O Arquétipo do Romance Policial na obra em quadrinhos Trilogia do Acidente, de Lourenço Mutarelli

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

JAIRO MACEDO JÚNIOR

O ARQUÉTIPO DO ROMANCE POLICIAL NA OBRA EM QUADRINHOS

TRILOGIA

DO

LOURENÇO MUTARELLI

GOIÂNIA 2012

ACIDENTE,

DE


JAIRO MACEDO JÚNIOR

O ARQUÉTIPO DO ROMANCE POLICIAL NA OBRA EM QUADRINHOS TRILOGIA DO ACIDENTE, DE LOURENÇO MUTARELLI

Monografia apresentada como requisito parcial à obtenção do título de bacharel em comunicação social, habilitação em Jornalismo. Orientador: Prof. Rubem Borges Teixeira Ramos.

Goiânia 2012 2


Para Lia Bello, pela dedicação, carinho e paciência. Principalmente paciência.

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RESUMO

Esta dissertação tem a intenção de observar e analisar as relações entre histórias em quadrinhos e romances policiais, de modo a esmiuçar de que forma essas duas formas de expressão estão presentes nos álbuns de Lourenço Mutarelli O Dobro de Cinco, O Rei do Ponto e A Soma de Tudo, produzidos entre 1999 e 2002, mais conhecidos como A Trilogia do Acidente. Iniciando sobre um foco teórico em que romances policiais e histórias em quadrinhos são definidas e situadas enquanto produtos de cultura de massa. O presente trabalho contribui com o debate a respeito da importância das histórias em quadrinhos como produto cultural, bem como a sua relação com a sociedade e seu tempo. Também é previsto analisar se e como a narrativa contida na obra se diferencia do romance policial tradicional, mesmo sendo classificada como publicação pertencente a este gênero.

Palavras-chave: Histórias em Quadrinhos; Comunicação de Massa; Romance Policial; Entretenimento; Conhecimento

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ABSTRACT

The intent of this dissertation is to observe and analyze the connections between comics and crime novels, the way they are presented in Lourenço Mutarelli‟s graphic novels O Dobro de Cinco, O Rei do Ponto and A Soma de Tudo, from 1999 to 2002. Starting from a theoretical focus, in which is presented a definition of comic books and then a definition of crime books, their nature as a mass media product and the way they are connected in Mutarelli´s work. Finally, this work contributes with the cultural debate, placing comics as a cultural product, and its relations with the diverse social and cultural dimensions. This work still wants to analyze how Mutarelli´s graphic novels belongs or not to the tradition of crime novels, even if is classified as a typical detective novel.

Keywords: Comic Books; Mass Media; Crime novels; Entertainment; Readers; Knowledge

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Tarzan de Burne Hogart............................................................................... 47 Figura 2 – O Pato Camaleão ao estilo Hergé................................................................ 59 Figura 3 – O Pato Camaleão ao estilo Harold Foster.................................................... 59 Figura 4 – Fanzine Over-12........................................................................................... 65 Figura 5 – Fanzine Over-12........................................................................................... 65 Figura 6 – Fanzine Over-12........................................................................................... 65 Figura 7 – Fanzine Over-12........................................................................................... 65 Figura 8 – Fanzine Solúvel............................................................................................ 67 Figura 9 – Fanzine Solúvel............................................................................................ 67 Figura 10 – Mini-revista As Impublicáveis................................................................... 68 Figura 11 – Transubstanciação..................................................................................... 72 Figura 12 – Transubstanciação..................................................................................... 72 Figura 13 – Transubstanciação..................................................................................... 73 Figura 14 – Transubstanciação..................................................................................... 74 Figura 15 – Desgraçados............................................................................................... 76 Figura 16 – Desgraçados............................................................................................... 77 Figura 17 – Eu te amo Lucimar..................................................................................... 79 Figura 18 – A Soma de Tudo – Parte 1......................................................................... 83 Figura 19 – O Rei do Ponto........................................................................................... 86 Figura 20 - A Soma de Tudo – Parte 2.......................................................................... 87 Figura 21 – O Dobro de Cinco...................................................................................... 87 7


Figura 22 – Transubstanciação..................................................................................... 89 Figura 23 – O Dobro de Cinco...................................................................................... 89 Figura 24 - A Soma de Tudo – Parte 1.......................................................................... 91 Figura 25 – O Rei do Ponto........................................................................................... 91 Figura 26 – O Dobro de Cinco...................................................................................... 94 Figura 27 – O Dobro de Cinco...................................................................................... 95 Figura 28 – O Dobro de Cinco...................................................................................... 98 Figura 29 – O Dobro de Cinco.................................................................................... 100 Figura 30 – O Rei do Ponto......................................................................................... 101 Figura 31 – O Rei do Ponto......................................................................................... 103 Figura 32 – O Rei do Ponto......................................................................................... 104 Figura 33 – O Rei do Ponto......................................................................................... 107 Figura 34 – O Rei do Ponto......................................................................................... 109 Figura 35 – A Soma de Tudo – Parte 1....................................................................... 109 Figura 36 – A Soma de Tudo – Parte 2....................................................................... 110 Figura 37 – A Soma de Tudo – Parte 2....................................................................... 111 Figura 38 – A Soma de Tudo – Parte 2....................................................................... 115

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................ 11 1. PROBLEMÁTICA DA TRANSGRESSÃO OU ADAPTAÇÃO AO CÂNONE POLICIALESCO.......................................................................................................... 16 2. ROMANCE POLICIAL: ORIGEM, ARQUÉTIPOS E EVOLUÇÕES............. 23 2.1. O Dupin de Allan Poe.............................................................................................. 28 2.2. Os filhos da dedução................................................................................................ 31 2.3. Romance negro........................................................................................................ 33 3. QUADRINHOS: GÊNESE, DESENVOLVIMENTO E CONSTITUIÇÃO ENQUANTO ARTE..................................................................................................... 38 3.1. Passado e chegada à modernidade........................................................................... 42 3.2. Das inovações trazidas pela aventura...................................................................... 45 3.2.1. Novas técnicas, outro dinamismo......................................................................... 48 3.2.2. Nascem os super-heróis........................................................................................ 50 3.3. Anos 60: revitalização e credibilidade..................................................................... 53 4. LOURENÇO MUTARELLI: ESTÉTICA E CONTEÚDO PRÉ-DIOMEDES......................................................................................................... 59 4.1. Contracultura e udigrudi como contexto e princípio............................................... 60 4.2. Primeiros álbuns e divisão cronológica................................................................... 69 4.3. Transubstanciação................................................................................................... 71 4.4. Desgraçados............................................................................................................. 75 4.5. Eu te amo Lucimar e Confluência da Forquilha...................................................... 78 4.6. Caminho aberto ao detetive..................................................................................... 81 5. A TRILOGIA DO ACIDENTE............................................................................... 84 5.1. O Dobro de Cinco.................................................................................................... 92 9


5.2. O Rei do Ponto...................................................................................................... 100 5.3. A Soma de Tudo.................................................................................................... 107 CONCLUSÃO............................................................................................................. 116 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................... 120

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Introdução

As características mais elementares do que veio, a partir de meados do século XIX, a ser conhecido como o formato do romance policial moderno, estão intimamente ligadas ao que era chamado de “romance de aventura” ou mesmo, antes ainda, novela picaresca1. Um tipo de narrativa que sempre se esmerou em prender um leitor a uma história, através do retrato escrito de ações que capturassem a atenção do receptor até o final dos acontecimentos. Quem lia essas histórias nem sempre possuía a formação intelectual exemplar – ou mesmo mal passava da alfabetização mediana -, mas buscava nos livros uma forma de passatempo e ação. Paulo de Medeiros e Albuquerque (1979), em seu livro O Mundo Emocionante do Romance Policial, separa em três fases básicas o surgimento do gênero. Na primeira, havia o princípio elementar dos romances de heróis, de combate entre o bem e o mal. Na segunda, surge a espionagem, em romances que vão de Voltaire a Dostoievsky, mas cujo foco central ainda não era o espião. A terceira, já o gênero em si, surge com o aparecimento do romance policial, onde interveio, suplantando a força e a ação, o raciocínio lógico e soberano do protagonista. Assim, o romance policial – ou romance de mistério, romance de enigma, romance detetivesco, entre outras denominações – surgiu nas histórias onde um crime ou mistério ocorria inexplicavelmente e um personagem central, de capacidade analítica por vezes próxima do inverossímil, chegava a uma solução. O desenrolar de um mistério complicado, por meio da dedução, é a chave de tudo. O enredo sempre termina em espanto para os outros personagens da trama e para o próprio leitor. Dessa tradição sem fim fazem parte Edgar Allan Poe, Arthur Conan Doyle, Agatha Christie, Raymond Chandler, Georges Simenon, entre tantos outros derivados – nem todos eles, claro, tão originais quanto os precursores, mas de apelo semelhante perante o público, que sempre consumiu vorazmente essa literatura, em várias idades e classes sociais. Aqui cabe um ponto importante. Não seria exagero traçar um paralelo de semelhanças entre essa literatura de massa e as histórias em quadrinhos. Afinal, também essa arte de agrupar imagens justapostas e, dali, produzir uma narrativa, sempre calhou bem ao grande público e foi – e aparentemente sempre será – “de massa”. Os 1

Em espanhol: “delinquente” ou “malandro”. Designa sub-gênero literário que floresceu na Espanha dos séculos XVII e XVIII e baseava-se em aventuras satíricas de protagonistas contraventores. Tradição que será esmiuçada mais adiante.

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quadrinhos modernos, tal qual são entendidos hoje, tiveram em sua gestão uma forte ligação com a imprensa escrita. Nos jornais diários, lá estavam essas histórias curtas, a princípio de uma página apenas. Nelas, aliava-se imagem e palavra em prol do entendimento instantâneo, o que vinha bem a calhar ao público abrangente que a nova indústria da informação e comunicação conseguia finalmente alcançar. Não por acaso, alguns dos primeiros sucessos dos quadrinhos estiveram intimamente ligados às histórias de aventura e de mistério. O Tarzan desenhado por Hal Foster nos anos de 1920, por exemplo, adaptava para a arte sequêncial os romances de aventuras desse personagem, originalmente escritos por Edgar Rice Burroughs. O sucesso literário seguiu-se nas histórias em quadrinhos, publicadas no formato de tiras em 212 jornais norte-americanos. Ao todo, o trabalho chegou a figurar, à época, em cerca de 15 milhões de exemplares diários. O forte apelo sobre o público desse personagem proporciona o fim da virtual obrigatoriedade do mundo dos quadrinhos em adotar o humor como meio e finalidade únicos. O termo estadunidense “comics” (cômico, engraçado), usado para se referir à arte em quadrinhos, diz muito a respeito desse engessamento inicial:

No início da HQ moderna, o principal gênero era o humorístico, por isso elas foram alcunhadas de Comics nos Estados Unidos, mas o potencial expressivo das HQs não demorou a revelar-se e muito rapidamente, já nas primeiras décadas do século XX, outros gêneros foram surgindo. Na década de 1930, considerada a "década de ouro" das HQs norte-americanas, ocorreu a consolidação de gêneros como a aventura, a ficção científica, o policial, as histórias de guerra, de cavalaria, de faroeste, etc. Nessa época surgem os quadrinhos de inspiração neoclássica com cenários muito bem acabados como podemos ver em Tarzan de Harold Foster (...). As HQs passam a ser exploradas em todo o seu potencial narrativo, sendo lidas e admiradas por pessoas de todas as faixas etárias. Além de abarcarem toda a variedade possível de gêneros, as HQs também aos poucos vão atraindo públicos das mais variadas faixas etárias, da criança ao adulto. (FRANCO, 2001, p. 31)

É o herói mítico passando a dividir espaço com as gags do humor diário. O personagem dominava um ambiente inóspito, vivia aventuras inacreditáveis na selva e saía vivo de todas elas, de modo dominante e admirado. Com ele, as páginas dos jornais não eram mais exclusividade da vertente que incluía o Menino Amarelo, que trazia mensagens irreverentes em sua camisa, as trapalhadas dos Sobrinhos do Capitão ou 12


mesmo as travessuras do garoto Buster Brown. Foi a adaptação de traços neoclássicos de Foster – o Tarzan em seguida passou pelas mãos de Rex Maxon e Burne Hogarth, entre outros tantos desenhistas – que acabou, na definição de Álvaro de Moya (1987, p. 67), “mudando os quadrinhos, juntamente com Buck Rogers, de crianças travessas e famílias para a aventura, dando início à década de ouro dos comics”. A partir das tiras de Tarzan, as portas foram abertas para os célebres personagens Flash Gordon e Jim das Selvas, de Alex Raymond, e Príncipe Valente, do próprio Harold Foster – dessa vez, autor também dos roteiros originais. Pouco mais tarde, ainda no final da mesma década, os tais heróis foram incrementados com poderes que extrapolam o do simples mortal, o que resultou nas figuras de Superman, Batman, Mandrake, entre outros tantos super-heróis de papel. O filão mítico dos homens invencíveis foi inaugurado sob a égide de Tarzan.

De Hércules (sobre cujos trabalhos muitos trabalhos de Tarzan estão explicitamente calcados) até os super-heróis dos atuais quadrinhos, o parentesco visível: tem em Tarzan o talhe físico. (ECO, 1978, p. 118)

Nesse meio tempo, 10 anos após Tarzan e 90 anos depois do Dupin de Allan Poe, apontado por todos como o precursor dos detetives na literatura, surge a figura de Dick Tracy. Urbano, nascido do combate aos gângsteres das grandes cidades estadunidenses, fortemente influenciado pelo cinema e pelo romance noir. “Era um tremendo salto das selvas africanas de Tarzan, para a selva asfaltada dos gângsteres. Chester Gould, criado em 1931, inaugurava uma nova era nos quadrinhos” (SILVA, 1976). Mário Feijó, em seu livro Quadrinhos em Ação – Um século de história, situa Tracy como o primeiro grande personagem de aventura criado originalmente para os quadrinhos. Gould chegou a publicar o personagem em 569 jornais – isso apenas nos Estados Unidos e Canadá – e, na esteira de seu sucesso, surgiram detetives como Red Barry, Inspetor Wade, Rádio Patrulha, Spencer Stell e Agente Secreto X-9. Este último, desenhado por Alex Raymond e roteirizado por Dashiell Hammett, figura central do romance policial noir, guardava ainda mais intimidade com o gênero literário. Antes, nos personagens já citados, havia o mistério e a dedução do mistério. Porém, o personagem do investigador como figura central da trama surgiu mesmo com X-9 e Tracy. O Spirit de Will Eisner deu mais tarde outro formato e profundidade a essas narrativas, inaugurando um sistema de histórias mais longas – ao invés de tiras em 13


sequência nos jornais – e personagens mais bem construídos psicologicamente, menos objetivos, mais humanos e vulneráveis. É certo que o paulista Lourenço Mutarelli não viveu essa época. Mas o quadrinista, nascido em 1964, teve contato logo cedo com esses clássicos dos quadrinhos - especialmente os de Eisner, Hal Foster e o Tintin de Hergé. Nos anos 80, quando começou a produzir suas primeiras histórias autorais, esteve em caminhos editoriais paralelos – nem sempre semelhantes em estética e narrativa – com nomes consagrados à época, como Laerte, Angeli, Luis Gê e Fernando Gonsales. De formação acadêmica, Lourenço frequentou apenas o curso de Educação Artística na Faculdade de Belas Artes (São Paulo) no período de dois anos. O passo seguinte nesse processo, finalizado em 1985, era o de bacharelado ou formação em artes plásticas, mas isso não lhe interessou naquele momento. Lourenço estava determinado a trilhar, de alguma forma, o caminho das histórias em quadrinhos. Assim, entre 1985 e 1987, Lourenço começou a estruturar ideias esparsas do que seriam suas primeiras histórias. Em 1988, tornou públicas suas primeiras criações com o fanzine Over-12 (1988), obra independente composta de pequenas histórias e editada pelo também quadrinista Francisco Marcatti. Ali, embora ainda bastante rudimentares, já se notava a estética e a temática de Lourenço Mutarelli: climas angustiantes, cenários lúgubres, temas pouco agradáveis acompanhados de desenhos deformados, condizentes com as histórias contadas. Uma intenção de alcançar tons mais sombrios da psique humana ganhava forma nesse momento e se seguiria em Solúvel (1989) sua segunda publicação, também independente. Aos poucos, o autor começou a ganhar algum espaço nas revistas da época. Era um período relativamente fértil em publicações de quadrinhos no Brasil, com certo mercado em bancas de jornal, e Lourenço Mutarelli figurou nas páginas das revistas como Tralha, Animal, Mil Perigos, Chiclete com Banana, Brazilian Heavy Metal e Animal. Sua primeira obra de maior fôlego, no entanto, só foi concretizada em Transubstanciação, no começo dos anos 90. Obra de forte cunho pessoal, chocou o público pela agressividade e nilismo. Vendeu 13 mil exemplares ao longo dos anos e transformou adjetivos como “visceral”, “grotesco” e “perturbador” em lugar-comum na descrição das obras do autor. Depois dessa estreia, seguiram-se outros álbuns, entre eles Desgraçados (de 1993), Confluência da Forquilha (1997) e Seqüelas (1998).

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Desgraçados, publicado em 1993, é um exemplo do que é, até para o próprio autor, uma história por demais agressiva. Eu te amo Lucimar (1994) segue a mesma linha, mas evolui em técnicas como aguada e aquarela, o que lhe confere uma leveza plástica que abranda a agressividade do roteiro. A este álbum se seguem: A Confluência da Forquilha (1997), surrealista e abstrata; Seqüelas (1998), uma coletânea de histórias oriundas de diversas publicações; e a cultuada Trilogia do Acidente (1999 – 2002), volumes sobre os quais o presente trabalho acadêmico pretende empreender uma análise pormenorizada. Desde sempre optando por esse formato europeu do álbum, Lourenço Mutarelli achou por bem arquitetar uma quebra no ritmo de trabalho e produzir uma história mais longa e contínua, com volumes que sempre giraram em torno de 100 páginas cada e tiveram o mesmo protagonista. Nasce então Diomedes, único personagem do autor que percorre e persiste em mais de um álbum. São eles, na sequência: O Dobro de Cinco (1999), O Rei do Ponto (2000), A soma de tudo – Parte 1 (2001) e A Soma de tudo – Parte 2 (2002). A “trilogia em quatro partes” terminou por ser formada por quatro álbuns porque Lourenço se enamorou do personagem e alongouse na história. Uma vez mais longa do que o esperado, por questões editoriais, autor e editora preferiram “cortar” o último livro em dois, de modo que garantisse uma publicação por ano do personagem. Diomedes é um detetive particular, ou ao menos se autointitula assim. Contém em si todas as pretensões e trejeitos de um detetive, mas não realiza de forma convincente nenhum de seus trabalhos. O personagem gordo, baixinho e deformado fisicamente é frágil em sua afirmação como detetive. Daí surge toda a trama que envolveu por anos os leitores de Lourenço Mutarelli.

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1. Problemática da transgressão ou adaptação ao cânone policialesco

É preciso estar atento ao que é característica do romance policial tradicional, seu derivado noir, a adaptação ao mundo das histórias em quadrinhos e, por fim, como ele se encaixa na obra de Lourenço Mutarelli. Parece consenso entre aqueles que estudam o gênero que Edgar Allan Poe, a partir de seu personagem Auguste Dupin, criou o arquétipo primeiro do detetive. O investigador Dupin foi a primeira “máquina de raciocinar”, na definição de Sandra Lúcia Reimão (REIMÃO, 1983, p. 20). Não se envolve nos acontecimentos senão pela força do raciocínio, pelo poder da dedução, à parte do perigo de sofrer ele mesmo diretamente com o crime que está analisando:

O detetive desse tipo de romance é, via de regra, uma “mente dedutiva”, “uma máquina de pensar”, que, através de vestígios, pistas, indícios, consegue reconstruir uma história, um fato passado, e assim descobrir o (s) culpado (os). (REIMÃO, 1983, p. 30)

Nomes como Agatha Christie, Dashiell Hammett, Arthur Conan Doyle, Georges Simenon, Chesterton, Raymond Chandler, Patricia Cornwell, Maurice Leblanc, Alex Raymond, Chester Gould, Will Eisner, entre outros, acrescentaram aqui e ali novas características às tramas dos romances policiais. O Sherlock Holmes de Arthur Conan Doyle, até hoje a figura mais lembrada do gênero, adicionou algum humanismo ao investigador. Menos máquina, tem uma personalidade própria que fascina tanto quanto a capacidade de resolver enigmas. Há o Holmes detetive e o Holmes homem, que se fundem em sua figura peculiar. O Poirot de Agatha, da mesma forma, se mostra menos neutro emocionalmente e goza de indisfarçável vaidade. Chandler e Hammett fundaram o que veio a ser conhecido como “romance negro” ou “romance americano” e incluíram a sordidez do ambiente e a falibilidade dos personagens centrais. Esses autores ajudaram a criar um imaginário popular desse tipo história. Até aquele que não é nada aficionado pelo romance policial há de distinguir especificidades nessas histórias: o desafio do enigma, a fixação pelo crime, a racionalidade extrema do investigador, caminhos imprevistos da trama, o mistério desvendado no final, o criminoso que é pego, a minuciosidade do crime e o detetive que 16


enxerga além. O jogo de espera entre o que aconteceu e a solução que será alcançada, quando quem lê estabelece quase uma competição com o detetive. Personagem e leitor procuram obstinadamente o desfecho da história – quem cometeu o crime, onde, através de quais métodos e por quais motivos -, mas o primeiro sempre se impõe sobre o segundo. Não raro, assume o papel de pensar por ele. Medo e raciocínio se equilibram e o herói-detetive se sobressai sobre o leitor. Mais que isso, esses autores criaram uma parafernália de cenários e “manias” típicas dessa narrativa. Cabem aqui exemplos como a capa, o chapéu, a lupa, a coleta de impressões digitais, venenos, armas, a figura soturna, o caminhar pelas ruas à noite, o ar misterioso de quem “sabe algo que você nem desconfia”, o ambiente de trabalho lúgubre, o companheiro de aventuras a auxiliar e narrar o que se passa. Trejeitos de narrativa que servem para assimilar, em uma literatura de massa, o gênero à qual ela se encaixa e o público que ela deve alcançar. Quem, como descreveu Sandra Lúcia Reimão (1983, p. 18), “não formou uma imagem dessa fina e sutil figura, vestida com sua capa e seu chapéu, saindo soturnamente em busca de indícios, vestígios, etc, como um verdadeiro mastim?”. Umberto Eco, em Apocalípticos e Integrados, também se detém sobre o apreço do público pela recorrência de artifícios lançados pelos detetives:

(...) o autor do romance policial introduz, a seguir, continuamente, uma série de conotações (por exemplo, as características do policial e do seu entourage imediato) tais que sua recorrência, em cada estória, seja condição essencial para sua aprazibilidade. E temos, assim, os tiques já históricos de Sherlock Holmes, as vaidades pontilhosas de Hercule Poirot, o cachimbo e os sarilhos familiares de Maigret, até as perversidades cotidianas dos mais desabusados heróis do romance policial de pós-guerra, da água-de-colônia e do Player´s Nº 6 de Slim Gallaghan, de Peter Cheyney, ao conhaque com o copo de água gelada do Michael Shayne, de Brett Halliday. Vícios, gestos, vezos quase nervosos que nos permitem reencontrar na personagem um velho amigo, e que são a condição principal por que podemos “entrar” na estória. (ECO, 1979, p. 266)

A prova disso, para Umberto Eco, é a própria decepção do leitor quando não há o encontro que este esperava. Eco propõe a hipótese: se nosso autor favorito de romances policiais elabora uma narrativa com o mesmo esquema que lhe é comum, mas

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sem inserir o protagonista recorrente, terminamos por ler com um distanciamento. Não percebemos que a mesma base comum a essa narrativa continua ali presente. Isso porque é próprio do romance policial um jogo intertextual de empatia e arrebate do leitor por meio de fórmulas que ultrapassaram a própria literatura. Se o romance policial nasceu no século XIX, no seio da indústria informativo-cultural, foi natural ganhar o mundo das histórias em quadrinhos e ser sucesso em inúmeras adaptações para o cinema. Era ato contínuo ganhar, sobretudo, a vida das pessoas. Há relatos de fãs que se puseram a investigar uma possível existência de Sherlock, cujas histórias reais teriam sido apenas relatadas por Arthur Conan Doyle. Quando Chester Gould resolveu matar o personagem Flattop, vilão nas histórias de Dick Tracy, recebeu cartas de leitores reclamando o corpo do criminoso, como se esse personagem fosse um amigo íntimo cujo assassinato causava revolta. Mas Lourenço Mutarelli, embora afeiçoado a esses trejeitos como leitor do gênero, está longe de ser contemporâneo aos primeiros autores. Ora, como Mutarelli, um autor de histórias em quadrinhos de obra iniciada já no fim do século XX, chegou à criação do detetive Diomedes? De que forma o autor, sob a ótica pessoal de quadrinista autoral, se apropria da linguagem e expectativa de uma trama policialesca para criar a sua própria história em arte sequêncial? Como em qualquer história noir, bem como qualquer história em quadrinhos de ação, a Trilogia do Acidente é uma obra de envolvimento. A trama é elaborada para que, uma vez que se comece a lê-la, o leitor não queira parar nem por um instante. Momentos de introspecção e dedução são alternados com sequências de correria, disparos e sangue. Suspenses são deixados em aberto para que o frisson da atenção não se disperse. As quatro publicações carregam a sedução típica desses meios de expressão:

Aliás, faz parte da própria estrutura quadrinhística o papel expressional do personagem. A rigor, um grande personagem de quadrinhos tem que ser grande, antes de tudo, no interior dos quadrinhos, com uma tensão/pulsação adequada à linguagem que o formaliza enquanto herói, anti-herói, marginal, etc. (CIRNE, 2000, p. 70)

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Herói ou anti-herói, é em torno de Diomedes, o personagem detetive, no qual a Trilogia do Acidente gira sua trama. O gordo bonachão demonstrou os “tiques” mencionados por Eco e trouxe recorrência de atos nos álbuns em que esteve presente. A recorrência, no entanto, é de gestos que talvez não estejam presentes como o leitor do romance policial tradicional espera. Mais que isso, são modos de agir que podem apontar para algo mais além dos “tiques” mencionados. Diomedes, em contradição com o imaginário popular, é um detetive que não resolve seus casos. Acontece com ele, sobretudo, uma série de fatos que levam para longe o que antes era seguro pela dedução e raciocínio de um detetive. Se dedução e raciocínio são os pilares do romance policial, como veremos no capítulo a seguir, deve existir, ao que parece, uma subversão latente dos padrões na Trilogia. Uma série de acontecimentos dessa longa história é marcada pelo acaso ou coincidência. “Azar” é uma palavra também bastante usada. Lucimar Ribeiro Mutarelli, autora de artigo intitulado Lourenço Mutarelli e a Representação do Herói e de uma dissertação de mestrado também a respeito do autor, pondera sobre a figura do anti-herói que é recorrente nas primeiras obras autor, de cunho fortemente autobiográfico, e que retorna, com outra cara, sob a forma do herói detetive:

De uma certa forma, Lourenço Mutarelli personifica, em seus heróis, retratos da sociedade contemporânea: o trágico e o burlesco, movido a decepções, fracassos e muita insegurança de um mundo ficcional (ficcional?) totalmente desprovido de elementos éticos e morais. (MUTARELLI, 2001, n. p.)

Ao contrário do romance policial puro, o detetive aqui não goza do melhor dos humores ou otimismo. Não projeta em seu poder de resolver um crime a qualidade de um grande homem. Pelo contrário, vê-se como um perdedor – e os personagens à sua volta não são muito sutis em realçar este fato. O detetive, aqui, vive em conflito com o mundo, que não se deslumbra com a sua sagacidade de raciocínio. Ao contrário, despreza-a e a ironiza. Se os primeiros detetives pós-Dupin, em Agatha Christie e Arthur Conan Doyle, esboçam um pouco mais de humanidade e menos onipotência, a caminhada é

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grande até chegar a um personagem que é, via de regra, um ser humano absolutamente falho em qualquer aspecto – profissional, pessoal, familiar, sexual, etc. Artifícios como referências ao tarô, esoterismo, magia e transcendência auxiliam constantemente a essa negação da dedução racional. A cada passo em falso, veremos que Diomedes se questiona sobre a própria existência da realidade, fragmentando a história em intrincadas percepções da verdade. Se Mutarelli executa essa subversão, e até que nível o faz, é o que a presente pesquisa se propõe a esmiuçar. O que há de inovador e o que há de reverência ao cânone do romance policial na trilogia? O autor se propôs a homenagear um gênero do qual sentia afeição e saudade, como ele mesmo declara em nota no fim de A Soma de Tudo – Parte 1:

(...) resolvi me distanciar um pouco das histórias sempre tão “quase” autobiográficas. Pensei em fazer uma história que eu gostaria de ler. Sentia falta da ação e da aventura tão presentes nos clássicos apresentados pelo meu pai. Sentia falta dos inúmeros livros de romance policial que li em minha adolescência. Sentia falta do tempo em que meu pai era delegado de polícia e levava seus inquéritos para casa. Nós nos sentávamos e discutíamos certos casos. Como a fragilidade humana, como as fraquezas transformavam seres comuns em criminosos. (MUTARELLI, 2001, p. 93)

Em finais do século XX, Lourenço Mutarelli lutou para criar uma obra histórica e estética que servia para relembrar um gênero deixado um pouco de lado por sua geração e por ele mesmo. Nesse processo, contudo, propôs algo que parece condizente com sua época – cínica, anti-heróica, auto-irônica e de humor cáustico. Impôs ali também a sua marca. Em particular sobre o roteiro, mas também igualmente sobre a estética e o ritmo que os desenhos dão à sucessão dos fatos. Antes de se aventurar pela trilogia, o autor já tinha um volume razoável de produções. Além de fanzines e histórias avulsas, havia criado cinco álbuns de histórias em quadrinhos. A estética e temática desses quadrinhos anteriores, bem menos afeitos aos maneirismos das narrativas de ação e aventura, ainda estão lá presentes, de alguma forma? Esse Lourenço da Trilogia, mais palatável, pode deixar no ar uma história tão dolorida quanto as suas anteriores, quase sem fazê-lo notar a princípio.

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Dessa forma, é preciso estabelecer o que caracteriza o conjunto da “trilogia de quatro partes” da obra de Lourenço Mutarelli, no que ela tem de igual e desigual no uso dos elementos presentes no romance policial. Como consequência, é possível representar uma visão da história em quadrinhos moderna sobre os romances policiais. Waldomiro Vergueiro, no livro História em Quadrinhos e serviços de informação, situa os quadrinhos como herdeiros do romance folhetinesco dos séculos XVIII e XIX. Essa arte traz, como os folhetins, ampla aceitação das classes baixas, em contrapartida com as dificuldades de compreensão pelas elites. Vergueiro estende essa influência folhetinesca à literatura de massa, em que inclui os “romances cor-de-rosa”, à ficção científica posterior e, claro, aos romances policiais. Uma vez entendida essa proximidade de origens, parece plausível que gente como Lourenço Mutarelli, ao reaproximar o romance de enigma às graphic novels, esteja fazendo algo que tenha, ao mesmo tempo, sua parcela de subversão e sua parcela de reverência, dando o sopro de vida necessário para que este estilo e temática não morra – ao contrário, se renove. Tzvetan Todorov, ao fixar-se no romance policial em seus estudos sobre estruturas narrativas, descreve a necessidade de adequação a um gênero como uma “lamentável tendência”. Para ele, trata-se de uma visão que remonta à literatura da época clássica, na qual uma literatura era vista como de má qualidade quando não se encaixava suficientemente às regras de um gênero. A galeria de gêneros precedia a criação literária e quem criticava o fazia por não sentir que tal obra se encaixava no gênero.

A grande obra cria, de certo modo, um novo gênero, e ao mesmo tempo transgride as regras até então aceitas. (...) Poder-se-ia dizer que todo grande livro estabelece a existência de dois gêneros, a realidade de duas normas: a do gênero que ele transgride, que dominava a literatura precedente; a do gênero que ele cria. (TODOROV, 2003, p. 93)

A afirmação vem para uma negação em seguida, quando em foco no romance policial. Todorov aponta a existência de um domínio em que esta lógica de dois gêneros, o estabelecido e a subversão dele, se anula. É justamente na literatura de 21


massa, observada com certa dureza por ele. Nesta, a dialética obra-gênero não se aplica com a mesma facilidade.

A obra-prima da literatura de massa é precisamente o livro que melhor se inscreve no seu gênero. O romance policial tem suas normas; fazer melhor do que elas pedem é ao mesmo tempo fazer “pior”: quem quer “embelezar” o romance policial por excelência não é aquele que transgride as regras do gênero, mas o que a elas se adapta. (TODOROV, 2003, p. 94)

O autor de histórias em quadrinhos aqui observado circulou longamente por esses caminhos e teve a pretensão de, para usar termos de Todorov (2003), “embelezar” o gênero como pensou que deveria. No caminho, não alcançou uma margem de vendas monumental, mas é certo que adquiriu um público fiel, que esperou avidamente por aqueles exemplares anuais. Este público foi alcançado mesmo com um personagem que, na definição de Lucimar Mutarelli (2001, n. p.), “tinha tudo para dar errado”. O detetive Diomedes surgiu, a princípio, como coadjuvante na trama, mas tomou a simpatia do quadrinista e do público, que, mesmo após as reviravoltas internas da obra, não se dispersou no interesse por ele.

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2. Romance policial: origem, arquétipos e evoluções

O arquétipo do detetive como figura central de um romance remonta a tempos anteriores à indústria da cultura de massa ou mesmo da própria existência do detetive enquanto profissão regulamentada em boa parte do mundo ocidental. O romance policial moderno, tal qual o conhecemos e partir de onde o denominamos assim, tem seu pontapé inicial na literatura do norte-americano Edgar Allan Poe (18091849). Mas suas origens mais remotas se encontram na literatura popular dos chamados “bons bandidos”. É a tradição dessas histórias de bandoleiros e rebeldes primitivos que eram venerados no mundo ocidental no século XVI. Histórias de homens que, como o mito maior de Robin Hood, saqueavam os mais ricos ou executavam contravenções em prol de um grupo desprovido de bens. De origem humilde, a simpatia do público pelo personagem vem com o início da decadência dos regimes feudais europeus e os primeiros rudimentos do capitalismo. O ato de criar ou lembrar, em texto, a vida desse criminoso serviria como uma declaração de princípios contrária ao poder estabelecido. Esses bandidos sociais são foras da lei, ou assim são encarados pelas classes dominantes, nobreza e mercadores. Em contrapartida, o camponês comum não nutria a mesma desconfiança e corroborava certa mitificação desse personagem. Ernest Mandel, em Delícias do Crime – História Social do Romance Policial, descreve esse personagem da seguinte forma:

Eram, sim, lumpen pré-proletários empobrecidos e assaltantes nômades, cujas qualidades e defeitos eram bastante diversos dos dos membros da burguesia ou dos assalariados. Incorporavam uma rebelião populista, contra o feudalismo e o capitalismo emergente. (MANDEL, 1988, p. 18, grifo do autor)

Nessa tradição, encaixam-se nomes como Til Eulenspiegel, Rinaldo Rinaldini, de Vulpius, Gil Blas e, claro, Robin Hood, o que melhor perdurou na memória coletiva até os dias de hoje. Muniz Sodré, em Teoria da literatura de massa, caminha em descrição semelhante à de Mandel:

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É preciso assinalar a diferença entre a narrativa de detecção e a de crime. A primeira nem sempre implica no cometimento de um delito, podendo cingir-se à elucidação de um mistério qualquer. A segunda, também de origens remotas, define-se pela transgressão de normas jurídicas, estando ligada às aventuras de aventuras ou de salteadores românticos, como Gil Blas e Robin Hood, este último um herói tradicional na Inglaterra muito antes da Era Shakespeariana. (SODRÉ, 1978, p. 106)

Tal premissa de encantamento por esse contraventor rebelde encontrou sua maior força em território espanhol, onde encontrou eco enquanto gênero literário – o romance picaresco. Naquele país, havia também um bandoleirismo aristocrático, em que nobres protagonizavam as histórias e disputavam entre si domínios e poder. No entanto, grosso modo, eram os romances de cordel, pensados para as classes baixas e por elas consumidos, que predominavam:

(...) na história espanhola dos séculos XVI e XVII, assinala-se o desenvolvimento progressivo do bandoleirismo catalão e, no século XIX, do andaluz. Os romances de cordel, as narrativas picarescas refletiam o fenômeno às vezes fazendo o bandoleiro morrer no fim da história (para satisfazer à ética controlada pela Censura Oficial), mas sempre apresentando-o como herói (aliás, o bandoleiro como herói político foi mesmo um tópico do Romantismo). (SODRÉ, 1978, p. 107)

Dessa camada pobre da população, portanto, constituía a maior parte do público dos romances picarescos. A tradição de transformar em herói este personagem como forma de rebelião social não vai se limitar aos livros de cordel, prosseguindo em contos folclóricos, canções e histórias orais transmitidas por gerações a fio. Mandel observa, porém, que o passar do tempo trouxe também simpatias de outras classes a esse herói controverso. O bom bandido era uma expressão de revolta popular e, se nada tinha a ver originalmente com a burguesia que começou a emergir, ao menos esta última compartilhava do mesmo rancor pela nobreza. Dessa forma, parece lógico que os autores burgueses liberais ou revolucionários se identificassem com tal gênero de arte. Mais que isso, parece essencial que eles se apropriassem dessa ferramenta. E assim o fizeram: Cervantes, Fielding, Defoe, Byron, Shelley e Schiller – todos eles oriundos da burguesia – tomaram para si algumas das prerrogativas do 24


romance picaresco e acrescentaram os rudimentos do romance policial. Isso porque, se em regimes feudais mandava a nobreza, sem aparatos de lei constituída, não havia ainda a necessidade do herói policial ou detetive. Em meados do século XVIII e, em especial no século XIX, cresciam em importância os três pilares de onde emergiu o romance policial – as cidades industriais, o crime (e o combate a ele) e a imprensa:

O crescimento do crime nas ruas não podia mais ser ignorado. O aumento da liberdade de imprensa tornou gradativamente impossível suprimir este fato, sendo que alguns setores da burguesia não desejavam, de forma alguma, fazê-lo. (MANDEL, 1988, p. 23)

Se hoje é tido como banal o relato deste crime no jornal diário,

(...) o hábito da leitura cotidiana de jornais pela classe média não é coisa tão velha e imutável assim. Foi no século XIX que surgiram na Europa os jornais populares de grande tiragem, apesar de a imprensa ter surgido em meados do século XIII. Esses jornais, em algumas seções, criam e valorizam o chamado “fato diverso”: dramas individuais, via de regra banais, ou então crimes raros e aparentemente inexplicáveis. O desafio do mistério aliado a um certo prazer mórbido na desgraça alheia e ao sentimento de justiça violada que requer então reparos, são basicamente os elementos geradores da atração e do prazer na leitura deste tipo de narrativa. (REIMÃO, 1983, p. 11)

Na nova urbis industrial, a imprensa se tornava, de fato, um empreendimento comercial e passou a enxergar o potencial de público que tinham estas narrativas. Dessa forma, os primeiros ensaios de narrativas policiais teriam o crime no lugar onde esses jornais e esse público estava: nas grandes cidades, de grandes prédios, calçadas sujas, ruas desertas à noite e superpovoadas durante o dia. Alguns autores importantes caminharam nesta direção. Daniel Defoe (1659 – 1731) tornou ficção a vida do bandido Jack Sheppard. Voltaire escreveu Zadig (1750), apontado por Thomas Narcejac, em Estética do Romance Policial, como o primeiríssimo dos romances detetivescos. Paulo de Medeiros e Albuquerque, em O mundo emocionante do romance policial, analisa com mais calma e vê no protagonista de Zadig mais um rastreador a correr atrás de um culpado do que propriamente um

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investigador. Thomas De Quincey, já em 1827, escreveu Do assassinato como uma das belas artes, um ensaio sobre o prazer de um crime, do relato e da especulação sobre quem o cometeu. Mistérios de Paris (1842), de Eugène Sue, tem um protagonista que luta contra a injustiça e torna-se bandido fugitivo, simultaneamente. De modo não muito diferente do que fez Ponson Du Terrail, criador do popularíssimo personagem Rocambole (1857), um delinquente que flerta com o heroísmo em séries que se prolongaram por mais de dez anos. Outros grandes romancistas trataram do crime na classe média e operária, em nomes que passam por Balzac e Victor Hugo e vão até Dickens e Dostoiévski. Cabe aqui, no entanto, o prosseguimento do raciocínio de Paulo de Medeiros:

Nessa busca de algo novo, podemos dizer que o romance de aventuras se dividiu, embora lentamente, em três fases: a primeira, preservou o mesmo espírito, apenas aumentando seu campo de ação; a segunda, fez surgir o romance de espionagem, que na verdade já existia, porém não rotulado como tal, pois a espionagem era apenas um detalhe e não o centro da intriga, como Milady no romance Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas; e, finalmente, a terceira fase, com o aparecimento do chamado romance policial, onde interveio pela primeira vez, suplantando a força e ação, o raciocínio lógico. (ALBUQUERQUE, 1979, p.3, grifo do autor)

O terceiro pilar chega com a lei e a força de seu cumprimento. Na medida em que, vivendo os dias contemporâneos, nos parece absurdo pensar em um cotidiano sem o relato diário da imprensa, também a ideia da ausência de polícia se apresenta como irreal. A polícia e a justiça, o ato de prender e o ato do inquérito, parece-nos atemporal. Faz pensar que “sempre esteve lá”. Não é bem assim. Na realidade, a polícia moderna surgiu somente no século XIX e, na sua implantação, foi constantemente criticada enquanto autoridade constituída, que faz cumprir a lei determinada:

Se até a Idade Média (com exceção, talvez, do Direito Romano), o crime era considerado como um delito entre indivíduos, que podia ser negociado e senado entre as partes lesadas, depois do surgimento do Poder Judiciário, e da figura do procurador, aos poucos vão se criando, solidificando e divulgando a ideia do crime como uma infração às leis do Estado e a ideia de criminosos como um inimigo público, que pode prejudicar não só os indivíduos diretamente lesados 26


por ele, mas também a sociedade como um todo. (REIMÃO, 1983, p. 14)

Não por acaso, como veremos mais adiante, os detetives mais queridos do grande público serão aqueles que, mesmo trabalhando diletantemente, mais pelo prazer do que por qualquer vínculo trabalhista, chegam às soluções dos crimes antes da polícia. Não raro, ridicularizando-a. Christopher La Farge, no ensaio Mickey Spillane e o seu sangrento martelo toma como exemplo o vigilante Mike Hammer, de Mickey Spillane, um personagem já do século XX, mas que ainda reflete as mesmas desconfianças:

Na essência (mas só na essência), [Mick Hammer] pertence à tradição de Robin Hood: o homem que opera do lado do Bem, mas fora da Autoridade Constituída, ou em conflito com ela; e que, sejam quais forem as suas razões, decide exclusivamente por si mesmo que é o Bom e que é o Mau. (LA FARGE, 1954, p. 210)

O escritor George Orwell, no ensaio Raffles e a Srta. Bladish, trata da mesma relação detetive-polícia, mas usa como exemplo o mítico Sherlock Holmes, de Arthur Conan Doyle:

Sherlock é um amador, que resolve os seus problemas sem a ajuda da polícia e até, nas primeiras histórias, apesar da oposição da polícia. Além disso, ele é essencialmente um intelectual, um cientista até. Raciocina logicamente a partir do fato observado e a sua intelectualidade é posta constantemente em contraste com os métodos rotineiros da polícia. (ORWELL, 1946, p. 191)

E é desse raciocínio lógico, cerebral, que vai partir finalmente o pai do Sherlock Holmes de 1887, ou do Mike Hammer de 1947 - Monsier C. Auguste Dupin, o personagem mais famoso da obra de Edgar Allan Poe e, como será visto a seguir, o arquétipo primeiro do romance policial moderno.

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2.1. O Dupin de Allan Poe Edgar Allan Poe, um escritor norte-americano, apresentou pela primeira vez ao mundo o personagem Auguste Dupin em 1841, na revista Graham´s Magazine, da Filadélfia, Estados Unidos. Nesse período, proliferavam as novelas de folhetim nesse país e em alguns países europeus, em especial França e Inglaterra. Nesse formato, Dupin protagonizou Assassinatos da Rua Morgue (1841), a narrativa policial fundadora do gênero. O personagem voltou a aparecer somente em outras duas histórias: O Mistério de Marie Rogêt (1842) e A Carta Roubada (1844). Criado na Europa, Poe teve contato com os escritos memorialistas do francês Eugène François Vidocq, de 1828. Vidocq conta suas aventuras no mundo do crime em dois contrapontos – antes, como criminoso, e depois, quando detetive integrante da iniciante Polícia Científica. Ao relembrar a guinada real que tomou sua vida, os escritos de Vidocq instintivamente bifurcam os caminhos do que é o ilegal tolerável e o intolerável:

A figura de Vidocq condensava essa ambigüidade: era ao mesmo tempo policial e fora-da-lei. Através dele, as práticas da delinqüência tornaram-se técnica policial. Doravante, o crime será passível de investigação “científica”, de resolução técnica, de elucidação racional. O detetive será campeão da inteligência no domínio dos fatos criminais (...). (SODRÉ, 1978, p. 111)

Poe reconhece em Vidocq uma base inicial que levará seu personagem ao extremo da racionalização. Cabe ressaltar que o período em questão centra-se na segunda metade do século XIX, sob forte influência do pensamento positivista. Esta corrente filosófica, proferida especialmente por John Stuart Mill, encerrava-se, em termos gerais, na crença de que tudo tinha uma fundamentação. Todos os fenômenos são regidos por leis que habitam o mundo natural e o universo humano, comprováveis por experiência e verdades que a ciência pode atestar. João Ribeiro Junior, em O que é positivismo, conceitua o pensamento em duas dimensões:

Passa então o positivismo a dominar o pensamento típico do século XIX, como método e como doutrina. Como método, embasado na certeza rigorosa dos fatos de experiência como fundamento da 28


construção teórica; como doutrina, apresentando-se como revelação da própria ciência, ou seja, não apenas regra por meio da qual a ciência chega a descobrir e prever (isto é, saber para prever e agir), mas conteúdo natural de ordem geral que ela mostra junto com os fatos particulares, como caráter universal da realidade, como significado geral da mecânica e da dinâmica do universo. (RIBEIRO, 1982, p. 14)

O homem que consegue estabelecer o raciocínio nestes termos de mecânica psicológica intensa sairá na frente no entendimento do mundo. São tempos de fenômenos objetivos, de causa e consequência marcantes:

Aqui encontramos outra tradição do romance policial: um mistério desvendado por obra da inteligência, através de uma operação intelectual. Esse feito é realizado por um homem muito inteligente, que se chama Dupin; que se chamará, depois, Sherlock Holmes; que se chamará, mais tarde, Padre Brown; que terá outros nomes famosos, sem dúvida. O primeiro de todos eles, o modelo, o arquétipo, é o cavalheiro Charles Auguste Dupin. (BORGES, 1978, p. 35)

Esse pensamento vigente influencia a criação artística da época e atinge a escrita de Edgar Allan Poe. Sob essa força positivista, a ficção que ele irá criar não mais obedece aos termos de criatividade, inspiração ou fantasia. Pelo contrário, atinge seu começo, meio e fim por meio de uma equação que soma ficção, raciocínio e lógica. Dupin não narra suas histórias em primeira pessoa, fato que será recorrente nos romances que ele influenciará. Quem o faz é um amigo, uma espécie de assistente, que relata perplexo tudo que é pensado pelo amigo. “Amigo”, aqui, deve vir entre aspas, porque o protagonista não parece ter nenhum tipo de relação afetiva com quem quer que seja. Auguste Dupin é, em última análise, uma ferramenta de dedução. Nem de longe um homem dado a afetos ou distrações. Ao analisar cada caso - cujo quebracabeça inclui assassinatos, roubos, suspeitos, pistas, vestígios, discursos -, ele trata os personagens da trama como meras peças de um tabuleiro. Por consequência, está imune aos acontecimentos. Ouve depoimentos de múltiplas fontes, sabe de tudo de modo natural e, do alto de seu poder de dedução alheio à rotina dos envolvidos, resolve os casos sem qualquer contato empírico ou possível perigo a ser infligido para si:

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Poe acredita que nada, no ato de criar literatura, pode ser atribuído ao acaso, mas que tudo caminha rigorosamente para a solução desejada. (...) Por aqui se vê que a valorização do rigor lógico não é apenas aplicada por Poe no método de investigação de seu personagem Dupin, mas, sim, é aplicada por Poe no seu próprio ato de construção de um texto. Elaborar uma narrativa é, no limite, para Poe, um teste e um exercício dos pressupostos e das crenças do Positivismo. (REIMÃO, 1983, p. 18)

Uma vez encerrada sua dedução, o imune Dupin revela o criminoso e como o crime se deu. E o faz para uma dupla ou até tripla plateia: o delegado de polícia, que via o caso como inexplicável; o narrador da história – ou a figura do “amigo” citada acima - que o acompanhou o tempo todo, mas não soube perceber as mesmas pistas ou o significado delas; e o leitor médio, que também não poderia preencher todas as lacunas. Aqui, portanto, narrador e leitor se igualam em mediocridade. Ou, ao menos, em normalidade. Afinal, são homens comuns, não máquinas de dedução. De modo semelhante, o delegado comum, policial de classe social mais humilde, não poderia se tornar herói. Lembremos que, a partir do processo de amadurecimento do capitalismo e da indústria, o romancista passou a ser um burguês. E, como tal, não poderia transformar um homem comum em herói. Assim, o arquétipo do detetive no romance policial criado por Allan Poe é um diletante, com algumas posses financeiras e dono de um intelecto brilhante. Este aspecto do detetive imune e superior não vem apenas como um recurso narrativo que se encerra dentro do texto. Aqui, Allan Poe aponta para a crença de que a narração de um caso de aventura e crime não pode ser destinada às classes inferiores, como o eram os romances de cordel, as histórias picarescas e toda a influência precedente. Agora, o crime é um jogo intelectual e, como tal, deve ser jogado por quem pode jogá-lo:

O importante a se destacar é que, colocado sob o primado da Estética, o crime deixa de ser assunto tratado a partir de fontes populares. Isto é, troca o cordel pela literatura de massa, produzida pela indústria cultural nascente. Na literatura de massa, o crime tem outro tipo de grandeza: a sua característica de “belas-artes”. A partir de Edgar Allan Poe, com o detetive Dupin, a narrativa policial procura demonstrar que o crime é assunto por demais complexo para que sua glória possa ser canalizada para a cultura rústico-plebéia das camadas baixas da população. O crime é agora um jogo para cérebros privilegiados – seja o do criminoso, seja o do detetive. (SODRÉ, 1978, p. 113, grifo do autor) 30


2.2. Os filhos da dedução Embora pedra fundamental do gênero, não foi com Edgar Allan Poe e Auguste Dupin que o romance policial teve seu auge de alcance de público. Recriado, parodiado, imitado e adaptado para outras artes, ninguém tira de Sherlock Holmes, criação do inglês Arthur Conan Doyle, o título de maior detetive de todos os tempos. O personagem, como era característico em Dupin e nos grandes detetives, não pôde durar uma só história. Teve, pelo contrário, vida longa em quatro romances e cinco livros de contos, publicados entre 1887 e 1927. Doyle escreveu outras narrativas, aventuras, viagens, e chegou até a tentar aniquilar seu maior personagem, mas não foi capaz. Teve que voltar a Holmes. Foi o personagem e a difusão que ele teve na indústria cultural que fixou o romance policial enquanto gênero:

A ficção policial firmou-se como gênero próprio em fins do século passado, com o aparecimento de Sherlock Holmes. Por maiores especulações que se façam em torno de outras personagens anteriores, a verdade é que o gênero não existia antes. Havia, quando muito, estórias que envolviam policiais, profissionais ou amadores, mais diletantes, ou então estórias de crimes que eram resolvidos por uma das personagens das mesmas. O gênero foi reconhecido com Sherlock Holmes e seu Auxiliar, o Dr. Watson. (ALBUQUERQUE, 1979, p. 43, grifo do autor)

O livro Um estudo em vermelho (1887), em que Holmes aparece pela primeira vez, começa com Dr. Watson narrando o primeiro encontro com o detetive. Um amigo em comum o descreve: “É versado em anatomia e química, inteligente, mas excêntrico e misterioso. Científico demais, quase insensível”. Ao se conhecerem, Holmes faz uma inacreditável descrição do futuro amigo, fazendo deduções impressionantes a partir de pequenos dados. Daí em diante, Watson toma nota de todos os raciocínios de Sherlock – a princípio intrigado e, depois, maravilhado. Pronto: estão aí, logo nas primeiras páginas do romance, os termos essenciais de Poe aplicados em Doyle. Primeiramente, o narrador continua sendo o amigo, interlocutor e admirador do detetive protagonista. Ele narra perplexo e, como no narrador companheiro de Dupin, não chegará jamais à solução antes do parceiro. “Parceiro” em termos. Na verdade, Watson, junto ao leitor, é uma espécie de primeiro público das façanhas de Sherlock. Formato este que se repete nos próximos momentos 31


do gênero – há o Capitão Hastings para Hercule Poirot, ou Archie Goodwin para Nero Wolfe, entre outros exemplos. Outro ponto é justamente esse fascínio pela dedução, que se repete no personagem de Doyle. Na construção do personagem e na base da trama, o autor aplica o mesmo raciocínio positivista, utilitarista ao extremo. “Todo o conhecimento que adquiria era somente para o que julgava útil”, descreve novamente Dr. Watson. Em relação a Dupin, Sherlock traz de novidade apenas o início, ainda que tímido, de humanização do sujeito que vive de resolver enigmas. Holmes é mais artificioso, por assim dizer. Tem personalidade, emite valores sobre si e sobre os personagens à sua volta. Vaidoso, gosta de exibir suas capacidades excepcionais e, se zomba da polícia, de Watson ou, em última análise, do leitor, o faz propositalmente. O personagem de Poe chegava também a ridicularizar o poder de raciocínio dos oficiais de justiça, mas o fazia quase sem querer, impessoalmente. Holmes, ao contrário, demonstra prazer ao fazê-lo:

Se Dupin não existia enquanto personagem, mas apenas enquanto detetive, enquanto máquina de raciocínio, Holmes, além de ser, enquanto detetive, uma máquina dedutiva a elaborar equações, nem por isso abdica de ter personalidade própria. Ao lado de Holmes detetive, é justaposto, agregado, Holmes, o homem. Enquanto homem, Holmes tem hábitos pouco aceitos socialmente quanto à morfina e à cocaína, adora tocar violino enquanto medita, e é uma pessoa que se entendia profundamente com o ócio. (REIMÃO, 1983, p. 37)

Essas últimas características apontadas por Sandra Lúcia Reimão, como tantas outras também dignas de nota, somam-se ao imaginário daquilo que, páginas atrás, foi descrito como “manias” ou “tiques”. É a esses artifícios de personalidade que a autora credita a popularidade e grande aceitação do público. Mais humano, Sherlock Holmes se torna um pouco mais próximo do leitor do que Auguste Dupin. Alcança um carisma que este último não chegou a alcançar. Outra que se assemelha em estética a Poe, e em aceitação de público a Doyle, é a escritora inglesa Agatha Christie (1891 – 1976). Dona de vasta obra, Christie dedicou sua produção ao romance policial e, em mais de 30 romances e dezenas de contos, inseriu o belga Hercule Poirot como protagonista. Este não foge em nada do romance de enigma, cuja resolução é feita pelo raciocínio e contada em terceira pessoa 32


por um companheiro quase sempre presente. Hastings e Poirot vivem uma relação de admiração do primeiro pelo segundo, cuja vaidade é indisfarçável. Na linha evolutiva, tende a aumentar a humanização na medida em que:

Poirot não é tão neutro emocionalmente em relação aos personagens das narrativas quanto já vimos ser Holmes; ele atenta mais para o que os indícios psicológicos de um personagem podem revelar em termos de sua personalidade, seu tipo de atuação, etc, para assim melhor construir suas equações mentais. (REIMÃO, 1983, p. 45)

Tanto a filosofia positivista quanto o primeiríssimo momento do romance policial não reconheciam a imprevisibilidade do humano. A partir desse ponto cronológico, o gênero ganha em complexidade psicológica, por parte do investigador do crime e do autor do crime, e deixa de ser um simples jogo intelectual de desenrolar enigmas.

2.3. Romance negro Um segundo tipo de romance policial surge nos Estados Unidos, na primeira metade do século XX, trazendo consigo sinais de seu próprio tempo. O romance noir – também nomeado romance negro, romance da Série Negra ou simplesmente romance americano – tem seus maiores expoentes em Dashiell Hammett (1849 – 1961) e Raymond Chandler (1888 – 1959). Cabe também citar como importantes as obras do belga Georges Simenon, o canadense Ross Macdonald e o francês Léon Mallet. A gênese foi dada na revista Black Mask, criada em 1920. Como em Poe, foi em uma publicação folhetinesca, uma típica revista pulp, de baixo custo de produção e preços acessíveis ao grande público, que Hammett publicou suas primeiras histórias. A denominação, porém, vem da coleção de sucesso “Série Noir”, série de publicações na França dos anos 1940. Sandra Lúcia Reimão cita uma introdução que aparecia nas primeiras edições da série, escrita pelo editor Marcel Duhamell e aqui reproduzida:

O leitor desprevenido que se acautele: os volumes da Série Noir não podem, sem perigo, estar em todas as mãos. O amante de enigmas à Sherlock Holmes aí não encontrará nada a seu gosto. O otimismo sistemático tampouco. (...) O espírito raramente é conformista. Aí 33


vemos policiais mais corrompidos do que os malfeitores que perseguem. O detetive simpático não resolve sempre o mistério. Algumas vezes, nem há mistério. E até mesmo, outras vezes, nem detetive. E então? (DUHAMELL apud REIMÃO, 1983, p. 53)

Uma declaração de princípios forte e provocadora, portanto, mas que encontra mesmo eco nas obras publicadas. O protagonista que percorre os livros de Hammett é Sam Spade, que se apresenta como um detetive profissional e não mais a diletante contraparte do romance policial puro. Sujeito de personalidade rude, vulgar e pouco elegante, Spade recebe uma carga que Dupin e seus primeiros seguidores não carrega – brutalidade, ódios e paixões controversas. Ainda que personagens como Poirot e Sherlock gozassem de alguma humanidade, é em Sam Spade que essa humanidade baterá aos moldes do novo tempo. Época essa, a partir do fim dos anos 20 até os anos 40, que pedia alguma catarse a um público carente, abatido pela situação sócio-econômica – crise de 1929 nos Estados Unidos e pré-Segunda Guerra Mundial. Além disso, o positivismo caía em desuso e linhas de pensamento como a psicanálise e existencialismo ganhavam força. Assim, o Spade de Hammett, bem como o personagem Philip Marlowe, de Chandler, não podem gozar do poder de máquina que o romance de enigma apresentava. Se Dupin, Poirot e Sherlock são assexuados, os homens do romance americano vivem cercados de mulheres. Se antes o distanciamento do detetive com o crime se dava apenas analiticamente e não empiricamente, esses novos protagonistas serão, eles próprios, desencadeantes de ações. Não estão mais imunes e mostram-se passíveis de não serem mais o arauto da separação entre bem e mal, herói e vilão. Não raro, essa não imunização no romance noir passa também pela incapacidade de conclusão do caso. A conclusão dos casos por parte do investigador já não é mais inquestionável:

As perturbações econômicas e sociais na América fazem-se acompanhar do recrudescimento do gangsterismo e da corrupção generalizada, à qual não escapam a Justiça e a Polícia. O romance policial de Dashiell Hammett toma como ponto de partida essa atmosfera de degradação institucional para encenar a ação de um herói amargo (em geral, um detetive particular ou um jornalista), que termina suas aventuras com um sentimento de derrota e desesperança. Aí não se trata de apenas descobrir o criminoso, mas principalmente 34


de saber se haverá possibilidade de fazer justiça, de se restaurar a moralidade ou a ética perdidas. (SODRÉ, 1978, p. 115)

Mandel acrescenta ainda a condição empregatícia dos protagonistas:

Este detetive particular duro, cínico e sentimental perseguirá os criminosos através de obstinados interrogatórios e mudanças constantes de cenário, e não através de análise de pistas e da encadeada motivação analítica. (...) Está ligada a outra mudança: os calejados detetives particulares, embora ainda sejam individualistas par excellence, não são mais excêntricos ou ricos diletantes; são profissionais da investigação e vivem disso. (MANDELL, 1988, p. 65)

O próprio Raymond Chandler, em seu ensaio A Simples Arte de Matar, calcula, com certo romantismo na descrição, essa relação mais completa do detetive com o mundo:

Por essas ruas sórdidas, deve passar um homem que não tem mácula ou medo. O detetive deste gênero de história deve ser assim. É o herói, é tudo. Deve ser um homem completo e um homem normal e também um homem extraordinário. Deve ser, para empregar um lugar comum, um homem honrado por instinto, por inevitabilidade, sem se preocupar com isso e certamente sem fazer qualquer alusão a isso. (CHANDLER, 2009, p. 124)

Para garantir esse estranhamento em relação ao romance policial puro e a velocidade necessária para esse novo público de tempos mais modernos, os escritores do romance negro eliminam em boa parte das obras a figura do “fiel companheiro narrador”. Ao fazê-lo, trazem agilidade e embaralhamento de fatos à técnica narrativa. No romance policial do fim do século XIX, envolto na resolução de um enigma, a presença do amigo que narra garante uma organização básica, em que existe o acontecimento do crime e o acontecimento da dedução em torno do crime. Tzvetan Todorov analisa a existência de duas histórias dentro do romance de enigma clássico, que ele nomeia como “história do crime” e a “história do inquérito”. A primeira é virtualmente ausente, mas real. Quando o livro começa, ela já aconteceu e é apenas relembrada e pormenorizada. Contém um criminoso, uma ou mais vítimas e a 35


ação do crime. A segunda história consiste no conteúdo inteiro do romance, quando o protagonista toma nota do acontecido e desvenda aos poucos, perante o narradorpersonagem e o leitor, o que aconteceu na primeira história e qual desfecho irá tomar. Nesta segunda, o cânone do romance policial ensina que o detetive não faz nada, mas observa e desvenda uma ação já consumada. Uma vez eliminada essa figura do narrador-auxiliar, espaços são deixados na narrativa para que o leitor complete como bem entender. Também a objetividade das descrições nas narrativas como as de Chandler e Hammett forçam o leitor à participação mais efetiva:

O romance negro é um romance que funde as duas histórias ou, por outras palavras, suprime a primeira e dá vida à segunda. Não é mais um crime anterior ao momento da narrativa que se conta, a narrativa coincide com a ação. Nenhum romance negro é apresentado sob a forma de memórias: não há ponto de chegada a partir do qual o narrador abranja os acontecimentos passados, não sabemos sequer se ele chegará vivo ao fim da história. A prospecção substitui a retrospecção. (TODOROV, 2003, p. 97)

Dessa forma, o romance noir reescreveu a história do romance policial de modo a abrir espaço às histórias cada vez mais frenéticas e violentas ao longo das décadas que se seguiram. E mais livres também, menos esquemáticas, como eram esquemáticos os detetives protagonistas. Não há mais o adivinhar ou deduzir o enigma. Não há sequer o enigma tal como antes. Mas o leitor segue com a atenção presa a essas publicações.

Esse tipo de interesse era inconcebível no romance de enigma, pois suas personagens principais (o detetive e seu amigo, o narrador) eram, por definição, imunes: nada podia acontecer-lhes. A situação se inverte no romance negro: tudo é possível, e o detetive arrisca sua saúde, senão sua vida. (...) O romance negro moderno constitui-se não em torno de personagens e costumes particulares; por outras palavras, sua característica constitutiva são seus temas. (TODOROV, 2003, p. 98)

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O autor pode prendê-lo ao livro com uma narrativa que vai do efeito à causa (a partir da constatação de um crime, encontrar a causa dele) ou da causa ao efeito (a partir de um crime prestes a ser realizado, podem surgir desdobramentos de violência e morte).

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3. Quadrinhos: gênese, desenvolvimento e constituição enquanto arte

Estabelecidos os arquétipos, origens e evoluções do que é o romance policial enquanto gênero literário, é cabível se concentrar nos quadrinhos. Parece justo e necessário, uma vez que o objeto de estudos aqui é uma obra que se apresentou ao público como uma versão “dos inúmeros livros de romance policial que li em minha adolescência”, como disse o próprio Lourenço Mutarelli em depoimento supracitado. Contudo, trata-se de uma história em quadrinhos. Nesse capítulo, curiosamente, cabe um início semelhante ao que o antecede. Isso porque, se naquele capítulo era imprescindível estabelecer o gênero literário romance policial como típico da chamada cultura de massa, a forma de arte tratada aqui não se estabelece sob bases tão diferentes assim:

Para entender a trajetória de sucessos das histórias em quadrinhos e o discurso de seus críticos, devemos ter em mente que esse gênero é típico da cultura de massa. Isso significa que ele existe como uma forma de produção cultural organizada sobre bases industriais para conseguir atingir uma grande quantidade de leitores, sendo assimilado por esses como um produto de consumo habitual e também como uma referência cultural comum a milhares, às vezes milhões, de pessoas. (...) Essa sociedade tão grande, formada por tantas pessoas, tão heterogênea e complexa, acabou gerando códigos e regras próprios. Dentre essas regras, uma nova para os produtores de cultura chamada mercado: muitos artistas profissionais passariam a criar para vender entretenimento ao grande público. (FEIJÓ, 1997, p. 10)

Nadilson Manuel da Silva, em Fantasias e cotidiano nas histórias em quadrinhos, também observa essa identidade nas HQs:

As histórias em quadrinhos trazem consigo uma marca bem forte, que é o fato de serem um produto com identidade de cultura de massa. Essa característica traz várias implicações para o seu entendimento, tais como o tipo de relação que mantêm com seu público, seu processo de produção, distribuição, consumo, fruição. É a partir desse parâmetro de cultura de massa que os quadrinhos devem ser compreendidos em nossa sociedade. (SILVA, 2002, p. 11)

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Se a literatura de massa chega abarcando um princípio de popularização da alfabetização junto às classes sociais mais baixas, hábito esse ainda em formação na época, as histórias em quadrinhos aportam nos jornais diários em pleno funcionamento dessa nova lógica de público leitor:

De uma certa forma, as histórias em quadrinhos podem ser vistas como as herdeiras diretas dos romances folhetinescos dos séculos 18 e 19: inicialmente voltados para o consumo e entretenimento das classes de menores níveis culturais, ambos sofreram o mesmo tipo de resistência por parte das elites letradas de sua época. Neste sentido, não se diferenciam de meios de comunicação como a televisão ou o cinema. Ou, ainda, destas modalidades de literatura voltadas e consumidas pela população em geral, hoje genericamente conhecidas como literatura de massa, entre as quais costumam ser incluídos os livros de ficção científica, as histórias policiais, os romances cor-derosa e grande parte dos best-sellers (...) (VERGUEIRO, 2005, p. 3)

Situando-se no tempo, estamos na segunda metade do século XIX e início do século XX. O escritor de épocas anteriores estava atrelado pessoalmente às classes mais altas – à aristocracia ou à burguesia. Tinha a sombra especialmente dessa última em mente e sabia que o resultado final de sua obra devia-se em muito a esta relação. Esse novo artista que surge, uma vez se inserindo na informação da era industrial e capitalista, passa a abranger esse nicho burguês e outros públicos. Em última análise, não parece exagero afirmar que abrange todos os públicos. Tudo isso, através da intrínseca relação que estabelece com os jornais diários. Obras abertas, as histórias dos folhetins seguiam uma lógica de entretenimento e mercado. Se eram consideradas boas pelo público, perduravam até o limite. Eram estendidas, ganhavam continuações enquanto se garantisse o interesse junto ao leitor. Por vezes, ultrapassavam os limites dos jornais ou revistas e tornavam-se livros, em volumes que compilavam os capítulos originalmente publicados nos periódicos. Marlyse Meyer, em Folhetim – Uma história (1996), estabelece como “declaradamente frívolo” este meio de narrar histórias, espécie de refúgio “aos leitores afugentados pela modorra cinza a que obrigava a forte censura”, também na definição da autora, que complementa a descrição da seguinte forma:

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De início, ou seja, começos do século XIX, lefeuilleton designa um lugar preciso do jornal: o rez-de-chaussée – rés-do-chão, rodapé -, geralmente o da primeira página. Tinha uma finalidade precisa: era um espaço vazio destinado ao entretenimento. (...) Torna-se tão importante esse espaço da liberdade e da recreação que, ao lançarem depois da revolução burguesa de 1830 as bases da moderna revolução jornalística, Émile de Girardin e seu ex-sócio e pirateador, Dutacq, logo perceberam as vantagens financeiras que dele tirariam. Deram ao folhetim o lugar de honra do jornal (...) (MEYER, 1996, p. 57)

Tal foi o sucesso que, ao longo das décadas, o romance-folhetim por vezes devorou seu próprio veículo. Os editores cediam aos autores folhetinescos alguma credibilidade ao guardar para eles algum espaço em seu jornal. Com o tempo, “este passa a viver em função do romance” (MEYER, 1996). Em analogia – e sob um salto cronológico que se faz necessário - a história em quadrinhos moderna goza das mesmas declarações de princípios elementares: íntima relação com a indústria cultural e capitalismo latente, forte jogo de feedback entre a criação do autor e a resposta do leitor, grande apelo junto a jornais e revistas, sucesso editorial que por vezes salta para fora do próprio veículo e universalidade de linguagem que resulta em universalidade de público. Quase tanto quanto os folhetins, as narrativas ilustradas, inicialmente cômicas, preenchiam um importante espaço nos periódicos em função da abrangência de alcance. Na obra de Diamantino da Silva, Quadrinho para quadrados, uma das pioneiras em esmiuçar tal arte no Brasil, já se nota um esforço de entendimento massivo das HQs:

As melhores histórias em quadrinhos têm todas uma qualidade em comum, a universalidade. Saliente-se ainda que poucas pessoas por trás dessas histórias vêm da classe educada nas universidades, sendo em sua maioria homens simples e comuns, dotados de humor e percepção. (SILVA, 1976, p. 14)

O autor cita ainda um exemplo de devoção pela conquista de leitores. À época, o diretor do periódico brasileiro A Noite entendeu a implantação dos quadrinhos em suas páginas como uma infantilização do seu conteúdo. Preferiu seguir tendo como referência o norte-americano The New York Times, que naquele período também entendia que a adoção dos quadrinhos seria um descrédito para o jornal. “Pois bem”,

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conclui Diamantino (1976), “A Noite já fechou há muitos anos, enquanto O Globo, que a elas [as HQs] dedica diariamente duas páginas, cresceu e superou os concorrentes”. Em 1937, o suplemento Globo Juvenil apareceu pela primeira vez no periódico carioca e, em dois anos, liderava o mercado de publicações juvenis no país e desencadeou, junto à revista Gibi e alguns poucos predecessores, o aparecimento dos primeiros comic books brasileiros, formato de revistas periódicas que privilegiavam a narração de histórias mais longas, por vezes compilando em volumes os capítulos antes dispostos nos jornais diários – prática essa, cabe lembrar, bem semelhante à literatura folhetinesca que triunfava junto ao público. Aliás, se posto em perspectiva, o comportamento editorial nos quadrinhos descrito por Diamantino Silva, não parece diferir muito daqueles periódicos franceses citados por Marlyse Meyer, ainda que entre um e outro possa ter corrido praticamente um século. Não por acaso, ainda hoje perdura essa troca entre jornais e quadrinhos. Edgar Silveira Franco, em estudo de suportes das narrativas sequênciais, lista onze diferentes manifestações midiáticas que envolvem os quadrinhos em papel e que ainda perduram. Entre elas, constam as mais modernas, que envolvem computadores, cd-roms e internet. Nada, no entanto, que o impeça de citar aqueles mesmos suportes com que começaram a ser publicadas as primeiras histórias em quadrinhos. Franco os descreve da seguinte maneira:

A Página Dominical – Esta é a primeira forma de publicação das HQs modernas, antecedendo até a tira. No início do século XX, diversos jornais americanos passaram a incluir em seus suplementos dominicais algumas páginas de quadrinhos. Geralmente, os autores dispunham de uma única página para desenvolver a HQ completa ou um capítulo desta. Little Nemo In Slumberland, de Winsor MacCay, foi uma das HQs que ganhou notoriedade nesse formato. A Tira de Jornal – Também foi uma das primeiras formas de veiculação das HQs modernas, nasceu no início do século XX nos Estados Unidos e até hoje é muito popular em jornais do mundo todo. (...) É caracterizada pelo formato horizontal composto por apenas uma coluna de quadrinhos enfileirados. Na maior parte das vezes, o número de quadrinhos ou vinhetas fica entre 2 e 4, mas pode variar em alguns casos. Publicadas em preto-e-branco ou em cores, podem 41


conter uma narração completa ou seriada com periodicidade variada, geralmente sendo diárias (dailystrips) ou semanais. (FRANCO, 2004, p. 36)

Assim, ao longo das décadas, vai se desenvolver a arte das narrativas gráficas, que passará a abranger formatos, suportes, estéticas e temáticas que extrapolarão essa fórmula inicial em infinitas direções, como arte constituída que será. A esse ponto inicial, porém, é preciso sempre recorrer, para entender as histórias em quadrinhos enquanto linguagem, os elementos que as constituem desde o início e o vocabulário específico que fez surgir.

3.1. Passado e chegada à modernidade Chegar aos rudimentos das histórias em quadrinhos na humanidade não é tarefa fácil. Se, como definiu Antonio Cagnin (1975, p. 25), após rondar o assunto por vários ângulos, “a história em quadrinhos é um sistema narrativo formado por dois códigos de signos gráficos: a imagem, obtida pelo desenho, e a linguagem escrita”, então existe uma questão maior do que se pode agarrar nesse estudo. Afinal, o ser humano faz uso de signos desde sempre. Pelas paredes, manuscritos, telas e todo suporte imaginável, acomete-se da necessidade de representar de forma gráfica algo que vê na sua frente ou pensa em sua fantasia. Não é difícil imaginar, portanto, por quantas vezes imagem e palavra se uniram nessa representação. Scott McCloud procura enumerar alguns destes momentos no tempo. Nesse esforço, esbarra em várias proximidades: vai ao período pré-colombiano, no século XVI, em que uma tela colorida que retrata momento político-militar; retrocede a 1066, em que uma peça de tapeçaria de 70 metros conta uma conquista também militar; passa também por hieróglifos egípcios, pintura grega e arabescos japoneses. De acordo com o autor, todos estes momentos, à sua maneira, obtiveram formas de narrativas pelo uso de imagens, mas esbarram em outras que o diferem. A forma de ler e escrever, bem como os objetivos dessa mesma leitura e escrita, tende a caminhar em direções diversas, o que dificulta a aproximação com a história em quadrinhos moderna. Edgard Guimarães, em Estudos sobre história em quadrinhos, compila momentos históricos semelhantes aos apontados por McCloud, mas pondera: Primeiro, é difícil separar o caráter estético do caráter pragmático dessas manifestações. Por exemplo, as pinturas nos vasilhames de 42


barro podiam ter uma função puramente de decoração, ou ser somente um modo de identificar o proprietário. No entanto, é razoável considerar que mesmo em manifestações predominantemente práticas, como a manufatura de flechas ou cestos, pudesse haver um componente de expressão artística. E desse modo o sentimento estético humano foi se desenvolvendo. As gravuras rupestres, encontradas em cavernas e feitas há cerca de 40 mil anos, certamente têm um caráter fortemente prático como ferramenta de comunicação e ensino entre os membros de um grupo, mas é inegável que têm também um caráter de expressão artística. (GUIMARÃES, 2010, p. 26)

Entre aproximações e distanciamentos, os autores preferem cessar as divagações para, de forma sincera, finalizar: é impossível concluir com exatidão onde nasceram os ancestrais da arte sequêncial. Mais que isso, McCloud evidencia que é de bom senso começarmos de onde parou o tópico anterior: o aparato da imprensa, com todo o alcance e universalidade que dispunha:

Eu não tenho a mínima ideia de onde ou quando as histórias em quadrinhos começaram, (...) mas há um evento que é tão marcante na história dos quadrinhos quanto na história da palavra escrita: a invenção da imprensa. Com a invenção da imprensa, a forma de arte que servia aos ricos e poderosos agora poderia ser desfrutada por todos! (McCloud, 1994, p. 15)

Waldomiro Vergueiro segue enfoque cronológico semelhante:

Como linguagem gráfica, as histórias em quadrinhos existem praticamente desde o início da história do homem, quando os nossos ancestrais, por meio de desenhos canhestros, contavam graficamente, nas paredes das cavernas em que habitavam, as peripécias de suas caçadas ou refletiam sobre o seu cotidiano. Como meio de comunicação de massa, pode-se dizer que os quadrinhos existem há mais de um século, florescendo vertiginosamente na imprensa sensacionalista norte-americana de finais do século 19. (VERGUEIRO, 2005, p. 1)

O enfoque aqui é justamente a partir desse limiar, quando a narrativa gráfica ganha ares de comunicação de massa. Nesse sentido, foi fundamental a presença do 43


alemão Rodolphe Töpffer, que em meados do século XIX, adotou um traço caricatural que buscava gozar a alta sociedade da época. Para tanto, já adotava a separação física entre quadros, além de associar imagem e palavra pela primeira vez nos periódicos europeus. Ainda não havia o recurso do balão, mas as sentenças escritas pelo autor abaixo das ilustrações organizavam e explicavam as situações dos personagens. Um relato do próprio artista, citado por Alberto de Moya (TÖPFFER, 1837, apud MOYA, 1987, p. 9) em História das histórias em quadrinhos, evidencia a especificidade da linguagem nascente: “Os desenhos, sem este texto, teriam um significado obscuro, o texto, sem o desenho, nada significaria. O todo, junto, forma uma espécie de romance, um livro que, falando diretamente aos olhos, se exprime pela representação”. A ele se seguiu, em importância para o desenvolvimento da linguagem, a figura do Yellow Kid, um “moleque amarelo” criado por Richard Outcault em 1895 para o jornal estadunidense New York World. Em um grande desenho, criado sem recurso de requadros, o garoto também não fazia uso de balões, mas “falava” por mensagens cômicas e irônicas escritas em sua camiseta. Nasceu, portanto, como arquétipo primeiro das chamadas comic strips - as populares “tirinhas”, no Brasil. Antonio Luiz Cagnin questiona o pioneirismo de Outcault, citando inclusive o ítalobrasileiro Ângelo Agostini como um dos precursores do formato, mas admite que Yellow Kid ganhou o status de pontapé inicial pela representatividade que ganhou enquanto comunicação de massa. Para ele, o que não se pode negar

(...) é que o Yellow Kid tenha sido um primeiro sucesso empresarial sem precedentes, de venda e merchandise, na imprensa americana e no mundo. Bem depressa haviam descoberto os pragmáticos ianques o óbvio, quadrinhos vendiam jornais, e passaram a povoar os periódicos com daily comic strips e as sunday comic pages, passando mais tarde aos comic books (CAGNIN, 1997, p. 25, grifo do autor)

Outros grandes personagens vieram na sequência, como é o caso de Buster Brown (também de Outcault), Os Sobrinhos do Capitão (de Rudolph Dirks), Krazy Kat (George Herriman) e Little Nemo (Winsor McCay). Exceto este último, que caminhava por um universo onírico e nonsense dos sonhos de uma criança, todos os outros seguiam temáticas cômicas e suporte em páginas de jornal. Eram as chamadas kid strips, protagonizadas por crianças e a elas direcionadas enquanto público consumidor. No 44


Brasil, já em 1905, surgia a Tico-Tico, marco editorial que inaugurou a busca pelo universo infantil no país. Nela, alcançava sucesso o personagem Chiquinho, que nada mais era que um decalque de Buster Brown, cuja publicação havia sido cancelada nos Estado Unidos, mas “continuava” no Brasil, sob a tutela de artistas brasileiros. O TicoTico abriu espaço também para que outros artistas nacionais mostrassem trabalho próprio em suas páginas.

3.2. Das inovações trazidas pela aventura O tal pontapé estava dado por estes artistas do limiar do novo século e estava intrinsecamente ligado ao universo infantil. O novo mercado de comic books buscou este consumidor e estigmatizou – para sempre? – a história em quadrinhos como “leitura de garotos”. Um tipo de arte genérica, de material pouco atrativo para quem busca uma “leitura séria”. Visão restritiva, sobre a qual convém citar o raciocínio de McCloud quanto à confusão entre o que é, na definição dele, “mensagem” e “mensageiro”2. Nas histórias em quadrinhos, mais que em qualquer arte, a relação automática entre material produzido e seu consequente público alvo é tão grande que se tende a confundir forma com o conteúdo. Faz-se necessário o entendimento dos quadrinhos como forma/meio de expressão, arte que abarca ideias de diversidades infinitas através de aspectos gráficos e verbais. Duas ou mais imagens, justapostas em sequência, dão vida a uma narrativa de vocabulário próprio. Dessa forma, a arte dos quadrinhos equivale às outras (literatura, teatro, música, cinema, etc) enquanto mensageiro, na definição de McCloud (1994). A mensagem, por sua vez, é “qualquer coisa”, por assim dizer. É tudo aquilo que os autores quiserem expressar. Como um pintor, por exemplo, preenche uma tela em branco com o conteúdo que lhe convém, sob influência das escolas que para ele interessam, o mesmo vale para o artista que produz histórias em quadrinhos. Para serem entendidos dessa forma, artistas e editores empregaram uma variação estética imensa, proporcionada também pela variação mercadológica, que começou a surgir com mais força apenas no fim dos anos 1920. O artigo As histórias em quadrinhos e suas tribos, escrito em

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MCLOUD, 1994, p. 6

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conjunto por Gazy Andraus, Waldomiro Vergueiro, Valéria Bari e Roberto Elísio dos Santos, pondera a respeito dessa expansão e os frutos atuais que proporcionou:

Para a sociedade em geral, os quadrinhos são direcionados para a grande população infantil, veiculando mensagens que devem adequarse às características dessa clientela (quando, por um motivo ou outro, fugiram disso, ocorreram reações por parte da sociedade, visando colocá-los novamente nos devidos trilhos...). Mesmo hoje, com um século de disseminação global das histórias em quadrinhos, grande parte da sociedade (inclusive no âmbito acadêmico) ainda os vê dessa forma. Nada, no entanto, estaria mais longe da verdade, atualmente, do que a visão estereotipada das histórias em quadrinhos como direcionadas exclusivamente para o público infanto-juvenil. As últimas décadas presenciaram diversas inovações no mercado produtor e consumidor de histórias em quadrinhos, fazendo com que hoje exista uma segmentação antes impensável, fazendo com que hoje exista uma segmentação antes impensável, tanto no lado dos produtores como daqueles que consomem os produtos por eles elaborados. (ANDRAUS et al, 2004, p. 2)

Sob forte crise econômica, a Crise de 1929, o sonho otimista da década anterior chegava ao fim e não parece absurdo imaginar uma arte que abarcasse essa frustração, que dela “desfrutasse” para atingir os anseios do público. Apelidada de Era Dourada, esta é, cronologicamente, a era da evasão de frustrações e o início dos personagens mitológicos nos quadrinhos:

É a era de Tarzan (aventura na selva), Flash Gordon (aventura de ficção científica) e do Príncipe Valente (aventura no passado medieval). É como se os heróis envolvidos nas histórias compensassem as perturbações e inseguranças da triste realidade e todos resolvessem fugir para lugares desconhecidos. E foi então que se deu a consolidação dos quadrinhos: o volume da criação e a boa qualidade do material. (LUYTEN, 1985, p. 26)

Ao Tarzan, adaptado da literatura por Harold Foster e aprimorado por Burne Hogarth, coube expandir horizontes e ganhar status de primeiro sucesso intercontinental dos quadrinhos. Além disso, o chamado Filho das Selvas introduziu o traço realista nos quadrinhos. Os cenários, antes econômicos nas kid strips, agora eram exuberantes matas por onde o “Filho das Selvas” marcava seu território de soberano. Foi Hogarth quem 46


carregou por mais tempo a tarefa de desenhar o personagem e o fez “dando ao herói uma beleza de formas inspiradas no próprio Michelangelo” (LUYTEN, 1985, p. 27)

FIGURA 1 – Tarzan de Burne Hogarth. Fonte: HOGARTH, Burn; BURROUGHS, Edgar Rice. Tarzan, o Filho das Selvas. Rio de Janeiro: Brasil-América, p. 147, 1973.

Hiron Cardoso Goidanich (1990), ao escrever sua Enciclopédia dos Quadrinhos, guardou para o verbete de Hogarth a responsabilidade de inaugurar “para as páginas dominicais de Tarzan um maravilhoso universo de ação, dinamismo, massas musculares (tanto humanas como animais)”. Desenhista com larga experiência na publicidade, Harold Foster (ou simplesmente Hal Foster, como assinava) empregava já estas técnicas e foi seguido por Hogarth – autor de vários livros de anatomia e dinâmica da figura - o que lhe garantia embasamento para seguir a estética condizente com os roteiros do personagem. A especificidade do traço era crucial, uma vez que:

A representação gráfica dos personagens vai obedecer ao estilo dos quadrinhos. Histórias cômicas tendem a ter personagens mais caricatos, histórias de aventuras costumam utilizar-se de uma representação realista dos personagens. (VERGUEIRO, 2004, p. 52)

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Admirador confesso do trabalho de Foster, especialmente no trabalho seguinte do autor, o Príncipe Valente, Lourenço Mutarelli cita, em entrevista ao site Universo HQ, todo o seu respeito pela maestria do artista:

Sempre que vou começar uma história, eu folheio um álbum do Príncipe Valente, do Hal Foster. Não pra tentar copiar qualquer coisa, mas pra não esquecer do profundo respeito que preciso ter com os quadrinhos. A elegância que aquilo tem, e o respeito com que é feito. Eu tento nunca me desviar disso. (MUTARELLI, 2000, n. p.)

A marca do traço preciso de Foster pode não ser vista como exatamente a mesma em Mutarelli, mas o entendimento das histórias em quadrinhos como arte ampla e específica, presente em Foster, certamente é de suma importância para o autor paulista.

3.2.1. Novas técnicas, outro dinamismo O dinamismo necessário às histórias de aventura nas histórias em quadrinhos só foi adquirido graças a eventuais inovações técnicas e de linguagem. O uso dos balões é um forte exemplo. O Tarzan dos anos 30 ainda não chegara a eles. No livro Falas e balões, Marcos Nicolau pontua:

(...) o objeto principal deste enfoque em Tarzan é justamente quanto à forma como foi publicado: em livro quadrinizado, pelo traço impecável de Hal Foster, (...) mas com um texto eminentemente literário que vinha disposto fora e embaixo de cada quadrinho. Deste modo, era o texto quem conduzia toda a narrativa, não só explicando o que ocorria no desenho, como também acrescentando fatos que não eram mostrados pelas ilustrações. Os diálogos, por sua vez, vinham incluídos no próprio texto. Os desenhos tinham a função de ilustrar determinada passagem da narrativa, que havia sofrido, por seu turno, uma pequena reforma ao ser transposta do livro. (NICOLAU, 2008, p. 18)

O recurso dos balões já existia na época. As gags dos Sobrinhos do Capitão e os sonhos do Little Nemo, por exemplo, eram contados com este método. Ainda assim, o mito das selvas não a usou, cabendo ao outro extremo, o mito da ficção, esta tarefa. Sob o mesmo realismo e traços do mito ariano, Flash Gordon (criado em 1934 48


pelo então jovem Alex Raymond), chegou a usar do texto solto no “chão” do quadrinho, mas percebeu que o balão dava nova dinâmica, necessária para que contasse estas narrativas. Além disso, foi o primeiro passo para a gradual diminuição do uso do narrador externo. Ao longo dos diálogos entre Flash Gordon e seus inimigos e na própria dinâmica visual dos quadros, a narrativa se dava “por si só”, de forma fluida e mais natural. O aprimoramento do recurso trouxe a fragmentação dos desenhos em maior número de quadros e uma variação inesgotável de balões. Entendido o “balão como discurso expresso” (ECO, 1979), parece natural que ele ganhe as variáveis que o próprio discurso falado garante. Em A leitura dos quadrinhos, Paulo Ramos cita números apontados por estudiosos que os sucederam: em 1975, Antonio Gagnin enumerou 13 tipos diferentes de balões; antes dele, o francês Robert Benayoun falava em 72 formatos. Os números não podem traduzir com precisão a criatividade de tantos autores ao longo de décadas, mas é certo que os balões trouxeram o dinamismo que a aventura precisava. Por vezes, o formato do balão traz o tom com que o personagem fala ou pensa. Carrega em seu traço a dramaticidade que o autor procura, seja por meio do círculo que o balão faz ou até mesmo do formato que a letra dentro dele carrega. Não raro, traz o traço do próprio personagem – caso dos super-heróis Thor e Homem de Ferro, por exemplo, para os quais foi desenvolvido um tipo de balão de fala específico para eles. Laonte Klawa e Haron Cohen, no artigo Quadrinhos e Comunicação de Massa, trazem o Menino Amarelo novamente à tona para explanar sobre essa especificidade:

No momento em que Richard Outcault, na sua história Yellow Kid, colocou textos dentro do quadrinho e encerrou-os dentro do balão, estava fazendo mais do que mudar a localidade das palavras em relação às figuras. De fato, a inclusão de palavras no campo imagístico implicou numa transformação do seu uso, acrescentando conotações e algumas vezes alterando o seu significado. As palavras sofreram um tratamento plástico; o tamanho, a cor, a forma, a espessura, etc., tornaram-se elementos importantes para o texto. (COHEN, 1970, p. 112)

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Mais que isso tudo, proporcionou a oralidade nas histórias em quadrinhos. Com tantas variáveis, os personagens poderiam, por assim dizer, “encontrar a própria voz”, sua especificidade e tom condizente.

3.2.2. Nascem os super-heróis Eis que, sob o mercado propício e utilização da estética condizente, o caminho estava aberto para o passo além do herói. Afinal, o termo “aventura”, aqui instalado, designa a febre desencadeada nos leitores, que também abraçaram personagens como Jim das Selvas e Buck Rogers (concorrentes diretos de Tarzan e Flash Gordon, respectivamente), Fantasma, Brick Bradford, Mandrake, entre outros tantos. Também agrega figuras europeias do porte de Tintin, jornalista-detetive criado pelo belga Hergé, e Carto Maltese, do italiano Hugo Pratt, personagens que, em outros formatos nem sempre próximos aos adotados pela indústria americana, também trabalharam pela dinamização da linguagem quadrinística e a fuga do cômico como meio e finalidade única. Tanta ação e suspense resultaram nas idolatradas figuras dos super-heróis. Todos até este momento tinham lá o seu público cativo, é bem verdade, mas foram estes sujeitos de uniforme colante e existência improvável que proporcionaram o fanatismo característico do aficionado pelas histórias em quadrinhos. Se os primeiros contos de aventura vinham em resposta à Crise de 29, não é exagero situar este outro boom à catarse coletiva seguinte, a Segunda Guerra Mundial. No final dos anos 1930, havia mais “inimigos” a ser combatidos. O nazismo ganhava força e provocava o conflito, enquanto a demonização do comunismo viria mais adiante. Grandes inimigos, grandes heróis: o inverossímil e a fantasia adentravam de vez no mundo quadrinístico. O nome mais forte foi mesmo o Super-Homem, criado por dois jovens, o desenhista Joe Shuster e o roteirista Jerry Spiegel, para a revista Action Comics, em junho de 1938. Era um personagem que, na definição de Ionaldo A. Cavalcanti (1988) no almanaque Esses incríveis heróis de papel, “unia um jornalista, um detetive e um titã indestrutível”. Desacreditado a princípio pelos editores, o personagem alcançou vendas memoráveis e não demorou a desencadear uma febre que transpôs as HQs e chegou ao rádio, cinema, desenhos animados e todo o tipo de badulaques que o merchandise da época poderia imaginar. 50


Sonia Bibe-Luyten situa o Homem de Aço no tempo dentro e fora dos quadrinhos:

Os quadrinhos, até antes da entrada dos Estados Unidos na guerra, já estavam engajados numa posição política. O Príncipe Valente lutava contra os hunos, que, na gíria inglesa, queria dizer germânicos. Dick Tracy e X-9 se voltam contra sabotadores e até mesmo o Tarzan, na selva africana, luta contra os soldados coloniais nazistas. (LUYTEN, 1985, p. 34)

É uma época que desencadeava muita propaganda ideológica pelo mundo da comunicação de massa, o que não poderia deixar de atingir o universo das narrativas gráficas. Era preciso estabelecer o bem e o mal, por meio de figuras de forte apelo visual, cuja força e bravura fossem convincentes aos olhos do leitor. Na prática, os vilões deixaram de praticar o “mal pelo mal” para aderir ao “mal pela causa” – a causa do chamado Eixo (Alemanha, Japão e Itália) na Segunda Guerra. Os vilões eram, em última análise, o próprio Eixo. Nessa guerra ideológica, grandes nomes também lutaram, caso de Capitão América, Mulher Maravilha, Batman, Capitão Marvel, entre tantos. O Super-Homem, porém, foi a figura mais emblemática, adquirindo essa importância pela identificação que causou. Quando não estava em ação, o personagem se disfarçava de Clark Kent, jornalista ligeiramente desengonçado e tímido, cuja falta de meios para impressionar a colega de trabalho por quem está apaixonado em nada lembraria um Homem de Aço. Umberto Eco estudou o personagem sob a estrutura mitológica que ele apresentava, e analisa:

Narrativamente, a dupla identidade do Superman tem uma razão de ser, porque permite articular de modo bastante variado a narração das aventuras do nosso herói, os equívocos, os lances teatrais, um certo suspense próprio do romance policial. Mas, do ponto de vista mitopoiético, o achado chega mesmo a ser sapiente: de fato, Clark Kent personaliza, de modo bastante típico, o leitor médio torturado por complexos e desprezado pelos semelhantes; através de um óbvio processo de identificação, um accountant qualquer de uma cidade norte-americana qualquer, nutre secretamente a esperança de que um dia, das vestes da sua atual personalidade, possa florir um super-

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homem capaz de resgatar anos de mediocridade. (ECO, 1979, p. 248, grifo do autor)

No capítulo anterior, foi citada uma especulação hipotética de Eco sobre o rompimento da expectativa no leitor do romance policial e a frustração que isso lhe causou, presente no livro O Super-homem de Massa (1978). Pois bem, o autor volta à mesma ótica de desapontamento em Apocalípticos e Integrados, mas dessa vez em relação à história em quadrinhos:

(...) no caso das histórias em quadrinhos, trata-se de uma reação muito mais maciça de uma comunidade de fiéis, incapaz de suportar a ideia do desaparecimento repentino de um símbolo que até então encarnara uma série de aspirações. O histerismo provém da frustração de uma operação empatizante (...). Cai a imagem e, com ela, caem as finalidades que a imagem simbolizava. (ECO, 1979, p. 246)

O pós-guerra trouxe nova encruzilhada para os quadrinhos, uma vez que havia falta de papel e outras dificuldades por parte do setor editorial. Mais que isso, havia uma natural dificuldade de apontar ali conteúdos criativos que “animasse”, por assim dizer, o público disperso pelos horrores sociais e econômicos que a guerra trouxe. Se a narrativa sequêncial é um mecanismo de defesa para o leitor aliviar seus conflitos com a realidade, além de situá-lo enquanto identidade em um grupo, pode-se imaginar que este ego estava ferido pela incógnita que era o futuro. Some-se a isso uma guerra nova, travada em nome da moral e dos bons costumes, e teremos uma época instável para essas publicações:

O final da Segunda Guerra Mundial viu um aparecimento de novos gêneros nas revistas em quadrinhos, destacando-se as histórias de terror e suspense, que enfocavam temáticas de gostos duvidosos e traziam representações extremamente realistas. Apesar disso – ou talvez exatamente por isso -, sua popularidade entre os leitores adolescente continuou a crescer e as tiragens das revistas tornaram-se cada vez mais altas, levando parte da sociedade norte-americana a ficar preocupada com sua enorme influência sobre as leituras infantis. (VERGUEIRO, 2004, p. 11)

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Frederic Wertham, psiquiatra alemão radicado nos Estados Unidos, em famoso livro A Sedução dos Inocentes (1954), catalisou essa desconfiança social e fundamentou as bases para uma série de acusações pouco palpáveis hoje, mas um sucesso na época. O contato com os comic books poderiam levar a transtornos agressivos dos jovens, bem como delírios irreais – entre eles, o perigo do leitor se jogar de uma janela, por exemplo, na tentativa de voar como o Super-Homem – e até transtornos sexuais. Deste último, ficou famosa a análise de Wertham a respeito de Batman e seu jovem ajudante Robin, cuja relação denotaria latente caso de homossexualidade e, pior ainda, pedofilia. Wertham nunca usou o termo “quadrinhos de aventura” ou qualquer de seus sub-gêneros. Ele preferia o pejorativo “crime comics” (quadrinhos de crimes). O psiquiatra encontrou muitos adeptos nessa luta, entre eles a Magazine Association of America, que elaborou uma espécie de “código de éticas”, o Comics Code, que determinava por meio de selos nas capas das revistas o que era ou não próprio para o consumo dos filhos. Os pais norte-americanos aprovaram tal medida, que se expandiu e ganhou adeptos na Europa e até no Brasil. Aqui, um Código de Ética dos Quadrinhos foi elaborado aos moldes estadunidenses, cujo método do selo de aprovação também foi utilizado. O documento falava na necessidade dos quadrinhos em valorizar a instituição familiar, abordar temas não violentos, sem “terror, pavor ou horror”, bem como priorizar os triunfos da lei e da ordem sobre o crime e perversidade. Toda fala coloquial e qualquer esboço de sensualidade, claro, também eram mal vistos. Não demorou muito para a produção de HQs entrar em declínio de público. Afinal, nas francas palavras de Waldomiro Vergueiro (2004, p.26), as histórias em quadrinhos “caminharam decididamente para a mediocridade, passando a veicular, em sua grande maioria, histórias pífias e sem grandes pretensões criativas”.

3.3. Anos 60: revitalização e credibilidade O mundo dos quadrinhos só foi voltou a ganhar força estética e mercadológica a partir dos anos 1960, especialmente quando a chamada Era Marvel se instalou. Ainda abarcando o mundo do herói e seus poderes extraordinários, o desenhista Jack Kirby e o roteirista e editor Stan Lee trataram de dar outra abordagem aos personagens já existentes, além de criar novos heróis com outras especialidades. Lee e Kirby repaginaram nomes como Namor e Capitão América, além de criarem os 53


primeiros roteiros para Hulk, Quarteto Fantástico, Homem de Ferro, Thor e tantos outros. Com o tempo, Stan Lee se estabeleceu como o maior nome desse universo, enquanto a Marvel despontou como maior editora e distribuidora de quadrinhos do mundo. Sua principal criação, o Homem-Aranha, foi quem melhor sintetizou este novo pensamento. Pela primeira vez, um personagem adolescente, Peter Parker, protagonizava histórias. Mais que isso, conseguia se desdobrar em dois para que, entre conflitos hiperbólicos que envolviam inimigos surreais e parafernálias tecnológicas, pudesse cuidar da vida pessoal e todas as pequenas que ela carrega. Agrega-se a essas pequenezas toda a problemática cotidiana que um jovem de uma metrópole poderia enfrentar: a falta de dinheiro e de tempo, conflitos com o chefe, problemas de saúde envolvendo familiares, desentendimentos na relação com a namorada, etc. Stan Lee, junto a Jack Kirby e outros parceiros desenhistas, descobriu rapidamente que uma história de super-heróis poderia ser contada com toda a inverossimilhança que já era típica do gênero, mas que também residia ali, nessa parcela de realidade em meio a tanta fantasia, o método correto para agarrar a atenção e a empatia desse novo leitor: o método Marvel. No documentário Stan Lee: Mutantes, Monstros e Marvels, o próprio roteirista conta ao cineasta Kevin Smith um pouco da desconfiança que teve que enfrentar por parte de seu editor:

Quando mencionei o nome para o Martin, meu editor, ele disse: “Você é louco. As pessoas odeiam aranhas. Você não pode fazer uma revista chamada „Homem-Aranha‟. E ele será adolescente? Adolescentes são só acompanhantes”. E ele completou: “Você quer que ele tenha problemas?”. Eu disse a ele que sim, que eu queria que o personagem se preocupasse com dinheiro, espinhas, tudo. (...) Foi o que tentei. Se nós tivéssemos uma fórmula, a fórmula seria: nós sabemos que criamos fantasia. Temos caras que voam, pegam fogo, tudo isso. As escrevamos isso da forma mais realista possível. Se essas pessoas existissem, como seria a vida delas? Era o que eu estava tentando fazer. Talvez a razão principal tenha sido a identificação com ele. Pois ele era tímido, não era popular com as mulheres, eles se preocupavam com a família. Acho que muitos adolescentes liam e pensavam: "Esse poderia ser eu". (LEE, 2002)

Outros personagens agregaram, cada um à sua maneira, esse contundência realista. O Surfista Prateado, por exemplo, resolvia suas narrativas com moral pacifista 54


e ecológica, não raro análoga à incipiente cultura hippie daquela década. Porém, o personagem de origem alienígena nem sempre era ouvido pelos outros personagens. Também “alienígenas” eram a trupe dos X-Men, mutantes que não encontravam compreensão por parte dos humanos que não tinham o gene mutante. Alvo de preconceitos e desconhecimento, estes jovens lutam pela compreensão das massas e, nesta luta, tendem a se agrupar como amigos e companheiros, para melhor se proteger. A reviravolta proporcionada pela década, no entanto, não para no heroísmo de colante. O turning point apontado por Waldomiro Vergueiro não se passa apenas nesta arte em si. Como hipergênero, a narrativa gráfica sempre deglutiu o que de melhor acontecia na arte de sua época, seja no cinema, artes plásticas ou literatura. A partir deste ponto cronológico, contudo, a história em quadrinhos ganhará adeptos fora do âmbito que lhe é próprio. Ainda que outros artistas possam ter expressado simpatia por essa discriminada arte em outros tempos, é nesta década que a intelectualidade abraçará as HQs com mais veemência, o que inclui até mesmo o mundo acadêmico:

Mas isso não ocorreu por acaso: foi necessário que as artes plásticas começassem a utilizar recursos das histórias em quadrinhos em suas obras – como aconteceu com os trabalhos de Andy Warhol e Roy Lichtenstein -, e que nomes respeitados do mundo artístico se confessassem influenciados pelas histórias em quadrinhos – como Orson Welles, Luiz Buñuel e Federico Fellini, entre outros -, para que o mundo acadêmico passasse a dar um pouco mais de atenção a elas. (VERGUEIRO, 2009, p. 10)

Sonia Bibe-Luyten aponta esse mesmo “aval” dado pela classe:

(...) ainda bem que, na Europa, lá pelos anos 60, alguns intelectuais franceses e italianos devolveram o bom conceito que os quadrinhos sempre tiveram. Foi o início dos estudos de Comunicação de Massa, nos quais se passava a analisar o fenômeno dos quadrinhos como um dos melhores meios de informação e de formação de conceitos. Esta visão mais científica e imparcial foi logo incorporada pelos americanos, e, desta maneira, foi possível fazer-se uma reavaliação crítica e construtiva de tudo o que se tinha produzido anteriormente. (LUYTEN, 1985, p. 37)

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Em resposta a esse estímulo externo, os próximos expoentes dessa arte agregaram um sem-número de referências que vão extrapolar o terreno do protagonista cheio de músculos, boas intenções e mensagens morais. Na esteira da contracultura daquela década e da seguinte, alguns artistas flertaram com o espírito hippie, as drogas, o sexo, a literatura beat, a vanguarda do cinema europeu e a irreverência do rock´n´roll para protestar e colocar ou retirar os quadrinhos do âmbito dos bons costumes. Procuraram deliberadamente pela expansão da narrativa gráfica enquanto forma de veicular ideias e sentimentos, não mais apenas diversão e passatempo. O norte-americano Robert Crumb é provavelmente o maior nome desta geração. A revista Zap Comix, produzida por ele e um grupo de estudantes californianos que incluía gente como S. Clay Wilson, Robert Williams e Gilbert Shelton, foi o meio primeiro de difusão desta nova estética underground. Crumb criou figuras que primavam pela ironia e escárnio, não raro visando o ataque à indústria cultural vigente. São dele personagens como Mr. Natural (um guru corrompido, autoironia sobre a geração hippie), Fritz the Cat (um gato que vive aventuras amorais) e, mais tarde, a revista American Splendor (criada em 1976, com a colaboração do roteirista Harvey Pekar, que sempre primou pelas narrativas biográficas e autodepreciativas). Antes mesmo da Zap Comix, já havia a Mad, editada por Harvey Kurtzman a partir de 1952, que tratava também do escárnio humorísticos de tudo que o mundo pop trazia à tona. Mais tarde, da mesma forma, outros colheram os frutos dessa independência, como a vanguardista Raw, revista editada por Françoise Mouly e o hoje multipremiado Art Spiegelman. Tal adoção de conteúdo e estética só foi possível graças a uma guinada da visão de quadrinhos enquanto produto. Antes organizadas basicamente pelos syndicates, organizações que distribuíam as histórias pelos jornais estadunidenses, as HQs americanas passaram a abrir novo leque de formatos. Estas revistas do underground criaram seu próprio mercado que, se não era perfeito do ponto de vista comercial, ao menos lhes garantia a liberdade criativa de que necessitavam. Os artistas, a partir daqui, estavam no comando eram eles mesmos que se editavam. Concomitantemente a isso, outro norte-americano, que não tinha tanta relação com este mundo onírico de Crumb e Cia., ajudava na revolução. Will Eisner já fazia um longo trabalho em personagens como Spirit, que desde os anos 1940 deglutia técnicas inovadoras, alusivas ao cinema, para reformar a linguagem quadrinística de suas produções. Ele criou, ou pelo menos afirmava ter criado, o formato graphic novel, 56


caracterizado pelas histórias mais longas, de imensa variedade temática que deveria ser abarcada em volumes semelhantes a livros de literatura. É claro que os álbuns europeus, publicados desde sempre, guardavam semelhanças com estas novelas gráficas. É bem verdade também que autores como Harvey Kurtzman e George Metzger também o fizeram nos Estados Unidos. De qualquer forma, foi com prestígio de Eisner, enquanto artista e empreendedor, que o termo se popularizou. É o próprio autor quem descreve tal desencadeamento:

Autobiografias, protestos sociais, relacionamentos e fatos históricos foram alguns dos temas que passaram a ser abraçados pelas histórias em quadrinhos. As graphic novels com os chamados “temas adultos” proliferaram e a idade média dos leitores aumentou, fazendo com que o mercado interessado em inovações (...) se expandisse. Acompanhando essas mudanças, um grupo mais sofisticado de talentos criativos foi atraído para essa mídia e elevou seus padrões. (EISNER, 2005, p. 8)

Vergueiro vai além e cita o sucesso da graphic novel Maus, criada por Art Spiegelman sob fortes traços biográficos, como resultado final desta empreitada. Em 1992, a obra recebeu um prêmio Pulitzer especial:

Desta forma, escancarava-se para o mercado norte-americano e para o mundo em geral o potencial do novo formato de disseminação de quadrinhos, que não mais precisava ficar vinculado a narrativas nos gêneros tradicionais – super-heróis, policiais, aventuras, etc. -, mas podia ser explorado para incursões no campo da história, da memória social e do jornalismo. (VERGUEIRO, 2009, p. 30)

Gazy Andraus reforça a diversidade proporcionada pelo formato e fala em autoria e autoridade nas HQs. As histórias em quadrinhos, com todo o vocabulário autônomo que possui, ganha o termo “de autor”, como sempre foi na literatura e passou a ser também no cinema, por exemplo. O leitor compra o livro, ainda que não saiba o gênero ao qual ele se encaixa, se é que se encaixa. O cinéfilo faz o mesmo com uma película. Isso porque ambos têm confiança no autor da obra. Reconhece no escritor ou no diretor e, por vezes remando contra a maré do “cinema industrial” ou da boçalidade

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imprimida pela maioria dos best-sellers, opta pela confiança na abordagem específica daqueles artistas. Andraus explica e exemplifica:

(...) os autores de HQs têm público leitor cativo, que buscam obras de Neil Gaiman, Alan Moore, Frank Miller, e no Brasil, Lourenço Mutarelli, Edgar Franco, Laerte e outros, distinguindo seus trabalhos da grande massa de revistas de quadrinhos que se mostram vendáveis apenas graças a seus personagens (como as de super-heróis e mangás). Além disso, o mercado livreiro mundial (em especial, finalmente, o brasileiro) tem crescido de forma exponencial, abarcando quadrinhos no formato de livros, com distribuição semelhante ao comércio livreiro, o que auxilia numa valorização crítica crescente por parte da mídia especializada, enaltecendo as virtudes da arte quadrinhística, e auxiliando-a na solidificação de um status de autoria e autoridade (como nos livros). (ANDRAUS, 2009, p. 53)

Até mesmo as grandes editoras antes especializadas na temática exclusiva dos super-heróis tiveram que se adaptar a esta realidade criando os chamados “selos adultos”. Marvel e DC Comics criaram, respectivamente, a Vertigo e a Epic, marcas editoriais que garantem a contemplação de um leitor adulto que exige conteúdo condizente com o que deseja, sem que seja necessário eliminar a linha tradicional das publicações.

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4. Lourenço Mutarelli: estética e conteúdo pré-Diomedes

Quando colaborava com pequenas histórias para o extinto site Cybercomix no final da década de 1990, o paulista Lourenço Mutarelli divertia-se criando o Pato Camaleão, personagem que se desdobrava em vários daqueles personagens que influenciaram o autor ao longo de sua trajetória. Nessas páginas, assinadas com o pseudônimo de Zigmundo Mussarela, figuram reproduções fiéis dos traços de Chester Gould (autor de Dick Tracy), Hal Foster (Príncipe Valente), Julio Salinas (Cisco Kid), Hugo Pratt (Corto Maltese), Art Spiegelman (Maus), Charles Schulz (Snoopy), Hergé (Tintin), Alberto Breccia (MortCinder) e os brasileiros Angeli, Fernando Gonzales, Marcatti e Jô de Oliveira. Todos os protagonistas eram devidamente caracterizados com um bico de pato no lugar da boca, o que dava às histórias um caráter francamente nonsense e, nas entrelinhas, “um teor agressivo e sarcástico”, como definiram Sidney Gusman e Marcelo Naranjo em matéria para site Universo HQ.

FIGURAS 2 E 3 - Pato Camaleão ao estilo Hergé (esquerda) e Hal Foster (direita). Fonte: site Universo HQ. Disponível em: www.universohq.com/quadrinhos/entrevista_mutarelli01.cfm. Acessado em junho de 2012.

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O Pato Camaleão, ainda que circule pela internet “clandestinamente”, jamais teve uma publicação oficial. No entanto, seus elementos davam, ainda que despojadamente, as pistas do trabalho em processo do artista: os cânones reverenciados por ele e que o fizeram prosseguir, bem como a relatividade com que o termo “reverenciar” deve ser colocado aqui. Desde o início, houve sempre uma necessidade de, como já foi citado anteriormente, “não esquecer o profundo respeito” pelos quadrinhos, aos moldes do que fazia com o mestre Hal Foster. Contudo, repetir aquilo que já é consagrado nunca foi possível para Lourenço e, nesse processo de impasse, o autor criou obras contundentes que desembocaram no personagem Diomedes, sua versão para a tradição detetivesca que remonta há pelo menos um século antes dele. Pelo caminho, uma terceira condição enlaça o despretensioso personagempato e a obra de Lourenço Mutarelli como um todo: o Pato Camaleão é assinado por Zigmundo Mussarela, pseudônimo que ganhou vida em A Soma de Tudo – Parte 2 (2002), último álbum da Trilogia. Mesmo sendo esta “trilogia em quatro volumes” o momento menos confessional do autor, algo de autobiográfico escapa ali. É fácil perceber que Zigmundo guardava profunda semelhança física com seu criador. Zigmundo, no fim das contas, só pode ser Lourenço Mutarelli. E Diomedes, ainda que menos intrinsecamente, também guarda profundas referências biográficas com o autor.

4.1. Contracultura e udigrudi como contexto e princípio Desalojar a obra quadrinística de Lourenço Mutarelli do seio dos quadrinhos brasileiros dos anos 80 seria, senão um erro completo, uma análise incompleta. Ainda que não tenha seguido a mesma cartilha dos autores mais representativos desta época, ou mesmo vivendo à margem deles, parece desnecessário colocá-lo como uma negação de seu tempo. Muito pelo contrário. Ao situá-lo no tempo, pode-se ir mais além e instituir a importância dessa geração brasileira e aquela geração que veio ao menos 20 anos antes, essencialmente norte-americana e por demais revolucionária. A autoralidade, assim, se faz presente e tem papel decisivo. Em se tratando de histórias em quadrinhos, a contracultura chega ao país em meados da década de 1970 e aporta primeiramente nas revistas Grilo e O Bicho. Na segunda, autores brasileiros como Millôr Fernandes, Fortuna, Carlos Estêvão e Jaguar faziam suas empreitadas. Na primeira, os leitores do país tiveram o primeiro contato com as obras de Robert Crumb, Jules Feiffer, Gilbert Shelton, Guido Crepax, Wolinski e outros autores. Eram 60


quadrinistas internacionais cujo conteúdo contestatório e de público obviamente adulto influenciaram jovens que resolveram tomar as rédeas editoriais e se auto publicar. Foi o caso do famoso Pasquim, publicação carioca capitaneada justamente por Millôr e Jaguar que, com muito humor, contestou os valores morais e políticos de sua época e foi amplamente discutida pelos atritos com a ditadura militar vigente. Com menos alarde, mas com igual importância, a revista Balão foi editada por universitários da FAU/USP e trouxe a público os primeiros trabalhos de gente como Laerte, Luiz Gê e Marcatti. Essa publicação deu origem ainda a diversos fanzines, meio de manifestação altamente independente que foi vital neste início de produção nacional. Liber Eugenio Paz, ao tomar Lourenço Mutarelli como objeto de pesquisa em mestrado, falou a respeito deste primeiro contato:

O corrosivo espírito de contestação dos quadrinhos da contracultura norte-americana seria apropriado pelos artistas brasileiros e o “underground” transformar-se-ia no “udigrudi” brazuca. (...) O contato com os quadrinhos de O Grilo, O Bicho e outras revistas alternativas, como a Balão, e as publicações célebres, como o Pasquim, foi importante na formação de uma série de desenhistas que, durante a década de 1980, produziriam algumas das publicações mais bem sucedidas da história editorial do país. (PAZ, 2008, p. 87)

Nadilson Manoel da Silva e Sonia M. Bibe-Luyten também não hesitam em usar o abrasileirado “udigrudi” para definir o contexto:

Suas características tendiam a seguir as propostas estéticas e culturais originárias desses movimentos à margem do mercado oficial. Assim, a tradução tupiniquim chamou-se udigrudi. (...) A estética desses quadrinhos tinha a intenção manifesta de se contrapor aos quadrinhos tradicionais, assim como aos valores a que eles estavam vinculados. Tais idéias fazem lembrar um pouco aquele “é proibido proibir” do maio francês; entretanto, havia uma proibição implícita que era a de não se apegar aos valores e estéticas tradicionais. Essas revistas tinham um caráter contestatório, alternativo, sendo possível incluí-las na definição de imprensa alternativa (...) (SILVA, 2002, p. 24)

Luyten aproxima o “jeitinho brasileiro” com a versão abrasileirada do underground:

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A censura nos meios de comunicação fechou muitas portas para a informação. Mas o jeitinho brasileiro soube abrir inúmeras janelas. Uma delas representou bem o movimento marginal ou udigrudi dos quadrinhos brasileiros. Esse movimento explodiu por diversas razões. Além do cunho político de alguns periódicos, os jovens, inconformados por não terem veículos para publicar seus quadrinhos, devido sempre à forte concorrência estrangeira aliada à miopia de muitos editores nacionais, lançaram dezenas de revistas (...) Nem todas tinham uma bandeira definida de luta, mas retrataram de maneira clara e real o que se passou no Brasil nessa época. A tendência geral, quanto à forma, foi ligada aos movimentos de vanguarda, e foram levantados problemas que, em geral, a imprensa não publicava ou não podia publicar. (LUYTEN, 1985, p. 80)

Curiosamente, o “boom” dos quadrinhos brasileiros nos anos 80 surgiu dessas publicações que, se por um lado apresentavam pretensões estéticas interessantes, por outro lado a maioria delas chegava ao público sob um sistema precário de distribuição. Publicações que vieram em seguida, como as já clássicas Circo, Chiclete com Banana, Geraldão e Piratas do Tietê, traziam nomes que tinham relação forte com essa primeira leva, caso de Angeli, Laerte, Glauco e Luiz Gê. A diferença que gerou a consagração mercadológica destas últimas, no entanto, se dava pelo momento histórico de princípio da década. Hoje, em perspectiva, pode-se atestar que o tal “boom” que trouxe essas revistas era pouco mais que uma ramificação de toda uma cultura jovem que surgia. Outros setores da indústria cultural voltaram-se para este público: é o apogeu das bandas de rock nacionais, o nascimento dos megashows internacionais, o conteúdo televisivo voltado para esse segmento, bem como artigos de moda e tudo o que mais se possa imaginar. Um momento essencialmente urbano que não passará despercebido ao incipiente mercado de quadrinhos. Observa-se uma espécie de estabelecimento de uma cultura jovem urbana e a incorporação dessa parcela da população ao mercado de consumo. É a partir do início dessa década que se vê o surgimento de revistas em quadrinhos nacionais em larga escala, direcionadas para esse determinado público. A concentração de editoras e autores em São Paulo já nos dá uma pista a respeito dessa relação entre vida urbana de uma metrópole, a juventude consumidora e o mercado cultural.

Foram publicações de grande sucesso, que se relacionaram com as novas “tribos urbanas”, que surgiam diante das condições propiciadas pela situação política e econômica brasileira dos anos 80. (...) Ao 62


mesmo tempo em que geravam novos “consumidores” e expandiam as áreas da indústria cultural, os produtos destinados aos membros das novas tribos contraditoriamente apresentavam em seu conteúdo mensagens de questionamento às normas políticas, sociais, econômicas e culturais vigentes. (PAZ, 2008, p. 88)

A Chiclete com Banana, editada por Angeli, era massivamente composta por trabalhos do próprio artista e colaborações esporádicas de outros. Maior sucesso editorial da época, vendeu 28 mil exemplares logo no primeiro número e não parou de crescer, rondando os 100 mil exemplares por edição em seu melhor momento. Na esteira desta revista emblemática, outras surgiram trazendo conteúdo quadrinístico, ainda que em tiragens menos pomposas. Caso de Udigrudi, Nocaute, Lúcifer, Porrada!, Tralha, Mil Perigos e Animal. O conteúdo catártico, aqui, é percebido logo pelos títulos dos periódicos. Lourenço Mutarelli consumiu essas revistas e buscou publicar seu próprio trabalho neste campo. Nas cinco últimas, conseguiu espaço para pequenas histórias. Na revista de Angeli, apenas uma pequena tirinha foi aprovada. É parte curiosa do culto ao artista a passagem que teve pelos estúdios de Maurício de Sousa, onde esteve por quase três anos cuidando dos cenários das animações da Turma da Mônica. É bem verdade que aquele universo nada tem a ver com o que Mutarelli produziu logo a seguir, mas ele conta, em palestra no evento Rio Comicon, que a presença de uma gibiteca no complexo editorial do criador da Mônica foi decisivo para complementar sua formação como leitor, iniciada pelo pai:

A minha sorte era que meu pai gostava de quadrinhos, então eu entrei na Era de Ouro. Eu lia Dick Tracy, Will Eisner, Príncipe Valente. No Maurício, tinha uma coisa fascinante que era a gibiteca para os funcionários. E eu passava meus almoços lá. Tardi, Muñoz, passava muito tempo lá lendo isso. Tinha a Circo, a Chiclete com Banana, o Laerte, que para mim era o maior. Fiquei tentado a fazer humor, o humor que eles faziam, porque ninguém queria publicar meu trabalho, era muito diferente. (MUTARELLI, 2010)

Dessa forma, essas revistas demonstraram uma evolução do quadrinho enquanto cultura de massa, caminhando para o que se convencionou chamar de “quadrinhos autorais”, cuja temática era relativamente livre e as etapas de produção – roteiro, traço, estilo gráfico e até mesmo edição – era dominadas pelo artista. Ainda assim, os primeiros trabalhos de Lourenço Mutarelli não se encaixaram na proposta. 63


Como válvula de escape para essa produção, optou mesmo pelo formato do fanzine, como descreve Lucimar Ribeiro Mutarelli:

No final da década de 80, neste cenário do mercado nacional, com muitas publicações e vários títulos em bancas de jornal, um jovem quadrinista chamado Lourenço Mutarelli motivou-se a mostrar suas histórias para os editores. Porém, naquele momento, seu estilo foi considerado muito estranho pelos editores. Sem conseguir espaço em tais publicações, Mutarelli decidiu-se pelo meio alternativo fanzine, pelo qual passou a fazer parte do cenário nacional. (MUTARELLI, 2004, p.69)

O primeiro fanzine do autor saiu em 1988, depois de nove meses de criação, por meio de uma parceria com a editora Pro-C, que nada mais era do que um improvisado sistema de impressão e distribuição elaborado pelo quadrinista Francisco Marcatti. Em uma impressora off-set adaptada, Marcatti produzia em casa estas revistas e a distribuía em pontos culturais estratégicos de São Paulo. Contendo 20 páginas e intitulada Over-12, essa publicação começava com “Solidão”, uma história de diagramação livre, de despojamento típico do udigrudi, dando a entender que se tratava – se é que realmente não era – de uma história pouco planejada enquanto roteiro, criada ao longo da própria execução. É nítida a influência já marcante da estética expressionista neste trabalho, bem como a influência de autores como Kafka 3 , Dostoievsky 4 e Augusto dos Anjos 5 . Também havia o farto uso do recurso narrativo extra-balão, o preto e branco do nanquim e o uso gráfico das letras, cuja expressividade reforçava a angústia da história. Todos estes elementos, em maior ou menos grau, acompanhariam o autor ao longo de sua trajetória.

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Autor de clássicos da literatura moderna, como A Metamorfose (1912), Um artista da fome (1922) e os romances O Processo (1914) e O Castelo (1922). Nascido em Praga, em 1883, notabilizou-se pelas histórias sufocantes, de paranoia, delírios, culpa e solidão como fuga. 4 Nascido em 1821, em São Petersburgo, escreveu clássicos como Crime e Castigo (1866), Memórias do Subsolo (1864) e Irmãos Karamazov (1881), de cenas febris e dramáticas, onde os personagens apresentam comportamento escandaloso, e atmosferas explosivas. 5 Poeta brasileiro nascido em 1884, é identificado muitas vezes como simbolista, parnasiano ou mesmo pré-modernista. Sua morbidez e contundência ficaram imortalizadas em Eu e Outras Poesias (1912).

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FIGURAS 4 E 5 - Página de “Solidão”. Fonte: MUTARELLI, Lourenço. Over-12. São Paulo: Pro-C, pags. 3 e 5, 1988.

Em seguida, Over-12 trazia histórias curtas de personagens cômicos – Erasmo Roberto, Hipererói e Zé-o-Músico, um esboço humorístico que não teve sequência.

FIGURA 6 E 7 - Erasmo Roberto e Hiperrói, duas experimentações cômicas. Fonte: MUTARELLI, Lourenço. Over-12. São Paulo: Pro-C, pags. 7 e 8, 1988.

Não por acaso, Lucimar Ribeiro Mutarelli e Liber Paz se complementam na análise destas duas vertentes presentes no fanzine. A primeira fala, sob ótica pessoal em matéria produzida para o site Etcetera e publicada em seguida no livro Impessoal, em 65


tentativa de aceitação por meio do humor. O segundo, ao citar Solidão, preconiza o que viria:

(...) Mutarelli dá uma vaga idéia de como teria sido o seu trabalho se tivesse sido aceito para ser publicado em revistas como a Circo. Este trabalho é um registro da tentativa dele em fazer humor. Percebo nessas histórias “engraçadas” uma despreocupação com roteiro ou desenho. Uma necessidade de produzir rápido, sem técnica. Talvez porque estivesse trabalhando em uma linguagem que não dominava; a linguagem do humor fácil. Seu caminho ainda estava a ser definido. Particularmente, agradeço a esses editores por não terem dado a oportunidade ao quadrinhista porque o humor das histórias é muito infame, sem sentido e o riso sai mais nervoso, mais patético do que propriamente engraçado. (MUTARELLI, 2009, p. 67)

Liber Paz aproxima o humor do autor ao existencialismo:

Em Solidão, Mutarelli não utiliza o humor para elaborar críticas à realidade, como era de praxe entre os artistas do período, valendo-se do tragicômico, da ironia existencial. Nessa história encontramos as características básicas da obra de Lourenço Mutarelli, que estarão presentes em maior ou menor grau durante toda a sua carreira: o existencialismo, a melancolia, a introspecção e o desespero. (LÍBER, 2008, p. 128)

Como cartão de visitas, Over-12 trouxe pequenos avanços, como o primeiro contato de Mutarelli com o editor Rogério de Campos, que o incluiu em Mau, espécie de fanzine que vinha encartado na revista Animal. O segundo fanzine, Solúvel (Pro-C, 20 páginas, 1989), trouxe um domínio técnico relativamente maior, de desenhos melhor pensados na ocupação das páginas. Novamente, o humor e o trágico convivem: as histórias “Butéco” e “Pequeno Príncipe” trazem um humor através do ridículo do personagem; “Capitão Capitãe”, em ironia quanto aos super-heróis semelhante ao Hiperrerói, é um herói intergaláctico que resolve um caso mórbido com solução igualmente mórbida; “Piegas City”, “João” e “Objeto de Prazer” retornam ao universo sufocante, sob metáforas existencialistas e sexo desprovido de prazer.

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Percebe-se aqui a arte-final melhor planejada e realizada, com luzes e sombras bem elaboradas e o mesmo traço agressivo, que faz alusão aos pintores expressionistas. Ainda não completamente apurada, tal técnica de excessivo uso do preto e de hachuras leva a um exagero de informação:

Das primeiras histórias, em que havia uma procura pela linguagem própria, até seu trabalho mais maduro, permanece um nervosismo, uma característica “trêmula” no traço e uma tendência de preencher os vazios, seja com manchas e texturas de nanquim que representam sombras escuras e quase onipresentes, até detalhes meticulosos em personagens e objetos. Essa “ansiedade” contida no desenho e a saturação dos elementos visuais (sejam sombras ou detalhes) refletem muito acerca dos temas mais recorrentes do artista. (PAZ, 2008, p. 122)

FIGURAS 8 E 9 - Páginas de “Capitão Capitãe” (esquerda) e “Objeto de Prazer”. Fonte: MUTARELLI, Lourenço. Solúvel. São Paulo: Pro-C, pags. 3 e 11, 1989.

Completa ainda essa “bibliografia extraoficial”, por assim dizer, a minirevista As Impublicáveis (28 páginas, 1990). Nela, mais do traço expressionista e o senso de humor doentio. Mais que isso, a presença das patologias psiquiátricas e da deformação física que retornariam em breve nos álbuns. Destacam-se o “Pintagol”, tirinhas de trocadilhos nonsense com velhos ditados, e o Champion, o garoto autista que proferia tiradas existencialistas por demais depressivas. Seu slogan: “Se você não pode mudar o mundo, mude-se do mundo, seja autista”. Nesta época, Lourenço também 67


trabalhou, em publicações esparsas, com O Cãozinho Sem Pernas, personagem cuja deficiência física não o impedia de persistir e, nesta persistência, provocar profundo incômodo no leitor pelos comentários depreciativos da narração.

FIGURA 10 - Champion, o menino autista. Fonte: MUTARELLI, Lourenço. As Impublicáveis. São Paulo: Pro-C, p. 24, 1988.

Em palestra para o projeto Diálogos, no Centro Cultural da Juventude Ruth Cardoso, o próprio autor comenta a predileção pelo avesso físico e psicológico:

Acho que meu trabalho no começo era muito agressivo. Meu traço é pesado, é agressivo, mas minha intenção não é a de agredir. A minha intenção é que eles façam parte, porque eles fazem parte da minha vida. Eu namorei uma garota que era deficiente, tenho amigos que são deficientes. E a gente é muito deficiente. A gente, mesmo estando inteiro, é completamente incompleto. (MUTARELLI, 2007)

Para o blog Meia Palavra, uma breve percepção do anti-herói em sua obra:

Eu acho que falo do ser humano e ele por natureza é um anti-herói. Nunca fui um leitor de super-heróis, sempre gostei mais de quadrinhos autorais. Os heróis nunca me convenceram. (MUTARELLI, 2010, n. p.)

A mesma percepção sobre o herói e predileção pelo que está à margem da sociedade, bem como a linguagem gráfica condizente com este campo, seguirão no lançamento de Lourenço Mutarelli em direção a obras de maior fôlego. A sequência de

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álbuns que começa com Transubstanciação e que lançará as bases de sua arte, como descreveu Edgar Franco no artigo Quadrinhos Brasileiros ou Universais?:

Seu Expressionismo visceral e contundente começou a impressionar o cenário nacional a partir do lançamento de seu primeiro álbum, o premiado Transubstanciação. Iconoclasta no texto e no traço, seus roteiros fazem referência a poetas simbolistas como Augusto dos Anjos. (FRANCO, 2005, p. 53)

4.2. Primeiros álbuns e divisão cronológica A transição dos anos 80 para os 90 não foi fácil para o mundo das histórias em quadrinhos brasileiras, tampouco para a arte e a vida de Lourenço Mutarelli. A crítica ao cotidiano urbano das grandes cidades, atrelada ao público das várias tribos urbanas (punks, heavys, skatistas, hip-hop, etc), trouxeram bastante visibilidade às publicações, é verdade. Em contrapartida, criaram uma saturação de mercado, em que os 100 mil leitores que devoravam os números de Chiclete com Banana tiveram outras, digamos, 20 outras opções disponíveis nas bancas. Essa concorrência não seria maior problema e até poderia, quem sabe, alavancar o mercado editorial pela competição, mas a situação econômica brasileira não deixou isso perdurar. O desastroso Plano Collor, do então presidente Fernando Collor de Melo, comprometeu sensivelmente a produção cultural brasileira - o que também chegou às histórias em quadrinhos. Além disso, o autor vivia uma crise física e psíquica que influenciaram diretamente sua obra. O artista sofreu de crises de Síndrome de Pânico, distúrbio neurológico que faz com que a pessoa, sob alta ansiedade e sensação de morte, perca impulsos básicos. Sem sequer sair de casa ou mesmo levantar da cama, parecia impossível a criação. Dessa forma, quase de maneira terapêutica, Lourenço Mutarelli (2010) teve que produzir aos poucos, de modo que o primeiro álbum foi feito, em suas palavras, “num momento muito profundo, eu ficava deitado no chão da sala e, quando eu tinha forças, ia desenhando”. Antes, no entanto, cabem aqui duas classificações que muito dizem a respeito de uma organização da obra quadrinística do autor. Lucimar Ribeiro Mutarelli e Liber Paz, autores que se debruçaram academicamente sobre essa obra como objeto de pesquisa, fazem esquemas estéticos e cronológicos semelhantes. Lucimar, em 2004, falava em três fases, sendo elas: 69


a. O início de sua carreira (1988-1990) b. Os quatro primeiros álbuns lançados (1991-1996) c. A série de álbuns com as histórias do personagem Diomedes (1999-2000) Vale considerar, claro, que na época não havia ainda o álbum A Caixa de Areia, tampouco o recém-lançado Quando Meu Pai se Encontrou com o ET Fazia um Dia Quente, de 2011. Paz, portanto, acrescenta pouco à conceituação de Lucimar: a. Início de carreira (1988-1990) b. Quatro primeiros álbuns (1991-1996) c. As Histórias Coloridas (1998-2000) d. A Trilogia do Acidente – Série de álbuns do personagem Diomedes (19992000) e. A Caixa de Areia (2006) Liber Paz, portanto, apenas acrescentou o último tópico e, entre os quatro primeiros álbuns, incluiu um tópico em que consta apenas o álbum Animal Pet. Nesta obra, produzida paralelamente aos álbuns detetivescos (por isso a única coincidência de datas), foram compiladas as histórias curtas publicadas originalmente no site Cybercomix. Também salta aos olhos nesta divisão a presença das obras protagonizadas por Diomedes, o que serve de parâmetro para principiar a singularidade desta fase na bibliografia de Lourenço Mutarelli.

O bizarro e o insólito têm presença marcante em sua obra tanto nos recursos gráficos quanto nos eventos narrados, com maior expressividade no início de sua produção (os álbuns Transubstanciação, Desgraçados, Eu Te Amo Lucimar e A Confluência da Forquilha). Em suas produções mais recentes, como a série de álbuns do detetive Diomedes e A Caixa de Areia, o bizarro e o insólito ainda estão presentes, mas de maneira mais sutil e atenuada. (PAZ, 2008, p. 122)

A Trilogia do Acidente, uma categoria por si só, em que perduram muitos dos temas anteriores, mas suavizados ou acrescidos de estética e narrativa diferente.

4.3. Transubstanciação

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O álbum Transubstanciação (1991) nasce, antes de tudo, dessa necessidade de produzir, ainda que a conta-gotas. Soma-se a isso o fato da Editora Dealer ter bancado os custos de uma empreitada de maior estrutura, que ultrapassava em estética e em produto final os simples fanzines, que nunca ultrapassaram 30 páginas e eram, do início ao fim, produzidos artesanalmente. Nesse volume, Lourenço Mutarelli estabelece o formato com que vai trabalhar ao longo do tempo, cuja definição de “álbum” lhe agrada mais do que “graphic novel”. Apegado aos europeus Tintin e Corto Maltese, o autor sintetiza sua aversão ao termo norte-americano:

Não sou tão anti-americano, mas o bastante para não gostar do termo “graphic novel”. Nunca gostei desse título. Eu me inspirava nos álbuns europeus. Fazer a história como um livro, dividir em capítulos. Tentava fazer um álbum por ano, o que eu consegui a duras penas. (MUTARELLI, 2010)

Dessa forma, Transubstanciação é, física e esteticamente, um álbum. Sua história é relativamente longa e fechada em si, analogamente a um livro, um romance. As 47 páginas foram divididas em introdução (de autoria de Fábio Zimbres), prólogo, epílogo e oito capítulos entre eles – cada um com uma página de abertura, contendo número, título e uma breve ilustração. Em uma época que ainda havia presença considerável desse formato em bancas, o álbum vendeu cerca de 13 mil cópias e faturou importantes prêmios, entre eles o da Primeira Bienal Internacional de Quadrinhos, na categoria melhor história do biênio, Prêmio Ângelo Agostini e Prêmio HQ Mix. A história é protagonizada por Thiago, jovem que se diz poeta, mas é considerado louco. Thiago passeia por ruas escuras à noite, superpovoadas durante o dia, e sua casa insalubre em que a bagunça de uma sala cujo centro é uma mesa de desenho não deixa maiores dúvidas: trata-se de um alterego do autor. Se não vive exatamente as mesmas histórias que Lourenço vivia na vida, ao menos sofre paranoia semelhante:

Como desdobramento do desenvolvimento temático e artístico das histórias em quadrinhos, sobretudo a partir da década de 1960, alguns autores começaram a utilizá-las como expressão pessoal. Vários deles 71


viram nos quadrinhos possibilidades que iam além da estrutura comercial. Uma conseqüência disso foi o surgimento de histórias autobiográficas, construídas a partir de memórias pessoais e narrativas que contam situações e acontecimentos da vida do próprio autor. (MENDONÇA, 2009, p. 45)

O preto e branco do nanquim, aqui, não economiza nos detalhes dos cenários, que guardam segredos e metáforas. Além disso, vai prezar por lugares insalubres, cujo traço grosso do preto dá o tom sombrio desde o início da trama:

Há também uma forte sensação de insegurança e ansiedade refratadas em seus desenhos e histórias, que representam em sua grande maioria a vida dentro da cidade moderna ou alegorias desta vida. Essa insegurança e incerteza desconfortável ecoam o “estado permanente de crise e renovação” característico da humanidade. Ao longo das histórias de Mutarelli, podemos perceber que a cidade e sua arquitetura são cenários constantes, praticamente uma segunda natureza. (PAZ, 2008, p. 122)

FIGURAS 11 E 12 - Ambiente urbano (esquerda) e casa do protagonista (direita). Transubstanciação. Fonte: MUTARELLI, Lourenço. Transubstanciação. São Paulo: Dealer, págs. 31 e 17, 1991.

O roteiro se desenvolve através dos diálogos, mas tem auxílio de um narrador onisciente que, no meio da trama, é trocado para a narração do próprio 72


protagonista. Em seus delírios urbanos, Thiago lança mão do cortejo pela morte, que sempre rondará as histórias de Mutarelli. Pelo caminho, desilusões amorosas e sexuais, bem como uma relação familiar conflituosa. Ao final, o assassinato e suicídio do protagonista. O circo de horrores desses personagens transpõe o plano metafórico e se reflete nas próprias deformações corporais. Para retratar Zoster, o pai do protagonista, por exemplo, o autor vai muito além do precursor Cãozinho Sem Pernas, criando um personagem de quatro braços, duas cabeças e uma genitália à mostra. Zoster é uma atração de circo. Mais precisamente o Grande Circo, exatamente o mesmo que seria retomado anos depois, nas histórias de Diomedes. Outro personagem, amigo de Thiago, não tem uma das pernas e, nem por isso, deixa de usar trocadilhos politicamente incorretos para tratar de si mesmos:

FIGURA 13 - Zoster, pai do protagonista e atração de circo. Fonte: MUTARELLI, Lourenço. Transubstanciação. São Paulo: Dealer, p. 34, 1991.

Em análise geral, as histórias são como um circo de horrores. Mutarelli usa esse arquétipo da fantasia para retratar sua visão desoladora de mundo. Em vários momentos, o cenário urbano sai para a entrada de um espaço indefinido, onde uma criatura aterrorizante fala como Deus. Na ocasião de relançamento da obra, Carla Nascimento, no site do jornal Folha de São Paulo, descreveu a obra como repleta de: Metáforas e simbolismos, como um encontro de Thiago com Deus, que "à imagem e semelhança" de Thiago diz a ele que a criação da qual mais gosta são as tampinhas de garrafas de Coca-Cola, ou 73


referências às obras como "O Grito", de Edward Munch, fazem de Transubstanciação uma história que obriga o leitor a ter um olhar muito mais atento. O traço, que assusta, e a utilização de vários recursos de linguagem traduzidos para o papel só podem ser compreendidos à luz de uma frase que Mutarelli coloca na boca de seu personagem: "O que não pode ser compreendido deve ser sentido". E Mutarelli, mais do que nos contar, nos faz sentir as angústias e medos de personagens urbanos. (NASCIMENTO, 2001, n.p.)

FIGURA 14 - Reprodução de O Grito dá o tom de desespero em cena. Fonte: MUTARELLI, Lourenço. Transubstanciação. São Paulo: Dealer, p. 47, 1991.

Os ângulos escolhidos para a formação dos quadros são ricos e expressivos, aos moldes do que o autor aprendeu em ampla leitura de Will Eisner. Lourenço Mutarelli lança mão ainda de “trilha sonora”, por assim, dizer – canções que saem de aparelhos de som ou da própria boca dos personagens. Repertório, em geral, constituído por tangos expressos “através de letras, uso de ícones e principalmente a reiteração constante do espírito triste que este estilo musical transmite” (PAZ, 2008). A fixação pelo tango e a tentativa de reproduzir graficamente uma trilha sonora percorrerá as criações de Mutarelli e chegará até o detetive Diomedes, ele próprio um aficionado pelo ritmo argentino. Transubstanciação é, em suma, uma obra crucial na bibliografia do autor, de importância semelhante à Trilogia do Acidente. Lucimar Ribeiro Mutarelli compara os dois momentos: 74


O reconhecimento da crítica especializada e dos parceiros da área dos quadrinhos delimitou, para Mutarelli, o espaço necessário para continuar a contar suas histórias. Desta forma, esta história representa a primeira grande afirmação do estilo do artista, que só seria superado pela criação da trilogia com o detetive Diomedes, anos depois. (MUTARELLI, 2004, p. 77)

É nesta empreitada que ele conquista para si o rótulo de “quadrinista autoral” e apresenta todo o universo grotesco ao qual vai constantemente recorrer e cujo respeito parte do público e chega à crítica.

4.4. Desgraçados Ainda no ano de 1991, Lourenço Mutarelli escreveu uma série de histórias curtas para a revista Mil Perigos, que surgiu no rastro do “boom” editorial dos anos 80 e trouxe à tona, em cinco edições, alguns importantes nomes da época, como Marcatti, Luís Schiavon, Glauco Mattoso, Bira, Patati e Adão Iturrusgarai. Estas histórias, antes independentes entre si, foram reavaliadas pelo autor e, após pequenas modificações, lançadas em 1993 como um álbum em que, supostamente, as narrativas se entrelaçam de alguma maneira. Nas 96 páginas, totalizam-se seis episódios, abertos novamente como capítulos, em que sempre há uma ou duas citações bíblicas. Novamente, a solidão dos personagens e sua caracterização em direção ao grotesco incomodam e chocam. A culpa religiosa é sublinhada por rituais macabros, perversões sexuais e novas mutilações e deformações físicas. Repete-se também a predileção pelos desvios psiquiátricos. No quarto episódio, o personagem Thiago, internado em um sanatório, tem de lidar com um psiquiatra sádico, que afirmar: “A única coisa que nos torna diferentes é que eu possuo a chave do portão” (MUTARELLI, 1991). Acuado, o paciente assassina o médico e põe a morte novamente como fim da trama.

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FIGURA 15 – Psiquiatra e paciente em Desgraçados. Fonte: MUTARELLI, Lourenço. Desgraçados. São Paulo: Vidente, p. 57, 1993.

No artigo Mundo de Desgraçados: duas ou três coisas sobre um primeiro Mutarelli, Ciro Marcondes descreve assim o álbum, em comparação com Diomedes:

Em primeiro lugar, vale esquecer um pouco o traço mais fino e sofisticado que Mutarelli desenvolveria mais tarde em suas obras mais consistentes e famosas, do detetive Diomedes (especialmente em O dobro de Cinco). Aqui, o uso do preto-e-branco, da deformação anatômica, da colagem e outros procedimentos mais “marginais” é intencionalmente grotesco, sem busca de qualquer elegância. A sexualidade é mostrada em corpos esquálidos, famélicos, flácidos, que despertam uma libido desesperada e incontrolável em quase todos os personagens. Não se trata de vulgaridade. Trata-se de outra coisa, uma essência erótica primitiva, claramente disposta a atravessar qualquer tipo de obstáculo, físico ou moral (...) Pensemos, portanto, que se Mutarelli cria um psicanalista que não acredita no próprio ofício, mas ao mesmo tempo se preocupa com seu paciente mesmo na hora de sua própria morte, ele adota a impensável atitude de viabilizar o caminho do infortúnio, fazendo questão de nos avisar que devemos dar chance ao extremo: deixar a loucura consumir os loucos, a psicopatia consumir os psicopatas, a desgraça consumir os desgraçados. (MARCONDES, 2011)

José Salles, ao analisar a revista em que essas histórias foram publicadas originalmente, também recorre à comparação com a Trilogia do Acidente: 76


Imagino que as pessoas que se debruçarem sobre a obra deste artista, com intenção de pesquisá-la com seriedade, descobrirão que é impossível analisá-la sem conhecer a vida pessoal do homem-autor. Sei que estas HQs publicadas na Mil Perigos são de uma fase, digamos, mais hard-gore (com “g”, mesmo), e a partir do álbum O Dobro de Cinco com o detetive gorducho Diomedes, o trabalho do ilustrador paulistano mostra sensível mudança de estilo/sentido. Paro por aqui, deixo aos historiadores do futuro um entendimento mais adequado sobre este assunto – mesmo porque, Mutarelli ainda tem muito a fazer e nos legar. (SALLES, 2007)

FIGURA 16 - Escatologia, perversão, blasfêmia e nova referência ao tango. Fonte: MUTARELLI, Lourenço. Desgraçados. São Paulo: Vidente, p. 8, 1993.

Em análise mais retida, Liber Paz e o próprio autor frisam que é justamente nesses excessos que Desgraçados, enquanto narrativa gráfica, se perde:

Um dos problemas é o fato do livro ser composto de histórias que não haviam sido pensadas para integrar-se em uma unidade narrativa. (...) O equilíbrio do álbum é comprometido também pela visão de mundo extremamente negativa, que adquire tons de religiosidade irracional, com a angústia existencial ganhando características de dogma fundamentalista. (PAZ, 2008, p. 151)

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Lourenço chega a se opor à reedição da obra:

(...) uma série de problemas que eu tinha, a dificuldade que eu estava vivendo, que tinha passado a vida inteira. Era meramente terapêutico, um jeito de drenar. Desgraçados é um livro que eu me envergonho, eu não queria reeditar, acho ofensivo. É minha fase heavy metal, uma coisa meio juvenil, que o pessoal vai e grita, tira as calças, tentando sei lá o quê. (MUTARELLI, 2000, n. p.)

É bem verdade que, nesse trabalho, Lourenço usou de intrincado jogo de luz e sombra e colagens de fotografias expressivas que trouxeram elementos gráficos antes inexistentes em sua obra. Com isso, trouxe dramaticidade de gestos aos personagens. Porém, seu traço trêmulo, que já lhe era característico e esperado pelo público, chegou ao ponto em que até mesmos os cenários expressam essa movimentação – e os gestos, assim, se tornaram gratuitos. Desde os pioneiros Will Eisner e Robert Crumb, muitos grandes artistas usaram de experiências pessoais para criar seus dramas. Lucimar Ribeiro Mutarelli (2009) analisa de forma semelhante o exagero e conclui que o quadrinho autoral, neste caso, “partiu para um lado pessoal demais e acabou se desviando de um dos objetivos de qualquer linguagem artística: a comunicação”.

4.5. Eu te amo Lucimar e Confluência da Forquilha Lançado em 1994, pela editora Vortex, Eu te amo Lucimar continha a mesma estrutura livresca que os anteriores: são quatro partes, somando ao todo doze capítulos, sendo que cada capítulo tem uma página inicial que indica título e número, além de uma ilustração. Os dois álbuns seguintes carregam, na medida do que é possível para os padrões do autor, alguma leveza. A pessoalidade dos relatos, no entanto, permanece lá. Lucimar Ribeiro Mutarelli, no livro Impessoal, abre mão da academicidade e conta coincidências entre realidade - vivida por ela enquanto esposa de Lourenço Mutarelli - e ficção, que muito têm a dizer sobre esta história. Os protagonistas, por exemplo, são gêmeos porque ela é do signo de gêmeos. A personagem Maria teve 78


Lucimar como modelo físico e, na lápide dela, havia letras que se referiam à mãe da esposa. Entre essas e outras similaridades, no que se incluem coincidências numéricas, ganham importância especial as ruas do bairro Itaim Paulista, em São Paulo, onde o casal passou os dois primeiros anos de casados. A localidade voltaria a ganhar relevância no álbum seguinte, A Confluência da Forquilha. O álbum se diferencia pela composição gráfica que envolveu. Mutarelli passou o desenho de observação para criar cenários e personagens, o que garantiu o realismo e pessoalismo da história. Além disso, usa aguada, técnica que consiste em água ao nanquim para obter outras tonalidades que não o “preto pelo preto”. Além disso, o roteiro ganhou traços mais bem definidos, sóbrios em descrições de ação em ação, quadro a quadro, além da sensível diminuição da verborragia que lhe era característica. Eram descrições mais detalhadas, esboçadas em cadernos com enquadramentos e diálogos especificados. A diagramação das páginas, também mais simples, contribui para a leitura menos problemática.

FIGURA 17 - Detalhe de página em Eu te amo Lucimar. Fonte: MUTARELLI, Lourenço. Eu te amo Lucimar. São Paulo: Lilás, p. 59, 1994.

Inspirado novamente no poeta Augusto dos Anjos, a fixação pela morte segue como temática. No capítulo 11 da obra, o autor chega a citar trecho de O vôo do augusto anjo, do poeta paraibano. Ambos, poeta e quadrinista, guardam profunda curiosidade pela estética da morbidez, quase a venerando em diversos momentos e, mais que isso, analisando-a de uma maneira cientificista que beira a repulsa. Os personagens Cosme e Damião, irmãos de vida breve, passam por momentos que ridicularizam a existência humana. Mais uma vez usando de sonhos e alterações psíquicas dos personagens, Lourenço Mutarelli repete também a morte como desfecho da trama: 79


A temática que mais parece agradar ao artista é explorar ao extremo o lado patético da sociedade, refletir sobre o comportamento social com o exemplo da família e conflitos discutidos de uma maneira direta e sarcástica, porém, ao mesmo tempo, de forma concomitante, melancólica, para que cada um reflita sobre o seu cotidiano, sua luta diária e suas próprias ambiguidades. A impressão que se tem ao final da narrativa é que, para Mutarelli, entre seus personagens não existem vilões ou mocinhos, são todos perdedores, humanos e solitários. Vagam sozinhos, por mais que pareçam estar juntos. (MUTARELLI, 2004, p. 85)

A Confluência da Forquilha foi publicada dois anos depois, em 1996, pela editora Lilás com apoio da editora Devir. O pequeno atraso aqui, não parece à toa: Lourenço Mutarelli, seguindo os conselhos do editor Gilberto Firmino, que alertava para o desastre econômico que o Plano Collor traria, resolveu sobreviver financeiramente através de ilustrações para os jogos de RPG da editora Devir. Mais adiante, outro editor, Douglas Quintas Reis, o aconselharia na mesma direção. Assim sendo, os quadrinhos passaram a ser uma espécie de hobby em sua vida no período que vai desse álbum até a Trilogia do Acidente. Nesta trama, o protagonista é Matheus, pintor obsessivo que pinta seguidamente a mesma temática, em retratos de uma mesma pessoa. A trama é mais enxuta – 64 páginas, contra as 96 dos dois anteriores – e carrega clareza no modo contínuo de narração. O fato de ser contada em primeira pessoa, pelo protagonista, traz suavidade e um toque convidativo do narrador para com o leitor. Além disso, a minúcia com que o próprio bairro do autor foi retratado, além da clara característica de alterego de Matheus, contribui para o caráter autobiográfico que a narrativa traz. Em comum, segue a temática da deformidade através da personagem Natassja, uma anã sem braços, que se deixa seduzir pelo personagem diabólico Moloc. Este, controlador, dá a ela próteses desproporcionais de seus membros e, em troca, estabelece uma relação de dependência e subserviência da anã para ele. De modo semelhante, o próprio Matheus tem sua produção artística controlada por Moloc. Outro ponto em comum com as histórias precedentes são os remédios sintetizados e consumidos por Moloc para a cura de uma patologia que invade sua cabeça e cuja solução ele não encontra.

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4.6. Caminho aberto ao detetive Na mesma lógica produtiva do hobby não profissional, outros dois anos se passaram antes que uma nova obra assinada por Lourenço Mutarelli chegasse ao mercado. Antes, é verdade, houve o álbum Seqüelas (1998, Editora Devir, 160 páginas), mas este trabalho, ainda que muito interessante para compreender o primeiro momento artístico do autor, é apenas uma coletânea de várias histórias publicadas aleatoriamente ao longo dos anos. Passa pelo conteúdo que figurou em revistas como Animal, Tralha, Mil Perigos, Brazilian Heavy Metal, Astronauta, Meia de Seda, Porrada, Lúcifer e Panacea, além dos fanzines do autor e duas histórias inéditas. Ganhador de um prêmio HQMix, este livro traz ainda interessantes comentários do próprio autor a respeito deste seu início de carreira, os defeitos e qualidades com que via seus primeiros trabalhos, agora com distanciamento de alguns anos. Lucimar Ribeiro Mutarelli (2004) conta de um encontro rápido, mas decisivo na nova guinada artística. Em 1995, Lourenço esteve em um evento de quadrinhos que trouxe o multipremiado quadrinista David Mazzucchelli 6 ao Brasil. Mutarelli teve contato com o livro City Of Glass, do norte-americano, uma adaptação para as HQs de uma história policial do romancista Paul Auster. De posse de uma versão em inglês do livro – a tradução para o português foi lançada apenas três anos depois -, Lourenço Mutarelli não conseguiu decodificar a história com um todo, mas ficou maravilhado com o traço, o ritmo da narrativa e, em especial, a temática do romance policial, com a qual sempre pensou em trabalhar. A tal condição de “quadrinho como hobby” foi importante nesse sentido:

Como os quadrinhos haviam passado para o segundo plano na vida profissional de Mutarelli, ele desejava criar uma história que tivesse prazer em ler. O artista diz que sentia falta da aventura nos quadrinhos, da era clássica, quando havia uma preocupação maior com o conteúdo e com a forma. Influenciado também pelo desenhista francês Tardi, (...) pelo quadrinista italiano Lorenzo Mattotti na obra Indidenti, pelo filme Pulp Fiction, que deu uma nova vida às histórias policiais, e à descoberta do Tarô, em que se busca a verdade de cada um, Mutarelli mergulhou no mundo dos romances policiais (MUTARELLI, 2004, p. 92)

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Nascido em 1960, foi desenhista de momentos cruciais do mundo dos super-heróis, como o Demolidor em A Queda de Murdock (1986) e Batman em Batman: Ano Um (1987), ambos tendo Frank Miller como roteirista. Autor também da série Rubber Blanket (1991) e da graphic novel Asterios Polyp. (2009).

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Será inaugurada, assim, a terceira fase - ou quarta, se considerarmos as histórias coloridas de Mundo Pet, que só seria publicado em 2000. O Dobro de Cinco, primeiro álbum da trilogia, começou a ser construído em 1997 e só foi concluído dois anos depois, novamente em lançamento pela editora Devir. Nesta nova empreitada, o autor passou a produzir diretamente para o mercado de livrarias. Waldomiro Vergueiro cita, em A Atualidade das Histórias em Quadrinhos no Brasil, o trabalho da Devir como pioneiro nessa nova lógica de mercado consumidor, mais adulto, de preços mais elevados, mas melhor qualidade e liberdade editorial:

Grande parte dessa produção destinada ao público adulto é veiculada em espaços diferentes das tradicionais bancas de jornal, o que pode dar a impressão de que é iminente o abandono das bancas como espaço privilegiado para comercialização de histórias em quadrinhos no Brasil. (...) Uma análise de mercado brasileiro de quadrinhos nas últimas duas décadas permite constatar que o número de publicações direcionadas ao público adulto aumentou substancialmente, embora a publicação de títulos para o público infantil e adolescente seja ainda bastante substancial. Isto é muito significativo em relação ao futuro da linguagem gráfica sequêncial no Brasil, pois sinaliza para o atendimento a uma demanda que até recentemente se encontrava órfã (VERGUEIRO, 2007, p. 10)

Lourenço Mutarelli parte então para uma empreitada que trará novos rumos, mas que não se distanciará completamente das bases aqui fundamentadas. A veia cômica, ao menos aquela escancarada, se perdeu ainda no primeiro álbum e não será em Diomedes que ela retornará. Será observado no próximo capítulo que o gosto pelo grotesco seguirá, assim como a tendência a observar psicopatias, seus tratamentos e efeitos reversos de uma agressividade sufocante, perversão sexual e atritos familiares. No caminho, enquanto narrativa, vai surpreender os dois lados desse encontro em Diomedes: o leitor acostumado às suas abordagens anteriores do autor e o leitor apegado às fórmulas nem sempre inovadoras do romance policial. Será um Mutarelli mais “limpo”, com predileção pela agilidade e relativa sobriedade de informação, como sugeriram em comparação os artigos supracitados, mais pop até (como chegou a definir Liber Paz), mas com gosto pela surpresa que não deixa a desejar ao que já vinha praticando:

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Em todos os álbuns, a condução da narrativa é marcada por uma sucessão de desmentidos, de novas informações e reviravoltas. Essas surpresas parecem querer contrariar as estruturas pré-definidas de gênero e narrativa. Em parte, o autor quer surpreender não só ao leitor, mas a si mesmo com o desenvolvimento da história. Por outro lado, há a busca de captar nas histórias a imprevisibilidade da própria vida, que rompe com os paradigmas narrativos de gêneros como os quadrinhos de aventura e os romances policiais. Está é a Trilogia do Acidente, onde o acaso e a coincidência também parecem protagonistas. (PAZ, 2008, p. 168)

FIGURA 18 - Diomedes. Fonte: MUTARELLI, Lourenço. A soma de tudo - Parte 1. São Paulo: Devir, p. 64, 2001.

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5. A Trilogia do Acidente

Após os fanzines e álbuns da primeira fase, Lourenço Mutarelli se dedicava às histórias coloridas para o site Cybercomix (que resultaram no supracitado álbum Mundo Pet) e ao início das histórias que rondam o personagem Diomedes. Apelidada de “Trilogia em Quatro Partes”, o conjunto de livros que tem o detetive como protagonista traz isso mesmo o que a contabilidade incoerente sugere: algo que esteve, a partir de certo ponto, quase caminhando por si mesmo. Os dois primeiros álbuns, O Dobro de Cinco (1999) e O Rei do Ponto (2000), seguiram a lógica da produção de quadrinhos como hobby e resultaram em uma cronologia de um álbum por ano. Porém, A Soma de Tudo tomou espaço maior do que Lourenço Mutarelli planejou a princípio e se desdobrou em duas partes, a primeira lançada em 2001 e a segunda em 2002. Na palestra para o projeto Diálogos, no Centro Cultural da Juventude Ruth Cardoso, o autor explicou o envolvimento pessoal que provocou a logística improvável:

O personagem que eu mais gosto em quadrinhos é o Diomedes. Primeiro, porque foi o que me trouxe muito retorno e porque ele fez com que eu tivesse fôlego para fazer uma história de 400 páginas. Com ele, tinha uma coisa que eu sempre achei frescura: quando dizem que o personagem começa a tomar vida. Ele foi meu primeiro personagem a ganhar vida. Para ter uma ideia, eu escrevo o roteiro que eu vou desenhar e escreve todos os diálogos. O Diomedes é um personagem que, quando eu ia colocar o diálogo no papel, é como se ele dissesse: “Eu não digo isto desta forma”. Então alguns diálogos eram mudados na hora porque ele não aceitava dizer aquilo daquela forma. Então ele foi o personagem mais vivo que eu já tive. Um personagem que eu já até sonhei com ele. (MUTARELLI, 2007)

E a vida em Diomedes, não é exagero dizer, começa a tomar forma quase sem querer. De início, o personagem Hermes seria a figura principal do enredo em O Dobro de Cinco, como admite o próprio autor. Novamente sob os moldes europeus, o álbum é dividido em capítulos e, como também já feito anteriormente, cada personagem abre um capítulo, ilustrando a página de abertura com seu respectivo “retrato” e nome. Sugere-se assim que o capítulo a ser aberto terá aquela figura central como protagonista. O primeiro capítulo e vários outros tem o retrato de Hermes. É ele quem vai desencadear o início da trama ao acionar um detetive profissional para que ele busque

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uma pessoa. Hermes é, na definição do próprio autor “um personagem em que eu me desenhei, só que com a cabeça maior” (MUTARELLI, 2001, n. p.). A partir disso, não parece exagero pensar que a autoreferência das narrativas tinha potencial para voltar aqui, e em algum nível isso realmente aconteceu, mas não tomou conta da trama como um todo. Waldomiro Vergueiro observa essa mudança e a descreve sucintamente:

“Mutarelli, nos últimos anos, tem se aproximado do conteúdo mais ficcional, menos autobiográfico, com Diomedes, enveredando pelo policial noir” (VERGUEIRO, 2007, p. 13)

Jean Canuto, no prefácio de A Soma de Tudo – Parte 1 empreende observação semelhante:

Posso ressaltar também que esta é uma obra completamente diferente de todas as outras já feitas pelo Mutarelli. Talvez a menos introspectiva delas, mas mesmo assim trazendo pitadas de sua vivência. O personagem Diomedes, por exemplo, foi composto tendo como inspiração o próprio pai, que era policial. (CANUTO, 2001, p. p. 6)

Lucimar Mutarelli, por sua vez, relativiza a questão:

Cansado de representar personagens sempre muito parecidos consigo mesmo, [o autor] passou a usar outras referências físicas para desenvolvê-los. Escolheu a temática policial por gostar do gênero e por sentir falta do assunto nos trabalhos de quadrinhos. Mesmo o seu público fiel, acostumado a roteiros mais angustiantes e perturbadores, conseguiu perceber em Diomedes traços psicológicos das criações anteriores, ou seja, Mutarelli mudou o gênero, mas manteve sua essência, seu estilo, causando-me espanto. Aprendia a identificar a marca de Lourenço nas histórias de Diomedes. (MUTARELLI, 2009, p. 80)

Beatriz Sarlo ocupar-se do tema da narrativa autobiográfica em Tempo Presente: notas sobre a mudança de uma cultura¸ observa que há sempre um hiato 85


entre a experiência e a narrativa da experiência, em que este ínterim “é ocupado por operações linguísticas, discursivas, subjetivas e sociais do relato da memória” (SARLO, 2005, p. 99).Neste caso, o hiato em Mutarelli ganhou mais espaço no ato de narrar e fez expandir a subjetividade da relação vida do autor/história narrada, antes mais identificável. Não por acaso, Hermes não é o único personagem que se parece com o autor. Outros se seguem a ele, por exemplo: Zigmundo Mussarela, o tal pseudônimo com quem assinava o Pato Camaleão, ganha vida em A Soma de Tudo – Parte 2, muito parecido em físico e discurso com o autor; o cego Glauco Mattoso, poeta marginal, amigo pessoal de Lourenço Mutarelli, é desenhado em O Rei do Ponto; seus editores na Editora Devir, Mauro dos Prazeres e Douglas Quintas Reis, também são retratados, sob pseudônimos, em A Soma de Tudo – Parte 2; uma viagem de Diomedes para Portugal é francamente inspirada na ida do próprio autor para aquele país; durante os quatro livros, vários cenários, paulistanos e lusitanos, são facilmente verificáveis.

FIGURA 19 - Poeta Glauco Mattoso. Fonte: MUTARELLI, Lourenço. O rei do ponto. São Paulo: Devir, p. 52, 2000.

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FIGURA 20 - Zigmundo e Paulo dos Fazeres, pseudônimos de autor e editor. Fonte: MUTARELLI, Lourenço. A soma de tudo - Parte 2. São Paulo: Devir, p. 48, 2002.

Além disso, há a livre inspiração paterna em Diomedes, observada por Canuto e corroborada pelo próprio autor em entrevista ao site Universo HQ. Se o amor e a referência ao tango eram marcantes nas duas primeiras fases da obra de Lourenço Mutarelli, ela reaparece na Trilogia do Acidente e ganha analogia na vida real:

Eu sempre me espelhei na Argentina. É uma coisa engraçada, pois eu ouço tango desde que nasci. Eu adoro, ouço muito. O sonho do meu pai é colocar um cigarro aceso na mão de Gardel; é o sonho do Diomedes também. (MUTARELLI, 2000, n.p)

FIGURA 21 - Diomedes e Judith. Fonte: MUTARELLI, Lourenço. O dobro de cinco. São Paulo: Devir, p. 14, 1999. 87


Não é só a autoreferência que agora é relativizada na obra de Lourenço Mutarelli. Também a narrativa em si, do ponto de vista puro do traço ou no desencadeamento dos acontecimentos de um quadro a outro, toma uma sobriedade de direção que nem sempre era alcançada anteriormente. Em entrevista a Paulo Ramos para o site Blog dos Quadrinhos, Liber Paz observa conteúdo e forma em paralelo:

Nos álbuns de Diomedes, ainda estão presentes q melancolia, a angústia e o grotesco, mas de uma maneira mais refinada. O autor está mais maduro e apresenta temas ordenados na forma da história de detetive. (...) Mutarelli lapida sua narrativa, desenvolve sua poética e começa a abordar novos temas, como a questão da representação. (PAZ, 2008, n. p.)

O artista corrobora a afirmação do estudioso, enfocando seu recorrente conflito com o espaço em branco nas páginas:

Na verdade, hoje estou percebendo que não é que o odeio, mas tenho uma profunda dificuldade de lidar com ele, de ocupar bem esse espaço. O Rei do Ponto foi o primeiro trabalho em que consegui me relacionar um pouco melhor com o branco. Acho que, na música, ele seria o silêncio, a pausa. (...) Outra coisa fundamental é que comecei a respeitar o que eu chamo de métrica dos quadrinhos, a divisão de número de quadros por página tem muito pouca variação, e isso é fundamental para a leitura. Eu não estava dando atenção a esse aspecto, que ajuda muito a narrar a história, a fazer a pessoa “entrar” na história. Na trilogia, eu trabalhei muito nessa métrica. (MUTARELLI, 2000, n. p.)

Nessa pausa para respirar em respeito ao ritmo de narrativa, os livros da Trilogia do Acidente se baseiam sua fluidez de leitura. Antes, era comum encontrar nas páginas dos álbuns de Lourenço grande intersecção de quadros, quando uma figura de um requadro “invade”, por assim dizer, o quadro ao lado. Mais que isso, é característico das duas primeiras fases uma riqueza numérica de elementos em um mesmo quadrinho. Vários pequenos detalhes que parecem evocar uma passagem de tempo mais lenta. Quem lê a página é quase obrigado a fazê-lo de forma a se fixar em cada página, contemplativamente e sem pressa, para absorvê-la em sua totalidade de referências gráficas, além da profusão de palavras do narrador e dos diálogos dos personagens. 88


Lucimar Ribeiro Mutarelli observam essa evolução e acrescentam que a economia de elementos por páginas facilitará a agilidade das ações na narrativa, tão caras ao mundo pulp do romance policial:

Fazendo uso da diagramação clássica e quase sempre métrica de seus artistas preferidos, o desenhista desenvolveu uma trama narrativa com muita ação, diálogos inteligentes e um instigante universo para seus personagens. Foram criadas sequências de ação muito bem exploradas pelo desenhista, há uma grande agilidade nos gestos dos personagens que provocam perfeita harmonia sequêncial. Mutarelli consegue imprimir um ritmo visual muito adequado para histórias de aventura. (MUTARELLI, 2004, p. 95)

Liber Paz observa a disposição das páginas:

Durante a Trilogia, Mutarelli apresenta uma estruturação de página divida em três partes iguais no sentido longitudinal. Os quadrinhos da série apresentam uma regularidade em relação ao tamanho. Com relação às transições entre os quadrinhos, há um predomínio do tipo sujeito-a-sujeito e ação-a-ação semelhante às histórias em quadrinhos americanas e européias. (PAZ, 2008, p. 172)

FIGURAS 22 E 23 - O peso da composição em Transubstanciação (esquerda) e a leveza em O Dobro de Cinco. Fonte: MUTARELLI, Lourenço. Transubstanciação. São Paulo: Dealer, p. 40, 1991; ________. O dobro de cinco. São Paulo: Devir, 1999. 89


Aqui, Paz faz uso das transições propostas por Scott McCloud (1994), que tentam explicar o tempo e o movimento entre quadros, no espaço que o autor chama de “sarjeta”, nas histórias em quadrinhos. Embora admita que seja uma ciência inexata, McCloud entende que tal classificação ajuda a entender essa arte que parece quase invisível, na medida em que essas transições, no momento da leitura, são amplamente perceptíveis pelo leitor, mas este nem sempre pode explicá-la. Para McCloud, são seis tipos de transição: momento-para-momento, açãopara-ação, tema-para-tema (ou sujeito-para-sujeito), cena-para-cena, aspecto-paraaspecto e non-sequitur. Utilizando esses conceitos, Liber Paz chega a uma elucidativa observação da Trilogia do Acidente no que ela tem de especificidade narrativa dentro da obra de Lourenço Mutarelli. Para ele, os tipos de transição momento-para-momento e ação-para-ação, são comuns na obra do autor apenas nos álbuns do detetive:

Na obra de Mutarelli, a transição momento-a-momento não é muito comum, sendo mais fácil de encontrar nos álbuns da Trilogia do Acidente. (...) [A ação para ação] também não é muito comum na obra de Mutarelli. Novamente, encontramos um exemplo na Trilogia do Acidente. Em outros álbuns também encontramos esse tipo de transição, mas com pouca frequência. (PAZ, 2008, p. 110)

McCloud classifica esses dois tipos como aqueles que exigem menos conclusão por parte do leitor. No momento-a-momento, a cena envolve uma única ação, um movimento que é decomposto em pequenos segmentos. É bastante utilizado, por exemplo, na tentativa de “um movimento cinematográfico na página” (McCLOUD, 2008, p. 16), quase em câmera lenta. Na ação-para-ação, um único tema é desenvolvido em progressão, onde cada quadrinho apresenta um momento significativo da ação desenvolvida:

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FIGURAS 24 E 25 - Momento-a-momento (esquerda) e ação-a-ação (direita) na Trilogia do Acidente. Fonte: LOURENÇO, Mutarelli. A soma de tudo - Parte 1. São Paulo: Devir, p. 85, 2001; ________. O Rei do Ponto. São Paulo: Devir, p. 100, 2000.

Não por acaso, esses dois tipos predominantes em Diomedes vão ao encontro da maioria dos quadrinhos de aventura, emoldurando precisamente a nova narrativa proposta por Mutarelli nesta sua fase detetivesca. McCloud chega a tomar o grupo de super-heróis Quarteto Fantástico, desenhados pelo mestre Jack Kirby, como exemplo de como a ação-para-ação predomina na busca pela agilidade. Em uma revista de 1966,

Eu contei noventa e cinco transições quadro-a-quadro. Vejamos como elas se subdividem proporcionalmente. No trabalho de Kirby, o tipo mais comum de transição é o de ação-para-ação. Contei sessenta e duas transições desse tipo na história – cerca de sessenta e cinco por cento do número total. (McCLOUD, 1994, p. 74)

Contrariando a possibilidade de ser uma característica norte-americana, Scott McCloud afirma que o europeu Tintin segue lógica semelhante. Como comparação final, vale citar que, nos álbuns que precedem a Trilogia do Acidente, Liber

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Paz observa a predominância da transição sujeito-para-sujeito, o que corrobora a característica mais contemplativa dessas obras.

(...) na obra de Lourenço Mutarelli, a transição sujeito a sujeito prevalece, o que na verdade reflete a predominância de (principalmente) monólogos e diálogos, que são uma das principais características das histórias desse autor. Daí a introspecção e “silêncio” de suas obras, com uma intensidade imensa que não se extravasa através de sequências de ação ou onomatopeias “barulhentas”. (PAZ, 2008, p. 116)

Na medida em que há mais diálogo e menos ação nesses álbuns, permanecese dentro de uma mesma cena ou ideia, apenas contrapondo um personagem que fala em quadro para o outro personagem que responde no quadro seguinte.

5.1. O Dobro de Cinco O álbum que abre a série inicia-se com o encontro de Diomedes com Hermes. O homem magro, de aparência frágil, mas de suposto poder aquisitivo elevado em função dos negócios de sua rica família, chega ao escritório do detetive para lhe solicitar à procura de um homem. Saudoso de um mágico que o fascinou quando criança, Hermes quer esse mesmo ilusionista, hoje desaparecido, para a festa de aniversário de seu próprio filho. Logo de cara, porém, contratante e contratado dão o tom de conflito que seguirá por todo o livro. Não é um diálogo fácil essa introdução que tem Hermes como personagem principal. Os elementos gráficos remetem mesmo ao imaginário noir: o escritório é lúgubre, de iluminação indireta, o detetive fala ao telefone, usa um chapéu que esconde parte de seu rosto e, a despeito do que virá a seguir, parece bastante seguro de si. Mas Diomedes se autoapresenta mesmo, antes de um personagem da série negra, como uma típica “máquina de raciocínio” do romance policial puro. No melhor molde do exibicionismo de Sherlock Holmes ou Hercule Poirot, enfileira seus poderes de dedução para descrever com precisão quem é o “meninão” Hermes antes mesmo deste se apresentar. Nada lhe escapa e tudo se torna pista: o fato de não usar gravata significa que não trabalha; se não trabalha, vem de família rica; a postura corporal acanhada leva a crer que já foi muito humilhado por essa família; pelo volume de 92


chaves que traz, mora em uma casa grande e possui carro. Hermes, espantado, afirma: “Você acertou cada detalhe... com uma lógica imprecisa, mas, foi exato” (MUTARELLI, 1999, p. 5). Assim, o princípio básico da postura de Diomedes reside nos detalhes e no espanto de quem será, por um breve momento, o companheiro do detetive nesse álbum – sem, porém, assumir também o papel de narrá-lo, como o faziam os companheiros no romance policial clássico. Mais que isso, reside na reação seguinte de Hermes a verdade sobre os fatos. Diomedes bem que se esforça para manter a postura do herói que busca a verdade e a obtém pela inteligência, mas há uma inversão de valores. Aqui, na Trilogia do Acidente, por diversas vezes será o detetive quem será revelado, ao invés da trama do crime e da identidade do criminoso. Hermes empreende um breve monólogo:

Você está me desrespeitando. Tá legal! Agora eu vou falar que “tipo” é você. Você é um tipo acostumado com pequenas causas, como seguir esposas de maridos ciumentos, ou coisa que o valha. Quando entrei, você usava um vocabulário chulo, como deve ser sua clientela, mas ao me analisar resolveu subir o nível da tua prosa. Teu sonho era desvendar um grande caso de homicídio. Por isto usa este clima “noir”, com persianas, chapéu e porta de vidro. Mas você esqueceu o principal detalhe que compõe estes cenários. Se esqueceu do ventilador. E isto não poderia faltar. Porque aqui é quente e você é um gordo acostumado a comidas baratas e gordurosas, que lhe produzem um suor azedo. Sem falar no teu hálito de pinga. Aposto que em alguma destas gavetas, você armazena guloseimas e garrafas de aguardente, e as devora nos longos intervalos entre seus parcos clientes. (MUTARELLI, 1999, p. 5)

O leitor há de reconhecer, ao longo das páginas, que essa é uma decisão precisa, ainda que dura, do personagem. Nos capítulos seguintes, descobriremos que o detetive empreendeu tal profissão porque, ex-policial, não pode viver com a parca aposentadoria que recebe. Nos dois principais momentos da tradição de narrativa policial, foram verificados duas relações dos detetives com o trabalho. Ou eram diletantes que usavam as investigações pelo prazer das descobertas, ou eram mesmo homens que mantinham vínculos com a polícia, ainda que nem sempre lançando mão dos mesmos métodos da corporação. Aposentado, Diomedes situa-se no meio-termo, onde não é propriamente um policial, mas também não desfruta da dedução pela

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dedução. Nesse processo, emprega um discurso frágil de amor pela verdade, que não se sustenta aos olhos de outros personagens ou até de si mesmo.

FIGURA 26 - Diomedes confessa sua condição financeira. Fonte: O dobro de cinco. São Paulo: Devir, p. 17, 1999.

O desencanto das primeiras obras de Lourenço Mutarelli segue novamente nesse álbum, portanto, apenas sob pequenas variações temáticas que remetem ao cânone policial. Lucimar Ribeiro Mutarelli observa que

O detetive pode ainda ser descrito como um representante da categoria dos heróis encontrados na literatura, que partem em busca da verdade, mas, no entanto, contrariamente a eles, acaba descobrindo que sua própria vida é uma mentira. Uma ilusão. Além disso, o protagonista possui um corpo desproporcional: é obeso, suas mãos e pés são exageradamente pequenos, provocando evidente desequilíbrio físico. Diomedes parece fazer questão de ir contra todos os princípios do politicamente correto: bebe, fuma, é violento e desrespeitoso. (MUTARELLI, 2004, p. 94)

Ao longo dos quatro álbuns, esses pequenos delitos apontados por Lucimar serão reincidentes. Já no primeiro álbum, o detetive bate na esposa Judith. Esta, por sua vez, o trai com outros homens e veremos também que, em outros álbuns, receberá a traição de volta. Tudo sob uma trama de sexo que remete ao álbum Desgraçados – sem prazer e sob muita culpa. Em Lourenço Mutarelli e a representação do herói, Lucimar Ribeiro Mutarelli observa esses transtornos do personagem e o aproxima do Sam Spade 94


de Dashiell Hammett, diametralmente oposto ao Poirot de Agatha ou o Sherlock de Doyle (estes últimos são “finos, elegantes e sutis”, na definição da autora). Para ela, “Sam Spade trabalha com muita ação, angústia e violência. Sempre bebe, fuma muito, é rude, vulgar e deselegante, mas conquista a atração das mulheres.” (MUTARELLI, 2001, n. p.). Diomedes reúne todas essas características primeiras, mas não tem o heroísmo que, em Sam Spade, faz com que toda a rudeza seja esquecida pelas mulheres. Nada onipotente, o detetive gordinho mostra-se um fracasso no amor e no sexo. Descrito o personagem detetivesco e a quebra de expectativa que sua figura traz, é preciso descrever a premissa básica da trama do álbum. E ela vem na figura de Enigmo, astro maior do decadente Grande Circo, picadeiro que já esteve retratado no álbum Transubstanciação. Desaparecido, não se sabe o que o destino trouxe ao mágico, mas muito se comenta e cogita.

FIGURA 27 - Diomedes fala de Enigmo. Fonte: MUTARELLI, Lourenço. O dobro de cinco. São Paulo: Devir, p. 12, 1999.

No ato de cogitar, muito de fantasia e mitificação surge a respeito do personagem. “Ele nos fazia crer na mentira”7, diz o palhaço do Grande Circo. “Uma vez ele me disse que era o próprio filho do Pai”8, garante o domador Lorenzo. “Ele fazia aquele truque de transformar água em vinho”9, garante o próprio Diomedes. O próprio autor, em texto para o site da editora Devir, relativiza:

7

MUTARELLI, 1999, p. 28. Idem, p. 47. 9 Ibidem, p. 12. 8

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O que ninguém sabe ao certo é como ou por que ele foi esquecido. Cada um busca dentro de si uma resposta para o seu desaparecimento. Alguns afirmam que ele perdeu sua habilidade, outros dizem que, depois de provar o sucesso, ele haveria se desencantado da vida. (...) O Dobro de Cinco lança o detetive Diomedes em uma jornada sombria em busca desse antigo mágico que, depois de muito tempo, misteriosamente desapareceu da mídia. Aos poucos, sua imagem foi sendo dissipada do imaginário popular até cair em completo esquecimento. (MUTARELLI, 2002, n. p.)

Certo é que presume-se que haja, em um romance policial, um crime que desestabilize a ordem vigente e desencadeie uma trama, que por sua vez resultará na resolução do enigma de quem cometeu o crime e por que. O crime básico desse álbum, no entanto, não parece ser um crime em si. Hermes quer apenas que Diomedes encontre o mágico para que este anime a festa de aniversário de seu filho. O leitor descobrirá adiante que o filho de Hermes sofre de um transtorno de conduta depressivo, que o torna cético perante o mundo. Hermes diz:

Ele não consegue aceitar a fantasia. Desde que começou a falar, ele desmascara os pequenos encantos que cercam o universo infantil, como Papai Noel ou o coelho da Páscoa. Ele é incapaz de vivenciar uma ilusão, incapaz de sonhar, viver uma fantasia. Desconhece a mágica. (MUTARELLI, 1999, p. 92)

Nesse aspecto, Lourenço Mutarelli retorna ao apreço que sempre demonstrou pelos transtornos psíquicos retratados nos livros anteriores. Diagnósticos médicos e tratamentos pouco eficazes voltam à tona na Trilogia do Acidente. Repetemse com o próprio Diomedes no álbum seguinte, O Rei do Ponto, e já começam com Enigmo em O Dobro de Cinco. Cogita-se nesse álbum que o mágico sofra de misopsiquia, uma espécie de aversão e cansaço da vida. Se o menino jamais recebeu bem a fantasia, o mágico que a produz também se cansou de fazê-la:

Um dos grandes temas do álbum é justamente a discussão a respeito da realidade. O mágico Enigmo não é encontrado e os depoimentos a respeito de sua pessoa constroem uma visão fragmentada, impregnada de considerações sobre a natureza da verdade e da realidade. (PAZ, 2008, p. 173) 96


Por consequência, não parece exagero observar que a própria lógica do romance policial é abatida nesse tom de desilusão composto no filho de Hermes, em Enigmo e na figura triste de Diomedes. Em seu No mundo do romance policial, Álvaro Lins fala na junção de fantasia e cálculo que compõe essa forma de narrativa:

O romance policial, mais do que os outros, é um mundo particular e fechado, com os seus personagens, com os seus episódios, com as suas emoções, com os seus encantos, com as grandezas e misérias, tudo diferente do mundo normal em que vivemos. A leitura de um romance policial é uma evasão, uma troca de realidades, é a entrada num universo de natureza anormal, o do crime, apaixonando os leitores não só pelo extraordinário, mas também por uma ligação secreta com este mundo de horrores, operada na circunstância de que no homem mais virtuoso ou tímido existe a possibilidade de praticar ato anormal do criminoso. (LINS, 1953, p. 11)

Lourenço Mutarelli, em parte, quebra essa lógica de envolvimento do gênero ao focar-se nos transtornos psicológicos dos protagonistas, e não no desencadeamento que o crime traz à trama. Curiosamente, há a inserção de um crime na narrativa quando os bandidos Zóião e Gambero são contratados para matar Hermes, uma vez que este último mentiu para Diomedes sobre sua riqueza e o dinheiro que ofereceu pelo serviço do detetive não lhe pertence. Detalhes e reviravoltas à parte, fato é que mesmo esse crime, embora proporcione mais ação e suspense à história, é apenas parte do objetivo final do episódio. O próprio autor situa em Enigmo, Diomedes e no intrincado paradoxo magia/realidade/desilusão o cerne da Trilogia do Acidente:

Dizem que nesse momento, após haver permanecido por mais de vinte anos nos umbrais do esquecimento, ao ser evocado, Enigmo manifesta-se impregnando o mundo com sua estranha magia. Esse é o ponto de partida não só de O Dobro de Cinco, mas de toda a trilogia. Essa busca é a espinha dorsal que sustenta e motiva a obra. A cada volume, um novo caso, um novo mistério e Enigmo mantêm-se manifesto e presente em cada página. (MUTARELLI, 2002, n. p.)

Lucimar Ribeiro Mutarelli também constata o questionamento do real:

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Diomedes, policial aposentado que trabalha por dinheiro e para não amargar o ócio em casa, falha também ao analisar Hermes. É enganado pelo rapaz e conduzido a um submundo patético, povoado por ex-funcionários do circo onde trabalhava Enigmo. Como um herói, parte em busca da verdade, mas acaba descobrindo que sua vida é uma mentira, uma ilusão. (MUTARELLI, 2001, n. p.)

A busca por Enigmo traz apenas confusão mental a Diomedes. Para encontrá-lo, ele tem que caminhar por cenários oníricos que terminam no supracitado Grande Circo, onde o domador Lorenzo recebe doses de alguma substância incógnita que alivia sua dor e o palhaço Chupetin é casado com a mulher barbada, que ridiculariza o marido. Mais que isso, a busca o leva à cartomante Melissa, que lê nas cartas de tarô a sorte do personagem e, dentro das cartas, figuram alusões aos próprios personagens do livro. Em palestra no evento KingCon, o autor admite que o fascínio pessoal pelas cartas:

Quando eu tava escrevendo O Dobro de Cinco, tinha um momento em que eu queria que o Diomedes fosse numa taróloga. E que essa mesa prenunciasse o que viria na história. Eu pensei mesmo em ir numa taróloga, pagar para ela dizer o que eu queria na história, como ficaria essa mesa. Mas nesse meio caminho comecei a encontrar uns livros de tarô que são interessantes e, na época, estudando muito, entendi que a melhor forma de você compreender o tarô é tirando o tarô. (MUTARELLI, 2011)

FIGURA 28 - Diomedes consulta o tarô. Fonte: MUTARELLI, Lourenço. O dobro de cinco. São Paulo: Devir, p. 62, 1999.

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Ainda no universo do tarô, tem-se a presença da chamada Roda da Fortuna em toda abertura de capítulo do livro. Como se quisesse relacionar a simbologia da carta – que representa ciclos, reinícios, renovações – com cada um dos personagens retratados, um por vez, nos inícios de capítulo. Oras, ao colocar o destino oculto em cartas de tarô como um desencadeante de fatos na trama, ou ao menos algo que sugere esses desencadeamentos, não é difícil concluir que Mutarelli quebra com o que há de mais elementar no romance policial puro. A racionalidade, herdada do positivismo e defendida por aqueles romancistas de fins do século XIX e começo do século XX, aqui perde parte de seu espaço. O onipotente detetive de outrora agora tem que lidar com o imponderável e com este entrar em conflito. Liber Paz observa que o aspecto gráfico condizente:

Em sua jornada, o detetive se depara com personagens circenses numa atmosfera que lembra o livro Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol. De fato, os próprios desenhos de O Dobro de Cinco ajudam a construir uma realidade estranha, quase onírica. Os cenários são desenhados em detalhes, porém sem utilizar linhas de perspectiva convencionais, o que confere uma certa irrealidade subliminar ao leitor. As sombras, detalhes e texturas tornam as páginas mais escuras, apresentando algumas vezes a iluminação quase teatral. (PAZ, 2008, p. 172)

Por fim, Diomedes termina esse álbum sem encontrar Enigmo, frustrando assim o leitor que porventura esperou, como no romance policial clássico, que o detetive “pensasse por ele” e desvendasse, ao fim, o enigma. Hermes é assassinado pelos criminosos e, de respeito ao desfecho típico do romance policial, resta apenas a história inconclusa quanto à vida de Diomedes. O Dobro de Cinco termina com o bandido Gambero pronto para matar o detetive, mas sem fazê-lo, como em uma história de folhetim, que precisa deixar algo em suspenso para o capítulo seguinte. Rendido no chão, Diomedes quer fumar um cigarro como último pedido. E fuma.

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FIGURA 29 - Diomedes e Gambero. Fonte: MUTARELLI, Lourenço. O dobro de cinco. São Paulo: Devir, p. 107, 1999.

5.2. O Rei do Ponto O segundo álbum que compõe a Trilogia do Acidente é uma história de retrospecto e desilusão. Se em O Dobro de Cinco o personagem Diomedes vai se decompondo fisicamente – pela confusão mental, pela melancolia ou mesmo por embates físicos em que saiu perdendo -, em O Rei do Ponto ele já inicia a história deteriorado. O traço do autor não esconde um homem ainda mais gordo, de membros desproporcionais, apoiando-se em uma bengala e vestindo roupas velhas. Ele enfurna-se no escritório que, em função das dificuldades financeiras, virou também o seu lar. De início, cabe aqui uma demarcação do formato narrativo de um álbum para outro. No primeiro volume, poderia se afirmar que há uma divisão de “duas histórias”, próxima ao que existia no romance policial de Edgar Allan Poe. Em Poe e seus seguidores, porém, falava-se em uma história de crime, que precede o início do livro, e outra, a do inquérito, que é o livro em si. Em O Dobro de Cinco, é bem verdade que o personagem Hermes inicia o livro já com uma história pregressa, a da busca por Enigmo, e é dessa busca que se vai desenvolver toda a trama. Contudo, se não há crime e o inquérito é um fracasso, como posicionar a obra de Lourenço Mutarelli nesse esquema narrativo? É justo afirmar que há sim duas divisões em forma e técnica de narrativa, mas de conteúdo distinto ao do cânone policialesco. Nesse segundo volume, a história começa em flashback e é inaugurada a figura do narrador, inexistente em O Dobro de Cinco. Quem narra é o próprio 100


Diomedes. Em uma breve introdução de quatro páginas que precede o primeiro capítulo, o detetive divaga sobre Deus, destino, sucesso e fracasso, em alusão amarga ao que lhe aconteceu no primeiro álbum. O flashback reaparecerá no capítulo dois, com o nome sugestivo de “Voltando Atrás”, mas dessa vez sem o auxílio do personagem como narrador.

FIGURA 30 – Diomedes como narrador. Fonte: MUTARELLI, Lourenço. O rei do ponto. São Paulo: Devir, p. 8, 2000.

Aliás, o recurso dos personagens retomarem histórias de um passado recente para explicar o presente será constantemente usado até o fim da Trilogia do Acidente, mas o narrador, seja ele um dos personagens ou um narrador onisciente, só é usado em O Rei do Ponto e na segunda parte de A Soma de Tudo. O leitor entende o desenrolar dos fatos pela própria linguagem gráfica dos quadrinhos, bem como pelos diálogos entre personagens, que criam uma agilidade observada por Paulo Ramos em A leitura dos quadrinhos:

101


Os balões seriam uma representação dos turnos conversacionais. A alternância entre balões indica troca de falante. A quantidade de palavras sugere se o turno é simétrico (troca de fala proporcional entre os falantes) ou assimétrico (predomínio da fala por um dos falantes). (RAMOS, 2010, p. 63)

Ramos cita ainda a autora Clarícia Akemi Eguti, que fala do uso que as histórias em quadrinhos fazem da própria língua oral, no que ela chama de “assalto de turno”10. Na Trilogia do Acidente, predominam os turnos conversacionais e a variação simétrica/assimétrica garante a dramaticidade da história. Por vezes, Diomedes usa desse “assalto de turno” para pequenos monólogos lamuriosos. Em outras vezes, personagens com quem ele dialoga roubam-lhe essa tarefa, especialmente na tentativa de submissão do detetive. É o caso, por exemplo, do bandido que o submete ao fim de O Dobro de Cinco. Mais claro ainda é o caso de Germano, personagem que é introduzido em O Rei do Ponto e serve para tornar o mundo de Diomedes ainda mais sufocante. A retomada do passado recente no capítulo dois apresenta ao leitor o motivo da sobrevivência de Diomedes. E ele não poderia ser mais ligado ao acaso: o bandido Gambero, antes de matar Diomedes, põe fim ao seu parceiro Zóião, em uma dessas reviravoltas típicas das intrincadas tramas noir. Gambero almeja toda a recompensa financeira do crime apenas para si, mas não contava com o fato surreal de que seu parceiro morreu literalmente em pé. Daí entra a superstição do bandido, que vê no bizarro caso um sinal de má sorte. Transtornado pelo caso, deixa nosso herói detetive de lado. Este, em situação deplorável, rasteja para fora da cena e sobrevive.

10

RAMOS, 2001, p. 64.

102


FIGURA 31 - Superstição de Gambero salva Diomedes. Fonte: MUTARELLI, Lourenço. O Rei do Ponto. São Paulo: Devir, p. 30, 2000.

Lucimar Ribeiro Mutarelli nomeia a Trilogia do Acidente como “a desconstrução do herói” (MUTARELLI, 2001, n. p.) e, para justificar a afirmação, cita as características do herói apontadas por Flavio R. Kothe no livro O Herói. Kothe aponta aspectos do herói grego, metade deus e metade ser humano, que vão perdurar até os dias da comunicação de massa, na literatura popular, romance policial e histórias em quadrinhos. Entre outros aspectos, o autor pontua que o herói:

É protagonista da narrativa e tem um destino a cumprir; Possui ideais de um guerreiro justo, que mantém um código de honra; É servidor leal da ordem; É rodeado de amigos; Possui coragem extraordinária e suporta exemplarmente um destino incomum; Faz parte de seu universo uma figura protetora (um espírito ou pessoa mais experiente), que o aconselha durante a trajetória (KHOTE apud MUTARELLI, 2001, n.p.)

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A julgar pela história presente em O Dobro de Cinco e por este novo álbum, é possível dizer que Diomedes, apesar de se propor a ser o herói-detetive absoluto em sua racionalidade e dedução, não preenche nenhum dos requisitos apontados: não segue códigos de honra e não serve à ordem, tomando atitudes conforme a instabilidade financeira e emocional o permite; não demonstra especial coragem, rastejando pela vida e safando-se pelo acaso; não tem amigos próximos. Além disso, a introdução do personagem Germano Cale traz a figura que aconselha Diomedes durante sua trajetória e é, a princípio, o companheiro de investigação que Watson foi para Sherlock Holmes, Capitão Hastings para Hercule Poirot ou Archie Goodwin para Nero Wolfe. Porém, ao contrário de qualquer um desses companheiros, Germano não narra a trama e, mais que isso, não é a figura amigável que se deslumbra com os poderes dedutíveis do protagonista. Para Lourenço Mutarelli, parece que um detetive inábil requer um companheiro duro com ele. Mais aos moldes dos policiais corruptos presentes na tradição do romance negro, Germano Cale surge para chantagear Diomedes, propor uma parceria em que o detetive sairá sempre perdendo e, não raro, usará mesmo de força física para submetê-lo.

FIGURA 32 - Germano Cale maltrata Diomedes. Fonte: MUTARELLI, Lourenço. O rei do ponto. São Paulo: Devir, p. 46, 2000.

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A trama de O Rei do Ponto apresenta ainda um segundo parceiro, o policial Waldir, que é trazido por Germano para ajudar com sua perícia técnica e erudição a solucionar o caso proposto. Waldir, contudo, está no caso também em função de chantagem arquitetada por Germano e se iguala a Diomedes em submissão. São três os parceiros, portanto, mas apenas um deles joga as cartas, onipotente. E não é Diomedes, nosso presumível herói. Germano propõe caçar um serial killer, cuja captura o trará promoções pessoais dentro da polícia. Para tanto, submete Diomedes ao mitridatismo, termo que o leitor descobrirá que deriva do nome do rei Mitridates, que governou regiões da Ásia Menor por volta de 300 a.C. Aqui, mais uma vez Lourenço Mutarelli faz uso de desvios psiquiátricos, tratamentos e gosto pelos remédios presentes desde sua estreia nos quadrinhos. Na prática, o mitridatismo significa uma espécie de tratamento homeopático em que o detetive deverá ingerir pequenas e crescentes doses de veneno de rato, procurando alterar a resistência de seu organismo. Supõe-se que o serial killer também pratique esse estranho tratamento e, dessa forma, Diomedes servirá de isca para pegá-lo. Na prática, ao longo da trama, o leitor descobre que Germano pretende, com isso, dar a Diomedes a mesma característica do assassino e, assim, indicá-lo como culpado e garantir sua promoção na corporação. Durante a narrativa, Lourenço Mutarelli retoma certo humor perdido há tempos em sua obra. Como naquelas primeiras histórias dos fanzines, a risada que ele provoca agora traz incômodo ao leitor. Corroborando a própria afirmação do autor de que não faz o humor para rir do outro, mas de si mesmo, em diversos momentos Diomedes fará “piadas de salão”, na sua própria definição. Todas elas vulgares, por vezes relacionadas a indecências sexuais, mas sempre privilegiando mais a autoironia do que a ridicularização dos personagens com quem convive. Somente Diomedes faz piadas na Trilogia do Acidente. Ao fazê-lo, parece inserir pequenas verdades nas entrelinhas, em que suas fraquezas como ser humano saltam aos olhos do leitor. Lucimar Ribeiro Mutarelli observa esse retorno ao humor:

Uma outra característica importante para aumentar o efeito dramático de algumas cenas foi a utilização do humor. O personagem Diomedes passa a ter o hábito de contar piadas e usar frases de efeito. Tal artifício o humaniza ainda mais e aumenta o potencial das cenas dramáticas. Assim como a tinta preta evidencia o branco do papel, o 105


humor parece reforçar a melancolia que permeia a história. (MUTARELLI, 2004, p. 99)

Em Impessoal, livro que traz impressões mais pessoais, a autor volta ao tema:

É mais uma ironia, um sarcasmo que diverge dos trabalhos anteriores. Diomedes parece muito mais humano. (...) Suas ações e reações são muito verdadeiras. Sendo assim, suas amarguras, decepções, fracassos e conclusões se tornam muito próximas ao leitor. A grande maioria dos leitores se apega ao personagem, chegam a torcer por ele. Considero isso um diferencial importante dentro de uma história: fazer com que o leitor vivencie os momentos, a catarse. (MUTARELLI, 2009, p. 81)

Trata-se, portanto, de catarse do leitor trazida pela humanização do protagonista, verificada, por exemplo, por Lígia Dumont no artigo Lazer, leitura de romances e imaginário:

O processo se fecha sob a hipótese de que algum aprendizado pode retornar à psique do sujeito, pelo estímulo de sua imaginação. Mesmo em se tratando de ficção, os romances utilizam-se de critérios para que o discurso seja o mais natural possível e a ficção seja entendida como uma ferramenta que possibilita o esclarecimento da realidade. As situações retratadas reproduzem sempre cenas que se encontram nos limites entre a ficção e a vida real e o seu leitor pode identificar fatos e heróis do seu cotidiano, ou do imaginário de domínio público. Sem dúvida, há uma entropia do mundo real, onde acontecem as experiências do sujeito com o da ficção, que, por sua vez, baseia-se e busca inspiração no mundo real. (DUMONT, 2000 , p. 122)

Nesse ponto, vem bem a calhar uma afirmação do próprio protagonista, que em O Rei do Ponto afirma:

A verdade se encontra 30% nos ditos populares e 70% está, em metáforas, nas piadas de salão. Pode acreditar nisso, meu filho. Por mais que as embalagens de cigarro advirtam que o ministério da saúde adverte que fumar é prejudicial à saúde, foi justamente um cigarro que salvou a minha vida. E se isso não é uma piada, parece uma. A própria 106


vida é um tipo de piada e é fácil saber quem não a entende. Basta olhar quem estiver rindo. (MUTARELLI, 2000, p. 8)

O Rei do Ponto encerra-se sem a conclusão do caso mais uma vez. Diomedes consegue escapar da morte, mas novamente destruído física e psicologicamente, em função do mitridatismo, especialmente. O verdadeiro serial killer não é capturado, mas outro homem é pego por Germano e taxado injustamente como o criminoso. O desfecho clássico do romance policial, em que o criminoso é desvendado, bem como os seus métodos, outra vez não se aplica na Trilogia do Acidente. As páginas derradeiras trazem um diálogo amargo entre Waldir e Diomedes, os dois parceiros subjugados por Germano. Waldir quer vingança e abre, assim, a possibilidade de uma continuação da história. Diomedes quer apenas ficar sozinho. Na parede do escritório, no último quadrinho do livro, um cartaz de Enigmo sugere que o mágico retornará a seguir.

FIGURA 33 – Waldir e Diomedes. Fonte: MUTARELLI, Lourenço. O rei do ponto. São Paulo: Devir, p. 108, 2000.

5.3. A Soma de Tudo O título A Soma de Tudo diz mesmo a que veio essa última parte da trilogia. Trata-se da retomada de tudo o que passou para um fechamento da trama. Ou ao menos algo próximo do fechamento, visto a complicada trama que ele carrega, mais em função das elocubrações psicológicas do protagonista do que propriamente de ação 107


desenfreada. Mais que isso, partes um e dois se somam realmente, e não parece um erro analisá-los conjuntamente, quase como uma história só. Depois de mais de 200 páginas desenhadas em O Dobro de Cinco e O Rei do Ponto, era hora de chegar ao fim da história. Lourenço Mutarelli chega a inserir seu alterego Zigmundo Mussarela em A Soma de Tudo, para que personagem ironize a indecisão do autor. Mussarela se apresenta:

Olha aqui, esse é um dos volumes da trilogia em dezoito partes. Bem, a trilogia já caminha para o volume dezenove... É que eu não consigo bolar um final pra história. E pensar que tudo começou com “O Triplo de Sete Vezes Nove, Contra a Raiz de Pi ao Cubo... (MUTARELLI, 2002, p. 48)

A história caminhava finalmente para o encerramento quando, em razão da repercussão dos primeiros trabalhos no Brasil, O Dobro de Cinco foi lançado em Portugal, em Amadora, no Festival Internacional de Banda Desenhada de 2000, com a presença do autor no evento. Lucimar Ribeiro Mutarelli credita o interesse internacional “provavelmente por se tratar de uma história com menos referências autobiográficas e por acreditarem que seu trabalho encontraria pares no mercado europeu” (MUTARELLI, 2004, p. 100). Se era essa mesma a premissa do interesse dos portugueses pela obra, o “tiro saiu pela culatra”, por assim dizer. Isso porque, em função da viagem para aquele país, o álbum ainda em processo, que veio a ser A Soma de Tudo, ganhou referências biográficas relativas à própria viagem. Lourenço Mutarelli encontrou em Portugal o ambiente ideal dos dois volumes de A Soma de Tudo, ricamente ilustrados com cenários extraídos de fotos que o autor tirou no país para posteriores desenhos de observação pela foto. Ele relembra essa virada na entrevista para o Universo HQ:

Isso foi a coisa mais absurda, porque eu tinha que fechar dois álbuns e apareceu a viagem, em outubro de 2000. Não podia perder essa oportunidade! Chegando lá, Lisboa tem algumas palavras chaves, duas muito fortes: magia e saudade. E tem mais algumas como maçonaria, sociedades secretas... Pensei: “dá pra amarrar”! A ideia de concluir a trilogia numa aventura em Portugal pintou lá. (MUTARELLI, 2000, n. p.) 108


Antes, nos dois primeiros volumes, Diomedes circulava por vários lugares em sua incansável busca, todos eles de ambiente urbano como grande destaque. Estão lá: ruas engarrafadas, grandes prédios, bares sujos, muita gente na rua, automóveis, motéis e becos. Esses e outros elementos compunham o clima sórdido que fazia parte integral das histórias do detetive, bem aos moldes do romance noir. Em sua análise de A Soma de Tudo, no entanto, Liber Paz vai mais longe na questão do cenário. Para ele, a transposição para Portugal traz dimensão ainda maior:

O quadrinista surpreendeu-se profundamente com o respeito e consideração com que foi acolhido e ficou maravilhado com a cidade de Lisboa. Esse sentimento influenciou a concepção do enredo do terceiro álbum (...). A cidade de Lisboa acaba se tornando um dos personagens principais de A Soma de Tudo. Mutarelli desenha construções da cidade em painéis detalhados, ocupando páginas inteiras. Diversos pontos aparecem também em detalhes em diversos quadrinhos. (PAZ, 2008, p. 177)

FIGURAS 34 E 35 - Cenários em O Rei do Ponto (esquerda) e A Soma de Tudo (direita). Fonte: MUTARELLI, Lourenço. O rei do ponto. São Paulo: Devir, p. 58, 2000; ________. A soma de tudo - Parte 1. São Paulo: Devir, p. 54, 2001.

Dessa forma, são enfileirados diversos pontos famosos da capital portuguesa, entre eles a Praça do Comércio, o Oceanário de Lisboa, a Igreja dos Jerónimos, o Castelo de São Jorge, a Torre de Ulisses e o Elevador de Santa Justa.

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Apropriando-se de lendas e mitologias envolvendo a cidade, o autor se apropria até mesmo de uma imaginária Lisboa física, uma mulher, que representa o espírito da cidade.

FIGURA 36 - Diomedes, Waldir e a representação de Lisboa. Fonte: A soma de tudo - Parte 2. São Paulo: Devir, p. 60, 2001.

Como trama policialesca, A Soma de Tudo apresenta uma inversão de valores. Waldir retorna à cena e, no escritório de Diomedes, encontra tudo devastado, em medida semelhante à devastação emocional do detetive. Waldir tenta reanimar o amigo quando entra em cena Doutor Gouveia, advogado prolixo, velho conhecido de Diomedes. Gouveia propõe a ele uma bela quantia em dinheiro para que vá a Portugal resolver um caso que, a princípio, parece ser o de um relativamente simples adultério. Uma mulher, Dona Suellen, desconfia do marido, de nome Pierino. Este viajou para Portugal e jamais voltou, mas manda relíquias confusas para a esposa regularmente – miniaturas de caravelas e retratos de uma mulher misteriosa. Diomedes infla-se pela derradeira vez. Repete ao longo da trama que é um “detetive intercontinental”. Assim se apresenta para quem encontra. Além disso, faz uma visita à ex-mulher Judith, para quem paga um sofá, velha promessa de quando ainda estava juntos, com o adiantamento de dinheiro que recebeu de Dona Suellen. Judith não se impressiona e, como de costume, humilha o detetive.

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FIGURA 37 - Diomedes e Judith. Fonte: A soma de tudo - Parte 1. São Paulo: Devir, p. 51, 2001.

Já em Portugal, Diomedes depara-se com um assunto levantado por João, personagem que o recebe no aeroporto. João é fascinado por Enigmo, cuja morte ele atesta como tendo acontecido em Lisboa, há quatro anos. Atordoado, Diomedes reitera que a data não procede e garante que ele próprio esteve com Enigmo, no Brasil, há dois anos. É nesse momento que a trama sofre uma reviravolta. Diomedes é abordado violentamente por homens misteriosos, que desejam a foto que Suellen lhe entregou. Daí em diante, entrará numa trama que envolve magia, saudade e sociedades secretas, muito semelhantes ao que povoou o imaginário de Lourenço Mutarelli em sua visita à cidade. Mais que isso, está aí a inversão de valores: o crime em si, o inquérito que levou Diomedes a Portugal, não é a questão principal da história. Outra trama se apresenta, mais obscura e envolvendo novamente esoterismo, destino e acaso. O detetive, como em qualquer romance policial clássico, parte em direção à solução do crime, passível de pistas e deduções. O destino, no entanto, faz com que outro crime lhe arrebate involuntariamente. 111


Se é possível aproximar A Soma de Tudo a um momento da história da narrativa policial enquanto gênero, esse momento parece mesmo o romance negro ou noir. Isso porque, nas obras de Dashiell Hammett ou Raymond Chandler, os detetives não estão à parte dos fatos. Ao contrário, participam da trama e são eles mesmos desencadeantes de acontecimentos. Suas decisões influenciam diretamente nos fatos e podem mudar o rumo da trama, assim como a trama o influencia sentimental e fisicamente. Diomedes, em última análise, o faz não somente nas duas partes de A Soma de Tudo, mas também nos dois álbuns anteriores. Bem mais desastrado os protagonistas originais do noir, mas igualmente presente. Após a surra que levou do grupo misterioso, Diomedes acorda em uma praça de Lisboa, sem dinheiro, amigos ou rumo a ser tomado. A menção a Enigmo e a aparição repentina de capangas de alguma sociedade secreta faz com que nosso “herói” caminhe aleatoriamente não mais em busca de Pierino, mas de Enigmo. Conversa com uma estátua de Fernando Pessoa, entra em um bar onde avista Lisboa, a personificação da cidade. Desiludido e melancólico, Diomedes é um homem que, mais do que nunca, questiona verdade e mentira, magia e realidade. Na parte dois de A Soma de Tudo, Diomedes ressurge já no Brasil, ainda mais gordo, e vai ao encontro de Waldir. O amigo, sempre muito cerebral e de uma erudição sempre precisa, serve nesse fechamento de história como contraponto a um delirante Diomedes. Ao explicar como sobreviveu a Portugal e voltou ao país natal, o detetive julga necessário contar como descobriu aquele que é, para ele, o segredo de Lisboa – ou, pior ainda, o segredo do segredo de Lisboa. Durante o longo diálogo entre os dois, Waldir não contém o riso e chega mesmo a afirmar que Diomedes tem que cuidar de um possível problema de alcoolismo. Essa última parte é o momento de menos ação em toda a Trilogia do Acidente. Nela, Lourenço Mutarelli se aproxima de sua origem, de quadrinhos introspectivos, com muito diálogo e autoanálise dos personagens. Lucimar Ribeiro Mutarelli observa essa retomada da antiga cadência narrativa:

As sequências de ação que deram riqueza aos dois primeiros volumes foram reservadas a dizer para poucas páginas. Os diálogos foram considerados mais importantes, com o objetivo de solucionar o enigma mais importante: Diomedes descobrir se a beleza no mundo é realmente mágica ou apenas um truque de espelhos. (MUTARELLI, 2004) 112


Depois de intrincadas lembranças e conclusões confusas, Diomedes garante a Waldir que o segredo de Lisboa é a beleza que o espírito da cidade, a cidade personificada em mulher, traz. Contudo, afirma ele, o segredo do segredo é que tudo não passa de um truque de magia, orquestrado por Enigmo. Ainda incrédulo quanto à inverossimilhança da história, Waldir faz um esforço para aceitá-la e ajudar o amigo. Ele diz:

A finalidade dos mágicos é desafiar a natureza. Ou trazer um pouco de fantasia para uma realidade tão dura. Talvez os mágicos tenham a mesma vocação dos artistas: reinventar o mundo através da ilusão. Sabe, Diomedes, talvez, no fundo, seja essa a verdadeira pergunta que lhe cabe responder. (...) A verdadeira questão, a verdadeira pergunta é se existe ou não magia no mundo. (MUTARELLI, 2002, p. 93)

Lourenço Mutarelli encerra a questão, portanto, reaproximando a trama do destino ou mesmo do acaso. Dessa forma, desvencilha-se de uma vez por todas da racionalidade do cânone policialesco, em um processo que começou assim que Enigmo surgiu na trama, ainda em O Dobro de Cinco. E termina aqui, em um panorama de mundo melancólico, aos olhos de Diomedes:

Na Trilogia do Acidente, a obra de Mutarelli ganha um novo rumo. A melancolia e o insólito que sempre caracterizaram sua obra ainda estão lá, mas agora de modo mais contido. Outros velhos temas são abordados com mais profundidade, como o tempo, a memória e a questão da representação. (PAZ, 2008, p. 182)

Antes de finalizar, é preciso observar um último aspecto biográfico que interfere decisivamente na obra. O pai do autor – que foi inspiração decisiva na criação do personagem, como já foi detalhado aqui – faleceu quando a primeira parte de A Soma de Tudo ainda estava sendo feita. Em nota ao final desse volume, Lourenço Mutarelli fala um pouco dessa relação conflituosa com o pai e revela que cogitou parar de produzir histórias em quadrinhos, o que realmente fez, mas somente anos depois:

Pensava no meu pai chegando em casa, pensava em seus pequenos sonhos... inalcançáveis... pensava no quanto a 113


realidade se distanciava da ficção. Pensava em como a morte do cinema era diferente da morte registrada pela perícia técnica. Dessa forma, o detetive Diomedes, sem que eu me desse conta, foi tomando corpo e passou a conduzir a história. A cada quadro, ele ia incorporando, tomando para si um novo aspecto de meu pai. As fraquezas de Diomedes eram as fraquezas de meu pai, assim como suas dores, anseios, seu humor. Talvez por isso eu não tenha conseguido matá-lo, como estava previsto. (...) Antes disso, todas as minhas personagens morriam no fim da história. Diomedes foi mais forte, ou eu fraquejei, não consegui matá-lo. (MUTARELLI, 2001, p. 93)

A relação do autor com o pai, ainda que extremamente conflituosa no período de sua infância, ganhou outros ares com a criação do detetive gordinho. O Mutarelli passou a apresentar suas obras ainda em processo para o pai, passo a passo, para a sua avaliação pessoal da qualidade do material. Em matéria para a revista Trip, Ronaldo Bressane descreve Lourenço Mutarelli, o pai, como um aposentado que “se dedica a escrever contos policiais, assistir filmes noir e a ouvir música argentina, grande paixão da dupla” (BRESSANE, 2001, n.p). Com esses gostos pessoais, não é difícil imaginar que o feedback de pai para filho era positivo. O estado final do protagonista dessa insólita “trilogia em quatro partes”, que já apontava para a melancolia anteriormente, ganha ainda um pouco mais em proporção. Lucimar Ribeiro Mutarelli, tomando os quatro álbuns em retrospecto, conclui:

A saga iniciada em O Dobro de Cinco serve apenas como uma armadilha, um passatempo, um pano de fundo a um propósito maior de seu criador. Com palavras muito amargas, Diomedes finalmente encontra-se consigo mesmo. Conclui que não existe magia, nem beleza e muito menos esperança. O personagem se transforma em porta-voz do autor na sua desilusão. (MUTARELLI, 2004, p. 101)

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FIGURA 38 - Diomedes e Waldir na sequência nos últimos momentos da Trilogia do Acidente. Fonte: A soma de tudo - Parte 2. São Paulo: Devir, p. 99, 2001.

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Conclusão

A Trilogia do Acidente, de Lourenço Mutarelli, é uma obra que se vale de duas formas de expressão oriundas da cultura de massa, os quadrinhos e o romance policial, para alcançar uma multiplicidade de olhares do leitor sobre uma obra que vai além da dicotomia do bem e do mal – o bem sendo o detetive ou o super-herói, o mal sendo o criminoso ou o super-vilão. Ao fim de O Rei do Ponto, segundo álbum da trilogia, o autor cria uma fotomontagem dos personagens que aparecem na trama, seguidos de legenda que esclarece as respectivas figuras que os inspiraram. Estão lá artistas como os músicos Bob Dylan e John Cale, o poeta Glauco Mattoso, o ator José Lewgoy e o personagem Charlie Chan. Ao final de A Soma de Tudo – Parte 2, Mutarelli retorna a esse recurso curioso para explicar os figurantes que povoam a sequência que se passa no Festival de Banda Desenhada em Amadora, Portugal. Lá estão facilmente reconhecíveis algumas criações que povoam a mitologia dos quadrinhos, de autores como Hal Foster, Will Eisner, Robert Crumb, Jose Muñoz, Hergé, Art Spiegelman, Bob Kane, Outcault, Frank Miller, Harvey Kurtzman, Stan Lee, Chester Gould e Alex Raymond. Mais que mero adendo divertido ao leitor que chega ao final do livro, as legendas apresentadas podem ser vistas como exemplo da diversidade de referências que compõem os quatro livros dessa jornada. Foi demonstrado nesse trabalho que Lourenço Mutarelli se apropriou de diversos elementos dessas artes e os deglutiu para recriar o personagem do detetive. Parece sintomático também que o autor tenha se afastado do universo dos quadrinhos logo após a conclusão da saga de Diomedes, dedicando-se em seguida ao cinema, teatro e, principalmente, literatura (área em que já contabiliza seis romances escritos). Ainda sobre Diomedes, no prefácio do último volume, o jornalista Jotabê Medeiros já adianta sua impressão final sobre o grotesco e melancólico em Diomedes:

Diomedes não é feio, sujo e escroto somente para criar efeito: suas deformações encobrem uma camada de tecido adiposo de discussões morais e filosóficas. Tudo é processado no seu estômago de avestruz, que não recusa nada. (MEDEIROS, 2002, p. 05)

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Jotabê vai além e se refere mesmo a Diomedes como um antidetetive, com quem o autor

pôs em xeque diversos conceitos da arte sequêncial (como Will Eisner refere-se aos quadrinhos). Passou com um trator por cima da narrativa tradicional das histórias de detetive. (MEDEIROS, 2002, p. 07)

Se foi visto no presente trabalho, logo no primeiro capítulo, que todo grande livro transita entre duas normas narrativas e estabelece uma terceira via (TODOROV, 2003, p. 94), então é possível afirmar que Lourenço Mutarelli, ainda que modestamente, alcançou essa terceira via. Mesmo que apresente alguns pontos em comum com a narrativa policial pura, não se encaixa perfeitamente no arquétipo do personagem detetive nas obras fundadoras do gênero. Não se equivale em frieza quando o investigador trata os personagens e os fatos envolvidos no crime, tampouco estabelece uma apologia à racionalidade a qualquer custo. Ao não se adaptar com exatidão a essas normas, cria algo que transcende o ponto do qual partiu. Ao colocar os olhos sobre o romance policial, o próprio Tzvetan Todorov é enfático ao dizer:

A obra-prima habitual não entra em nenhum gênero senão o seu próprio; mas a obra-prima da literatura de massa é precisamente o livro que melhor se inscreve no seu gênero, O romance policial tem suas normas; fazer “melhor” do que elas pedem é ao mesmo tempo fazer “pior”: quem quer “embelezar” o romance policial faz “literatura”, não romance policial. O romance policial por excelência não é aquele que transgride as regras do gênero, mas o que a elas se adapta. (TODOROV, 2003, p. 95)

A obra quadrinística de Lourenço Mutarelli, é possível dizer, não se adaptou. Desde o princípio em Transubstanciação até a ruptura nas histórias do personagem Diomedes, uma obra de seu tempo. Não poderia ser de outra forma. Como tal, não poderia tomar o uso da narrativa policial – romance de enigma, romance detetivesco ou denominações similares referidas aqui – tal como ela foi começou a ser elaborada. O Diomedes de Mutarelli interioriza um mundo que não pertence a outros detetives dos primeiros momentos do romance policial. A desilusão desse personagem a respeito de si mesmo e do mundo à sua volta não é experimentada por aqueles que, a princípio, seriam seus inspiradores. Muito pouco, ou quase nada, traz daquele 117


protagonista frio, que analisa as atitudes e motivações alheias, sem contudo se envolver com elas. Mais que isso, havia nesse primeiro momento uma caracterização clara entre o que era a problemática do livro, a que episódio central se referia a narrativa. Existia a convicção, por parte do leitor e por parte do próprio protagonista, que havia uma verdade e que ele, o protagonista, a alcançaria heroicamente e antes de todos os “envolvidos” – leitor, detetive e os personagens ao redor do detetive. Na Trilogia do Acidente, como bem disse Jean Canuto em prefácio de A Soma de Tudo – Parte 1, “não é à toa que é possível desvendar os casos primeiro que Diomedes” (CANUTO, 2001, p. 06). Afinal, se o antidetetive está envolto em acasos e delírios que prejudicam o entendimento do que é a própria verdade, como ele se antecipará ao que quer que seja? Naquele momento da literatura popular, de fins do século XIX e início do século XX, não era provável o tratamento direto, com tanta crueza, sobre o submundo como o de Diomedes. Como vimos, essa possibilidade de abordagem, se não era impossível anteriormente, só veio a ser hábito quando o clima noir se estabeleceu como o predominante nos pulps norte-americanos. Dali em diante, o romance detetivesco “saiu da sala de estar”, por assim dizer. Deixou o conforto e distância do detetive dissecador de fatos já acontecidos para dar a espaço a um investigador que vem da rua, que sente diretamente, na própria personalidade e estabilidade mental, as consequências do que nela vê. A aproximação desses quatro volumes, portanto, é mais possível com as criações de Dashiell Hammett do que de Arthur Donan Coyle, por exemplo. Mais humanos, os detetives do romance negro deixavam transparecer, ainda que relutantemente, os seus pontos mais vulneráveis, seja do ponto de vista intelectual, pessoal, financeiro, familiar, sexual, entre outros. Abriam uma brecha que não havia no cânone de Allan Poe. Dessa forma, em última análise, abriam precedentes que levaram autores a criarem defensores da lei igualmente vulneráveis. Entre eles, o investigador do grotesco – em si e em quem estivesse ao redor – em Lourenço Mutarelli, o criador, e Diomedes, criatura. Fazer o contrário, para um artista contemporâneo, seria posicionar-se anacronicamente a seu tempo. É bem verdade que o primeiro momento da narrativa de enigma surgiu, como vimos, da nova lógica urbanística, de violência, assaltos, interesses financeiros escusos, crimes passionais, desconfiança da autoridade policial e, posto tudo isso, o relato em jornal em seguida. 118


O tempo encarregou-se, contudo, de agravar essas situações ao limite da loucura e irracionalidade. Nesses quatro álbuns, Lourenço Mutarelli não hesitou em criar um personagem que trilha essa linha de insanidade. Progressivamente, alcança um estado mental que se sobrepõe à própria trama de perguntas, respostas, investigações, deduções. Qualquer que seja o crime, interessa menos ao leitor quem o desvendou. Importa mais, como escrita e leitura de seu próprio tempo, as conseqüências que ele trouxe a todos os envolvidos.

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