hoje não é dia para grandes homens

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hoje não é dia para grandes homens

mas quando o espírito se libertar, quem tomará conta dos gatos? Jimi Joe



gastar a noite em casa dublando Alien 3 ao vivo no chão da sala não era exatamente o sábado ideal da minha garota - eu sei só que eu não pude evitar Deus sabe era isso ou a morte a duras prestações e não era eu que iria pagar era isso ou conversar a respeito “e eu detesto conversar a respeito”, eu disse à minha garota Deus sabe ou deveria saber que eu detesto conversar a respeito.


essas cidades sem desafogo são assim terríveis te fazem meio ridículo lendo livros no terraço dos shoppings discutindo o onírico que flutua sobre o bacon do x-bacon ou a cotação da cerveja no perímetro Centro/Setor Oeste ali naquele trecho drive-thrus mal-assombrados povoam fantasmagorias de apartamentos complementam insônias e mantém ativos os supermercados 24 horas em qualquer rua daquelas teu suor pode cair em mim preguiçoso, no meio da foda enquanto disfarço e pondero demoradamente sobre quantas latas chutaram os grandes homens em grandes dias e quantas latas chutarei eu no caminho de volta pra casa.


essa gente que toma um café nos cafés da cidade um cafézinho quente pra relaxar os dias quentes pra onde será que elas vão quando o mundo explode e é preciso novas frases porque as antigas bateram em retirada? essas pessoas e suas canelas finas pra onde elas correm quando o mundo explode e embaralha as palavras? porque pra fugir é preciso estar em algum lugar essas pessoas que flutuam por aí onde será que elas estão?


quando nasci, as paredes de meus pais eram brancas e entre paredes brancas eles ainda definham distraídos, sem maiores problemas. não havia gênios naquele tempo estes eram figuras de almanaque saltitavam em calçadas largas ainda inexistentes em nossa cidade seca de tudo. esses pais de província todos eles passavam passam passarão até o fim, sem dilemas de ordem estética ou estóica sem que tudo que se crie tenha peso e valor que se apressam os imbecis - e eu para medir.


quando criança estive vazio de estantes graças a deus só um rock besta cerveja quente derramada da boca sobre meia dúzia de X-Men segunda mão e muita tranqueira além de alguma preguiça acumulada a formação do ser humano entre o quarto e a sala um corredor de TVs ligadas em canais que se eram ruins ao menos ocupavam as tardes que me sobravam hoje planejo cheio de dentes entre facas o esvaziamento disso tudo quase nada de tudo canção back to basics guardada por ela entre seus tímpanos ali atrás da orelha acima do pescoço acima de qualquer lugar.


clube recreativo j. d. salinger se eu apertar tua mão bem forte e atravessar o pátio desse high school estúpido interno eterno não diga a ninguém que falei em poesia. conte apenas que tentei uma piada e piada é o que se perde na tradução, não é o que disseram?


mad max caribe a boca dela filha fodida em desgoverno prestou belo serviço e o fez sem alarde a casa dela versão kitsch do inferno fez amanhecer a zona branca da cidade




a pele dela mão na contramão das escamas foi o Planeta Diário em que se lia “cuidado” foi o mundo antes do mundo explodir e ser só silêncio e as sirenes dos carros


philip k. dick entertainment estive assim super pós-moderno nesta última semana saltei de teleféricos, dobrei esquinas muito rápido e acreditei que encontraria meu próprio rabo ao contornar o velho quarteirão pensei até que esculpir um raio desses assim meio Rick Deckard quase Barry Allen deixaria uma bela impressão em meu peito assim que ela passasse, uma forma bem esperta de dizer que ela passou pra sempre.


sobretudo blocos ontem à noite no terraço sobrou uma cadeira, meu bem. não houve dramaturgia de lenços vermelhos nos olhos nem ninguém atirava tampinhas nas placas azuis dos blocos sobretudo ninguém valorizava a arte e a ciência de coçar o saco em batidas no contratempo do coração. ontem à noite, meu bem, a nova seriedade do amor era a mais completa solidão.


singelo, com rimas a ladainha nonstop na vitrola vitrolando “baby, tô regenerado” aquela vida de pneus e água se batendo em calma à beira de nosso lago você descendo a ladeira esse quê de regina casé pentelhando meus fardos porra, era uma paz tão plena essa que me corroía os bagos.


goo, goo, goo feito um dia de los muertos aquele tempo que esteve em patrulha 48 horas por dia se foi das suas fuças e não há sinal algum de que vão te pagar pra rolar no chão ao som de teenage riot a infância nas ventas aquela juventude mezzo sônica, mezzo calabresa lembrança que atravessaria um deserto um oceano cruzaria até a sala da casa dos teus pais para chegar aos seus pés acolchoá-los melhor junto ao estofado daquele sofá daquele tempo que se faria quase acidentalmente quase janeiro outra vez


uma verdade para Bob Mould caras assim não têm mais fome cultivaram uma barbinha ridícula estatizaram os óculos por sobre as bochechas e talvez por conta disso ou por culpa do Dave Grohl não gravem mais grandes discos no mundo tá cheio de gente à procura dos melhores moulds seus grandes discos de fome escritos em vans imaginárias a ultrapassar a saída sul de minneapolis de hora em hora numa dessas, Bob ainda tá lá sublinhando em guitarradas que o melhor a fazer é sempre o melhor de si numa dessas, você flagra o sujeito na rua encontrando entre massacres o intervalo exato em que se pode dormir pra sempre um sono livre de boletas noutra dessas, você se pega em trânsito zelando para que a fome dos outros lhe renda novas resenhas nesse jornal insosso que é a sua vida.


um poema intitulado Bogotá, Goiás a vida engasgada em gags de bolso de nós, só o cheiro e a chinfra esses caras dormem em outra cidade mas vêm saquear viúvas em nossas esquinas


metonímia DF eu sacava dois ou três caras naquela cidade eles nutriam por mim um ódio impessoal como quem odeia uma bolha no pé ou não se comove com bons-dias de elevador aqueles caras não eram meus amigos, devo admitir. aqueles dois ou três sujeitos eram apenas a porra da cidade mostrando sua cara a conta-gotas a parte pelo todo, a mão em requadro de quadrinhos acenando um adeus casual.


ainda tô esperando você chegar com novidades nas mãos e areia nos pés contando que voltou pra sempre e que vai sair pela direita daqui a pouco sem dizer palavra. insinuando que, de tão irreal, tão desenho animado, tão vestir o disco e botar a roupa na vitrola, finalmente é você quem dança sem uniforme colante na sala de justiça dessa cidade movediça.


“Hoje não é dia para grandes homens” - Título extraído de Exubeat (segunda-feira de Carnaval), canção de Cláudio Bull para a banda Divine. Brasília, 1998.

fotos: marcos arão rocha projeto gráfico: lia bello poemas: jairo macedo

goiânia / brasília – 2013



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