40) 27

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Imagem divulgada do projeto da Torre Pluralista.

Desta forma, o que pudemos avaliar foi que as matérias sobre projetos arquitetônicos se limitavam, em sua maior parte, a descrições cada vez mais enxutas, sobre materiais, técnicas de construção ou comentários acerca dos discursos e memoriais daquela edificação. Exceções ocorrem quando há um ou outro autor freelancer com espaço determinado na revista, nem sempre fixo. Mais recentemente pudemos ver como os autores mais experimentes, como Hugo Segawa e Haifa Sabbag, não contribuem mais de forma regular nas respectivas revistas onde fizeram carreira.30 Dos anos 2000 para cá, o que observamos foi um desmantelamento gradual dos poucos espaços de prática da crítica que essas revistas vinham mantendo ao longo da última década do século XX. As razões são várias, porém arriscaríamos dizer que a principal é a gradual mudança da arquitetura enquanto fato cultural, que está cada vez mais imerso na lógica mercantilista da produção da cidade e do conhecimento. Face a isso, certa neutralidade dos dois periódicos não suportou as pressões da priorização da imagem sobre o conteúdo, típico da sociedade do espetáculo e do capital financeiro. Em geral, quando alguma seção precisa ser suprimida a primeira opção é sempre aquela relativa a uma editoria científica de cunho crítico. E é exatamente o que ocorre quando a revista passa por uma reformulação interna ampliando o escopo de sua publicação para atingir um maior público – caso emblemático é o da Projeto quando passou a se chamar Projeto/Design, em 1996. Outro lado perverso desse processo de desmantelamento da crítica dentro das revistas comerciais é a centralização cada vez maior dos textos em um corpo editorial certamente sobrecarregado, o que conduz a certa aridez na diversidade de autores que publicam textos críticos, análises históricas, debates teóricos etc.

30

CREMA, Adriana; SEGAWA, Hugo; GAVA, Maristela. op. cit., loc. cit.

25


Assim, ambos periódicos chegam hoje ao cenário da arquitetura com uma timidez e falta de prestígio inversamente proporcional ao que ocorreu trinta anos atrás, considerando que as tendências aqui analisadas não mudaram muito desde 2010. O movimento é de fuga dessas revistas, com críticos como Ana Luiza Nobre se recusando a escrever para tais, preferindo ao invés disso a Internet no espaço dos blogs31, fato observado no gráfico abaixo, onde podemos ver claramente em curva decrescente o número de artigos críticos por ano nas revistas, e explosão deles no site vitruvius.

Gráfico 3: número de artigos / ano (em três mídias)

Porém, por mais que esse pareça ser um fenômeno apenas nacional, possui paralelo também nos núcleos mais importantes de debate arquitetônico internacional. O renomado arquiteto Vittorio Gregotti é quem faz tal afirmação: Nos últimos 30 anos, testemunhamos o declínio das tradições do jornalismo arquitetônico que data da virada do século. Por muitas décadas e até recentemente, as revistas de arquitetura eram os foros de discussões passionais e partidárias; quase sempre elas mantiveram uma forte e precisa posição sobre a disciplina arquitetônica. No entanto, nas recentes três décadas, revistas de arquitetura o contentamento de se tornarem meros espelhos da profissão: elas preferiram simplesmente registrar, geralmente de uma maneira plural e neutra, o que estava acontecendo. O dúbio resultado dessa transformação tem sido, de um lado, o aumento da quantidade de material publicado e, de outro, o embaçamento do critério pelo qual este material é selecionado. Esta tendência vem acompanhada também do incremento da “profissionalização” da imprensa de arquitetura, evidenciado no crescimento da complexidade estrutural da equipe editorial e a elevação dos custos de publicação.32 Isso depois de ter afirmado que “Entre os 21 editores ou ex-editores que comentam sobre publicações de design nesta edição, cinco deixaram seus postos há pouco tempo, 31

PERROTTA-BOSCH, Francesco; MAIA, Gabriel K.; MENEGUETTI, Mariana; AZEVEDO, Valmir; MAIOLINO, Carolina. op. cit., loc. cit. 32 CREMA, Adriana; SEGAWA, Hugo; GAVA, Maristela. Op. cit., loc. cit.

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aparentemente porque seus publishers desejavam revistas mais lucrativas e menos críticas". Dessa forma podemos observar que se de um lado o volume do material em circulação cresce exponencialmente, por outro seu teor crítico decresce (exponencialmente?) e impera certo atordoamento que leva projetistas a navegarem pela arquitetura de maneira muitas vezes irresponsável e inconsciente, incapaz de articular prática e teoria. O cenário hoje é desolador. Nas palavras de Nobre: “as ditas revistas especializadas com certeza não são o espaço hoje da critica, aliás há muito tempo.”33

1.3.1 A revista Projeto Nasceu como um boletim – O Arquiteto – em 1972 no âmbito do IAB-SP, assim como dos fundamentais Cadernos de Brasileiros de Arquitetura. As primeiras edições são muito enxutas, e em geral bimestrais, sem espaço ainda para a crítica de arquitetura, apenas apresentando projetos e pequenos textos de análise, além de propaganda e escritos técnicos. Com o tempo a revista vai ganhando maior espaço para debates, especialmente a partir de 1979. O X Congresso de Arquitetura, que tem como tema central “A arquitetura brasileira após Brasília” é paradigmático desse momento. Em cinco anos tornou-se a revista Projeto, articulada por Vicente Wissenbach. Foi um importante processo de desvencilhamento da censura interna que se colocava pelo corpo editorial ligado ao sindicato e ao instituto, que queriam definir determinado conteúdo, mas também não auxiliavam efetivamente nessa produção.34 Ainda assim, de a revista manteve a linha editorial da versão anterior, na medida em que não pretendia-se um jornal enviesado, ou de artigos excepcionais, mas antes ser um “porta-voz de todos os arquitetos”35. Nesse artigo, o primeiro diretor da Projeto fala que: A crítica de arquitetura está começando a surgir agora no Brasil e a revista se preocupa em abrir um espaço para ela. Este é o embrião de um processo. Passamos uma grande fase sem publicações de arquitetura. (grifo nosso) 36 O interessante é que foi exatamente nessa fase embrionária que a revista foi mais feliz em divulgar a crítica de arquitetura por todo território nacional. Esse fato, aliás, é de suma importância, se compreendermos que desde os anos 1970 nenhum veículo tinha a penetração que a Projeto e, posteriormente AU viriam a ter. Penetração e longevidade. Essa crítica que se foi formulando estava intimamente ligada a uma tentativa de retorno à especificidade da disciplina. Ruth Zein e Maria Alice Junqueira Bastos chegam a localizar que o nascimento de uma “nova crítica brasileira, que surgiu principalmente nas páginas da revista Projeto, se caracteriza, de maneira ampla, por uma tentativa de retorno à

33

NOBRE, Ana Luiza. Entrevista pessoal ao autor Jaime Solares Carmona. ANEXO A. PENTEADO, Fábio. Projeto 15 anos. PROJETO, ed. 102, 1987, p. 73. 35 WISSENBACH, Vicente. Editorial. Projeto, ed. 42, 1982, p.41 36 Ibidem. 34

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especificidade da d disciplina.”37Assim, há certa am mbigüidade e, compreen nsível, entre e adotar uma linha edito orial menos definida e suportar ass mais varia adas vozes ccríticas da arquitetura. a m disso, foi ao a longo do os anos 19800 que, por uma u aproxim mação à revvista argenttina Além Summ mma na figurra de seu ed ditor-chefe Jorge J Glusb berg, que fo oi possível a ampliar nossso interrcâmbio rum mo à Amériica Latina, além a de termos desenv volvido certtas afinidad des com o perió ódico porten nho, como a busca pello diálogo com c a arquittetura com todos os se eus camp pos. o especial de e número 53 5 da Projeto to é dedicada à fundam mental mostrra A edição quitetura Brasileira Atu ual”, que ocorreu em Buenos B Aires em 1983. N Nessa ediçã ão, Ruth “Arq Verd de Zein faz um u amplo panorama p d produção da o nacional, a partir de d dois artigoss que discu utem a prod dução brasileira de arq quitetura do o período pó ós-Brasília.338 Essa bien nal foi marcco fundame ental no ren nascimento da crítica de d arquitetu ura no Brasiil. Além de ter pedido de no ossos intele ectuais uma a necessária a e ampla re evisão da prrodução naccional dos anos a 1970, perm mitiu uma in nternaciona alização e contato com m o que estav va fora de n nossa bolha a. A Bienal seguinte, de 19885, também m teria ampla cobertura a da revista,, nas três ed dições seguidas, da 77 à 79. Em m Maio de 19980 – mesm ma edição qu ue discute os 20 anos de Brasília – as edições de eixam de serr bimestraiss, fato que m mostra certo o grau de am madurecime ento da revista que passa a ser me ensal, come eçando a apresentar maior esp paço para a crítica na ccoluna “Críttica de Arq quitetura”. Não chega a ser um esspaço fixo, porrém já é um m importantte passo parra a área. Nessa época ta ambém pod demos ver a fra agilidade do o setor edito orial no Brasil através da propagand da ao lado, q que apela pa ara os ando o incre emento do parres da profiissão, busca número de asssinaturas.

Pro opaganda para aumentarr assinaturas s. Pro ojeto, nº 30, 1981, 1 p. 17

opagandas fazem parte de uma esstratégia qu ue permitiu uma melho ora Essas pro d revista. Nas N palavra as de Vicentte Wissenba ach: signiificativa na qualidade da É possíve el sentir qu ue a revista está e melhorrando atrav vés do apoio o recebido a nível de arquiteto os e pesquissadores que e querem co ooperar com m a publica ação.39

37

BAS STOS, Maria Alice A Junqueira a; ZEIN, Ruth Verde. Brasill: arquitetura as após 1950. S São Paulo: Persp pectiva, 2010, p. p 200 38

ZEIN N, Ruth Verde e. As tendênciias e as discusssões do pós-B Brasília. Proje eto, ed. 53, 19883, pp. 75-85; ZEIN, Ruth Verde. V Nos úlltimos anos, surgem os nov vos caminhoss e tendênciass. Projeto, ed. 53, 1983, pp. 86-126. 8 39 Ibid dem, p. 40.

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Dentro dessa melhora, temos pela primeira vez a coluna “Ensaio e Pesquisa”, da edição 65, de Julho de 1984, com o artigo “Pós-modernismo, arquitetura e tropicália” de Luis Espallargas Gimenez40, um texto seminal para compreender o período, ácido e polêmico, inaugurando o espaço mais importante de crítica da revista, que vai durar até 1993. Nesse meio tempo, em 85, forma-se uma rede de correspondentes no exterior, “estabelecendo novas ligações com Argentina, Chile, Espanha, França, Itália.”41 Ainda no final dos anos 1980 uma série de publicações chamada “Arquiteturas no Brasil/Anos 80” visa radiografar o que era produzido em termos de arquitetura no país inteiro, dividido por grandes regiões, das edições 114 à 117, o que viria a culminar num livro42, talvez o mais importante em termos de divulgação de obras sobre o período. Ainda assim, predomina uma qualidade de texto que se localiza entre a ampla descrição crítica e a descrição apenas. Nesse último caso, uma espécie de memorial descritivo alongado que poucas vezes passa a fronteira da análise e chega de fato à compreensão crítica. Isso gerou uma instabilidade na seleção dos textos para o índice, fato que fez das revistas um local em certa medida difícil de explorar. Tal característica – à qual não foge a Arquitetura & Urbanismo – foi ainda mais aprofundada a partir de 1996, com a completa remodelação gráfica e editorial da revista, que passa a se chamar Projeto/Design, nome que guarda até hoje. Resultado da fusão com a Design & Interiores, a arquitetura teve que dividir espaço com essas duas disciplinas, o que claramente prejudicou a seção “Espaço e Pesquisa”, que seria substituída pela “Artigos”, mais abrangente quanto aos temas abordados e, decorrência quase natural, menos crítica. Chegou ao ponto em que menos da metade das edições do ano tinham espaço fixo para tal atividade. Nas palavras de Peixoto: Aos poucos, o afastamento dos arquitetos da revista e sua condução, na quase totalidade, por uma equipe de jornalistas encerraram, definitivamente, a história do periódico, criado a partir o jornal Arquiteto no final da década de 1970. A revista Projeto tornou-se outra, dentro da qual os espaços para a reflexão diminuíram, a favor da apresentação de projetos e obras explicados de debatidos num nível mais próximo ao da notícia. A revista criada por Wissenbach deixava de existir.43 A piora na qualidade geral do conteúdo da revista foi sensível, culminando com a saída de Hugo Segawa e, anos depois, de Ruth Verde Zein do corpo de colaboradores, nomes que, além de terem se formado e ajudado a formar toda uma geração de jornalistas de arquitetura, foram também os primeiros arquitetos da revista, entrando posteriormente Cecília Rodrigues dos Santos. O final dos anos 1990 inaugura, portanto, certa decadência dos espaços críticos em revistas a partir de então, sendo sempre os primeiros a ser eliminados face a qualquer remodelação ou corte de orçamento ou pessoal. Nas palavras de Fernando Lara, quando do balanço dos 25 anos da revista: 40

GIMENEZ, Luiz Espallargas. Pós-modernismo, arquitetura e tropicália. Projeto, ed. 65, 1984, p. 90 PEIXOTO, Elane Ribeiro. Arquitetura na Revista Projeto (1980 – 1995): identidade, memória e nãolugares. 2003. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 52

41

42 SEGAWA, Hugo; SANTOS, Cecília Rodrigues do; ZEIN, Ruth Verde. Arquiteturas no Brasil, anos 80. São Paulo: Projeto, 1988. 43

PEIXOTO op. cit., p. 51

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Na segunda metade dos anos 1990, uma grande reforma editorial diminui o espaço dedicado pela revista à crítica e dá ênfase ainda maior ao design e aos projetos de interiores.44 Em que pese o rearranjo do corpo editorial, a situação só seria regularizada, digamos assim, no começo dos anos 2000, período que inaugura uma terceira e derradeira fase no periódico, desenhando seu futuro até os dias de hoje. Acaba a era de grandes temas articuladores das edições. Cada vez mais, os periódicos comerciais tornam-se um cabedal de projetos, uma espécie de catálogo visual (nem sempre de boa qualidade), onde o pensamento arquitetônico fraqueja. Como fala Ruth Zein, a passagem da arquitetura do campo cultural para o campo dos negócios, ou seja, a o crescente caráter comercial das mesmas, foi a principal causa da ausência de crítica de arquitetura em revistas, assim como em jornais.45 Ainda assim, é nelas que se articula algum grau do pensamento disciplinar pela seleção e divulgação da arquitetura que será reconhecida por todo o país. Um exemplo disso é o aparecimento da nova geração de arquitetos paulistas, que viria a se consolidar dos anos 2000 para cá, já nas edições do final da década de 90, como a 207 com projeto de Ângelo Bucci e Álvaro Puntoni, ou Andrade Morettin na 219, de 1997 e 1998 respectivamente. Interessante notar também como os textos passam, gradativamente, a ser menos autorais, ou por um erro de editoração (muitas vezes não sabemos quem escreveu certos artigos), ou por uma desvalorização do corpo crítico da revista, ou por ambos. Exceção nada positiva é o caso de Fernando Serapião, que surge como editor-chefe da revista no ano de 2004 e que deixa patente uma situação até certo nível insustentável. Se antes dele a Projeto/Design passava por uma crise no espaço da crítica, agora a crise é substituída por uma estabilidade causada por essa excluisividade dos pontos de vista. Como podemos ver no gráfico abaixo, é Fernando Serapião que parece ocupar o papel de crítico da revista, centralizando decisões e raramente convidando outros críticos para escrever, como é o caso de Roberto Segre que parece ser um dos poucos que ainda colaboram na revista.

44

LARA, Fernando. 25 anos de arquitetura brasileira em revista. PROJETO/DESIGN, edição 275, 2003, p. 28. 45 SAYEGH, Simone. Op. cit., p. 66.

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Gráfico 4: espaço para crítica na revista Projeto Taxa calculada pela relação entre o número de edições com espaço para artigos críticos e número de edições por ano. Onde o valor máximo 1,0 representa um cenário onde todas as edições no ano tiveram espaço para crítica, e 0 onde nenhuma.

O mérito do editor executivo é não deixar a sessão crítica morrer, tomando para si tal tarefa. Contudo, essa monopolização – que pode ser vista especialmente no ano de 2006, quando quase a totalidade de artigos críticos escritos foi de autoria dele - seja por motivos econômicos de enxugamento da revista, seja por questões de gerenciamento de pessoal ou contratação de freelancers, ou até desacordos com o conteúdo de outros textos, é muito prejudicial à crítica, na medida em que o embate e a dúvida são lentamente substituídos pela certeza do pensamento único, e que não se confunda o vale entre 2007 e 2008 com uma ausência de Fernando Serapião na coluna da crítica: lá ele permanece, apenas seus textos que não foram assim considerados dentro dos parâmetros definidos. Talvez por isso o crítico sai da revista no começo de 2011 e funde, no ano seguinte, sua editora, juntamente com a revista Monolito, que arriscamos dizer, tem sua semente na seção “Entrelinhas”, que lidava de temais mais gerais da arquitetura, bem ao gosto do autor, mesclando política, cultura e, afinal, arquitetura e sua prática.

1.3.2 A revista Arquitetura & Urbanismo – AU A revista AU tem uma história muito menos interessante do que sua rival editorial, o que certamente não significa menor excelência em seu conteúdo. Em realidade, podemos dizer, com alguma tranqüilidade, que a qualidade dos anos iniciais da revista é indiscutível, mesmo que dentro de certo experimentalismo inocente dos plurais anos 1980. E fato seja

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dito: se no começo ambas pareciam margear por caminhos muito diferentes da discussão da cultura arquitetônica, hoje em dia é quase impossível diferenciar uma da outra. Como exemplo inicial do caráter provocador que a revista possuía, podemos citar que, apesar da frágil estruturação interna, ela era graficamente ousada, e logo na segunda edição inicia a seção “Espaço Aberto” que, com a “Espaço & Crítica” e “Arquiteturas” estrutura os principais espaços da crítica na revista. Não são, porém, espaços pétreos. Em decorrência de certa tematização que percorre seus anos iniciais, vez ou outra as sessões eram suprimidas em detrimento de debates unitários ao longo da edição. Apesar disso, podemos dizer que o quilate dessas edições temáticas atinge ápices quando, por exemplo, na quarta edição de 1986, sob o tema “Pós-Minas: resgatar, questionar, avançar” ela joga luz sobre uma escola mineira liderada por Éolo Maia que viria a constituir a mais forte expressão de nossa pós-modernidade; ou quando, na edição posterior, entrevista Luis Carlos Prestes e Celso Furtado, em pleno fim da ditadura militar. Há também o fato de que a revista formou, assim como foi com Hugo Segawa, Ruth Zein e Cecília Rodrigues dos Santos na Projeto, Haifa Sabbag na esteira dos jornalistas de arquitetura, juntamente com José Wolf e tantos outros nomes. Além disso, no início dos anos 1990 inaugura-se a seção “Documenta”, que passa a dividir espaço com “Arquitetura e Crítica”, indicando uma tendência de estudos ligados à historiografia que se fortaleceria nesses anos. Quase 10 anos depois o novo espaço da crítica chamado “Intersecção” vai revezando-se com a “Documentae”, filha distante da Documenta, regrando a ritmação da publicação de artigos críticos a partir de então. A década de 1990 seria marcada, ainda, pela adição temporária ao corpo de colaboradores o nome de Jorge Glusberg, figura tão fundamental na constituição das revistas de arquitetura no país. Além dele, podemos citar Marina Waisman, também argentina, com o editorial do Centro de Arte y Comunicación – CAYC, na seção “Especial América Latina”. Esse esforço de integrar a revista ao cenário mais amplo da América Latina chega com certo atraso, se considerarmos a crescente desimportância que os Seminários Latino-Americanos iriam ter a partir de sua V edição.46 Após esse surto regionalista, e caminhando já para o fim da década, a revista passa a ter um caráter mais comercial, técnico e menos crítico. O lento processo de inversão de um período de arquitetura de caráter quase que totalmente textual para um que se baseia na publicação de imagens – planimetria, fotos, modelos, etc. – se aprofunda nesses anos. A queda brusca no número de artigos a partir da década de 90, fato visto no gráfico em sequência, é imperioso enquanto dado de como a crítica se esvai. Em 2000 o panorama não melhora, chegando a ter sua seção na revista suprimida, e eventualmente substituída por colunas que tratam de temas mais genéricos, como “Opinião” e “Comentário”.

46

SOUZA, Gisela Barcellos de. Tessituras híbridas ou o duplo regresso: Encontros latino-americanos e traduções culturais do debate sobre o Retorno à Cidade. 2013. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo.

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Gráfico 5: espaço para crítica na revista AU Taxa calculada pela relação entre o número de edições com espaço para artigos críticos e número de edições por ano. Onde o valor máximo 1,0 representa um cenário onde todas as edições no ano tiveram espaço para crítica, e 0 onde nenhuma.

Concluindo, podemos dizer que de forma geral o caminho percorrido por ambas revistas foi muito similar. De locais que fomentaram os mais importantes debates arquitetônicos e uma certa busca da expansão dos horizontes da disciplina – ora procurando estudar as produções de outras regiões do país, como fez a Projeto; ora adotando uma poética de experimentação diagramática e conteudística, caso da AU, passando por certo marasmo e inflexão comercial nos anos 1990 até sua derradeira decadência enquanto espaços de crítica e teorias da arquitetura, dos anos 2000 até hoje. Apesar da AU ter-se mostrado mais estável na manutenção dos espaços fixos de reflexão, ambas chegam a nós, hoje, como plácidos catálogos de obras e editoriais resultado de pesquisas históricas, sem uma articulação profunda do fazer e pensar arquitetura. Talvez tal fato esteja ligado às próprias estruturas do modelo revista,dentro da lógica do chamado “jornalismo de acesso”, que nas palavras de Gary Stevens, “significa tão-somente que um arquiteto em que vale a pena investir permite que seu trabalho seja publicado caso nada particularmente crítico seja escrito.”47

47

STEVENS, Gary. O círculo privilegiado: fundamentos sociais da distinção arquitetônica. Traduzido por Lenise Garcia Barbosa. Brasília: UnB, 2003.

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1.3.3 Módulo Em tempo, vale a pena fazer algumas considerações sobre importante revista brasileira que, apesar de não ter sido avaliada em profundidade neste estudo, marcou o cenário nacional em períodos anteriores à da pesquisa, tendo sido fundada em 1955 por Oscar Niemeyer e representando a principal revista de tendência da escola carioca, voltando a circular em 1975 e saindo definitivamente do cenário editorial em 1989. Em seu ciclo final de existência, já não tinha a importância que teve originalmente, focando-se menos em arquitetura e mais em discussões sobre artes plásticas e cultura. É realmente muito simbólico que a última edição da revista seja um especial sobre o Memorial da América Latina, obra que inaugura uma nova fase na produção de Niemeyer e, diria, da arquitetura nacional.

1.4 A Academia como espaço de exceção Hoje, os periódicos acadêmicos definem muito possivelmente o campo mais importante de publicação de artigos críticos do universo editorial brasileiro. Apesar de ter circulação muito restrita, limitando-se quase que exclusivamente às próprias bibliotecas das instituições autoras, esses periódicos formam a base de sustentação de todo um corpo científico de pesquisadores e docentes que têm nesses, espaços qualificados de debate e divulgação. De fato, como amplamente ilustrado na Introdução de seu livro “Textos Fundamentais sobre a história da arquitetura moderna brasileira” 48, Abílio Guerra localiza a enorme importância da formação dos cursos de pós-graduação em arquitetura e urbanismo para a constituição de uma intelligentsia nacional que enriqueceria a qualidade dos cursos de graduação, teria espaço para desenvolver discussões sobre o pensamento arquitetônico, e contribuiria para um amadurecimento dos debates críticos e teóricos em planos de pesquisa a partir de 1980, com o curso de pós da FAU USP. Apesar disso, foi apenas vinte anos depois que esse corpus conseguiria articular-se de maneira consistente, nos mais diversos cursos de arquitetura do país, de forma a publicar de forma sistemática periódicos acadêmicos. A questão da periodicidade, aliás, é central na compreensão desta categoria de material. Por uma série de motivos, ora burocráticos da relação universidade – unidade, ora por questões contingentes de falta de verba, ora por certo descompasso na dinâmica interna dos colaboradores, essas revistas acadêmicas apresentam o que chamamos de “curtocircuitos”, ou seja, uma série de descontinuidades ao longo de sua publicação que vão acompanhadas, vez ou outra, por uma mudança radical em seu corpo e linha editorias. Esse comportamento pode ser verificado no gráfico a seguir 48

GUERRA, Abílio. Op. cit., p. 11-13. Vale a pena uma ressalva: na verdade o primeiro curso de pósgraduação em arquitetura foi da UnB em 1962, porém ele foi fechado em 65 quando da ditadura.

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Podemos observar nos números acima que só viemos a sentir, de fato, o impacto dos periódicos ligados à academia a partir do ano de 2003 em diante. Até 1998, houve uma média de 1 revista por ano, chegando a 5 entre 1999 e 2002. A partir daí, a média duplica para mais de 10, desenhando o atual cenário brasileiro.

Gráfico 7: número de periódicos acadêmicos ativos / ano

Tal irregularidade apenas deixa exposta a fragilidade institucional pela qual ainda passam nossas escolas de arquitetura. Nem sempre atingindo sucesso, algumas revistas buscam superar essa condição endógena, a exemplo do que afirma o Editorial da revista paulista Risco: (a revista Risco) Tangencia, portanto, algumas das preocupações levantadas por uma geração mais recente de revistas ligadas a instituições de ensino e pesquisa que em sua irregularidade e dificuldades de existência revelam o mal estar de um campo de conhecimento que só parece firmar-se no país nos contínuos curtos-circuitos que acompanham a sua história cultura. 49 A assinatura de tais periódicos é quase uma irrealidade no país – diferentemente do que ocorre com revistas científicas de outras áreas, gerando um abismo entre a comunidade arquitetônica e os debates que ocorrem em seu seio. Seu lado positivo, contudo, é que por não ter caráter comercial e estarem comprometidas com a expansão do conhecimento em direção à sociedade como um todo, em sua enorme maioria possui conteúdo para livre acesso na Internet. Apesar do Índice Brasileiro de Arquitetura - IBA50, administrado pela biblioteca da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, possuir um importante índice de alguns periódicos acadêmicos, sua abrangência ainda é muito limitada. O que ajudou a pesquisa foi, afinal, o uso corrente da tecnologia do “Open Journal System”, paradigmático no processo de digitalização do conteúdo dessas bases para consulta. Com acesso facilitado, pudemos iniciar minha busca de quais periódicos analisar a partir de dois critérios cruzados: a presença do periódico no Índice; e na lista dos periódicos mais relevantes, segundo avaliação do Sistema WebQualis, ligado ao CAPES – Coordenação 49 50

______. Editorial. RISCO, n. 1, p. 03, jan./jun. 2003 http://143.107.16.155:88/index.htm

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de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.51 Certamente, orientar-se apenas por um órgão de avaliação científica, ainda mais na área das ciências sociais aplicadas, é risco calculado. Essa problemática pode ser mais bem vista no artigo “A universidade e a crítica de arquitetura no Brasil” de Abílio Guerra, de 2014.52 O autor mostra como a pressão por “produtividade” estressa o pensamento acadêmico, numa cobrança quantitativa irracional em muitos casos. É importante mencionar que a maioria absoluta dos críticos da velha geração está vinculada às mais tradicionais escolas de arquitetura do país. Mas, é perceptível que mesmo nossos principais nomes estão com o trabalho cada vez menos crítico, e cada vez mais histórico e teórico, pois o canal de veiculação desta produção acontece fundamentalmente dentro da universidade, em seminários, congressos, conferências e revistas acadêmicas. Com raras exceções, toda esta vasta produção é endógena, ou seja, circula exclusivamente dentro dos muros universitários. Se estou certo em minha opinião sobre a dimensão pública da crítica de arquitetura, podemos dizer que ela é rara e circunstancial em nosso país. Dado que confirma a afirmação do autor de que a relação entre crescimento vertiginoso do número de escolas de arquitetura e urbanismo no país e o aumento no déficit relativo de professores para atender a essa demanda é o estudo da CAPES que indica um aumento da taxa estudante/professor nos últimos anos, indo de 2,72 a 3,62 (em relação ao último triênio 2009-2011). 53 Apesar dessas questões, dado o confuso horizonte dos periódicos acadêmicos num país com centenas de faculdades, foi fundamental adotar algum parâmetro de localização das mesmas. Ainda assim, estudamos os critérios da CAPES para a avaliação desses periódicos a fim de compreender os valores que estávamos tomando por corretos, de maneira mesmo que indireta, em minha seleção das revistas a serem analisadas. Os critérios de qualidade Qualis consideram que até a categoria B4 (indo de A até C, com subcategorias como B3), os periódicos são relevantes para a área, dentro de uma série de definições como: periodicidade mínima semestral; 10 artigos por ano; 3 anos de publicação; entre outros. O critério B5 apenas atende aos critérios mínimos para a área, e o C, periódicos iniciantes que não os atendem. O cruzamento entre o sistema Qualis e o IBA permitiu-me identificar 18 periódicos de interesse, em que apenas 5 aparecem em ambos, havendo duas revistas que não aparecem no sistema da CAPES: Topos e Caderno de Arquitetura Ritter dos Reis. Fato importante foi que nenhuma delas integrou o grupo A, sendo a maioria parte do B2. Da lista inicial, eliminamos a Revista Ambiente Construído (UFRGS) por se focar na questão da 51

http://qualis.capes.gov.br/webqualis/principal.seam

52

GUERRA, Abilio. op. cit., loc. cit.

53

CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Avaliação Trienal 2013: Critérios de Avaliação. Área de atuação: Arquitetura, urbanismo e design. Disponível em: http://qualis.capes.gov.br/webqualis/publico/documentosDeArea.seam?conversationPropagation=begin. Acesso em 10 mar 2015.

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tecnologia e construção enquanto publicação da ANTAC (Associação Nacional de Tecnologia do Ambiente Construído). Podemos concluir desde já que assim como os blogs e sites, os periódicos acadêmicos são espaços muitas vezes frágeis e dependentes de uma burocracia institucional e uma organização acadêmica não fácil de ser conseguida, pecando pelo “amadorismo na dinâmica de redação, da produção e circulação dos periódicos”54. Ainda assim, são especiais espaços de prática de uma crítica de alta qualidade. Nas palavras de Ana Luiza Nobre: Nunca pensei em dar aula, mas foi o espaço que encontrei: o espaço de liberdade da escola. Sobretudo no Brasil, onde não há muitas outras possibilidades, o ambiente acadêmico é o melhor espaço para a crítica, a discussão e a reflexão. E é fundamental que seja assim.55

1.4.1 Os periódicos Via de regra, os periódicos não apresentam grande variação em suas linhas editoriais, pelo menos não em suas apresentações iniciais, onde em geral se propõe à divulgação de trabalhos científicos relacionados à teoria, crítica e história de arquitetura, ou à atividade de ensino, pesquisa, etc. Algumas delas, como a RUA, são verdadeiros pontos fora da curva, e discutem complexas questões relativas à deriva urbana, cinema e percepção do espaço público. Outro ponto fora da curva é a revista PÓS, da Universidade de São Paulo, que apesar de amplo espectro temático, não foram encontrados artigos de crítica de arquitetura dentro dos critérios adotados. Realmente impressiona a ausência de tais artigos na revista mais longeva e ligada ao mais importante programa de pós-graduação em arquitetura e urbanismo no Brasil. Não que não tenha qualidade (tem, e muita, inclusive gráfica), tratando muito bem de temas como urbanismo, com muitos textos primorosos. De qualidade acima de qualquer dúvida, o periódico colocou em questão os métodos de triagem. Porém temos a certeza de termos sido suficientemente lúcidos (voltamos ao periódico mais de uma vez atrás de artigos estritamente críticos, de análise de um objeto arquitetônico), podendo afirmar que o problema talvez esteja no foco do periódico, que não é o artefato arquitetônico, mas talvez sua inserção na cidade, questões do ambiente construído, história da arquitetura, etc. De todas as formas, não seria exagero supor que certa proximidade à produção mais representativa de nossa arquitetura contemporânea aqui e fora do país possa constranger um desvelamento crítico dos pares, com quem muitas vezes se dá aula lado a aula na Academia. O contraponto necessário é o Caderno de Arquitetura Ritter dos Reis, do Rio Grande do Sul - outro importante pólo de crítica no país, senão o principal na atualidade. Apesar de pequena em número de edições (ao total foram publicadas 8 revistas em 12 anos de existência), ela é exemplar na divulgação de artigos críticos da mais alta categoria, chegando 54

Hugo; GAVA, Maristela. op. cit., loc. cit PERROTTA-BOSCH, Francesco; MAIA, Gabriel K.; MENEGUETTI, Mariana; AZEVEDO, Valmir; MAIOLINO, Carolina. op. cit., loc. cit.

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a ter uma edição-livro totalmente dedicada ao tema.56 Uma jóia num cenário às vezes fastidioso. Outro exemplo do sul é a Arqtexto, da UFRGS, a única que teve pelo menos um artigo crítico por ano desde sua fundação. Vale a pena comentar também sobre a Óculum ensaios, revista ligada à Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Ela é uma espécie de caminho divergente de sua predecessora, a Óculum, que marcou o primeiro período de nosso estudo por sua vanguarda e qualidade de conteúdo. Após ter passado pela efêmera experiência do Boletim Óculum, a revista original virou o Portal Vitruvius, porém teve seu nome preservado quando da institucionalização de seu legado pela faculdade de onde se originaram seus fundadores. Essa derivação não foi, contudo, fluida. Houve um período de estagnação até que pudesse ser publicada com periodicidade até hoje. Também certo giro editorial marca o fim do teor original da Óculum, que perde o foco na crítica e teoria arquitetônicas, e passa a discutir Gestão Urbana, História do Pensamento Urbanístico e Requalificação Urbana. Por fim, podemos concluir que apesar de metade delas ainda estar em circulação, são um suporte vigoroso de nossa crítica. Ao longo de seus 23 anos de existência enquanto fato editorial, vemos que São Paulo possui 1/3 de todos os periódicos publicados; Minas Gerais e Rio Grande do Sul, 1/6; Bahia 1/9 e Rio de Janeiro e Distrito Federal apenas um periódico do total cada um, fato que surpreende negativamente, especialmente no caso carioca, ainda mais se considerarmos que hoje alberga alguns dos mais importantes nomes da crítica nacional. Tomando como critério o número de periódicos publicados por faculdade, teremos um empate entre São Paulo e Rio Grande do Sul com três cada, seguida de Minas com duas, e os outros estados empatados com apenas uma unidade – em suas respectivas capitais. Esse último cenário indica uma equiparação, em termos de escolas, entre o estado gaúcho e o nosso. Contudo, se formos comparar o número de artigos publicados, e a enorme assimetria entre estrutura e publicações das revistas da Universidade Ritter dos Reis e a Pós da FAU USP, chegamos à conclusão que pelo menos na área da crítica de arquitetura, a região sul tem maior espaço de discussão.

1.4.2 Duas importantes exceções À parte dos periódicos citados, existem dois pioneiros que apresentam uma constituição híbrida: ou dividem o espaço da arquitetura com arte e história da arte e arquitetura – caso da carioca Gávea; ou tem sua fundação no espaço estudantil, apesar de contarem com a colaboração de recém-formados e professores, caso da Óculum. A primeira já nasce institucionalizada, ligada ao Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil da PUC-Rio em 1985, chegando a seu fim em 1997. Sua criação precoce está certamente ligada ao fato da mesma tratar com ênfase do tema da arte arte, especialmente sobre período barroco, o que de alguma forma pode ter atraído para seu campo editorial a 56

KIEFER, Flávio; LIMA, Raquel Rodrigues; MAGLIA, Viviane Villas Boas. Crítica na Arquitetura. V Encontro de Teoria e História da Arquitetura. Porto Alegre: Editora Ritter dos Reis, 2001.

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arquitetura, porém mais como efeito colateral do que tendo na disciplina seu objeto principal de estudo. Ainda assim, ela apresenta importantes traduções de textos seminais na cultura arquitetônica da época, de autores como Kenneth Frampton e Anthony Vidler. Já a Óculum, também fundada em 1985, é um nobre exemplo do ímpeto de parte da classe estudantil em atualizar os debates sobre arquitetura, de certa forma tímidos durante a polarização política da ditadura, e que apesar de dizer-se de “arquitetura, arte e cultura”, o predomínio da primeira área sobre as demais é flagrante. Mesmo sendo uma articulação de estudantes e ex-estudantes, lançou ao mercado editorial e à prática acadêmica relevantes nomes de nossa arquitetura atual, como Abílio Guerra, Renato Anelli e Francisco Spadoni, além de impressionar pela quantidade de textos traduzidos, como o “Visions unfolding: architecture in the age of electronic media” de Peter Eisenman, mostrando-se assim alinhada aos debates internacionais de sua época, e também nacionais. As entrevistas feitas por Éolo Maia, Jô Vasconscelos e Sylvio de Podestá logo na primeira edição, mostram tal atualidade. Anos mais tarde, quando vira Boletim Óculum, ganha um tom muito mais jornalístico de notícias, e perde caráter teórico e crítico. A esta altura vale a observação de que cada vez mais os periódicos acadêmicos e seus respectivos cursos sofrem as pressões do modelo produtivista de educação, que através do balizamento de critérios CAPES solicita desses espaços um volume de artigos e papers cada vez maior, nada ou pouco importando afinal o teor crítico e questionador que as mesmas possuem Tais pressões vão de encontro à liberdade que o pesquisador tem de desenvolver suas pesquisas em seu próprio ritmo, a partir de suas decisões de divulgação e encaminhamento de conclusões.

1.5 Arquitetura no campo editorial da cultura Outras bases consultadas foram aquelas consideradas as revistas de cultura, artes, filosofia, etc. mais importantes do Brasil, no caso: Bravo!, CULT, Piauí, e serrote. Fato interessante é que enquanto as duas primeiras são de 1997 e tem seu espaço ocupado por críticos de mais experiência, como Lauro Cavalcanti, as duas últimas surgem em 2006 e 2003, respectivamente, e são espaços muito importantes para a publicação de textos de jovens pensadores de arquitetura, caso de Fernando Serapião e Guilherme Wisnik. Comecemos pela Bravo!, quiçá a mais importante revista cultura do país até o ano de seu fechamento, em 2013. Sua missão anunciada é nobre: Bravo! restabelece o espaço da devido e dignamente amplo que requer a crítica de artes e espetáculos, essa desaparecida, no país.57 Podemos dizer, contudo, que em certa medida ela fracassa, uma vez que diz-se a “primeira revista brasileira inteiramente dedicada a todas as artes”, mas com frequência ignora a arquitetura. Em sua divisão interna, cada grande arte tem um espaço fixo chamado “Crítica”, menos a arquitetura, que ao fim compareceu no Índice deste trabalho com apenas dois artigos, dentre não mais que vinte que falavam direta ou indiretamente sobre o tema. 57

______. Editorial. BRAVO! São Paulo, n.1, p. 04, 1997

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Diferentemente da revista de mesmo ano de nascimento, a CULT existe ainda hoje, focando-se mais em temas ligados à literatura, tendo a crítica sido desde sempre muito valorizada, em sessões estáveis como “fortuna crítica” e “biblioteca imaginária”. Apesar de ter acesso muito restrito, tanto pelo site quanto nas bibliotecas da USP, pudemos notar que não fala de arquitetura em nenhum momento. Fala de música, fotografia, exposições, e a única referência mais ou menos próxima foi um artigo sobre a relação afetiva de alguns artistas/escritores com Brasília, como a escritora Clarice Lispector. Mais ou menos próxima do viés literários da revista anterior, a serrote, periódico com quatro publicações ao ano, não tinha nenhum texto ligado à arquitetura, apesar de sua enorme qualidade nos temas que trata. Por fim, a Piauí foi aquela que mostrou maior permeabilidade às discussões sobre arquitetura e que possibilitou aerar os espaços fora daqueles restritos ao profissional arquiteto. De tiragem mensal, a revista tem tom de crônica, meio pessoal, meio verídica, meio surreal, meio “causos”. Encontramos Fernando Serapião em sua melhor forma, com uma escrita deliciosa com algum tato jornalístico, descrevendo os bastidores da realidade arquitetônica no país, desenvolvendo um estilo generoso e antenado. Porém essa maneira de retratar a profissão, corriqueira como que numa conversa de bar, parece não conseguir amplificar as verdadeiras contradições da arquitetura brasileira. Ao escrever como quem não precisa falar de arquitetura, o autor não aproveita tais espaços numa formulação crítica mais ampla. De forma geral, as colunas de arquitetura aparecem com frequência, fato muito positivo. Todos os artigos são do autor já citado, à exceção de três, um sendo de Guilherme Wisnik, outro de Paul Goldberger, e um outro de Gilberto – possível pseudônimo não identificado. Serapião ainda tem três textos em coautoria com Danuza Leão. A edição 14 possui quatro textos monográficos da série “Da Barra ao Flamengo”, sobre obras de arquitetura cariocas.

1.6 O pensamento estudantil Foi muito difícil trabalhar com as revistas estudantis por dois motivos principais: _dificuldade no rastreamento das mesmas, ou seja, na própria identificação de seu nome e existência, por serem experiências às vezes muito fugazes e de curta duração (às vezes apenas uma gestão do grêmio estudantil, que pode durar um ano); _mesmo que identificadas, é difícil encontrá-las para consulta. Fisicamente é muito raro que cheguem a ser arquivadas na biblioteca, em geral encontram-se ou no próprio arquivo do grêmio ou se perdem com o tempo, permanecendo apenas acervo pessoal dos estudantes ou ex-alunos. Em termos digitais é pior ainda, pois é muito raro senão impossível, que uma revista seja levantada e escaneada pelas novas gerações. Claro que existem aquelas que já nascem com versão digital, ou acompanhadas de blogs, mas essas são experiências muito mais recentes; 41


Por essas razões, localizar e ler uma revista estudantil seria praticamente o mesmo que visitar cada universidade atrás da mesma, numa espécie de busca campal sem resultados garantidos. Por isso lemos apenas a Caramelo, dos estudantes da FAU USP, e a NOZ, dos da PUC-Rio, tanto pelo impacto e importância de ambas em seus respectivos contextos, quanto pela facilidade de acesso e sua disponibilidade na biblioteca da FAU ou na Internet. A primeira marca toda uma geração de arquitetos paulistas, e teve longa existência, sendo publicada de 1990 a 1998. Reúne depoimentos, traduções e alguns textos dos próprios estudantes. Gira em torno de uma espécie de desilusão da arquitetura da época. Paradigmática é a segunda edição, de 1991, que fala das repercussões do pavilhão de Sevilha na arquitetura nacional como um todo, e na faculdade em específico. Também chama a atenção o texto “Dois olhares sobre a crítica”, de dois estudantes que com enorme lucidez e algum amadorismo descrevem a o exercício da crítica, atual ainda hoje: Criticar significa, na realidade, apreender a fragrância histórica dos fenômenos, submetê-los ao crivo de uma rigorosa avaliação, revelar as suas mistificações, valores, contradições e dialéticas íntimas, fazer explodir toda a sua carga de significados. (...) Ao se negligenciar a História e, com ela, o processo riquíssimo da dialética entre o subjetivo – repertório do arquiteto, interesses pessoais, soluções em potencial – e o objetivo – questões colocadas pelas necessidades do projeto e realidade do mesmo, o crítico acaba se limitando a descrever as características físicas da obra e, eventualmente, aventura um elogio (duvidoso) aqui, outro ali. Isso é muito ruim, porque temos a sensação de estar diante de uma “crítica de catálogo”. Uma crítica disposta a vender um produto. Talvez isso se deva ao fato de, no Brasil, ingenuamente, confundir-se crítica profissional com ataque pessoal. Daí temos a impressão, ao lermos as críticas, de que tudo vai bem, que não existe crise na arquitetura brasileira. Mas todos sabemos, consciente ou intuitivamente, que esse bem estar aparente é ilusório. Um fato recente exemplificou o que quero dizer: a controvérsia em torno do projeto vencedor para o Pavilhão Nacional de Sevilha. (grifo nosso)58 A revista NOZ inicia suas atividades em 2007 e permanece até hoje. Revista de amplo escopo editorial, conduzido pela arquitetura, propõe uma “reflexão crítica sobre a realidade urbana e a prática da profissão”. Aparentemente teve apenas quatro edições. Logo no Editorial da primeira edição eles mostram seu desejo de institucionalizar-se juntamente ao curso de Arquitetura da PUC, também novo, de 2002 – marcas do tempo, num presente em que o teor revolucionário e vanguardista dos periódicos estudantis parece ceder certas posições para uma precoce estabilização burocrática. De todas as formas, nas poucas edições que tivemos acesso59, pudemos observar sua alta qualidade gráfica e de conteúdo. 58

GONÇALVEZ, Adalto C.; SILVA, Fábio Duarte de Araújo. Dois olhares sobre a crítica. Caramelo, São Paulo, n. 2, p. 70/72, out. 1991

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O site original www.revistanoz.com não está no ar, porém tive acesso à primeira edição no site http://issuu.com/revistanoz/docs/noz1

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1.7 Muito texto, pouca crítica e um blog Antes de falar do universo digital, falarei um pouco dos critérios que foram desenvolvidos a fim de lidar com essa plataforma sui generis. O primeiro movimento foi na direção de definir palavras-chave genéricas e amplas para encontrar o que sobressaia do infinito mar de sites que se dispunham a ser vistos nos acessos. É importante destacar que, diferentemente das outras mídias, na Internet não fomos capazes de destacar um universo amostral para então triar os artigos e sites que deveriam ser consultados, muito pelo contrário. O processo pressupôs identificar picos num horizonte de baixo relevo, selecionando os websites que se destacassem exatamente por ser aqueles com maior número de acessos, referência dentro de outros sites, etc., tendo assim maior e real impacto na discussão crítica da arquitetura. Nessa busca inicial, desenvolvida a partir do maior site de buscas do mundo – o Google – usamos termos como “blog arquitetura”, “crítica arquitetura” e “análise arquitetura”. Como dito anteriormente, o importante foi compartilhar com o sistema de buscas um critério de visitar apenas os sites mais visitados e de maior visibilidade. Desta forma, de nada adiantaria encontrar um blog com alguns artigos críticos se ele foi visitado por dez pessoas ao longo de cinco anos de existência. Ainda assim, visitamos todos os links apresentados até a quinta página do Google. Essa primeira aproximação permitiu que déssemos início à segunda – e mais importante – estratégia de seleção dos sites. É comum que eles tenham uma barra com links de uma série de outros sites considerados relevantes. Esses links fazem exatamente isso: linkam os diversos sítios entre si, gerando uma espessa rede de intercitações e conexões, uma verdadeira “rede de blogs”, cuja sobreposição de sites, ou nós, vai indicando que o mesmo saiu vitorioso de uma série de crivos pessoais dos autores dos sites que o citam. Desta forma foi relativamente fácil identificar os locais mais importantes da rede, cuja relevância foi-se mostrando justificada. Além disso, há o fenômeno da “redundância de artigos”, quando um mesmo texto é reproduzido em mais de uma fonte, desdobramento desse sistema de vasos comunicantes, a exemplo da entrevista do arquiteto chileno Alejandro Aravena à revista Projeto/Design60, que foi tema no blog parede de meia e o pau da barraca. Enfim, essas conexões geram também um clima de cooperação na rede, pois questões de sobrevivência econômica e competição raramente entram no cálculo. Além do que, uma vez experimentada certa liberdade, é comum lermos críticas às velhas mídias, das revistas impressas, jornais, etc. Mas falemos do que encontramos nessa primeira triagem. Identificamos que existem algumas categorias gerais de blogs, como os de organização de classe, sindicatos, prefeituras – ou seja, mais institucionais; os de estudantes e amadores da área; os de disciplinas de universidades que postam ali textos e debates entre alunos e professores; enfim, categorias que por apresentarem ou foco em questões mais noticiosas da profissão, ou temas muito restritos de uma disciplina universitária, não foram considerados, caso do interessante site “Arquitetura, humanismo e República”, da UFMG.61 Ainda, blogs de teor muito experimental e autoral como o www.cosmopista.com foram descartados, por possuírem pouca consistência teórica e rigor metodológico. 60 61

ARAVENA, Alejandro. Entrevista. Projeto/Design, ed. 347, 2009, pp.4-7 http://www.arq.ufmg.br/ahr/index1024.html

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Blogs de sátira também foram desconsiderados. Sabemos da importância da ironia e escárnio no campo da crítica, apenas desconsideramos por entender que esse é um instrumento muito específico, não-sistemático, que apesar de levar a debates raramente ou nunca sustenta um. É uma espécie de gatilho, forma muito própria de crítica negativa, em geral associada à imagem-síntese de impacto. O maior exemplo desse gênero é o www.arquitetumba.blogger.com.br. Em suma, podemos dizer que sites claramente voltados a temas como decoração, design de interiores, materiais de construção, assim como aqueles de informação e notícias do mundo da profissão, não foram analisados. Vale dizer que mesmo dentro dos blogs esses temas ou formatos poderiam existir, porém sempre procurei ignorar posts opinativos, que falassem de veleidades ou com pouca consistência. Assim, a Internet é possivelmente a mídia com maior impacto na divulgação e discussão da arquitetura a partir do último período estudado, de 2000 até 2010, quem sabe até hoje. É quase unânime a afirmação de que a Internet é um valioso espaço da crítica no Brasil e no mundo, por apresentar uma série de vantagens sobre as mídias mais tradicionais. A primeira delas é a gratuidade da produção: a menos que se queria pagar por um domínio específico, sem pop-ups62 e inconveniências do tipo, a criação de websites gratuitos é acessível a todos e são feitos com relativa facilidade. Além disso, esse formato permite grande autonomia a seus autores. Prescinde-se de um corpo editorial que restrinja e selecione os artigos a serem publicados, favorecendo maior liberdade de criação, escolha de temas, diagramação da página, links e referências, etc. Ainda, a mecânica imediata de escrita-divulgação permite que haja uma atualização diária do conteúdo do blog ou site, que passa a ter acesso virtualmente irrestrito por qualquer computador no mundo inteiro, tornando-se desta forma internacional mesmo sem o querer. Em singular entrevista, já comentada na pesquisa, a crítica carioca Ana Luiza Nobre fala de como a Internet tornou-se um espaço mais adequado para a prática da crítica no país, da grande autonomia que se tem com ela e, talvez o mais valioso, a “liberdade para pensar” 63que juntamente com a capacidade de publicação na hora de sua escrita, permite uma prática cotidiana e sistemática de crítica na rede. Em suas palavras: Eu fazia sozinha, tirava as fotos, botava no ar, eu via uma coisa agora e em dois minutos ela estava no mundo. Então isso é extraordinário, que a gente tem essas possibilidades também, essas ferramentas. Agora, o filtro fica mais frágil, porque vira qualquer coisa, qualquer um fala qualquer coisa, qualquer um escreve qualquer coisa eu não tenho nem tempo de maturação e aquilo já esta no ar.64 Nessa mesma linha, Ruth Zein afirma que “Os sites de arquitetura são hoje o espaço mais flexível e apropriado para o debate e a crítica.”65 Se somarmos a isso a decrescente importância das revistas de arquitetura concluímos que juntamente aos periódicos acadêmicos, foram os sites que sustentaram a crítica de arquitetura a partir de 2000. Contudo, certo otimismo inicial deve ser visto com mais cautela. Não devemos relacionar de maneira automática liberdade de publicação com livre pensar, ou autonomia 62

Janela que abre quando visitamos um site, em geral ligado à publicidade. PERROTTA-BOSCH, Francesco; MAIA, Gabriel K.; MENEGUETTI, Mariana; AZEVEDO, Valmir; MAIOLINO, Carolina. op cit., loc. cit. 64 NOBRE, Ana Luiza. Entrevista pessoal ao autor Jaime Solares Carmona. ANEXO A. 65 Debate. Cinco perguntas aos críticos de Arquitetura. PROJETO/DESIGN, ed. 266, abr 2002, p. 35 63

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com qualidade expressiva. O processo de amadurecimento do campo crítico na Internet pressupõe um esforço pessoal enorme, dado que a maior parte dos blogs aqui estudados não é composta por mais de um autor, podendo muito facilmente recair em espaço de tergiversação da vida pessoal e das coisas da arquitetura, longe de qualquer rigor formal ou critério razoável de seleção de temas a ser discutidos. Cada uma das vantagens dos sites apresenta seu oposto imediato. Se por uma lado é interessante o fato de não haver uma linha editorial que possa restringir a produção de textos, por outro essa ausência pode provocar uma leviandade infértil de conteúdo. Além disso, passada meia década da criação de alguns blogs, os autores já demonstram como sua promessa de “romper a barreira entre arquitetura e sociedade” não se concretizou. Em entrevista, quando perguntado se conseguiu proceder a tal aproximação com o público, Edson Mahfuz fala: Não consegui, pelo que eu noto, não consegui. Até porque seria querer muita coisa que uma pessoa apenas, escrevendo de vez em quando num blog que não tem muita divulgação, mudasse alguma coisa. Mas o que eu noto é o desconhecimento piorando cada vez mais, porque embora – como eu já disse em vários outros lugares – embora a arquitetura nunca tenha tido tanta exposição, essa exposição ela não é uma exposição que beneficia a arquitetura.66 Infelizmente o que pudemos notar em nossa pesquisa foi que o comportamento geral dos blogs é um tanto efêmero, quer seja pelo seu tempo de duração, como pelos temas discutidos e o formato de divulgação. Notas, comentários, opiniões e algum bate-boca dão o tom desses locais virtuais de debate. Se para o fim de uma revista o anúncio é lento e pressupõe uma enorme responsabilidade para com os assinantes, funcionários, leitores esporádicos e comunidade arquitetônica em geral, nos sites o fechamento de expediente não costuma dar aviso prévio. Assim como nasce em horas, morre em minutos. Neste universo em específico, a questão da credibilidade da fonte, a diferença entre crítica e doxa67, a predominância de recursos visuais em detrimento de textos, etc. vão mudando paradigmas e quiçá parâmetros do que poderia ou não ser considerado crítica. Entra a questão: réplicas e tréplicas podem ser consideradas críticas? Também há uma particularidade fundamental: a questão das séries de artigos, ou seja, da seqüência de posts sobre um determinado tema discutido em diversas abordagens ou momentos. Um exemplo é a série “Privacidade” do blog O pau da barraca68. São posts que não deveriam ser lidos individualmente, pelo menos não em uma perspectiva crítica. Ou seja, eles são pensados e formatados para o blog, mas devem ser considerados um só texto. Além disso, a Internet possui uma dinâmica talvez ainda pouco compreendida numa perspectiva histórica, de colossal banco de dados que no fundo é pura virtualidade. Se foi um enorme incêndio que exterminou a maior biblioteca da Antiguidade, hoje pode ser um mero vírus, uma chuva que afeta os cabos de rede, ou um problema no servidor que fazem apagar, do dia para a noite, um site inteiro. Como veremos mais adiante, uma simples reestruturação de site deletou artigos preciosos no debate crítico nacional. Às vezes até questões administrativas, de fim do pagamento de uma hospedagem ou expiração de seu tempo de uso podem eliminar da memória da humanidade um site inteiro. Isso demonstra como o mundo virtual é frágil, e depende de um importante esforço pessoal, como já dito, 66

MAHFUZ, Edson da cunha. Entrevista pessoal ao autor Jaime Solares Carmona. ANEXO B. Termo grego que se refere ao senso comum, ou seja, à opinião corrente que, segundo Platão, se opõe à buscada do conhecimento, à episteme. 68 http://opaudabarraca.blogspot.com.br/ 67

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pela constante atualização dos blogs, o que em geral se torna antes um projeto individual do que um esforço coletivo, salvo raríssimas exceções. Essa fragilidade do meio virtual é tema que merece maiores estudos posteriores. No gráfico abaixo podemos analisar melhor essa questão. O tempo médio de vida de um blog é de 6 anos, variando de 4 (Coisas da Arquitetura69) até 10, caso do mdc. Desconsideramos, para essa média, o site vitruvius pois ele é uma situação à parte, iniciando suas atividades muito antes da maioria – cujo ano médio de formação é 2007 – e ainda ativo, caso de apenas 30% dos blogs visitados.

Gráfico 7: tempo de atividade dos sites

Dos dez blogs considerados, podemos falar que metade deles trazem contribuições críticas de qualidade, sendo um deles escrito nos Estados Unidos pelo Professor Fernando Lara – o parede de meia70 - e os outros quatro distribuídos em território nacional, dois no Rio de Janeiro (Coisas da Arquitetura, do Prof. Silvio Colin, e o Posto 12, da Professora da PUC Ana Luiza Nobre) e um do Rio Grande do Sul, do arquiteto Edson Mahfuz – o Falando de Arquitetura71. Além deles, há O pau da barraca, já citado, do Professor da Universidade de Itaíuna, Sérgio Machado, um dos únicos espaços, das revistas, sites e mídias em geral, que analisa um companheiro crítico, em seu paradigmático texto “Um exercício de metacrítica 69

https://coisasdaarquitetura.wordpress.com/ http://parededemeia.blogspot.com.br/ 71 http://usuarq.blogspot.com.br/ 70

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ou, três momentos de Fernando Serapião”72 Aproveita a liberdade que só um blog possibilitaria para criticar frontalmente o editor-chefe da, talvez, então mais importante revista de arquitetura do país, a Projeto/Design. Enfim, a primeira coisa que podemos notar é que os quatro nomes são personagens importantes da crítica nacional em sua atuação fora da Internet, estão ligados à docência e desenvolveram certa compreensão do alcance e, quiçá, dos limites dos sites nessa discussão. Nas palavras do professor gaúcho: Este é um blog escrito por um arquiteto para não arquitetos. Seu propósito é reduzir o abismo de incompreensão que existe entre o Arquiteto e a sociedade, discutindo alguns temas próprios da arquitetura e do urbanismo e das suas relações com os seus usuários.73 O que pudemos sentir, todavia, é que nem todos os blogs tem tal consciência de sua atuação. O paraibano ArqPB74, por exemplo, apesar de ser uma notável exceção por expor idéias e arquiteturas do Nordeste do país, é amador, e sabendo disso, equilibra algum tom de autopromoção do autor com certo respaldo encontrado na figura do sempre citado José Wolf, primeiro editor-chefe da revista AU em sua fase mais experimental. Experimentalismo esse que lembra de alguma forma o caráter ousado e a enorme qualidade gráfica e temática da mineira mdc75 que desde o começo surpreendeu. Ela se propõe a ser uma revista digital – apesar de ter versão impressa – que convida relevantes nomes do projeto e pensamento arquitetônicos em geral, promovendo mesas-redondas e disponibilizando os vídeos para consulta. É uma pena que tal iniciativa tenha terminado em sua quarta publicação. Por fim, falaremos de dois sites quase opostos: o Blog do Alencastro76 e o concursos de projeto77, ambos sem filiação regional definida. O primeiro foi o enfant terrible da arquitetura paulistana nos anos de sua existência, analisando com ironia e acidez a produção da arquitetura brasileira recente, do comportamento dos críticos de arquitetura – caso emblemático foi a já citada série de avaliações feitas em relação ao desempenho de Guilherme Wisnik no Folha de São Paulo -, e do estado da arte da profissão em geral. Já o segundo prima por sua neutralidade de posições, por sua função de utilidade pública, divulgando concursos e seus resultados, e reservando os espaços “Ensaios e Debates” e “Pesquisas e Publicações” para textos de teses e dissertações, ou apenas pesquisas oportunas, sobre os temas tratados, quer sejam: sustentabilidade e os concursos de arquitetura, os pavilhões do Brasil em feiras internacionais, etc.

72

http://opaudabarraca.blogspot.com.br/2010/03/um-exercicio-de-metacritica-ou-tres.html Ibidem. 74 http://arqpb.blogspot.com.br/ 75 www.mdc.arq 76 http://blogdoalencastro.blogspot.com.br/ 77 http://concursosdeprojeto.org/ 73

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1.7.1 Um obelisco impressionista Certamente foi essencial separar algum espaço de honra para aquele que seria o mais longevo e relevante blog de arquitetura do Brasil: o Portal Vitruvius78. Criado em 2000 por Abílio Guerra, o site foi considerado o marco fundamental da última década no campo editorial brasileiro, e acumula uma experiência de mais de uma década em organizar e divulgar, nas suas diversas seções que vão de notícias até turismo e arquitetura, mais de mil artigos sobre arquitetura, urbanismo, paisagismo, design, etc. Não se apresentou, no recorte temporal considerado, outro site que conseguisse concorrer com seu protagonismo nacional. Fato que faz dele um oásis inquestionável. Isso indica dois fatos preocupantes: o primeiro é certa postura paternalista do site, que centraliza o cenário brasileiro de artigos sobre arquitetura e afins na Internet, absorvendo no mesmo espaço artigos contraditórios e anulando confrontamentos entre si; e o segundo, decorrência do primeiro, é a dificuldade de se articular outro espaço capaz de fazer frente ao blog, no que tange à exposição de textos e formulações por vezes críticas. Por isso o oásis é ambíguo. Com o título deste capítulo, que faz coro ao artigo de Lúcio Costa sobre o milagre brasileiro na fase heróica de nossa arquitetura, fica subentendida certa áurea de milagre ao redor do site. Assim como AU e Projeto são duas torres pluralistas, vitruvius é um obelisco que se assenta no desértico terreno dos blogs de arquitetura, porém diferentemente dos monumentos egípcios que eram materialmente pesados e homogêneos, o site é uma construção difusa, que concilia opostos e cauteriza crises que eventualmente se formam, decorrentes de seus artigos. Muitas vezes o editor precisa contrabalancear as forças que imergem e emergem no site, a exemplo da discussão referente ao artigo “Arquitetura moderna brasileira – enfim uma nova história”79 que gerou réplicas e tréplicas dos críticos mais importantes do país – a ponto de Roberto Segre indicar o episódio como um dos eventos representantes do amadurecimento da crítica nos últimos anos80 - levando o coordenador do site a publicar uma nota equilibrando o debate81. Infelizmente todos os artigos da sessão “a.c – arquitetura crítica” foram deletados quando da reformulação do portal, conforme fala Ana Luiza Nobre em entrevista. Além disso, auxilia na indefinição temática do blog sua seleção inclusiva, que gera uma lógica acumulativa de artigos, transformando o site num verdadeiro banco de dados. Essa característica rende ao mesmo uma enorme visibilidade - o que é positivo - porém aos custos de uma diluição infinita de seu material dentro de si mesmo, numa pulverização ainda mais pulverizada da própria Internet. Há uma consideração importante a ser feita a essa altura da análise. Não podemos classificar o Portal Vitruvius como um site que nasce e se desenvolve nos moldes de um blog típico – e talvez por isso seu formato tão relevante. Ele vem de uma genética das mais brilhantes, filho de terceira geração da revista dos anos oitenta Óculum, da qual fazia parte desde sua edição inaugural o próprio Abílio Guerra, além de colegas de faculdade. Uma reviravolta editorial ocorre quando da transformação do periódico em Boletim Óculum, ao 78

www.vitruvius.com.br Artigo de Ana Luiza Nobre e Haiffa Sabbag quando no comando da sessão “arquitetura.crítica” do site vitruvius em 2001. 80 SEGRE, Roberto. Cinco perguntas aos críticos de Arquitetura. PROJETO/DESIGN, ed. 266, abr 2002, p. 34. 81 GUERRA, Abilio. Historiografia da arquitetura brasileira (editorial). Arquitextos, São Paulo, ano 01, n. 010.00, Vitruvius, mar. 2001. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.010/905. 79

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fim dos anos 90, por motivos de aumento de custo de produção o que dificultava muito a manutenção da regularidade da mesma. Seguindo a sugestão de Marcos Tognon – como relata em entrevista dada em 2004 ao periódico acadêmico Arqtextos82 - o autor do blog resolve transformar a Óculum em uma revista mais ágil, com pequenos artigos de tamanhos fixos e textos de correspondentes fora do Brasil. Foi um sucesso. Assim, a rede de contatos que o boletim possibilitou, seu formato enxuto e seu baixo custo de produção indicariam o caminho natural que se seguiria quando da criação do Portal, onde ainda hoje prevalece a rapidez da leitura aliada a uma grande circulação de informações. As vantagens foram ainda maiores, incluindo, nas palavras do autor, “agilidade, rapidez e baixíssimo custo”. Com esse panorama colocado, podemos começar a entender a decadência pela qual começam a passar as revistas brasileiras de arquitetura e urbanismo, mas também as internacionais. Preocupadas pela redução do número de assinantes, elas ampliam cada vez mais o espaço para anunciantes, esgarçando a qualidade crítica, o que então leva a um desinteresse geral, e assim por diante. Nesse sentido, os blogs tem a honrosa posição de poderem ser um local de resistência à lógica do lucro, que, contudo, pode vir a ser um problema. Cabe lembrar que foi a razão financeira que levou ao fechamento da seção “arquitetura.crítica”, que, nas palavras do autor: (...) abriu as portas para editorias independentes, possibilidade que está congelada até o surgimento de uma situação financeira melhor.83 Ana Luiza Nobre, uma das coordenadoras desse espaço, afirmou para em entrevista à pesquisa que sua atuação era voluntária, assim como de sua colega Haifa Sabbag. É realmente uma infelicidade que hoje, mesmo com a livraria virtual e mais de 5.000 visitas diárias (dados de 2004, hoje o número facilmente duplicou), ainda não tenham sido criadas as bases materiais para reativação desse espaço único na Internet brasileira, dedicado exclusivamente à crítica de arquitetura. De todas as formas, o vigor da revista digital, com quinze anos de existência que incluiu uma remodelação interna no ano de 2010, é sintoma de sua excepcionalidade, que parece superar as contradições de estar na Internet em versão 2.0. Para finalizar, novamente trazemos as palavras do fundador do sítio web: Por fim, para não deixar de falar sobre meu trabalho como editor, penso que o portal Vitruvius se beneficia desta situação, pois é um espaço democrático de difusão da produção histórica, teórica e crítica na área de arquitetura. Mas eu seria leviano em não mencionar que percebo uma piora gradativa dos conteúdos que publicamos, como também é muito claro para mim que cada vez menos o que publicamos tem interface com a sociedade brasileira.84 Todo dia, a todo o momento, me pergunto: “vale a pena continuar?” Essa é a pergunta mais simbólica da era dos blogs. Como empreendimentos individuais, raramente envolvendo um corpo editorial maior do que duas ou três pessoas, os blogs dependem de uma disponibilidade e iniciativa nem sempre constantes na vida profissional de uma pessoa. No caso específico do vitruvius, levantamos a hipótese de que um otimismo inicial e monopólio tranqüilo (pelo menos até 2004 quando surge o mdc), consequência de um desrepresamento de tantos textos resultados de pesquisa e reflexões de 82

_____. Um depoimento: Abílio Guerra. Arqtextos, Porto Alegre, nº 5, p. 10 , jan./jun., 2004 Ibidem 84 Ibidem 83

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diversos autores que tiveram dificuldade em publicar nas outras mídias mais restritivas, foi sendo substituído por um marasmo e compreensão oportunista de que o portal era o espaço ideal para alguma autopromoção e publicação de textos nem sempre relevantes para a disciplina. Essa alta visibilidade automática foi um forte chamariz que gerou expressivo reaparecimento de vários artigos críticos, inclusive de décadas anteriores agora republicados, mas que teve impulso inicial perdendo força frente às próprias contradições de sua formação enquanto site.

1.8 Livros Originalmente usamos na seleção dos livros o mesmo método de triagem aplicado aos artigos. Ou seja, buscar aqueles que contivessem textos de análise crítica sobre determinada obra ou pensamento da arquitetura. Mas logo viu-se que era tarefa hercúlea, que inclusive pediria uma avaliação muito diferente, já que uma coisa é texto em livro, e outra é um artigo de poucas páginas. Decidimos, então, avaliar quais foram os livros mais influentes para a cultura arquitetônica brasileira nesse quarto de século (excetuando livros internacionais, pois senão nosso universo teria bordas inalcançáveis), ler aqueles que falassem de questões de teoria e crítica, e assim desenhar um panorama muito menos regular e organizado do que o que fiz com as outras mídias. Desta forma, não avaliamos o conteúdo crítico de tal ou qual obra, mas observamos que a maior parte das publicações sobre tais arquitetos ou obras fazia mais do que uma crítica sistemática das obras, uma análise de cunho histórico, prevalência que viria a se constituir com maior força nos anos 1990. Foi quando houve uma revisão historiográfica de nossa arquitetura e a busca pela justiça com os nomes além dos consagrados por uma história escrita “fora de nós”, que seria o caso da trilogia clássica formada pelos livros “Brazil Builds”85, “Modern Architecture in Brazil”86 e “Arquitetura Contemporânea no Brasil”87. Fora de nós pois as três “tiveram algum tipo de fecundação estrangeira.”88 Quanto à questão de como eles partiram de um pressuposto histórico formulado por Lúcio Costa, é tema que será tratado no próximo capítulo. De todas as formas, foram essas publicações, em menor ou maior grau, que balizaram nossa consciência acerca da produção brasileira, fato que começou a ser revisto já no primeiro período estudado, especialmente a partir de uma busca da pluralidade na arquitetura do país. Ainda assim, vale comentar que muitos dos livros produzidos, além de ter esse caráter predominantemente histórico – ou seja, de estudo de tal obra e autor segundo preceitos contemporâneos, olhando para o passado com olhar interessado, e problematizador – muitas das vezes analisam obras, até mesmo contemporâneas, através de comentários e observações descritivas de pouco impacto crítico. Pululam livros com aspecto de manual, uma simples coletânea de projetos, memoriais descritivos e observações 85

GOODWIN, Philip. Brazil Builds. Architecture New and Old 1652 – 1942. Nova York: MoMA, 1943. MINDLIN, Henrique E. Modern Architecture in Brazil. Rio de Janeiro: Colibris, 1956. 87 BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1981. 88 MACEDO, Danilo Matoso; ZEIN, Ruth Verde. Panoramas da Arquitetura Brasileira. mdc, 29 mar. 2011. Disponível em: http://mdc.arq.br/2011/03/29/panoramas-da-arquitetura-brasileira/ 86

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corriqueiras, superficiais e desinteressantes. Uma notável exceção é a coleção “Arquitetura Comentada”, da pequena editora C4, que convida importantes críticos da atualidade para analisarem, em edições monográficas, obras escolhidas de escritórios de arquitetura com relevo na produção atual.89 Lembra, de alguma forma, os paradigmáticos “Cadernos Brasileiros de Arquitetura”, lançados no IX Congresso de Arquitetura e que posteriormente passaram a ser publicados pela revista Projeto. Em que pese certa superficialidade geral, em termos de crítica de arquitetura, na produção editorial de livros no Brasil, esse mercado teve significativo crescimento a partir da redemocratização, apesar de ter sido menor do que a expectativa dos arquitetos, fato que podemos ver no balanço feito na primeira edição de 1990 da revista Projeto, especialmente na fala de Günter Wiemer.90 Na mesma ocasião, Hugo Segawa constata que o número de editoras que tinham espaço editorial dedicado especificamente à arquitetura quadruplicou. Via de regra, a crise econômica dos anos Sarney veio a corroer qualquer possível boom editorial advindo do otimismo da liberdade de imprensa, volta de importantes arquitetos exilados, descentralização das decisões econômicas, etc. Agnaldo Farias afirma, em mesmo artigo, que esse mesmo tal otimismo afetando todas as outras áreas do setor de publicações, deixando a arquitetura de fora, o que se exemplifica na não-tradução de textos como “Complexidade e Contradição em Arquitetura”, fato que só veio a se concretizar em 2004.91 Nesse sentido, podemos compreender que se certa timidez editorial era compreensível nos anos 80, hoje em dia é tema constrangedor. Segundo o crítico, a culpa seria de uma classe que não participa de um debate maior da cultura, aonde “Nossa taxa de leitura é rarefeita, nosso antiintelectualismo, militante (...)”92. Porém, se o renascimento das publicações sobre arquitetura nos anos 1980 não foi como o esperado, houve poucas e importantes editoras que se afirmaram à época, ainda hoje referência no mercado editorial em nossa área, como a Martins Fontes e a Pini. De todas as formas esse mercado viria a crescer de maneira mais expressiva na década seguinte, na onda das diversas teses e dissertações desenvolvidas quando da constituição dos cursos de pós-graduação no país, culminando em três fundamentais livros no fim dos anos 1990 e começo dos anos 2000, que de alguma forma fazem um balanço mais ambicioso da história recontada de nossa arquitetura. São eles “Arquiteturas no Brasil. 1900-1990”93, “Arquitetura Brasil 500 anos: o espaço integrador”94 e “Pós-Brasília: rumos da arquitetura brasileira: discurso, prática e pensamento”95, que podem ser consideradas “narrativas panorâmicas”, na classificação desenvolvida quando da série Panoramas da Arquitetura

89

As edições podem ser encontradas no site da editora: http://www.editorac4.com.br/ SEGAWA, Hugo. Os dez mais significativos livros de arquitetura dos anos 80; WEIMER, Günter. Otimismo, descrença, desencontros; TINEM, Nelci. Tarefa simples e complexa; FARIAS, Agnaldo Aricê. O boom editorial que não aconteceu. (PROJETO, ed. 129, 1990, pp. 46-53)

90

91

http://pt.wikipedia.org/wiki/Robert_Venturi SEGAWA, Hugo. Os dez mais significativos livros de arquitetura dos anos 80. op. cit., p. 51 93 SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil. 1900 – 1990. São Paulo: EDUSP, 1998. 92

94

MONTEZUMA, Roberto (org.). Arquitetura Brasil 500 anos : o espaço integrador = Architecture Brazil 500 years : integrating space. Recife : Universidade Federal de Pernambuco, 2002, vol. 1 e 2.

95

BASTOS, Maria Alice Junqueira. Pós-Brasília: rumos da arquitetura brasileira: discurso, prática e pensamento. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 2003.

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Brasileira” feita pelo site mdc a partir do Simpósio Temático Panoramas da Arquitetura Brasileira Moderna e Contemporânea organizado por Ruth Verde Zein no I ENANPARQ.96 Essa categoria focaliza esforços para articular num cenário mais amplo fatos históricos, obras, autores e ideias. O primeiro livro citado iria tornar-se, como dito na série, o vade mecum97da arquitetura brasileira, uma espécie de compêndio de consulta estruturado por verbetes. A maior contribuição do livro é, certamente, desmistificar uma visão totalizadora que prevaleceu em nosso campo histórico até então. Segundo Ruth Zein, a face crítica do trabalho surge quando da seleção e análise das obras e pensamentos que o autor desenvolve. A mesma autoria faria uma narrativa própria, uma década depois e juntamente com Maria Alice Junqueira Bastos, no livro “Brasil: arquiteturas após 1950”98. Ainda na esteira da pluralização, atentemos ao uso do termo “arquiteturas nos dois títulos. Ambos os livros compartilham um método de análise que prima pela descrição, defendida por eles como parte da análise crítica, argumento que não parece convencer Simone Sayegh em entrevista às autoras à revista Projeto/Design99, quando fala da exigência de uma “crítica mais preparada, com um estudo mais aprofundado” no cenário contemporâneo, ao que as autoras respondem falando que nunca existiu fórmula fácil, e que “não tem como ser crítica e não ser descritiva.” Não seria exagero dizer, e inclusive Hugo Segawa indica isso, que ambos os livros tem uma origem em comum num método jornalístico de apresentação e discussão de obras desenvolvido ao longo dos anos como colaboradores da revista Projeto, em que ambos foram figuras destacadas, e tem como antecedente o livro “Arquiteturas no Brasil, anos 80”. 100 Soma-se a isso o nome de Maria Alice Junqueira Bastos que, com seu livro fruto de sua Dissertação de Mestrado, faz um rico panorama da arquitetura brasileira após Brasília, articulando teoria, prática, contexto e debates da época. Outro caso paradigmático é o livro de Roberto Montezuma que faz um percurso histórico de meio milênio na arquitetura brasileira, começando pela arquitetura indígena até os dias de hoje. Seria esperado que um livro de tal magnitude – talvez o único do tipo, à exceção de alguns como o paradigmático “Quatro Séculos de Arquitetura”101 de Paulo Santos – se tornasse imediatamente um clássico. Porém não foi o que aconteceu. Pouquíssimo citado por seus pares, tem uma organização interna um tanto confusa graças à estratégia de convidar profissionais da área para lidar cada um com um período. Como por exemplo a análise de Marcelo Susuki da década de 80, praticamente um relato preconceituoso de tom anti-intelectual da época, marcada pelo debate pós-moderno no país. 96

Série disponível em: http://mdc.arq.br/2011/03/29/panoramas-da-arquitetura-brasileira/ Vade mecum é, de forma geral, uma denominação para qualquer livro de referência de uso muito frequente e que instrui o leitor a fazer determinadas tarefas. A palavra origina-se numa expressão latina que significa "vem comigo", "vai comigo", onde vade é vai em português, e mecum significa comigo, e é um termo oriundo do latim. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Vadem%C3%A9cum. 98 BASTOS, Maria Alice Junqueira; ZEIN, Ruth Verde. Brasil: arquiteturas após 1950. São Paulo: Perspectiva, 2010. 97

99 SAYEGH, Simone. Entrevista: Crítica brasileira. Ruth Verde Zein e Alice Junqueira Bastos. PROJETO/DESIGN, ed. 201, dez 2002, pp. 64-66 100

SEGAWA, Hugo; SANTOS, Cecília Rodrigues do; ZEIN, Ruth Verde. Arquiteturas no Brasil, anos 80. São Paulo: Projeto, 1988.

101 SANTOS, Paulo. Quatro Séculos de Arquitetura. Rio de Janeiro: Instituto dos Arquitetos do Brasil, 1981.

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Ao lado dessas grandes narrativas, dois fundamentais livros entrariam na categoria de coletânea de textos. São eles o já muito citado “Textos fundamentais sobre a história da arquitetura moderna brasileira” de Abílio Guerra – que, na posição privilegiada de ator sempre presente na história da crítica dos últimos vinte e cinco anos, seleciona com agudez os textos mais relevantes do debate sobre o modernismo, e o “Depoimento de uma geração – arquitetura moderna brasileira”102 de Alberto Xavier, publicado originalmente em 1987, mas reeditado em 2002 pela Cosac & Naify. Podemos colocar este último no grupo dos quatro livros mais citados do período, que inclui o de Hugo Segawa comentado acima, o “Urbanismo em fim de linha”103 de Otília Arantes, e o “Registro de uma vivência”104, de Lúcio Costa, também uma coletânea de escritos do importante arquiteto nacional. Pela cronologia de publicação das obras, notamos uma concentração dos livrosreferência ao fim dos anos 1990, parte de um balanço mais geral da história de nossa arquitetura moderna e que tem, talvez exemplo maior, a reedição do canônico livro “Arquitetura moderna no Brasil”105 de Henrique Mindlin, no ano de 2000. Interessa notar também que na publicação mais recente do livro de Alberto Xavier, os autores incluem textos sobre a querela que se desenvolveu nos anos 1950 acerca da arquitetura brasileira, especialmente em torno de Oscar Niemeyer, a partir de críticas de arquitetos estrangeiros como Walter Gropius, o que indica um enriquecimento da historiografia nacional a partir deste livro tão importante para esse movimento de revisão. Ainda na categoria de catálogos, é importante citar os dois livros modelares que se conformam enquanto antologia dos textos críticos de dois importantes pensadores contemporâneos de arquitetura brasileira, quer sejam, Edson da Cunha Mahfuz, com seu “O erótico, o poético e o erótico e outros ensaios “106, de 2002, ou Ruth Verde Zein com seu “O lugar da Crítica: ensaios oportunos de arquitetura107. Por fim, há os catálogos de obras que parecem ter crescido nos últimos anos, por serem edições “prontas para o consumo”, com muitas imagens e pequenos textos de análise. Em termos críticos sobra o alento da seleção enquanto espaço de juízo dos autores sobre algumas obras, porém de maneira indireta e nem sempre clara. O risco é que o método de seleção não apareça ou busque uma suposta “neutralidade”, tomando a seleção como regra ou cânone, o que obstrui uma avaliação mais criteriosa do leitor. Podemos classificar nessa categoria os livros “Jovens arquitetos”108 e o “Arquitetura Contemporânea Brasileira”109, ambos de Roberto Segre, que sempre trabalhou com uma organização mais panorâmica da 102

XAVIER, Alberto (org.) Depoimento de uma geração – arquitetura moderna brasileira. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. 103

ARANTES, Otília. Urbanismo em fim de linha. São Paulo: Edusp, 1998.

104

COSTA, Lúcio. Registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995.

105

MINDLIN, Henrique. Arquitetura moderna no Brasil. Rio de Janeiro: Aeroplano; IPHAN; Ministério da Cultura, 2000. 106 MAHFUZ, Edson da Cunha. O clássico, o poético e o erótico e outros ensaios. Porto Alegre: Editora Ritter dos Reis, 2002. 107 ZEIN, Ruth Verde. O lugar da Crítica: ensaios oportunos de arquitetura. Porto Alegre: Centro Universitário Ritter dos Reis, 2001. 108 SEGRE, Roberto. Jovens arquitetos = Young architects. Rio de Janeiro: Viana & Mosley, 2004. 109

______. Arquitetura Contemporânea Brasileira. Rio de Janeiro: Viana & Mosley Editora, 2003.

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arquitetura, tanto latino-americana quanto nacional, culminando estes livros numa simples organização e exposição de obras recentes de arquitetos brasileiros. Talvez fora dessa categorização esquemática, e figurando como um dos livros mais emblemáticos da crise pela qual a arquitetura moderna passou ao fim dos anos 1980, é o livro citado da filósofa Otília Arantes, “Urbanismo em fim de linha”. Na resenha de Ruth Zein, os escritos da autora di livro reunidos entre 1988 e 1997 que o compõe foram analisados sob o prisma da reflexão do Movimento Moderno no Brasil e do fracasso inerente do movimento dentro de seus próprios pressupostos. A paisagem urbana – que afinal era a escala da verdadeira transformação social, segundo pensamentos modernistas – vira cenário das mais profundas contradições dessa arquitetura no sistema capitalista, aviltando certo impasse no fazer arquitetônico a partir daí. Se, como dito, tal impasse já era visível sob outra perspectiva já nos anos 1970 no Brasil, o livro viria a reafirmar que o desenho e o projeto não são essencialmente os espaços da verdadeira mudança social. Tal crise na forma moderna não parece, contudo, ter afetado o otimismo dos arquitetos que viriam a retomar a linguagem modernista na última década do século XX, sobrando a questão: quem leu o livro de Otília, e o que foi feito com tais inquietações? Uma questão importante surge daí. Se os principais livros críticos são no fundo antologias de escritos desenvolvidos ao longo de anos por seus autores, nos mais diversos espaços voltados a isso, como revistas de arquitetura, filosofia, ou mesmo periódicos acadêmicos, será que afinal é no ensaio que a crítica aflora em sua plena potência? Se assim for – e tendemos a acreditar nisso – apenas confirmamos que os livros não são sempre ou, pelo contrário, não costumam ser os espaços de primazia da crítica, não tanto por questões de mercado editorial, mas sim da imanência da forma crítica e de seu atrevimento contingente, como uma pequena aventura que se renova frente a cada cenário e obra a ser analisados. Ainda assim, o mercado editorial brasileiro mostra ter alcançado algum crescimento, como indicam Roberto Segre e Ruth Zein em edição da Projeto/Design de 2002. Nas palavras da crítica, apesar da oclusão no espaço para a atividade na mídia especializada, “o mercado editorial para livros vem conhecendo certo crescimento, que, esperamos, se consolide e amplie.”110 Um importante exemplo é a coleção “Face Norte” da Cosac & Naify, que chama a atenção por sua impecável qualidade gráfica e seleção de obras a serem traduzidas e publicadas - como o já comentado livro de Robert Venturi. Apesar disso, sente-se a falta de um estímulo maior a trabalhos originais, que não sejam ou de consagrados autores estrangeiros, ou compêndios e antologias de arquitetos nacionais. Certamente a restrição do mercado de arquitetura afeta essa aposta nos títulos certos, porém seria positiva uma maior ousadia editorial. Um autor que analisa com mais amplitude o fenômeno da publicação de livros de arquitetura é Abílio Guerra, em sua já citada entrevista: Até uma década atrás, a produção de livros de arquitetura no Brasil era muito pequena, com a atuação de dois segmentos muito distintos: um, que primava por uma situação de semi-profissionalismo de pessoas muito bem intencionadas, que mantinham uma relação orgânica com a produção de arquitetura, mas sem conhecimento aprofundado de vários aspectos do metier; outro, habitado por editoras profissionais, que tomavam a arquitetura 110

Debate. Cinco perguntas aos críticos de Arquitetura. PROJETO/DESIGN, ed. 266, abr 2002, p. 35

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como um campo menor, no qual faziam investidas tímidas e pouco arriscadas. O resultado disso era uma produção quantitativamente pouco expressiva e qualitativamente muito desigual. No que diz respeito às traduções, temos lacunas graves até hoje, com livros fundamentais como Espaço, tempo e arquitetura, de Sigfried Giedion, inéditos até hoje. A situação mudou de forma substancial com a entrada no mercado da editora Cosac & Naify. A editora introduziu procedimentos inéditos na área editorial de arte e cultura no Brasil, tomando o livro como um produto sintético, ao mesmo tempo cultural e industrial. A altíssima qualidade dos livros da editora criaram um novo nível de exigência e obrigou as outras editoras a se posicionarem diante da nova situação. No que me diz respeito, acredito que a qualidade que nossa editora conseguiu nos livros produzidos até o momento, em especial o livro sobre Rino Levi, é tributário de vários livros feitos com muita competência – o Oswaldo A. Bratke da Pró-Editores, o Jorge Machado Moreira do Centro de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro, para citar alguns –, mas seguramente foram os livros da Cosac & Naify, em especial o belíssimo Paulo Mendes da Rocha e toda a coleção Espaços da arte brasileira, as nossas principais balizas. 111 Além das editoras tradicionais, temos uma notável editora gaúcha ligada à instituição de ensino superior Ritter dos Reis: a Editora Uniritter. Nosso estudo considera-a a principal editora de crítica de arquitetura no país. Entre seus títulos estão os fundamentais “Crítica na Arquitetura”112, e a antologia já citada de Ruth Verde Zein, ambos de 2001. O Rio Grande do Sul firma-se, assim e novamente, como importante pólo da crítica nacional, orientando-se inclusive por autores que parecem ter enorme influência na região – argentinos, uruguaios, chilenos – e muito menos no resto do país. Exemplo que surgiu repetidas vezes foi o do argentino Alfonso Corona que publicou em 2000, pela Editora UnB, seu livro “Ensaio sobre o projeto.”113 Outro estrangeiro com enorme influência na arquitetura brasileira é o espanhol Josep Maria Montaner, cujo livro “Depois do movimento moderno. Arquitetura da segunda metade do século XX”114 foi um dos mais citados por seus colegas, sendo um panorama de fácil absorção por aqueles que querem se atualizar quanto ao debate internacional da arquitetura.

1.9 Nunca como antes: periódicos internacionais Antes de falarmos da crítica feita nos periódicos internacionais sobre a arquitetura brasileira, importa discutir nosso método de triagem de tais textos. Eliminamos de antemão 111

_____. Um depoimento: Abílio Guerra. (Arqtextos, Porto Alegre, nº 5, p. 12 , jan./jun., 2004 KIEFER, Flávio; LIMA, Raquel Rodrigues; MAGLIA, Viviane Villas Boas. Crítica na Arquitetura. V Encontro de Teoria e História da Arquitetura. Porto Alegre: Editora Ritter dos Reis, 2001.

112

113

MARTÍNEZ, Alfonso Corona. Ensaio sobre o projeto. Brasília, Editora UnB, 2000.

114

MONTANER, Josep Maria. Depois do movimento moderno. Arquitetura da segunda metade do século XX. Barcelona: Gustavo Gili, 2001.

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a possibilidade de visitar cada uma das principais revistas internacionais, pois primeiro teríamos que fazer uma pesquisa histórica de quais revistas foram importantes em quais períodos nos últimos 25 anos, e depois folhear cada uma. Além disso havia i problema da restrição de acesso a muitas delas, e a questão do domínio da língua que impediu que tivéssemos total domínio sobre o conteúdo publicado nas revistas. Por isso resolvemos limitar-nos a duas fontes de pesquisa: a. A própria bibliografia levantada indicou edições especiais de revistas estrangeiras sobre o Brasil, um ou outro artigos de maior impacto, etc. Soma-se a isso as análises de Fernando Lara sobre as publicações acerca do Brasil de 1900 a 1990115; b. Procuramos artigos nos índices mais importantes de arquitetura. Infelizmente não tivemos acesso ao Avery Index116 (ligado à Columbia University e usado por Fernando Lara em sua pesquisa) pois a biblioteca da FAU USP não tinha essa assinatura. O Royal Institute of British Archotects (RIBA) possui índice aberto a consultas117, porém só indica o nome dos artigos. Ao fim e ao cabo, ambas são “bases referenciais”. Por isso utilizei-me do Art Index118, que é bastante abrangente em número de periódicos indexados e período de pesquisa (1984 – 2015). As duas fontes cruzadas deram-me um panorama suficientemente razoável dos temas tratados acerca de nossa arquitetura nos periódicos estrangeiros. Apesar do Art Index ser o menos completo dos três (apresentando apenas 45% dos periódicos presentes no RIBA Index), ele era o único que possibilitava uma análise mínima do material publicado. Certamente o RIBA daria um panorama mais amplo e, ao mesmo tempo e por isso mesmo, mais preciso. Porém entendomos que a seleção de menos periódicos pode trazer um efeito semelhante, considerando um grupo amostral nada irrelevante. Infelizmente apenas a Avery indexava a muito importante revista na história da crítica brasileira que foi a argentina Summa. Como poderemos confirmar no gráfico a seguir, os anos 90 indicam uma importante retomada da arquitetura brasileira no cenário internacional, iniciada de forma tímida nos 1980. Tal dado é mais precisamente corroborado por Fernando Lara quando indica em sua pesquisa que 404 artigos foram localizados entre 1990 e 1999, quase o mesmo número de artigos encontrados desde 1900.119 O leque de mestres nacionais mencionados também se amplia, incluindo agora Lina Bo Bardi e Burle Marx, além do sempre Oscar Niemeyer, e Paulo Mendes da Rocha em quarto como mais citado em artigos. Esse reencontro com os nomes mais expressivos de nossa arquitetura moderna tem a ver com um “movimento maior de revisão do modernismo”, nas palavras do autor. Ainda assim, 60% dos artigos publicaram obras contemporâneas e apenas 40%, obras modernas, o que indica uma retomada de fôlego de nossas arquitetura lá fora, além de ter sido observado um crescimento sensível das publicações sobre obras e arquitetos fora do eixo Rio-São Paulo.

115

São duas: LARA, Fernando Luiz Camargos. Espelho de fora. Arquitetura brasileira vista do exterior.

Arquitextos, São Paulo, ano 01, n. 004.07, Vitruvius, set. 2000. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.004/986; LARA, Fernando. Arquitetura brasileira volta às páginas das publicações internacionais na década de 90. (PROJETO/DESIGN, edição 251, 2001, p. 08/10) 116

http://library.columbia.edu/locations/avery/avery-index.html http://riba.sirsidynix.net.uk/uhtbin/webcat 118 https://bibfauusp.wordpress.com/biblioteca-virtual/art-index-2/ 119 LARA, Fernando. op. cit., p. 6 117

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Gráfico 8: número de artigos em periódicos internacionais / ano

Apesar de Fernando Lara indicar que nas edições mais recentes aparecem mais textos analíticos sobre as obras, sugerindo um maior engajamento crítico das revistas, nosso levantamento mostrou que em geral ainda são muito poucos textos integralmente voltados à análise de um projeto (excluindo assim memoriais, descrições oportunas, etc.), e que o cenário é ainda pior lá fora do que aqui no que tange ao olhar crítico sobre a arquitetura. Contudo, isso aparentemente é ainda melhor do que era nos anos 1940 e 1950, quando os artigos sobre as obras eram mais “informativos e expositivos”. Talvez essa mudança universal de qualidade de publicação das obras explique a afirmação de Fernando Lara quanto à maior presença de escritos mais estruturados sobre nossas obras. Quanto ao último recorte de nossa pesquisa – de 2000 a 2010 – o fenômeno geral a ser observado é que ao lado de muitos projetos de jovens arquitetos, o que reverbera no exterior são obras de arquitetos consagrados internacionalmente, como é o exemplar caso de Álvaro Siza com seu projeto para o Instituto Iberê Camargo, assim como Christian de Portzamparc na Cidade da Música. Obras polêmicas que dividiram opiniões no país, mas que também despertaram um interesse diferenciado fora daqui, de alguma forma colocando-nos no radar dos países com obras de grandes arquitetos contemporâneos. Finalmente, apesar de parecer melancólico, o nome desta seção apenas indica como nós mesmos não parecemos ter superado a visibilidade que a arquitetura moderna brasileira teve no mundo em sua fase heróica: de 1930 a 1960. Entre 1947 e 64 foram publicadas dez edições especiais sobre a arquitetura brasileira em importantes periódicos internacionais120, além de uma publicação anual de projetos isolados. A partir da década de 70 o número cai a menos da metade, e só em 1987121 voltamos a ver uma edição especial sobre o país que se tornaria, talvez, uma das mais importantes dos últimos vinte e cinco anos. Em tempo, vale a pena citar as edições monográficas da Casabella sobre a “Nuova archittetura brasiliana”122, de 2004, e a edição “Feature: Paulista architects” da A+U, de 1999123. Duas edições que viriam a consolidar uma escola paulista que procurava seu lugar ao sol desde o Pavilhão de Sevilha, de 1991. 120

SPADONI, Francisco. Dependência e resistência: Transição na arquitetura brasileira nos anos de 1970 e 1980. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 102.00, Vitruvius, nov. 2008 http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.102/91 121 L`Architecture d`Aujourd`hui. nº 251, 1987. 122 Casabella. nº 373, 2004. 123 A+U. nº 341, 1999.

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2

BREVE DISCUSSÃO CONCEITUAL

2.1 Origens

E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação entre a luz e as trevas Gênesis 1:4

O primeiro ato crítico: quando, após formar o universo, Deus separa o céu do mar, a luz das trevas, a matéria do vazio. Ato contínuo à criação máxima – Fiat lux – segue a cisão entre o bom e o ruim, o duro e o mole, o efeito e sua causa.Por sorte o crítico não tem esse poder de fundir verbo e ação, mas se tivesse o mundo logo se transformaria num caos de rupturas, fragmentos, desencontros e tectônicas deslizando entre si, ficando o valor perdido no meio das fissuras da matéria sob julgamento eterno. Cabe-nos apenas a palavra e, a partir dela, a reformulação do mundo das idéias, sendo por isso mesmo inútil, como inútil é a arte. Funcional (mas não apenas) é a obra de arquitetura, que pode existir apesar da crítica, assim como pode existir apesar do ser humano. De alguma forma a arquitetura é a arte que se frui na desatenção, “tátil” no conceito de Walter Benjamin. Essa soltura do mundo da função deixa entrever um dos problemas fundamentais da disciplina: projeta-se para alguém ou para si? Pois afinal, uma vez construída, a arquitetura é de apropriação coletiva, lançada ao mundo não pertence mais a quem a projetou. E então a crítica age. A palavra “crítica” tem sua origem no grego krínein, que também é raiz etimológica da palavra “crise”. Dessa forma, tanto crítica como crise derivam da ação do discernir, decidir, julgar. Diríamos: enquanto a primeira julga, a segunda ativa esse julgamento, degringola a instabilidade das definições, dois movimentos quase contínuos. Assim, krínein significa, de uma maneira radicalmente simples e bela, decidir. Daí que crise tem a ver, na medicina de Hipócrates, com o momento decisivo na evolução de uma doença: ou o organismo se cura, ou morre. O desenho do quadro clínico que irá resgatar os corpos de seu futuro malogrado depende da perícia de um médico – no caso, de um crítico – capaz de desvelar as forças ocultas que se expressam pelos sintomas. Porém há nesse crítico-médico, nesse crítico-clínico de Delleuze uma saúde irresistivelmente frágil, talvez por trabalhar sempre na fronteira, “na língua dentro da língua”, num estado constante de dúvida que o fragmenta em cada uma de suas análises. Daí retornamos ao sentido de krínein, decisão. O crítico ao mesmo tempo em que inaugura a crise, a aprofunda, a desconstrói, expõe a chaga, trazendo à visão o quadro das coisas. Tem em si um desejo clínico de recuperação da necrofilia do pensamento atlético (ou seja, da sedução que a morte gera no pensamento são), puro-elogiado, puro-positivista. A crítica

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não é a solução do problema, mas sem ela o problema não se resolveria – ela é parte da solução. Nas palavras de Proust, “A única maneira de defender a língua é atacá-la...”1. Desta forma, é a problematização da crítica que deixa entrever a doença não enquanto processo, mas enquanto não-acontecimento - parada. É nesse sentido que a crítica não é porta a formulação de verdades, mas antes da dúvida, combatendo qualquer sistema congelado de pensamento, de fazer arquitetônico, de qualquer conservadorismo da forma. O presente trabalho busca então, mais do que o estado da arte da crítica, desenhar o seu quadro clínico. É a saúde da crítica que nos interessa, ela enquanto disciplina. Jogar luz sobre a crise, a nomeação dos bois, “o inimigo revela seu rosto”. O inimigo, no caso, da tal ausência de crítica. Portanto, não devemos confundir crise enquanto instabilidade criativa, e crise enquanto estabilidade imobilizante, que é o que vivemos agora. Reverter esse quadro é uma necessidade. A inflexão está colocada: a língua morre, ou vive? Infelizmente o que vemos hoje é um mundo como em pretensa saúde plena. Como diz Delleuze: ...um estado doentio ameaça sempre interromper o processo ou o devir; e se reencontra a mesma ambigüidade que se nota no caso da saúde e do atletismo, o risco constante de que um delírio de dominação se misture ao delírio bastardo e arraste a literatura em direção a um fascismo larvado, a uma doença contra a qual ela luta, pronta para diagnosticá-la em si mesma e para lutar contra si mesma.2 O que parece ocorrer hoje no país é um estado de atletismo inverso. Com todo o ar de pulmões viris falamos que “não há crítica de arquitetura no Brasil”. Essa saúde plena indica um vigor corporal ao contrário: como quem orgulhosamente fala que lhe falta parte do intestino, a constante afirmação de uma crise, porém sem indicar sua localização no exame tomográfico, funciona antes como um obstáculo à sua cura do que à sua resolução. Interessa-nos o “esportista na cama” como diria Michaux, aquele que deixa à mostra sua saúde fraca não por estar doente, mas por ter ido ao mundo e retornado com “olhos vermelhos, com os tímpanos perfurados”3. O atleta mórbido – que anuncia uma crise, mas sem desejo real de revertê-la – talvez seja tão nocivo à disciplina quanto o atleta vívido, no caso aqueles críticos que reagem ao primeiro anunciando uma inefável existência de crítica no país, crescente e em plena saúde. Tal visão mostrou-se principalmente quando, em 2002 na coluna arquitetura.crítica do site vitruvius, polarizou-se o debate entre aqueles que defendiam a existência de uma crítica (Ruth Verde, Edson Mahfuz, Renato Anelli) e os campeões da casa – Ana Luisa Nobre e Haifa Sabbag – que advogavam, em partes, o contrário. Contudo esses mesmos atletas têm sua parcela de razão, e de fato afirmar que a crítica não existe é no mínimo leviano, fato esse que unificou discursos, pois é tanto identificado por Ana Luiza Nobre4 quanto por Ruth Zein5.

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PROUST apud DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. Tradução: Peter Pál Pelbart. São Paulo: editora 34, 2011 2 Ibidem, op. cit., p. 16-17 3 MICHAUX apud DELEUZE, 2013 4 NOBRE, Ana Luiza. A falta que nos faz. Arquitextos, São Paulo, ano 01, n. 002.02, Vitruvius, jul. 2000 http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.002/996 5

ZEIN, Ruth Verde. Crítica de arquitetura: algumas provas de sua não-inexistência. (PROJETO/DESIGN, edição 267, 2002, p. 26/28)

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Desta forma, há uma espécie de dupla cisão: entre aqueles que defendem que não há qualquer crítica de arquitetura, e os que defendem que há. No meio estão os que identificam a crise interna da disciplina, e por isso ecoam o cântico dos atletas mórbidos, mas sem se render a eles, visualizando a tal “doença contra a qual ela luta, pronta para diagnosticá-la em si mesma e para lutar contra si mesma”. As três posições são insuficientes. É necessário não mais apontar dedos, gritar palavras de ordem vazias, e defender um estado morto de ação, mas antes tomar para si a culpa e a missão de reverter o quadro clínico da crítica hoje no país. É essa esperança de que retomaremos certo vínculo virtuoso entre obra, crítica e clínica, que iniciará um seqüencial regenerativo e poderá trazer de volta a arquitetura à ordem do dia, fato cultural e social presente na sociedade. Assim, podemos afirmar, como que numa elipse que retorna a seu ponto de partida, que estamos em crise. Mas é exatamente pelo estado de crise que o problema se sofistica, deixando temporariamente a dúvida como regente de uma questão em observação. No fundo, a pesquisa visou analisar essa evolução de estado médico – de 1985 a 2010. De como o campo disciplinar se constituiu, se consolidou exatamente em momento de grande questionamento na arquitetura; e como hoje, chegada uma placidez necrófila, o movimento de questionamento da língua interrompido, encontramo-nos em perigoso momento. Está instaurada a crise: há crítica de arquitetura no Brasil? Sim, mas importa-nos entender sua qualidade, como se tornou o que é. O problema está lançado, e foi nosso objetivo desenhálo, problematizá-lo, diagnosticá-lo. O próximo passo – qualquer que seja – será de decisão:

krínein. À parte do debate quase metafórico da etimologia e formação do pensamento crítico, as raízes históricas dessa disciplina arquitetônica foram mais ou menos localizadas, mais como efeito colateral do que sendo parte de um aprofundado estudo sobre o tema. Fato positivo de tal inevitabilidade foi que conseguimos identificar discursos coincidentes, que identificam a crítica como parte de um desdobramento da Era das Luzes e suas reformulações no seio da arquitetura. Fato é que a crítica de arquitetura é um fenômeno do pensamento relativamente recente dentro da própria arquitetura. Nasce na metade do século XVIII, juntamente com o surgimento do Iluminismo e os debates sobre neoclassicismo. A crítica aflora quando os escritos dos arquitetos dessa escola se lançaram contra o barroco tardio. Num mundo onde reinava um alto grau de pluralismo como conseqüência da queda da tradição clássica, a diversidade de interpretações das arquiteturas produzidas foi o que fez surgir o juízo. O classicismo foi, no entendimento de Tafuri6, o momento de surgimento de um pensamento crítico na arquitetura, que passa e um “estado de fusión entre código arquitectónico y funciones colectivas” até uma gramática geral – os tratados de Blondel, Perrault, entre outros – para chegar, ao longo do século XVIII, até aquilo que faz a arquitetura possível, ou seja, seu sistema de significados e seus fundamentos. Áreas do conhecimento humanístico como psicologia entram nos debates da disciplina, introduzindo o homem como tema dentro da estruturação da linguagem figurativa na esteira do empirismo e criticismo do mesmo século. Em contrapartida, Roberto Segre fala que o surgimento da crítica no país repousa na figura de José Marianno Filho, a quem ele chama de “o fundador (gostem ou não) da crítica de arquitetura”7. Em seguida fala que Lúcio Costa fez, marginalmente, uma crítica, mas que 6

TAFURI, Manfredo. Teorías e historia de la arquitectura. Barcelona: Editorial Laia,1973, p. 108

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Debate. Cinco perguntas aos críticos de Arquitetura. (PROJETO/DESIGN, ed. 266, abr 2002, p. 34

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ela só viria a se constituir nacionalmente a partir dos anos 1970, o que vai de encontro à percepção geral deste trabalho. De todas as formas a afirmação inicial de Roberto Segre certamente é polêmica, como ele mesmo percebe, mas não deixa de indicar que se, por um lado uma suposta arquitetura propriamente nacional apenas nasce no modernismo – como advoga Costa – foi em seu anterior patrono neocolonial que surge a dúvida sobre os estilos em voga, indicando uma narrativa nacionalista maior do que o debate entre pensamentos então vigente. Tema a ser aprofundado.

2.2 Definições formais Todas as muitas definições pelas quais passamos indicam que a crítica é, antes de tudo, uma atividade de julgamento, emissão de juízo, segundo critérios anteriormente definidos pelo crítico. Essa emissão revela “origens, relações, significados e essências.” 8que segundo determinadas estratégias metodológicas, tendências teóricas, recursos históricos, vai se aproximando do artefato arquitetônico, discutindo seus vários aspectos estéticos, poéticos, formais e suas relações com a cultura, referencias, origens, convidando o público a absorver estas novas perspectivas abertas pelo crítico. Todo esse procedimento culmina no que já falamos, dos apontamentos de juízo e parâmetros novos a partir dos quais uma obra ganha ou perde relevância, reconfigurando todo ambiente cultural à sua volta. Desta forma, toda crítica parte de duas leituras: a sincrônica, que relaciona a obra a valores, criações e debates de sua época; e a diacrônica, que historiciza a materialidade e a ideologia por trás da obra, problematizando sua genealogia e influências, a partir sempre do presente. Essas precisões já deveriam ser suficientes para fazer da crítica uma empresa complexa, pois vai contra qualquer tipo de naturalização ou ahistoricização da obra de arquitetura, assumindo o risco de, ao mesmo tempo em que encontra a posição do objeto na cultura humana, o desloca dessa contingência identificada, o decompõe, articulando-o às diversas esferas do conhecimento. E, ao fazê-lo, retorna sempre ao ponto de partida, trazendo clareza ao referente do qual se parte, ao sistema de pensamento. Assim desenvolve-se um procedimento dialético de síntese e análise, que também atinge a própria crítica, sofisticando a autoconsciência do crítico de arquitetura e fazendo seu juízo deslizar pelas dúvidas formatadas, sem nunca instituir-se como conhecimento da verdade. A crítica, então, segue em direção contrária às afirmações unitárias, é antes um passo calculado em direção ao conhecimento das coisas, sempre a partir e pela dúvida, impedindo autocomplaências e acomodações. Em suma, podemos adotar a bela definição de Manfredo Tafuri: Criticar significa, en realidad, recoger la fragrância histórica de los fenômenos, someter a éstos a una rigurosa valoración crítica, descubrir sus

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MONTANER, Josep Maria Arquitetura e crítica.Tradução: Alicia Duarte Penna. Barcelona: Gustavo Gili, 2007, p. 15.

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mixtificaciones, valores, contradicciones y dialécticas internas y hacer estallar toda la carga de sus significados9. Uma das contribuições mais significativas desta definição, e que segue pela obra do teórico e historiador italiano, é do da “desmistificação”. Mais ou menos próxima do conceito de “naturalização” já citada, a mistificação é um procedimento social de encobrimento de uma série de discursos estruturados por uma elite cultural, econômica ou acadêmicointelectual, constituindo a assim chamada ideologia. A crítica funciona então para por limites à ambigüidade criada por essas mistificações, que mesclam sentidos e escondem intenções. Esse procedimento de “desmistificação” tem duas conseqüências, enunciadas já pelo autor: a. apela à responsabilidade de quem projeta, cobrando dele consciência em suas escolhas projetuais, rompendo assim o laço entre linguagem arquitetônica e ideologia; b. tensiona as temáticas,métodos e linguagens envolvidas na obra até seus limites, deixando ver a fragilidade de nossa condição presente quanto ao consumo da obra de arquitetura.10 Outro autor que problematiza a dimensão social e cultural da arquitetura é Gary Stevens, australiano que traduziu para nossa disciplina os conceitos de Pierre Bourdieu sobre capital cultural, ordem dóxica, arbitrariedade, etc.11 Para o caso especifico da crítica, e em consonância com o que diz Manfredo Tafuri, o autor afirma que “essa ordem poderia ser outra que não a que é”12. Entenda-se por ordem o estatuto de pensamento arquitetônico em vigência, que organiza o campo. O que ele indica é exatamente essa força por trás da suposta naturalidade do estilo, que se torna invisível e é erroneamente aceito como tal. Essa invisibilidade faz parte do que o autor chama de “ambiente dóxico”, doutrinário, dominado por um suposto bom senso que anula qualquer tentativa mais radical de questionar as próprias bases de este ou aquele discurso. Isso significa a aceitação incontestável da vida diária, a adesão a um conjunto de relações sociais que aceitamos como auto-evidentes. Pierre Bourdieu lista três aspectos importantes da experiência dóxica: a

naturalidade, o reconhecimento errôneo e a arbitrariedade. O primeiro já foi bastante discutido; o segundo seria um desdobramento natural da primeira atitude, uma espécie de miopia frente à “ordem simbólica aceita”, que tudo estrutura; e por fim o último conceito deixa clara a compreensão de que a cultura é um campo humano de embates, onde conceitos são moldados a posteriori, a partir de uma ideologia dominante que se impõe. É interessante relacionar o conceito de arbitrariedade utilizado por Bourdieu e Tafuri com aquele usado pelo crítico brasileiro Edson Mahfuz, especialmente visível em seu texto “Teoria, história e crítica, e a prática de projeto.”13 Nele, o autor anuncia certo posicionamento de resistência à arquitetura contemporânea internacional, que parece tender a um formalismo descabido – a forma arbitrária – em detrimento de uma suposta 9

TAFURI, Manfredo. Teorías e historia de la arquitectura. Barcelona: Editorial Laia,1973, p. 11 Ibidem, op. cit., p. 284-285 11 STEVENS, Garry. O círculo privilegiado: fundamentos sociais da distinção arquitetônica. Tradução: Lenise Garcia Corrêa Barbosa. Brasília: Editora UnB, 2003. 10

12

Ibidem, op. cit., p. 71 MAHFUZ, Edson. Teoria, história e crítica, e a prática de projeto. Arquitextos, São Paulo, ano 04, n. 042.05, Vitruvius, nov. 2003. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/04.042/640. Poderíamos citar também o texto Edson Mahfuz fala sobre processos sistemáticos no projeto. Projeto/Design, º 182, 2009. 13

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“forma pertinente”, instrumentada a partir da história, teoria e crítica. Para Mahfuz, seria uma hermenêutica sistemática no ato de projetar que permitira a criação de critérios ordenadores perceptíveis ao usufruto do público em geral, reduzindo tanto a margem de arbitrariedade da forma construída quanto à ambigüidade comunicacional da obra. Fica claro, a esta altura, que o conceito de arbitrariedade aqui exposto é primordialmente formal, e nada ou quase nada tem a ver com o conceito antes abordado, muito mais sociológico. Contudo, ambos indicam a importância da crítica tanto no desvelamento das ideologias que constroem naturezas segundas no plano do pensamento, quanto na busca por um rigor material em contraposição e mesmo resistência a uma experimentação formal vazia de sentidos, no atual cenário arquitetônico internacional. É interessante notar como em ambas as construções do termo, o público sempre surge num horizonte maior do campo da arquitetura. Se o crítico parte de um julgamento individual, a partir afinal de uma bagagem conceitual e de uma sensibilidade muito próprias, ao fim e ao cabo ele se direciona a uma visão compartilhada da obra, num dever ético de compreender a importância da presença da arquitetura em todas as suas dimensões no espaço público, mas também privado. A crítica serve, por fim, a um amadurecimento espiritual da comunidade onde está inserida, e “tem como objetivo integrar a vontade coletiva, difundir-se por meio de publicações, suportes midiáticos, cursos e debates cidadãos, para, finalmente, reverter-se à esfera subjetiva de cada indivíduo dentro da sociedade.” 14 Quanto ao aspecto social da crítica, vale a pena trazer a reflexão de Robert Schwarz15 quando fala da arquitetura e da construção de um espaço de debate com dimensão pública que ainda precisa ser construído, questionando por um lado as raízes dessa ausência, e por outro trazendo a academia a julgamento por ter avançado tão pouco em direção a uma publicização de seus debates. Somado a isso, e talvez o fato mais grave identificado aí, seria a falta que nos faz a construção de uma tradição sólida, teórica e com amplos espaços de debate, sobre a crítica e seus problemas, acumulando pressupostos e historicizando linhas de estudo. De forma geral podemos dizer que o aumento da presença da crítica no espaço do debate público das idéias e da cultura visa a rivalizar com o conceito corrente de “opinião”, que é um exercício despreocupado de emissão de valores pessoais, o que certamente cabe ao cotidiano, até mesmo quando se discute sobre arquitetura, mas não no campo da crítica, que é atividade eminentemente intelectual, distinguindo-se sempre do senso comum, e que volta-se exatamente à desconstrução deste em detrimento de um senso sofisticado da vida pública e da arquitetura enquanto fato cultural. Rosa Artigas inicia um de seus textos16, que visa problematizar o uso do termo “brutalismo” para nomeação de alguma arquitetura paulista, exatamente com a imagem de um punhado de arquitetos discutindo conceitos num bar, ação aparentemente inocente, mas que acaba por reiterar e reproduzir, até legitimar, “improbidades” históricas e críticas do pensamento arquitetônico. 14

MONTANER, Josep Maria. Op. cit, p. 9-10.

15

A relação entre as formulações crítica de Shwarz e o campo cultural da arquitetura podem ser vistos na dissertação: ROSATTI, Camila Gui. Robert Schwarz, arquitetura e crítica. 2010. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo. 16 ARTIGAS, Rosa Camargo; SILVA, Dalva Thomaz. Sobre brutalismo, mitos e bares (ou de como se consagrar uma impropriedade). AU, edição 17, 1988, p. 61-63.

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Nesse sentido, citamos a fala do professor Elvan Silva no artigo “Notas sobre a problemática do ensino da crítica da arquitetura”17: O termo “crítica” tem uma acepção vulgar e duas acepções principais, terminologicamente corretas. A acepção vulgar é a de procura e/ou enunciado de defeitos. Das significações corretas, a primeira diz respeito à atividade intelectual de análise de obras artísticas, em diversos campos, atividade esta caracterizada pela emissão de juízos valorativos sobre aspectos da realização. Via de regra, é difundida através dos meios de comunicação, princpalmente em periódicos impressos. (...) A segunda acepção é a que se refere àquela atividade intelectual, de natureza filosófica, que se ocupa da sistematização dos critérios de juízos sobre os acertos e erros dos enunciados; não se ocupa de obras isoladas, mas de outrinas, sistemas de idéias, etc.” Daí que é nosso papel, também e como veremos mais adiante, descriminar sempre o uso do termo “crítica”, posicionando-a na esfera que lhe cabe no momento. A primeira acepção acima apontada deve ser logo descartada, por ser uma incompreensão vulgar que apenas rebaixa atividade tão importante. A segunda definição seria o já anunciado critério aqui utilizado para seleção dos artigos a ser estudados: “se o artigo ou texto analisa um artefato arquitetônico”; enquanto que a última definição se relaciona ao segundo critério: “se o artigo ou texto discute questões relativas à disciplina arquitetônica”. Em assim sendo, um dos principais aspectos que descola a crítica enquanto opinião da crítica e disciplina do pensamento é seu lastro teórico. Josep Maria Montaner, em livro já citado, fala da interdependência quase visceral de uma à outra, a ponto de afirmar que “Somente existe crítica quando existe uma teoria.” e, em contrapartida, que “nenhuma teoria pode prescindir da experiência de colocar-se à prova e de exercitar-se na crítica.”18. O fato novo é que a teoria sem o desenrolar crítico foi apontado por vários autores como atividade infértil, que perde-se em si mesma. Contudo, apesar de atividades complementares, é necessário delimitar certa autonomia que cada uma delas têm no campo, certamente de forma relativa. Na medida em que a teoria se preocupa com a estruturação de um pensamento arquitetônico, ela tem um teor positivo e sintético que não é próprio da crítica, a priori. Ou seja, a crítica é analítica e se volta sobre um objeto específico, procurando por meio dele desencadear uma série de questões universais ou não. Ora, a teoria é o que suporta a crítica, seu insumo primeiro, o que a estrutura enquanto instrumento. Mas a teoria em si não é instrumento, não é prática. A crítica transita. A teoria não. Ela sempre precisa de traduções, seja no projeto, seja na crítica. Nas palavras do arquiteto Flávio Kieffer: Poderíamos dizer que enquanto a teoria é um sistema de pensamento, a crítica é uma incursão, pelo pensamento, na obra. Uma diferença de momentos, mas também de métodos. Uma é sistemática, coerente, em certa medida doutrinária; a outra é seu contrário. É criação, possui valor estético autônomo,

17

KIEFER, Flávio; LIMA, Raquel Rodrigues; MAGLIA, Viviane Villas Boas. Crítica na Arquitetura. V Encontro de Teoria e História da Arquitetura. Porto Alegre: Editora Ritter dos Reis, 2001, p. 300.

18

MONTANER, Josep Maria. Op. cit, p. 15-16.

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é flexível e fugaz. Seria, eu digo, a diferença entre um pente de balas e um tiro.19 Daí que a crítica, enquanto mergulho na obra, e a teoria como base filosófica e poética dessa ação, podem ser também metaforizados na figura do porta-aviões, essa infraestrutura de guerra que vagueia pela indefinição dos mares criando uma territorialidade móvel, e sustenta as breves porém poderosas incursões dos aviões-caça ou aviões-bombardeiros sobre navios inimigos. Mas aqui cessa a comparação, pois num exercício de espelhamento os navios poderiam apenas ser outras teorias, o que é inverdade. Atingimos antes obras, pensamentos aplicados, razões materiais, etc. Outra dimensão da crítica é também a história, com quem se relaciona de maneira inevitável, porém tendo cada uma das partes da tríade – crítica, história, teoria – uma ênfase específica de acordo com o objetivo de reflexão arquitetônica construída. Assim, complementando em certa medida a máxima moderna do arquiteto-deus que cria “da colher à cidade”, preferimos a compreensão da disciplina como campo ampliado também no plano horizontal dessas três esferas anunciadas, além do projeto, constituindo assim um panorama que visa equilibrar a importância do ato projetivo em relação a essas outras constituições da arquitetura. Isso dito, importa salientar como a história é aquele conhecimento que permite que um acontecimento arquitetônico seja inserido nas estruturas da História – entendida enquanto escala universal da cultura humana. Caso essa operação não ocorra, teremos, nas palavras de Tafuri: (…) una hagiografía vacía o una exégesis abstracta (que nos es otra cosa que la crítica fracasada. La hipocresía de semejantes intentos de acercamiento a los temas fundamentales de nuestro tiempo – incluidos los arquitectónicos – puede medirse considerando el mar de exploits inútiles (pero interesados) en el que corre el riesgo de ahogarse diariamente el “lector” profesional.20 O interessante é que ele segue esse pensamento para indicar como teorias ditas ahistóricas, que buscam as causas anteriores, podem definir procedimentos projetuais, mas se afastam da natureza própria da crítica, na medida em que esta sempre parte de uma análise de suas próprias bases. Além disso, tais investigações dos elementos primeiros ou “grau zero” da arquitetura devem tornar-se estes sim elementos de investigação, sobre os quais a crítica dobra-se para rastrear suas dimensões históricas21. Este breve exemplo ilustra como afinal a história está presente em todos os discursos, e como por vezes a teoria engana-se ao tentar dissociar-se dela e, por conseguinte, de uma dimensão crítica da análise arquitetônica. De alguma forma serve também para ilustrar o caráter autônomo da crítica. Esta, quando se alinha metodologicamente com a prática projetiva, numa mesma operação de pensamento pode ser muito positiva ao mesmo tempo em que impede, afinal, encontrar as “razões últimas da arquitetura”. Assim, a verdadeira crítica, como já dito, tem um papel de destruir mistificações, indo além da própria arquitetura, instaurando uma distância fundamental entre esta e a arquitetura enquanto objeto de estudo. Em última instância, 19

KIEFER, Flávio; LIMA, Raquel Rodrigues; MAGLIA, Viviane Villas Boas. Crítica na Arquitetura. V Encontro de Teoria e História da Arquitetura. Porto Alegre: Editora Ritter dos Reis, 2001. 20 Ibidem, op. cit., p. 212-213 21 Idibem, op. cit., p. 215

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concluímos que atingir o fundo da disciplina é entrever o caráter ideológico e místico e tautológico da mesma. Manfredo Tafuri chegou a um certo impasse a esta altura, que também tem a ver com uma resistência correta em aceitar a primazia da obra sobre a crítica, anunciada por Cesare Brandi, dado que esta postura levaria a um “silencio de la crítica”. A aclamação da genialidade do arquiteto, cultura ainda muito presente no Brasil, pode ser considerada uma atitude, portanto, de morte da crítica. Não há exemplo maior do que a máxima de Niemeyer de que “Criticar um colega é para mim pretensão e mediocridade.”22 Ruth Verde Zein é uma das autoras que mais critica essa cultura do gênio criador, que se por lado é parte constituinte no nascimento de nossa modernidade, chega hoje deformado e pálido, obstruindo mais e mais a atividade do crítico. Talvez essa postura ou negação dos projetistas quanto ao debate crítico acerca das diversas instâncias da produção seja fato muito mais universal do que imaginamos. Em memorável entrevista de Neruda a Clarice Lispector, quando perguntado se “a crítica constrói?” ele responde: “Para os outros, não para o criador.”23 A resposta é impactante. Num primeiro momento ela quase levou o estudo a uma decepção irreversível. Ora, será que os críticos não passam de um fato cultural que beira a irrelevância? Não basta a obra de arte? As questões que surgiram foram muitas. Mas num segundo momento, a resposta indica uma sabedoria ímpar, que no fundo vai de encontro a tudo o discutido e afirmado até aqui. Afinal a crítica é exatamente essa ponte entre as múltiplas dimensões da obra de arte – que nem sempre o artista tem ou mesmo precisa ter consciência – com o conhecimento público da mesma. Como no famoso conto de Eduardo Galeano, no qual o menino, ao ver o mar pela primeira vez, vira-se ao pai e fala “Pai, me ensina a olhar!”24 Não importa ao mar se o menino sabe ou não olhá-lo, e importa menos ainda se existe uma maneira correta de olhar. Importa que o pai – no caso, o crítico – seja capaz de inspirar um outro olhar, que expanda a mente e carregue em si um tal ato criativo, de sorte que o mar torna-se, então, olhável. Desta forma, como analisaremos mais adiante, a crítica de arquitetura carrega uma espécie de criticalidade diferente daquela da obra analisada. E uma de suas obrigações disciplinares é a de não permitir que a arquitetura a absorva e neutralize no interior de seu ato projetivo. O crítico Hugo Segawa é muito honesto quando afirma que “talvez, contrariando meu próprio ofício, às vezes penso que não precisamos de idiossincrasias dos críticos de arquitetura. Precisamos todos de uma consciência crítica da arquitetura.”25. Talvez numa utopia, a sociedade seja tão elevada que a crítica se tornará inútil, posto que todo e qualquer cidadão terá a nobreza de saber julgar a obra de arquitetura. Mas até mesmo nessa utopia qual seria o sentido da arquitetura ser entendida enquanto obra, enquanto arte? Em que pese certa ideologia modernista da diluição da arte na vida, talvez não seja absurdo concluir que mesmo na mais sofisticada comunidade mundial, a crítica ainda terá seu valor, de incitar debates, destruir a obra e retorná-la ao mundo enquanto artefato humano. E o mais intrigante é ver como tal procedimento modernista de tentar 22

Fato & Opinião. Arquitetos têm direito de criticar o trabalho de colegas? Há uma forma ética de fazer isso? AU, nº 137, 2005, p. 20-21 23 Entrevista disponível em: http://www.revistabula.com/955-clarice-lispector-entrevista-pablo-neruda/ 24 GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. São Paulo: L&PM EDITORES, 2005. 25

SEGAWA, Hugo; GUERRERO, Ingrid Quintana; SILVA, Aline de Figuerôa (org.). Crítica de Arquitetura: ensaios latino-americanos. Cotia: Ateliê Editorial. 2013. 66


eliminar o discurso das contradições da realidade, trazendo à força tal utopia aos dias de hoje, afinal apenas serve para rebaixar a qualidade crítica dos debates. Um potente exemplo é a questão da sustentabilidade. Tema muito mais complexo do que a aplicação em nossos condomínios de lixeiras segregadas, do que a idéia de que de pouco em pouco a mudança virá. Esse debate traz em si um questionamento do próprio modelo de explorações do homem pelo homem e da natureza pelo homem. Ainda assim, arquitetos como Eduardo Souto de Moura lançam boutades como a de que “There is no ecological architecture, no intelligent architecture, no fascist architecture, no sustainable architecture – there is only good and bad architecture.”26 O Brasil certamente não passa longe dessas ideologias. Ainda é muito corrente nas escolas de arquiteturas escutar que “Lúcio Costa já era sustentável”, ou que “sustentabilidade é coisa pra inglês ver”. Tal fato ficou às vistas quando em entrevista a Montaner na revista Projeto/Design, uma das perguntas foi “É comum ouvir de arquitetos brasileiros que a arquitetura em si já tem de ser sustentável, e que o que está acontecendo hoje não passa de moda. Como vê isso?”27, indicando como nossa arquitetura ainda está pouco permeável a problematizar discussões, ora taxando-as de modismos, ora afirmando que sempre fomos assim. A crítica de arquitetura é, portanto, uma espécie de segunda linguagem que atua sobre a primeira – a da obra – deformando-a, fazendo acumular num processo histórico as diversas compreensões emitidas sobre tal ou qual arquitetura, o que modifica sua existência, assim como a poesia o faz ao intervir sobre a língua, ampliando a capacidade da mente de construir sentido. Podemos dizer então que ela é atividade intelectual de segunda ordem, pois age a partir e em diálogo com obra anterior. Porém nem por isso torna-se menos autônoma, artística ou criativa. Se em um primeiro momento a crítica age dentro das forças e tensões do problema arquitetônico, num segundo ela desenvolve um corpo de idéias que age sobre a realidade, modificando-a. As palavras de Ana Luiza Nobre são muito atentas quando afirmam que: (...) a crítica é algo que alimenta, na verdade, também a prática projetual. Porque ela parte de um embate com a obra, um embate difícil, na verdade, que envolve um repertório, que envolve uma bagagem, envolve uma ordem de experiência tudo isso, e que envolve um enorme desafio, porque no fundo o crítico está sozinho em diálogo com a obra, então envolve um longo desafio: oferecer uma outra camada, uma outra leitura a respeito de uma obra que, muitas vezes, é uma obra que nem está terminada ainda ou que acabou de ser construída ou que já está consagrada.28 O crítico, portanto, tem em sua atuação algum grau de paralelismo com o ato projetual: ele também precisa se debruçar sobre todos os aspectos da obra, da geografia à economia, da luz à textura, da tectônica à tecnologia, só que num processo inverso, de análise no sentido de dissecação. Também a crítica é a aplicação de uma série e ajuizamentos, estéticos e éticos, baseados, assim como no projeto, em aspectos abstratos da lógica humanista (arquitetura aqui entendida enquanto ciência social aplicada) como harmonia, leveza, relevância, etc. Há um quefazer na crítica que não pode ser arbitrária. Por mais que se utilize de instrumentos como a intuição e a experiência, ela possui um viés 26

Trecho final de discurso em evento de premiação do Pritzker Prize. Disponível em: http://www.pritzkerprize.com/2011/biography 27 Entrevista. Josep Maria Montaner. AU, nº 166, 2008, p. 54-58 28

NOBRE, Ana Luiza. Entrevista pessoal ao autor Jaime Solares Carmona. ANEXO A.

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cientifico e artístico da busca do sentido no mundo, e de seu re-sentido. E é papel do crítico emitir seus juízos de valor através de um julgamento que fuja do discurso moralista, de tom condenatório. Como diz a crítica carioca, o juízo deve ser entendido “do ponto de vista kantiano, num julgamento no sentido de a crítica não pode ser entendida como uma condenação. “29 Quiçá a maior diferença entre projeto e crítica, em termos heurísticos, seja a necessária tomada de consciência da genealogia do pensamento que o crítico tem, diferentemente do projetista, que via de regra ignora as origens de sua maneira. Cabe ao crítico e teórica da arte decodificar essa razão implícita. Porém, se a forma de expressão do arquiteto é a obra, a do crítico é o ensaio. Esse gênero literário incorpora um impulso antisistemático (diferentemente da teoria e história), um lançar de conceitos não necessariamente dedutivos, mas quem sabe indutivos, ousando sempre compreender o mais complexo a partir de uma série de aproximações simultâneas, alimentando-as e gerando um turbilhão de problemáticas em congregação. Não parte sempre – apesar de poder fazê-lo – de um pensamento linear, do simples ao difícil, tentando indicar uma verdade subjacente, ou um fato rígido invisível até então. Nesse sentido, Adorno afirma que: No ensaio como forma, o que se anuncia de modo inconsciente e distante da teoria é a necessidade de anular, mesmo no procedimento concreto do espírito, as pretensões de completude e descontinuidade, já teoricamente superadas.30 Assim, o ensaio crítico é sempre uma experimentação, ato de virar de ponta cabeça o objeto analisado, apalpando de maneira indecorosa seus recôncavos mais escondidos, submetendo tudo à reflexão. E esse tudo inclui, também, a própria teoria envolvida na concepção da obra. Essa unidade é o que, de certa forma, delimita o campo ensaístico, e “acompanha o pensamento crítico de que o homem não é nenhum criador, de que nada humano pode ser criação.”Tal humildade e restrição, de saber que tudo é referência a algo já dito, pode presentear-nos com o momento indelével”, como afirma o autor, com a capacidade de ver o indicível, a partir do momento que nos libertamos do desejo insano à identidade, à originalidade. Essa posição, em certa medida marginal do núcleo da criação, faz com que a crítica, na forma de ensaio, atinja sua excelência, de crítica das ideologias. Josep Maria Montaner também compreende o ensaio enquanto indagação livre e criativa, que não pretende esgotar um assunto, nem analisá-lo sob perspectiva rigorosamente sistemática, mas antes “alinhavar argumentos e comparações inéditos, até certo ponto heterodoxos, com elementos subjetivos. Não tem sentido algum como reformulação de tópicos; ao contrário, deve se preocupar em formular perguntas, mostrando a arbitrariedade das convenções.” Enquanto tentativa o ensaio crítico é uma reflexão aberta, inacabada e que suporta sempre a dúvida, que sugere e algumas vezes propõe, mas nunca define a resolução derradeira de um problema. Nesse sentido, como afirmou Ruth Zein em entrevista para o estudo, a crítica não erra – pois não opera no campo do certo ou errado. De alguma maneira, o ensaio se constitui assim como forma primeira da crítica, que desde seu início coloca em cheque a cisão entre o rigor científico e a intuição artística, gerando uma dialética que acomoda contradições, revertendo um quadro linear de 29

NOBRE, Ana Luiza. Entrevista pessoal ao autor Jaime Solares Carmona. ANEXO A. ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In: ADORNO, W. T., Notas de Literatura I. Tradução de Jorge de Almeida. São Paulo: Editora 34. Coleção Espírito Crítico, 2003. Disponível em: 30

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compreensão do objeto, desenhando uma rede de conexões que indicam uma temporalidade específica, da sobreposição de conceitos acumulados sobre tal obra arquitetônica. No fim, é o ensaio o que melhor questiona a separação entre trabalho intelectual e trabalho criativo, coordenando uma práxis da intelecção do artefato de estudo através da promíscua geração de uma dimensão crítica que o conecta ao mundo inteiro. Afinal, “o ensaio é a forma da categoria crítica de nosso espírito.”, que escapa à ditadura das definições fixas, sem se curvar ao peso do existente, do visível, do que se mostra como evidência. A crítica não aceita aquilo que simplesmente é. Em suma: É por isso que a lei formal mais profunda do ensaio é a heresia. Apenas a infração à ortodoxia do pensamento torna visível, na coisa, aquilo que a finalidade objetiva da ortodoxia procurava, secretamente, manter invisível.31 Fica então a questão: aonde temos depositado nossa heresia? Ou será que a crítica não é mais herética, e por isso mesmo parece não mais existir? São questões que podem responder parcialmente o atual estado da crítica.

2.3 Definições conceituais Um primeiro e essencial passo na direção do desenrolo do transe atual pelo qual passa a crítica, entre a constante afirmação de sua ausência e uma defesa inconteste de sua presença, é conceituar determinados aspectos da crítica de forma ampla. A confusão geral apenas permite que certa vulgarização do uso do termo o faça ser tudo e nada ao mesmo tempo. A “crítica” passa a ser usada como uma espécie de grau maior do pensamento: o pensar crítico. Quando a analise é mais aprofundada, ela é crítica. Nem sempre. Talvez uma contribuição que simplifique grandemente a sobreposição de sentidos que o termo carrega seja entender crítica enquanto substantivo, e a crítica enquanto adjetivo. A prática de crítica de arquitetura poderia ser qualificada enquanto um substantivo, ou seja, uma ação, um nome, um estatuto da disciplina que tem instrumentos e métodos próprios, conformando ou não uma avaliação sobre a obra construída. Já a crítica como adjetivo é antes uma postura, um fazer com, que perpassa toda ação humana, em menor ou maior grau, e isso inclui o ato de projetar. Desta forma, é fundamental que não confundamos o fazer crítica - que é um momento específico da prática de arquitetura – com fazer com crítica. Praticamente tudo pode ter uma existência crítica, ou seja, questionadora. Mesmo assim você pode passar a vida sem ser crítico. Muitas vezes os críticos de arquitetura brasileiros não fazem essa distinção de maneira clara em seus textos, confundindo o leitor e gerando ambiguidade. Talvez seja o caso de diferenciar, criar uma nomenclatura própria. Arriscamos dizer que crítica enquanto forma de estar no mundo – adjetivo – é criticalidade. Damos ênfase aqui ao sufixo –dade: estado, condição, forma de. Já a crítica de arquitetura como nome assim permanece, e que fique claro que uma instância do pensamento não prescinde da outra, nem anula a outra e muito menos deve confundir-se mais com ela. Esse é um esforço terminológico 31

Ibidem, op. cit., loc. cit.

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fundamental a partir daqui. Nesse sentido, e sob esse ângulo, podemos analisar o texto de Sophia Telles, “Falem os projetos”, no qual ela critica uma série de obras relacionadas a certa postura pós-moderna, e termina afirmando que: O que seria uma crítica senão compreender que construir não é uma visão de mundo que se pode modificar, é uma forma de existência, uma vontade silenciosa, uma vida. Não se pede à vida que se justifique. Vive-se. (...) A crítica não é uma teoria nem o tribunal cético das intenções. É uma ação, uma prática.32 Ou seja, idealmente a crítica enquanto ação substituiria o “tribunal cético das intenções”. Porém crítica de arquitetura não lida apenas com intenções, justificativas, discursos da prática. Diria até que essas são as dimensões menos interessantes da crítica, suas fontes mais arenosas. Lida-se com a obra, com o pensamento, genealogia das formas, composição, contingências políticas, história, etc. Ao fim do texto ela afirma que “A crítica é apenas uma circunstância”, e não deixa de estar certa, mas não é circunstância qualquer, descartável, mero momento escrito ou falado de juízo. É o momento do juízo. Em fala de Otávio Leonídio quando discutindo sobre o livro “Supercrítico: Peter Eisenman, Rem Koolhaas”, juntamente com Guilherme Lassance33, ele comenta que Sophia Telles defende a tese de que “não existe crítica de arquitetura”, pois a mesma não tem um “grau mínimo de autonomia para que se possa opor um juízo de fato crítico –como se faz, por exemplo, com obras literárias, de artes visuais etc.”34 Ou seja, a prática e a crítica de arquitetura seriam instâncias que se confundem demais para discernirmos uma da outra. Mas novamente mostra-se premente a dissolução da criticalidade enquanto projeto, da dimensão crítica do mesmo, e da crítica de arquitetura. Apesar dessas definições, a questão de quem pode ou não fazer crítica de arquitetura segue relativamente irresoluta. Via de regra, quando questionados sobre quem pode ou não exercê-la35, os críticos afirmam que seria absurdo considerar que apenas um arquiteto projetista ou quem já projetou possa fazer crítica, a exemplo de críticos de arte que não necessariamente são artistas (ou em sua grande maioria não o são), de forma que o único critério geral seja ter uma vasta erudição e conhecimento na área. Contudo tal conformação não parece esgotar o assunto. De fato há em arquitetura especificidades tais que fazem com que o distanciamento do crítico para com a atividade profissional seja uma problemática nada simples, mas certamente longe de ser intransponível. Exemplos de importantes críticas que não são arquitetas são Otília Arantes, filósofa, e Sophia Telles, filósofa e historiadora, que inclusive trazem sempre instrumentos e insumos teóricos muito ricos ao debate disciplinar. Em geral quando se discute o tema, fala-se das questões éticas envolvidas, no julgamento ou não do trabalho de um colega, exatamente na compreensão de que ambos são companheiros profissionais e portanto não lhes cabe emitir opiniões sobre a obra do 32

TELLES, Sophia da Silva. Falem os projetos. AU, nº 181, 1994, p. 87-88 EISENMAN, Peter. Supercrítico: Peter Eisenman, Rem Koolhaas. Trad.: Cristina Fino. São Paulo: Cosac Naify, 2013. 33

34

LASSANCE, Guilherme; LEONÍDIO, Otávio. Koolhaas, Eisenman e o Brasil: diálogos supercríticos. São Paulo: Cosac & Naify, 2013. E-book, p. 20. 35 Como exemplo podemos citar a segunda pergunta feita pela revista Projeto/Design a críticos de arquitetura em: Debate. Cinco perguntas aos críticos de Arquitetura. PROJETO/DESIGN, ed. 266, abr 2002, pp. 32-35.

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outro, como seria o caso de um artista criticar seu par. Contudo tais asseverações são conseqüência muito mais da falta da cultura de criticar e receber críticas, do que uma questão ética. Ainda assim a questão persiste na cabeça dos projetistas de alguma forma, a ponto da revista Projeto/Design fazer um debate sobre 36, porém ao invés de perguntar aos convidados se era ético ou não criticar o colega, a revista já supõe duas coisas: que um colega não deve criticar outro; que pode existir uma forma não ética de fazê-lo. No mesmo artigo, Carlos Eduardo Dias Comas entende, com muita perspicácia, que tudo isso não passa de uma “não-questão” enquanto arquitetos como Milton Braga demonstram desconhecimento quanto à área ao afirmar que “Seria saudável se houvesse mais crítica de arquitetura no Brasil. Nos últimos anos, esse cenário vem mudando com o surgimento de profissionais que se dedicam a isso.”, como se não existissem tais profissionais antes. Certamente a mesma poderia ter amadurecido melhor as questões para desenvolver um debate mais salutar e menos vezado. Aí chegamos a um impasse: se não é ético criticar colegas, então o ideal é que eu não exerça a profissão – pelo menos na sua forma mais costumaz, dentro da construção. Contudo se eu nunca construí como posso criticar uma obra? E para muitos arquitetos projetistas, parece que quando menos eu construí menos eu posso comentar sobre o tema. Nas palavras de Joaquim Guedes: Penso cada vez mais que a crítica feita por arquitetos muito empenhados na prática profissional é uma crítica inadequada. A crítica exige uma certa isenção. Também não sei quem poderia ter experiência e conhecimento de arquitetura suficientes para criticá-la, estando fora dela.37 Quanto a esse impasse, foi interessante notar que desde o primeiro convite para ser entrevistado, o arquiteto Edson Mahfuz falou que ele não era crítico, mas apenas um arquiteto que fala e escreve sobre arquitetura, pois, na concepção dele, “Eu acho que o crítico em geral é alguém que não faz aquilo que ele critica.”38 Contudo mais adiante na entrevista e em mais de uma situação, ele afirma que “É muito difícil alguém escrever sobre arquitetura com alguma relevância se não cursou arquitetura.”, e que por isso muitos nãoarquitetos falam de outras coisas menos importantes para a área. Tais afirmações deixam à mostra a compreensão da disciplina que Mahfuz desenvolve, muito introspectiva e atenta a debates formais e funcionais, pouco interessada em questões econômicas, políticas ou ideológicas que perpassam sua prática. Talvez por isso, e por buscar uma grande coerência entre fazer e pensar, que ele não admita ser crítico, pois afinal ele exerce a arquitetura, não cabendo-lhe a análise da coisa projetada, mas apenas uma reflexão. Agora talvez consigamos compreender melhor a afirmação de Sophia Telles quando diz que não deveria haver crítica de arquitetura, ou de como ela é uma impossibilidade. Fato é que criticar um colega, mesmo projetando, não é, por si, antiético, assim como qualquer pessoa que se disponha a compreender a arquitetura em profundidade, mesmo não sendo arquiteto, pode fazê-lo. Temos que amadurecer nossa cultura arquitetônica, superando 36

Fato & Opinião. Arquitetos têm direito de criticar o trabalho de colegas? Há uma forma ética de fazer isso? AU, nº 137, 2005, p. 20-21. 37 IAB/RJ. Arquitetura Brasileira após Brasília / Depoimentos: Edgar Graeff; Flavio Marinho Rêgo; Joaquim Guedes; João Filgueiras Lima. Rio de Janeiro: IAB RJ, 1978, p. 22. 38

MAHFUZ, Edson da Cunha. Entrevista pessoal ao autor Jaime Solares Carmona. ANEXO B.

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algum trauma que tenhamos tido quanto aos limites da disciplina, e despidos de qualquer ranço profissional ou preconceito institucional, além da necessidade de explicitar sempre tais distinções descritivas da crítica em suas esferas do pensamento. Outro exemplo dessa mescla conceitual pode ser visto no texto “Crítica como critério” do gaúcho Carlos Comas39. Nele o autor flutua entre considerar que “todo cidadão é em algum momento um crítico de arquitetura” e “Cabe exigir da crítica a explicitação fundamentada de critérios e razoabilidade lógica na exposição das (sic) premissas e argumentos – apoiados em descrição precisa de obras e contextos.” Ou seja, de um lado qualquer pessoa pode e eventualmente é crítica, porém de outro para sê-lo pede-se um rigor metodológico e consciência teórica que o cidadão comum simplesmente não tem; pelo contrário, reina nesses casos o acusado “achismo subjetivo em clima de vale-tudo”. Ainda nessa mesma edição da revista - que teve como tema crítica de arquitetura - o trecho abaixo da fala de Ruth Verde Zein indica um deslocamento pouco oportuno da crítica de arquitetura para dentro do projeto, sendo aí seu “lugar”: “O lugar da crítica principia no primeiro traço e vai até a obra realizada e usufruída; principia nas primeiras idéias da obra e vai até o tratado genérico.”. Um autor que trabalho com muita precisão essa distinção é Tafuri, porém não da forma aqui aventada. Antes, e de maneira complementar, ele define o que é “crítica operativa” e “arquitetura como crítica”, conceitos que já subjazem a separação entre crítica e criticalidade. A definição do primeiro conceito pode assim ser considerada: Por crítica operativa se entiende comúnmente un analisis de la arquitectura (o de las artes en general) que tenga como objetivo no uma advertência abstracta, sino la “proyección” de uma precisa orientación poética, anticipada em sus estructuras y originada por análisis históricos dotados de uma finalidad y deformados según um programa. Bajo esta acepción la crítica operativa representa el punto de conunción entre la Historia y la proyección. Se puede incluso decir que la crítica operativa proyecta la historia pasada proyectándola hacia el futuro: su posibilidad de verificación no radica en abstracciones de principio, sino que se mide cada vez con los resultados que obtiene. Su horizonte teorético es la tradición pragmatista e instrumentalista.40 Ou seja, a operacionalidade da crítica é um procedimento que manipula o ato projetivo dentro do conceito de crítica enquanto projeto ideológico que se quer alcançar, manipulando para tanto a história, trazendo o futuro no passado, num procedimento tautológico do pensar a arquitetura de trás para frente. Tal operação – ou operabilidade da crítica – é comum em momentos em que uma revolução artística se afirma e precisa de uma historiografia engajada, como ocorrera com o modernismo e seus historiadores militantes, como Giedeon e Zevi, autores amplamente criticados por Manfredo Tafuri. Apesar de tal categoria crítica ser ideológica e substituta de certo rigor analítico, não deve ser imediatamente desconsiderada em um vórtice de juízos morais precipitados. A crítica operativa deve ser compreendida dentro de determinado contexto histórico, e a partir de seus desdobramentos sobre o pensamento arquitetônico. Fato mais interessante aqui é como o autor atenta para os perigos da dimensão projetiva na crítica, quando desse ato de 39

COMAS, Carlos Eduardo Dias. Crítica com critério. Nem verdades imperativas, nem achismo valetudo. PROJETO, edição 181, 1994, p. 81 40 TAFURI, op. cit., p. 177

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arremesso do passado ideal num futuro utópico, mostrando a necessária autonomia da crítica. Sua contrapartida, como dito, é a “arquitetura como crítica”, ou “criticismo arquitetônico”, que coloca em crise a crítica de arquitetura por absorvê-la em seu interior. No desenrolar do capítulo sobre o tema, ele fala em como a crítica se cala frente a isso, e como, porém, a criticalidade no projeto de arquitetura é fundamental ainda assim, porém insuficientemente radical. Anteriormente, quando falamos da oclusão da crítica pela prática, dentro de uma lógica até certa medida antiintelectualista que certos arquitetos brasileiros muitas vezes adotam, falávamos exatamente disto. Novamente, afirma Tafuri e o estudo comprova, vemos a centralidade que a independência da crítica de arquitetura precisa ter dentro do campo disciplinar mais amplo da própria arquitetura. Num cenário desastroso, de um lado teríamos uma série de aplicações inférteis da crítica operativa na construção de discursos mistificadores e “feitos sob medida”, que mais servem para reafirmar a história oficiosa da arquitetura em voga do que para criticá-la de fato. De outro, a arquitetura entendida quase que exclusivamente enquanto projeto, construção, desenho. Enquanto o primeiro define “o círculo mágico da linguagem”, multiplicando metáforas do texto arquitetônico, e derivando ao infinito as possibilidades de interpretação41 (gerando um acervo de imagens desprovidas de espessura, que fascinam mais do que nos fazem refletir), o segundo obstaculariza a prática crítica questionadora, dado que o projeto nunca será capaz de sair de si mesmo enquanto sistema lingüístico e social de feitura. Quanto a isso, podemos notar como ainda falta muito a ser feito. No Brasil em 1983 a revista Projeto 42iniciou um debate que em determinada altura discutiu crítica de arquitetura. O cenário é alarmante. Primeiro Vasco de Mello fala que a crítica não pode se restringir a “pequenos e limitados” escritórios – entendendo assim arquitetura como crítica -, para em seguida Carlos Bratke afirmar que estamos “desacostumados à crítica”, chamando de “pixação” as avaliações de colegas que menosprezam a prática da arquitetura comercial. No fundo, é apenas a partir do fim dos anos 1980 que determinada retomada disciplinar da arquitetura como um todo permite arejar o debate a ponto de desembaraçar – não totalmente, como pudemos ver nos artigos de 1994 – parte dessa confusão instituída. Ruth Verde Zein coloca como questão central a definição do que é crítica, antes de falarmos em sua ausência ou não43. Talvez essa indefinição seja mais grave do que pensávamos. Se na cabeça dos arquitetos projetistas crítica é essencialmente criticalidade, então de fato é identificável uma crise geral na arquitetura hoje, que está atrás do tal “sentido na arquitetura”, tema sempre levantado por Ângelo Bucci, apesar de feito de forma muito impressionista e sem maiores reflexões. Emblemático foi o caso do espanhol Josep Montaner quando, em entrevista à revista AU , fala que apesar de termos bons críticos de arquitetura no país, “nenhum se atreve a dar um salto e fazer um trabalho mais amplo, mais ambicioso e mais geral.” Fica muito nebuloso o que significa esse “trabalho mais amplo”, porém uma dica é dada quando ele fala que a única obra mais próxima disso foi a de um estrangeiro, Yves Bruand, no livro 44

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TAFURI, Manfredo. Arquitetura e Historiografia. Uma proposta de Método. Desígnio, São Paulo, nº 11/12, p. 21, 2011. 42 VÁRIOS AUTORES. É preciso sacudir a poeira, criticar, discutir, se encontrar. PROJETO, ed. 42, 1983, p.80. 43 ZEIN, Ruth Verde. Entrevista pessoal ao autor Jaime Solares Carmona. ANEXO C. 44 Entrevista. Josep Maria Montaner. AU, nº 166, 2008, p. 54-58

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“Arquitetura Contemporânea no Brasil.” É interessante fazer uma ressalva, contudo. O crítico espanhol é conhecido por sua vasta obra escrita, em geral de maneira muito panorâmica sobre os mais diversos assuntos, o que muitas vezes o levou a imprecisões e precariedades, como quando cita Marcelo Ferraz como um dos mais relevantes críticos de arquitetura no país, deixando uma miríade de nomes excluídos dessa seleção. Enfim, fato é que o autor talvez esteja medindo de maneira insuficiente nossa produção com sua régua, e fato é que ele pode ter parcela de razão. Intrigante notar que tal entrevista se deu em 2008, dois anos antes da data limite de nossa pesquisa. Na outra ponta temos no livro de 1984 “Arte para que?” de Aracy Amaral, a mesma questão anunciada quase nos mesmos moldes. Se por um lado Josep Montaner fala e enuncia o nome dos autores críticos que estão em atuação no país naqueles anos, Aracy Amaral indica que o mesmo campo, vinte anos antes, ainda está em formação, faltando ainda: (...) visões críticas sistemáticas e abrangentes, mas talvez essa contribuição só seja possível de ser realizada, como na área de artes plásticas, por uma outra geração. No momento, na área de arquitetura, subsídio da maior significação tem sido o recolhimento de depoimentos de arquitetos contemporâneos, seja por parte do IAB-Rio de Janeiro, na série Arquitetura brasileira após-Brasília / Depoimentos, como nas monografias publicadas pela editora “Projeto”, de São Paulo. Todos estes últimos trabalhos, como regra geral, evitam o enfoque crítico da arquitetura brasileira contemporânea e dissertam antes sobre as contribuições dos diversos arquitetos. 45(grifo nosso) Na afirmação acima há dois vaticínios preocupantes: primeiro o já comentado sobre a crítica de arquitetura e a falta de uma visão mais abrangente, que se esperou ser feito nos anos seguintes, mas, aparentemente segundo o crítico espanhol, não chegou a ser feita; o segundo diz respeito a um certo corpo de historiadores que iria se constituir a partir de então,com fundamental pesquisa na arquitetura moderna nos anos noventa principalmente, mas que chega a 2002 com atuação ainda sendo questionada. Ou seja, nas duas pontas da pesquisa segue uma esperança que mostrou-se não correspondida. Tais questões são ainda mais pertinente se formos pensar que talvez em sua resposta esteja parte da ausência sentida hoje na crítica. Será que afinal é um problema de qualidade, ou de amplitude? Ou os dois? Sérgio Taperman sugere que seja o primeiro caso, quando afirma que “faz falta uma boa crítica de arquitetura no País” 46 O problema se agrava ainda mais se pensarmos que falta, antes de tudo, a formulação clara do que seja crítica, o que se espera dela. Não adianta pedirmos a um porco que escale uma árvore, ou a um macaco que role na lama. Formalizar a expectativa é um dos primeiros passos a ser dado, e que ambicionamos aqui estarmos fazendo. Mas o problema é muito mais antigo do que pensamos. Ao longo do estudo pudemos notar como a “ausência de crítica de arquitetura no Brasil” foi um bordão falado por uma dezena de autores, arquitetos ou não, várias e várias vezes: A partir dos meados da década de 1970, com os esforços para a retomada do debate sobre arquitetura no Brasil e a constatação de que a história e a crítica 45

AMARAL, Aracy Abreu. Arte para que? a preocupação social na arte brasileira. 1930-1970. São Paulo: Nobel, 1984, p. 276. 46 TAPERMAN, Sérgio. Cri-crítica. AU, edição 171, 2008, p. 82

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da produção brasileira haviam “empacado” em Brasília, e, portanto, que a produção dos últimos anos seguia relativamente incógnita, tornou-se um senso comum clamar sobre a ausência da crítica no Brasil. Esse deserto crítico seria um dos responsáveis por uma situação que se percebia vagamente como estagnada. O problema é que o ramerrão sobre a ausência da crítica seguiu pelos anos (e décadas) seguintes, a despeito da percepção sobre a produção brasileira de arquitetura ter se transformado consideravelmente. O meio passou a contar com instrumentos de entendimento e classificação da produção mais recente, sem se dar conta de que estes instrumentos eram fornecidos, exatamente, por uma crítica atuante.47 Uma crítica invisível, portanto, foi existindo, ou melhor, subsistindo sem que sua presença seja notada. Mas afinal não é toda a arquitetura brasileira que anda mal das pernas? Não seria um crise mais ampla, surgida com o fim da fase heróica e uma constante necessidade da vanguarda que, ironicamente hoje se tornou retaguarda, que nos traz hoje a uma série de impasses na forma construída? Como afirma com perspicácia Ana Luiza Nobre, será “suficiente que se fale da ausência de crítica de arquitetura sem que se localize o esgarçamento da presença da própria arquitetura na cena local contemporânea?”48 Certo conservadorismo49 que tomou conta de nossa produção, recusando investigações novas ou questionamentos desestabilizadores, parece ser a razão também de uma crítica que se torna em alguma medida estagnada, incapaz de lançar a dúvida. Precisamos de uma arquitetura que aceite o risco incessante de se reinventar. Ainda nas palavras da autora, “o que mais se faz hoje, em arquitetura, é banir a dúvida, sufocar a inquietação. Mesmo porque, como sabemos todos, a arquitetura vive da satisfação – do cliente, do usuário, do arquiteto.”. Entendemos assim que é o fortalecimento mútuo da prática projetiva e da crítica de arquitetura que levará a uma presença desta última no cenário arquitetônico, não apenas no sentido figurado de estar presente (pois a crítica existe sim), mas de fazer-se presente. Ambas as atividades se fortalecem mutuamente, e quiçá é o caso de partir de um mesmo senso de ação crítica, agindo nas especificidades de cada esfera da arquitetura, que poderá elevar nossa produção e nossa crítica, saindo da dialética da ausência e chegando a uma dialética dialógica da construção da dúvida e da crise, para então refundar certos estatutos. Porém a relação não pára aqui. Não é suficiente que projeto de crítica retomem o ciclo virtuoso da dúvida. É necessário que também a teoria retome vigor perdido, pois hoje encontra-se: (...) assistemática, extremamente dispersa, carente de meios mais consistentes para sua divulgação, nossa produção teórica permanece mal reconhecida, incapaz de fornecer alternativas e balizamentos críticos (grifo nosso) para a extrema disfusão da produção estrangeira, a qual, frequentemente, age na contramão de nossas próprias necessidades e contexos ambientais, espaciais e culturais.

47

BASTOS, Maria Alice Junqueira; ZEIN, Ruth Verde. Brasil: arquiteturas após 1950. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 199 48 NOBRE, Ana Luiza. A falta que nos faz. Arquitextos, São Paulo, ano 01, n. 002.02, Vitruvius, jul. 2000. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.002/996 49 Tema usado por Zein em entrevista. ANEXO C.

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Além disso, não criamos o devido espaço de interlocução para que o saber da arquitetura não se restrinja ao manifesto de impressões sobre projetos e obras. Desde o modernismo essa crítica “impressionista” norteia e ocupa a maior parte do campo teórico e das publicações referentes à arquitetura e urbanismo.50 Ou seja, tal qual o tratamento da osteoporose que inclui musculação por entender que osso e músculo são um sistema dependente, uma reavalização da crítica nacional pressupõe um debate mais profundo do campo da teoria. Carlos Ferreira Martins fala mais de uma vez que a teoria é uma espécie de “crítica da crítica”, deixando patente essa correlação entre ambas instâncias do pensamento arquitetônico. Por fim, é necessário que nossa história supere uma atuação restrita de recuperação de outras narrativas modernas, para voltar a ter papel crítico de problematizar tais construções não apenas a partir de monografias sobre arquitetos esquecidos até então, mas a partir do restauro das ideologias, da reformulação de conflitos, de restituição da dimensão histórica no fazer arquitetônico, entre outros. Como podemos ver, o desafio de restaurar uma dimensão pública e relevante à crítica de arquitetura passa pelo fortalecimento harmônico de todas as expressões da arquitetura – teoria, história, projeto -, por um repensar a disciplina não mais e apenas enquanto autonomia, mas talvez enquanto interdisciplinaridade. É hora de reatarmos diálogo com a sociologia, a política, a lingüística enfim, com os outros campos que nos colocaram em crise nos anos 1970 mas que hoje apresentam novas formulações possíveis e enriquecedoras ao nosso saber.

2.4 A crítica em dois momentos: 30 e 50 Se até o momento tentamos formatar um breve conceito da crítica de arquitetura e suas problemáticas e definições, agora lançamo-nos a uma também curta porém oportuna análise histórica de dois momentos da arquitetura brasileira que instituíram um debate crítico de nossa produção, porém de maneiras muito distintas entre si e ao que tem sido feito a partir dos anos 1980. Tal contraste permitirá compreender com melhor clareza o entendimento desta pesquisa de que é só nas últimas duas décadas do século XX que a crítica de arquitetura atingiu maturidade, rigor, método e espaço suficientes para constituirse enquanto campo autônomo no fazer arquitetônico. Comecemos pelo arquiteto que foi considerado patrono da arquitetura moderna no país: Lúcio Costa, que, segundo Ana Luiz Nobre, é o “nosso primeiro e mais irredutível crítico de arquitetura.”51 Foi nos anos 1930 que ele iniciou sua batalha ideológica pela conversão do curso de arquitetura da Escola Belas Artes para uma linguagem moderna, em 50

BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Os modos do discurso da teoria da arquitetura. In KIEFER, Flávio; LIMA, Raquel Rodrigues; MAGLIA, Viviane Villas Boas. Crítica na Arquitetura. V Encontro de Teoria e História da Arquitetura. Porto Alegre: Editora Ritter dos Reis, 2001, p. 17-18. 51 NOBRE, Ana Luiza. A falta que nos faz. Arquitextos, São Paulo, ano 01, n. 002.02, Vitruvius, jul. 2000. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.002/996.

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consonância com o que estava sendo debatido e formulado na Europa, especialmente na figura de Le Corbusier, que teve grande importância para o modernismo brasileiro. Essa querela iniciada dentro da Academia, inclusive em confronto com o neocolonial que o arquiteto carioca havia abraçado anos antes, necessitava de uma formulação crítica específica, capaz de adequar o discurso internacional com uma produção e história locais. Tal drama constituiu uma teoria e, afinal, uma ideologia que persiste ainda hoje na cultura arquitetônica brasileira. Um livro que trata das contradições dessa história projetada é o de Marcelo Puppi52, que num balanço de fim de século analisa a historiografia nacional sob o foco da diferença, das narrativas suprimidas pela versão oficial de nossa arquitetura. O livro e mostra como a ideologia moderna construiu as bases históricas sobre o período que não seriam, posteriormente, devidamente revisadas. Em outras palavras, mostra como o projeto histórico de Lúcio Costa estrutura nossa história até a época do estudo, mas vale dizer, até os dias de hoje. De todas as formas a frase inicial do livro surpreende: “A historiografia da arquitetura brasileira não foi ainda estudada.”, indicando talvez não tanto uma radicalidade mas um descontentamento científico com a naturalização de um discurso que permaneceu durante mais de meio século no meio acadêmico, sendo inclusive adotado por autores estrangeiros, como afirma Puppi. O maior problema talvez seja que essa “versão oficial”, se teve papel fundamental na instituição de um movimento moderno de vanguarda, em sua permanência e original militância podem ser considerados uma crítica operativa, no sentido tafuriano do termo, que se alinha à afirmação de Marcelo Puppi quando diz que: O nó crucial de todo o problema está em que a primeira contribuição ao tema, de Lúcio Costa, base de todas as seguintes, não é a rigor um estudo de história. Os escritos do arquiteto têm uma função claramente operativa, visando sempre e sobretudo, de um lado, divulgar os princípios do movimento moderno no país e, de outro, fundar uma vertente local do movimento, bem como justificar e valorizar sua existência. Dito de outro modo, seu objetivo é formular o programa teórico (não sem idas e vindas, como veremos) da arquitetura brasileira. Conseqüentemente, o modernismo apresenta-se nos manifestos do autor como o ponto culminante de toda a história da arquitetura, seja no plano internacional, seja nacional, e viceversa , esta história é recontada como um processo evolutivo cujo fim último é o surgimento do modernismo. O teórico reveste-se do papel de historiador, e dá a seu programa de ação a forma dissimulada de estudo histórico.53 (grifo nosso) Tal operatividade foi sendo progressivamente revista na esteira da crise instaurada nos anos 1980 no país pelo pós-modernismo, esforço desenvolvido em diversos trabalhos que, estudando a vanguarda modernista da primeira metade do século XX, foi localizando uma certa “atividade panfletária” que estava alinhada a uma “apropriação crítica da história da arquitetura brasileira, incentivada pelos mestres modernistas para legitimar a promoção do movimento moderno nos trópicos. Tal história instrumentalizada constrói, ademais, uma linearidade que aponta para um futuro previsível, ou desloca o futuro para o presente, num 52

PUPPI, Marcelo. Por uma história não moderna da arquitetura brasileira: questões de historiografia. Campinas, SP: Pontes; Associação dos Amigos da História da Arte; CPHA; IFCH; Unicamp, 1998. 53 Ibidem, op. cit., p. 12.

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procedimento tautológico de ordenação inversa do curso histórico, culminando numa vanguarda do presente. Nesse sentido Costa se aproxima de sobremaneira de historiadores modernistas como Bruno Zevi, Nicolaus Pevsner, entre outros. Essa compreensão tendenciosa da história pode ser claramente vista no episódio ocorrido nas páginas do Diário de S. Paulo, em 1948, quando em resposta a um artigo de Geraldo Ferraz, no qual ele afirmava o pioneirismo de Warchavchik e Flávio de Carvalho na implantação da arquitetura moderna no Brasil, Costa defende que era o gênio nacional de Oscar Niemeyer o pioneiro dessa linguagem no país, associando-o à figura de Antônio Francisco Lisboa – o Aleijadinho. Esse momento marca uma inversão nos valores que até então Lúcio propunha para avaliar o barroco, especialmente na obra do Aleijadinho, que segundo o autor “tinha espírito de decorador, não de arquiteto”54, num claro juízo negativo da obra do artista mineiro. Essa mudança de posição, mais do que representar uma autosuperação e revisão no discurso original, é antes um sinal do que Tafuri chama de “um impulso dictado por condiciones externas, por el pulso variable de los acontecimientos.”55, dentro da máxima de que “algo deve mudar para que tudo continue como está”. Um autor que indicou, mesmo que de maneira muito tímida, essa relação operativa dentro da teoria e da crítica de Lúcio Costa, foi Hugo Segawa. Ele questiona, ao fim de um artigo sobre a historiografia brasileira de arquitetura56, se a chamada “Tradição do Patrimônio” inaugurada pelo mestre moderno no seio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN (à época SPHAN) – seria afinal ela mesma uma “crítica operativa”. Fundamental, a esta altura da pesquisa, é compreender que apesar dessa qualidade da crítica de Lúcio Costa ser hoje uma idiossincrasia insustentável, à sua época representou um esforço legítimo de afirmação da vanguarda moderna. O problema maior, afinal, é a perpetuação de tal versão histórica de nossa arquitetura, fato que ainda incide com força em nosso pensamento, como elencado por Ana Nobre: Então, sem dúvida, Lúcio Costa teve um papel importantíssimo do ponto de vista da constituição de uma visão crítica nos anos 30. Mas nos anos 50 a situação é outra. Ali o papel dele operou no sentido inverso, no sentido de sustentar uma conquista que tinha sido muito dura. (...) Só que isso colocou um limite para a nossa reflexão, porque impossibilitou qualquer pensamento divergente ou conflitante. (...) Enfim, esse descaso com relação à crítica marcou a nossa produção. (...) Na verdade, a crítica até hoje é exercida com muita dificuldade no Brasil, a gente tende a tomar tudo do ponto de vista pessoal.57 Essa fala traz outra questão, outro momento que será aqui analisado: a estruturação de um front de resistência que a arquitetura nacional teve que estabelecer a partir de uma 54

COSTA apud BAETA, 2003, p. 37.

55

TAFURI, Manfredo. Op; cit., p. 196.

56

SEGAWA, Hugo. Histórias das histórias das arquiteturas no Brasil. (pp. 45-51) KIEFER, Flávio; LIMA, Raquel Rodrigues; MAGLIA, Viviane Villas Boas. Crítica na Arquitetura. V Encontro de Teoria e História da Arquitetura. Porto Alegre: Editora Ritter dos Reis, 2001. 57 NOBRE, Ana Luiza. O risco da história. Desígnio, São Paulo, nº 11/12, pp. 202-203, 2011

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série de crítica feitas pelos mais diversos setores da cultura brasileira e internacional. Como indica Otávio Leonídio quando discute Lúcio Costa e os limites do moderno: A partir dos primeiros anos da década de 1950, simultaneamente à generalização, no meio artístico e intelectual brasileiro, de um inaudito sentimento de bem-estar (associado justamente ao surpreendente sucesso da arquitetura moderna brasileira), começaram a surgir as primeiras críticas, apontando os limites dessa arquitetura, via de regra identificados com certo “formalismo. 58 Tais críticas vieram principalmente de renomados arquitetos ou artistas estrangeiros, porém sem nem sempre capazes de compreender especificidades nacionais. Numa onda revisionista do pós-guerra, que aproveitou os espaços cedidos pelo MASP e MAM-Rio em eventos como a I Bienal Internacional de Arte de São Paulo, de 1951, Walter Gropius, Max Bill, Giulio Carlo Argan entre outros escreveram textos analisando nossa arquitetura, especialmente aquela produzida pela escola carioca, em pleno auge do modernismo financiado por um Estado desenvolvimentista. É clara uma polarização entre o teor dos discursos. De um lado podemos localizar Gropius (Olhar estrangeiro, 1954) e Giedion (O Brasil e a arquitetura contemporânea, 1956), que discorrem de maneira quase prosaica sobre nossas cidades e arquitetura, sendo que o segundo chega a elogiar nossa “modernidade periférica”. Do outro temos praticamente sozinho o artista suíço Max Bill, que em seu polêmico texto “O arquiteto, a arquitetura, a sociedade” - publicada em 1954 na Architectural Review, porém proferida no auditório da FAU USP um ano antes e publicada na revista Manchete no mesmo ano – desvelou a crítica mais contundente à arquitetura brasileira de então, personificada na figura de Niemeyer. Fala dos quatro elementos que patrocinam nossa arquitetura como se fossem aplicações de “modas”. O tom inteiro é de julgamento de uma tendência nacional a usar modelos de forma acrítica, com o “risco de cair em um perigoso academicismo anti-social”.59 Um fato deve ser destacado: a maneira como o autor coteja, muito indiretamente, a escola paulista, quando diz: “Fica-se estupefato de ver uma barbárie como essa irromper num país onde há um grupo do CIAM, num país em que acontecem congressos internacionais de arquitetura moderna, onde uma revista como a Habitat é publicada e onde se realiza uma bienal de arquitetura.”60 Aliás não por acaso foi exatamente nas páginas da revista paulistana Habitat que essa crítica foi publicada. Esta funcionou metaforicamente como uma “lança”, segundo acepção do artigo “La revista como lanza: Hábitat y Lina Bo Bardi” de Carlos Eduardo Dias Comas61, no sentido de arma de perfuração que pretendia quebrar o “escudo” formalizado na figura da revista Módulo, capitaneada por Niemeyer,

58

LEONÍDIO, Otávio Ribeiro. Crítica e crise: Lucio Costa e os limites do moderno. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, v. 13, n. 14, p. 149, dez. 2006 59

XAVIER, Alberto (org.) Depoimento de uma geração – arquitetura moderna brasileira. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 159.

60

Ibidem, op. cit., p. 161. TORRENT, Horacio. Org. Revistas, Arquitectura y Ciudad. Representaciones en la Cultura Moderna. Escuela de Arquitectura Pontificia Universidad Católica de Chile: Santiago de Chile; T6 Ediciones SL: Pamplona. 2013.

61

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revista que “no tuvo que ver con la conquista, sino con la defensa de una posición ya dominada.”62 Essas duas revistas de tendência adotavam sempre um tom proselitista, que de alguma maneira impedia em seu cerne a produção de uma crítica independente e livre de tons moralistas ou ideológicos defendidas por seus editoriais. No final, tal postura de ataque-defesa foi prejudicial à crítica. Nesse sentido, o periódico paulista, nas palavras do crítico gaúcho, “apoyaba una disputa, no planteaba una discusión racional.” Essa disputa não era um embate inocente entre formalismo x racionalismo, mas uma verdadeira reorganização do campo arquitetônico, em termos sociais, de idéias e mesmo políticos no cenário nacional. Seria mais justo falar numa disputa entre escola carioca – que estava sendo criticada nas mais diversas frentes – e escola paulista, que viria a ser a vitoriosa nos anos posteriores à Brasília. Tal fato pode ser visto já num ainda jovem Artigas que, ao responder ao texto de Oscar “Depoimento” (1958) em seu artigo “Revisão crítica de Niemeyer” de mesmo ano, fala de novos caminhos da arquitetura, onde se “(...) marca também o ponto de partida para uma nova fase do desenvolvimento da arquitetura nacional que, dessa forma, mostra o seu rico conteúdo, capaz de novas e mais elevadas manifestações formais.”63 Anos antes o arquiteto que viria a ser a mais destacada figura da escola paulista tinha escrito os textos “Fundamentos” de 1951, e “Os caminhos da arquitetura moderna”, de 1952. Neles discute a questão do imperialismo do capital internacional e como o Modulor seria uma ferramenta de imposição técnico-cultural de universalização de um discurso. Uma crítica militante que, contudo, não o impediria de seguir projetando, desenhando. Como ele mesmo diz posteriormente: “Talvez tenha ocorrido um erro histórico, de se dar prioridade às posições de princípio e abandonar a própria obra. Mas não me sinto mal por ter feito isso, mas também não deixei de realizar minha obra.”64 Porém voltemos às críticas internacionais. Além de Bill, Bruno Zevi foi outro arquiteto que criticou de maneira contundente nossa produção nacional, quase duas décadas após o texto do suíço, em seu artigo “A moda lecorbusiana no Brasil”, de 1971. Nele reafirma até certa medida o teor de seu predecessor racionalista, com um texto ácido, porém sem ir muito além do já dito, servindo mais como um rebatimento com atraso de décadas. Dois autores que pareceram trazer equilíbrio ao embate foram ambos italianos: Ernesto Nathan Rogers e Giulio Carlo Argan. No texto “Pretextos para uma crítica não formalista”, de 54, Rogers faz um justo balanço equalizando os dois pólos, criticando a desatenção à licenciosidade da arquitetura brasileira em Giedion, de um lado, e o erro de escala na medição do outro, ignorando contextos e história, na fala de Bill. Além do mais o autor enriquece o debate geral sobre a crítica em arquitetura, ao afirmar que: “(...) o julgamento de um fenômeno é condicionado não só pela definição de cada umas das partes que o determina, mas também e sobretudo pela variável posição de cada parte no conjunto, é uma das mais penosas conquistas do pensamento moderno.

62

Ibidem, op. cit., p. 49. Ibidem, op. cit., p. 240. 64 AMARAL, op. cit., p. 296 63

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E isto deveria estar sempre presente no exercício da crítica em geral e, de modo especial, da arquitetura, na qual – por assim dizer -, os componentes comparecem com toda a concretude material.”65 Por fim, seu conterrâneo Argan, em artigo “Arquitetura moderna no Brasil”, de mesmo ano, fala com vasta erudição da formação de nossa arquitetura, buscando referências na história do Ocidente. Não deixa de ser interessante, no mínimo intrigante, o fato de que ao fim e ao cabo todos os autores estrangeiros aqui citados, sem exceção, tenham elogiado o Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes – o Pedregulho (obra de Affonso Eduardo Reidy, de 1947). O fato apenas chama a atenção por um detalhe, talvez desimportante: esse arquiteto carioca foi considerado uma das maiores influência à arquitetura paulista, especialmente em obras onde usa concreto aparente, como no MAM do Rio de Janeiro, escola que viria a ser protagonista da arquitetura brasileira nos anos 1960 e 1970. Essas críticas certamente não ficaram sem resposta. Foi principalmente na figura de Lúcio Costa que elas vieram, como no texto “Oportunidade perdida” de 1953, no qual em franca réplica à análise racionalista de Max Bill, desenvolve um argumento que visa basicamente desmerecer a qualidade de tal crítica por entender que Bill era um “designer”, e, portanto não poderia compreender o estatuto própria da arquitetura como um todo, muito menos da nacional. Por outro lado, e de maneira menos confrontativa, Niemeyer aproveita a situação para fazer um balanço geral de sua produção, em artigos como “O problema social na arquitetura”, de 55, que marcaria uma nova fase em sua produção, muito mais sintética, num movimento de reaproximação com os debates da ética e estética, tendo no Museu de Caracas obra de maior relevo do período. Contudo não foi somente de fora que vieram importantes crítica à nossa arquitetura moderna. Em solo nacional também articularam-se textos e artigos em torno de nossa produção, passando por análises de críticos literários como Robert Shwarz e Mário de Andrade, até a figura central do crítico de arte Mário de Pedrosa. É nesse período que o crítico pernambucano escreve seu primeiro artigo sobre arquitetura, em 1952 no Jornal do Brasil, onde destaca que são necessários novos instrumentos de compreensão da disciplina, em especial a dimensão do movimento no espaço. Contudo ele o faz aproximando sempre a linguagem das artes plásticas à da arquitetura. Além disso, a linha mestra de seu pensamento se estrutura a partir da dialética entre as influências internacionais e o “espírito brasileiro”: Assim, o crítico apresenta dos dois pólos principais da construção de seu pensamento dialético: o elemento internacional da vanguarda, que atualiza e moderniza a cultura brasileira com as novas descobertas e invenções da ciência e da arte, resgatando-as de seu isolamento provinciano e do atraso no contexto do capitalismo, decorrente da condição de nação colonizada; e o elemento regional, o “espírito brasileiro”, a tradição herdada do contato do homem com seu ambiente, que também só é valorizada devido à presença dos movimentos de vanguarda internacionais que aqui chegam, como o surrealismo e o primitivismo.66 65

XAVIER, Alberto (org.) Depoimento de uma geração – arquitetura moderna brasileira. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 167. 66 PAIVA, Cristina. Crítica da Arte e Crítica de Arquitetura em Mário Pedrosa. (Desígnio, São Paulo, n.2, p. 111, 2004.

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Articulado a esse debate, há sempre a problemática social e política do modelo de desenvolvimento da sociedade brasileira. Não podemos nos esquecer da militância trotskista do autor e sua filiação ao movimento surrealista dos anos 1930 em diante, indicando uma resistência à centralização que o Partido Comunista – o “partidão” – impunha inclusive em termos de linguagem artística, no caso, pela prevalência do figurativismo stalinista sobre outros estilos artísticos. Foi esse movimento de defesa da arte abstrata, na busca da síntese entre objetividade e subjetividade, que o aproximou dos ideários de Flavio de Carvalho, o que explica em parte o pioneirismo a ele atribuído, juntamente a Gregori Warchavchik, como protagonistas da arquitetura moderna no país por Pedrosa. Mário Pedrosa trata também, e com muito afinco, a questão da construção de Brasília. Não só deixa claro seu otimismo quando da construção da nova capital – como força constitutiva de um projeto estético moderno em escala territorial urbana, integrando socialmente um país ao redor de uma idéia de modernização – como também critica as contradições do processo político nacional. Outro brasileiro, desta vez arquiteto, que figurou entre um dos que discutiu não só a arquitetura brasileira mas a própria crítica foi Eduardo Corona. Em seu artigo “Da necessidade de crítica sobre arquitetura”, publicada na revista Habitat de 1951, é possível levantar uma série de questões sobre como a crítica de arquitetura era então entendida no seio disciplinar da profissão. Dois fatos são absolutamente intrigantes neste texto. Primeiramente a forma como a arquitetura encontra-se sob jugo da crítica de arte, inclusive não existindo o termo “crítica de arquitetura” nele. Essa ideologia da arquitetura enquanto arte sob o signo da comunhão das artes é marcante desse período, e pode ser observado quando Corona fala do cidadão comum, que “despresa (sic) a “arte” da arquitetura para servir-se apenas de um utilitarismo primário que concorre para a deturpação da arte em geral e de sua conceituação.” Ou seja, o funcionalismo cru da construção seria uma percepção corrente que colocaria em risco não apenas a arquitetura mas todas as artes – dado que há entre elas uma conexão indelével. Um dos desdobramentos de tal visão é que em vários momentos vê-se como a arquitetura é analisada sob aspectos referentes às outras expressões artísticas, como quando o autor fala que “O que é mais acessível à compreensão geral num simples quadro, não é da mesma forma numa fachada de uma obra de arquitetura, ainda que colorida.” Ora, a frase faria sentido de criticasse exatamente o que parece defender: que a arquitetura é analisada sob instrumental estranho a seus procedimentos, fato visível quando lida-se com a parede enquanto simples plano pictórico comparável a um quadro. Outro fato observável no texto é o de que a crítica se confunde com uma militância da nova linguagem, quer dizer, do modernismo que há vinte anos se desenvolve no país mas precisa ainda conquistar o debate público da arte. Essa se confunde com a crítica operativa, dado que submete uma análise da obra ao valor anteriormente dado pelo projeto e seu discurso positivo, atingindo até tons panfletários, a ponto do autor afirmar que “É indispensável que o arquiteto exerça uma influência sobre a opinião pública e a faça constatar os meios e os recursos da nova arquitetura”. O texto segue então depreciando o ecletismo do período anterior, taxado de “mau gosto na decadência da arte”, para em seguida afirmar que “é a crítica da arte quem pode 82


divulgar e caracterizar a função social dessa arquitetura (...)”. Mais adiante ele mostra sua preocupação em não isolar a arquitetura dentro do “movimento artístico brasileiro”, e termina o texto com tom grandiloqüente, como quem de fato crê no poder redentor da arte: Portanto, à crítica, exercida com honestidade, dentro de nossas fronteiras, tem que caber a divulgação de seus princípios, a grandeza do seu presente e o alcance do seu futuro, na luta pela paz e pelo bem estar do homem brasileiro. Um último fato observável é como desde aquela época, quando houve uma ebulição nos debates sobre a crítica de arquitetura que se exercia sobre uma escola carioca, reclamava-se de um descaso generalizado da crítica de arte sobre o tema da arquitetura, o que hoje poderíamos traduzir quase que numa ausência da própria crítica de arquitetura. Quanto a isso é realmente impressionante o texto de Sylvio de Vanconcelos “Crítica de arte e de arquitetura”, de 57, talvez a mais lúcida análise dos problemas que ainda assombram certa compreensão da arquitetura enquanto simples extensão das artes plásticas. Nele, o autor mostra as limitações dos críticos de arte a, de um lado (cobrados por nomes como Edgar Graeff e Mário Pedrosa), aproximarem a arquitetura às outras artes; e por outro, de se debruçarem sobre as especificidades da disciplina. Posteriormente faz um sábio comentário sobre duas fases necessárias da crítica de arte: a primeira um tanto institucional, de preparar “condições para a existência das novas correntes artísticas, educar o povo para recebê-las, convencer, antes de dedicar-se à análise intrínseca de suas manifestações concretas”67, para então poder debruçar-se sobre elas. Para ele, um problema seria que, mesmo passada a “etapa inovadora” (ou seja, a fase de instauração de uma linguagem modernista no país), “(...) o que parece entravar o pleno exercício dessa crítica é ainda o apego à posição que esposou no período revolucionário, isto é, a aceitação da indissolubilidade do particular com o geral, da obra em si, individuada, como a arte no conjunto.” Em seguida, critica nossa postura protecionista, na qual “A obra, em sendo moderna, é bela, se autojustifica”, que polariza o debate para ou a total adoração e louvação da arquitetura moderna, ou sua rejeição em bloco e acusação de reacionarismo. Como ele mesmo afirma: “Como, pois, despertar a crítica para o assunto se ele é intocável?” Outro ponto desenvolvido pelo autor: “Todavia, a tendência da crítica atual é limitar-se apenas ao aspecto plástico da arquitetura. Talvez porque esta crítica seja somente de arte, composta de críticos de arte.” Sylvio de Vasconcelos deixa claro o problema disciplinar que se funda ao se estabelecer uma relação orgânica entre arte de arquitetura, sem conseguir definir campo autônomo para a segunda. Este estudo considera que tal formulação, feita por Pedrosa, Corona entre outros, foi incapaz de chegar a arriscar uma crítica arquitetônica em termos próprios, ou pelo menos nos termos que é compreendida em nossos dias. Além disso, o crítico de arte expõe como é difícil criticar nossa arquitetura moderna, que ainda encontrase blindada por um certo discurso operativo de autoafirmação. Assim, podemos identificar nos anos 1950 três linhas de pensamento crítico, quer sejam:

67

XAVIER, op. cit., p. 289.

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a. uma crítica exógena, desenvolvida principalmente por arquitetos estrangeiros em momentos e espaços oportunos; b. uma crítica artística-cultural, feita prioritariamente por não-arquitetos, e que não foi capaz de desenhar uma disciplina própria para a arquitetura e sua análise; c. uma crítica ideológica, ligada à uma escola paulista em formação, que tinha nas idéias veiculadas pela revista Habitat, sua “lança” de ação. Ou seja, o que podemos compreender a esta altura da pesquisa é que nem Lúcio Costa nos anos 1930, com sua crítica operativa; nem os autores envolvidos na revisão crítica da escola carioca – fundada exatamente no primeiro momento analisado – vinte anos depois, foram suficientemente capazes de instituir uma crítica de arquitetura no Brasil, entendida enquanto campo estruturado de ação de um corpo crítico na produção de uma análise sistemática da arquitetura nacional e internacional. Certamente houve episódios intermediários, mas que não chegaram a constituir um momento mais amplo de discussão da arquitetura, como foi o exemplo do texto de Ferreira Gullar, “Cultura posta em questão”, de 1965, onde o artista neoconcretista fala da “ausência de crítica de arquitetura no Brasil”, em decorrência do II Congresso Brasileiro de Críticos de Arte ocorrido em 1961 na cidade de São Paulo. O interessante desse momento foi que em tal congresso, como afirma Gullar, os próprios arquitetos reclamaram da ausência de interesse dos críticos de arte pela arquitetura. A noção, portanto, de uma crítica de arquitetura feita por arquitetos ou por pensadores intimamente ligados à área ainda não existia ou existia de maneira muito frágil. O cenário, como vimos na metade deste capítulo em discussão sobre a criticalidade, não mostrou-se muito diferente uma década depois, quando do entendimento de que a crítica se fazia nos escritórios, através do projeto, ou mesmo quase cinqüenta anos depois, quando a arquitetura ainda seria catalogada dentro da sessão de “Artes Plásticas” pela revista Bravo! Essa breve análise dos anos trinta e cinqüenta apenas serviu, afinal, para reafirmar nossa idéia central de que é apenas nos anos 1980 que a crítica surge em todo seu potencial no Brasil. Enquanto que, no arco temporal que separa Brasília do primeiro ano de nosso estudo – 1985 – temos um curto período democrático absolutamente polarizado entre as forças mais progressistas e retrógradas de nosso país, até a queda do Presidente João Goulart, em 1964, e a instauração da ditadura militar. Como veremos no próximo capítulo, a ditadura represou uma série de forças intelectuais que estavam construindo o campo disciplinar da crítica de arquitetura.

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3

OS TEMPOS DA CRÍTICA

3.1 Brasília consciência cindida

1975 | 1985

(...) a complexidade contemporânea da contracultura revelou os anos de 1960 em 1975.1

E foi no seio da contracultura, ou melhor, de certo questionamento do estado geral do pensamento e da cultura, que a crítica de arquitetura no Brasil se fortaleceu e fincou raízes para posterior desenvolvimento. Como afirmam Maria Alice Junqueira Bastos e Ruth Zein, “Há, nessa passagem dos anos 70 aos 80, no Brasil, uma coincidência entre trabalhos e idéias dos anos 60 que ficaram represados (...)”2 Assim, desenha-se num panorama mais amplo de nosso estudo dois horizontes: o distante da inauguração de Brasília, em 1960, como marco de um momento central de inflexão na ideologia modernista na arquitetura brasileira; e o horizonte próximo, ou passado imediato, que diz respeito ao período que vai de 1975 a 1985 demarcando essa soltura e organização dos elementos de questionamento fundamentais para os anos 1980 em diante. A capital federal é um marco tão fundamental em nossa arquitetura que é por muitos considerada a superação de uma unidade mítica que governou nossa produção na chamada fase heróica, que vai dos anos 1930 aos 1960, representada especialmente pela escola carioca nas figuras de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Em Brasília vê-se o triunfo e o fracasso do projeto moderno no Brasil. É a materialização de uma utopia, e, ao mesmo tempo, a realidade crua da ditadura chegando ao poder e frustrando qualquer utopia modernista. É nessa cidade que muitas das contradições do pensamento moderno se mostram em sua pior face. Por essas razões: (…) toda La arquitectura brasileña actual es siempre pos-Brasilia, y no sólo cronológicamente, tenga o no conciencia de este hecho. El agotamiento cada vez más evidente del repertorio, y la cristalización mecánica de su ideario podrían, si fuesen libremente debatidos, haber servido para una vitalización y una apertura conceptual acerca de los caminos que convenía seguir.3 Ou seja, momento de amadurecimento, era hora de revermos toda estrutura mental que havíamos lutado tanto para constituir, desde a briga na Belas Artes pela instituição de 1

BASTOS, Maria Alice Junqueira. Pós-Brasília: rumos da arquitetura brasileira. São Paulo: Perspectiva/FAPESP, 2003. In: Luiz Paulo Conde: Um Arquitecto Carioca. Santa Fé de Bogotá: Universidad de Los Andes/Escala, 1994 – Coleccion somoSur, p. 58 2 BASTOS, Maria Alice Junqueira; ZEIN, Ruth Verde. Brasil: arquiteturas após 1950. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 201 3 ZEIN, Ruth Verde. Arquitectura brasileña en La década de los 80: algunas tendencias. In: TOCA, Antonio. Nueva arquitectura en América Latina: presente y futuro. Barcelona: Ediciones G. Gili/México, 1990, p. 228

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um ensino de arquitetura moderna, até a sua afirmação frente a uma sociedade em vias de modernização. De 1960 a 2010 vai-se meio século, tendo em 1985 a comemoração dos 25 anos da inauguração da capital. Não foram, portanto, escolha arbitrária a dos os anos de recorte do estudo. De alguma forma eles representam um ritmo no qual a cada tanto, nosso marco maior de modernidade é revisto e rediscutido a partir de instrumentos metodológicos, teóricos e históricos diferentes. O ano 0 de nossa sequência história pode ser considerada portanto 1960, quando afinal passamos de uma “consciência ingênua” para uma “consciência crítica”, nas palavras de Robeto Segre.4 Tal passagem não é fato vulgar, e demonstra um ímpeto de superação de um discurso totalizante, utópico e formalmente determinante que a partir daí será continuamente questionado, em que pese que os anos sessenta em si tornaram-se absolutamente impermeáveis às críticas à cidade moderna, que já estavam sendo feitas ao redor do mundo. Porém, como afirmado ao começo deste capítulo, tal ímpeto foi atrasado ou obstacularizado pela ditadura militar e determinada polarização e atrofiamento da crítica de arquitetura. Afora episodias análises consistentes, como a feita por Sérgio Ferro no final dos anos 1960, foi somente nos anos 1980 que Brasília pôde ser analisada de maneira mais radical, de forma que “Nenhum (paradigma) foi mais vigorosamente demolido nos anos 80 que a “cidade funcional”, exemplificada por Brasília”.5 Os anos do recesso democrático, de 1964 a 1985, enfraquecem e dificultam o pleno desenvolvimento da nova consciência cindida, crítica, que apesar disso toma a experiência da ditadura como a culminação das contradições de nosso modernismo. O projeto modernizador, a elevação do espaço público a categoria nevrálgica de nosso pensamento, a forma plástica da liberdade, nada se sustentou frente à colonização da nova capital pelo poder militar: Brasília, realizando essa utopia da modernidade – a idéia da construção da cidade sem barreiras como cristalização do advento da sociedade sem fronteiras econômicas -, pôs em é um mito e ao mesmo tempo desnudou-o, pondo à luz suas mais íntimas contradições. O golpe militar de 1964 não mudou esse fato, nem interrompeu esse processo: apenas o deixou mais “patente”. Enquanto as obras modernas eram exceções de excelência em cidades baseadas em outros pressupostos urbanos, podiam clamar seu estatuto de exemplos de um ideal de mudança político-social, seu eventual insucesso nesse objetivo sendo fruto dessa inadequação urbana. Mas, quando se está no âmbito inquestionável da cidade moderna, o que justificaria essa ineficácia?6

4

SEGRE, Roberto. Arquitetura brasileira contemporânea = Contemporary brazilian architecture. Rio de Janeiro: Viana & Mosley, 2004, p. 16

5

COMAS, Carlos Eduardo Dias. Em debate, a crise dos anos 80 e tendências da nova década. PROJETO, edição 129, jan/fev. 1990, p. 165 6 ZEIN, Ruth Verde. O lugar da Crítica: ensaios oportunos de arquitetura. Porto Alegre: Centro Universitário Ritter dos Reis, 2001, p. 46-47.

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3.1.1 Ditadura e a oclusão da crítica A crítica de arquitetura conduz inevitavelmente ao exame global dos problemas econômicos e sociais, e a uma tomada de posição diante deles”, afirma Ferreira Gullar, em seu artigo “Ausência de uma crítica” (1963). Ausência que sempre marcou a arquitetura brasileira, mas se tornou aguda no período de pós-64, com a progressiva extinção das publicações especializadas, a repressão política pós-68 e a censura à imprensa, o que, só após 1975 modifica-se.7 Ruth Verde Zein nos informa duas questões aqui: primeiro esclarece nossa nãotradição em crítica até os anos 1960, reiterando as ponderações do capítulo anterior sobre a qualidade de nossa crítica até então; depois marca com precisão o período de retorno ou nascimento de uma crítica no seio disciplinar, avaliando ainda que de maneira indireta a importância social de tal prática. Como veremos agora, os anos 1970 foram anos de grandes convulsões econômicas e políticas, momento de inflexão no regime ditatorial que havia se instalado no país. A ditadura militar mostrou-se um retrocesso em vários campos da vida civil e cultural do Brasil, expondo as contradições de nossa modernidade, sociedade e arquitetura. Ao mesmo tempo em que novos programas, como aeroportos e hidrelétricas, passam a surgir em maior número, há certa vulgarização da linguagem modernista, especialmente sob influência da escola paulista nas figuras de João Vilanova Artigas e Lina Bo Bardi, com arquitetos adotando “atitudes “pseudo-funcionalistas” de escassa elaboração espacial, sem o conhecimento e o aprofundamento cultural de seus inspiradores.”8 Dentro do projeto do “Brasil Grande”, em época de pleno vigor econômico que de certa forma abafava uma profunda insatisfação política em diversos setores da sociedade, a arquitetura serviria de retórica do poder, onde acrobacias estruturais atrás de uma linguagem monumental foram praticadas de forma corrente, ilustrando uma constrangedora relação entre formas modernas e governo conservador. Renato Anelli levanta a hipótese de que tal associação poderia ser uma das responsáveis pelo “antimodernismo” que surgiu nos anos da redemocratização.9 Além disso, foi nesse período de “milagre econômico” que os arquitetos passaram a ter um grande número de novas encomendas, trabalhando intensamente, fato por muitos citado como causa “da falta de tempo para a reflexão e crítica sobre suas próprias obras quanto para a discussão com outros arquitetos.”10 Soma-se a isso o desaparecimento das revistas de arquitetura no começo dos anos 1970 e uma retração generalizada do mercado editorial pela censura imposta à imprensa e às publicações em geral, e também o fato de 7

ZEIN, Ruth Verde. As tendências e as discussões do pós-Brasília. Projeto, ed. 53, 1983, p. 76.

8 NEVES, Mauro Nogueira In MONTEZUMA, Roberto (org.). Arquitetura Brasil 500 anos: o espaço integrador – Architecture Brazil 500 years: integrating space. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2002, vol. 2, p. 147. 9 ANELLI, Renato. Architettura Contemporanea: Brasile – arquitetura brasileira entre 1957 e 2007. mdc, 06 set. 2011. Disponível em: http://mdc.arq.br/2011/09/06/architettura-contemporanea-brasilearquitetura-brasileira-entre-1957-e-2007/#more-6686 10 NEVES, op. cit., p. 167.

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termos muitos importantes nomes de nossa arquitetura em exílio, tendo em Niemeyer e Artigas os casos mais paradigmáticos, entre tantos outros. Quase como causa e efeito, a arquitetura tornava-se burocratizada, canonizada, intocável. Os pressupostos modernistas até ali alcançados eram cada vez mais blindados, e uma linguagem considerada univocamente correta impunha-se sobre nossa prática. Tal panorama impedia uma autocrítica profunda, que há anos sentia-se necessária. Como constata Hugo Segawa: Evidências técnicas e formais que simbolizavam uma visão de modernidade, certa compostura legitimadora de uma arquitetura sem crítica ou críticos, num tempo de generalizada desconfiança e perseguição policialesca, no qual o criticar era uma atitude reprimida ou interpretada como delação política.11 Ou seja, a crítica estava diante de um dilema: se por um lado não podia instituir a dúvida no seio da disciplina, dado que esta estava em franco momento de debilidade e autoafirmação frente a uma realidade que a oprimia, por outro era apenas através de uma profunda reavaliação de nossa modernidade que iríamos conseguir reinstituir a relevância da arquitetura no cenário cultural. Afinal, finalmente o arquiteto saía da ação isolada e conseguia elevar seu desenho a uma escala muito maior no cenário urbano e territorial. Ou seja, por mais que as condições políticas se mostrassem adversas, um proselitismo discursivo e uma prática convicta das benesses da modernidade foram fatores cruciais para uma produção considerada por muitos maneirista, altamente critivável e superficial. O exponencial aumento quantitativo de obras gerou um modeus operandi que, nas palavras de Mauro Neves, “será recorrente na nossa produção arquitetônica nas décadas seguintes, em que pese o surgimento, nos anos 1980, de uma brava geração de críticos e arquitetos-críticos de arquitetura.”12 Ou seja, se por um lado finalmente o país passava a ser majoritariamente urbano e a linguagem moderna finalmente se reproduzia de maneira quase incontrolável, houve uma sensível queda da qualidade do pensamento crítico sobre o fazer arquitetônico, ainda mais quando o contexto político polarizava as ideologias, num panorama onde ou você era conivente com o sistema portanto reacionário, ou resistia a ele através da adoção de uma linguagem de vanguarda, ainda que em certa medida já estabilizada. Os eventos e congressos de arquitetura passaram a ser cada vez mais incomuns, gerando um isolamento na classe cada vez mais dividida. O isolamento dos arquitetos entre si só não era maior, talvez, que o afastamento que a arquitetura brasileira sentiu em relação ao debate internacional de arquitetura. Tal postura pode ser claramente observada na entrevista de Sérgio Ferro a Marlene Acayaba: Nesse momento chegava uma etapa em que por vaidade achávamos que já tínhamos um caminho próprio. Assim, nos interessava muito mais aprofundar esse caminho que ir buscar fontes ou contatos fora. Dessa forma, os livros eram lidos mas não marcavam. Porque aí o trabalho político se confundiu com o trabalho de arquitetura. Todo pensamento político nos levava a não poder mais utilizar certo tipo de informação de fora, que não se adequava à nossa militância radical.13

11

SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil. 1900 – 1990. São Paulo: EDUSP, 2010, p. 190 NEVES, op. cit., p. 168. 13 FERRO, Sérgio. Entrevista a Marlene Acayaba. PROJETO, edição 86, 1986, p. 68. 12

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Zein e Bastos levantam a questão de que tal impermeabilização aos debates internacionais possa ter nascido antes mesmo da ditadura, mostrando inícios já nos anos 1960 quando tal indiferença “parece ter sido uma reação à crise da opinião internacional sobre a realização de Brasília, fomentando um retraimento agravado (mas não causado) pela situação política nefasta instalada pelos governos militares.”14 Tal situação levou a que a crítica fosse exercida muito mais fora do que dentro do país, como indica Aracy Amaral: Assim, em verdade, hoje, a crítica da arquitetura contemporânea brasileira – e isso com o desconhecimento da maioria dos arquitetos brasileiros do nosso tempo, em geral pouco articulados com o meio exterior, é feita fora de nosso País e mesmo no continente, a partir da Colômbia, México, Estados Unidos, Venezuela etc. (...) E, de maneira geral, até que isso mude, continuaremos uma arquitetura sem crítica, sem autocrítica, fechada sobre nós mesmos e nossos mitos, incapazes de orientar as novas gerações de arquitetos, posto que lhes dando uma visão eufórica de uma área de trabalho que eles mesmos já aprenderam, em revisão que já se anuncia, a julgar com severidade. E isso pelo contagiante e viciado clima de preservação da imagem de nossos arquitetos – em conseqüência de perseguição política de que muitos foram alvo em determinados períodos – pelos próprios arquitetos.15

3.1.2 No mesmo Rio Se foi na capital fluminense que a arquitetura moderna ganhou projeção nacional é também nela que a mesma torna-se objeto de debate, inaugurando uma nova fase em nossa produção. Entre 1976 e 1978 o Instituto de Arquitetos do Brasil-IAB do Rio hospedou uma discussão a nível nacional gerando depoimentos depois reunidos nos três livros “Arquitetura Brasileira após Brasília/Depoimentos”16. Impressiona a lucidez do livro já em sua Introdução, que aponta uma série de problemas conjunturais de nossa arquitetura. Indica nosso desconhecimento da produção dos últimos anos, especialmente quanto às profundas modificações profissionais por que passava a categoria. Além disso, o país passou (desde 1960 até o ano dos debates, 1976) por uma acelerada e muitas vezes pouco planejada metropolização, uma quase duplicação da população, grande proliferação das escolas de arquitetura entre outros. Os autores das coletâneas apontam ainda para a falta de coragem da classe em discutir os novos problemas colocados, acertos e erros, e que as poucas discussões existentes se davam em espaços de bastidores, e 14

BASTOS, Maria Alice Junqueira. Pós-Brasília: rumos da arquitetura brasileira: discurso, prática e pensamento. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 2003, p. 353. 15

AMARAL, Aracy Abreu. Arte para que? a preocupação social na arte brasileira. 1930-1970. São Paulo: Nobel, 1984, p. 277 16 IAB/RJ. Arquitetura Brasileira após Brasília / Depoimentos. Rio de Janeiro: IAB RJ, 1978. Os três volumes reúnem os depoimentos dos arquitetos: Luiz Paulo Conde, Julio Katinsky, Miguel Alves Pereira, Carlos M. Fayet, F. Assis Reis, Marcello Fragelli, Ruy Ohtake, Edgar Graeff, Flavio Marinho Rêgo, Joaquim Guedes e João Filgueiras Lima.

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não no campo da cultura, afetando a disciplinaridade da crítica, que, à época, “tem sido um verdadeiro tabu.” Nesse mesmo texto introdutório fala-se da falta de uma “formulação crítica real” no seio do ensino e prática de projeto, priorizando ou continuando a cultura do gênio criador, o que impediria uma especulação teórica consistente, chegando ao ponto em que “nosso projeto é inconsistente enquanto fundamentação teórica e crítica; nossa estrutura de profissão é débil; nossa contribuição político-social discutível.” O desafio colocado é enorme. Primeiro reorganizar o campo do debate amplo, franco e coerente, articulá-lo com a teoria e crítica e localizar os fatos e pensamentos no plano histórico, uma vez superada uma mítica do discurso moderno. A realidade enquanto insumo projetual e conceitual torna-se um dos fenômenos mais importantes então, e a cidade real torna-se um problema central na arquitetura, num panorama político e econômico mais complexo do que antes. Um dos arquitetos fundamentais do período é Luis Paulo Conde, que em pequena retrospectiva dos anos pré-Brasília já sugere uma nova visão, nos anos 1950, do arquiteto e sua participação na discussão das cidades. Além disso, fala da proliferação das escolas de arquitetura e a descentralização das decisões políticas e como isso vai acentuando as diferenças regionais, previsão que se confirma nos anos 1960, a ponto de afirmar que “Na minha opinião, os regionalismos vão se acentuar apesar das facilidades de comunicação.” Porém, é Miguel Pereira quem faz o depoimento mais contundente quanto à nossa crítica nos últimos quinze anos desde o nascimento da nova capital. Reitera o prejuízo que uma cultura de um “movimento arquitetônico equacionado” traz sobre o pensamento da profissão, gerando pedestais que elevam as obras e seus autores a um nível além de qualquer debate crítico. Tal arquitetura “permaneceu, por muito tempo – e de certa forma permanece – sem uma crítica.” Além disso, destaca a “fofoca de bastidores” que rebaixa a um plano pessoal e desinstitucionalizado a análise crítica das obras, (talvez numa cultura tipicamente brasileira da cordialidade, conceito cunhado pelo sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda para definir nosso espírito conciliador), o que pode ser visto quando: Os grupos que existem, no Brasil, não se enfrentam no plano cultural. Enfrentam-se no plano dos bastidores, em função daquilo que a gíria permite dizer, em termos de “pixação”, no mais baixo calão do comportamento profissional e cultural.17 Em suma, tal esforço por parte da Comissão de Arquitetura do Departamento do Rio de Janeiro do Instituto de Arquitetos do Brasil foi capaz de apontar nossas “inconsistências críticas, debilidades científicas e custos sociais dos projetos e obras de arquitetura, ao mesmo tempo em que anunciava ser o momento propício a configurar um conceito de arquitetura abrangente e integrador. “18,inaugurando um novo momento de revalorização da crítica. Ainda nas palavras de Cêça Guimaraens: Enfim, apesar de alguns arquitetos considerarem que ainda é grande o analfabetismo cultural da classe, essa variada produção, realizada no decorrer 17

Ibidem, op. cit., p. 103. GUIMARAENS, Cêça. Arquitetura Brasileira após-Brasília: redescobertas?Arquitextos, São Paulo, ano 02, n. 022.02, Vitruvius, mar. 2002. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.022/799 18

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de um tempo de liberdade, demonstra que a Brasília dos Depoimentos redescobriu, de fato, novo território da crítica no Brasil. Território esse que será ampliado e aprofundado num movimento paralelo ao de redemocratização por que passava o Brasil na virada dos anos 1970 para os 1980. Um terceiro caminho que se abria e que mostrou as incongruências e a instável polarização que havia sido estabelecida nesse período foi criado pelo grupo mineiro de arquitetos liderado por Éolo Maia, Sylvio de Podestá e Maria Josefina (Jô) de Vasconcelos. Considerados por muitos autores os maiores representantes de um pensamento pós-moderno no Brasil, o grupo se articulou ao redor da revista Pampulha, que durou de 1979 a 85, tratando dos diversos temas da vida arquitetônica e cultura do país com um tom experimental, lançando mão de uma fina ironia alinhada a certo sabor de contracultura. Sem medo de serem tachados de reacionários ou levianos, eles trouxeram à tona uma série de debates que estavam desejosamente se desenvolvendo nos diversos planos da profissão, para colocá-los à vista num periódico fundamental àqueles anos. O livro “Brasil: Arquiteturas após 1950” cita o periódico, juntamente com os seminários do IAB-RJ de 1976, como os marcos fundantes da crise do modernismo no Brasil. Em paralelo à revista mineira (1975), tanto a revista Módulo como a Habitat voltam a circular no Brasil nos primeiros anos da abertura política, e dois anos depois nasce aquela que seria a mais importante revista brasileira quiçá ainda hoje: a Projeto. Sua consolidação foi identificada por Hugo Segawa como “o renascer da discussão arquitetônica em seus termos mais específicos.”19 Juntamente com a AU que viria a surgir oito anos depois, ela efetivou a profissionalização do jornalismo em arquitetura, além de ter organizado o mais importante evento de arquitetura da época: a mostra “Arquitetura Brasileira Atual” de 1983 no Centro de Arte y Comunicación – CAYAC em Buenos Aires, juntamente com a revista argentina Summa. Através de um balanço de duas décadas da arquitetura produzida no país, finalmente conseguíamos organizar a ainda obscura produção pós-Brasília e pôr à luz o cenário da arquitetura de então. O autor aponta que tal evento deu “os primeiros passos por uma nova crítica de arquitetura no Brasil.”20. Além disso, temos o Fórum de Arquitetura em Porto Alegre, no mesmo ano, cujo tema de uma das mesas principais foi “Moderno e Pós-Moderno no Contexto Latino-Americano”. A academia começava também a apresentar sinais de um amadurecimento em suas estruturas de pesquisa e ensino, especialmente com a criação do curso de doutorado, na FAU USP em 1980, que viria a ser a gênese de formação de importante parte do corpo docente das universidades no Brasil, além de ser esta sim que criará os novos parâmetros para a pesquisa em história no país. Aliás, a consciência histórica do moderno que a arquitetura passaria ou voltaria a ter nesses anos foi fundamental para os balanços e ajuizamentos que viriam a se desenvolver a partir de então, ganhando força dentro da redemocratização. Campo formado, território crítico estruturado, ambiente político cada vez menos repressor, enfraquecimento do impulso construtivo dos anos do “milagre brasileiro”, além da formação progressiva de um desejo de reconhecimento e revisão da produção arquitetônica dos anos posteriores à fundação da nova capital foram a tônica, juntamente com o enfraquecimento do discurso ideologizante da arquitetura de então, que iria levar a 19 20

SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil. 1900 – 1990. São Paulo: EDUSP, 2010, p. 193. Ibidem, op. cit., p. 194.

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uma “desideologização das ações arquitetônicas e uma tendência à sua introspecção.”21 Tal afastamento da arquitetura dos campos da sociologia, economia, política, etc. e uma rearticulação interna dos temas que haviam sido até então ignorados, como composição da forma urbana e historicidade dos tipos e temas, trouxe o embate entre um projeto de autonomia disciplinar e a determinação histórica do trabalho projetual. Como afirma José Lira quanto ao panorama da arquitetura brasileira: De um lado, tratava-se de defender a especificidade do corpo teórico da disciplina, e por extensão a autonomia formal do projeto em face de outros campos discursivos e linguagens artísticas, donde a proliferação dos estudos lingüísticos, icônicos, morfológicos e tipológicos em arquitetura (GREGOTTI, 1972; ROWE, 1976; BROADBENT, 1980). De outro lado, a hipótese da historicidade do saber e do fazer arquitetônicos pressupunha não somente a descrição crítica das intervenções projetuais vis a vis suas condições de produção, mas que a própria autonomia das escolhas formais precisava ser pensada como capítulo específico da história do trabalho intelectual e de seus modos de recepção (TAFURI, 1980).22 Como podemos notar o campo de debate já não era imbuído de ideologias moralizantes, mas antes de um desejo de rigor conceitual e disciplinaridade próprias. Tal fato já havia sido notado pelos arquitetos em 1983, quando falava-se de um “ressurgimento do debate e da crítica”23 e de uma retomada do interesse da arquitetura produzida nos últimos vinte anos, tendo como causa uma crise profissional ligada a um mercado de trabalho esgarçado e a perda da arquitetura no espaço cultural. Estava lançada a dúvida. Porém podemos ver que, se em outros países a dúvida quanto aos estatutos da arquitetura moderna atingiu níveis de confrontação e formulação teórica altíssimos, por aqui a chamada “condição pós-moderna” se caracterizaria muito mais por uma admissão da pluralidade de pensamentos e idéias e uma autoreflexão de nosso modernismo, talvez valendo a pena usar o termo “modernidade reflexiva” como sugerem Ruth Zein e Maria Alice Junqueira Bastos, que segundo as autoras: (...) parece melhor caracterizar esse processo interno de crise da modernidade arquitetônica, evitando-se assim empregar, de maneira maniqueísta, a expressão “pós-modernidade”. O conceito de modernidade reflexiva não procura lidar com o tema de maneira bipolar – fim de uma era e começo de outra; negação dos princípios modernos e substituição por outros princípios -, mas de maneira integrativa, tratando de compreender a crise como “mudanças (...) que ocorrem sub-repticiamente e de maneira não planejada, na esteira de processos de modernização (...), sem que se altere a ordem política e econômica, implicando em uma radicalização da modernidade, despedaçando suas premissas e contornos e abrindo caminhos para outras modernidades”, conforme definição de Ultich Beck.”24

21

MARQUES, Sérgio Moacir. Tendências da arquitetura contemporânea no Rio Grande do Sul: mudanças de paradigmas nos anos 1980. 1999. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, p. 33. 22 LIRA, José Tavares Correia de. A história e o fazer da arquitetura.Desígnio, São Paulo, n.11/12, p. 11, 2011. 23 ______. É preciso sacudir a poeira, criticar, discutir, se encontrar. PROJETO, edição 43, 1983, p. 78. 24 BASTOS; ZEIN, op. cit., p. 195.

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Desta forma podemos dizer que o pós-modernismo não foi tão sentido aqui, e quando ocorreu partiu muito mais de uma análise atenta da realidade e de um desejo de buscar discursos suprimidos ou experimentais no cenário da disciplina, do que de uma teorização extensa e de uma crítica militante. Apresenta assim um caráter pragmático e intuitivo, alinhado de forma geral a essa “modernidade reflexiva” e ao conceito de “modernidade apropriada”, desenvolvido no seio dos Seminários de Arquitetura Lationamericana – SAL e do debate sobre o regionalismo crítico latino-americano. Regra geral podemos dizer que ao invés de rupturas ou novas doutrinas, aplicou-se no Brasil um sentimento de permissividade que se manteria ainda por muito tempo, aliado a um desejo de retorno a uma autonomia perdida. Certamente o cenário geral não era tão homogêneo. O Rio Grande do Sul juntamente com Minas Gerais foram os dois grandes pólos do pós-modernismo em nossa arquitetura, especialmente o primeiro, dado que em 1983 Le Corbusier chega a ser simbolicamente enterrado pelos estudantes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Contudo, não se chegou a se estabelecer uma corrente predominante ou teoria capaz de articular este ou aquele núcleo. O que havia era um sentimento de resistência ao modernismo, especialmente àquele praticado nos anos 1970 na empresa do já citado “Brasil Grande”. Francisco Spadoni, em artigo-desdobramento de sua Tese de Doutoramento25 cita três dos artigos que ele considera os mais importantes do período, sendo eles “Arquitetura pós-moderna e hibernação tropical” de Eduardo Mandolfo (Módulo, n. 83, nov. 1984, p. 3641); “Arquitetura Brasileira em busca de Novos Caminhos” de Bruno Padovano (Arquitetura e Urbanismo n. 4, fev. 1986, p. 79-83) e “Pós-Modernismo, Arquitetura e Tropicália” de Luis Espallargas Gimenes (PROJETO, n. 65, jul. 1984, p. 90.), talvez o mais importante artigo do período, que desvela as causas e especificidades do debate pós-moderno no Brasil. Apesar do tema do “pós” estar muito em voga, nenhum arquiteto claramente tomou para si o título de pós-moderno, preferindo antes e sempre se identificar numa seqüência epigonal com seus mestres, como é o caso de Éolo Maia em relação a Vilanova Artigas, arquiteto que o mineiro indica como sua referência fundamental. De qualquer forma, foi esse espírito renovador que possibilitou a formação de uma crítica nacional de arquitetura, com espaços cada vez maiores e mais estáveis de atuação (em revistas de arquitetura, cursos de pós-graduação, publicação de livros nas novas editoras, etc.). Poderíamos dizer mesmo que a dúvida foi instaurada, mesmo que timidamente, nesses fazendo resurgir da crítica no país, até então asfixiada pelas contradições de “dependência e resistência” – como desenvolve Francisco Spadoni - dos anos da ditadura militar.

25

SPADONI, Francisco. Dependência e resistência:. Transição na arquitetura brasileira nos anos de 1970 e 1980. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 102.00, Vitruvius, nov. 2008. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.102/91.

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3.2 Tempos de questionamento

1985 | 1991

A arquitetura brasileira, no início dos anos de 1980, sentia mas não acusava as necessárias revisões no discurso e na prática arquitetônica. O debate da pósmodernidade somente alcançou alguma densidade tardia na segunda metade dessa década.26 Se foi a partir dos anos 70 que a crítica de arquitetura fundou suas estruturas para a formulação de um campo disciplinar, os anos oitenta representaram seu momento de maior maturidade e relevância no cenário arquitetônico brasileiro. E foi exatamente num panorama de crise geral da arquitetura que finalmente se consolidou uma intelligentsia capaz de rever nossa herança moderna à luz não só dos debates internacionais que ocorriam desde os anos 6027, ainda com pouca penetração por aqui, mas especialmente das profundas contradições que se haviam exacerbado quando da ditadura e da polarização ideológica e política da época. Maria Alice Junqueira Bastos, ao analisar o período, cita os seis aspectos que o marcaram28, quer sejam: _a tendência das obras de arquitetura a atentarem a questões como coerência construtiva e contexto; _uma crítica à historiografia moderna de então (história oficial) que seria proselitista e pouco crítica; _a insuficiência do discurso político-ideológico para a prática profissional do arquiteto; _a valorização da história em detrimento do “mundo novo” moderno; _revalorização da cidade e das pré-existencias como discurso; _valorização da arquitetura anônima e vernacular. Como veremos, tais aspectos definem a crise que é sobretudo um momento de profunda reflexão e desejo de reaproximar a arquitetura de problemas que haviam sido pouco significativos, como a questão da formação da cidade real e das favelas, e mesmo de questões teóricas e históricas, que voltam a protagonizar uma série de pesquisas reanimadas pelo clima de liberdade de pensamento típica daqueles anos. Fato é que a arquitetura entendida enquanto campo circunscrito da atuação humana, que margeia todas as áreas de conhecimento, desde a medicina até a sociologia, voltava a estar no centro dos problemas profissionais. Ela não era mais compreendida a partir de outros saberes – que vez ou outra poderiam levar a impasse, como ocorreu com as questões teóricas levantadas pelos arquitetos da chamada Arquitetura Nova29 - mas sim do objeto construído e das 26

SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil. 1900 – 1990. São Paulo: EDUSP, 1998, p. 191. Especialmente a partir de livros como Complexidade e contradição em arquitetura, de Robert Venturi lançado em 1966, ou Arquitetura da cidade, de Aldo Rossi, do mesmo ano. 28 BASTOS, Maria Alice Junqueira. Pós-Brasília: rumos da arquitetura brasileira. São Paulo: Perspectiva/FAPESP, 2003, p. 14-15. 27

29

Grupo composto pelos então estudantes da FAU USP Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèvre e Flávio Império que buscavam compreender a atuação do arquiteto no sistema capitalista, e o canteiro enquanto espaço de extração de mais valia.

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pesquisas teórica, crítica ou histórica a ele envolvidas. Tal superação não se deu sem algum trauma, sentido ainda hoje, e que se refere a uma “desideologização” por vezes exacerbada na disciplina. Como afirma Sant`Anna: Hoje, essa noção, que reitera o caráter da arquitetura como disciplina em busca da autonomia, se generaliza cada vez mais, sendo incorporada tranquilamente pelos jovens arquitetos, que não foram “contaminados” pela ilusão da “revolução pelo desenho” nem pela desilusão do “não-desenho”.30 Se por um lado tal retorno a certa autonomia significava também uma posição de suspeita frente a questões políticas, econômicas, materiais, etc. sobre as quais a profissão não tinha projeção direta, por outro o campo estava cada vez mais interdisciplinar, desejoso de se alimentar dos vários pensamentos desenvolvidos no auge do pós-modernismo mundial e brasileiro, em termos amplos da cultura. Ou seja, a arquitetura redesenhava sua posição relativa dentro do campo da cultura, o que não significava dobrar-se ao otimismo no desenho que marcou o grupo reativo aos problemas colocados por Sérgio Ferro e colegas anos antes. Estávamos mais atentos. A dúvida havia se instaurado. Uma autora que desenvolve um pouco mais o tema é Sophia Telles, quando diz que: De um lado, a demanda de autonomia em relação às determinações técnicas e econômicas que circunscreveram o projeto social do Movimento Moderno afirma o desejo de recuperar para a arquitetura uma específica institucionalização no campo cultural. De outro lado, essa mesma demanda a faz procurar seja na tradição, seja nas práticas convencionais ou contextuais os pressupostos de onde possa partir, digamos, de novo. É como se os efeitos do racionalismo tivessem produzido uma fenda, uma lacuna cultural pela exacerbação do cientificismo que acabou por transferir para o urbanismo o modo operativo da sociologia e que transformou o projeto em um pacote pronto de procedimentos mecânicos, mais ou menos uma metodologia de macetes.31 No mesmo texto a autora indica que o pós-modernismo pressupunha uma autonomia mais ampla, da Arte em relação à Técnica, quando no modernismo ambas áreas pretendiam-se em comunhão na constituição do homem novo. Porém o que intriga em todo o raciocínio é exatamente essa denominada “fenda” entre um procedimento de “macetes” na projeção do artefato arquitetônico, por um lado, e a compreensão sociológica da cidade do outro. A busca de um fazer projetual mais aproximado do substrato real de nossas metrópoles e a dúvida na linguagem moderna foram vetores convergentes na reorganização teórica de nosso campo. Os artigos críticos de Carlos Eduardo Dias Comas, “O espaço da arbitrariedade. Considerações sobre o conjunto habitacional BNH e Projeto da cidade brasileira” e “Nemours-sur-Tietê, ou A modernidade de ontem”32 são, muito possivelmente, aqueles que através de uma análise morfológica do urbanismo moderno constituíram a crítica mais direta a esse modelo. 30 SANT`ANNA JÚNIOR, Antonio Carlos. StradaNuovissima. Os caminhos da nova geração de arquitetos. PROJETO, edição 143, 1991, p. 55-56 31

TELLES, Sophia da Silva. O frágil cotidiano. AU, edição 4, 1986, p. 34/37 COMAS, Carlos Eduardo Dias. O espaço da arbitrariedade. Considerações sobre o conjunto habitacional BNH e o Projeto da cidade brasileira. PROJETO, edição 91, 1986, p. 127-130; COMAS, Carlos Eduardo Dias. Nemours-sur-Tietê, ou A modernidade de ontem. PROJETO, edição 89, 1986, p. 90-93.

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No primeiro artigo, Carlos Comas critica o sistema de provisão de habitação de interesse social que o governo militar havia implementado, baseado numa arquitetura marcada pela monotonia na implantação e mediocridade na qualidade da obra construída, sempre em locais distantes das infra-estruturas básicas e serviços da cidade, dentro do discurso monofuncional dos CIAM. Porém se esse artigo já inaugurava uma crítica que viria a ser reiterada nos anos posteriores por uma teoria urbanística, foi no segundo artigo que o autor atingiu um tom provocador quanto a tudo o que se produzia até então. Impressiona a forma como comenta o projeto de Niemeyer para uma área às margens do Rio Tietê, falando inclusive como tal arquitetura só poderia se dar num clima de homogeneidade típico dos regimes ditatoriais, parte de uma “modernidade que já era”. Critica também seus defensores, que ainda relacionavam obras de Oscar a uma arquitetura “verdadeira e genuinamente nacional”, num panorama amplo dentro do qual “a arquitetura moderna brasileira apresenta hoje sintomas de anemia”, sendo o projeto comentado chamado de bolacha velha. O desejo de renovação do discurso para a compreensão da diversidade geográfica e arquitetônica do país é patente, e culmina quando o arquiteto gaúcho questiona o estatuto mesmo do gênio nacional, em contraposição a um “escrutínio do projeto”, num modelo de ensino e reprodução da ideologia moderna na qual “quem sabe faz, quem não sabe critica” já aqui explicitamente rejeitada. Também é muita lúcida a compreensão do texto de que a crítica – aí chamada de prática sistemática do escrutínio do projeto – não é suficiente para sair do estado de anemia no qual encontravanos, porém era fundamental para tanto. O texto termina lançando o desafio urgente de reconhecer as limitações do modernismo, para então construir uma “modernidade de hoje”. Nesse caminho também podemos localizar outro artigo de mesmo autor, pedra fundamental de um processo geral de revisão de nossa própria historiografia, como ele mesmo afirma em 2002 em resposta ao artigo “Enfim uma nova história”33. Em “Protótipo e monumento, um ministério, o ministério”34 Carlos Eduardo Dias Comas faz uma exegese do edifício considerado marco inicial de nosso modernismo – o Ministério da Educação e Saúde Pública, de 1936 – contribuindo para a compreensão de sua constituição compositiva e formal, dentro de procedimentos típicos das Belas Artes, subvertendo assim uma suposta originalidade e distanciamento dessa geração com relação à sua instituição formativa, ligada a uma arquitetura eclética. Outro artigo que através de uma profunda análise formal desvela as forças constitutivas de nossa modernidade pelo estudo do repertório formal de Niemeyer (questionando assim uma suposta originalidade inalcançável do autor), é o muito citado por seus pares “O Clássico, o Poético e o Erótico” de Edson da Cunha Mahfuz35. Ambos fazem parte do que poderíamos chamar de uma escola gaúcha de pensamento, muito mais influenciada pelas teorias cisplatinas e anglo-saxônicas (como o formalismo de Colin Rowe) do que as outras regiões do país, consagrando-se no cenário da crítica por sua erudição e consistência, e que à época foram fundamentais para um amadurecimento da análise descritiva enquanto método de destrinchamento das formas modernas. Sérgio Marques chega a pleitear o pioneirismo de tal escola no cenário nacional, quando escreve: 33

Artigo de Ana Luiza Nobre e Haifa Sabbag publicada no site vitruvius em 2001 cujos registros estão perdidos no mesmo. Agradecemos à Ana pela gentileza de ceder artigo e comentários para esta pesquisa. 34 COMAS, Carlos Eduardo Dias. Protótipo e monumento, um ministério, o ministério. PROJETO, edição 102, 1987, p. 136-149 35

MAHFUZ, Edson da Cunha. O Clássico, o Poético e o Erótico. AU, edição 15, 1988, p. 60-68

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No meu entender, no Rio Grande do Sul distingue-se o fato de o debate sobre a pós-modernidade ter havido já desde o final dos anos 1970 e de ter adquirido densidade e intensidade já desde a primeira metade da década de 1980, com ampla produção intelectual ao redor do assunto. As discussões críticas a respeito da arquitetura moderna e uma abordagem teórica dessa visão crítica, incorporando os novos argumentos sugeridos pelo pós-modernismo, começaram a ocorrer de forma mais densa e sistemática primeira aqui, antes de no restante do País.36 Outra escola mais ou menos identificável e que surge à época seria aquela formada em São Paulo especialmente dentro da revista Projeto, ligada a uma análise pragmática focada nas questões informativas que emanam da edificação, pouco ou nada importando os discursos ou questões teóricas que suportavam a obra. Caracterizada por uma descrição menos formalista e mais abrangente da obra, nomes como Ruth Verde Zein, Hugo Segawa e Abílio Guerra podem ser considerados parte dessa corrente crítica. Importa aqui fazer uma análise comparativa. Se a escola gaúcha se caracterizava por uma análise em profundidade de obras paradigmáticas da nossa modernidade, a paulista apresenta uma abrangência de obras e autores que busca compensar uma crítica represada nos anos 1960 e 1970. Como afirmado por Ruth Zein, “cremos que apenas a qualidade do trabalho do arquiteto servirá de base de argumentação para ultrapassar o impasse.”37 O impasse, no caso, dizia respeito à já comentada crise disciplinar da década de 70. Um importante texto para compreender os posicionamentos dessa geração de arquitetos que pretendia estudar o que estava sendo feito por todo o país, numa atitude ao mesmo tempo desbravadora e em alguma medida ingênua, é o “Sacudindo a poeira, mas valorizando o patrimônio” de 8538. Nele, a autora discute e inaugura o conceito de “diversidade” em nossa arquitetura, que passa a ser “a única afirmação genérica a fazer a respeito da arquitetura brasileira hoje” em detrimento de uma suposta unidade perdida, de um “panorama estagnante”. Assim surgia uma série de pesquisas e contribuições, nos diversos campos do pensamento arquitetônico, para não só colocar a arquitetura moderna no cerne dos debates enquanto objeto em crise, mas também para localizar e aprofundar os instrumentos metodológicos de sua análise. Naturalmente que não há datas precisas para a inauguração da, digamos assim, instabilidade da arquitetura moderna, e qualquer movimento nesse sentido pode parecer precipitado ou aleatório. Contudo, marcos servem antes para permitir uma primeira aproximação do que fomentar um encerramento de debate. E é assim que compreendemos o ano de 1985, aqui entendido como seminal na crítica de arquitetura em nosso país, por uma série de razões. A primeira e talvez a mais importantes é o XII Congresso Brasileiro de Arquitetos ocorrido em Belo Horizonte, evento que ao mesmo tempo homenageia João Villanova Artigas falecido àquele ano (principal arquiteto da chamada escola paulista), e dá visibilidade e protagonismo ao grupo mineiro de arquitetos, liderados pela figura icônica de 36

MARQUES, Sérgio Moacir. Tendências da arquitetura contemporânea no Rio Grande do Sul: mudanças de paradigmas nos anos 1980. 1999. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, p. 97. 37 ZEIN, Ruth Verde. O lugar da Crítica: ensaios oportunos de arquitetura. Porto Alegre: Centro Universitário Ritter dos Reis, 2001, p. 88. 38 ZEIN, Ruth Verde. Sacudindo a poeira mas valorizando o patrimônio.. (sobre a produção atual da arquitetura em razão da Bienal Latino-Americana/de Buenos Aires). PROJETO, edição 75, 1985, p. 4762.

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Éolo Maia.39 Como disse Hugo Segawa: “Creio que, se em 1985, a morte de Artigas e o XII Congresso dos Arquitetos em Belo Horizonte marcam um ponto de inflexão, ao nos deixarem, Éolo e Veveco podem simbolizar o encerramento de mais um ciclo.”40

Capa da revista Projeto nº 81 de 1985.

Esses arquitetos de Minas Gerais constituíram um grupo mais ou menos coeso que foi capaz de se estabelecer enquanto “terceira via” da arquitetura nacional, num momento em que ou você era modernista e resistia à opressão do sistema ditatorial, ou era “vendido” e fazia arquitetura para o grande capital, construindo agências bancárias, edifícios de escritórios, entre outros. Dotados de irreverência, ironia e um desejo de reconstituir uma produção arquitetônica que estava cada vez mais afastada do público - tanto no sentido de espaço coletivo quanto de expectadores e usuários do artefato construído - nomes como Joel Campolina, Sylvio de Podestá, Álvaro Hardy (Veveco) foram organizadores da já comentada revista Pampulha, que aglutinou tal geração, e tinham seu discurso notado em várias regiões do país, como quando seus principais nomes foram convidados a dar uma frutífera entrevista logo na primeira edição da recém-lançada revista estudantil Óculum, em 85, mesmo ano que o pensamento de Éolo Maia “ganha maior afinação, indicando o aceleramento ocorrido no debate da pós-modernidade (...)”41 Porém se há uma nova geração que empunhava, mesmo que inconscientemente, uma bandeira pós-moderna que discutia questões como heterotopia, também entrava em crise seu reflexo anterior, o sistema de pensamento utópico, na figura de Artigas. Nas palavras de Hugo Segawa: “Vilanova Artigas died in 1985, and with him the entire

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Há três importantes artigos sobre o tema. Ver: ZEIN, Ruth Verde. Acerca da arquitetura mineira. PROJETO, edição 81, 1985, p. 100/113; SEGAWA, Hugo. Pós-mineiridade. PROJETO,edição 165, 1993, p. 25; SEGAWA, Hugo. Pós-mineiridade revisitada. mdc, 31 nov. 2007. Disponível em: http://mdc.arq.br/2007/11/30/pos-mineiridade-revisitada-eolo-maia/

40

SEGAWA, Hugo. Op. cit.

41

BASTOS, Maria Alice Junqueira; ZEIN, Ruth Verde. Op. Cit., p. 224.

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architectural utopia of a transformed Brazil symbolically vanished.”42 Se o não lugar era uma busca razoável num clima de cerceamento das liberdades individuais no Brasil, com a redemocratização dos anos 80 a vida dita real retornava à pauta do dia – todos os lugares eram válidos. Daí que a compreensão da complexidade e dimensões da arquitetura produzida por todo território nacional surge como problema fulcral nesses anos. Além do Congresso, ocorreu o I Seminário Latinoamericano de Arquitetura - SAL em Buenos Aires, que viria a se tornar o espaço mais importante de difusão do regionalismo crítico43 no continente latino, especialmente a partir do conceito de “modernidade apropriada”, desenvolvida por autores como Cristian Fernandez Cox e Marina Waisman. Tinha como principais temas a questão da identidade regional e suas relações históricas, patrimônio e paisagem, além dos debates sobre espaço público. Com o desenrolar dos anos o regionalismo crítico perdeu força, vindo a ser a “metrópole” o tema a partir de então, no contexto da globalização. Josep Maria Montaner considera que estes seminários seriam “la muestra mas privilegiada de esta consolidación y maduración de la critica de arquitectura en America Latina”44. O principal veículo de aproximação dos SAL com a arquitetura no Brasil foi a revista Projeto, que já na primeira edição do evento enviou sua jornalista Ruth Verde Zein. Naquele mesmo ano nascia a outra revista – Arquitetura & Urbanismo – que anos mais tarde iria propor a mesma aproximação especialmente com a figura central de Jorge Glusberg escrevendo em seu espaço. Tal corrente de debate de uma modernidade de resistência chegaria ao Brasil especialmente a partir do que seria o regionalismo pragmático, em contraposição ao já citado “crítico”. Tal posição entende que por aqui não houve um processo de formulação teórica que embasasse ou desse corpo a uma produção arquitetônica articulada a tais discussões, mas antes uma prática projetiva intimamente relacionada a uma sensibilidade do local, parte mesma de nossa gênese moderna, a exemplo do Park Hotel São clemente de Lúcio Costa, dos anos 40. Nesse sentido, tal regionalismo pragmático era antes uma continuidade à nossa arquitetura moderna que uma ruptura. Por fim, quanto à importância do ano de 1985 na crítica nacional de arquitetura, podemos citar os dois concursos que foram fundamentais para termos uma primeira radiografia de nossa produção dado que desde 80 não haviam concursos no país. O primeiro deles foi para o anexo da Biblioteca Pública do Rio de Janeiro, que terminou em grande conflito e decepção generalizada, talvez pelo grande volume de propostas incapazes de responder com eloqüência e maturidade o amplo programa proposto, o edital exigente e o complexo terreno existente, antes propondo arquiteturas que lembram “um ecletismo imaturo” como disse Ruth Zein45. O segundo foi do Centro de Cultura e Lazer do SESC Nova Iguaçu, também no Rio de Janeiro e de autoria de Hector Vigliecca e Bruno Padovano, considerado um sucesso pela autora. Através de um memorial simples, entorno sem grandes determinantes projetuais e um júri mais presente - talvez mais disposto a debater e compreender a arquitetura que então se apresentava – os projetos se desenvolveram a partir de “soluções de implantação e 42

SEGAWA, Hugo. After the Miracle: Brazilian Architecture 1960-2000. In: SULLIVAN, Edward. Brazil: body & soul. Nova Iorque: Guggenheim Museum, 2001, p. 583.

43 Tema especialmente desenvolvido pelos arquitetos Kenneth Frampton, Alexander Tzonis e Lian Lefaivre. 44 MONTANER, Josep Maria. Arquitectura y crítica en Latinoamérica. Buenos Aires: nobuko, 2011, p.111. 45 ZEIN, Ruth Verde. Dois concursos e um discurso. (PROJETO, edição 153, 1992, p. 49.

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de formalização dos edifícios e não sobre propostas estruturais imaturas”. Desta forma, se no primeiro concurso os “fachadismos” não foram capazes de convencer júri e público, somente no segundo conseguimos avaliar a pluralidade do cenário arquitetônico de então, com um projeto vencedor que se tornaria paradigmático pois, afinal, “junta os ingredientes da experiência acumulada e da vontade de abrir novos horizontes dosados de maneira razoável” ainda em artigo da autora.

3.2.1 O pós-modernismo a partir da crítica Se, como vimos, o pós-moderno não se constituiu um estilo ou uma escola com forte presença no cenário nacional, parte da culpa é da própria crítica. É dela que parte a categorização e compreensão de obras como as do arquiteto Severiano Porto no norte do país, e que não deixa de ter alguma carga ideológica ao dissociarem-no de qualquer corrente internacional ou mesmo regional (referente à América latina) que a colocasse como enfrentamento de uma postura em alguma medida dogmática de nossa modernidade, especialmente aquela praticada nos anos 1960 e 1970 no seio do boom construtivo que formou nossas metrópoles. Entendendo que a teoria nem sempre precede as obras, e que muitas vezes é o crítico quem valora e localiza tal ou qual edifício em tal ou qual linha de pensamento e produção, um afastamento do teor crítico das obras ditas regionais e sua filiação a um modernismo de raiz são operações corretas mas não suficientes para a compreensão do fenômeno. Como veremos em mais de um episódio, o pós-modernismo não vingou em solo nacional tanto por uma incapacidade dos arquitetos de organizarem matrizes teóricas consistentes, como por um processo nem sempre consciente de afastamento de tais “rótulos” sobre as obras desenvolvidas nesse período. A resistência dos críticos de arquitetura para com as filiações dos debates pósmodernos pode ser considerada uma posição salutar, na medida em que demonstra um amadurecimento do “complexo de vira-lata” que sempre vicejou na cultura nacional,no qual uma crítica favorável a um projeto, feita por um arquiteto estrangeiro, conta mais do que dez críticas desfavoráveis de críticos brasileiros. Porém não será suficiente tal postura. É praticamente impossível que do dia para a noite tenhamos criado uma consciência ampliada das questões da arquitetura, superando uma indiferença e discurso ufanista dos anos da ditadura. O processo foi lento e podemos considerar que hoje estamos muito mais confiantes de nossa produção do que nos anos 1980. Como primeira questão colocamos o próprio uso do termo “pós-moderno”, rejeitado por muitos arquitetos, alguns com razão como Ruth Zein quando vê no termo uma polarização moderno x pós-moderno que não vingou no Brasil, outras vezes por puro preconceito. Fato é que uma tendência de reação iniciada à época surte efeitos até hoje, na consideração do pós-moderno como mero “estilo” ou “moda”, o que constrange a qualidade do debate instaurado pelo movimento nos anos 1980, anos inclusive largamente ignorados pela historiografia, sendo preferidos antes períodos como os anos 1940 ou, mais recentemente, os 1970. A definição de uma obra é sempre fruto, consciente ou não, de um corpo crítico que valora e filia a arquitetura a um debate específico, sendo fundamental 100


contudo que este mesmo corpo crítico tenha consciência de sua seleção, evitando assim naturalizar definições. Hugo Segawa demonstra tal consciência quando diz, analisando a obra de dois arquitetos da época, que: A atitude de Porto e Ribeiro confunde-se com alguns posicionamentos genericamente pós-modernos, mas eles são, ante o contexto de seus trabalhos e trajetória de coerência profissional, genuínos arquitetos modernos – que certa sensibilidade pós-moderna soube reconhecer e valorizar.46 E complementa, posteriormente, que “Se há alguma preocupação nesse sentido (de chamá-lo regionalista) trata-se de um esforço da crítica de arquitetura.” Um exemplo de outro crítico que ao invés de chamar Severiano Porto de moderno e sim de regionalista (assim como Éolo Maia, agora identificado como pós-moderno) é Roberto Segre47, demonstrando assim as dissoantes posições que um crítico de arquitetura pode tomar dentro de sua atividade. Um dos primeiros e quase único libelos claramente contrários ao pós-modernismo veio de dentro da FAU USP, no artigo “A negação do pós-moderno e a negação do moderno”48, já dentro da tendência de uma reafirmação da linguagem moderna, especialmente da escola paulista. No artigo, Pedro Puntoni (irmão de Álvaro Puntoni que no mesmo ano seria um dos vencedores o concurso para o Pavilhão Brasileiro de Sevilha) articula um argumento profundamente assimétrico que pretende-se equilibrado, entre os problemas do modernismo e do pós. Se por um lado faz uma análise filosoficamente embasada e relativamente coesa da condição moderna, por outro é imprudente quanto ao pós-modernismo, analisado com superficialidade, longe de sua complexidade real. Há uma automática relação entre projeto pós-moderno e atividade mercantil de entreguismo ao mercado financeiro. Tal postura já foi criticada pela arquiteta Ruth Verde Zein quando afirma que: Boa parte da arquitetura brasileira recente está situada na “cidade dos negócios”, nas torres da arquitetura bancária e financeira, ou, até meados dos anos 1980,em edifícios da administração governamental direta e indireta. Falase de uma certa monotonia, de falta de criatividade e de baixa qualidade dessa produção; e chega-se a se descartar sua análise de maneira mais consequente, alegando que sua qualidade estaria impedida pela sua subserviência ao sistema econômico-mercadológico. Porém, qual edifício, no sistema capitalista, estaria isento da acusação de ser sempre, no limite, uma mercadoria? Se tomado como barreira, esse “pré-conceito” impediria a consideração, com seriedade e pertinência, dessa arquitetura- e volta-se ao círculo vicioso da baixa qualidade fruto da ausência de debate.49 Ou seja, entre admitir que o pós-modernismo não é mero sintoma do capitalismo financeiro, e fazer um julgamento moral e reacionário que achata o mesmo em indireta defesa de um modernismo deslocado de seus fundamentos originais, o autor escolhe pelo segundo caminho. Um contra-exemplo de quem tenta analisar o pós-moderno na 46

SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil. 1900 – 1990. São Paulo: EDUSP, 2010, p. 192. SEGRE, Roberto. Jovens arquitetos = Young architects. Rio de Janeiro: Viana & Mosley, 2004. 48 PUNTONI, Pedro Luis. A negação do pós-moderno e a negação do moderno. Caramelo, São Paulo, n. 2, p. 04/11, 1991 49 ZEIN, Ruth Verde. O lugar da Crítica: ensaios oportunos de arquitetura. Porto Alegre: Centro Universitário Ritter dos Reis, 2001, p. 31 47

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arquitetura em chaves próprias é Edson Mahfuz, no artigo “Quem tem medo do pósmodernimo? Notas sobre a base teórica da arquitetura contemporânea”50, no qual elucida de maneira panorâmica, as pertinências críticas do movimento pós. Contudo sente-se a falta, dentro dos vários artigos críticos analisados, de um volume maior de artigos capazes de traduzir ou criar o embate das teorias estrangeiras com nossos problemas específicos. Em geral o que ocorria era uma análise muito distanciada, de introdução, às questões pósmodernas em arquitetura. Nobre exceção é o texto “Do universalismo moderno ao regionalismo pós-crítico” de Otília Arantes.51 Talvez a ausência ou quase ausência de uma teoria pós-moderna brasileira e, conseqüentemente, de uma crítica alinhada a pressupostos anunciados, além de um sentimento de orfandade frente à desestabilização da arquitetura moderna, levou-nos a desprezar e desvalorizar o pós-modernismo em diversos momentos, não só nos anos 1980 ou 1990, mas até nossos dias, lembrando o que ocorreu quanto ao ecletismo quando da afirmação da escola carioca no cenário nacional, nos idos anos 1930. Maria Alice Junqueira Bastos em seu já comentado livro lança a compreensão de que o pós-modernismo era antes um obstáculo ao refinamento do modernismo em si, do que uma possível reavalização sobre outras bases, quando fala que: A dificuldade de romper com um repertório tão estabelecido e aprovado entre a classe dos arquitetos, fez com que alguns procurassem apoio nas soluções “pós-modernas”, o que prejudicou sobremaneira as discussões na época.52 Ora, entendemos exatamente o contrário. Foi o apoio nas soluções da pósmodernidade que permitiram uma reavaliação intensa de nossa produção moderna, possibilitando que esta alcançasse um estado de amadurecimento impedido de ser feito das décadas anteriores. Tal incompreensão também é compartilhada por outros autores, especialmente pelo confuso texto de Marcelo Suzuki para o livro “Arquitetura Brasil 500 anos” organizado por Roberto Montezuma. No capítulo que fala dos anos 80, vemos uma série de afirmações antes passionais do que racionais, num exercício de emissão de opiniões pouco embasadas, e um certo tom de reprodução do status anti-intelectual em certa medida esperado de um arquiteto projetista de filiação moderna. Ele identifica essa década como de “dispersão”, e a seguinte, “desarticulação”, termos que são demasiadamente próximo e ambíguo para definir dois períodos tão distintos. Confronta assim o capítulo “Desarticulação e Rearticulação” 53 do livro de Hugo Segawa, que compreende exatamente o contrário, identificando nos anos 1990 um realinhamento da arquitetura nacional a aos idéias modernos, e não a suposta desarticulação. Porém o que mais intrigou nas asseverações do arquiteto foi quando considerou o Hugo Segawa otimista quando à aeração que a disciplina passava nos anos 1980, chegando a 50

MAHFUZ, Edson da Cunha. Quem tem medo do pós-modernismo? Notas sobre a base teórica da arquitetura contemporânea. PROJETO, edição 101, 1987, p. 132-138. Ver também FICHER, Sylvia. Anotações sobre o pós-modernismo. PROJETO, edição 74, 1985, p. 35-42

51

ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Urbanismo em fim de linha. E outros estudos sobre o colapso da modernização arquitetônica. São Paulo: Edusp, 1987, p. 90-116.

52

BASTOS, Maria Alice Junqueira. Pós-Brasília: rumos da arquitetura brasileira. São Paulo: Perspectiva/FAPESP, 2003, p. 54. 53 SEGAWA, Hugo. Op. cit.

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questionar “O que foi o “arejamento dos debates”? O que se conquistou com isso?”54, como se nada houvesse sido conquistado ou debatido. Por fim, quando fala que os edifícios pós-modernos são “verdadeiros horrores” ou que em meados de 1990 o pós-moderno “começou a enjoar, cair de moda” o teor moralista do capítulo, somado a um procedimento de desmonte de todos os estatutos da pósmodernidade fica claro, a exemplo do questionamento que ele faz do chamado regionalismo. Toda confusão aparece ainda mais clara na seção “Antiintelectualismo”, na qual o autor revela compreender a importância dos debates da época para a formação de um corpo teórico em crescimento, ao mesmo tempo em que questiona tais conquistas ao longo do texto. Desta forma, em maior ou menor grau, com maior ou menor competência, Marcelo Suzuki não é exatamente uma exceção. Se de alguma maneira este autor pode ser considerado um dos maiores exemplo de um desejo quase inconsciente e relevar a pósmodernidade, houve outros que o fizeram de forma mais contundente e coerente. Caso da muito citada Maria Alice Bastos quando absorve tais debates numa ampla “revisão do modernismo”, que desenhariam três caminhos a partir de então: (...) revisão do moderno a partir da realidade e inspiração no popular; revisão do moderno pela liberdade formal e figurativismo; e caminhos da arquitetura moderna. No entanto, se foi possível alinhar algumas idéias que têm sido dominantes no pensamento crítico-teórico nacional, é mais difícil estabelecer um corpo teórico para cada um dos grupos apontados no trabalho. 55 No decorrer do texto, a autora vai comentando de cada grupo e seus desdobramentos, deixando entrever uma ideologia de afirmação do modernismo, porém sem o diletantismo da fase heróica, adequada e adaptada aos novos ventos mas que nunca deixa de acreditar nos pressupostos fundantes do movimento. Assim, não fica possível identificar uma força que induza a uma ruptura clara entre modernos e pós-modernos entre os críticos, como afirma Anne Marie Sumner: “O diálogo da arquitetura contemporânea é um diálogo com a arquitetura moderna e não uma ruptura. Na Europa a ruptura tem sentido. No Brasil ela não existe porque o ponto de partida foi a questão moderna.”56 Em que pese o fato de nossa modernidade já ter nascida, como afirmam alguns, pós-moderna, e o fato de que tal crítica nunca chegou a “apresentar uma alternativa concreta com espessura conceitual consistente”57, tornou-se papel da crítica nacional formatar a referida continuidade. Assim, o surgimento de uma condição pós-moderna não significou como afirma Hugo Segawa, a implantação de uma arquitetura pós-moderna. Afinal, ainda no pensamento do autor, a “atual contestação à arquitetura moderna brasileira atinge seus mitos, não seus princípios.” Princípios esses que voltariam a formar toda uma geração de críticos de arquitetos, chegando aos dias de hoje orientados por um caminho preferencial e moderno. Outro exemplo que causou espanto no decorrer do estudo foi o capítulo “Anos 80”

54

MONTEZUMA, Roberto (org.). Arquitetura Brasil 500 anos: o espaço integrador – Architecture Brazil 500 years: integrating space. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2002, vol. 2, p. 186. 55 BASTOS, Maria Alice Junqueira. Op. cit, p. 263-264. 56 SABBAG, Haifa. Revisão e Autocrítica. AU, edição 4, p. 24. 57 SEGAWA, Hugo. Op. cit., p. 198.

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do livro editado e escrito por Fernando Serapião sobre os 40 anos da Associação Brasileira de Escritórios de Arquitetura58, representante da nova geração de críticos de arquitetura. A primeira imagem do capítulo já impressiona: o vão do MuBE, obra de Paulo Mendes da Rocha. Paradigmática para os anos 90 e parte de uma nova fase na obra do arquiteto59, foi escolhida como a maior representante da arquitetura dos anos 80 já que sua concepção deu-se em 86. Contudo tal procedimento pode ser avaliado como um premeditado esforço histórico de obliteração de todas aquelas fundamentais e polêmicas obras pós-modernas – só a título de ilustração, podemos falar no edifício Terra Brasilis, de Königsberger & Vannucchi; no Centro de Apoio Turístico Tancredo Neves, de Éolo Maia e Sylvio de Podestá; o SESC Nova Iguaçu, de Bruno Padovano e Héctor Vigliecca; e o fundamental SESC Pompéia de Lina Bo Bardi – que viriam a marcar de maneira indelével aqueles anos. Não se nega a importância do projeto, analisado de maneira excepcional pela crítica Sophia Telles em 199060, mas sim sua representatividade. Ora, o mesmo foi fundamental obra de referência à chamada “geração Sevilha”61 que viria a marcar o cenário arquitetônico dos anos 1990 em diante – a ponto dos mesmos citarem Paulo Mendes da Rocha como principal referência.Porém o próprio fato de sua construção só ter-se finalizado em 1995 e, portanto, a possibilidade real e completa de avaliação ter-se dado apenas a partir daí, já indica a inconsistência da seleção de tal capa para falar dos anos oitenta no Brasil. Um exemplo em contrário é o artigo “Paulo Mendes da Rocha: o prumo dos 90”62, de Carlos Comas que parte de uma atenta análise de uma série de obras do mestre reiterando argumento oposto ao de Fernando Serapião, ao considerar as obras projetadas ou construídas nos anos 1980, mas que teriam sido “divulgadas depois”, respeitando o tempo de deglutição e recepção das mesmas, que só atingiriam maior relevo nos anos noventa. Porém, se o autor do livro de fato elenca nomes do pós-modernismo e seleciona a escola mineira como a maior representante daquele momento, ele também observa duas linhas de continuidade no modernismo, ambas questionáveis. Primeiro fala da “revisão do modernismo local” feita pela escola carioca, especialmente na figura de Luis Paulo Conde. Afirmação que o próprio crítico coloca em dúvida ao afirmar que Carlos Bratke e Pitanga do Amparo seriam, em São Paulo, nomes de uma arquitetura pós-moderna e não de continuidade. Que critérios seriam esses que discernem um grupo do outro, elegendo o primeiro como moderno, e o segundo como pós? O que falar do projeto do Centro de Treinamento e aperfeiçoamento de pessoal da Bradesco Seguros - CENTAP de Conde e equipe, de 1988? Em seguida Fernando Serapião fala dos “jovens formados nos anos 1980” que viriam a ser responsáveis por uma retomada da escola paulista criando “nas décadas seguintes” uma obra de grande qualidade. Ora, tal argumento é frágil. Seria o mesmo que dizer que os anos 20 já seríamos modernos já que naqueles anos eram estudantes jovens modernistas no 58

SERAPIÃO, Fernando. Arquitetura Brasileira: AsBEA 40 anos = Brazilian architecture: AsBEA 40 years. São Paulo: Editora Monolito, 2013. 59 Ver artigo Paulo Mendes da Rocha. Breve relato de uma mudança. de Maria Alice Junqueira Bastos disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/11.122/3472. 60

TELLES, Sophia da Silva. Museu Brasileiro de Escultura. AU, edição 32, 1990, p. 44-51 Termo usado pelo próprio autor à página 136. 62 COMAS, Carlos Eduardo Dias. Paulo Mendes da Rocha: o prumo dos 90. AU, edição 97, 2001, p. 102107. 61

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Belas Artes, como Lúcio Costa graduado em 1924. A retro-projeção de uma geração em gestação do futuro ao passado conduz a um argumento falacioso. Além disso, 90% das obras publicadas naquele capítulo são do Estado São Paulo, duas do Rio de Janeiro e uma de Santa Catarina, longe portanto de indicar a pluralidade e busca de um conhecimento amplo da produção brasileira que marcaram aqueles anos, indicando um procedimento limitado de seleção de repertorio de obras para o livro da AsBEA.

3.2.2 A geração Sevilha Como pudemos ver, os anos 1980 são ainda hoje um enclave pouco compreendido em nossa história recente, sendo antes alvo de uma série de imprecisões críticas e apaixonadas avaliações imprecisas. Tal desinteresse não pode ser entendido em sua completude como um preconceito de nossos arquitetos frente ao período. De fato, um estudo amplo e profundo dos eventos passados nesses anos até hoje segue sendo um enigma composto de centenas de peças dispersas em textos impressos ou na Internet. Ainda assim, há diferenças claras entre esses anos e os 1990, cuja rearticulação já citada se configura especialmente a partir de 1991, com o concurso nacional para o projeto do Pavilhão do Brasil na Expo Sevilha de 1992. Tal concurso foi paradigmático por diversas razões. Primeiro pela tradição que nossa arquitetura tem na construção de pavilhões em feiras internacionais, sempre com projetos de alta qualidade e muito representativos da produção nacional em sua respectiva época, a exemplo do Pavilhão Brasileiro de Nova York de 1939 de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, o Pavilhão de Bruxelas de 1958, de Sérgio Bernardes, ou do Pavilhão de Osaka de 1970, de Paulo Mendes da Rocha. Nesse sentido havia enorme expectativa sobre qual arquitetura sairia vencedora, especialmente depois da ressaca dos anos 1970 e das indefinições disciplinares dos 80. Tais expectativas foram duplamente malogradas, pois além da construção do pavilhão ter sido cancelada pelo Itamaraty63, o projeto vencedor foi duramente criticado e considerado por muitos como sendo “conservador”. Dois autores que discorrem sobre o tema, e cujos textos tiveram enorme repercussão, são Hugo Segawa e Ricardo Azevedo64 . O primeiro faz uma análise sob diversos aspectos da obra vencedora e já em seu título induz a uma ambigüidade no mínimo instigante: o que deu em vão? Apenas o projeto que não será construído, ou a chance de rearticulação da arquitetura brasileira que ao invés disso retorna a um formalismo moderno? Em contraste, Maria Alice Junqueira Bastos, quando trata das últimas décadas do século XX, fala que a tal continuidade aqui inaugurada na arquitetura contemporânea brasileira valorizaria três aspectos da obra: coerência construtiva, adequação climática, e 63

Sobre o tema ver o artigo: MEDEIROS, Heloisa. Em torno do concurso. AU, edição 35, 1991, p. 74-75.

64

AZEVEDO, Ricardo Marques de. Futuro e Passado. AU, edição 35, 1991, p. 76-79; SEGAWA, Hugo. Pavilhão do Brasil em Sevilha: deu em vão. ROJETO, edição 138, 1991, p. 34-39

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adequada relação custo e benefício.65 Se analisarmos a obra dos jovens arquitetos Ângelo Bucci, Álvaro Puntoni, José Osvaldo Vilela e colaboradores à luz desses aspectos, o edifício não se sustenta. Em que pese o fato dos três critérios serem suficientemente genéricos para qualificar quase qualquer obra de qualidade, independente do período, eles servem para mostrarmos o grau de imaturidade do projeto. O concreto armado possivelmente não seria o material mais apropriado, especialmente pelo exíguo cronograma da obra e pelo fato de Sevilha, à época, estar passando por um forte aquecimento no setor de construção civil, o que poderia dificultar o acesso à mão-de-obra. Soma-se a isso a relativa baixa inércia térmica do material frente às grandes variações de temperatura da cidade. Essas questões já fragilizam o quesito “adequação climática”, e poderíamos adicionar o fato do grande vão conformador de uma praça pública que, nos dias de inverno, seria certamente pouco ou nada utilizado pela ausência de anteparos ou conformações espaciais propícias ao clima. Quanto à questão do custo benefício e da coerência construtiva, o grau de artesanalidade do concreto moldado in loco, os grandes esforços necessários para vencer o vão proposto (apesar da proporção com o pé direito indicar um “espaço amesquinhado”, nas palavras de Hugo Segawa), além da distribuição dos amplos espaços vazios, muitas vezes sem intenção clara, indicam algum grau de irracionalidade na construção proposta, além do já comentado tempo de execução que poderia ser reduzido com o uso de outras tecnologias. Certamente a obra também teve quem a defendesse,especialmente no tocante a um retorno a uma consagrada tradição paulista de arquitetura, mas a insatisfação chegou a invadir os espaços como a “Opinião do Leitor” das revistas especializadas. Um exemplo é o comentário de Maurício Mazza66 ao dizer que: Quando chega o concurso para a escolha do Pavilhão Brasileiro para a Feira Internacional de Sevilha, já iniciando 1990, sentíamos ainda o vigor do embate gerado naquele momento, prova de que a questão não havia sido regrada. A vitória de um projeto dependente do ideário paulista – o grande vão, a caixa suspensa, o interior explodido – acenderia uma polêmica pública sobre essa herança, que provavelmente não teria havido se o resultado premiasse qualquer um dos demais concorrentes. Apesar de tais polêmicas, talvez a que mais tenha repercutido até hoje tenha sido um artigo de meia página chamado “Na década que separa Sevilha de Orlândia, mudaram os arquitetos ou mudou a crítica?” de Adilson Melendez67, onde o autor além de levantar os três artigos que comentam de maneira mais cáustica o projeto, opera uma comparação no mínimo oportuna/oportunista. Ao comparar duas imagens em elevação (abaixo, em sequência), uma do pavilhão, outra da Clínica Odontológica de Orlândia (projeto do escritório MMBB de 1998) o autor as compõe de forma que pareçam da mesma escala, convencendo ainda mais o leitor da proximidade de linguagem entre ambas, reforçando assim o argumento de que afinal o que mudou foi a crítica. Chama-lhe a atenção essa “reviravolta” dos críticos de arquitetura, que ao começo da década haviam se posicionado de maneira desfavorável ao projeto, e no fim da mesma tratam os autores como os mais talentosos daquela geração. 65

BASTOS, Maria Alice. Op. cit., p. 255. MAZZA, Maurício. Opinião do Leitor. PROJETO, edição 140, 1991, p. 4. 67 MELENDEZ, Adilson. Na década que separa Sevilha de Orlândia, mudaram os arquitetos ou mudou a crítica?PROJETO/DESIGN, edição 251, 2001, p. 134. 66

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Fonte: PROJETO/DESIGN, edição 251, 2001, p. 134.

Maria Alice Junqueira Bastos e Ruth Verde Zein rebatem o argumento anos depois desconstruindo tanto o achatamento feito por Adilson Melendez na comparação das obras, quando a sutil postura de que a crítica deveria ter permanecido a mesma ao longo dos anos 1990. Assim como os arquitetos envolvidos nas obras (dentre os quais apenas Ângelo Bucci esteve presente nas duas) haviam amadurecido sua prática projetual, sendo enorme a distância qualitativa entre o Pavilhão – como visto, altamente criticável – e a Clínica; também os críticos haviam modificado seus paradigmas e temas de análise. Como afirmam as autoras: A apreciação leviana baseada no sucesso posterior, retroagindo no tempo e canonizando retroativamente obras e arquitetos, passando-os de totalmente errados a totalmente certos, não quer de fato resolver ou compreender a mudança, mas apenas fazer sensacionalismo e denegrir o exercício da crítica.68 É muito correta a análise acima, especialmente no que tange ao quão negativa é uma crítica que se petrifica, reproduzindo ao longo dos anos uma mesma análise e critérios, independente das mudanças pelas quais passa a arquitetura, e ainda mais quando as autoras estudam os projetos para mostrar a distância existente entre elas. Porém aí se encontra seu limite. O que passou incólume pelo rebatimento das críticas é que além das questões formais discutidas nas obras, o autor coloca afinal a continuação de uma linguagem, de uma maneira de se pensar nossa arquitetura que, ao retomar configurações modernas, pediu de nosso corpo crítico uma compreensão mais profunda de tal fenômeno, um desejo ainda maior do que no começo dos anos 1990 de compreender o por quê de tal recrudescimento. E o que ocorreu foi o contrário: a crítica tornou-se cada vez mais morna, inativa, desimportante, alinhada a tal ideologia retomada. 68

BASTOS, Maria Alice Junqueira; ZEIN, Ruth Verde. Brasil: arquiteturas após 1950. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 291.

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Como veremos no último período estudado, a história é contada pelo vencedor. Apesar dos avisos de Hugo Segawa no texto em que analisa o projeto para a Câmara de Brasília69 quanto aos perigos de “recuperar por recuperar” e da retomada de um discurso ideológico, que pode ser por fim uma atitude enganadora: ao invés do vôo da fênix, o canto do cisne. Talvez ainda seja cedo, ou este não seja o espaço para tais avaliações. O que importa e impressiona é a autoconsciência dos vitoriosos do concurso de Sevilha, que vaticinam os rumos da arquitetura a partir de então. O moderno havia vencido: Acho que esse concurso pôde promover uma reabertura de discussões para a arquitetura que se encontrava entre o moderno e o pós-moderno Para mim este concurso também pôde auxiliar na valorização das obras de Paulo Mendes da Rocha, essa continuação defendeu rumos dentro de uma linha de crenças e caráter perante as possibilidades.70

3.3 Tempos de alinhamento

1991 | 2000

Este novo período é marcado por um estado democrático economicamente fragilizado dentro de uma política econômica neoliberal reduzindo assim o papel do Estado como agente fomentador da arquitetura. No plano cultural a foi perdendo cada vez mais espaço, sendo utilizada frequentemente para obras de espetáculo, em desastres ou casos de corrupção. Disciplinarmente falando, os anos 1990 foram anos de desaceleração e calmaria. Como um exército que está exausto após década de batalhas, debates, enfrentamentos e, especialmente dúvidas, nossa arquitetura retoma as antigas posições. Como diz Matheus Gorovitz, houve “A retomada do movimento moderno como referência necessária após o esgotamento das tentativas de sua superação.”71 Talvez pela ausência de um corpo teórico sólido, da autoproclamação de pós-modernismo dos arquitetos, de uma resistência por setores mais conservadores e ainda no espírito combatente do modernismo de meio século antes, ou numa soma de tudo isso, os anos 1980 terminam em uma vontade clara de sua superação. Contudo, foi apenas na segunda metade dos anos 1990 que “esse clima deu lugar a uma certa calmaria e a debates mais contidos, bem como a uma aparente unanimidade em torno de alguns dos caminhos possíveis.”72 A busca por uma disciplinaridade própria ganha ainda mais impulso, e o campo inteiro de reorganiza em um sentido mais definido e menos abrangente do que aqueles caminhos que surgiram nos anos 85.

69

SEGAWA, Hugo. A câmara de Brasília: a fênix abrindo as asas? PROJETO, edição 131, 1990, p. 41-44.

70

MACADAR, Andrea Moron. Uma trajetória brasileira na arquitetura das Exposições Universais dos anos 1939-1992. 2005. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, p. 139.

71

GOROVITZ, Matheus. A opinião dos críticos. PROJETO/DESIGN, edição 251, 2001, p. 46. BASTOS, Maria Alice Junqueira; ZEIN, Ruth Verde. Brasil: arquiteturas após 1950. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 289.

72

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Se fôssemos polarizar o debate, poderíamos usar os conceitos de sacerdote e profeta de Pierre Bourdieu73 para classificar, numa sobreposição tão complexa quanto em certa medida infantil, o grupo de arquitetos da retomada da linguagem moderna como sacerdotes agindo de forma profética, e o dos perdedores - daqueles arquitetos pós-modernos que foram perdendo espaço no campo disciplinar -, de profetas tidos como sacerdotes. Explicase. Os sacerdotes seriam os que defendem uma tradição tentando manter o status quo que os privilegia, para tanto combatendo qualquer suposto profeta que venha a questionar tal campo e propor outras maneiras de agir e pensar, derrubando mitos e dogmas. No caso, os arquitetos da geração de Sevilha não queriam reproduzir um status, mas antes retomar um valor perdido – no caso, a modernidade – por isso são sacerdotes agindo como projetas. Do outro lado, estão aqueles arquitetos desejosos de rever tal herança, flertando com as diversas formas de fazer pós-modernas, que apesar de profetizar o fim do modernismo, nunca chegaram a propor um pensamento coerente e matricial, e nem a se organizar num corpo sacerdotal. No fim, esse segundo grupo foi se adequando à nova antiga linguagem, agora enriquecida e repensada dentro de novos paradigmas anunciados, e que se sofisticava ao mesmo tempo em que demonstrava certa fragilidade quanto aos temas sociais fundantes do modernismo mundial, já que as condições e os embates mudam profundamente. Aos profetas do pós-modernismo, sobraram as pechas de modistas, criadores de estilo, vendidos, etc. Chegam mesmo a representar grau de letalidade, já que “os anos entre 1985 e 1995 começam perigosos e terminam oportunos (...)”74. Que perigo seria esse? Da Arbitrariedade, como diria Edson Mahfuz, ou do mercantilismo nas idéias de Pedro Puntoni? De qualquer forma, o mar tranqüilo que viria a seguir tais embates disciplinares conduziu-nos, por vezes, a avaliações muito imprecisas do momento, gerando nexos fracos ou inexistentes, para forçar a compreensão da dita continuidade. O que de fato ocorreu foi uma evolução de tal arquitetura “moderna pós-moderna” ou o título que o valha, que além de tender a uma unanimidade, nas palavras de Marcio Biselli75, em torno de um modernismo que precisa ainda ser reelaborado, não só sobre seus próprios fundamentos, mas especialmente a partir de um “período de intermediação entre o conflituoso momento de crise e revisão da arquitetura moderna e aquilo que deverá ser a maturidade do pensamento arquitetônico nascido dessa crise.”76 E não seria justo falar que é um fenômeno exclusivamente brasileiro, antes, tal revival atingiu a arquitetura internacional como um todo, especialmente sob o chamado “minimalismo”77, como nas arquiteturas suiça do escritório Herzog & DeMeuron e da assim chamada escola portuguesa, nas figuras de Álvaro Siza e Eduardo Souto de Moura. Tal rótulo chega a incluir arquitetos como Paulo Mendes da Rocha, porém não passa incólume pela crítica nacional. Ruth Verde Zein considera-o parte de “um debate oportuno” 73

Termos usados por Gary Stevens em seu já comentado livro O círculo provilegiado. BASTOS, Maria Alice Junqueira; ZEIN, Ruth Verde. Op. cit., p. 289. 75 BISELLI, Mario. Impressões sobre arquitetura nos anos 90. AU, edição 96, 2001, p. 89. 76 MARQUES, Sérgio Moacir. Arquitetura MÉDIA na Meia-Idade (ao redor dos 90). AU, edição 76, 1998, p. 77. 77 Sobre o tema, ver o artigo: MONTANER, Josep Maria. Minimalismo: o essencial como norma. PROJETO, edição 175, 1994, p. 36-44; SEGAWA, Hugo. O essencial, no mínimo. A faceta de uma modernidade introspectiva. PROJETO, edição 175, 1994, p. 84; e por fim um artigo de quase década depois que reavalia tal debate: SOUZA, André de. Minimalismo: a forma inessencial. PROJETO/DESIGN, edição 275, 2003, p. 34/35. 74

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porém relativamente superficial na maneira como é exposto por Josep Maria Montaner78. Contudo é Otília Arantes quem, em entrevista79, deixa entrever todas as contradições do uso do termo, indicando os anacronismos presentes na junção de nomes tão díspares como Tadao Ando e Ricardo Legorreta. Ainda assim, ela faz uma asseveração – quando questionada quanto à permanência, na arquitetura, de alguma radicalidade da minimal art – que consegue qualificar a arquitetura que surge nesses anos. Ela fala de um desejo de libertação dos “constrangimentos extrínsecos” que afinal tanto os anos 1970 como 1980 haviam colocado com força: podemos citar as questões históricas, contextuais, etc. Daí que a arquitetura brasileira retorna a questões tectônicas numa linguagem despojada e elementarista, com a ressalva de que estava “renunciando também a qualquer alegação ideológica mais forte”. No embalo da revitalização modernista, a América Latina viu o regionalismo crítico perder espaço, e a partir do VI SAL foi possível ver uma mudança dos debates que passaram a se focar nas questões urbanas. Carlos Eduardo Dias Comas fala, em 93, que “Discussões formais e informais apontaram o esgotamento das bandeiras do regionalismo e da identidade, se correlacionadas com a idéia de uma única arquitetura latino-americana.”80 Além dela poderíamos citar o desconstrutivismo, movimento que teve forte impacto na arquitetura do fim do século XX, mas quase nenhuma penetração em solo brasileiro, à exceção de pesquisas levadas a cabo pelo arquiteto Igor Guatelli81. Uma possível razão seja sua enorme carga filosófica, complexidade de termos e, mais do que tudo, um projeto de negação que vai de encontro ao otimismo militante que a arquitetura brasileira tem administrado a partir do Pavilhão de Sevilha: Temos uma imensa dificuldade com a idéia de desconstrução porque ela não é um projeto a favor, é um projeto contra; que põe em crise, que coloca o mal esta, o problema.E o que se quer no Brasil é sempre construir – no sentido amplo do termo, que é uma das bases da ideologia desenvolvimentista brasileira.82 Desta forma, superada uma das mais importantes correntes críticas da década anterior e sem a presença sensível de qualquer outra, nossa crítica voltou-se a uma defesa cada vez maior dos pressupostos aplicados pelos arquitetos da nova geração que parecem ter passado incólumes pelos debates de seus anos formativos. O panorama da dúvida era gradualmente revertido, e se por um lado havia a vantagem que certa impermeabilidade traz com relação aos muitos discursos estilísticos que varrem o mundo da arquitetura sob o signo capitalista de tempos em tempos, há também o saldo negativo do pensamento nacional estar alheio e fora de sincronia aos debates mais pertinentes de nossa época. Tal resistência atual tem sua origem, segundo Maria Alice Bastos e Ruth Zein, com uma “reação à crise da opinião internacional sobre a realização de Brasília”83 e sofre ainda maior retraimento quando da ditadura, não tendo sido capaz de se reestruturar totalmente 78

ZEIN, Ruth Verde. Na necessidade dos rótulos. PROJETO, edição 175, 1994, p. 72-74. ARANTES, Otília. Minimalismo ou anacronismo? PROJETO, edição 175, 1994, p. 81-83. 80 COMAS, Carlos Eduardo Dias. O esgotamento do regionalismo. AU, edição 48, 1993, p. 25. 81 Podemos citar seu artigo Arquitetura desconstrutivista – um ensaio. PROJETO/DESIGN, edição 210, 1997, p. 100-103. 79

82 DEL CASTILLO, Miguel. (org.) KOOLHAAS, EISENMAN E O BRASIL: Otávio Leonídio e Guilherme Lassance. E-book, p. 22. 83

BASTOS, Maria Alice Junqueira; ZEIN, Ruth Verde. Op. cit., p. 353.

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na década de 1990, fato que sugere reversão somente a partir do século XXI. Nas palavras das autoras: É comum, nos discursos dos arquitetos brasileiros, a crença na autonomia quase total da nossa arquitetura, a suposição de que ela se basta, o desconhecimento desdenhoso de tudo o que está além-fronteiras; ao mesmo tempo, esses discursos revelam um desejo exacerbado de originalidade que não admite o fato simples de que esse isolamento não é total nem pode ser, que os temas contemporâneos seguem repercutidos, mesmo que indiretamente, na arquitetura brasileira pós-Brasília – até porque não é possível evitar essa contaminação.84 Afora o problema do referido isolamento, tal otimismo crescente e positivação do ato projetual vai gradualmente se contrapor a uma atividade crítica cada vez mais anêmica e muitas vezes condescendente. Ainda no livro das arquitetas, há a afirmação de que avançando para a segunda metade dos anos noventa, “a crítica se propõe, num panorama morno e blasé, a apontar alguns caminhos que parecem ser preferenciais, e que, passado o momento de catarse e como não podia deixar de ser, muito devem às suas raízes e tradições” 85. Tal afirmação nada inocente foi citada anos depois em entrevista a Simone Sayegh86, ocasião em que as autoras tem a oportunidade de reafirmar como na década de 90 instala-se um tom uniformizador, em contraste à década anterior em que a crítica “estava mais presente nas revistas, comparecia em debates mais amplos”. Desta maneira, a mesma tem gradualmente perdido espaço nas revistas, estimulando um movimento muito negativo de “dissociação entre o debate acadêmico e profissional”, fenômeno que virá a ser reforçado ao mesmo tempo que atenuado, em alguma medida, na década seguinte, com o advento dos sites de arquitetura. Em suma: De fato, a década de 90 parece ter começado questionadora e terminado um tanto quanto acomodada e prenhe de unanimidades aparentes que se assentam sob uma camada demasiado superficial e com pouco embasamento, em parte fruto de um amplo desconhecimento acerca da arquitetura brasileira em geral, cuja divulgação segue ainda concentra apenas nos poucos exemplos de pouquíssimas grandes cidades e selecionados entre um punhado de arquitetos excepcionais.87 O alinhamento quase inercial da crítica à prática projetiva nesses anos permitiu a construção de uma narrativa até alguma medida naturalizadora dos anos 1990 em relação aos 80 quando esta entende que não houve ruptura ou mudança profunda de postura. Um exemplo é a afirmação de Roberto Montezuma deque o SESC Nova Iguaçu seria uma transição entre a década de 1980 e 199088 sem maiores explicações de tal afirmação. Ora, transição em que aspectos? A obra pode ser considerada, afinal, um dos exemplos mais bem acabados de uma revisão do modernismo que se deu no âmago do debate da cidade real, da questões dos tipos em arquitetura, etc. Assim sendo, seria mais justo falar de uma 84

BASTOS, Maria Alice Junqueira; ZEIN, Ruth Verde. Op. cit., p. 354. Em entrevista, Edson Mahfuz quando perguntado sobre a perda do ímpeto questionador da crítica nos anos 90, confirma que isso de fato ocorreu. Ver ANEXO B. 86 SAYEGH, Simone. Entrevista: Crítica brasileira. Ruth Verde Zein e Alice Junqueira Bastos. PROJETO/DESIGN, ed. 201, dez 2002, pp. 64-66. Disponível em: http://au.pini.com.br/arquiteturaurbanismo/201/as-arquitetas-ruth-verde-zein-e-maria-alice-junqueira-bastos-194333-1.aspx 87 BASTOS, Maria Alice Junqueira; ZEIN, Ruth Verde. Op. cit., p. 292. 88 MONTEZUMA, Roberto (org.). Arquitetura Brasil 500 anos: o espaço integrador – Architecture Brazil 500 years: integrating space. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2002, vol. 2, p. 244. 85

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remodelação de toda prática do que de uma continuação suave, aceitando as influências do período até hoje.A mais importante vitória nesse aspecto talvez seja quase que uma derrota: substituímos a ideologia modernista pela já discutida ideologia fraca, retraída, que persiste em valorizar o projeto moderno mesmo sabendo de suas limitações, incapaz de autoafirmar-se de maneira clara e precisa. Ao fim do marasmo, o que sobrou foi a mesma certeza que tínhamos, e com ela seguimos até hoje. A ausência de uma crítica frontal, que se coloque em contra tais ou quais procedimentos projetuais e de pensamento, é fruto dessa escolha quase inconsciente que a crítica fez, valorizando certa arquitetura modernista em detrimento de outras, e que explica parcialmente as questões levantadas por Adilson Melendez. Nesse percurso, a herança do desejo de questionar e colocar paradigmas à dúvida deslocou-se da crítica para a história, que passa a ser muito mais interessante aos pesquisadores do que a arquitetura feita em seu tempo. Os anos 1990 marcam muito fortemente uma revisão historiográfica que até hoje rende frutos absolutamente relevantes à nossa arquitetura, fato levantado e valorizado pela crítica Ana Luiza Nobre e que, como ela diz, marca um paradoxo no qual há um “retrocesso lamentável na crítica de arquitetura (...)”89

3.3.1 O moderno revirado Se nos anos 80 o modernismo era criticado a partir de uma miríade de instrumentos teóricos, com maior ou menor pertinência e precisão, o processo de revalorização de tal linguagem no período agora estudado é marcado muito mais por uma busca dos discursos marginais no seio da própria modernidade, ao mesmo tempo que busca revisitar os mestres, num claro movimento de refundação da disciplina a partir de referenciais consagrados. Como analisa Hugo Segawa, figuras como Lina Bo Bardi, João Filgueiras Lima – Lelé, Paulo Mendes da Rocha e Oscar Niemeyer são reestudados à luz de novas monografias sobre suas obras. Em suas palavras: “These four architects – all related to the “tradition” established with Brasília – show a persistent yearning for utopia.”90 Dos quarto, aquele que indubitavelmente viria a se consagrar como referência necessária à nova geração foi o mestre paulista Paulo Mendes da Rocha, indicado quase unanimemente pelos críticos por duas décadas seguidas como o maior arquiteto em atividade91, deixando à mostra nossa incapacidade de superá-lo, num cenário diluído e disperso, dividindo espaço com Niemeyer que ressurge no cenário internacional após um período de esquecimento. Parte da revalorização dos mestres passa por uma crítica que muitas vezes os “eleva aos píncaros, muito acima de qualquer crítica”92, como afirma Maria Alice Bastos ao se referir à obra do grande arquiteto carioca.

89

NOBRE, Ana Luiza. A opinião dos críticos. PROJETO/DESIGN, ed. 251, 2001, p. 44. SEGAWA, Hugo. After the Miracle: Brazilian Architecture 1960-2000. In: SULLIVAN, Edward. Brazil: body & soul. Nova Iorque: Guggenheim Museum, 2001, p. 567.

90

91

Ambas as vezes na revista PROJETO/DESIGN na sessão “Debate”, edições 251 de 2001 e 371 de 2011. BASTOS, Maria Alice Junqueira. Pós-Brasília: rumos da arquitetura brasileira. São Paulo: Perspectiva/FAPESP, 2003.p. 225-226. 92

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Apesar disso, o esforço no sentido de levantar projetos, discuti-los, organizar acervo de fotos e planimentrias, coletar memoriais e depoimentos, analisar tudo a partir de métodos cada vez mais críticos e rigorosos é um avanço disciplinar em direção a uma sistematicidade do pensamento arquitetônico que não pode ser ignorado. Tal movimento, contudo, não se restringe aos maiores nomes de nossa produção. Ele vai progressivamente, desde a década passada especialmente a partir de 85, abordando obras e arquitetos fora do mainstream cujas contribuições ao campo como um todo são fundamentais e genuínas – ampliando, por fim, as referencias dentro do próprio modernismo brasileiro que haviam sido relegadas a segundo plano. É tempo de superação das desgastadas narrativas modernas de anos antes: A imagem canônica, fixada pelos manuais, da arquitetura moderna brasileira é amplamente difundida até os anos oitenta, quando, acompanhando um processo de renovação dos métodos de investigação metodológica, começam a aparecer os ensaios que se propõem a reler ou resgatar os documentos anteriores à construção do paradigma, principalmente os textos das revistas e periódicos, cujo frescor provê elementos novos e enfoques particulares sobre a matéria. Essa tendência se afirma nos anos noventa e vão enriquecer a trama historiográfica prevalecente, preenchendo lacunas, oferecendo novas interpretações, apontando novos caminhos e revelando um universo extenso por investigar. Assim, a última etapa desse processo de interpretação historiográfica proposto por Scalvini está ainda sendo construída e essas releituras e resgates centrados em temas específicos, constituem as bases das reinterpretações.93 Além desse enriquecimento de nossa trama historiográfica, também se observa um estudo histórico do período anterior ao da instauração da arquitetura moderna, em especial a arquitetura colonial brasileira, além dos nexos criados por uma historiografia oficial atrelada a uma ideologia “panfletária” no começo do século. Ainda assim, “uma questão de extrema importância precisa ser aprofundada: a apropriação crítica da história da arquitetura brasileira, incentivada pelos mestres modernistas para legitimar a promoção do movimento moderno nos trópicos.”94 Talvez um dos trabalhos mais relevantes nesse sentido seja o paradigmático livro de Marcelo Puppi95 que discute os textos históricos referentes ao período denominado ecletismo na arquitetura brasileira, com ênfase no ecletismo carioca, e também como a ideologia moderna construiu as bases históricas sobre o período que não seriam, posteriormente, devidamente revisadas. Em outras palavras, mostra como o projeto histórico de Lúcio Costa estrutura nossa história até pelo menos o ano de publicação do livro, em 1998, com importantes trabalhos posteriores, como o livro de Hugo Segawa “Arquiteturas do Brasil: 1900-1990” do ano seguinte, buscando inverter tais influências.

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SEGAWA, Hugo. Os dez mais significativos livros de arquitetura dos anos 80. PROJETO, edição 129, 2004, p. 46-47. 94 BAETA, Rodrigo Espinha. A crítica de cunho modernista à arquitetura colonial e ao Barroco no Brasil: Lucio Costa e Paulo Santos. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, v. 10, n. 11, p. 35-56, dez. 2003, p. 36. 95

PUPPI, Marcelo. Por uma história não moderna da arquitetura brasileira: questões de historiografia. Campinas, SP: Pontes; Associação dos Amigos da História da Arte; CPHA; IFCH; Unicamp, 1998.

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Mesmo com o esforço de Segawa e outros como Nabil Boundouki96 de reescrever a história de nossa arquitetura recente, eles partem da chamada “estratégia de acréscimo”, como comentam Naslavsky e Marques97 em artigo que demonstra o método analítico de entender o modernismo como um fluxo de processos que busca preencher certos vazios historiográficos, sem contudo organizá-los segundo critérios de valor. É um procedimento que procurar ser neutra, uma composição de dados históricos muito abrangentes, que para tanto lança mão desse princípio compositivo, muitas vezes evitando uma crítica mais contundente a obras e arquitetos. Por outro lado, livros como “Urbanismo em fim de linha” de Otília Arantes se destacam por uma criticalidade contundente contra procedimentos da arquitetura contemporânea, buscando mostrar as profundas contradições do projeto moderno, especialmente de seu projeto de cidade. Não por acaso foi um dos livros mais citados por seus pares, pois afinal diferentemente e de forma até complementar aos autores antes citados, busca estudar a arquitetura não tanto num corte histórico, mas sim crítico (apesar de tal diferenciação ser sutil). Isso não significa que um prescinda do outro: ambos marcam a qualidade que os anos noventa atingem nessa seara de revisão dos fundamentos do modernismo. Ao mesmo tempo em que tais livros eram publicados, representando até certa medida um balanço das pesquisas desenvolvidas nesses anos, aqueles mesmos mestres que foram sendo revisitados faleceram. Lúcio Costa (1902-1998), Oswaldo Arthur Bratke (19071997), Carmem Portinho (1903-2001), Alcides Rocha Miranda (1909-2001) entre outros são nomes que infelizmente deixaram o cenário arquitetônico. Em contrapartida, uma nova geração despontava e começava a ter seus projetos aparecendo nas revistas especializadas, como é o caso de Ângelo Bucci, Andrade & Morettin, UNA, entre outros. Todo esse processo, de revalorização e morte dos mestres, surgimento de uma nova arquitetura por eles inspirada mas que vai abrindo espaço próprio, além da multiplicação de estudos históricos inspirou uma alta valorização do projeto moderno. Como afirma Otávio Leonídio: O que ocorre a partir dos 1990 no Brasil pode ser lido nessa chave, com o Paulo Mendes da Rocha e a geração formada por ele de algum modo resgatando algo que havia se perdido, e produzindo uma arquitetura de qualidade novamente. Fica claro, pelo menos para mim, por que essa arquitetura não é contemporânea: as questões que a guiam não são as que definem a pauta do contemporâneo, como colada, por exemplo, por Peter Eisenman e Rem Koolhaas.98 O crítico carioca aponta que não conseguimos ou mesmo tentamos superar a tradição moderna, mas antes fizemos um esforço de aperfeiçoá-la, retomá-la e conformá-la, nem sempre com sucesso, ao novo cenário da vida urbana no país, ainda confiantes de seu projeto inacabado. Afinal, ainda nas palavras dele, “ninguém no Brasil está falando, por exemplo, de processos não modernos para definição da forma arquitetônica.” No fundo, a 96

Referimo-nos aqui ao livro Origens da habitação social no Brasil em sua quarta edição publicado pela editora Estação Liberdade. 97 NASLAVSKY, Guilah; MARQUES, Sônia Maria de Barros. Estilo ou causa? Como, quando e onde? Os conceitos e limites da historiografia nacional sobre o Movimento Moderno. Arquitextos, São Paulo, ano 01, n. 011.06, Vitruvius, abr. 2001 http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.011/903 98

DEL CASTILLO, Miguel. (org.) KOOLHAAS, EISENMAN E O BRASIL: Otávio Leonídio e Guilherme Lassance. E-book, p. 7.

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revisão historiográfica pode ter tido como efeito colateral a reiteração do caminho moderno, enriquecido agora pelo alargamento de suas bases referenciais: Talvez isso tenha a ver com a própria definição do campo acadêmico da historiografia e da crítica de arquitetura no Brasil, que esteve, eu acho, muito preocupado em desconstruir a história “oficial” da arquitetura moderna brasileira. Possivelmente é hora de repensarmos todas as nossas bases epistemológicas não mais a partir do moderno, aceitando que não estamos mais fadados a ele, e começarmos a explorar outras formas de pensar criticamente a disciplina. Pois, como fala Leonídio: (...) a celebração da obra do Paulo Mendes da Rocha é hoje um obstáculo para renovarmos a pauta da arquitetura brasileira. (...) Por que razão não consegue alterar a agenda da arquitetura feita agora por aqui, dissociá-la da narrativa modernista? (...) Quem é que atualiza a pauta da arquitetura brasileira hoje? Não conheço.” (grifo nosso)

3.4 Tempos de placidez

2000 | 2010

A virada do século não trouxe ventos de mudança. Basicamente o marasmo crítico da década anterior transformou-se em falsa lufada de ar fresco, pois afinal estávamos cada vez mais atentos aos debates internacionais de arquitetura99, o discurso nacionalista perdia sentido e força, novas gerações de arquitetos despontavam no cenário brasileiro e a Academia e a Internet aumentavam grandemente toda possibilidade de discussão e divulgação de obras e pensamento. Apesar disso, permanece uma sensação de ausência de crítica – a eterna sensação – que parece ter-se estabilizado: No Brasil, a sensação predominante nas ultimas décadas é que os espaços de discussão de arquitetura e urbanismo tornaram-se cada vez mais escassos. Enquanto avançava a pesquisa especializada, a arquitetura parecia perder relevância cultural: sumiam publico e críticos, periódicos de arquitetura convertiam-se em vitrines de escritórios e fabricantes, dissolviam-se os elos entre a arquitetura, as artes e o pensamento, assim como entre reflexão e pratica projetual, levando o meio profissional brasileiro à desorientação e ao conformismo mais conveniente. 100

99

Exemplos de análises notáveis de obras estrangeiras são: MOREIRA, Fernando Diniz. As Caixas decoradas: ornamento e representação em Venturi & Scott Brown e Herzog & De Meuron. Arquitextos, São Paulo, ano 05, n. 056.01, Vitruvius, jan. 2005 http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.056/509; GUATELLI, Igor. Biblioteca Pública de Seattle. Entre pirâmide e vulcão. Arquitextos, São Paulo, ano 11, n. 126.00, Vitruvius, nov. 2010 http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/11.126/3658 100

LIRA, José Tavares Correia de. Nota na contracapa. In: , NESBITT, Kate (org.). Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teoria (1965-1995). Tradução: Vera Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

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Contudo o estatuto central da disciplina permanecia mais ou menos o mesmo: alinhados estavam obra e crítica em direção à revalorização do moderno, raras vezes – como no exemplar caso do livro “Arquitetura Moderna Brasileira”101 que buscou novas perspectivas críticas - ouvindo-se vozes dissonantes ou aplicando-se uma análise frontal e vigorosa, que avaliasse negativamente ou desconstruísse de fora a fora a teoria moderna. Uma espécie de concordata que havia se fortalecido especialmente na segunda metade da década de 90 e que chega aos anos 2000 ratificada. Seria injusto parar pro aqui. Fato é que em paralelo a uma estabilização geral dos debates que marcaram tanto os anos 80 voltavam-se agora as questões outras, ainda pouco aprofundadas, como é o caso da favela enquanto entrave urbano (ainda que tardiamente tratada como questão de arquitetura, como afirma Lara102). Além disso, nosso período encerra-se com a comemoração do cinqüentenário de Brasília, momento oportuno para uma série de avaliações maduras e ponderadas, longe dos ataques e defesas dos anos 1960 ou 1980, a exemplo do artigo “Brasília cinqüentenária: a paixão de uma monumentalidade nova”103 de Carlos Eduardo Dias Comas. O número de obras de renomados arquitetos estrangeiros em solo brasileiro cresceu sensivelmente, gerando uma série de reações por vezes protecionistas e despreparadas de nossa classe, mal acostumada a tal fenômeno. Interessante notar como obras a exemplo da Fundação Iberê Camargo, de Álvaro Siza, foram marcos fundamentais tanto aqui como no mundo, sendo uma das mais comentadas quando nossa arquitetura saía em jornais e periódicos estrangeiros. Podemos citar também o projeto para o Guggenheim Rio de Janeiro, de Jean Nouvel, que mesmo após meses de discussões e contratempos em resposta a uma obra absolutamente criticável, acabou por não ser construída. Enquanto mestres internacionais desembarcavam no Brasil, com projetos mais ou menos felizes no que tange à qualidade e recepção, nossos próprios mestres permaneciam bastante ativos, atingindo graus cada vez maiores de excelência dentro de suas próprias trajetórias. Ainda como nos anos 1990, porém em menor grau, podemos dizer que a “década foi ainda dominada pela geração dos mestres, o que dificulta o surgimento de novas figuras relevantes”104. Nesse mesmo artigo, uma série de críticos chega ao empate quanto à principal obra da década: teriam sido os hospitais da Rede Sarah, de Lelé, ou o Iberê Camargo, do Siza? Ou seja, obra de dois arquitetos consagrados, aqui e fora do país, há pelo menos duas décadas. Apesar disso, as arquiteturas dos epígonos de nossa profissão serão cada vez melhor analisadas dentro do movimento de revisão do moderno nas décadas anteriores. Muitos são os exemplos, mas vamos citar o artigo “Paulo Mendes da Rocha. Breve relato de uma mudança”105, de Maria Alice Junqueira Bastos, como texto modelar na sensibilidade e 101 FORTY, Adrian; ANDREOLI, Elisabetta (org.). Arquitetura Moderna Brasileira. Londres: Phaidon Press Limited, 2004. 102

LARA, Fernando. Arquitetura quae sera tamen. AU, edição 200, 2010, p. 66-69. COMAS, Carlos Eduardo Dias; ALMEIDA, Marcos Leite. Brasília cinquentenária: a paixão de uma monumentalidade nova. Arquitextos, São Paulo, ano 10, n. 119.01, Vitruvius, abr. 2010 http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.119/3362 103

104 SEGRE, Roberto. Críticos respondem enquete sobre a arquitetura brasileira na década. PROJETO/DESIGN, ed. 371, jan. 2011, p. 17. 105 BASTOS, Maria Alice Junqueira. Paulo Mendes da Rocha. Breve relato de uma mudança. Arquitextos, São Paulo, ano 11, n. 122.01, Vitruvius, jul. 2010 http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/11.122/3472

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percepção do amadurecimento pela qual passou a obra do arquiteto paulista nos “anos de revisão crítica do movimento moderno”. O que interessa notar neste texto é exatamente essa capacidade de síntese arguta que compreende a importância dos debates pós-modernos na reformulação do pensamento arquitetônico a partir dos anos 1990. 106 Ainda que houvesse artigos como o acima citado, que preferem compreender a importância dos anos 1970 e 1980 para o repensar o moderno hoje, há muitas avaliações insuficientes sobre o período, como quando Izabel Amaral, em elogiativo texto sobre o Pavilhão de Sevilha, afirma que “ (...) o concurso de Sevilha serviu para amadurecer o debate sobre a nossa herança modernista, que hoje se afirma com muito mais segurança, como uma escolha consciente, principalmente na escola de São Paulo. E o projeto do pavilhão não construído terminou sendo um herói do confronto com a crítica pós-moderna.107 Ora, como assim herói? Então se admite que houve um confronto, com um lado derrotado e outro vencedor? E o pior: sendo o vencedor uma obra, e o perdedor uma crítica? A verdade é que é necessário um esforço de negar uma continuidade sem embates entre os anos 1980 e 1990, e compreender os resultados do mesmo, distante da polarização vitorioso x perdedor, e mais próximo da dialética de um modernismo ciente de suas limitações. A licenciosidade que a “história do vencedor” abre no cenário plácido como é o dos primeiros anos do novo século permite que críticos como Anrdé Corrêa do Lago afirmem que “Esses arquitetos (como Ângelo Bucci e Álvaro Puntoni) contribuíram, igualmente, para um retorno à substância da nossa tradição dos anos 1940 e 1960: uma verdadeira arquitetura, e não apenas um estilo.”108 Ou seja, aquilo feito nas 1960 a 1990 não seria digno de se nomear arquitetura, mas antes estilo – é isso? A confirmação de tal operação de seleção historiográfica dos arquitetos e obras dignos de nota – num procedimento que lembra a operacionalidade de Lúcio Costa, só que desta vez muito mais por uma falta de maturidade crítica e seleção ideológica de um grupo privilegiado em detrimento de qualquer outro – pode ver-se na exposição organizada pelo diplomata brasileiro juntamente com Lauro Cavalcanti, o “Ainda modernos?” de 2005109. Nela, e de maneira questionável, os curadores tentam sustentar o argumento de que a arquitetura contemporânea no Brasil segue uma tradição moderna comparando obras dos anos 1940 e 1950 – na dita “fase heróica” quando nossa arquitetura teria atingido maior visibilidade mundial – com aquela feita a partir dos anos 1990. O grande problema é que 106

Ainda sobre uma visão renovada das obras dos mestres, ver: MÜLLER, Fábio. Velha-nova Pinacoteca: de espaço a lugar. Arquitextos, São Paulo, ano 01, n. 007.11, Vitruvius, dez. 2000 http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.007/951; ROSSETTI, Eduardo Pierrotti. Tensão moderno/popular em Lina Bo Bardi: nexos de arquitetura. Arquitextos, São Paulo, ano 03, n. 032.06, Vitruvius, jan. 2003 http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.032/717; LEITE, Maria Amélia d`Azevedo; REBELLO, Yopanan. Achitekton Lelé, o mestre na arte de construir. AU, edição 175, 2008, p. 72-77. 107 AMARAL, Izabel. Pavilhões de exposições e concursos: lições a aprender. concursos de projeto, 28 mai. 2009. Disponível em: http://concursosdeprojeto.org/2009/05/28/pavilhoes-de-exposicoes-econcursos-licoes-a-aprender/#more-3809. 108 LAGO, André Corrêa do. Críticos respondem enquete sobre a arquitetura brasileira na década. PROJETO/DESIGN, ed. 371, jan. 2011, p. 14. 109

Exposição organizada por André Corrêa do Lago e Lauro Cavalcanti no ano de 2005 em Paris, que visava analisar os nexos existentes entre a arquitetura moderna da fase heróica (1930-1960) com a praticada a partir de 1990 no Brasil.

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para tanto simplesmente suprime-se o período mais complexo e problemático de nossa arquitetura, ou seja, os anos 1970 e 1980. Os primeiros representando uma fase marcada por um maneirismo altamente criticado e que marcava os limites do projeto moderno nacional, e o segundo por uma intenta problematização da própria arquitetura moderna. Além do fato da exposição retratar os anos iniciais de nosso modernismo num discurso absolutamente exaltante e canonizado sem de fato exercer uma crítica, também eleva a arquitetura feita hoje acima de qualquer julgamento sistemático, e parece avaliá-la dentro de paradigmas e afirmações ambíguas que poderiam muito bem servir para construir uma análise negativa da mesma, servindo no fundo para denunciar algumas de suas inconsistências: A nova geração de arquitetos apresenta uma clara influencia e inspiração nos projetos modernistas “históricos” brasileiros dos anos 1940 e 1950 – período mais profícuo e de maior reconhecimento internacional. Uma vez descartadas as ilusões do papel de transformação social do país através da arquitetura, o moderno é tomado como linguagem e não mais como ideologia. Sob certo aspecto, os profissionais de hoje citam elementos da gramática modernista assim como os pós-modernistas citavam elementos de estilos pretéritos, gótico, romântico ou neoclássico. Não se trata, contudo, de ironia, retomada decorativa ou de uma postura nostálgica. Após duas décadas extremamente difíceis na economia do país, a arquitetura brasileira parece retomar o seu impulso e rumo inovador. Construídos hoje sem a iniciativa maciça do Estado, os projetos mais interessantes são feitos em pequena escala para clientes particulares. O moderno serve de referencia para que se possa voltar a avançar na linguagem arquitetônica e estrutural. (...) Algo de interessante parece estar no ar: um modernismo revisitado, com alguns aspectos descartados e outras questões recolocadas em movimento.110 Ou seja, a arquitetura contemporânea seria, afinal, uma continuação amaneirada, que se utiliza da linguagem moderna como faziam os ecléticos em relação aos estilos clássicos, românicos, etc., numa composição lingüística esvaziada de seu sentido original. Apesar dos autores descartarem a ironia ou decorativismo em tal procedimento, afirmar que a arquitetura hoje - que em muitos momentos se coloca ainda com num tom combativo – cita elementos de uma gramática modernista pressupõe uma lógica academicista que Lúcio Costa tanto confrontou. Aliás, relacionar a arquitetura de maior projeção nacional hoje com a escola carioca da primeira metade do século XX é uma construção bastante questionável. Seria mais correto afirmar que os arquitetos hoje se referenciam basicamente na escola paulista das décadas de 60 a 70. Uma possível justificativa para tal seleção seria uma estratégia de tentar fazer emanar os louros da obra de Niemeyer e contemporâneos sobre a nova geração, quase num batismo absolutamente oportunista que os lança ao mundo como filhos da mais fina flor moderna que o Brasil produziu. 110

CAVALCANTI, Lauro e LAGO, André Correa do. Ainda Moderno? Arquitetura brasileira contemporânea. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2005, p. 19.

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Um ano depois viria a se organizar a exposição “Coletivo: arquitetura paulista na cidade”111 que consegue representar muito melhor o espírito contemporâneo da arquitetura brasileira, até porque foi organizada pelos próprios expoentes com a análise posterior de três nomes importantes da crítica nacional. Em que pese o fato de ser parte de uma estratégia de autopromoção, na qual os críticos não tiveram papel curatorial, mas sim de comentar a posteriori a seleção dos próprios arquitetos analisados – o que em alguma medida poderia ter gerado um certo constrangimento das análises – a exposição representa um desejo legítimo de aproximar a obra do público, e a crítica da obra. Aliás, logo no começo de seu texto, Guilherme Wisnik anuncia que não pretende fazer uma análise distanciada das obras, afinal ele é colega geracional de muitos dos arquitetos em exposição, evitando assim uma suposta “isenção crítica”. Talvez seja exatamente essa proximidade de pensamento e mesmo de círculo social que impeça uma crítica radical das obras, pois no fundo o crítico torna-se barreira ideológica a tal procedimento, dentro da compreensão de Ana Luiza Nobre de que “uma rigorosa crítica do projeto moderno nunca chegou a ser propriamente experimentada pelo meio arquitetônico brasileiro”112. Ainda assim, os comentários críticos são muito valiosos para compreender o estatuto da produção daquela década, muito mais ligada aos debates internacionais, parte de uma cultura de concursos públicos amadurecida – apesar de muito aquém do ideal – nos anos da Era Lula, numa lógica produtiva muito menos autoral e mais horizontal e coletiva. Quanto a essa última constatação cabe uma observação oportuna: por mais otimista que o conceito de “coletivo” possa soar, ele não deixa de ser um tanto romantizado, pois há aspectos econômicos envolvidos relativos ao incremento exponencial de profissionais no mercado, que quase impõe o sistema de associação entre arquitetos, em três ou mais sócios, para fazer frente a um cliente cada vez mais privado e menos público. No final, e da forma como o arquiteto gênio ainda é valorizado no cenário arquitetônico, troca-se um reinado por uma aristocracia que não deixa de gravitar em torno de Paulo Mendes da Rocha. E é o próprio mestre paulista que dá o tom das obras na medida em que inaugura, com seu Museu de Escultura nos anos 1990, um novo procedimento de compreensão da cidade partindo de operações formais modernas de organização do espaço público, típica da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, formando até hoje uma verdadeira escola que compartilha de tais valores. Como analisa a portuguesa Ana Vaz Milheiro: Mendes da Rocha mobiliza a tradição paulista e, simultaneamente, coloca-se muito pra lá do seu ponto de origem. O Museu Brasileiro de Escultura não é uma obra de síntese “moderna”, é uma interpretação crítica sobre o arquétipo da “Escola Paulista”. Como clarificou Sophia da Silva Telles, “destrói” a imagem instituída da paisagem como “uma superfície estática sobre a qual o objeto vem pousar” e ao fazê-lo desequilibra toda uma história. Vence a via da arquitetura sobre outros rumos que a prática estava a tomar. Esta conquista faz-se, inclusive, sobre o próprio passado “familiar”. Encontra-se aqui a marca

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Exposição organizada pelos seis escritórios paulistanos de arquitetura: MMBB, Projeto Paulista, Núcleo de Arquitetura, Puntoni - SPBR Arquitetos, UNA e Andrade Morettin em 2006 no Maria Antônia, com o intuito de divulgar seus principais trabalhos. Wisnik, Nobre e Milheiro foram convidados como críticos para analisar tais obras. 112 NOBRE, Ana Luiza; MILHEIRO, Ana Vaz; WISNIK, Guilherme. Coletivo: arquitetura paulista contemporânea. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 19.

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fundadora da contemporaneidade brasileira, o que só se podia inaugurar tendo em conta o que existia antes. (grifo nosso)113 Desta forma, o grande arquiteto paulista é uma espécie de mentor da nova geração, que através de uma revolução conservadora no cerne do próprio modernismo paulista lança uma nova forma de compreensão da arquitetura em relação à cidade. Porém, como já observado, a persistência do protagonismo dessa velha geração ainda hoje torna-se, nas palavras de Ana Luiza Nobre, “quase uma ameaça para qualquer tentativa de emancipação.”114 Ou seja, no embalo do “tudo deve mudar para que tudo fique como está” de Giuseppe Tomasi, acabamos por não fazer uma revisão radical de nossos preceitos modernos da compreensão do espaço público da cidade, que não é mais visto sob a ótica do corpo utópico estranho que sobre ela pousa, mas do artefato articulador do plano ideal a partir das linhas de força do real. Ruth Verde Zein identifica que dentro desse modernismo reflexivo há, afinal, uma busca de afirmação de uma identidade de grupo, de escola, frente às imensas e aparentemente crescentes indefinições que o capitalismo tardio trás ao cenário cultural no Brasil e no mundo. Frente a tais incertezas, consolida-se uma postura conservadora dentro da qual: (...) está muito parecido tudo em termos de arquitetura, você olha os concursos de arquitetura e todo mundo faz a mesma resolução115, incrível, e isso já aconteceu na história, aconteceu nos anos 50. Os projetos de Brasília são todos muito parecidos entre si. (...)Então nos anos 50 houve uma espécie de força unida, venceu o “inimigo” acadêmico e de repente estamos todos juntos, e isso vai diversificando nos anos 60, 70 e há uma retomada dessa vontade de união e de clareza de objetivos.116 Essa “força unida”, originada a partir de Sevilha e do MuBE, demarca um período de paz após uma guerra estabelecendo o que o arquiteto Francisco Spadoni chama de “fim do mal-estar”117. Hoje está mais do que claro que há aspectos negativos no fim do estado de ânsia, que inaugura uma saúde sempre duvidosa, na medida em que criação sem crise pode levar a uma crítica sem criação. Quanto a isso podemos citar um episódio curioso que se passou no blog o pau da barraca118, quando seu autor questiona as assimetrias de análise feita por Fernando Serapião - um dos maiores representantes da nova geração de críticos entre as obras de Bucci e Márcio Kogan, para concluir que o mesmo produz um julgamento tendencioso, incapaz de avaliar com justeza ambas as obras. Não seria absurdo afirmar que a predileção de um grupo de obras e arquitetos em detrimento de outros seria antes que uma seleção natural dos projetos mais qualificados, um esforço constante de afirmação de valor de resistência que um seleto coletivo representa 113

NOBRE, Ana Luiza; MILHEIRO, Ana Vaz; WISNIK, Guilherme. Op. cit., p. 93.

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NOBRE, Ana Luiza; MILHEIRO, Ana Vaz; WISNIK, Guilherme. Op. cit., p. 20. Quanto a esse tema ler o artigo: MILAZZO, Marco. A caixa como solução única. A hegemonia da arquitetura paulista nos concursos de arquitetura no Brasil. Projetos, São Paulo, ano 14, n. 159.06, Vitruvius, mar. 2014. Disponível em: http://ww.arquiteturismo.com.br/revistas/read/projetos/14.159/5114 116 ZEIN, Ruth Verde. Entrevista pessoal ao autor Jaime Solares Carmona. ANEXO C. 117 SPADONI, Francisco. Dependência e resistência: Transição na arquitetura brasileira nos anos de 1970 e 1980. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 102.00, Vitruvius, nov. 2008. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.102/91 118 Ver série de artigos “Um exercício de metacrítica ou três momentos de Serapião”. Disponível em: http://opaudabarraca.blogspot.com.br/2010/03/um-exercicio-de-metacritica-ou-tres_8830.html 115

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frente à lógica do capital, num preconceito típico dos anos 1970 quanto aos profissionais que projetavam as agência do banco Itaú na empresa Itauplan. Em um panorama cada vez mais ausente de oposições e confrontos, tais avaliações tornam-se críticas e perigosas, levando a uma série de análises insuficientes. Outro episódio que indica esse desejo de diferenciação a partir da crítica, quase a reboque das obras, vem de um dos blogs mais polêmicos do período, o Blog do Alencastro que, utilizando-se de um pseudônimo de Lina Bo Bardi, busca reativar a dimensão crítica do pensamento arquitetônico brasileiro. No site vemos o eco de uma discussão da Internet em relação a um texto publicado por Guilherme Wisnik na Folha de São Paulo, no qual avalia as obras de Biselli e Katchborian119. Tal texto gerou como resposta a carta do arquiteto Julio Vieira, que circulou na rede, carta esta ponto de partida para o desmonte da crítica feita pelo arquiteto paulista, onde podemos ler como desde a exposição Coletivo, Guilherme Wisnik e companheiros elegem um grupo notório de escritórios para representar a arquitetura paulista no momento, excluindo uma série de outros nomes. E a exclusão é só o primeiro passo. A carta elenca inúmeros problemas no artigo, que teria deixado “rastros indisfarçáveis de preconceito e arrogância.” ao elaborar um texto “excessivamente superficial e apressado” tentando filiar a obra dos arquitetos a um Niemeyer autoral, que procede numa composição estilística típica da “moda” pós-moderna, respondendo a demandas de clientes corporativos nem sempre através de um “enorme esforço de justificação teórica”. Ao fim da carta, o arquiteto Vieira questiona a honestidade do crítico, que numa avaliação enviesada acaba por defender um corporativismo constrangedor, dentro do que Ana Luiza Nobre chama de “uma vasta rede de interrelações pessoais e institucionais muito característica da sociabilidade paulistana.”120 A tal sociabilidade representa um lado do embate interno que se dá dentro de um campo cultural, como estudou Bourdieu e sobre o qual fala Ilana Goldstein em artigo: O processo pelo qual determinadas obras se impõem sobre outras é produto das lutas entre aqueles que ocupam momentaneamente a posição dominante dentro do “campo”, em virtude de seu “capital“ específico – e que tendem à conservação e à rotinização da ordem simbólica estabelecida – e aqueles que são inclinados à “ruptura herética”, à crítica das formas estabelecidas e à subversão dos modelos em vigor. 121 Ou seja, se nos anos 1990 os profetas tinham tons de sacerdócio, nos anos 2000 os mesmos conseguem articular um grupo social que se alastra pelas mais diversas esferas do campo cultural brasileiro tendo na Rua General Jardim, em São Paulo, sua capital. Ou seja, não é como se o fato fosse novo, afinal a arquitetura é campo de batalha desde sempre. O problema é que diferentemente do início de nossa arquitetura moderna, quando Lúcio Costa combatia o campo arquitetônico representado pela Belas Artes e construía uma disciplina com amplo projeto estético e social; hoje o que vemos é um campo recluso sem o referido projeto, muito mais interessado em se reproduzir no centro do espaço da cultura dentro do qual se estabelece.Como dito, vencida a batalha, dividem-se os espólios entre os vitoriosos, num grande banquete que seleciona seus convidados a dedo. A novidade é que a Internet é um espaço muito mais despojado que a Academia ou as revistas especializadas, 119

Disponível em: http://blogdoalencastro.blogspot.com.br/2007/10/pecados-arquitetnicos-2.html NOBRE, Ana Luiza; MILHEIRO, Ana Vaz; WISNIK, Guilherme. Op. cit., p. 18. 121 GOLDSTEIN, Ilana. Hierarquias da cultura. Revista Cult, edição 128. 120

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permitindo uma ressonância a nível global dos debates de bastidores que se dão no tal campo. Outro texto que deixa entrever essa lógica fragilizadora da crítica, que é a rede de relacionamentos fundamental para a subsistência de uma classe cada vez mais encurralada entre o autosustento e o comadrismo, é o “The strange death os architectural criticism” em livro homônimo do crítico inglês Martin Pawley122. Nele o autor exemplifica os processos de manipulação do texto crítico original à revelia do contexto em que se encontra, muitas vezes impedindo que um teor negativo, no maior estilo “não deixe nenhum homem vivo” (em tradução livre, da expressão em inglês take-no-prisoners) passe pelo crivo dos editores e de seus interesses. O artigo levanta a questão: “Qual então é o papel do crítico contemporâneo que – a fim de proteger seu ou sua fonte de informação, sua transparência, convites, Vips, trabalhos et al – escreve que todos que são reconhecidos são gênios, e que todos que não o são estão em vias de? Certamente é aquele do krites (termo grego para juiz) que considera todo acusado inocente.” Mais adiante, o crítico fala de uma cultura moribunda criada por esses juízes contemporâneos da inocência acima de qualquer dúvida, e de como os arquitetos tem consciência de sua inconsistência, que arquitetura não é apenas construção e nem que prescinde do pensamento crítico, e assim: (...) sabem a falsidade desta posição. Eles sabem que todos os edifícios são um pouco a idéia de outras pessoas, fragmentos de plágios, o trabalho de colaboradores esquecidos, o resultado do preconceito, burocracia, dinheiro, tempo e subcontratos instáveis. Porém, quando eles navegam contra a crítica, esquecem tudo isso e apreciam a licença literária como um agradável banho quente. Ou seja, fica implícito o quão nocivo é um crítico que, ao agir de forma elogiativa e buscando a inocência de todas as obras analisadas, deixa de expor as contradições, deixando-se levar e reproduzindo uma suposta poética do fazer que o arquiteto defende conhecer e praticar, mantendo assim seu prestígio. Roberto Segre avalia, quanto ao estatuto da crítica nesse começo de século, que estaríamos em pleno momento de florescimento123, discordando em certa medida do que defendemos até este ponto. Contudo seu argumento parece uma estratégia inversa: ele enumera as questões colocadas, e como a crítica deveria, estimulada por elas, reagir. O crítico fala: a. b. c.

da necessidade de reflexão acerca do movimento de retorno aos ideais modernos, eu no resto do mundo parece ter sido superado menos aqui; do campo profissional cada vez mais restrito tendo no capital financeiro agente dominante; da chegada dos arquitetos do chamado starsystem no Brasil;

122 PAWLEY, Martin. The strange death of architectural criticism. (1998) In. JENKINS, David. The strange death of architectural criticism. London: black dog publishing, 2007. 123 SEGRE, Roberto. Cinco perguntas aos críticos de Arquitetura. (PROJETO/DESIGN, ed. 266, abr 2002, p. 35.

122


d.

e.

do já comentado debate que ocorreu no vitruvius em 2002 na sessão arquitetura.crítica como exemplo de amadurecimento da crítica dado o embate que havia se desenvolvido; por último ele fala da criação de mais espaços para o debate crítico, a exemplo das novas publicações da editora Cosac & Naify.

Apesar de um otimismo ambíguo, o autor coloca com grande clareza as novas definições de atuação do campo crítico que se ampliou consideravelmente, tanto em direção à pesquisa Acadêmica, quanto à publicação no vasto universo da Internet, além de ter alcançado maior espaço relativo no setor editorial. Porém esse crescimento não significa melhora qualitativa. Talvez um dos desafios acerca desse último período de nossa pesquisa seja exatamente compreender em que medida a retomada dos espaços de discussão que vieram a suprimir a decadência das revistas especializadas foi capaz de gerar novos e mais ricos debates. Num cenário onde “Publicam-se muitas obras, mas na maioria só aparecem dados e descrições, sem uma análise crítica aprofundada” como diz Roberto Segre, marcado pela consolidação de uma “hegemonia, em nível nacional, da arquitetura pensada, ensinada e produzida em São Paulo”124, o risco da placidez crítica ronda todos os recôncavos de nossa produção. Raros são os críticos capazes de reagir ao panorama desenhando neste começo de século. Um deles é Otávio Leonídio que assim como Ana Luiza Nobre, João Kamita, Roberto Cunduru e outros tantos constituiu na PUC-Rio, um núcleo extraordinário de reflexão acerca de nossa produção arquitetônica, destacando-se desde a inauguração do curso de Arquitetura e Urbanismo na faculdade, em 2002. Talvez pela distância em que se coloca frente à FAU USP, o crítico consegue perceber essa “corrente”125 forjada no interior da universidade paulistana, que, a partir de “tramas de parcerias e colaborações” estabelece uma prática projetual em torno de Paulo Mendes da Rocha com uma força – nas palavras do autor, por vezes coercitiva – capaz de definir a arquitetura no Brasil. O arquiteto destaca ainda o risco “maneirista” de tal atuação. Quando questionado acerca do significado atual da arquitetura brasileira, ele aprofunda ainda mais suas críticas, afirmando que nossa arquitetura é “ainda moderna!” (em alusão à exposição de mesmo nome) não conseguindo atingir o estatuto de contemporânea e sendo marcada por “saudosismo, melancolia, desmedido apego ao sucesso, ao reconhecimento público e à celebração (sobretudo internacionais), ojeriza à crítica e, para não contrariar Oscar Niemeyer, incontinente cabotinismo”. Essa geração não enfrentaria, portanto e de fato, a “crise do conceito de moderno”, antes negando a reflexão crítica e reiteradamente afirmando os valores da “alegria, da felicidade, da beleza, do bemestar.” Como vimos, não há perigo maior à crítica do que um permanente estado de otimismo. Talvez seja mais do que hora de fazer passar a produção atual da arquitetura por um escrutínio que desmonte muitos dos mitos que estão sendo reverberados em seu interior, e um bom começo seria a desconstrução de suas obras fundantes que seriam, como indica o crítico carioca, o Pavilhão de Sevilha e o Museu Brasileiro de Escultura. Afinal de contas Otávio Leonídio compreende que a década de 2000 teria início exatamente a partir do 124

LEONÍDIO, Otávio. Críticos respondem enquete sobre a arquitetura brasileira na década. PROJETO/DESIGN, ed. 371, jan. 2011, p. 16. 125 Assunto desenvolvido no debate: LEONÍDIO, Otávio. Críticos respondem enquete sobre a arquitetura brasileira na década. (PROJETO/DESIGN, ed. 371, jan. 2011, p. 16.

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artigo de Sophia Telles que analisa o MuBE, e da vitória em 91 para o projeto do pavilhão brasileiro. Será hora de “rever ambos os projetos e reler ambos os textos. Pois uma parcela significativa do que se fez desde então, de um modo ou de outro, se relaciona com esses dois projetos.”126 O crítico sugere duas constatações: a reiterada influência e as costumazes análises acríticas de ambas obras, e a “indisfarçada intolerância para com a crítica de arquitetura”, em especial aquela que não teria identificado o axioma de que a obra de Paulo Mendes é sempre pertinente e ungida de qualidade inegável (é clara a referência ao texto de Sophia Telles). No fundo o que o autor quer demonstrar é como o atual período não passa, em sua raiz, de “uma continuidade do anterior”127, e de como o processo de naturalização de uma ideologia do moderno revisitado agrava ainda mais uma prática crítica alinhada e enfraquecida em seu estatuto fundamental da crise e da dúvida. Em artigo que analisa o projeto para a Cidade da Música128, de Christian de Portzamparc, Otavio Leonídio consegue estruturar o que entende por apropriação contemporânea da herança moderna. A partir de uma análise de como se dá a influência de Oscar Niemeyer na obra do arquiteto francês e de como este a processa através de uma dialética distância-proximidade, que saúda desencanto e maturidade numa releitura da utopia de Niemeyer, o autor contrasta a obra com a arquitetura carioca de sua época, chegando a afirmar que em cinqüenta anos não se construiu uma obra de magnitude e beleza como a Cidade da Música, encerrando o texto com a conclusão de que: A arquitetura moderna brasileira se mudou para São Paulo. Tudo bem. Continua sempre sendo brasileira. Continua sempre sendo moderna. Continua sempre sendo a mesma. Não surpreende que nessa narrativa grandiosa, redentora e atávica, não haja espaço para a invasora presença da Cidade da Música do Rio de Janeiro. Contudo o crítico carioca não está isolado em suas avaliações ásperas da arquitetura hoje. No final de seu influente artigo “Notas sobre um bar, uma quadra de basquete e um cadáver”129, Leandro Medrano articula uma contundente crítica à nossa arquitetura contemporânea, que através de um pensamento conservador acerca de sua herança moderna, subverte sua proposta radical, tornando-se anacrônica e servindo ao alargamento da dimensão “espetacular” de nossa arquitetura moderna, deixando a cidade real às margens. Tal argumento é também desenvolvido por Luiz Recamán no texto “Curvas e retas não alcançam as cidades no Brasil”130 em que analisa as relações da escola carioca – curvas e paulista – retas - para com a cidade e a política, chegando à geração de Sevilha, cada vez mais amaneirados e distantes do debate real da cidade. 126

O segundo texto a ser relido seria o artigo de Hugo Segawa “Deu em vão” publicado pela Projeto. XAVIER, Alberto. Críticos respondem enquete sobre a arquitetura brasileira na década. PROJETO/DESIGN, ed. 371, jan. 2011, p. 13. 128 RIBEIRO, Otávio Leonídio. Cidade da Música do Rio de Janeiro: a invasora Arqtexto, Porto Alegre, n.13, p. 176/187, jul./dez., 2008; Arquitextos, São Paulo, ano 10, n. 111.01, Vitruvius, ago. 2009. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.111/32 127

129

MEDRANO, Leandro Silva. Notas sobre um bar, uma quadra de basquete e um cadáver. (Óculum Ensaios, Campinas, n.3, p. 69/79, 2005. 130 RECAMÁN, Luiz. Curvas e retas não alcançam as cidades no Brasil. Arquitextos, São Paulo, ano 07, n. 079.04, Vitruvius, dez. 2006. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.079/287

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Ainda que dentro de uma lógica crítica em certa medida concorrente à dos nomes discutidos, Edson Mahfuz passou a desenvolver, em anos mais recentes, uma aproximação a um discurso cada vez mais radical de um retorno a certos procedimentos modernos. Através da busca da forma rigorosa, que enuncie com clareza seus pressupostos estruturais e funcionais, o arquiteto flerta com o pensamento de Hélio Piñon, arquiteto espanhol muito citado pelo arquiteto gaúcho, exaltando a “forma pertinente” e desclassificando a arquitetura “arbitrária” que se pratica no Brasil e mundo131. O autor identifica, assim como seus pares cariocas e paulistas, uma disciplina em crise, porém ao contrário destes, Edson Mahfuz localiza tal crise na falta de referenciais que organizem um que fazer consistente. Lê-se um desejo de retornar a uma “boa” arquitetura, dada em alguma medida a priori a partir de certos parâmetros anunciados. Tal postura talvez seja, ao mesmo tempo que uma resposta à má qualidade da arquitetura média no país – tema que o autor retoma algumas vezes nos 25 anos do estudo – uma reação ao estado de indefinição colocado pela condição pós-moderna, à falta de clareza de que, nas palavras de Ruth Verde Zein: (...) é a vida, o mundo e o que faremos nesse próximo século que faz com que as pessoas anseiem por uma unidade, e é uma ânsia que não pode ser respondida, pelo menos não agora, não sei o que será no século XXII, agora essa ânsia está fadada a não ser respondida, todas as respostas seguras são provisórias, e isso incomoda muito, é muito difícil, não é todo mundo que agüenta, é comida para gente grande, não é sopinha de nenê.132 Ou seja, no fundo Edson Mahfuz responde ao atual cenário de nossa arquitetura dobrando a aposta no pensamento moderno, radicalizando seu discurso numa busca do retorno às suas bases fundantes. Sua crítica consiste, portanto, numa reestruturação dos critérios de projeto em oposição a uma estilização do moderno, como apontado por ele mesmo em entrevista133. O mesmo entende-se quase numa trincheira, num movimento de resistência, cuja arquitetura é contrária “tanto ao seu atrelamento a outras disciplinas quanto a sua submissão à lógica do mercado” e que responde à dúvidas de nossa condição através desse retorno à arquitetura moderna. No fim, contudo, por mais que critique uma vulgarização da linguagem modernista, sua postura crítica é radicalmente oposta a dos críticos cariocas, a Luiz Recamán e Leandro Medrano, pois ao invés de querer analisar o moderno sob uma nova ótica, contemporânea e interdisciplinar, atenta às contradições de seu tempo, antes invoca um rigor do passado, um formalismo muito certo de si e que espanta a dúvida. Talvez o caminho da crítica seja, antes de tudo, aperfeiçoar sua capacidade de separar o joio do trigo num plano arquitetônico que aponta para uma homogeneidade, mas na realidade está cheio de sutis diferenças, delicados desvios discursivos e formais. Visto de longe todos são muitos iguais, mas não será o caso, então, de aguçarmos o olhar e trocarmos a luneta pelo microscópio? E afinal será isso suficiente, a crítica atuando a reboque das obras – por mais que em sua natureza ela sempre trabalhe sobre elas, a obra não deve pautar a crítica – no sentido de não conseguir articular caminhos, teoria, história e problemáticas? Independente da resposta, tal ajuste em nosso modelo crítico é 131

Tais conceitos são melhor desenvolvidos no artigo: MAHFUZ, Edson. Reflexões sobre a construção da forma pertinente. Arquitextos, São Paulo, ano 04, n. 045.02, Vitruvius, fev. 2004. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/04.045/606

132 133

ZEIN, Ruth Verde. Entrevista pessoal ao autor Jaime Solares Carmona. ANEXO C. MAHFUZ, Edson da Cunha. Entrevista pessoal ao autor Jaime Solares Carmona. ANEXO B.

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fundamental, pois o primeiro passo para se lidar com uma questão é definindo-a com a maior sofisticação possível. Sair da compreensão de que o cenário arquitetônico segue morno não será o caminho. Como coloca Ruth Zein, “talvez não seja tão morno assim, a gente é que está (...) simplificando o campo.”134 Ou seja, ao invés de insistir que “ainda somos modernos”, seria o caso de compreender as especificidades da produção nacional, em especial do grupo paulista que tem ainda hoje regrado os rumos da arquitetura em outras partes do pais. O tema é abordado por Na Luiza Nobre em entrevista, quando inclusive considera que o termo “coletivo” para falar dos escritórios da exposição homônima é impreciso dado que nem dentro dos seis escritórios seria possível identificar um projeto comum. Quanto à exposição: (...) no caso especifico do Coletivo a gente está falando de um grupo pequeno de arquitetos de São Paulo – que não constitui um grupo propriamente. Tem um que claramente aponta para uma outra direção e de fato se confirmou como tal que é o Andrade e Morettin, e mesmo com o tempo foi mostrando as suas diferenças, mas eles se organizaram – bem ou mal - e se apresentaram como um grupo. Esse termo Coletivo eu acho um termo muito ruim, inclusive, porque não configura um coletivo de maneira alguma aquilo, não foi eu que dei e nem sei quem deu esse título, ao livro à exposição, não sei.135 Por fim, cabe falar brevemente de um conceito que vem sendo discutido ao redor do mundo nos últimos anos, o da “pós-criticalidade”. Apesar do mesmo não ter chegado no Brasil, como afirma a crítica carioca136, incapaz portanto de apresentar desdobramentos relevantes, vários de seus conceitos lembram enormemente o campo crítico nacional, especialmente nos dias de hoje, como a rejeição que existe à crítica por entendê-la enquanto negatividade, em oposição a uma prática projetiva positiva. Através de uma suposta superação da predominância da criticalidade e do aporte teórico na arquitetura, que teriam marcado a disciplina dos anos 1960 aos 1990 ao redor do mundo, advoga-se que a teoria só serviria para engessar a prática, buscando-se inspiração em outras dimensões da vida, como a materialidade da obra, questões ambientais e fenomenológicas, experiências empíricas, etc. É como se a Academia estivesse esgotada, e fosse necessário explorar o mundo dito real. Como se o problema da arquitetura hoje, cada vez mais marginalizada no campo da cultura, fosse a falta de projetos, a falta da construção, já que as idéias não foram capazes por si só de salvar a humanidade. Isso lembra sobremaneira uma postura corrente na produção contemporânea brasileira, especialmente no que tange à urgência-programada que impede qualquer reflexão a menos que ela seja propositiva, construtiva, prática. E se o mundo a reação à póscriticalidade tenha sido na direção de questionar quais seus objetivos finais – dado que, como formula Josep Maria Montaner137 quando fala de Peter Zumthor, tal ação impensada pode levar a uma arquitetura nostálgica e conservadora – no Brasil a obsessão no projeto como cura de todos os males tem sido justificada por um discurso utópico requentado e 134

ZEIN, Ruth Verde. Entrevista pessoal ao autor Jaime Solares Carmona. ANEXO C. NOBRE, Ana Luiza. Entrevista pessoal ao autor Jaime Solares Carmona. ANEXO A. 136 Na mesma entrevista, a autora chega a falar que o livro “O campo ampliado da arquitetura: Antologia teórica 1993-2009” de 2013 e organizado por A. Krista Stykes com revisão técnica de Nobre seria o primeiro suporte que debate o tema no país. 137 MONTANER, Josep Maria. La mutación pragmática de la crítica de arquitectura. Revista Palimpsesto. Barcelona: 2013. 135

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cada vez mais distante da realidade urbana. A fala de Reinhold Martin é esclarecedora quanto a isso: Assim, a resposta usual é a seguinte: a arquitetura hoje é tão impotente, tão culturalmente marginalizada, que qualquer crítica saída de dentro de seus muros é, por assim dizer, ineficaz, para não dizer inteiramente irrelevante. O que se precisa buscar é uma arquitetura mais “robusta”, mais “efetiva”. Isso vale em dobro para a teoria acadêmica, para não falar da história, que são consideradas duplamente irrelevantes em função de sua suposta obscuridade. Então por que se importar? No entanto, essas afirmativas mostram um equívoco categorial, pois o problema não é que o discurso arquitetônico seja tão acadêmico que não tenha nenhuma importância política, e sim que não seja suficientemente acadêmico. 138

Não deixa de ser irônico como talvez tal discurso pró-projeto acabe não vingando no país, exatamente porque não temos uma tradição teórico-crítica forte e presente o suficiente contra o qual esse movimento reaja. Quiçá só conseguimos observar pontos de contato porque sempre fomos, em maior ou menor medida, parte de uma ideologia projetiva da constante afirmação, de uma militância desenvolvimentista incapaz de parar a máquina projetual. O que diferenciaria a produção contemporânea de seu referencial moderno muito possivelmente é a troca do discurso utópico por uma variação inconstante entre um idealismo desgastado e um pragmatismo superficial. Contra ele há, desde muito tempo mas com um maior grau de autoconsciência recente, o projeto da “Pesquisa em Projeto” desenvolvido por Ruth Verde Zein na Universidade Presbeteriana Mackenzie onde leciona. Ela mesma admite que o tema é “um nome muito contemporâneo e que é uma dúvida mundial”139 dentro de um debate definido por indefinições, ninguém parece saber o que é “pesquisa em projeto”. A arquiteta compreende que, afinal, tais questões da primazia do projeto sobre o pensamento não sejam mais do que uma moda, já que o mesmo tema foi discutido nos anos 1960 em outros termos. A impressão geral é que tudo não passa de uma incompreensão de termos. Em seu texto sobre o tema, Montaner destrincha as várias problemáticas envolvidas, que parece confundir em alguns momentos o que seria pós-crítica com pós-criticalidade. Ora, se retirarmos o prefixo pós, a discussão conceitual de nosso segundo capítulo, entre crítica e criticalidade dimensiona o problema em sua justeza. Afinal de contas uma pós-criticalidade não significa, necessariamente, o fim da crítica, ou seu menosprezo, mas apenas uma mudança no estatuto disciplinar que visa superar os embates teóricos do pós-modernismo. No meio de tantas discussões, falou-se que a crítica negativa não constrói, que ela é eminentemente retrospectiva portanto não pode projetar, que a criticalidade foi absorvida pela prática projetiva etc. A verdade é que tudo isto está correto. A crítica não é projeto, não substitui projeto e nem deve estar no cerne dele no sentido de criticalidade. A crítica é um momento de análise específico de nossa atividade, enquanto que a criticalidade é muito mais uma postura geral, não só sobre arquitetura mas sobre o mundo. Confundir uma pela 138 MARTIN, Reinhold. Crítica a quê? Rumo a um realismo utópico In: STYKES, A. Krista (org.). O campo ampliado da arquitetura: Antologia teórica 1993-2009. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 267. 139

ZEIN, Ruth Verde. Entrevista pessoal ao autor Jaime Solares Carmona. ANEXO C.

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outra apenas mostra nossa inconsistência contemporânea, e nosso medo de olhar para nossas próprias contradições. O desenho não deve ser tão otimista. Esse desenraizamento, essa obsessão no método em detrimento dos “por quês”, essa invenção de inimigos fáceis de derrubar (e não aqueles de onde partimos) mostra uma segunda infância de nossa arquitetura, não só mundial como a brasileira. É certo que o caminho se faz ao caminhar, a pergunta é: para onde estamos caminhando?

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CONCLUSÃO

Há crítica de arquitetura no Brasil. A partir de tal conclusão, nosso estudo pôde localizar as reformulações disciplinares pelas quais passou o campo da arquitetura na virada dos anos 1970 para os 1980, configurando assim a crítica de arquitetura como entendemos hoje. De nobre tarefa se imbuíram os críticos da chamada aqui primeira geração. Nomes como Ruth Verde Zein, Hugo Segawa, Renato Anelli, Abílio Guerra, Cêça de Guimaraens, José Wolf, Haifa Sabbag, Carlos Eduardo Dias Comas e Edson Mahfuz, entre tantos outros, foram os responsáveis por construir os métodos analíticos e instrumentais teóricos da crítica de arquitetura. Admitindo a existência da alteridade, buscando sempre a produção fora do eixo Rio-São Paulo, visando redescobrir a continentalidade do Brasil, a dimensão histórica da profissão, e aceitando a pluralidade como condição, lançou mão de uma pragmática que vai além do discurso ideológico que marcou os anos da ditadura militar. Assim, superando em certa medida o embate da “vanguarda contínua” com a militância política que entendia a arquitetura a partir do materialismo histórico e outras teorias, essa geração deu o primeiro passo definitivo na direção de encontrar e levantar, registrar e descrever as obras de arquitetura pós-Brasília num trabalho de alto comprometimento, porém não atingindo, em certa medida, uma maior ousadia teórica ou crítica. Quando todo um mundo novo havia de ser descoberto, talvez fosse mais fortuito afirmar a diversidade e seguir em frente. O problema é quando tal postura permanece ainda hoje, quando um pragmatismo pioneiro segue colocando, de alguma forma, a obra antes da crítica, eliminando discursos e debates ao seu redor que possam problematizar o pensamento por trás do edifício. Fica o desafio para a nova geração de críticos, que incluindo nomes como Ana Luiza Nobre, Otávio Leonídio, Luiz Recamán, Guilherme Wisnik e Fernando Serapião, aposta na interdisciplinaridade e no retorno à questão urbana como saídas à letargia crítica pela qual passa a arquitetura, superando em certa medida a autonomia disciplinar que se desenhou nos anos 1980 e ensimesmou nossa prática. Mais atenta aos debates internacionais, e com participação mais ativa em espaços culturais como bienais e revistas de cultura, além de uma vontade de explorar outras linguagens críticas além do texto (como cinema, instalações, etc.), os novos críticos que surgem ao fim dos anos 1990 se firmam no século XXI com ares de renovação. Contudo herdam, por vezes, o otimismo de seus pares projetistas, e apesar de algumas vezes reiterarem a ausência de uma crítica – sintoma edipiano de desejo de superação – ainda agenciam o alinhamento ideológico que foi se constituindo na década de 90 e em alguma medida permanece até hoje. Ao não conseguir articular uma disciplina a partir de novos paradigmas da contemporaneidade, superando o diletantismo modernista e recuperando saberes vilipendiados pela arquitetura – tais como a ação política e a sociologia -, em sua maior parte, a crítica atual permanece incapaz de construir um campo como fez Lúcio Costa nos anos 1930, dentro de um projeto mais ambicioso de arquitetura. O que temos é um esforço apequenado de reprodução da estabilidade atingida pela arquitetura brasileira na virada do século, a partir de uma ideologia enfraquecida porém presente, que indica predileções modernistas num cenário idealmente neutro e prenhe de diversidade. A partir da neutralização das contradições expostas pelo pós-modernismo, e da naturalização do 129


caminho “moderno pós-moderno” e suas contradições, a crítica hoje nega qualquer tipo de crise em seu próprio estatuto, além da prática e do projeto. Tal operação tem duas conseqüências negativas: a primeira diz respeito a essa falta de um projeto que coloque a arquitetura no centro da vida cultural urbana do país, buscando uma espacialidade além da romancizada da cidade real; e a segunda diz respeito à quase ausência do confronto entre idéias, dando primazia ao projeto e esvaziando o potencial crítico da própria crítica. Esse desejo “necrófilo” de absorção no cerne do ato projetual deve ser substituído pela dissociação clara das esferas do fazer arquitetônico, ao mesmo tempo em que coloca a crítica à parte do provincialismo eterno de que “não se pode criticar um colega arquiteto”, inaugurando, portanto, uma cultura sistemática de autoreflexão. Alem disso, é papel da crítica sempre localizar sua própria arbitrariedade, negando uma falsa busca do certo e do errado dentro de uma objetividade científica que simplesmente não faz sentido quando se fala de um fazer humanístico cercado de artisticidade e criação. A arquitetura deve, em nossos dias, reatualizar seu estatuto, fortalecendo todos os campos de atuação – projeto, crítica, história e teoria – a fim de reorganizar o campo como um todo e buscar novos caminhos, aceitando a condição pósmoderna como ponto de partida. Nesse aspecto, a crítica deve sair de sua atual posição de marginalidade dobrada ao projeto, e reencontrar sua marginalidade ativa, independente e consciente de si, auxiliando também na superação da dita “lobotomia” entre arquitetura e urbanismo, e o mito de que o projeto, por si só, substitui a crítica, ou que ele é em si pesquisa. Enfim, o desafio é imenso. Não temos saída, voltemos à crise.

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www.ibcarq.com Site desenvolvido para organizar todos os artigos críticos levantados no estudo em ordem alfabética. Nele também pode-se acessar os principais artigos analisados por período.

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Revistas e periódicos

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Periódicos acadêmicos arq. urb (Universidade São Judas Tadeu); 1-4; 2008-2010. Arqtexto (UFRGS); 0-17; 2000-2010. Arquitetura Revista (Unisinos); 3.1, 3.2, 4.1, 4.2, 5.1, 5.2, 6.1, 6.2; 2005-2010. Caderno de Arquitetura Ritter dos Reis (UniRitter); 1-8; 1999-2010. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo (PUC Minas); 11-21; 1993-2010. Cadernos de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (Universidade Presbiteriana Mackenzie); 3, 4, 5, 7, 8, 10; 2001-2010. Cadernos PPG (UFBA); 1.1, 2.1, 3.1, 4.1, 5.1, 6.1, 7.1, 7, 9; 2002-2010. Cadernos PROARQ (UFRJ); 1-3, 5-15; 1997-2010. Desígnio (USP); 1-9/10, 2004-2009. Interpretar Arquitetura (UFMG); 13-17; 2000-? Óculum ensaios (PUC-Campinas); 1-11/12; 2000-2010. Paranoá (UnB); 1-5; 2003-2010. PARC (Unicamp); 1-5; 2006-2010. Pós (USP); 1-28, 1990-2010. RISCO (USP, São Carlos); 1-11; 2003-2010. RUA (UFBA); 1.1, 1.2, 2.1, 2.2, 3.1, 4.1, 5.1, 6.1, 7.1, 7.2; 1988-2006. Topos (UFMG); 1-4, 1999-2005.

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Periódicos estudantis Caramelo; 1-10 + especial; 1990-1998. NOZ; 1-2; 2007-2010.

Revistas culturais Bravo!; 1-23, 25, 27, 31-32, 34, 36-37, 40-192; 1997-2010. Piauí; 1-, 1-104; 2006-2010. Revista CULT; 1-2, 4, 6, 8-22, 24-34, 36-57, 59-67, 69, 89, 102, 150, 160, 171-200; 1997-2010. serrote; 1-18, 2009-2010.

Periódicos internacionais A+U, n. 341, 1999. ABITARE, n. 374, jun. 1998. L`ARCHITETURE D`AUJOURD`HUI, n. 373, 396, jul/ago 2005; 252 jun. 1987. ARQUINE, n. 3, 1998; n. 37, 2006. CASABELLA, n. 753, vol. 86, issue 6, jun. 2004; n. 723, p. 30-59, jun. 2004. GA HAUSE, n. 106, ______. PROCESS ARCHITECTURE, n. 17, p. 19, 1980.

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______. Nemours-sur-Tietê, ou A modernidade de ontem. (PROJETO, edição 89, 1986, p. 90-93) ______. Protótipo e monumento, um ministério, o ministério. (PROJETO, edição 102, 1987, p. 136-149) FICHER, Sylvia. Anotações sobre o pós-modernismo. (PROJETO, edição 74, 1985, p. 35-42) MAHFUZ, Edson da Cunha. O Clássico, o Poético e o Erótico. (AU, edição 15, 1988, p. 60-68) ______. Quem tem medo do pós-modernismo? Notas sobre a base teórica da arquitetura contemporânea. (PROJETO, edição 101, 1987, p. 132-138) MEDEIROS, Heloisa. Em torno do concurso. (AU, edição 35, 1991, p. 74-75) PADOVANO, Bruno. A Arquitetura brasileira em busca de novos caminhos. (AU, edição 4, 1986, p. 79-83) PUNTONI, Pedro Luis. A negação do pós-moderno e a negação do moderno. (Caramelo, São Paulo, n. 2, p. 04-11, 1991) SANT`ANNA JÚNIOR, Antonio Carlos. Strada Nuovissima. Os caminhos da nova geração de arquitetos. (PROJETO, edição 143, 1991, p. 55-56) SANTOS, Cecília Rodrigues dos. Porque as catedrais não eram brancas. (PROJETO, edição 128, 1989, p. 40-49) SEGAWA, Hugo. A câmara de Brasília: a fênix abrindo as asas? (PROJETO, edição 131, 1990, p. 41-44) ______. Pavilhão do Brasil em Sevilha: deu em vão. (PROJETO, edição 138, 1991, p. 34-39) TELLES, Sophia da Silva. Museu Brasileiro de Escultura. (AU, edição 32, 1990, p. 4451) ______. O frágil cotidiano. (AU, edição 4, 1986, p. 34-37) ZEIN, Ruth Verde. Acerca da arquitetura mineira. (PROJETO, edição 81, 1985, p. 100113) ______.Fábrica da Pompéia, para ver e aprender. (PROJETO, edição 92, 1986, p. 4445) ______.Sacudindo a poeira mas valorizando o patrimônio. (sobre a produção atual da arquitetura em razão da Bienal Latino-Americana/de Buenos Aires). (PROJETO, edição 75, 1985, p. 47-62)

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ANEXO A Entrevista concedida por Ana Luiza Nobre através do Skype na noite do dia 30 de Junho.

Jaime Solares Carmona

J

Ana Luiza Nobre

A

Apresentação J: Arquiteta formada pela FAU UFRJ em 1986, possui mestrado e doutorado em História pela PUC-Rio, onde é também professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Trabalhou como assistente editorial na revista AU e na seção a.c-arquitetura.crítica, do site vitruvius. Publicou, entre outros, os livros “Coletivo. Arquitetura Paulista Contemporânea”, em co-autoria com Ana Vaz Milheiro e Guilherme Wisnik, além do “Arquitetura Moderna no Rio de Janeiro”, juntamente com Alberto Xavier e Alfredo Britto. Atualmente é coordenadora de Pesquisa e Educação do Instituto Moreira Salles. Foi curadora da X Bienal de Arquitetura de São Paulo, juntamente com Ligia Nobre e Guilherme Wisnik. Possui também um blog, o “posto 12”1, desde 2009.

Perguntas

1 J: Em seu artigo “A falta que nos faz”2, você afirma que não há crítica de arquitetura no Brasil. Porém desloca o problema para a questão desse vazio como postulado que esvazia ainda mais a questão. Na sua opinião, por que persiste a sensação, ao longo desses 25 anos de estudo, da falta de crítica no país? A: Bom, eu teria que reler esse artigo primeiro, porque já faz tanto tempo que eu escrevi que eu já nem me lembro mais. Mas essa sensação do vazio da crítica é uma sensação que permanece, sem dúvida. E da crítica significa também de uma esfera crítica, de um pensamento crítico sobre a arquitetura no Brasil, quero dizer, não é só do exercício da crítica teórica ou escrita, mas também de um pensamento crítico sobre arquitetura, sobre cidade e que seja capaz de ganhar uma dimensão pública, porque acho que isso é fundamental. A crítica se exerce na esfera pública, quer dizer, ela demanda uma prática 1

http://posto12.blogspot.com.br/ NOBRE, Ana Luiza. A falta que nos faz. Arquitextos, São Paulo, ano 01, n. 002.02, Vitruvius, jul. 2000 http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.002/996

2

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pública. E nos casos em que isso ocorre no Brasil, nos últimos tempos, isso permanece ainda muito restrito, também ao campo disciplinar e ao meio da arquitetura. São muito raros os casos de uma ação, digamos assim, crítica exercida na esfera pública e que alcança um público para além do público especializado. Então acho que isso é bastante sintomático também de um retraimento da crítica no Brasil se a gente considerar o período do Mário Pedrosa, por exemplo, período em que esse pensamento se exercia muito na esfera pública e mobilizava diversas disciplinas além da arquitetura. Você tinha um exercício cotidiano da crítica em jornais de grande circulação, uma Bienal de Arte que incluía uma sessão de arquitetura que era relevante, tinha uma relevância pública. Então acho que a gente foi, também, se encerrando muito na nossa disciplina e na nossa área, nas nossas organizações, no nosso corporativismo, na verdade. J: Você acha então que, de certa maneira, essa busca de uma maior interdisciplinaridade da compreensão da crítica no espaço público, que tem a ver com a própria Bienal em que você participou, seria um caminho para retomar essa consciência crítica na arquitetura? A: Sem dúvida, eu acho que isso é fundamental. Agora, não estou dizendo que a Bienal, por exemplo, da qual eu fiz a curadoria, tenha sido um sucesso nesse sentido, isso é importante dizer. Foi um esforço, mas sobre muitos aspectos foi um fracasso também porque público permaneceu sendo restrito. A dimensão que isso ganhou nos jornais, na esfera pública continuou muito restrita, então sobre certo sentido foi um fracasso. Foi um esforço muito grande curatorial, mas o resultado foi muito aquém das nossas expectativas desse ponto de vista. Mostra-se de fato como há um vazio, também, institucional da arquitetura, que as nossas instituições estão cada vez mais distanciadas da arquitetura. A arquitetura está cada vez mais distanciada das instâncias decisórias, das instâncias públicas. Então essas discussões quando surgem, tendem a ficar - não é sempre, mas tendem a ficar - confinadas ao ambiente Acadêmico, por exemplo, ao ambiente das organizações profissionais, do meio profissional. Acho que isso é muito sintomático também de um período muito longo de repressão ao pensamento crítico no Brasil, que não diz respeito só à arquitetura, evidentemente. Você está começando aí em 1985, seu recorte pode ser um pouco arbitrário, mas ele está apontando aí pro final de um período muito negro, muito longo na verdade da história do Brasil, de muita pressão ao pensamento crítico. Isso tem conseqüências e acho que a gente até hoje sofre essas conseqüências. J: Um dos aspectos que percebi foi exatamente isso, como o período da ditadura ele está relacionado com um declínio da crítica, não sei como afirmar. Então seria exatamente essa retomada dos anos 80, a partir daí para entender como ela chega hoje. Mas dissocias um período do outro realmente é insuficiente. A: Dissociar um período do outro, como assim? J: Ou seja, a retomada com o período imediatamente anterior ao dessa crítica que estava muito fragilizada. A: De uma maneira geral, agora, estou falando de um ponto de vista da arquitetura. Se a gente pegar, por exemplo, o ponto de vista das artes plásticas, nesse mesmo período da ditadura, você tinha uma esfera crítica muito potente, tinha um pensamento crítico muito forte, uma articulação muito grande entre um pensamento crítico propriamente dito e uma prática crítica da arte, digamos assim. Então tem todo aquele grupo da Malasartes3, tem 3

A Revista Malasartes foi articuladora de um grupo de críticos cariocas nos anos 70 que pretendia questionar o modelo cultura do modernismo e o sistema artístico como um todo.

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críticos importantíssimos, como Ronaldo Brito, como Rodrigo Naves que estão trabalhando numa articulação muito intensa com a prática artística. Tem uma retroalimentação entre o pensamento crítico e a prática crítica - prática artística e crítica. Na arquitetura...foi um período de exceção, digamos assim. Salvo exceções, foi um período de recessão mesmo, foi um período que em comparação, por exemplo, com a literatura e com as artes plásticas, bem menos produtivo, digamos anos 70. Tem exceções, claro, e tem grandes exceções, mas não se constituiu, eu acho, uma prática conseqüente, em termos de pensamento crítico em arquitetura como no campo das artes, por exemplo, nos anos 70, no Brasil. Acho que isso tem a ver – devo ter dito em vários momentos e acho que você deve ter lido também - muito com o ensimesmamento, de uma certa maneira, da arquitetura brasileira após Brasília, uma autosatisfação conquistada com Brasília, uma imunidade, na verdade, também, à crítica. Por mais que Brasília tenha sofrido críticas, e sofreu antes mesmo de ter sido inaugurada, aquilo foi um momento, de certa maneira, de confirmação de um projeto de modernidade brasileira em que a arquitetura brasileira estava no seu auge. Então tinha uma visibilidade que nunca teve antes, em termos internacionais. Aquilo gerou, também, uma autosatisfação, eu acho, que pra arquitetura brasileira foi muito nociva, tem um lado que é muito nocivo.

2 J: Em entrevista ao Portal Vitruvius, ao ser perguntada sobre “o que é crítica”, você define que “é uma atividade que envolve juízo, mas não se confunde com julgamento”4. Qual a diferença entre ambas? A: Acho que juízo, do ponto de vista kantiano, num julgamento no sentido de a crítica não pode ser entendida como uma condenação. Ela é produtiva quando ela faz pensar, eu acho. Ela funciona e ela faz sentido quando se desdobra em pensamento, em reflexão. Ela aciona uma reflexão que tende também a se dar em círculos cada vez mais ampla condição de uma esfera pública. Então, no geral no Brasil, também a gente tende a pensar crítica como algo que é negativo. “Eu fiz uma crítica ao seu projeto” ou seja “eu falei mal do seu projeto”. Acho que isso, é claro que é um grande equívoco, isso é senso comum, digamos, isso não diz respeito só à arquitetura. O crítico é aquele que fala mal. Fazer crítica é falar mal, “o cara criticou o meu projeto” significa “o cara falou mal do meu projeto”. E a crítica é algo que alimenta, na verdade, também a prática projetual. Porque ela parte de um embate com a obra, um embate difícil, na verdade, que envolve um repertório, que envolve uma bagagem, envolve uma ordem de experiência tudo isso, e que envolve um enorme desafio, porque no fundo o crítico está sozinho em diálogo com a obra, então envolve um longo desafio: oferecer uma outra camada, uma outra leitura a respeito de uma obra que, muitas vezes, é uma obra que nem está terminada ainda ou que acabou de ser construída ou que já está consagrada.

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PERROTTA-BOSCH, Francesco; MAIA, Gabriel K.; MENEGUETTI, Mariana; AZEVEDO, Valmir; MAIOLINO, Carolina. Entrevista Ana Luiza Nobre e Guilherme Wisnik. Entrevista, São Paulo, ano 11, n. 042.02, Vitruvius, jun. 2010. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/11.042/3454

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Enfim esse enfrentamento com a obra é muito solitário, de uma certa maneira, e ele faz sentido quando ele é transformador para ambos, tanto para a obra quanto pro próprio crítico, quando ele é provocador. É nesse sentido, que não é uma condenação, não pode ser entendido como uma condenação ou assim “Ah! Eu falei bem” então “Ah! Então é um prêmio”. Não, não é isso. É um embate, e esse embate gera questionamento. Então a crítica é uma atividade que pressupõe esse embate, esse enfrentamento e esse intercâmbio. É um intercâmbio, é um diálogo. J: O julgamento então entendido num sentido mais moral, ou seja, a gente tem que evitar essa dimensão moral e atuar numa dimensão mais construtiva, não sei. A: Sem dúvida, sem dúvida.

3 J: Um dos livros que você ajudou a publicar – “O campo ampliado da arquitetura” – discute o paradigma da chamada “pós-criticalidade”. Como você acha que essa questão atinge o pensamento arquitetônico brasileiro? A: Eu acho que isso não chegou no Brasil ainda. Acho que, por ora, é uma questão muito anglo-saxônica, muito americana. Isso tem sido discutido em anos recentes numa esfera ainda bastante acadêmica nos Estados Unidos, e acho que não chegou ainda no Brasil, não é uma discussão que está produzindo algum desdobramento.

Áudio corta por alguns segundos. Eu não vi ainda, pelo menos uma reflexão, no Brasil a cerca disso. Acho q o livro é a primeira coisa, na realidade não vi ainda nada.

4 J: No começo dos anos 2000 surgiu uma seção no site vitruvius chamada “arquitetura.crítica”, da qual você fazia parte juntamente com a Haifa Sabbag. Aparentemente houve uma importante querela relativa à sua afirmação de que estava surgindo uma nova historiografia, muito mais crítica e analítica do que a então existente. O debate envolveu os principais nomes da crítica nacional, porém tantos os comentários originais, quanto as réplicas e tréplicas foram apagados do site. Você acha que esse episódio tem relação com o fim do importante espaço “a.c.” do vitruvius? A: Não, acho que não tem nada a ver. O fim do espaço, na verdade, foi porque eu não tinha mais condição de tocar aquele espaço. Pelo contrario, o Abílio sempre apoiou muito a “arquitetura e critica” e insistiu muito para que a gente continuasse. É que eu não tinha condições, a Universidade foi me convocando cada vez mais e me solicitando cada vez mais atenção e eu não tinha como manter aquilo com a regularidade que exigia. A gente não ganhava nada, era uma coisa voluntária, e a gente queria fazer uma coisa bem feita, não 145


tinha como continuar, era só eu e a Haifa, não tem relação. Mas de maneira alguma tem relação com esse episodio, que eu também lamento que tenha sido apagado. Apagado não é que ele mudou, o vitruvius foi reestruturado e varias coisas não foram reformatadas.

Em seguida a entrevistada muito gentilmente se solicitou e me enviar seus arquivos referentes ao episódio, enriquecendo ainda mais a pesquisa.

5 J: Em 2006 você participou da publicação sobre a exposição “Coletivo”5, e um ano antes houve, em Paris, a exposição “Ainda modernos?”6 organizada por André Corrêa do Lago e Lauro Cavalcanti. Ambas podem ser consideradas parte de uma estratégia de afirmação da arquitetura contemporânea brasileira. Como você acha que essa constante reafirmação de nossa matriz moderna – presente na geração atual de arquitetos - afeta a crítica, contribuindo para o seus diagnóstico de que “uma rigorosa crítica do projeto moderno nunca chegou a ser propriamente experimentada pelo meio arquitetônico brasileiro.”7? A: Quem disse isso, eu mesma? J: Foi. Infelizmente não anotei onde, mas eu localizo para te mandar. A: (risos) Primeiro são duas coisas muito distintas. O trabalho do André Corrêa do Lago e do Lauro Cavalcanti não tem nada a ver com o Coletivo. O Coletivo também não foi um livro, uma exposição que gerou um livro, as duas coisas foram feitas ao mesmo tempo, exposição e livro, era um projeto só. E esse projeto não foi um projeto curado, organizado e nem idealizado e concebido, nada disso, pelos críticos. Foi feito pelos arquitetos. Os escritórios de arquitetura que resolveram se expor publicamente e convidaram três pessoas para comentar os trabalhos deles. Então o que nós fizemos foi um comentário critico acerca dos projetos que eles tinham selecionado e que estavam organizando tanto para a exposição quanto para o livro, só isso. Muito diferente dessa outra exposição que você citou que é um projeto curatorial, o nosso não foi nesse sentido. Não participamos, em nenhum momento, nem das escolhas das obras. Nós fomos convidados a comentar as obras que tinham sido selecionadas pelos próprios arquitetos. E acho que uma coisa não tem ligação com a outra, primeiro que nenhum de nos três – eu, o Gulherme (Wisnik) e a Ana (Vaz Milheiro) participamos da seleção nem das obras nem dos escritórios, foi uma decisão deles. Como eles se organizaram, como eles chegaram a isso você tem que perguntar para eles. 5

Exposição organizada pelos seis escritórios paulistanos de arquitetura: MMBB, Projeto Paulista, Núcleo de Arquitetura, Puntoni - SPBR Arquitetos, UNA e Andrade Morettin em 2006 no Maria Antônia, com o intuito de divulgar seus principais trabalhos. Wisnik, Nobre e Milheiro foram convidados como críticos para analisar tais obras. 6 Exposição organizada por André Corrêa do Lago e Lauro Cavalcanti no ano de 2005 em Paris, que visava analisar os nexos existentes entre a arquitetura moderna da fase heróica (1930-1960) com a praticada a partir de 1990 no Brasil. 7 NOBRE, Ana Luiza; MILHEIRO, Ana Vaz; WISNIK, Guilherme. Coletivo: arquitetura paulista contemporânea. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 19.

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J: Vocês queriam ter participado? A: Não, eu fiquei muito confortável, talvez foi a única vez que isso aconteceu comigo, e talvez tenha sido a única vez que aconteceu no Brasil, achei extraordinário isso...

Áudio cortado por poucos segundos. ...se expuseram a critica. Se organizaram de maneira a se expor a critica, o que é em si louvável, que eles organizaram o livro e a exposição. Claro que isso é uma maneira também de divulgar o seu trabalho, que é importante, mas também é uma maneira de provocar uma reflexão de outros, e atuar numa esfera pública, que é importante. Eu achei extraordinário eles fazerem isso, conseguiram verba se articularam politicamente, institucionalmente, eles fizeram tudo. J: A conexão q eu tinha identificado era que essa “Ainda modernos?” eles identificam inclusive alguns nomes do Coletivo como parte dessa geração que surge nos anos 90 e vai se desenvolvendo resgatando uma certa linguagem moderna. E o meu ponto era exatamente esse, ou seja, a arquitetura contemporânea parece com essa retomada de uma certa linguagem ou de uma certa escola, e exatamente como é que é essa retomada, em que medida ela dialoga ou não com um crítica que também de alguma maneira, na medida dos anos 90 essa arquitetura ia ganhando espaço e visibilidade, a crítica parece que foi perdendo espaço, inclusive nas revistas especializadas e tudo... A: Não sei. Primeiro eu não chamaria isso de retomada, porque no caso especifico do Coletivo a gente está falando de um grupo pequeno de arquitetos de São Paulo – que não constitui um grupo propriamente. Tem um que claramente aponta para uma outra direção e de fato se confirmou como tal que é o Andrade e Morettin, e mesmo com o tempo foi mostrando as suas diferenças, mas eles se organizaram – bem ou mal - e se apresentaram como um grupo. Esse termo Coletivo eu acho um termo muito ruim, inclusive, porque não configura um coletivo de maneira alguma aquilo, não foi eu que dei e nem sei quem deu esse título, ao livro à exposição, não sei.. Mas eu acho que no caso não dá nem pra falar de retomada, de jeito algum. Eles estavam se apresentando numa linha de continuidade que na verdade é muito forte e que não teve rompimento, eles tem uma filiação que é de uma determinada escola, uma determinada pratica e meio, e isso é muito claro em São Paulo. Então tem uma filiação...não acho que seja uma retomada, e não gosto nada do “ainda moderno” também. Por que ainda? Não entendo muito esse ainda. O contemporâneo não é necessariamente um rompimento com o moderno. Tem várias frente na verdade, o contemporâneo ele pressupõe uma pluralidade de correntes, uma abertura pras diferenças e pra coexistência da diferença. Se você pegar a obra do Siza Vieira você vai dizer que ele é “ainda moderno”? Não consigo ler nessa chave e não consigo associá-los a essa chave.

6 J: No sexto capítulo de seu livro “Teoria e História da Arquitetura”, Tafuri – teórico com quem você teve contato quando esteve na Itália – desenvolve o conceito de arquitetura como crítica, e fala em como essa categoria de pensamento põe em risco a crítica de arquitetura mesma, na medida em que tenta absorvê-la em sua criticalidade. Ainda, neste primeiro 147


semestre de 2015, no seminário “Tafuri: seus leitores e suas leituras”, quando perguntado sobre crítica de arquitetura e suas referências na área, Paulo Mendes da Rocha deixou clara sua confusão entre arquitetura como crítica, dimensão crítica do projeto e crítica de arquitetura em si. Como você acha que a nova geração de arquitetos paulistas, citada anteriormente, desenvolve/amadurece essa herança de compreensão da disciplina crítica?

Ana faz ponderações quanto a qual herança falávamos – do Tafuri ou Paulo Mendes – e comenta que a geração do Coletivo já não é mais nova, hoje tendo em média seus cinqüenta anos de idade. A: O meio da arquitetura no Brasil carece de uma reflexão sobre crítica. Assim como carece de uma prática crítica, carece de uma reflexão sobre crítica, e isso é evidente. Você tem pouquíssimas pessoas e poucos trabalhos teóricos ainda, é uma produção muito pontual, esgarçada, tem poucos meios. Acho que é uma confusão que a gente sente de uma maneira geral, a minha geração...

Novamente o áudio foi cortado por problemas de conexão com a Internet, voltando minutos depois, quando segue o término da entrevista. Acho que a minha geração teve uma formação muito falha em termos de critica, se teve alguma formação crítica. Eu nasci em 64, por isso digo isso com muita tranqüilidade, e acho que a pratica da arquitetura de uma maneira geral ela é por principio uma pratica crítica, porque ela pressupõe duvida, transformação, reflexão, ela pressupõe uma interrogação, sempre. O Argan8 diz isso muito bem, “o projeto é sempre contra alguma coisa”, você projeta contra o mercado, contra o destino, contra uma mentalidade estabelecida, contra o hábito... então ele tem esse potencial transformador. Nesse sentido todo projeto é um projeto critico. Agora, tem uma parte da atividade da arquitetura que é critica por principio que envolve também a pratica projetual, mas tem algo que é esse exercício meio insano – sobretudo no Brasil, onde os pares são tão poucos – que é da ordem teórica, isso pode ou não estar mais próximo da pratica projetual. Acho que uma coisa não exclui a outra. Agora a pratica projetual pode existir muito bem sem a critica, não sei até que ponto ela pode ter sentido, ela pode ser só resposta à solicitação, à demanda, solução de problema, que é o que a arquitetura muitas vezes tende a ser: solução de problema. Então a critica também provoca uma reflexão sobre essa prática que tende a também se cristalizar e resulta no que são as nossas cidades também hoje. Supostamente os arquitetos estão trabalhando muito pouco, o que a gente vê como produção de cidade é menos do que nós arquitetos achamos que nossa contribuição parece cada vez mais pontual, no entanto tem muitos arquitetos trabalhando – todos os arquitetos hoje estão trabalhando e muito - então a prática tende também a encontrar um nicho e se bastar. Então se a critica não for entendida como algo inerente e fundante da arquitetura, indissociável da arquitetura e da concepção do projeto de maneira geral, como algo que abre um campo de possibilidades na verdade, que não é uma previsão do futuro, mas a abertura de um campo de possibilidades, aí nós ficamos muito pequenos, muito reduzidos. É muito difícil a gente ter no Brasil as condições por N motivos para a prática rigorosamente critica na esfera teórica exclusivamente, isso é muito difícil. Temos um ambiente acadêmico, mas fora isso são poucos os meios em que a gente consegue exercer uma pratica critica. O sensacional é quando isso se dá em relação muito estreita com a prancheta, isso é 8

Giulio Carlo Argan (1909-1992), importante crítico italiano de arte de arquitetura, e tem como uma de suas principais obras o livro “História da Arte como História da Cidade”.

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sensacional, posso e o que eu desejo, de ter um diálogo muito próximo com a prática no seu fazer, que o crítico não seja chamado depois que a coisa está pronta para comentar, mas que ele tenha um papel na produção do pensamento sobre o projeto também, isso é lindo. Então não sei se dá pra separar muito uma coisa da outra, nesses termos, no Brasil, o que é teoria e o que seria projeto, a gente atua num meio que também é carente dessas definições como está muito bem definido na Itália, por exemplo. Na Itália a coisa é muito diferente, o Tafuri está falando de um ambiente muito diferente do nosso. E uma das coisas que o Tafuri me disse quando eu o entrevistei nos anos 90 foi um pouco essa: vocês tem que pensar nos termos de vocês, os arquitetos brasileiros tem que encontrar os termos pra pensar, o que é crítica também no Brasil, o que é história da arquitetura no Brasil. Então a gente tem que encontrar os nossos meios. J: Voltando um pouco então, até na primeira pergunta, o que a gente tem feito nesse sentido, de sair da máxima que não tem critica, que eu acho que é absolutamente infértil, ou seja...não é uma total inverdade mas também não é um fato em si, pra reativar a dimensão critica na arquitetura também? Porque eu vejo que as revistas especializadas são cada vez menos um espaço para discussão, e aí você mesmo fala como muitos outros críticos que a academia virou um espaço de critica por excelência, mas a academia talvez seja a instância mais distancia da sociedade possível, no contexto da disciplina. E a também surge a Internet que também é super complicada. A: Sim, mas felizmente tem a Internet. Acho que hoje é um espaço extraordinário a internet, é uma coisa muito recente, realmente extraordinário. Quando eu comecei a fazer o blog eu comecei por uma questão pessoal, e aquilo virou uma bola de neve e eu percebi que eu estava tendo publico do mundo inteiro, uma coisa totalmente inesperada inclusive porque eu estava escrevendo só em português. Então têm isso, da gente testar cada vez mais, testar outras mídias, outras linguagens, outros meios que não são aqueles mais mapeados. Porque as ditas revistas especializadas com certeza não são o espaço hoje da critica, aliás há muito tempo. A Academia, a escola, ainda é, de uma maneira geral, o lugar com todos os problemas – e eu dou aula há muitos anos - é onde você tem alguma liberdade de pensamento, o que é extraordinário. Tem certas coisas que eu posso dizer da escola que não posso dizer de nenhum outro lugar. Eu tenho ali um ambiente de liberdade de pensamento que é extraordinário. Quando eu falo como professora, quando proponho uma pesquisa, desenvolvo um trabalho – é claro que quando eu estou falando institucionalmente também pela universidade -, mas sou eu, é um risco que eu corro eu não falo em nome da instituição, o que é algo bem importante porque, por exemplo, se você vai trabalhar no IAB9, você carrega aquilo, você está falando pela instituição. Se você vai pela Bienal você está falando pela instituição também. Então temos que lembrar disso a todo momento, infelizmente de fato tem muitos problemas e temos que vencer esses problemas, mas ainda é um espaço de liberdade extraordinário, eu não vejo outro, e nesse momento eu não vejo outro com essa potencia. A gente tem que transformar muita coisa na escola, mas ela ainda é um lugar potente. A Internet também, o próprio uso da Internet na escola, a gente tem q explorar muito mais. J: Você acha que o blog tem conseguido atingir um publico maior do que de arquitetos ou profissionais ligados?

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Instituto de Arquitetos do Brasil.

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A: Eu parei o blog há um ano quando eu entrei no Instituto Moreira Salles e fiquei sem condições de tocar o blog porque eu faço sozinha. Tive que “adormecer” o blog, digamos assim. Mas eu já acho que o blog é lento, quando começamos o “arquitetura e critica”, a internet estava começando, então tinha essa idéia de fazer na época um portal – não era nem site, era um “portal’ -, aí quando eu comecei o blog eu já estava incomodada com a lentidão do site pois você escreve, espera por um revisor , um editor, alguém que vai juntar as imagens e lançar no site, e o blog me deu agilidade. Eu fazia sozinha, tirava as fotos, botava no ar, eu via uma coisa agora e em dois minutos ela estava no mundo. Então isso é extraordinário, que a gente tem essas possibilidades também, essas ferramentas. Agora, o filtro fica mais frágil, porque vira qualquer coisa, qualquer um fala qualquer coisa, qualquer um escreve qualquer coisa eu não tenho nem tempo de maturação e aquilo já esta no ar. J: E também tem o problema que aconteceu no vitruvius, às vezes a informação se perde também... A: Sim, a informação se perde, então tem isso também. Mas acho que nós temos muitas outras esferas para explorar, acho que essas exposições também é uma pratica extraordinária curatorial, desse ponto de vista. Os filmes...tem muita coisa que pode ser feita que a gente pode explorar como linguagem critica além do texto, digamos, mais clássico.

Considerações finais J: Professora, a senhora quer falar mais alguma coisa? A: Não, obrigada, acho que já foi.

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ANEXO B Entrevista concedida por Edson da Cunha Mahfuz por Skype na manhã do dia 28 de Maio.

Jaime Solares Carmona

J

Edson da Cunha Mahfuz

E

Introdução J: O tema geral do trabalho final de graduação é uma pesquisa histórica sobre a crítica de arquitetura, então eu tento articular os debates, as obras e os críticos, o que eles discutiam. E: Eu, de imediato, te digo: eu não sou crítico. J: Você falou no e-mail, e eu achei interessante isso. E: Eu acho que o crítico em geral é alguém que não faz aquilo que ele critica. E eu sou um professor de projeto que às vezes escreve sobre assuntos que eu acho que são importantes pra lidar em aula e com meus alunos, então as coisas que aparecem publicadas sempre tem algum outro objetivo. Não é crítica de arquitetura, é reflexão sobre arquitetura, que é bem diferente.

Apresentação J: Edson da Cunha Mahfuz é arquiteto formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS em 1978, fez pós-graduação na Architectural Association School of Architecture em 1980, e doutorado na University of Pennsylvania, em 1983. Professor de projeto na mesma faculdade (UFRGS) na graduação e pós. Foi professor visitante em diversas instituições internacionais e possui uma produção expressiva de artigos publicados em periódicos nacionais e internacionais. Publicou, entre outros, os livros “O clássico, o poético e outros ensaios” e “A segunda idade do vidro: transparência e sombra na arquitetura moderna do cone sul americano 1930-1970”1. Além disso coordenou o blog “Falando de Arquitetura” de 2006 a 2013.

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O entrevistado corrigiu a indicação, falando que tal publicação foi uma coletânea de trabalhos entregue ao DOCOMOMO realizado em Porto Alegre, do qual ele foi um dos organizadores. Ato contínuo citou outras obras, entre elas a mais recente “Tipo, projeto e método, construção disciplinar: quatro partidos em debate 1960-2000” editado pela Marca Visual Editora e Projeto Culturais Ltda. em 2011.

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Perguntas

1 J: Nosso estudo pôde constatar que a máxima “não há crítica de arquitetura no Brasil” é repetida ad nauseam tanto ao longo desses vinte cinco anos – até antes – como por profissionais de outras áreas fora da arquitetura estritamente falando. Porém, que existe crítica de arquitetura no Brasil nós sabemos que há2. A questão é: por que, então, essa sensação de ausência de uma crítica em nosso país? E: Eu também acho que alguma coisa há, mas no Brasil há um problema sério que é uma censura à crítica real. Isso vem desde décadas passadas, era incentivado pela geração do Niemeyer, e apoiado pelos IABs, e que simplesmente ficavam furiosos quando alguém falava mal de algum projeto de arquitetura. Isso era uma coisa tabu. Mas se falar com o pessoal dessa geração eles vão sempre dizer “que não se critica” ou que “não se comenta trabalho de colega porque é antiético”. Então sempre no Brasil foi associada a crítica a uma prática antiética, e isso atrapalha muito porque muita gente não quer se arriscar a cair em desgraça com quem normalmente controla as Instituições da profissão. Eu me lembro que anos atrás eu escrevi dois textos. Na verdade a primeira coisa que eu publiquei no Brasil foi um artigo na revista Projeto, que se chamava exatamente o título desse livro publicado pela Editora Ritter, “O clássico, o poético e o erótico”3, que era um texto que não era diretamente critico, na verdade ele estava tentando criticar as bobagens que eu ouvia, no sentido de que a obra do Niemeyer era toda original que ele projetava sempre a partir do zero e o que esse artigo faz é mostrar que não é assim, que ele tinha influências e que ele usava os mesmos elementos em vários projetos. Ficava uma coisa entrelinhas para as pessoas entenderem. Depois escrevi um outro em 1989 que está nesse livro laranja (o já citado “Tipo, projeto e método, construção disciplinar: quatro partidos em debate 1960-2000”) esse sim é uma critica bem pesada ao Memorial da América Latina. Muita gente ficou furiosa com isso porque não há no Brasil essa tradição, então todo mundo pisa em ovos na hora de falar sobre arquitetura. Tem muito comentário de gente que não é da arquitetura e que pretende fazer crítica, não vou citar nomes, mas tem gente que inclusive publica livros sobre arquitetura que não tem a menor noção do que seja arquitetura. É muito difícil alguém escrever sobre arquitetura com alguma relevância se não cursou arquitetura. Quem nunca fez projeto tem grandes dificuldades em falar sobre projeto, e no Brasil há muita gente que faz isso. Então eu diria que há pouca critica, quase nunca se encontra criticas negativas. Se tu procurares na literatura não vais encontrar nada que fale mal daquele edifício recente construído no Rio de Janeiro, pelo Portzamparc, aquela Cidade da Musica4, e é um edifício altamente criticado, então não se fala, as revistas não se interessam, as pessoas tem medo. Eu acho que há pouca critica no Brasil.

2 A afirmação faz referência à resposta do arquiteto à pergunta “Pode-se dizer que há crítica de arquitetura no Brasil atualmente?” feita na sessão Debate: Cinco perguntas aos críticos de Arquitetura. (PROJETO/DESIGN, ed. 266, abr 2002, p. 32-35) 3 MAHFUZ, Edson da Cunha. O Clássico, o Poético e o Erótico. AU, edição 15, 1988, p. 60-68. 4 Projeto do Prizker francês Christian de Portzamparc na Barra da Tijuca, capital fluminense, de 2002 cujas obras só foram concluídas dez anos mais tarde.

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J: Deixa eu ver se eu entendi bem, o senhor então está identificando essa questão da critica com uma certa tradição que a gente tem em considerar que criticar o trabalho de um colega seria antiético. E: Exatamente, isso é um aspecto. O outro aspecto é que ha muita gente que se dedica à crítica entre aspas que não entende de arquitetura, então não consegue fazer critica porque esta falando de outras coisas.

2 J: Em mais de uma ocasião, ao longo deste 25 anos, lembrando que o trabalho é de 1985 a 2010, você afirmou que a “qualidade média da arquitetura brasileira é muito ruim”5. Qual seria a relação entre essa mediocridade e uma fragilidade crônica de nossa crítica? E: Eu acho que existe alguma relação porque uma critica boa como há em países da Europa e em algumas situações nos Estados Unidos ela também ensina, e se não há essa critica que possa apontar problemas na arquitetura que é feita, os estudantes olham em volta e acham que essa arquitetura é boa e a seguem replicando. Mas para mim, esse é o problema menor, o problema maior da má qualidade da arquitetura brasileira reside no fato de que a maioria dos arquitetos quer ser artistas, todos querem fazer a sua obra magna e não se conformam com o papel de arquiteto normal que deveria estar preocupado em fazer a arquitetura correta e não obras primas.

3 J: Desde 2006 você possui um blog, o “Falando de Arquitetura”6, através do qual você procurou, nas suas palavras, “reduzir o abismo de incompreensão que existe entre o Arquiteto e a sociedade”. Você conseguiu reduzir esse abismo? A Internet de fato se mostrou um espaço rico para esse debate? E: Não consegui, pelo que eu noto, não consegui. Até porque seria querer muita coisa que uma pessoa apenas, escrevendo de vez em quando num blog que não tem muita divulgação, mudasse alguma coisa. Mas o que eu noto é o desconhecimento piorando cada vez mais, porque embora – como eu já disse em vários outros lugares – embora a arquitetura nunca tenha tido tanta exposição, essa exposição ela não é uma exposição que beneficia a arquitetura. Os cadernos de arquitetura dos jornais não falam de arquitetura. Em geral, a arquitetura quando divulgada pelos meios de comunicação não especializados, quando eles acham que tudo é bom, que quanto mais extravagante for o projeto mais criativo ele é. Então isso não presta nenhum serviço a arquitetura, isso só vai fazendo com que as pessoas não entendam arquitetura, confundam com decoração e achem que o arquiteto é alguém 5

Como afirmou em debate sobre os anos 80 na edição 129 da revista Projeto de 1990, ou na mesa-redonda promovida pela revista digital mdc em 2006 sob o tema “A pertinência da forma e a poética da construção”, disponível em: http://mdc.arq.br/2006/01/31/mdc-1-debates-videos/ 6 http://usuarq.blogspot.com.br/

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que tem que estar sempre buscando a forma que nunca foi feita, a forma extravagante, e leva de novo a um desconhecimento da arquitetura.

4 J: Podemos afirmar que o chamado “pós-modernismo” gerou um debate muito rico que deu força à formação de uma crítica de arquitetura, e de certa forma permanece ainda hoje. Contudo, ao longo dos anos 90 pudemos ver uma aproximação cada vez maior entre os postulados da prática projetual e a teoria que suportava a crítica, a ponto de Adilson Melendez se questionar, em importante artigo7, de que se mudaram foram os arquitetos ou a crítica de arquitetura. Na sua opinião, a crítica perdeu seu ímpeto questionador dos anos 90 para cá? E: Eu acho que sim, acho que aquilo q aconteceu nos anos 80 teve seu lado positivo que foi ao mesmo tempo questionar alguns problemas da arquitetura moderna, especialmente o aspecto urbanístico e principalmente aquela linha de urbanismo derivada da Carta de Atenas, então isso foi um ponto positivo. Outro ponto positivo foi revalorizar o conhecimento acumulado através do tempo, a história da arquitetura, o repertório da nossa profissão, e isso num primeiro momento foi feito por arquitetos, gente que projetava. Dá para lembrar os primeiros livros que começaram esse tipo de coisa, livros do Venturi, Norberg-Schulz, Aldo Rossi, os livros do Charles Moore por exemplo8. Uma vez que a batalha foi, por assim dizer vencida, esses arquitetos se dedicaram a projetar e a construir e entrou no lugar deles um grupo de gente, como eu estava te descrevendo depois, gente interessada por arquitetura, mas não arquitetos, o próprio Adilson não é arquiteto. A critica que ele faz é do ponto de vista de um jornalista, alguém que não conhece o interior do projeto e fica muito difícil falar sobre projeto sem conhecer projeto, sem praticar projeto.

5 J: Você acha que a persistência da herança moderna em nossa arquitetura contemporânea a exemplo da exposição “Ainda Modernos?” de 20059 - caiu, em certo grau, no que você mesmo nomeia “Arbitrariedade”? E qual seria o papel da crítica nesse aspecto? E: Eu acho que o papel da critica seria apontar pro fato de que a arquitetura moderna tem que ser vista como uma série de critérios de projeto, e critérios de verificação do projeto e não um estilo. A gente vê por aí no Brasil muita coisa que parece moderno, que um amigo espanhol chama de modernoso porque tem alguns elementos modernistas, mas no fim é feito por gente que não entende a arquitetura modernista e que também não é convicta de que tem que usar aquilo, usa porque acha que aquilo vai fazer sucesso. Eu conheço 7

MELENDEZ, Adilson. Na década que separa Sevilha de Orlândia, mudaram os arquitetos ou mudou a crítica? PROJETO/DESIGN, edição 251, 2001, p. 134. 8 Respectivamente: Complexidade e contradição em arquitetura (1966); Intentions in Architecture (1965); Arquitetura da Cidade (1966); Body, Memory, and Architecture (1977). 9 Exposição organizada por André Corrêa do Lago e Lauro Cavalcanti no ano de 2005 em Paris, que visava analisar os nexos existentes entre a arquitetura moderna da fase heróica (1930-1960) com a praticada a partir de 1990 no Brasil.

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arquitetos que projetam alguma coisa q parece modernista, mas que ao mesmo tempo fazem coisas como uma cara histórica, então aquilo não é uma convicção. Eu acho que essa herança moderna no Brasil é interessante quando é levada adiante por gente que entende o que esta fazendo. Em São Paulo há vários escritórios bons que trabalham dentro de uma linha mais modernista, mas ao mesmo tempo há muita gente que pega o modernismo apenas como estilo, que usa alguns elementos, o projeto tem uma cara de modernista, mas se a gente vai analisar o projeto encontra soluções que nenhum arquiteto modernista competente empregaria, especialmente por isso, porque o que esta sendo absorvido é a imagem da arquitetura moderna, a sua aparência, e não a sua substancia. Uma crítica competente deveria poder e querer apontar esse problema, mas não há isso no Brasil.

Considerações finais J: O senhor gostaria de falar mais alguma coisa antes de a gente encerrar a entrevista? E: Não, não. J: Então agradeço a entrevista, e um bom dia professor. E: Igualmente.

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ANEXO C Entrevista concedida por Ruth Verde Zein em seu atliê na tarde do dia 20 de Maio.

Jaime Solares Carmona

J

Ruth Verde Zein

R

Apresentação J: Arquiteta formada pela FAU USP em 1977, possui mestrado e doutorado em Teoria, História e Crítica de Arquitetura pela UFRGS. Professora e pesquisadora na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Foi colaboradora e depois editora na revista Projeto, entre 1982 e 1996, é colaboradora permanente da revista Summa+. Tem dado conferências e participado de diversas mesas redondas e debates no Brasil e no mundo, possui centenas de artigos publicados em periódicos nacionais e internacionais. Publicou, entre outros, os livros “O lugar da crítica: ensaios oportunos de arquitetura” (2001) e “Brasil: Arquiteturas após 1950” (2010), em coautoria com Maria Alice Junqueira Bastos e “Brutalist Connections” (2014). Atualmente coordena o núcleo São Paulo da Associação dos Colaboradores do Docomomo Brasil.

Perguntas

1 J: Nosso estudo constatou que a máxima “não há crítica de arquitetura no Brasil” é repetida ao longo dos últimos 25 anos - até antes – inclusive por profissionais de áreas fora da arquitetura, estritamente falando. Você tem sido um dos nomes que tem reiteradamente defendido o contrário, em textos como “Crítica de arquitetura: algumas provas de sua não existência”1 e ‘Yes! Nós temos crítica”2. Na sua opinião porque existe, ou melhor persiste, essa sensação de ausência de crítica no pais? R: Bom, primeiro a gente tem que se perguntar o básico: defina “crítica de arquitetura”. Pode ser que muitas pessoas consideram não haver crítica porque a definição delas não bate com a minha, então eu estou achando que existe, elas que não - e estamos nomeando animais diferentes, pelo mesmo nome, digamos assim. Então quando eu defendo haver uma crítica, eu também tento qualificar o que significa essa crítica de arquitetura. Pode haver uma expectativa - não sei o que os outros pensam é muito difícil saber o que os outros pensam - mas me parece que no começo da minha carreira profissional, nos anos 1980, como se esperava que a crítica fosse militante, ou seja, você tomasse um partido e atirasse 1

ZEIN, Ruth Verde. Crítica de arquitetura: algumas provas de sua não-inexistência. PROJETO/DESIGN, edição 267, 2002, p. 26-28 2 Disponível em: http://arcoweb.com.br/projetodesign/artigos/artigo-yes-nos-temos-critica-01-05-2002

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para todos os lados que não sejam o seu. A crítica militante, do tipo guerrilheira, digamos assim, nunca foi a minha. Nunca faço esse tipo de crítica. Também se espera que a crítica essencialmente “fale mal”: no sentido vulgar da palavra crítica é falar mal. E como no meu trabalho de crítica essa não seja a proposta - não se fala mal – então podem achar que ali não há crítica. São várias interpretações possíveis do porque continuam afirmando que não há crítica. Eu acho que sempre é melhor não começar assumindo que nada existe, e que somos nós que estamos inventando a partir do nada. Eu sou a favor da gente primeiro reconhecer o que já foi feito, reconhecer o campo, reconhecer como ele se estabelece: e a partir daí eventualmente entender suas insuficiências, se perguntar, o que é que falta? Sim há crítica, mas faltaria também haver mais de tal e tal tipo, ou com qual e qual mídia, ou tem menos crítica em jornais, etc... Ou seja, você reconhece o campo, você pode entender suas fraturas, suas insuficiências, suas suficiências, onde está melhor, onde está pior - e você pode elaborar uma estratégia de atuação nesse campo. Nada disso é possível se você sempre começa da pré-disposição de que nada há. Talvez isso seja uma coisa muito recorrente, não vou te dizer no Brasil, porque não conheço todo o Brasil, mas é uma coisa muito recorrente na profissão de arquiteto. É algo muito estimulado pelo ensino de arquitetura, que faz apologia da genialidade, o arquiteto como gênio: o cara tem sempre que ser gênio, então ele nasce do nada, cria-se do nada, não precisa aprender com os predecessores e tampouco precisa ensinar nada para os seguintes, mesmo porque, se vamos acreditar nisso, ninguém poderia aprender nada, visto que só os gênios é que nasceriam sabendo. Eu discordo fundamentalmente disso: eu não sou gênia, eu estudei, continuo estudando. Acredito que existem gênios, mas eu não faço parte do clube, e eu acho que se eles existem, são uma exceção. A maior parte das pessoas é gente esforçadas como eu e muitos outros. E, então, na ausência de genialidades, a primeira coisa a fazer é não é imaginar um vazio, mas imaginar o que já há e como atuar no que já há. Então, por um lado eu não sei o que as pessoas pensam, talvez elas tenham definições de crítica diferentes da minha. Por outro lado eu admito não ser a primeira de coisa nenhuma e acho isso bom: eu quero colaborar num trabalho de campo, num trabalho de equipe: inclusive com as pessoas que discordam de mim, continua sendo um trabalho de equipe. As discordâncias fazem super bem para o campo da crítica. Também existe uma ideia a meu ver implícita na ideia da crítica, de que tudo o que você disser que eu não concordo ou eu disse você não concorda se desconsidera como crítica. O que é um paradoxo, porque a crítica é justamente o embate de opiniões distintas, ou pelo menos ela deveria sempre permitir e incentivar o embate de opiniões distintas. Opiniões distintas não são inimizades, nada disso é pessoal: tem a ver com posturas diferentes, profissionais, ideológicas e etc., Em outros níveis e podemos até conviver, podemos todos nos encontrar e marcar de tomar chá uma quinta-feira, por mês às cinco da tarde, não tem problema. Eu acho que é mais saudável que o campo exista, seja variado, que a gente perceba como ele é e que atue nele consciente de suas vantagens e insuficiências.

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2 J: Professora, em resposta ao artigo “Na década que separa Sevilha de Orlândia, mudaram os arquitetos ou mudou a crítica?”3 de Adilson Melendez, você fez um balanço do amadurecimento dessa geração de arquitetos ao longo da década e como a crítica também se modificou por não ser instância estanque do pensamento. Porém você encerra a fala afirmando que “a comparação reflete, de alguma maneira, uma percepção generalizada que merece ser melhor compreendida, porque de fato aponta para uma questão crucial”4. Qual seria essa questão? R: Tem várias questões cruciais. Uma das questões cruciais, me parece, é que há um vezo recorrente de fazer a história de adiante para trás. Ou seja, se assume que o que há hoje, sempre houve. Esse vezo que é característico de pessoas que não tem treinamento nas lides da história, como a maioria de nós arquitetos, eu também reconheço que tenho pouco. Eu não sou historiadora, sou arquiteta - deu azar ou sorte na minha vida que tive que me dedicar a assuntos históricos, eu tento fazer isso bem na verdade, eu deveria ter uma formação bem nesse campo. Então, ao perceber que eu tenho uma deficiência nesse aspecto da minha formação, eu tento superá-la. Por isso percebo esses enganos, ou vezos, que tem que ser superados. Como por exemplo esse: achar que porque um arquiteto está fazendo sucesso hoje, sempre foi gênio desde pequenininho. Não necessariamente! E esse vezo é o que acontece naquele momento, naquele texto do texto Adilson, e que acontece em outros textos recorrentemente. Depois de passar décadas no ostracismo, de repente Lina Bo Bardi é valorizada, então agora os discursos consideram que sempre foi gênia, desde pequenininha. Ou que foi uma mulher sem contradições, sem dúvidas, sem angústias, sem momentos que ela pensava preto e depois ela mudou e passou a pensar branco, azul, amarelo. Se trata de uma pseudo-santificação, rigidização e iconização, redutivas: você pendura na parede e reza todo dia para santa Lina. É ridículo inclusive para a Lina, se ela viva estivesse. Então eu acho que tem uma questão crucial nesse engano de começar a história de hoje para trás. Outra questão crucial é a mesma de sempre, a de enfatizar uma genialidade perene e eterna: as pessoas só podem ser boas se forem gênias, não se admite que podem aprender, melhorar, se aperfeiçoar. E com isso a gente joga para baixo do tapete todo o esforço pedagógico e de ensino de arquitetura, que é umas das coisas graves, graves mesmo, na nosa profissão. Eu estudei nos anos 1970 e tem vários textos meus dizendo que eu me considero uma autodidata. Eu supostamente estudei na melhor escola de arquitetura do país e sou uma autodidata, arrisco dizer que vocês que estudam na mesma escola, 50 anos depois, e são autodidatas também. O ensino é deficiente, apesar de todos os esforços, pois há cada vez mais vontade de mudar, mas talvez há ainda muito menos do que deveria, vontade de tentar aprender como é possível transmitir conhecimento. Claro que ninguém ensina se a pessoa não quiser aprender, evidentemente, há o limite da liberdade individual que não há como ultrapassar. Mas a ideia de que você não pode ensinar porque a arquitetura não se ensina, só se aprende, é totalmente falsa na minha opinião. Falsa, e meio preguiçosa. Então, Adilson ao escrever aquele texto, assumiu essa espécie de “naturalização” desse processo, de concluir que se está tudo indo bem hoje, então todo mundo que escreveu 3

MELENDEZ, Adilson. Na década que separa Sevilha de Orlândia, mudaram os arquitetos ou mudou a crítica? PROJETO/DESIGN, edição 251, 2001, p. 134. 4 BASTOS, Maria Alice Junqueira; ZEIN, Ruth Verde. Brasil: arquiteturas após 1950. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 290-292.

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anteriormente, apontando problemas, estava errado, porque não foi profeta o suficiente para ver, não foi sábio o suficiente para ver, naqueles erros, o novo gênio nascente, em potência. Mas não é nada disso: os arquitetos erram, acertam, melhoram, buscam outras coisas. Naquele momento anterior, talvez o que propunham fosse mesmo muito estranho, mas como a percepção mudou com o tempo, parece que a primeira avaliação era incorreta. A história é escrita pelos vencedores: venceu, então se reescreve tudo para que os perdedores sejam jogados para debaixo do tapete, ou suas críticas desconsideradas retroativamente. Mas sinceramente, isso já faz tempo, e á não me lembro se o que eu escrevi foi exatamente isso. Eu precisaria dar uma lida no meu texto de novo, para talvez me lembrar de mais alguma coisa.

Pausa para pesquisa do artigo em seu atelier. Ao término da primeira parte da entrevista retornamos à questão, que segue abaixo: Essa frase “que aponta para uma questão crucial” (da pergunta) é a frase do argumento do Adilson, com o qual construo o meu argumento. O argumento do Adilson é: a crítica de arquitetura errou. Compara duas obras e fala: a crítica errou lá no passado, porque agora a crítica está dizendo que esses caras são bons e antes não eram. Então meu argumento era: olha, a comparação é forçada porque mudaram muitas coisas. Os arquitetos mudaram, a crítica mudou, tudo mudou, mas vamos tentar entender melhor esse argumento – o que é que mudou exatamente? Então eu começo o argumento dizendo que a década mudou, e toda a, digamos assim, a catarse da condição pós-moderna, de pôr a limpo os erros dos pais, que é uma crise típica da adolescência, que nada presta, estava em voga. Uma década depois a crise passou, e os velhos pais passam a ser os heróis das nossas vidas. Faz parte de o crescimento você achar que tudo o que aprendeu ruim depois isso passar, e valorizar esse passado. Para se chegar a termos com a herança moderna, primeiro ela é questionada, e depois você a valoriza. Mudou e avançou uma geração, mudaram as pessoas, mudou um monte de coisas. J: Então a questão crucial seria... R: Houve uma mudança geral de temperamento. Mas há também a ideia de que a crítica errou lá (antes) ou errou aqui (agora):em um dos dois casos, pelo menos, ela tinha errado. E eu afirmo que, ao contrário, ela não está errada em nenhum dos dois casos, mesmo se um caso contradiz o outro. Num caso ela está mostrando a contradição da proposição de uma obra neo-moderna, naquele momento, naquele lugar: e no outro ela está validando aquela uma outra obra, contemporânea e de raiz moderna, em um outro momento e um outro lugar. Transformar a crítica em profecia – bem sucedida ou falhada - é que é errado. Ou seja, exigir que a crítica acerte sempre é que não faz sentido. A crítica lida com o fato do momento. Ou seja, você vê e relata e comenta o que você viu. Só depois é que você vê mais coisas e vai produzindo e entretecendo reflexões. A reflexão não é tarefa da crítica, que é imediata. A reflexão só funciona a médio prazo, então é uma tarefa da história ou da teoria. Você pode se perguntar: “mas então, até onde vai a crítica? quando termina a crítica e começa a história e a teoria?”. Talvez eu só esteja dando nomes diferentes para deixar claro coisas diferentes. Mas quando você está falando ou fazendo, pode não ser assim tão claro os limites entre todas essas coisas. Um dos critérios de distinção seria: se não houver tempo de reflexão, comparação e sedimentação, não pode ainda ser considerada história ou teoria. História e teoria dependem de um certo tempo de reflexão. 159


J: A minha impressão é como a sua. Adilson manipula as imagens para que pareçam muito próximas, mas a diferença de escala é brutal. Mas talvez o que ele fale não é tanto – o texto dá a entender - a qualidade da obra, mas o discurso ou pensamento por trás dela, e é isso o que permaneceu. Porque de fato se a gente for ver a qualidade, tem uma diferença muito grande entre as duas obras. A primeira é de um Puntoni e Bucci muito jovens, e equipe, e a outra dos dois mais maduros, no caso só o Bucci. R: Pode ser que seja isso, mas como eu não acredito no pensamento por trás da obra, então já era. Veja bem, não é que eu não acredite que esses pensamentos não existam, apenas acho que são incognoscíveis. Eu nunca vou poder saber o que o arquiteto pensou, e talvez nem o arquiteto saivá de fato o que ele pensou, porque, francamente, eu não sei se arquitetura é uma coisa “pensada”. Arquitetura a gente faz: a gente não pensa, a gente desenha: olha, considera, está bom, não está bom, a gente vai e volta. Então não sei se existe um pensamento a priori enquanto articulação de um raciocínio que produza um a arquitetura com uma certa linearidade de causa e efeito, não sei se isso é algo que eu possa invocar para explicar o processo de projeto . É incrível falar essas coisas mas a gente acha que o pensamento é permanente, que a gente está o tempo todo pensando. Mas não é assim: não estamos o tempo todo pensando, ao menos não no sentido filosófico da palavra “pensar”, em plena consciência, conceitualmente. Dizer que o arquiteto ao projetar já tinha, desde sempre, a priori, essa consciência por trás, pode ser falso. E dizer que e que une essas obras separadas no tempo é essa permanência dessa consciência , pode ser ainda mais falso, ou pelo menos improvável. Além de ser, de novo, negar a capacidade de aprendizado com a prática.

3 J: Ruth, em seu livro “Brasil arquiteturas após 1950” - seu e de Maria Alice - você fala que a crítica da arquitetura, de 1995 a 2005 aproximadamente, “se propõe, num panorama morno e blasé, a apontar alguns caminhos que parecem ser preferenciais”5. Qual seria a causa desse arrefecimento da crítica na virada do século? R: Então...a coisa mais difícil, em filosofia, é falar das causas eficientes e das causas primeiras. Você vai remontando a causa da causa, a causa da causa, e todos os filósofos chegam no ponto em que eles têm que ou postular a existência de Deus ou a Natureza, como diz Espinoza6. Ou seja, causas são coisas complicadas e complexas - e eu acho que nunca há uma só causa, existe um conjunto, provavelmente um conjunto muito complexo de causas, e que, digamos assim, é difícil de detectar. Que claramente acontece esse arrefecimento da crítica é notável até estatisticamente, você encontra menos, se você fizer uma continha7, se você for buscar demonstra a existência desse arrefecimento. Já as causas, é complicado. Eu acho que tem a ver com um momento de crise de certas questões da modernidade, certas posturas da modernidade, que coincide mais ou menos entre os anos 70 ou 80 e começo dos 90. Mas a crise não pode ficar eternamente borbulhando, ela passa: tem um certo momento que assenta e há uma redescoberta do moderno e das raízes modernas, e uma revalorização 5

BASTOS, Maria Alice Junqueira; ZEIN, Ruth Verde. Op. cit., p. 292. Baruch Espinoza, filósofo racionalista holandês do século XVII. 7 Ver gráfico 2 do capítulo I. 6

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dessas raízes a partir dos anos 90 em diante. As causas disso eu não sei, mas que a gente claramente está vivendo um período muito mais conservador que nos anos 60, 70, 80 estamos, pode ser que eu esteja me enganando porque fiquei mais velha e as pessoas quando ficam mais velhas tendem a ficar mais conservadoras eu estou achando o mundo mais conservador porque eu estou sendo, mas parece que não é isso. Eu dou aula, tenho contato com pessoal da sua idade 20 e poucos anos, e eu acho maior parte dos meus alunos bastante mais conservador e crente, a gente fala e eles acreditam eu acho absolutamente incrível isso, eu não acreditava em nada, eu era muito descrente, eu sempre duvidava, eu tinha muita dúvida, a dúvida era um processo militante, o tempo todo você estava em dúvida, e não que eu duvidasse do professor, mas do que estava sendo dito, será que é isso, será que pode ser do outro jeito? Então existe uma certa vontade, eu acho que num mundo tão instável dessa condição pósmoderna de instabilidade, de ausência de grandes narrativas, ausência de certezas, o fim do mundo está próximo, acabou o lado esquerdo, o lado direito, caiu o muro de Berlim, de repente parece que a única coisa que há é esse sistema capitalista, invadindo tudo, reificando e coisificando tudo, então parece que não há por onde pegar à não ser isso, portanto vamos viver pragmaticamente isso, é o que fazemos todos, mas para mim parece claro que é um pouco mais conservador. Também parece claro porque está muito parecido tudo em termos de arquitetura, você olha os concursos de arquitetura e todo mundo faz a mesma resolução8, incrível, e isso já aconteceu na história, aconteceu nos anos 50. Os projetos de Brasília são todos muito parecidos entre si. “A não a do Rino Levi é diferente”, basicamente não. Todos são, uma grande malha que estrutura a cidades e os zoneamentos ocupados por diferentes usos, o lago ninguém dá bola, é muito parecidos todos, aí a densidade urbana, a densidade da habitação é casinha, predinho, predão, mas não está mudando tanto assim. Então nos anos 50 houve uma espécie de força unida, venceu o “inimigo” acadêmico e de repente estamos todos juntos, e isso vai diversificando nos anos 60, 70 e há uma retomada dessa vontade de união e de clareza de objetivos. Eu acho que é justamente a falta de clareza de o que é a vida, o mundo e o que faremos nesse próximo século que faz com que as pessoas anseiem por uma unidade, e é uma ânsia que não pode ser respondida, pelo menos não agora, não sei o que será no século XXII, agora essa ânsia está fadada a não ser respondida, todas as respostas seguras são provisórias, e isso incomoda muito, é muito difícil, não é todo mundo que agüenta, é comida para gente grande, não é sopinha de nenê Então é uma estratégia de vivência você não bater de frente com essa situação. Não quero ser pessimista, porque eu não sou uma pessoa pessimista, nunca fui, e eu acho que essa situação ela tem vantagens: a vantagem é que você pode aprender a conviver com o diferente, ou seja, essa vantagem nem sempre é aproveitada. As recentes tentativas de criar uma escola paulista que começa em 1950 e vem até 2000 não sei o que, é a vontade de desdiferenciar, todos pertencemos a uma coisa, uma coisa única. É tão impossível existir uma escola que tem cinco décadas de duração, do ponto de vista puramente histórico e artístico isso é impossível, isso não existe, em parte alguma, não tem como definir isso, isso é uma invenção impossível; Não é assim, tem variações, tem fraturas, tem fragmentos, tem momentos, tem retomadas, é muito mais complexo do que essa coisa uníssono, mas essas coisa uníssona dá a impressão de pertencimento: ai que bom, estou resolvida, eu pertenço a essa escola, não é bom? Eu fico feliz, agora já sei quem eu sou, eu me encontrei. Eu sou 8

Quanto a esse tema ler o artigo: MILAZZO, Marco. A caixa como solução única. A hegemonia da arquitetura paulista nos concursos de arquitetura no Brasil. Projetos, São Paulo, ano 14, n. 159.06, Vitruvius, mar. 2014. Disponível em: http://ww.arquiteturismo.com.br/revistas/read/projetos/14.159/5114

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dessa escola não sendo, ou seja, eu sou aquilo que a FAU era quando era mais ativa, que era parar de ser esse “acordo cordato” entre todo mundo, que todo mundo está feliz com a mesma coisa, eu não estou, eu não estou feliz com a mesma coisa não, eu gosto de variação, eu gosto de ver o outro, não estou simplificando para sua resposta tá? Então eu acho que o panorama é mais conservador, porque ser conservador e ser morno permite que a gente sobreviva, é uma estratégia de sobrevivência ao meu ver, não sei é essa causa, mas me parece que é uma das possibilidades disso acontecer e acho que existe essa dificuldade eterna de lidar com outro, então essa vontade de voltar à ser todo mundo igual porque assim não tenho que lidar com outro, lidar com outro dói muito, o outro é diferente de mim, historicamente na humanidade o outro é o meu inimigo. Para a gente aprender que o outro não é meu inimigo, o outro é diferente e merece meu respeito e igual, isso é um aprendizado muito novo na humanidade, muito novo. Mas eu acho que é inevitável, não tem como, aprender a conviver com o outro e com a tolerância, se isso acontecer, se aprende a conviver com a diferença, ou se aprende a enxergar a diferença. Quando eu escrevi esse texto, - eu terminei de escrever em 2008 - de lá para cá, a gente tem estudado mais profundamente o século XXI. Maria Alice já fez outro trabalho que não está publicado, eu não participei diretamente, mas participei em partes dele que foi junto com nosso grupo de pesquisa e tal, e tem diferenças, diferenças de posturas, mas elas são mais sutis, a gente precisa acreditar que as diferenças são possíveis e existe para poder enxergálas, se a gente acha que é tudo a mesma coisa a gente não enxerga a diferença, a gente elimina a diferença do campo de visão. Então talvez não seja tão morno assim, a gente é que está deixando ele no campo mais...a gente é que está simplificando o campo. A compreensão do campo, o campo não se simplifica, é a compreensão dele que é mais simplória, está fazendo sentido isso que estou falando? Acho que está sem pé nem cabeça.

Segue momento em que a entrevistada, de maneira informal, começa a questionar sua própria fala, dentro do hábito autodeclarado de “dúvida militante”. Então, eu não gosto dessa coisa meio hierárquica, o professor tem que ser hierárquico, ir na frente e pontificar e é muito ruim isso aí. A gente não pode acreditar na gente mesmo, nessa pontificação toda porque se não a gente está, aí que você morreu e esqueceu de enterrar. (risos)

4 J: Em entrevista à ArchDaily Brasil você comenta que sua principal pesquisa atualmente tem sido a “Pesquisa em Projeto”9. A pergunta é: qual a diferença entre “Pesquisa em Projeto” e crítica de arquitetura? R: Pois é, talvez não tenha diferença nenhuma, talvez seja a mesma coisa abordada por lados diferentes. Tudo que eu sempre quis desde a primeira coisa que eu escrevi foi entender como projetava. Eu nunca escrevi nada nem pesquisei nada por outra razão, eu saí da faculdade, queria projetar e não tinha menor noção de como é que fazia aquilo ou tinha algumas formulinhas básicas, mas eu tinha uma grande de uma pergunta: como é que faz? 9

Igor Fracalossi. AD Brasil Entrevista: Ruth Verde Zein. 11 Jul 2013. ArchDaily Brasil. Acessado 10 Jun 2015. Disponível em: http://www.archdaily.com.br/127154/ad-brasil-entrevista-ruth-verde-zein

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Como é que projeta? Que não foi satisfatório, não teve um treinamento adequado de campo, uma prontidão, um treinamento, uma prontidão que desse ao menos uma fórmula de projetar e pudesse questionar aquela fórmula e buscar outras, tinha um certo vazio nisso . Então eu queria saber como projetava, e o caminho que me veio em mente é: bom, eu vou ver como os outros estão fazendo para ver como eu que eu faço, ou seja, não imaginei que eu era um gênio que eu ia inventar a arquitetura na segunda-feira de manhã, eu tenho uma corda pulando e eu vou ver que ritmo ela está pulando, e vou entrar nesse ritmo, digamos assim. Então a minha primeira pesquisa foi a que saiu publicada na revista Projeto, que ganhei o Prêmio Mindlin10, depois continuou, foi uma pesquisa de ver o que estava acontecendo no Brasil, do Bruand11 para cá, porque eu tinha lido o Bruand, no original e em francês que estava num canto da biblioteca da FAU12, não estava publicada ainda, foi publicado em 79, me formei em 77, então já tinha lido o livro inteiro, achei muito interessante, mas ele parava em sessenta e nadas e agente já estava quase em 80, então teve um concurso e fizemos uma pesquisa, que hoje eu acho bem precária mas era um começo. Então todo o meu trabalho, a vida toda de tentar entender o que estava acontecendo, depois na revista13 publicar o que estava sendo construído e projetado também era uma forma, eu tive aulas individuais e informais, com dezenas de excelentes arquitetos, eu ia no escritório do sujeito ele mostrava o projeto, ia com ele na obra e ele me mostrava a obra, explicava como ele tinha projetado, como ele tinha feito, entrava em detalhes de estrutura de modulação, disso daquilo, eu dava corda e eu ficava ouvindo, quando eu quero ser uma boa ouvinte eu ouvia, dá corda, arquitetos são pessoas vaidosas, falamos bastante então tem essa coisa. Então tudo que eu fiz durante a revista era um curso de arquitetura que achei que faltava, um curso de complementação, o Mestrado informal. Ao escrever sobre uma obra, falava com arquiteto, via o memorial dele, só que me parecia insuficiente os memoriais, os memoriais eram sequinhos ou então não diziam nada ou diziam informações muito primárias assim, básicas, tipo “esse é um prédio que tem três portas e duas janelas, entra por aqui e sai por ali, e tem tal programa”, então me parecia que você olhava a planta e já via, se era para escrever, não precisava escrever aquilo. Então tinha um certo esforço de falar assim, o que era para escrever já estava na planta, na legenda da planta escreve o que? Bom, escreve as intenções do projeto, as lógicas , as proporções, o que? Por onde que a gente vai? Então cada texto era uma tentativa de ver o que aquela obra pedia para ser dito sobre ela. Muitas décadas depois, eu estudei Filosofia também, quando terminei a FAU fui estudar filosofia não terminei o curso mas foi muito útil e tal, eu já gostava e continuei lendo filosofia a vida inteira também, e mais recentemente eu fui descobrir que muitas das coisas que eu fiz, de como eu fiz, de como eu pensava, tem a ver com uma linha filosófica específica que é o “pragmatismo”14, não entendido no sentido vulgar da palavra mas dos autores do pragmatismo, e comecei a ler um monte de coisas, ou seja, o que é que são as coisas como tendo precedências sobre as idéias? Um arquiteto falava assim “aqui uma obra que eu pensei, que ela é toda ecologicamente correta”, daí eu ia na obra e era uma caixa de vidro preta com ar condicionado totalmente vedada, isso não estou inventando, isso é um fato, aconteceu, teve uma vez, um dia que fui falar com o arquiteto, 10

Prêmio Arquiteto Henrique Mindlin outorgado à entrevistada em 1977. Referente ao livro “Arquitetura Contemporânea Brasileira”, de Yves Bruand, publicada em 1981 no Brasil pela editora Perspectiva. 12 Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. 13 A crítica trabalhou na revista Projeto de 1992 a 1996. 14 Corrente filosófica surgida em fins do século XIX nos Estados Unidos, e se caracteriza pela procura das conseqüências práticas do pensamento. 11

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jogou muita cascata sobre tudo isso, quando vi as fotos da obra e do final da obra não acreditei, “mas a intenção do arquiteto...”, e eu desenvolvi ao longo da revista um saudável ceticismo em relação às famosas intenções e conceitos. E eu acho que vale o que está escrito, vale o que está lá, vale a obra, não interessa a intenção se eu não vejo ela na obra, não está lá corporificada, a arquitetura é uma arte muito difícil, 100, 200 pessoas para construir aquele prédio de apartamentos, ou 50 pessoas para construir uma casa, tanta gente que interfere, tantos problemas que podem dar, tanta coisa que pode dar errada, então realmente é uma arte difícil, não estou dizendo isso, mas tem muita coisa que se diz que não é o que se faz, eu fui percebendo as discrepâncias entre os discursos dos autores e as coisas. Eu achava...hoje em dia está mudando o cenário, o século XXI está mudando, mas até o século XX os arquitetos falavam basicamente, o que eles tinham aprendido na escola, o discurso deles era antiquado em relação à ação, a ação ia mudando com o tempo e o discurso estava parado da última vez que eles leram algum livro, que foi na faculdade - as coisas tem sempre precedência. Analisar as coisas, que é “pesquisa em projeto”, eu estou chamando de pesquisa em projeto todo esse arco de coisas que eu já fiz a vida toda, que era basicamente entender as obras, entender como posso explicar, escrever sobre essas obras, para que outras pessoas que forem ler essas obras, que não tiveram o privilégio como eu de visitar, de ir lá, de conversar com o autor, de conhecer, elas possam compreender melhor certas questões que essas obras colocam, então para mim as duas coisas, pesquisar os projetos e as obras e fazer a crítica de arquitetura sempre foram a mesma coisa. O tema da pesquisa, esse título Pesquisa em Projeto é um nome muito contemporâneo e que é uma dúvida mundial, ou seja, ninguém sabe direito o que é isso, nem aqui e nem em parte nenhuma, e eu já fui em vários congressos, já troquei idéia com várias pessoas de várias partes do mundo, todos estão tentando qualificar o que é que é, ou melhor, o que é que poderia vir a ser algo que se poderia chamar pesquisa em projeto. Não tem um consenso ainda formado, porque é uma coisa muito nova, e não sei ainda se vai formar, pode ser que se forma uma posição no campo, ou seja, várias coisas entendidas podem ser pesquisa em projeto. Do ponto de vista, como eu trabalho com questões acadêmicas – eu sou professora ligada à Graduação, à pesquisa, etc. – me interessa o recorte que tem a ver com esse aspecto. Tem uma questão que um autor tem usado bastante, Richard Fouqué15, que é: os arquitetos produzem conhecimento, e esse conhecimento morre com os arquitetos e os escritórios deles, esse conhecimento não é compartilhado. O dentista, o médico, produz, pesquisa e aprende um novo jeito de operar o sujeito, ele vai no congresso conta esse jeito e todo mundo faz. Os arquitetos não contam nada pra ninguém, e a sabedoria morre com eles. Como que poderíamos compartilhar para que esse conhecimento fosse mais compartilhado? Em geral os arquitetos que fazem o projeto não dão aula. Enquanto eles eram a mesma figura, essas coisas não eram tão relevantes, agora que esses mundos estão cada vez mais se separando, – talvez venha a se juntar novamente porque a geração de vocês quer fazer tudo – então pode ser que no futuro tudo se junte novamente, neste momento as coisas estão um pouco fragmentadas.

15 Arquiteto belga sócio do escritório FDA-Architectes e pesquisador na Henry van de Velde Higher Institutde of Architecture da University College Antwerp.

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Então, ele (Fouqué) sugere várias maneiras de como organizar o conhecimento – o livro se chama “Building Knowlegde in Architecture”16 – ou seja, como construir o conhecimento em arquitetura. Ele fala assim: esse tipo de atuação do arquiteto não é única. O conhecimento dos administradores de empresa, dos economistas, dos advogados e de outras profissões é parecida com a do arquiteto, um conhecimento que advém basicamente da prática. Você faz e fazendo você aprende, e você vê se deu certo, se não deu certo, a partir de estudos de caso. Inclusive o pessoal da administração trabalha com cases. Caso tal, cliente tal, case fulaninho. Como é que o cara lidou na prática, como é que aconteceu. Tem várias áreas que trabalham com estudos de caso para sistematizar e transmitir conhecimento. Ele falou: olha, nossa área é bem parecida, tem as diferenças porque a gente tem interações com a questão da arte, etc., que leva pra outros caminhos. Então ele está tentando trabalhar com essa questão não exatamente do ponto de visto acadêmico, mas do ponto de vista da própria atuação do arquiteto ser uma construção do conhecimento apontando para isso. Tenho minhas interfaces com as questões acadêmicas, então existem outras pessoas, existe um monte de gente trabalhando com isso pensando no que isso podia ser. Então naquela entrevista do ArchDaily, eu achei interessante muito mais para levantar a bola, ou seja, a questão: o que é que é pesquisa em projeto? Nós estamos trabalhando com isso, no meu grupo de pesquisa, outros estão trabalhando, mas isso não é um tema novo, a velha conversa de que é novo então estamos atrasados, mas não estamos. Nem um pouco atrasados.

5 J: Ainda sobre sua linha de pesquisa, qual seria a relação entre essa “investigação do projeto em si” e o conceito de “prática projetiva”, desenvolvida por toda uma geração de teóricos hoje, a exemplo de Robert Somol e Sarah Whiting?17 Ou seja, num atual panorama da primazia do projeto sobre o pensamento, qual é o lugar da crítica? R: Eu vou começar afirmando que os arquitetos somos fashion victims18, a gente vive de modas, a gente não gosta de admitir isso, é triste isso mas é verdade. A primazia do projeto sobre a crítica é a moda do momento, ela não é verdade, não é mentira, é só a moda do momento. Ela é uma moda como outras quaisquer, e essas modas elas vão elas vem, elas se arrogam verdades verdadeiras até daqui a dois anos quando elas estão ficando muito disseminadas então o produtor de moda cria uma nova moda, e uma nova moda. Então eu já estou lendo uns textos recentes que dizem assim: não, está voltando a história, agora vai voltar a ter seu protagonismo – recente, bem recente. Agora a moda da moda da moda da última, o que está mais cool, aquilo que é pré-cool que vai ser cool, vai ser de novo voltar a historia. Estou dizendo isso para relativizar a posição desses autores que você citou – que eu não estou tão familiarizada quanto deveria – mas me parece uma posição, não é a verdade 16

FOUQUÉ, Richard. Building Knowledge in Architecture. Bruxelas: Academic & Scientific Publishers – ASP, 2010. 17 SOMOL, Robert; WHITING, Sarah. Notas sobre o efeito Doppler e outros estados de espírito do modernismo. In: STYKES, A. Krista (org.). O campo ampliado da arquitetura: Antologia teórica 19932009. São Paulo: Cosac Naify, 2013. 18

Termo usualmente usado no mundo da moda para qualificar aqueles que são viciados em modismos lançados a cada nova estação.

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nem o que é certo ou o que está errado, é basicamente o que está na moda em alguns círculos do pensamento, não necessariamente os que a gente pertence ou a priori os que a gente não está convidado a pertencer, que a moda vive da exclusividade e o cara que vive super super super na moda só pode ser se os outros não forem. Se todo mundo for ele não é tão na moda assim, virou vulgar, virou prêt-à-porter19, não é mesmo? Então para ser alta costura ele precisa ser exclusivo. O exclusivo e o excluir é a mesma coisa: você exclui e está sempre cool e os outros todos estão pra trás. Por outro lado existem trabalhos que levam a vida toda. Se você persiste num trabalho que leva a vida toda, você vai entrar e sair de moda três ou quatro vezes ao longo de sua pesquisa. Para alguns isso é fatal, depende. Se eu ainda estivesse trabalhando numa revista de arquitetura, eu teria que estar o tempo todo acompanhando a moda e me pronunciado sobre elas. Como no momento estou na Academia, eu posso me dar ao direito de não precisar estar tão acelerada e fazer meu trabalho com mais consistência, com mais pauses e com mais tempo, na esperança que, cedo ou tarde, isso vai entrar na moda. Quando eu comecei a trabalhar sobre o brutalismo a primeira reação que tive, em 1997, foi “não pode falar sobre isso, não tem nada a ver falar sobre isso, não tem coisa nenhuma”. Agora a gente coordenou, eu e Comas20 coordenamos uma mesa em 2015 agora em Abril lá no Chicago (não conseguir anotar o nome do evento) sobre o brutalismo, um pouco antes que a gente propôs, foi aceita, um pouco antes eu recebi uma carta de uma amiga suíça, que também tinha composto uma mesa, dizendo assim: “ai a mesa de vocês, com esse assunto tão cool, vai ter um monte de gente querendo participar e mandando papers, e a minha não é tão cool assim não vai ter tanta gente”. E eu falei assim: quando eu comecei não era cool, é um trabalho de 15, 20 anos que amadureceu e que chegou nesse ponto. Então de repente virou cool, tudo é brutalista, eu já estou morrendo de vontade de abandonar o assunto, porque eu acho que o que eu poderia dar de contribuição a esse campo de repente – estou começando a publicar, publicar – porque mais dois anos vão dizer que eu é que copiei eles, já aconteceu parcialmente uma vez: escrevi sobre a arquitetura paulista e me contestaram que um inglês já havia escrito isso. Eu escrevo sobre o assunto há 30 anos, o inglês entrou no assunto agora: quem copiou quem? Mas ele é um homem inglês e eu sou uma mulher sudaca... Então eu acho que a gente pode estar atento às coisas, a crítica, quando ela é exercida num ambiente, numa publicação diária, ou cotidiana, ou mensal, ou seja das revistas e dos portais, agora que são muito mais rápidos – ArchDaily e todos esses aí – que eu gosto muito. A última vez que fui lá pro Chile fui lá conversar com o pessoal do ArchDaily, eu gosto eu acho legal, eu me alimento vou atrás. Mas eu acho que a gente não precisa ficar ligado nisso, que a crítica não tem importância, tem sim sempre teve. A história não tem importância, tem sim sempre teve. O projeto não tem importância, tem sim sempre teve, e eu vou continuar fazendo o que acho que tenho que fazer.

Em seguida repeti inadvertidamente a pergunta, o que levou Ruth Verde a desenvolver ainda mais o tema. Eu acho a idéia da prática projetiva muito legal porque você foca – como quer o Fouqué – você foca em compreender o processo projetual de maneira mais detalhada e mais consertada. Isso é um esforço que começou lá nos anos 60, que está sendo recuperado a 19 20

Algo “pronto para uso” cotidiano, ligado a uma massificação da moda no pós-Segunda Guerra. Ela se refere ao crítico gaúcho Carlos Eduardo Dias Comas.

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partir de agora. Para começar, quando você conhece o suficiente das coisas e lê o suficiente, você já descobre que já houve tentativas de fazer isso de outras maneiras, que era a tentativa de entender o processo criativo e desvendar a caixa preta – era como falávamos nos anos 60, 70 – aí era a caixa preta, a caixa clara. Essa idéia da prática projetiva dessa maneira parece ter algo de retomada de algumas coisas, nós estamos retomando várias coisas dos anos 60, daqui a pouco vai entrar o pós-moderno em moda. É que nem a moda de roupa. J: Acho que arquitetura são quarenta ao invés de vinte anos... R: É, varia um pouco, talvez até demore um pouco mais porque o brutalismo tem quase sessenta, varia um pouco mais, mas a verdade é que tudo o que se propuser a fazer hoje e arrogar que seja totalmente original não é. Você só pode dizer que algo é totalmente original por ignorância, ou por exclusão, senão ela não é. Ela tem elemento de coisas que já foram testadas, revistos e retrabalhadas de forma diferente – pode ser que esteja sendo muito conservadora, estou ficando velha – mas eu estou convencida de que todo mundo que quer ser original demais está apenas dando demonstração de ignorância latu sensu, porque ignora. Então eu procuro não ignorar. Agora o esforço desses autores eu acho muito válido, importante. Não dá tempo de acompanhar tudo o que sair porque mesmo dando as aulas a vida é complicada no nosso país, a gente tem que ganhar a vida e é difícil. Mas eu acho que a crítica continua sendo importante, tudo pode mudar de aspecto, de urgência, mas ela continua acontecendo. A declaração de que a coisa não vai existir, existe só fashion – não, agora o que está pegando é a cor malbec, vermelho está totalmente ridículo. J: A gente espera isso, sinceramente. R: O que? J: Que a crítica ainda tenha importância. R: Defina crítica, defina crítica. (risos) Tem que definir, tem que definir o que você entende por isso. Eu acho que a crítica pode ser um adjetivo, não precisa ser um subjetivo, pode ser assim: atuar criticamente, ou um advérbio. Ou seja, quando você desenha, você fazer isso de maneira crítica, quando você escreve, quando você pensa, quando você age. Quando você vai fazer uma entrevista, quando você vai fazer um trabalho, você fazer de maneira crítica, e com cuidado, buscando a consistência – a consistência é a coordenação entre as partes – não é dizer preto e depois dizer que é branco e dizer que está tudo bem. Ou criar um argumento de porquê que eu posso dizer coisas inversas, ou seja, a idéia da crítica é sempre a de criar um argumento. O argumento não precisa estar certo, ele só precisa ser plausível, se desenvolver consistentemente e também saber recuar, ou seja. Se você monta o argumento, você o desenvolve e ele não se sustenta você tem que saber dizer assim “bom, mas parece que isso não se sustenta ou se sustenta só até aqui”. Que é o que eu tentei falar naquele texto21. Eu disse que a crítica não tem a obrigação de estar certa. Se é uma crítica sobre o que está acontecendo já, você lança uma hipótese, pode ser que com o tempo você verifique que aquela hipótese que você lançou não era a mais adequada, mas ela não errou, ela simplesmente não tem a obrigação de estar certa, por isso que ela não erra.

21

ZEIN, Ruth Verde. Yes, nós temos crítica. Disponível em: http://arcoweb.com.br/projetodesign/artigos/artigo-yes-nos-temos-critica-01-05-2002

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J: Você comenta a crítica que fizeram ao Mies Van der Rohe também...do perfil falso22. R: O perfil não é falso...isso é um apriori moralista. Em vez de dizer disso, para quem gosta de arquitetura, o melhor é ir na obra, e tentar entender porquê o perfil está lá: por necessidade de ritmo e homogeneidade...Necessidade do Mies, claro...

A entrevista se encerra com a crítica comentando e mostrando fotos de sua última viagem a Chicago, onde pôde visitar diversas obras do mestre moderno.

22

Ibidem.

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