Manifestações culturais objetivos e perspectivas distintas

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MANIFESTAÇÕES CULTURAIS: OBJETOS E PERSPECTIVAS DISTINTAS

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JURACY ASSMANN SARAIVA | CRISTIAN LEANDRO METZ ORGANIZADORES

Associação Pró-Ensino Superior em Novo Hamburgo - ASPEUR Universidade Feevale

MANIFESTAÇÕES CULTURAIS: OBJETOS E PERSPECTIVAS DISTINTAS ORGANIZADORES

Juracy Assmann Saraiva Cristian Leandro Metz

Novo Hamburgo 2015

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JURACY ASSMANN SARAIVA | CRISTIAN LEANDRO METZ ORGANIZADORES

PRESIDENTE DA ASPEUR Luiz Ricardo Bohrer REITORA DA UNIVERSIDADE FEEVALE Inajara Vargas Ramos PRÓ-REITORA DE ENSINO Denise Ries Russo PRÓ-REITORA DE EXTENSÃO E ASSUNTOS COMUNITÁRIOS Gladis Luisa Baptista PRÓ-REITOR DE INOVAÇÃO Cleber Cristiano Prodanov PRÓ-REITOR DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO João Alcione Sganderla Figueiredo PRÓ-REITOR DE PLANEJAMENTO E ADMINISTRAÇÃO Alexandre Zeni COORDENAÇÃO EDITORIAL Denise Ries Russo EDITORA FEEVALE Celso Eduardo Stark Graziele Borguetto Souza Adriana Christ Kuczynski PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Adriana Christ Kuczynski

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) Universidade Feevale, RS, Brasil Bibliotecária responsável: Sabrina Araujo – CRB 10/1507 Manifestações culturais [recurso eletrônico] : objetos e perspectivas distintas / organizadores Juracy Assmann Saraiva, Cristian Leandro Metz. – Novo Hamburgo: Feevale, 2015. Dados eletrônicos (1 arquivo : 3.22 megabytes). Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader. Modo de acesso: <www.feevale.br/editora> Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7717-188-0 1. Cultura - Manifestações. 2. Educação. 3. Moda. 4. História. 5. Identidade cultural. I. Saraiva, Juracy Assmann. II. Metz, Cristian Leandro. CDU 008

Universidade Feevale Câmpus I: Av. Dr. Maurício Cardoso, 510 – CEP 93510-250 – Hamburgo Velho Câmpus II: ERS 239, 2755 – CEP 93352-000 – Vila Nova Fone: (51) 3586.8800 – Homepage: www.feevale.br © Editora Feevale – Os textos assinados, tanto no que diz respeito à linguagem como ao conteúdo, são de inteira responsabilidade dos autores e não expressam, necessariamente, a opinião da Universidade Feevale. É permitido citar parte dos textos sem autorização prévia, desde que seja identificada a fonte. A violação dos direitos do autor (Lei n.° 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.

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STELARC, STEVE MANN E NEIL HARBISSON: AS REPRESENTAÇÕES DO CIBORGUE NA CIBERCULTURA

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Aline Corso Sandra Portella Montardo

CULTURA POPULAR: A IDENTIDADE NACIONAL NA CANÇÃO JACK SOUL BRASILEIRO

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Cláudia Santos Duarte Luiz Antônio Gloger Maroneze

AS TRANSFORMAÇÕES DO FENÔMENO MORTE NO CONTEXTO DAS PRÁTICAS DE RITOS FUNERÁRIOS NA SOCIEDADE PÓS-MODERNA Cristian Leandro Metz Ana Luiza Carvalho da Rocha

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CONVERGÊNCIA E DISCURSO NO CASO CASEY HEYNES: A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DE VÍTIMA E HERÓI

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Cristiane Weber Sandra Portella Montardo Ernani Cesar Freitas

JORNADAS DE JUNHO: A TV COMO FERRAMENTA PARA PRODUÇÃO DA MEMÓRIA

84

Daiane Pires Saraí Schmidt

A CULTURA SOB O OLHAR DO ESTADO: UMA DISCUSSÃO SOBRE O VALE-CULTURA Cristine Marquetto Humberto Ivan Keske Ernani Cesar de Freitas

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O MANIFESTANTE: SOLDADO E HERÓI PÓS MODERNO REPRESENTADOS NA MODA MASCULINA

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Daniel Keller Denise Castilhos de Araujo

DE PARIS AO CAMELÓDROMO, O ETERNO LUXO DO ESTILO CHANEL

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Nelson Batista Zimmer Juracy Assmann Saraiva

A DOCÊNCIA NO ENSINO SUPERIOR: DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE E A EDUCAÇÃO PARA HUMANIZAÇÃO Eliane Davila dos Santos Ernani Cesar de Freitas

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“CENAS DA VIDA”: MEMÓRIA, TEATRO E ENSINO DE HISTÓRIA

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Thiago Silva Cristina Ennes da Silva

MUSEU E EDUCAÇÃO: O PROJETO DE AÇÃO EDUCATIVA DO MUSEU DA REPÚBLICA

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Daniela Schmitt Luiz Antônio Gloger Maroneze

ITINERÁRIOS CULTURAIS, MEMÓRIA E TURISTA CIDADÃO Jamile Cezar de Moraes Luiz Antônio Gloger Maroneze

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A PRESERVAÇÃO DA IDENTIDADE LOCAL ATRAVÉS DAS FESTAS POPULARES: O CASO DA FESTA DA COLÔNIA DE GRAMADO

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Natashe Carolina Kich Luiz Antônio Gloger Maroneze

ANÁLISE TEÓRICO-ERGO-DISCURSIVA: UM PERCURSO PARA COMPREENDER OS DISCURSOS ORGANIZACIONAIS Gislene Feiten Haubrich Ernani Cesar de Freitas

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FACES DA CULTURA E DE SEUS PROCESSOS

O livro Manifestações Culturais: objetos e perspectivas distintas resulta de atividades de pesquisa efetivadas por alunos, sob a orientação de professores, do Mestrado em Processos e Manifestações Culturais, da Universidade Feevale. Como tal, a presente publicação articula-se ao objetivo basilar do Curso, que visa à investigação de manifestações humanas a partir de uma perspectiva interdisciplinar, com o intuito de desenvolver o conhecimento científico do âmbito da cultura. Devido à variedade dos objetos de análise e à multiplicidade de perspectivas teóricas sob as quais esses objetos são visualizados, os artigos, aqui reunidos, reafirmam a complexidade dos processos e das manifestações culturais, além de apontar para a importância de sua valorização como parte da dinâmica de congraçamento e de interação social dos indivíduos. Nesse sentido, os autores dos artigos não só assumem a função de disseminar o conhecimento, mas também de tornar mais perceptíveis aspectos da sociedade contemporânea, cujo reconhecimento pode conduzir a atitudes de aceitação ou de repúdio. O artigo de Aline Corso abre a sequência de reflexões, chamando a atenção para a utilização de tecnologias que, na sociedade contemporânea, ampliam a capacidade do corpo humano de interagir com seu contexto; a autora constata que duas representações de ciborgue – o protético e o interpretativo – se destacam, influenciando novos modos de viver na cibercultura. A manifestação da identidade nacional, na música popular brasileira, é o foco de Cláudia Santos Duarte, que se detém na canção “Jack Soul Brasileiro”, criada por Osvaldo Lenine Macedo Pimentel, para demonstrar que a composição musical destaca aspectos da cultura regional brasileira como uma forma de resistência à cultura de massa, cuja submissão denuncia por meio do uso da língua inglesa. Relacionando-se, igualmente, a traços identitários, Cristian Leandro Metz aborda, sob o ponto de vista histórico e sociológico, ritos funerários, presentes na cultura hinduísta, judaica e cristã, para salientar suas transformações na pós-modernidade, conferindo a seu artigo o título “As transformações do fenômeno morte no contexto das práticas de ritos funerários na sociedade pós-moderna”. O tema do bullying recebe a atenção de Cristiane Weber, cujo artigo analisa a convergência de meios e de discursos na construção de uma reportagem, veiculada no programa A Current Affair, da rede australiana ABC, que se apropriou de um vídeo da internet para transformar o protagonista, que reage a uma prática de bullying, em um herói. Vinculando-se, também, aos meios de comunicação, o artigo de Daiane

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Pires orienta-se pelo ponto de vista segundo o qual a TV é um aparelho criador de representações e ferramenta para a construção da memória, abrindo uma discussão sobre uma das reportagens apresentadas pela Rede Globo, durante as Jornadas de Junho de 2013. Cristine Marqueto investiga políticas voltadas para a cultura, detendo-se no “vale-cultura”, que faz parte do “Programa de Cultura do Trabalhador”, implementado pelo Governo Federal em 2013. O vale-cultura é definido conceitualmente e analisado sob o ponto de vista de sua aplicabilidade, para aferir sua influência nos circuitos de desenvolvimento cultural. Com base em editoriais de moda masculina, Daniel Keller busca explicitar traços que contribuem para transformar indivíduos em heróis sociais e como esse processo reproduz estruturas estabelecidas no arquétipo do soldado, além de identificar relações que, integradas a essa perspectiva, são importantes para a afirmação da masculinidade. Sob distinta perspectiva, a moda também é foco do artigo de Nelson Zimmer: a partir da globalização mercadológica, ele relaciona a presença do estilo Chanel, em lojas de departamentos e em mercados populares de Porto Alegre, à adesão a padrões identitários múltiplos, o que comprovaria a pluralidade e o esfacelamento do sujeito moderno. Eliane Davila dos Santos centra-se, com seu artigo, na atuação do professor universitário na sociedade contemporânea e estabelece, a partir do filme Sociedade dos Poetas Mortos (1989), a distinção entre uma educação tradicional e uma inovadora, destacando a importância da ação humanizadora do professor. Tiago Silva, também se preocupa com o espaço educacional, relatando sua experiência com a comunidade da Escola de Ensino Fundamental Waldemar Carlos Jaeger, do município de Sapiranga. Por meio da coleta de reminiscências dos moradores, ele transformou a memória coletiva em uma peça teatral, mostrando que, para além de cronologias, listas dinásticas e biografias políticas elitizadas, a História faz parte da subjetividade de todos os sujeitos e grupos sociais. O artigo de Daniela Schmitt, intitulado “Museu e educação: o projeto de ação educativa do Museu da República,” estabelece uma reflexão sobre ações museológicas no âmbito da educação, defendendo o ponto de vista de que o museu é importante ferramenta para o processo de aprendizagem dos alunos, bem como para a preservação da memória cultural de uma comunidade. Em uma linha de investigação semelhante, o artigo “Itinerários culturais, memória e turista cidadão”, de Jamile Cezar de Moraes, trata dos itinerários culturais como uma liturgia da recordação, que visa à valorização do patrimônio cultural, e propõe práticas que aproximam os membros de uma comunidade de seus bens culturais. O artigo de Natashe Carolina Kich também se articula à temática da preservação da diversidade cultural, visto que analisa a “Festa da Colônia de Gramado”, concluindo que celebrações locais são formas de reação à homogeneização das culturas, fenômeno decorrente da globalização.

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Em “Análise teórico-ergo-discursiva: um percurso para compreender os discursos organizacionais”, Gislene Haubrich apresenta o modelo teórico-ergo-discursivo para análise de organizações e, para tanto, expõe concepções metodológicas e o dispositivo de análise e sua operacionalização, além de desenvolver uma reflexão sobre as limitações do modelo e as possibilidades de sua adaptação a outros estudos. Portanto, abrangendo elementos relacionados à cibercultura, à defesa da identidade nacional, a ritos funerários, aos processos de veículos de comunicação, às políticas públicas voltadas para a cultura, a estratégias da moda, à educação, aos museus, a itinerários culturais, a festas populares ou a modelos gerenciais, Manifestações Culturais: objetos e perspectivas distintas oferece aos leitores a oportunidade de refletir sobre a variedade e a diversidade das faces que a cultura assume seja sob o ângulo da multiplicidade de objetos, seja sob a variedade das perspectivas de sua análise.

Juracy Assmann Saraiva Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais

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STELARC, STEVE MANN E NEIL HARBISSON: AS REPRESENTAÇÕES DO CIBORGUE NA CIBERCULTURA

STELARC, STEVE MANN E NEIL HARBISSON: AS REPRESENTAÇÕES DO CIBORGUE NA CIBERCULTURA 12

Aline Corso

Bacharela em Tecnologias Digitais (UCS), Mestranda em Processos e Manifestações Culturais (FEEVALE) e bolsista Prosup/Capes. Atua como professora na FTEC e UNISINOS. E-mail: aline.corso@gmail.com.

Sandra Portella Montardo

Doutora em Comunicação Social (PUCRS), professora e pesquisadora da FEEVALE. E-mail: sandramontardo@feevale.br.


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1 INTRODUÇÃO Como enfatizou Edvaldo Couto (2012, p. 174), o corpo sempre foi mutável: “mais que um objeto da natureza ele sempre foi um objeto da cultura e todas as épocas e civilizações promoveram mutações corporais de acordo com os seus limites tecnocientíficos”. Já Paula Sibilia (2002, p. 10) propõe que “plástico, moldável, inacabado, versátil, o homem tem-se configurado de diversas maneiras pelas histórias e pelas geografias”. A partir das proposições acima expostas, podemos pensar em questões referentes à alteração do conceito de humano, assim como a ciborguização1 do corpo e a sua importância na cibercultura. De modo geral, o ciborgue é um híbrido de homem e máquina surgido na literatura de ficção científica, época marcada por medos e incertezas quanto ao avanço tecnológico em decorrência da Revolução Industrial. Naquele período, a figura do ciborgue era utilizada para questionar conceitos relativos à moralidade e livre-arbítrio e, na perspectiva de Oliveira (2003, p. 179) é a figura que melhor incorpora as complexas questões do humano em suas novas conexões com mundo. Tal discussão é o ponto inicial deste trabalho, que busca compreender as representações do ciborgue na cibercultura, observando, principalmente, a questão das modificações corporais e de que forma os indivíduos percebem (e são influenciados por) estas mudanças. Nossa hipótese é que o ciborgue da cibercultura, ser pós-humano, ainda mantém resquícios de sua representação original, advinda da ficção científica, porém opera de maneiras diversas devido às novas tecnologias de comunicação e difusão da informação mediada por computador. Uma segunda hipótese aponta para o sentido de que o ciborgue contemporâneo também existe no campo informacional, ou seja, a fusão de carne e máquina não é o ponto-chave para o processo de ciborguização do humano2. Para tal, o presente artigo analisa as representações dos ciborgues na ficção científica e compara com as características presentes nos ciborgues dos tempos atuais. O trabalho está dividido da seguinte forma: em um primeiro momento, os conceitos de representação e cibercultura são apresentados para, em um segundo momento, discutir-se questões ligadas à ciborguização do corpo humano. O passo seguinte envolve a reflexão acerca da Transformação em ciborgue. “Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, a relação homem-máquina não incorpora apenas as questões de definição do humano e da técnica, refere-se também à capacidade de intervenção do homem sobre os mecanismos da vida e da realidade” (OLIVEIRA, 2003, p. 183).

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vida e obra de três ciborgues contemporâneos: Stelarc, Steve Mann e Neil Harbisson. Por fim, serão traçadas algumas considerações finais e perspectivas futuras.

2 BREVE CONCEITUALIZAÇÃO: CIBERCULTURA E REPRESENTAÇÃO SOCIAL A palavra cibercultura advém da fusão dos termos cultura e cibernética (RÜDIGER, 2011) e, conforme descrevem Amaral e Montardo, pode ser compreendida sob diversas abordagens teóricas: Há definições que privilegiam aspectos contraculturais de sua história, como Turner (2006), e há descrições mais fluidas, voltadas aos aspectos sociais dos fenômenos culturais emergentes, como Lévy (1999) e Lemos (2002). Alguns estudos consideram o tema um integrante da noção de tecnologias do imaginário, como Silva (2003), ou um subcampo emergente da comunicação, como Felinto (2007). Macek (2005), Felinto (2008) e Amaral (2008) tematizam o estudo das práticas culturais e os estilos de vida em sua relação com as tecnologias. Foot (2010) faz uma aproximação na qual o foco são as relações, os padrões, os meios e os artefatos de trocas de produção cultural online, enquanto Trivinho (2007) e Rüdiger (2011) centram nas vinculações com a indústria cultural e a teoria crítica (AMARAL; MONTARDO, 2013, p. 333).

Já para o filósofo Pierre Lévy (1999, p. 17), a cibercultura é o “conjunto de técnicas (materiais e intelectuais) de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem com o crescimento do ciberespaço”3. De cunho interdisciplinar, a cibercultura poderia ser definida descritivamente como o conjunto de fenômenos de costumes que nasce à volta das novíssimas tecnologias de comunicação (RÜDIGER, 2008, p. 26). Já o conceito de representação pode abarcar diversos significados, porém, de maneira inteligível, o antropólogo argentino Gustavo Blázquez destaca que: Nos dicionários de língua portuguesa o significado de representação é construído em torno de quatro eixos: 1) A representação é “o ato ou efeito de tornar presente”, “patentear”, “significar algo ou alguém ausente”; 2) A representação é “a imagem ou o desenho que representa um objeto ou um fato”; 3) A representação é “a interpretação, ou a performance, através da qual a coisa ausente se apresenta como coisa Lévy caracteriza o ciberespaço como uma rede: “o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores” (LÉVY, 2011, p. 94). O termo ciberespaço surgiu, pela primeira vez, na literatura de ficção científica no livro Neuromancer (1984) de Willian Gibson.

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presente”; 4) A representação é “o aparato inerente a um cargo, ao status social”, “a qualidade indispensável ou recomendável que alguém deve ter para exercer esse cargo”; a representação também se torna “posição social elevada” (apud COELHO DOS SANTOS, 2011, p. 30).

A teoria da Representação Social (RS) foi introduzida, em 1961, por Serge Moscovici no livro A psicanálise: sua imagem e seu público4. O autor estudou as formas como a teoria psicanalítica se difundiu no pensamento popular na França (MOSCOVICI, 2003), afirmando que o importante na RS é elucidar fenômenos a partir de um âmbito coletivo, sem deixar de lado a individualidade, ou seja, as representações são uma forma de interpretar e refletir sobre a realidade cotidiana. As representações que fabricamos – de uma teoria científica, de uma nação, de um objeto, etc. – são sempre o resultado de um esforço constante de tornar real algo que é incomum (não familiar), ou que nos dá um sentimento de não familiaridade. Através delas, superamos o problema e o integramos em nosso mundo mental e físico, que é, com isso, enriquecido e transformado. Depois de uma série de ajustamentos, o que estava longe, parece ao alcance de nossa mão; o que era abstrato torna-se concreto e quase normal [...] as imagens e ideias com as quais nós compreendemos o não usual apenas trazem-nos de volta ao que nós já conhecíamos e com o qual já estávamos familiarizados (MOSCOVICI, 2003, p. 58). 15

Para Jodelet (2001, p. 17), seguidora dos postulados de Moscovici, as representações sociais são “uma modalidade de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático e contribuindo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” e são habitualmente apontadas como senso comum, ou seja, um saber não-científico. As RS surgem como uma forma de refletir sobre a realidade: A representações sociais surgem quando os indivíduos debatem temas de interesse mútuo ou quando existe o eco dos acontecimentos selecionados como significativos ou dignos de interesse [...] além disso, as representações sociais têm uma dupla função: “fazer com que o estranho pareça familiar e o invisível perceptível”, já que o insólito ou o desconhecido são ameaçadores, quando não se tem uma categoria para classificá-los (TAVARES, 2004).

Jodelet elenca cinco características fundamentais da representação social: 4

Conceito originalmente proposto por Émile Durkheim.


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É sempre representação de um objeto; Tem sempre um caráter imagético e a propriedade de deixar intercambiáveis sensação e a ideia, a percepção e o conceito; Tem um caráter simbólico e significante; Tem um caráter construtivo; Tem um caráter autônomo e criativo (JODELET apud SÊGA, 2000, p. 129).

Neste artigo utilizaremos o termo cibercultura a fim de nos remeter à contemporaneidade e às práticas advindas da relação do homem com as tecnologias digitais - período também denominado “pós-modernidade”, “sociedade informática”, “era digital”, “sociedade em rede” ou “sociedade do conhecimento”5. A teoria das representações sociais, aqui, não será explorada extensivamente. Cabe salientar que pretendemos tomar emprestado o conceito geral de representações sociais (tornar real algo incomum, interpretando e refletindo sobre a realidade cotidiana) de modo a pautar o seguinte questionamento: a partir da realidade social de cada época, como o ciborgue é representado na ficção científica e na cibercultura?

3 CIBORGUES: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE “As fronteiras entre a ficção científica e a realidade social são uma ilusão de ótica”. (HARAWAY apud COUTO, 2012, p. 47)

O termo ciborgue (ou cyborg) deriva da ligação das palavras inglesas cybernetic organism, ou seja, organismo cibernético, e foi trazido pela primeira vez em 1960 por Arthur Clark e Manfred Clynes no artigo Cyborgs and Space6. O estudo apresentava os resultados de um experimento realizado em laboratório: um rato7 teve uma bomba osmótica implantada em seu corpo cujo objetivo era injetar substâncias químicas que alteravam seus padrões fisiológicos. O rato era, então, parte animal, parte máquina (KUNZURU, 2009, p. 121). Disponível em: <http://goo.gl/UGP4e1> Acesso em: 2 fev. 2015. Disponível em: <http://goo.gl/yQsNxQ> Acesso em: 23 dez. 2014. 7 A cobaia ficou conhecida como rato de Rockland pois os experimentos foram realizados no Hospital Estadual de Rockland, New York (KLYNES; CLINE, 1960). 5 6

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O contexto de criação do texto é a corrida espacial e o experimento buscava comprovar que o ser humano poderia sobreviver livremente ao espaço sideral, pois era dotado de componentes exógenos que estendiam a função de auto-regulação de controle do organismo. Os autores afirmavam que “se o homem no espaço, além de fazer voar seu veículo, deve continuamente verificar coisas e fazer ajustes apenas para manter-se vivo, ele torna-se um escravo da máquina”. Um ciborgue, dotado de seus próprios sistemas homeostáticos, é livre para “explorar, criar, pensar, e sentir” (KLYNES; CLINE, 1960). Com isso, os autores demonstravam a possibilidade de uma aproximação entre seres biológicos e máquinas sintéticas. Em 1972, o escritor norte-americano Martin Caidin - inspirado nas ideias de Cline e Klynes - lança o romance Cyborg. No livro, a personagem principal é um piloto de aeronaves da Força Aérea americana que, após sofrer um grave acidente, tem seu corpo reconstruído através de próteses biônicas que dão suporte à vida. Com o sucesso do livro, foi criada uma adaptação para a televisão em formato de minissérie, intitulada O Homem de Seis Milhões de Dólares8. Para transformar a carcaça de um humano mutilado não apenas em um novo homem, mas em um tipo totalmente novo de homem. Uma nova raça. Um casamento da biônica (biologia aplicada à engenharia de sistemas eletrônicos) e cibernética. Um organismo cibernético. Chame-o de ciborgue (CAIDIN apud KIM, 2004, grifo dos autores).

Seres híbridos já eram representados na literatura desde o século XIX. O gênero Ficção Científica (FC) é uma categoria de ficção que lida, principalmente, com o avanço (real ou imaginado) da ciência e da técnica9. Seu surgimento é demarcado pelo lançamento da obra Frankenstein ou o Moderno Prometeu, de Mary Shelley, em 1818. Na história, Victor Frankenstein10 constrói um ser monstruoso a partir de pedaços de cadáver humano costurados e reanimados através de uma descarga elétrica, criando o primeiro registro ficcional a respeito da fusão do corpo humano com a tecnologia. Não podemos limitar o gênero FC apenas a narrativas fantásticas de viagens ao espaço sideral, invasões extraterrestres e guerras contra robôs colossais. Como definiu Isaac Asimov, a FC é o “ramo da literatura que trata das respostas do homem às mudanças ocorridas ao nível Também chamada de O Homem Biônico, foi lançada em 1974. “No século XIX a ficção científica ganha popularidade com as histórias de Júlio Verne, H. G. Wells e Edward Bellamy. Em 1929 surge o nome ficção científica” (OLIVEIRA, 2003, p. 180). 10 Frankenstein na verdade não é o monstro, mas sim o cientista que constrói o monstro. Ver SHELLEY, Mary. Frankenstein ou o moderno Prometeu. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2004. 8 9

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da ciência e da tecnologia” (ASIMOV, 1984, p. 46). Oliveira (2003, p. 181) corrobora a ideia de Asimov, afirmando que as mudanças também podem ser no espaço, no tempo, no homem e em seu modo de perceber e atuar sobre a realidade, visto que “associam desenvolvimento tecnológico a novas experiências do sujeito e, consequentemente, novas formas de organizações sociais”. Na ficção científica existe o subgênero cyberpunk, caracterizado basicamente pela união de alta tecnologia e caos urbano (AMARAL, 2006). A estética cyberpunk, sob a ótica de Amaral, “reconhece o espaço público onde as pessoas são tecnologizadas e reprimidas ao mesmo tempo, mostrando a tecnologia como a mediadora de nossas vidas sociais” (2003). Já o imaginário encontra-se na “intersecção entre a tecnologia, o cientificismo e os elementos anteriores à técnica como o desejo de perfeição e de imortalidade” (AMARAL, 2006, p. 30). Outros elementos característicos desse subgênero, ainda recorrendo a Amaral, são suas raízes góticas, de horror e noir11 mixadas com o conceito de biotecnologia. Para Amaral (2006, p. 33) “a figura do não-humano, [...] ciborgue ou andróide12, aparece como figura recorrente no cyberpunk”. As máquinas, além de ampliar nossos músculos, membros, sentidos e partes do cérebro, promovem um diálogo contínuo com o humano (COUTO, 2012, p. 155). O corpo, para os autores cyberpunk, é cada vez menos orgânico e mais artificial e a extensão da mente também é retratada - é possível, por exemplo, fazer download dos sonhos para acessar posteriormente e conectar seu cérebro a um computador para ter uma experiência de imersão em realidade virtual (é importante observar a tendência quanto à obsolescência do corpo humano). Ao longo dos anos, diversos autores anteciparam certos saltos tecnológicos, com especial olhar sobre o corpo humano e suas extensões. Tanto as personagens de [Willian] Gibson quanto as de [Pat] Cadigan, [Neal] Stephenson ou [Bruce] Sterling, apesar de diferentes - seres híbridos em sua maioria, entre o humano e a máquina - perambulam com suas próteses pelas ruas escuras e sujas de alguma metrópole entre o Japão e os Estados Unidos ou vagueiam no ciberespaço sem serem incomodadas. Em uma sociedade - assim descrita pelos autores - que estimula as transformações corporais, seja pelas drogas sintéticas, pelas cirurgias plásticas, pelos piercings e tatuagens, pela engenharia genética ou pelos implantes de lentes reflexivas, garras ou músculos de metal, esses seres fazem parte do cenário urbano e quem causa o estranhamento são os humanos em sua falta de extensões (AMARAL, 2006, p. 56, grifo dos autores).

Film noir é um estilo de filme associado a história de suspense policial, normalmente com ambientação nos anos 30 ou 40. “O uso atual do termo andróide em geral denota robôs que reproduzem a aparência humana (...) autênticas reproduções humanas, os andróides são considerados seres mais evoluídos que os robôs, e frequentemente alcançam níveis de complexidade mental - e até emocional - que rivalizam com os humanos” (OLIVEIRA, 2003, p. 189). 11 12

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William Gibson, renomado autor desse subgênero, certa vez disse: “quem achar que a Ficção Científica é sobre o futuro é ingênuo. A ficção científica não prediz o futuro; ela o determina, o coloniza, o pré-programa à imagem do presente13”. O objetivo, portanto, não é predizer o futuro, mas extrapolar o presente14. Amaral (2006, p. 68) defende que, apesar de o futuro parecer ser a temática central da FC, na verdade, ele é uma metáfora do presente. Podemos falar em antecipação de inovações tecnológicas, criadas a partir do conhecimento científico da época e aliadas a imaginação dos autores. A FC não nos projeta para o futuro, ela nos relata estórias sobre o nosso presente, e, mais importante, sobre o passado que gerou o presente. Contra-intuitivamente, a FC é um modo historiográfico, um meio de escrever simbolicamente sobre história (ROBERTS apud AMARAL, 2006, p. 69).

A FC, como assinalado, não é de toda forma futurista ou profética, mas conforme Roberts (apud AMARAL, 2003), é nostálgica e principalmente diz mais a respeito da sociedade do tempo em que foi escrito, do que sobre as possibilidades de visão de futuro. Os textos de FC estão situados em um tempo futuro e induzem um deslocamento do autor em relação ao seu contexto histórico15. Embora tenham sido escritos em determinado contexto, podem ganhar novos significados com o passar do tempo. Toda criação literária está associada ao seu tempo, mixando elementos inventados com a realidade social existente no momento da criação da obra: o discurso literário cyberpunk é compatível com o discurso científico e acompanha a evolução da técnica no contexto histórico-social pós-guerra fria. Todas essas obras, bem como toda produção literária, guardam em seu bojo aspectos, características e relações sócio-culturais do universo em que é produzida [...] Neste sentido, torna-se importante destacar o fato de que a produção da obra literária está associada ao seu tempo, refletindo em suas narrativas angústias e sonhos de agentes sociais contemporâneos à sua criação e mesclando elementos de ficção e das possíveis realidades existentes no momento da criação literária. Dessa forma, a obra de ficção lida com ações sonhadas, com sentimentos compartilhados, com intermediação entre o real e as aspirações coletivas. A obra literária constitui-se parte do mundo, das criações humanas, e transforma-se em relato de um determinado contexto histórico-social. Por isso, “qualquer obra literária é evidência histórica objetivamente determinada – isto é, situada no processo histórico”[...] A literatura passa então a fornecer uma versão da “história real” pelos olhos de um observador privilegiado – o escritor, que mesmo quando não possui o objetivo explícito de “fazer história” com sua obra, acaba por fornecer uma junção de elementos e características capaz de “dizer a história” em que se insere (SENA JR, 2015, p. 5). Disponível em: <http://goo.gl/rpZfya> Acesso em: 30 jun. 2014. Disponível em: <http://goo.gl/yvHddo> Acesso em: 6 jul. 2014. 15 Disponível em: <http://goo.gl/b47731> Acesso em: 17 mar. 2015. 13 14

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Para Bukatman (apud AMARAL, 2003), a Ficção Científica ganha cada vez mais importância no presente por ser este um momento que vê a si próprio como ficção-científica. O tempo histórico narrado no cyberpunk assemelha-se muito com a nossa realidade pós-moderna. O homem pós-moderno, o ser pós-humano, utiliza constantemente as novas tecnologias para se ressignificar e transpõe as barreiras entendidas como humano. Existe, portanto, uma tênue linha entre ficção e realidade. Já no ensaio Manifesto Ciborgue: Ciência, Tecnologia e Feminismo no Final do Século XX, publicado originalmente em 1985, a filósofa feminista Donna Haraway utiliza metaforicamente a figura dos ciborgues como crítica em favor das diferenças, condensando as transformações políticas e sociais ocorridas no ocidente na virada do século16. Essas transformações referem-se principalmente à ciência e à tecnologia, pois com elas as fronteiras entre real e virtual, orgânico e inorgânico, carne e máquina são colocadas em xeque. Segundo a autora, o ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, possuidor de uma parte dada e outra construída (HARAWAY, 2009). A carne humana já se fundiu com as máquinas e este ser humano melhorado, questiona e rompe com dualismos tradicionais: entre o humano e o animal, entre o humano e a máquina e entre o físico e não físico (COUTO, 2012, p. 49-55). O ciborgue surge em meio à cultura contemporânea como um transgressor das fronteiras construídas, desconstruídas e vencidas (COUTO, 2012, p. 20). As tecnologias de comunicação e informação constroem esse novo corpo, equiparando-se a uma máquina de alta-performance. Nas palavras de Tomaz Tadeu da Silva, organizador do livro Antropologia do Ciborgue: as Vertigens do Pós-humano: Implantes, transplantes, enxertos, próteses. Seres portadores de órgãos artificiais. Seres geneticamente modificados. Anabolizantes, vacinas, psicofármacos. Estados artificialmente induzidos. Sentidos farmacologicamente intensificados: a percepção, a imaginação, o tesão. Superatletas. Supermodelos. Superguerreiros. Clones. Seres artificiais que superam, localizada e parcialmente (por enquanto), as limitadas qualidades e as evidentes fragilidades humanas. Máquinas de visão melhorada, de reações mais ágeis, de coordenação mais precisa. Máquinas de guerra melhoradas de um lado e outro da fronteira: soldados e astronautas quase artificiais; seres artificiais quase humanos. Biotecnologias. Realidades artificiais. Clonagens que embaralham as distinções entre reprodução humana e reprodução artificial. Bits e bytes que circulam, indistintamente, entre corpos humanos e corpos elétricos, tornando-os igualmente indistintos: corpos humano-elétricos (TADEU, 2009, p. 12).

Para Couto, Souza e Neves (2013) os ciborgues podem ser classificados em protéticos e interpretativos: o primeiro diz respeito à performance fisiológica amparada ou dependente de aparelhos mecânicos ou digitais e o segundo relaciona-se à sociedade do espetáculo17, 16 17

Disponível em: <http://goo.gl/jrbpBP> Acesso em: 31 jan. 2015. Ver DEBORD, Guy. A Sociedade de Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

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quando o ciborgue “se constitui pela influência dos mass media18” (LEMOS, 2008, p. 172). O ciborgue interpretativo, sujeito-conectado, é um potencial fortalecedor das redes, pois se organiza multidirecionamente, cria e interpreta modos de viver na cibercultura (COUTO; SOUZA; NEVES, 2013), exercendo múltiplas identidades online. A partir destas reflexões, tecem-se observações (Quadro 1) quanto as representações do ciborgue a partir do século XIX: Período Representação

Representantes

Ficção científica: de 1818 até 1990

Cibercultura: 1990 em diante

· Compreende o período clássico da FC (1818 - 1938), a época dourada (1938 - 1950), a nova onda (1960 - 1970) e o cyberpunk (1980 - 1990), (AMARAL, 2006); · O ciborgue era comumente retratado como parte integrante de um universo distópico, visto que a sociedade vivia no pós-guerra e acompanhava grandes saltos tecnológicos; · O horror ao desconhecido era representado na figura do ciborgue - medo que as máquinas subjugassem a humanidade; · Puramente mecânicos, híbridos de carne e máquina; · Figuras criadas para refletir acerca de conceitos como a liberdade, moralidade, livre-arbítrio, etc.

· Período pós-moderno; · Não existe um único tipo de ciborgue: a) o ciborgue protético surge através dos computadores vestíveis, próteses e implantes (biônicos ou robóticos); b) o ciborgue interpretativo, sujeito-conectado, cria novos modos de viver na cibercultura (COUTO, 2012); · Tecnologia para (re) configurar e ampliar as capacidades humanas (reengenharia do corpo); · Indústria do design corporal: imperativos da aparência e juventude, qualquer coisa pode ser modificada, de acordo com o desejo do sujeito. Qualquer sinal indesejado pode ser eliminado, qualquer forma pode ser redesenhada e prontamente exibida (COUTO, 2012, p. 107); · A medicina atual transforma o humano em ciborgue (COUTO, 2012 p. 48); · Histórias de ciborgues da FC são adaptadas para o cinema (ex.: Minority Report e Total Recall) e jogos de videogame (ex.: Crysis e Mortal Kombat); · Ocupam lugar de destaque na mídia: são cantores, esportistas, artistas e cientistas; · Surgem organizações para defender os direitos dos ciborgues (ex.: Cyborg Foundation); · * Possibilidade de hackear o corpo (biohacking/biopirataria);

Frankenstein, Rato de Rockland, etc.

Stelarc, Steve Mann, Neil Harbisson, etc. Quadro 1 – Representação do ciborgue Fonte: Elaborado pelas autoras, 2015

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Segundo a Infopédia são os meios de comunicação social, como sistemas organizados de produção, difusão e recepção de informação. Ver <http://goo.gl/kSZf2w> Acesso 25 nov. 2014.

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A partir desse quadro, observa-se que as representações do ciborgue acompanham a evolução da ciência e que, com o passar do tempo, o medo das máquinas é praticamente superado, dando lugar a um relacionamento de mutualismo entre homem e máquina. A fácil transformação do humano em ciborgue é possível graças aos novos procedimentos da medicina e farmácia e o ciborgue interpretativo existe nas redes digitais, é a nossa identidade viva e operante no ciberespaço. O próximo item apresenta três ciborgues contemporâneos, demonstrando a importância destas figuras para a tecnociência.

4 CIBORGUES CONTEMPORÂNEOS 4.1 STELARC, O (CIBER)ARTISTA CIBORGUE Stelios Arcadiou, ou Stelarc, é um artista nascido em 1946, no Chipre (Figura 1). Como (ciber)artista performático é seguidor dos postulados de Marshall McLuhan21, visto que cria obras que concentram-se na extensão das capacidades do corpo humano através da tecnologia. 19

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Para Diana Domingues “a ciberarte está ligada à produção artística que circula no ciberespaço, no espaço de computadores e redes”. Disponível em: <http://migre.me/mQ5sX> Acesso em: 14 nov. 2014. 20 Alguns críticos de arte contemporânea classificam suas obras como “body-art cibernética”. Ver: FRANCO, Edgar. Stelarc: Arte, Tecnologia, Estética e Ética. In: Revista Educação e Linguagem, a. 2010, v. 13, n. 22. 21 Marshall McLuhan foi um teórico da comunicação canadense conhecido pelas máximas “o meio é a mensagem” e “aldeia global”. No livro Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem, defende que os meios são extensões dos sentidos dos homens, como o telefone é a extensão da fala, a pinça é a extensão das mãos, os óculos são a extensão da visão, etc. Ver: MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 2007. 19

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Figura 1 – Stelarc Fonte: STELARC, 2014

Stelarc tem feito apresentações desde a década de 1960 onde conecta/pluga/estende o próprio corpo, utilizando as tecnologias avançadas da robótica, realidade virtual e medicina. Para o artista, o corpo humano é ultrapassado e está fadado ao fracasso caso não se renda às possibilidades da tecnologia para expandir-se física e cognitivamente. É hora de se perguntar se um corpo bípede, que respira, com visão bonicular e um cérebro de 1.400 cm³ é uma forma biológica adequada. Ele não pode dar conta da quantidade, complexidade e qualidade de informações que acumulou; é intimidado pela precisão, velocidade e


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poder da tecnologia e está biologicamente mal-equipado para se defrontar com seu novo ambiente extraterreste. O corpo é uma estrutura nem muito eficiente, nem muito durável. Com frequência ela funciona mal e se cansa rapidamente; sua performance é determinada pela idade. É suscetível a doenças e está fadado a uma morte certa e iminente. Seus parâmetros de sobrevivência são muito limitados - o corpo pode sobreviver somente algumas semanas sem comida, dias sem água e minutos sem oxigênio. A ausência de projeto modular do corpo e de seu sistema imunológico que reage exageradamente dificulta a substituição de órgãos defeituosos. Considerar o corpo obsoleto em forma e função pode ser o auge da tolice tecnológica, mas mesmo assim ele pode ser a maior das realizações humanas (STELARC apud COUTO, 2012, p. 156, grifo dos outroes).

Couto (2012, p. 158) afirma que, para estender as capacidades corporais, o ser pós-humano “pluga seu corpo nos computadores, acopla em seu braço outro braço mecânico, uma mão robótica, instala seu olhos a laser, utiliza sistemas sonoros, e o seu corpo passa a funcionar de acordo com o ritmo das máquinas”. Para Stelarc, o homem não é definido pelo natural, nem pelo animal (COUTO, 2012), mas pela tecnologia: Pode parecer poético quando eu falo da obsolescência do corpo humano atual, mas a visão que eu tenho não é utopia. Se já se pode fertilizar fora do corpo humano e alimentar um feto fora do útero feminino, então - tecnicamente falando - podemos ter vida sem nascimento. E se até podemos substituir partes do corpo humano que funcionam mal e colocar lá componentes artificiais, então - mais uma vez, tecnicamente falando - não há necessidade de morte. Chegamos a uma situação em que a vida já não é mais condicionada pelo nascimento e pela morte. O corpo não necessita mais ser “reparado”, pode simplesmente ter partes substituídas (STELARC apud FRANCO, 2010, p. 104).

Em suas performances, Stelarc procura aliar a experiência física intensificada pelo uso das próteses com a expressão artística (COUTO, 2012, p. 159). Suas obras mais famosas são Stomach Sculpture (1993), The Extra Ear ou an ear on an arm (2007), The Third Hand (1986) e Exoesqueleton (1997 - 2006). Em algumas performances, seu corpo nu por muitas vezes é ligado a eletrodos, cabos e próteses, personificando a figura do ciborgue protético.

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4.2 STEVE MANN, O PAI DA COMPUTAÇÃO VESTÍVEL Steve Mann (Figura 2) é pesquisador da Universidade de Toronto e popularmente reconhecido como o pai da computação vestível, uma área interdisciplinar cujo principal objetivo é estudar como a tecnologia pode se integrar ao corpo humano e vem sendo apontada como um dos assuntos de maior relevância tecnológica dos últimos anos.

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Figura 2 – Steve Mann Fonte: MANN, 2014


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Os computadores vestíveis (wearable computers) são um tipo de computador “adicionado ao corpo do usuário, controlado por ele e sempre ligado e acessível, permitindo o acesso às informações de forma direta e instantânea enquanto realiza as suas atividades cotidianas, auxiliando em atividades motoras e/ou cognitivas” (DONATI, 2005). Frequentemente confundidos com gadgets ou dispositivos móveis, os computadores vestíveis têm a possibilidade de aprender informações tanto do usuário quanto do ambiente, tornando o seu funcionamento mais interativo (DONATI 2005), melhorando a qualidade de vida dos usuários e o aperfeiçoamento de sua capacidade de resolver problemas e de se comunicar com outros indivíduos (QUEIROZ, 1999). Para Mann, os computadores vestíveis funcionam como uma sobreposição, como uma segunda pele, e não como uma ferramenta a ser ligada e desligada22 (MANN, 2001, p. 11). Desde os anos 1980, Mann vem trabalhando no Wearcomp/Eye Tap, um computador vestível em formato de óculos inteligente, que possibilita a manipulação de conteúdos digitais através de comandos visuais, de voz, etc23. Sob sua perspectiva, através de seu computador vestível, é possível ser homem, computador, câmera e telefone - todos em uma única entidade. Utilizando diariamente seu computador vestível, Mann não imagina como “funcionaria” sem ele, sentindo-se, muitas vezes, nu. Ele afirma que todos os dias decide de que forma verá o mundo, [...] um dia, eu ponho meus olhos atrás da minha cabeça. Em outros dias, eu adiciono um sexto ou sétimo sentido, como a habilidade de sentir objetos que não estou tocando. As coisas aparecem diferente para mim. Eu vejo objetos cotidianos como hiper-ícones (similares aos que aparecem no computador). Eu posso escolher a visão estroboscópica para `congelar` o movimento das rodas de um carro que vai a cem quilômetros por hora, permitindo-me a contar os sulcos na banda de rodagem. Eu posso bloquear a visão de objetos em particular - evitando distrair-me, por exemplo, no vasto mar da propaganda que nos rodeia24 (MANN; 2001, p. 3).

Steve Mann continua desenvolvendo a sua pesquisa, estando a frente de diversos laboratórios de pesquisa em computação vestível25, contribuindo para o avanço dos estudos de corpos ciborguizados e, em 2011, um documentário intitulado Cyberman foi lançado, mostrando o dia-a-dia ciborgue de Mann através das lentes de seu computador vestível. Tradução nossa. Do original: "(Wearcomp) functions as an overlay, as a second skin, not a tool to be turned on and off”. O WearComp de Mann surgiu muito antes do Google Glass. 24 Tradução nossa. Do original: "Every morning I decide how I will see the world. One day, I give myself eyes in the back of my head. On other days I add a sixth or seventh sense, such as the ability to feel objects that are not touching me. Things appear diferente to me than they do to other people. I see everyday objects as hyper-icon I can click on and bring to life (similar to the way you click on a icon on a Web site). I can choose stroboscopic vision to freeze the motion on the spinning wheels of a car going a hundread kilometers an hour, allowing me to count the grooves in the tread. I can block out the view of particular objects – sparing myself the distraction, for example, of the vast sea of advertising that surround us”. 25 Mann é diretor do EyeTap Personal Imaging (ePi) Lab e do FL_UI_D Laboratory. 22 23

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4.3 NEIL HARBISSON, O PRIMEIRO HUMANO RECONHECIDO OFICIALMENTE COMO CIBORGUE Neil Harbisson (Figura 3) é um artista visual portador de acromatopsia, ou seja, tem a incapacidade de distinguir cores e vê o mundo apenas em preto e branco. Em 2003 cria o Eyeborg, computador vestível26 que possibilita ouvir as cores27. Um sensor, (implantado) atrás da cabeça, recebe as frequências de luz e transforma-as em frequências sonoras. A captação da cor fica a cargo de uma câmera, situada acima da testa e, depois, possibilita que (Neil) recorra aos ossos – do crânio – para ouvir as cores (HARBISSON apud BÁRTOLO, 2012).

Esta sinestesia artificial28 amplia também o seu potencial artístico: por perceber o tom de uma cor através de notas musicais, a luz pelos olhos e a saturação pelo volume (BÁRTOLO, 2012, online), dedica-se a criação de retratos sonoros29, ou seja, cria composições musicais a partir de figuras e rosto de pessoas e também desenhos a partir das cem primeiras notas de uma música30. 27

Em 2003 o Eyeborg era um dispositivo eletrônico vestível, acoplado a cabeça de Neil. Em 2014, o Eyeborg passou a ser implantado no crânio do artista. Palestra no TED “I listen to color”. Disponível em: <http://goo.gl/JnJlfI>. Acesso em: 23 dez. 2014. No vídeo, Harbisson mostra o funcionamento do Eyeborg. 28 No sentido de ser provocada, construída. 29 Alguns retratos sonoros criados por Harbisson: Leonardo Di Caprio, Daniel Radcliffe, Gael Garcia Bernal, Princípe Charles, entre outros. Disponível em: <http://goo.gl/7ufpLr> Acesso em: 23 dez. 2014. 30 Disponível em: <http://goo.gl/u3EWKo> Acesso em: 23 dez. 2014. 26 27


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Figura 3 – Neil Harbisson Fonte: CYBORG FOUNDATION, 2014

Em 2004, o Reino Unido reconheceu o Eyeborg como parte do corpo de Harbisson, ou seja, o artista foi reconhecido oficialmente como um ciborgue. A partir disso, criou a Cyborg Foundation, organização sem fins lucrativos dedicada a auxiliar pessoas se tornarem ciborgues, defendendo os seus direitos e incentivando a utilização da arte cibernética31.

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Fundada em 2010 por Neil Harbisson e Moon Ribas.


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5 RESULTADOS OBTIDOS Tomando como base a seguinte premissa de Moscovici (2003): “as representações que fabricamos (...) são sempre o resultado de um esforço constante de tornar real algo que é incomum (não familiar), ou que nos dá um sentimento de não familiaridade”, podemos analisar o contexto das primeiras representações do ciborgue. Tavares (2004) afirma que a Revolução Industrial e a revolução das tecnologias da informação “geraram descontinuidades profundas nos mais variados setores da vida em sociedade”: Essas novas formas de organização social e os novos espaços de vida, advindos com a revolução industrial, ocasionaram profundas alterações nos estilos de agir e de ser de seus contemporâneos. O cotidiano, nesses novos espaços, introduzia novos elementos na vida do urbanita: o excesso de estímulos, a divisão entre locais de trabalho e de moradia, a separação entre os domínios do público e do privado, os diferentes círculos de conhecimento, a racionalidade, a frieza, o anonimato, a reserva, o isolamento, o cálculo, a mobilidade, a pontualidade, etc. A essas novidades correspondiam novos comportamentos e novos traços psíquicos (TAVARES, 2004).

Evocar a figura do ciborgue, no período da Revolução Industrial, foi uma tentativa da sociedade interpretar o mundo de radicais transformações em que vivia: o trabalho braçal foi substituído por máquinas, o que gerou, entre muitos outros problemas, o desemprego. O ciborgue era a máquina que poderia dominar o mundo e representava também a desvalorização do corpo (e do trabalho) humano. Francisco Rüdiger (2008) afirma que não podemos falar em cibercultura sem evitar certas referências advindas da literatura e do cinema de ficção [...] quer num, quer noutro, a matriz é esse artefato cibernético que, desafiando o humano, faz interagir organismo e artifício (...) Em ambos, significativo é o fato de a matriz assim o fazer pela mediação do onírico, do imaginário, da subjetividade, o fato do mundo ser vivido nela como gigantesco sonho gerado artificialmente - mas isso tudo foi precedido ficcionalmente por outras soluções referentes à maneira de compor a relação entre homem e máquina como mundo e, portanto, o universo da cibercultura (RÜDIGER, 2008, p. 39, grifo dos outrores).

Os três ciborgues da cibercultura aqui apresentados demonstram que ciência e ficção sempre andaram lado a lado, visto que a ficção científica não existiria sem alguns conhecimentos técnicos e, de igual forma, não existe o fazer científico sem antes existir o ficcional, o imaginado. Para Stelarc, o corpo sempre foi um local de experimentação artística e poética, visto que defende que não é muito eficiente nem durável. O artista afirma que o corpo é obsoleto, fadado ao fracasso caso não se renda as capacidades e possibilidades de expansão física

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e cognitiva proporcionadas pela tecnologia. Este ciborgue, da ordem do protético, expressa o sentido de (re)configuração das capacidades motoras através do uso de próteses e revela que o corpo é uma construção inacabada e está sujeito a novas intervenções (COUTO, 2012, p. 175). Na performance Exoskeleton32, o artista utiliza um exoesqueleto33 pneumático para se locomover, como uma espécie de aranha robótica e esteticamente relembra o vilão Doutor Octopus, da ficção Homem-Aranha. Com isso, ficção e realidade novamente se entrecruzam e tornase cada vez mais difícil distinguir o que é prótese no humano e o que é carne na máquina (COUTO, 2012, p. 160). Já Steve Mann contribuiu seminalmente para o campo de estudo em computação vestível, principalmente por constantemente reinventar e reconsiderar sua relação com a tecnologia, refletindo no aprimoramento do WearComp. Mann “tornou-se gradualmente mais confortável com sua identidade ciborgue, porque a própria cultura estava se infundido com ideias sobre a transformação física e melhoramento do corpo”34 (RYAN, 2014, p. 73) e exprime a simbiose homem-máquina como modo de ser (COUTO, 2012, p. 175) ao relatar situações cotidianas em seu blog35. Recentemente, Mann foi agredido fisicamente no restaurante McDonalds, na França36, apenas por estar utilizando o WearComp (ou, apenas, sendo o ciborgue que é). Na ocasião, ao ser abordado pelos atendentes, explicou que o óculos era aparafusado ao seu crânio e, mesmo assim, foi atacado. Esta situação nos mostra que, embora os ciborgues já estejam inseridos na sociedade há quase duzentos anos, ainda há estranhamento quanto ao uso de próteses e implantes. Seria Steve Mann a versão (pós)moderna do monstro criado pelo Dr. Frankenstein? Por fim, Neil Harbisson, o homem que escuta as cores e fundador de uma ONG internacional que promove o direito dos ciborgues, destaca que pessoas com deficiência não são as únicas que podem se beneficiar da extensões tecnológicas para modificar o seu corpo, mas que qualquer ser humano pode (e deve) explorar estender os seus próprios sentidos e percepções. Como ciborgue que criou e implantou um dispositivo em seu crânio, Harbisson levanta questões referentes ao biohacking37 e a Cyborg Foundation disponibiliza, gratuitamente, principalmente em seu site oficial, pesquisas e códigos-fonte para que a população crie o seu próprio Eyeborg e demais computadores vestíveis. Disponível em: <http://goo.gl/uGLEjr>. Acesso em: 1 fev. 2015. Espécie de armadura robótica. 34 Tradução nossa. Do original: "He gradually became more comfortable with his human-machine identity, because culture itself was becoming infused with ideas about physical transformation and body enhancement". 35 Disponível em: <http://goo.gl/Mt5phJ>. Acesso em: 1 fev. 2015. 36 Relato da agressão. Disponível em: <http://goo.gl/FN9vna> Acesso em: 1 fev. 2015. 37 Prática que une a biologia com práticas de hacking. No português, usa-se o termo biopirataria. 32 33

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS: REFLEXÕES E PRÓXIMO PASSO Neste artigo, discutimos algumas representações do ciborgue desde 1818 (ano de lançamento do livro de ficção Frankenstein ou o Moderno Prometeu) até os dias atuais (cibercultura). De acordo com o levantamento bibliográfico realizado, é possível depreender que as dicotomias natural X artifical, animal X máquina, humano X inumano perdem sentido quando observamos a figura do ciborgue já que, para Lemos (2008), o ciborgue é “capital para a cibercultura, visto que simboliza o processo simbiótico da cultura contemporânea com o advento das tecnologias digitais”. Ao observar o corpo ampliado e (re)configurado pelas novas tecnologias de comunicação e informação, percebemos duas categorias de ciborgues: o protético – “aquele indivíduo cujo funcionamento fisiológico depende de aparelhos eletrônicos ou mecânicos”38 – e o interpretativo – o sujeito conectado que se faz presente nas redes digitais, exercendo suas múltiplas identidades39. Desta maneira, através das figuras de Stelarc, Steve Mann e Neil Harbisson - e a metáfora do ciborgue - podemos refletir acerca da nossa própria humanidade e, assim como destacou Paula Sibilia (2002, p. 11): “novas formas de pensar, de viver, de sentir; em síntese: novos modos de ser”. Como perspectiva futura, as presentes reflexões serão incorporadas à dissertação da autora Aline Corso, sob orientação da Prof ª. Dr ª. Sandra Montardo, que está em andamento e que pretende problematizar os computadores vestíveis, as próteses e os implantes na cultura do pós-humano. Assim, a partir dos apontamentos teóricos aqui apresentados, espera-se contribuir com os estudos acerca das representações do ciborgue na cibercultura, em especial no contexto brasileiro. Afinal, como já previu Donna Haraway (2009), nós somos ciborgues!

Disponível em: <http://goo.gl/kgvZ1n>. Acesso em: 31 jan. 2015. “Na cultura digital o corpo físico desaparece. O que temos agora é um meta-corpo, um corpo além do corpo, um hiper-corpo por meio do qual os sujeitos, em rede, se conectam uns aos outros, narram e interpretam as suas vivências efêmeras no ciberespaço. O corpo se transforma num grande hipertexto simbiótico, se constitui no corpo-rede rizomático, aberto, não centralizado. Este corpo-rede do ciborgue interpretativo está presente nas redes sociais, nos blogues, na efervescência das comunidades e vitrines virtuais onde cada um se pavoneia. Paula Sibilia (2008) destaca que dia após dia, minuto após minuto, os fatos reais são relatados por um “eu real” que por meio de palavras, fotos, imagens, e de maneira instantânea, tem sido visível nas telas de todos os cantos do planeta”. Disponível em: <http://goo.gl/AhSXJ7> Acesso em: 31 jan. 2015. 38 39

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CULTURA POPULAR: A IDENTIDADE NACIONAL NA CANÇÃO JACK SOUL BRASILEIRO1

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Cláudia Santos Duarte

Mestra em Processos e Manifestações Culturais, Universidade Feevale. E-mail: claudiasduarte@feevale.br.

Juracy Assmann Saraiva

Pós-doutora em Teoria da Literatura pela Unicamp, professora e pesquisadora da Universidade Feevale, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais dessa mesma instituição, bolsista do CNPq.

Artigo resultante da disciplina Concepções de Cultura e Manifestações Culturais, executado sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Juracy Assmann Saraiva, no Mestrado em Processos e Manifestações Culturais, Universidade Feevale.

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1 INTRODUÇÃO O presente artigo tem como tema o estudo das manifestações da identidade nacional brasileira na música popular do país, utilizando como corpus para a análise a canção Jack Soul Brasileiro, composta pelo cantor pernambucano Osvaldo Lenine Macedo Pimentel, conhecido popularmente como Lenine. Tal enfoque justifica-se pela abordagem da letra da canção que presta uma clara homenagem ao cantor e compositor Jackson do Pandeiro (JOSÉ GOMES FILHO 1919-1989), conhecido por difundir estilos musicais nordestinos no país. A canção ainda destaca, de modo muito harmônico, um jogo de palavras que desvenda algumas referências do que o compositor considera como a “alma brasileira”. A composição, lançada em 1999, no CD intitulado “Na Pressão”, revela-se como um importante produto cultural, com forte enfoque popular. A canção é uma composição que abrange o estilo musical de Lenine, priorizando ritmos e temáticas nacionais, além de indicar elementos da obra de Jackson do Pandeiro, cuja importância na música popular brasileira é reconhecida pela apresentação dos diferentes aspectos da música nordestina que influencia todo o país. Para realizar tal estudo, além de destacar os elementos da homenagem de Lenine a Jackson do Pandeiro, será necessário utilizar o embasamento teórico proposto por autores, como Stuart Hall (2006), Alfredo Bosi (2008), Renato Ortiz (2007) e Kathryn Woodward (2012), que sustentam as discussões sobre a representação de identidades, o hibridismo cultural brasileiro, as marcas culturais da modernidade e as relações entre cultura e globalização. Deste modo, a canção Jack Soul Brasileiro aparecerá como um respeitável representante da difícil preservação das culturas regionais em um mundo globalizado, destacando relevantes aspectos da cultura regional brasileira e sustentando uma posição de resistência da cultura popular à cultura de massa.

2 MÚSICA, CULTURA E IDENTIDADE NACIONAL A Música Popular Brasileira (MPB) é reconhecida como um aglomerado heterogêneo de ritmos, temas e abordagens, oriundos da também plural composição da sociedade brasileira. No espaço musical, diferentes perspectivas se encontram destacando o caráter multicultural

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do país e apresentando diversas leituras sobre a face de um determinado povo. Assim, segundo a apresentação do site do Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira2, [...] a importância da Música Popular Brasileira no cenário de nossa cultura é inegável. Pode-se constatar que a MPB, além de sua relevância como manifestação estética, tradutora de nossas múltiplas identidades culturais, apresenta-se como uma das mais poderosas formas de preservação da memória coletiva e como um espaço social privilegiado para as leituras e interpretações do Brasil.

Dessa forma, através do estudo de músicas produzidas no Brasil, podemos identificar aspectos da identidade brasileira e refletir sobre a importância dessas manifestações culturais na ressignificação das relações e na produção de novos sentidos para estas identidades. Lenine, ao compor Jack Soul Brasileiro, não só prestou uma homenagem a um outro compositor, mas, sobretudo, trouxe à cena um discurso que constitui o Brasil, especialmente no que se refere à cultura popular que existe nos mais variados espaços regionais do Brasil. E mesmo que a globalização permita o acesso e o consumo das manifestações culturais de diferentes lugares do planeta, são as produções locais, com suas peculiaridades, que dizem da nossa identidade e composição. Reforçando e disseminando a obra de artistas como Jackson do Pandeiro, Lenine e tantos outros, dentro e fora do espaço musical, contribuem para a formação e a reflexão sobre nossas raízes, oferecendo a quem tem acesso a produção, um longo caminho de autoconhecimento e aprendizado, pois, segundo Roque de Barros Laraia: O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridas pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as invenções (LARAIA, 1986, p. 46).

É nesse sentido que o estudo das relações entre a identidade nacional e a música popular brasileira faz-se pertinente, pois há um rico arsenal de produções que, se analisadas, trazem à tona importantes reflexões sobre a nação. O Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira faz parte da iniciativa do Instituto Cultural Cravo Albin, idealizado e supervisionado por Ricardo Cravo Albin. O instituto é uma sociedade civil, sem fins lucrativos, cujo objetivo é promover e incentivar atividades culturais no campo da pesquisa, com sede no Rio de Janeiro.

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Ao escolher Jackson do Pandeiro como tema da letra de sua música, Lenine apresenta uma clara identificação com a cultura popular brasileira e uma visível admiração pelo hibridismo característico do compositor a quem se reportou. Dessa forma, Lenine compôs uma canção que, para ser entendida em sua íntegra, necessita de um conhecimento prévio acerca de Jackson do Pandeiro para que se compreendam os elementos implícitos propostos pelo compositor. Dessa forma, a canção Jack Soul Brasileiro destaca uma linguagem que Patrick Charaudeau (2008) chamaria de não-transparente, pois, por exemplo, já no título, a canção apresenta uma brincadeira fonética que destaca algumas de intenções implícitas: a expressão Jack Soul Brasileiro, expõe, em conjunto, uma semelhança com a expressão “Jackson do Pandeiro”. Sabendo disso, o ouvinte pode começar a compreender melhor os detalhes que acompanham toda a música, inclusive a relação que Lenine quis destacar ao incluir a palavra inglesa soul ao seu título, que traduzido e adaptado seria Jack “Alma” Brasileira. Ainda sobre esse jogo fonético inicial, a identidade brasileira aparece pela relação que também pode ser feita entre o título e a expressão “já que sou brasileiro”. Ao analisar esses e outros pontos da canção por esse prisma, entendemos este objeto cultural como um testemunho por meio do “como se fala” e não somente a partir do “que fala” a mensagem (CHARAUDEAU, 2008, p. 20). Aquilo que Charaudeau (2008) chama de “aventura do ato de linguagem” foi muito bem empreendido por Lenine ao misturar trechos de músicas de Jackson do Pandeiro e elementos que constituem a nação brasileira, construindo o desafio de fazer o receptor reunir e analisar os detalhes para que chegue à totalidade da canção. Deste modo, ele conduz o ouvinte a um passeio pela obra do homenageado, assim como ressalta importantes elementos da cultura nacional. O trecho inicial da canção destaca: Jack Soul Brasileiro E que o som do pandeiro É certeiro e tem direção Já que subi nesse ringue E o país do swing É o país da contradição Eu canto pro rei da levada Na lei da embolada

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Na língua da percussão A dança mugango dengo A ginga do mamolengo Charme dessa nação...

Aqui, Lenine apresenta as suas intenções de cantar sobre “o rei da levada”. O compositor destaca, dessa forma, o caráter musical e contraditório do Brasil e diante disso justifica sua escolha em falar daquele que, em sua opinião, contribui para o “charme dessa nação”, pois Jackson do Pandeiro é reconhecido como aquele que misturou diversos gêneros brasileiros como forró, samba, xaxado, coco, xote, baião e tantos outros ritmos que utilizavam a “língua da percussão”. Nesse sentido, Lenine já inicia reforçando uma identidade brasileira marcada pela pluralidade, pois “identidades adquirem sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas” (WOODWARD, 2012, p. 8). E esse trecho destaca símbolos que o autor considera como nacionais: o pandeiro, o swing, a contradição, a embolada e a percussão. Para o entendimento da passagem seguinte da música faz-se necessário, como em outros tantos momentos, um conhecimento prévio da obra de Jackson do Pandeiro, pois Lenine combina interrogações acerca do artista sem dar-lhe nome, apenas apresentando expressões de suas músicas ou de suas preferências rítmicas: Quem foi? Que fez o samba embolar? Quem foi? Que fez o coco sambar? Quem foi? Que fez a ema gemer na boa? Quem foi? Que fez do coco um cocar? Quem foi? Que deixou um oco no lugar? Quem foi? Que fez do sapo Cantor de lagoa?...

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As menções à embolada, ao coco de roda e às músicas de Jackson intituladas Canto da Ema e Cantiga do Sapo, fazem com que conheçamos um pouco de quem foi e o que fez José Gomes Filho. E, nesse sentido, a canção segue sua tendência inicial de valorizar aquilo que Alfredo Bosi (2003) destaca sobre a cultura brasileira, como sendo resultado de múltiplas interações e oposições, onde não há homogeneidade. De certa forma, as interações rítmicas produzidas por Jackson do Pandeiro traduzem uma parcela dessa pluralidade nacional, tão presente na música e em outras manifestações culturais do país. E depois de inserir na canção um segmento da música Cantiga do Sapo, de Jackson do Pandeiro, Lenine apresenta uma série de elementos os quais acredita comporem a “alma brasileira”, num discurso que traz à memória diversos detalhes daquilo que faz sentido para diferentes brasileiros, assumindo uma postura que ressalta que “as culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações” (HALL, 2006, p. 50): Jack Soul Brasileiro Do tempero, do batuque Do truque, do picadeiro E do pandeiro, e do repique Do pique do funk rock Do toque da platinela Do samba na passarela Dessa alma brasileira Despencando da ladeira Na zueira da banguela Alma brasileira Despencando da ladeira Na zueira da banguela

Refletindo sobre as colocações de Charaudeau (2008), esse fragmento expõe particularidades do Brasil e dos brasileiros que necessitam de um movimento de expansão do sujeito interpretante, a fim de que se estabeleçam relações e se criem hipóteses sobre as intenções do enunciador, no caso, o compositor Lenine. Assim, a canção aponta características que remetem à composição da cultura brasileira, fruto da miscigenação mencionada por autores como Renato Ortiz (1994), numa espécie de listagem de itens que inevitavelmente nos levam a pensar

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no quanto o brasileiro é versátil, heterogêneo e alegre. Lenine fala do brasileiro “do tempero”, pois a culinária do país é fruto da reunião e dos hábitos de diversos povos; fala do brasileiro “do batuque”, “do pandeiro”, “do repique”, “do funk”, do “rock”, “do samba”, enfim, da mistura de ritmos e de instrumentos que se sobressaem quando se procura falar da identidade brasileira. E quando encerra esse trecho, Lenine faz uma sutil menção à difundida ideia de que o brasileiro enfrenta as adversidades de modo alegre e otimista, pois “Despencando da ladeira / Na zueira da banguela”, vai, como propõe Gilberto Freyre (2006) “equilibrando antagonismos” e superando desafios. Assim, se pretende expor que mesmo “ladeira abaixo” ou passando por dificuldades, o povo do país faz “zueira” e encara com alegria os percalços. Por fim, Lenine recorre a outro importante fragmento de canção cantada por Jackson do Pandeiro. Em “Chiclete com Banana”, Jackson posiciona-se a respeito da indústria cultural estadunidense e sua relação com as culturas populares realizadas no Brasil, apontando uma espécie de acordo musical. Nesse sentido, para que ele se renda às novidades tecnológicas propostas pelos Estados Unidos, seria necessária uma troca cultural, em que os estadunidenses também precisariam abrir espaço para a música, os ritmos e os instrumentos brasileiros: Eu só ponho BEBOP no meu samba Quando o tio Sam Pegar no tamborim Quando ele pegar No pandeiro e no zabumba Quando ele entender Que o samba não é rumba Aí eu vou misturar Miami com Copacabana Chiclete eu misturo com banana E o meu samba, e o meu samba Vai ficar assim... Ah! ema gemeu... Aaaaah ema gemeu!

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Com a escolha desse fragmento para ser anexado na canção que homenageia Jackson do Pandeiro, Lenine situa-se, de certa forma, em oposição ao que Zygmunt Bauman (2007) chama de “sociedade de consumidores”, que para o autor representa “o tipo de sociedade que promove, encoraja ou reforça a escolha de um estilo de vida e uma estratégia existencial consumistas, e rejeita todas as opções culturais alternativas” (BAUMAN, 2007, p. 71). Lenine escolheu como protagonista de sua canção um cantor nordestino que misturava sons e instrumentos, fazendo uma música popular com forte identificação com o povo brasileiro. E para sintetizar a sua obra, Lenine encerra a produção trazendo justamente um trecho composto por Jackson, onde o paraibano propõe uma alternativa ao consumo da cultura de massa, representada em sua canção pelo BEBOP tecnológico dos Estados Unidos. Jackson propõe que o caminho seja de mão dupla: assim como a globalização permite a chegada de bens estrangeiros ao Brasil, também é necessário que a música brasileira, e demais elementos culturais, cheguem até os países estrangeiros. Dessa forma, o Brasil, e, talvez, outros locais não hegemônicos, podem contribuir com o que se “consome” em termos culturais mundiais. Ao propor essa “aliança” entre a produção cultural dos dois países, Jackson do Pandeiro não se rende ao imperialismo cultural dos Estados Unidos. Pelo contrário, assim como faz Lenine em grande parte das suas produções, o paraibano parece entender que é possível usufruir da tecnologia de ponta e dos elementos culturais oferecidos pelos estadunidenses, sem perder a essência da música brasileira, pois “a especificidade da matriz cultural permanece enquanto diferença, cada uma delas atuando como filtro seletor do que é trocado” (ORTIZ, 2007, p. 76). Recheada de elementos que compõem a identidade nacional, além de musicalmente misturar ritmos nacionais e estrangeiros em sua composição, a canção de Lenine, talvez, queira dizer que é possível estar num mundo globalizado, usufruir dos benefícios da desterritorialização de vários elementos e da rapidez com que as informações e imagens chegam a qualquer parte o mundo, sem que, para isso, seja necessário abandonar os ícones regionais e as culturas locais. Segundo, Néstor Garcia Canclini (2010, p. 28): Os estudos mais esclarecedores do processo globalizador não são os que apontam para uma revisão de questões identitárias isoladas, mas os que propiciam a compreensão do que podemos fazer e ser com os outros, de como encarar a heterogeneidade, a diferença e a desigualdade.

Na canção Jack Soul Brasileiro, Lenine experimenta essa prática, exaltando um símbolo da cultura regional, sem deixar de incluir na melodia sons e instrumentos de caráter globalizado. Dessa forma, o cantor e compositor pernambucano contribui de modo muito enriquecedor para que se realize um movimento ambíguo de valorização da cultura local e de abertura ao que Renato Ortiz (2007) chama de aculturação. Esse

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conceito traz a ideia de que permitindo o contato de grupos provenientes de dois universos diferentes se obtém como resultado mudanças nos padrões culturais de um ou outro grupo. Tal processo, a princípio, pode não trazer prejuízos aos envolvidos; pelo contrário, se as manifestações locais foram preservadas e a memória coletiva mantiver a ligação entre grupos regionais, a globalização pode, como atuou em Jack Soul Brasileiro, tornar-se um elemento para aprimorar a produção existente. Lenine aliou a memória de um compositor popular brasileiro, à ideia trazida pela palavra inglesa soul e à mistura de ritmos nacionais e estrangeiros, destacando implicitamente que é possível fazer música popular, recheada de hibridismo cultural, sem abandonar as raízes e as lembranças locais. Jack Soul Brasileiro, enquanto objeto cultural, exterioriza a ideia defendida por Woodward (2012) que diz que a identidade depende da diferença. Nesse sentido, Lenine apresenta a identidade brasileira de modo heterogêneo e plural, mas, sobretudo, ao destacar o trecho da música Chiclete com Banana, ressalta a comparação do que é brasileiro e do que é estadunidense, provocando uma identificação entre os membros desse grupo. Como identificação entende-se o “processo pelo qual nos identificamos com os outros, seja pela ausência de uma consciência da diferença ou da separação, seja como resultado de supostas similaridades” (WOODWARD, 2012, p. 18). E é essa separação, que determina o que é seu e o que é do outro, que contribuiu para a formação da identidade, no caso, a identidade brasileira. Não se pode esquecer que, mesmo que nem todos os brasileiros se identifiquem com os gêneros musicais ou pelas palavras exploradas por Jackson do Pandeiro e Lenine, é inegável que a composição Jack Soul Brasileiro procura destacar essa “alma brasileira” de modo a trazer elementos que extrapolam a homenagem ao paraibano e que transmitem um sentido de unidade em torno do que Jackson do Pandeiro representa para a música e cultura nacionais. Dessa forma, “não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e grande família nacional” (HALL, 2006, p. 59). Nesse sentido, Jack Soul Brasileiro auxilia na formação da identidade nacional uma vez que reforça elementos da memória brasileira e associa diferentes símbolos à imagem da nação. E, ainda, reforça com essa perspectiva, uma ideia de resistência à cultura de massa que, segundo Alfredo Bosi (2003), se configura num movimento onde pouco importam as fronteiras nacionais e em que há urgência de substituição, apresentando um caráter descartável. Para o autor, a cultura popular é capaz de se opor a essa manifestação, trazendo, como fez Lenine, um retorno de situações e atos que a memória grupal reforça e dá valor, buscando um enraizamento, que não ignora a cultura de massa, mas que

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privilegia a ideia de “aprender o que somos, no que estamos nos tornando e o que podemos fazer”, de modo “plural, sim, mas não caótico” (BOSI, 2003, p. 15).

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Analisar a música popular brasileira sob a ótica da manifestação da identidade nacional não é uma tarefa difícil quando se reflete sobre uma canção como Jack Soul Brasileiro. Tanto o título, como a escolha do homenageado (Jackson do Pandeiro) e as palavras que compõem a canção já vem claramente carregados de brasilidade. A letra em questão ultrapassa o simples rótulo de objeto cultural e estende sua abrangência a um importante material para que se reflita sobre a importância dos ícones da cultura local e para que se repensem os caminhos trilhados pela globalização, especialmente, no que se refere à cultura de massa. Ao valorizar um artista como Jackson, Lenine não só presta uma homenagem ao cantor e compositor, como reconhece o valor da cultura popular para a formação identitária do país. E essa posição pode ser identificada, entre outros tantos momentos, pela ideia que paira por toda a canção quando diz “já que sou brasileiro”. E, sendo dessa forma, o ser brasileiro acaba perpassando pela contemplação do que produziu o paraibano Jackson do Pandeiro, como um dos símbolos da pluralidade e dos ritmos existentes nos meios populares do Brasil. Entretanto, o ponto de destaque da canção é a reprodução de um fragmento marcante da música “Chiclete com Banana”, de Jackson, o qual destaca a forma ideal para que se dê a relação entre a cultura brasileira e a cultura dos Estados Unidos. Nesse ponto, a ideia de uma aceitação não passiva do que vem de fora mostra uma consciência da importância da diversidade cultural e da necessidade de se ultrapassar a dimensão comercial, especialmente, quando se trata de cultura. Dessa forma, em Jack Soul Brasileiro (e em tantas outras composições musicais nacionais), a “alma brasileira” aparece como uma rica alternativa a uma produção que considera mais a rapidez de produção e o consumo total, ao invés de reconhecer nas peculiaridades locais importantes formas de disseminar as culturas que vêm carregadas de valores e de memória coletiva, constituindo aquilo que Lenine chama, a partir de sua homenagem a Jackson do Pandeiro, de “charme dessa nação”!

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AS TRANSFORMAÇÕES DO FENÔMENO MORTE NO CONTEXTO DAS PRÁTICAS DE RITOS FUNERÁRIOS NA SOCIEDADE PÓS-MODERNA

AS TRANSFORMAÇÕES DO FENÔMENO MORTE NO CONTEXTO DAS PRÁTICAS DE RITOS FUNERÁRIOS NA SOCIEDADE PÓS-MODERNA 47

Cristian Leandro Metz

Graduado em Moda (Universidade FEEVALE, 2013), Mestrando em Processos e Manifestações Culturais (Universidade FEEVALE, 2014). Bolsista FAPERGS/CAPES.

Ana Luiza Carvalho da Rocha

Pós-doutorado em Antropologia sonora e visual (Universidade Denis Diderot, Paris VII), Antropóloga do Laboratório de Antropologia Social (PPG em Antropologia Social/UFRGS) e professora da Universidade FEEVALE.


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Desde que estou retirando só a morte vejo ativa, Só a morte deparei e às vezes até festiva. Só a morte tem encontrado quem pensava encontrar vida, E o pouco que não foi morte foi de vida Severina. Morte e vida Severina – João Cabral de Melo Neto (1955)

1 O FENÔMENO MORTE E SEUS ASPECTOS FILOSÓFICOS Como podemos definir a morte dentre tantas crenças e suposições? Segundo Bayard (1996, p. 37) “não podemos dar definição precisa da morte, mas só opô-la à vida, que também não pode ser definida”. E, neste sentido, as religiões e a filosofia sempre procuraram um sentido quando se trata da origem e destino do homem, enquanto raça humana; os aspectos relacionados à morte surgem no decorrer da história, com o desenvolvimento e evolução das civilizações, de diferentes culturas, ideologias e crenças. Deste modo, podemo-nos utilizar do mais vasto repertório de interpretações e possibilidades, nos apropriando da linguagem filosófica de Abbagnano (1982) em seu Dicionário de Filosofia. Nele, o autor considera a morte ou como o falecimento, que é um fato que tem lugar na ordem natural das coisas ou como uma relação específica da existência humana, que depois também será abordada como o início ou o fim de um ciclo de vida e como uma possibilidade existencial. Se optarmos por considerar a morte somente como falecimento, ela não deixa de ser um fato natural como todos os outros e não assume nenhum significado específico para o homem e mulher. Cada vez que se fala da morte no sentido de um fato natural, entende-se a morte como falecimento (ABBAGNANO, 1982). Se optarmos por perceber a relação específica da morte com a existência humana, devemos atentar que ela pode ser entendida sob três enfoques: como o início de um ciclo de vida, como o fim de um ciclo de vida ou como uma possibilidade existencial.

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Como início de um ciclo de vida, a morte é entendida por muitas doutrinas que admitem a imortalidade da alma. Para tais doutrinas, a morte é o que dizia Platão: “a separação da alma do corpo”. Com esta separação de fato, inicia-se o novo ciclo de vida da alma: seja que este ciclo se entenda como reencarnar-se da alma em um novo corpo, seja que se entenda como uma vida incorpórea (ABBAGNANO, p. 653-654).

Já no ponto de vista que tange à morte como fim do ciclo de vida, podemo-nos deter ao que pensavam alguns filósofos acerca do assunto. Marco Aurélio (apud ABBAGNANO, 1982) a considerava como repouso ou cessação dos cuidados da vida. Ele articula que “na morte está o repouso dos contragolpes dos sentidos, dos movimentos impulsivos que nos arrastam aqui e ali como marionetes, das divagações de nossos raciocínios, dos cuidados que devemos ter para com o corpo” (ABBAGNANO, 1982). Por sua vez, Hegel considera a morte como o fim do ciclo da existência individual ou finita pela sua impossibilidade de adequar-se ao universal. A inadequação do animal a universalidade é sua doença original e é o germe inato da morte. A negação desta inequação é precisamente, o cumprimento do seu destino (IDEM, 1982, p. 654). E, como terceira forma de percepção da morte, Abbagnano (1982) compreende que, como possibilidade existencial, a morte não seria um acontecimento particular, situável no início ou no fim de um ciclo de vida próprio do homem, e sim, uma possibilidade sempre presente na vida humana. E ainda cita que a morte é a nulidade possível das possibilidades do homem e da inteira forma do homem. Bayard (1996, p. 31) complementa esse pensamento informando que: Desde os tempos mais recuados, em todas as civilizações, cerimônias muito particulares acompanham a memória daquele que deixa o nosso mundo. Honrado ou temido, o morto se beneficia de presença permanente: um culto no qual a fé e a esperança dos vivos inscrevem-se nos valores do sagrado. A morte torna-se a antecâmara de mundo novo, que queremos crer de horizontes resplandecentes, de um além do qual ninguém volta e que todas as tradições imaginam sensivelmente da mesma maneira como lugar de felicidade.

Nesse sentido, a fé nas religiões tem como principal objetivo o de preparar os seus fiéis para este rito de passagem que, invariavelmente, se faz presente no cotidiano de toda a humanidade e que representa um fenômeno muito especial, senão o mais especial para a experiência humana: a percepção e a tomada de consciência da nossa finitude.

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2 OS ASPECTOS RELIGIOSOS DO FENÔMENO MORTE NAS CULTURAS HINDUÍSTA, JUDAICA E CRISTÃ A seguir, abordaremos a forma como o fenômeno Morte é percebido dentro de três diferentes cultos, tanto politeístas como monoteístas, presentes nas sociedades ocidental e oriental. Cada cultura tem formas muito particulares de realizar o culto aos seus mortos e essa abordagem histórica faz-se necessária para a percepção das modificações ocorridas na prática dos ritos funerários, principalmente na sociedade cristã ocidental.

2.1 A HISTÓRIA DA MORTE NA CULTURA HINDUÍSTA 50

No período que compreende os anos entre 1.900 e 500 a.C, encontram-se a cultura dos povos Védicos que, sendo nômades e vivendo em regiões inóspitas, introduzem a ideia de reencarnação como a possibilidade de renascerem, após a morte, em lugares mais favoráveis (BITENCOURT, 2007). Tais culturas e crenças dão origem ao hinduísmo, religião politeísta e que acredita na existência de reencarnações anteriores e que geram os karmas1, determinantes para a reencarnação do ser em determinada casta2. Segundo Caputo (2008) os hindus tem o costume de incinerar os cadáveres; tal atitude tem a intenção de despojar sua identidade, personalidade e inserção social. Uma vez consumido pelo fogo, as cinzas são lançadas ao vento ou nos rios. Por meio de deste ritual os hindus objetivavam a sua representação da morte que consiste na passagem para outro plano da existência, o da paz originária. O autor complementa dizendo que a cremação é considerada obrigatória para todos, com exceção de crianças abaixo dos cinco anos. Tal costume é executado envolvendo os corpos em tecidos e queimando-os em piras a beira do Rio Ganges, sagrado ao povo hindu. 1 2

Termo extraído das doutrinas bramânicas, com o qual se procura interpretar a lei de ação e reação. Nas religiões da Índia, sujeição ao encadeamento das causas. Cada uma das classes em que se dividem os povos da Índia.


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Chaitanya (2001) considera algumas curiosidades sobre a importância do rio nas práticas funerárias do povo Hindu: relata que o Ganges tem um valor espiritual muito importante para as pessoas que seguem o hinduísmo, acreditando que ele tem a capacidade de purificar todos os pecados. Eles acreditam também que suas águas descem diretamente dos céus, por obra constante do deus Brahma, criador do universo. Dentro dos rituais praticados à beira do Ganges, um muito comum é a visita de milhares de devotos que, ao amanhecer, tomam banho nas águas poluídas do rio, pois creem que o rio possui a capacidade de purificá-los de todos os pecados e, então, os fazem ascenderem a uma nova reencarnação, numa casta superior àquela em que estavam. Nas suas margens, há vários postos de cremação, onde os mortos são queimados, ininterruptamente, e as cinzas encontram o destino final em suas águas. As famílias que trazem seus mortos para serem cremados, acreditam que estes serão purificados e se libertarão da servidão material. A cena de imensas fogueiras, para cremar os corpos dos mortos, se repete todos os dias. Antes de serem cremados, porém, os corpos são lavados nas águas do rio, depois colocados para escorrer o excesso de água. Chaitanya (2001) prossegue informando, ainda, que as mulheres estão proibidas de assistirem às cerimônias de cremação, porque ao chorar, impedem que a alma vá para o Nirvana. É comum ver famílias tirando fotos ao lado do morto, na sua pira crematória. O parente, que acende a fogueira, tem a cabeça toda raspada, em sinal de luto. Ao final da cremação todos os familiares presentes deverão tomar um banho no rio. Tomasi (2007, p. 41) relata, com muita comoção, o que viu ao chegar à beira do Ganges: A intensidade espiritual é tanta que já chegamos à beira do Ganges com lágrimas nos olhos e um caroço na garganta. [...] É muita energia sendo expandida, trocada, sentida. Muitas pessoas meditando, rezando, banhando-se , ofertando, aguardando a morte.

Prossegue relatando o que viu em um dos crematórios na beira do rio: Descemos do barco no meio da fumaça de um corpo incandescente, coberto com um saco branco e flores. Os pés e as canelas ficaram de fora e ainda não tinham sido transformados em cinza. [...] Cinco pessoas rezavam em volta do corpo e jogavam oferendas. Ao lado desse, havia o corpo de um brâmane3, já em cinzas, que estava há dias queimando. [...] Para eles, o corpo não é nada, não tem choro ou desespero em volta, nem nenhuma sensação mais profunda. Todos apenas rezam (IDEM, 2007, p. 42). 3

Sacerdote indiano da religião de Brahma ou membro da primeira das quatro castas indianas. Membro da casta sacerdotal.

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Ressalto que trataremos, no decorrer deste artigo, sobre os processos ocorridos no culto aos mortos na sociedade modernocontemporânea. Notamos que na cultura hindu, a prática da cremação é uma tradição e cumpre com a função espiritual de encaminhamento da alma daquele falecido ao encontro dos seus Deuses e, consequentemente, atua no processo de reencarnação. Diferente da cultura ocidental, a cremação à beira do Ganges faz parte da tradição do culto aos mortos naquela religião. Na prática ocidental, a cremação surge como proposta higienista do fenômeno Morte, como será relatado no decorrer deste artigo.

2.2 A PERPETUIDADE DA ALMA NA CULTURA JUDAICA A mais antiga das religiões ocidentais fundamenta-se nas escrituras deixadas pelos profetas hebreus, autores dos livros sagrados do judaísmo e que, posteriormente, foram incorporados ao Velho Testamento da Bíblia Sagrada. O Judaísmo, segundo Bayard (1996, p.123) “proclama a perenidade da alma: a morte só afeta o corpo físico, para o qual a missão terrestre se encerra”. Prossegue expondo que: O judeu não sente medo nem perturbação diante da morte; tal interpretação codifica os ritos de luto, os quais não são estéreis, mas salutares e edificantes para aqueles que o observam. Eles os levam a tomar consciência do verdadeiro sentido da vida e da necessidade de “tornar rentável” ao máximo a curta passagem por este mundo, a minimizar a importância do físico e material e a renunciar, enfim, a identificar seu ser com seu corpo, para não desaparecer com ele quando se tornar pó (IDEM, 1996, p. 123).

Indo de encontro a Bayard (1996), considera-se existencialmente quase impossível para um ser humano, qualquer que seja sua religião, etnia ou preparo cultural, o fato de não se perturbar diante da morte de entes queridos ou da morte em geral. Entretanto, podemos concordar que a finalidade do ritual em si, poderia levar a isso: teria como função preparar seus adeptos para se perturbarem em menor intensidade ou não se perturbarem diante da morte. Lamm (2009) entende que a morte é a crise da vida. A maneira de um homem lidar com a morte indica muito sobre sua atitude para com a vida. Assim como há um estilo judaico de vida, também existe um estilo judaico de morte. E conclui seu pensamento afirmando que:

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Da mesma forma que a maneira judaica de viver é uma perspectiva distinta e um estilo de vida singular específicas de Deus, assim também a maneira judaica de morrer implica atitudes singulares em relação a Deus e a natureza, e relativamente ao problema do bem e do mal. Há também uma maneira distintiva de demonstrar as qualidades específicas judaicas de reverência pelo homem e respeito pelos mortos (IDEM, 2009, p. 01).

Sobre a preparação do morto para os rituais de passagem, Bayard (1996) descreve que o corpo da pessoa falecida deve passar por toalete completa que tire dele toda a sujeira e toda impureza, afim de que possa apresentar-se diante do seu Senhor. O ato de lavar os mortos é costume geral encontrado mais ou menos desenvolvido na maior parte das civilizações. Essa função, muitas vezes, é dada às mulheres, porém na prática judia, são designados quatro homens para prestar os cuidados fúnebres ao seu companheiro. A toalete funerária encerra o sentido sagrado e condiciona o futuro “pós-morte” do defunto: toda sujeira deve desaparecer. Conforme Lamm (2009) a tradição judaica reconhece a democracia da morte. Exige, portanto, que todos os judeus sejam enterrados no mesmo tipo de veste – uma mortalha branca simples. Ricos ou pobres, todos são iguais perante Deus, e aquilo que determina sua recompensa não é a roupa que vestem, mas aquilo que são. Há quase 2.000 anos essa prática foi instituída para que os pobres não ficassem envergonhados e os ricos não exibissem o custo de suas roupas do funeral. Tanto Bayard (1996) quanto Lamm (2009) definem o luto israelita, que possui como sinal mais aparente da dor da perda, a dilaceração (queriah) que é o ato dos enlutados rasgarem suas roupas antes do funeral. Bayard (1996, p. 127) informa que: Os sete parentes próximos4 tem a obrigação de fazer uma rasgadura em sua roupa: de pé, recitando a benção dirigida ao Juiz da Verdade, “rasgam a roupa na altura do coração, da beirada superior para baixo, no comprimento de 10 cm”. Às vezes é arrancado apenas um botão da camisa.

Para o rito de rasgar a roupa, só poderão fazer parte, conforme Lamm (2009) adultos acima da idade de treze anos. Menores, que sejam realmente capazes de entender a situação e avaliar a perda podem ter as roupas rasgadas por outros parentes ou amigos. E Bayard (1996, p. 128) conclui informando que “somente depois de trinta dias é que se pode coser novamente as duas partes e que nas roupas das crianças, esse conserto deve ser feito de forma grosseira”. 4

Os sete parentes próximos são o pai, a mãe, o cônjuge, os filhos e as filhas, os irmãos e as irmãs.

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2.3 O TEMOR À MORTE NA PERSPECTIVA CRISTÃ Na mais antiga compilação cristã de textos considerados sacros, a Bíblia, a questão da morte é tratada em várias passagens. E é importante perceber que ela mostra a morte com pelo menos, duas faces distintas: no Antigo Testamento, a morte é vista como algo natural. O que não é natural no Antigo Testamento é a morte na juventude; nesta fase da vida ela é vista como maldição: Olhe, está chegando o tempo em que eu matarei todos os moços da sua família e da família do seu pai para que nenhum homem da sua família chegue a ficar velho. [...] Deixarei vivo apenas um de seus descendentes, que será meu sacerdote. [...] E todos os seus outros descendentes morrerão de morte violenta (BIBLIA, 1988, p. 284).5

Enquanto na juventude a morte é vista como maldição, na velhice é vista como bênção, de acordo com o que está escrito no livro de Gênesis, capítulo 25, versículos 7-8 que informa que “Abraão viveu cento e setenta e cinco anos. Ele morreu bem velho e foi reunir-se com seus antepassados no mundo dos mortos” (BIBLIA, 1988, p. 25). Bayard (1996), com relação ao sentimento cristão diante da morte, informa que o cristão teme a morte súbita, por que não lhe permite receber o santo sacramento da extrema unção6, que é o que purifica o corpo e restituilhe a saúde, eliminando suas impurezas. Continua dizendo que é bom que o moribundo seja provado pela doença, visto que esta é querida por Deus como castigo e purificação; a doença corporal desenvolve a saúde da alma. Segundo Rodolpho (2004, p.142) “a morte cristã não se relaciona simplesmente com um cadáver, com o fim de uma vida, mas trata-se igualmente de uma nova condição, uma nova iniciação à vida eterna”. Bayard (1996) complementa informando que os ritos mortuários cristãos não apresentam nem a complexidade e nem o refinamento encontrado em outras civilizações e que a ressurreição é considerada no plano espiritual, por meio de do Juízo Final. No tocante da perspectiva teológica Cristã o que mais chama a atenção é a percepção de que a morte é o que nos distingue de Deus, que é imortal: a nossa mortalidade faz com que o ser humano perceba que a vida não é criação e nem propriedade sua, mas sim, é um bem precioso confiado por Deus. Desta forma, a morte não pode ser encarada como um roubo, mas como a devolução do bem mais precioso que nos foi confiado. 5

6

Consultar 1 Samuel, capítulo 2, versículos 31-33.

Sacramento destinado a quem está muito doente. É o último socorro da religião.

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3 O PROCESSO DE HIGIENIZAÇÃO NO CAMPO DOS RITOS MORTUÁRIOS Philippe Ariès destaca nas suas obras7 as atitudes da cultura ocidental diante da morte; o autor acredita que, somente vivendo com o pensamento na morte, isto é, consciente de que se irá morrer um dia, é que se pode aproveitar bem a vida (ARIÈS, 1982). Tal consciência fazia parte da relação de “bem viver” e “bem morrer” e deixou de existir para os moribundos a partir do momento em que a morte foi escondida dentro dos hospitais, banida das conversas cotidianas e quando o luto deixa de ser vivido pelos enlutados. Eis que surge o processo de higienização do fenômeno Morte dentro da cultura ocidental. O autor discute este processo no período pós 1ª guerra mundial até os dias atuais. Porém, a ação de higienização do fenômeno Morte se inicia nos anos oitocentos, com a criação dos cemitérios. Para este entendimento, nos apropriamos das palavras de Reis (1997)8, que nos transporta à época do Brasil Império. Resumidamente, é citado o texto deste autor para boa compreensão deste processo. No período oitocentista, a morte ideal não deveria ser uma morte solitária, privada. Quando o doente estava no fim da vida, ele não se isolava num quarto de hospital; a morte era esperada em casa, na cama em que dormira por toda a vida, na presença dos familiares, ao que Ariès (1982) define como “uma manifestação social”. Além dos familiares, a presença de um padre era solicitada para que o enfermo pudesse receber o seu último sacramento: a extrema unção. Essa proteção humana que cercava a hora da morte em nossa antiga cultura funerária era fruto de uma sociedade pouco individualista, em que a vida e a morte privadas ainda não haviam siado reduzidas ao pequeno mundo da família nuclear tipicamente burguesa. Isso valia mesmo para as classes superiores, em que este processo de privacidade iria aos poucos se instalando ao longo do século XIX, sempre com variações regionais, diferenças entre o rural e o urbano, além de outras variações (REIS, 1997, p. 108/109).

Antes da saída do morto de casa, outros ritos domésticos deveriam ser acionados, entre eles a toalete do cadáver com infusões especiais ou perfume. Em seguida, dava-se início ao processo de vestir adequadamente o defunto, tarefa também cheia de significados: 7 8

“A história da Morte no Ocidente” (2003) e “O homem diante da morte” (1982). O cotidiano da morte no Brasil oitocentista

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O uso dessas mortalhas piedosas sugere um apelo à proteção dos santos nela invocados e sublinha a importância do cuidado com o cadáver na passagem para o além, atenção com a alma em sua peregrinação expiatória e com a ressurreição no dia do Juízo Final. Vestir-se de santo representava desejo de graça, imaginar-se mais perto de Deus, antecipando participação na Corte Divina. A roupa mortuária protegia os mortos e promovia uma integração ditosa no mundo deles, mesmo que lá o endereço nem sempre fosse o mesmo (REIS, 1997, p. 114).

Adequadamente vestido, iniciava-se o velório na sala da própria casa, para posterior encaminhamento ao enterro. O cortejo fúnebre representava a última passagem pelo espaço mundano e deveria passar por todos os locais por onde o morto, em vida, passava. E a direção deste cortejo era a igreja que o defunto frequentou em vida. Não só a aristocracia da época, mas também os negros se associavam às irmandades religiosas católicas sendo que os africanos o faziam, principalmente, para solenizar suas mortes. Como foram separados das suas famílias por ocasião da travessia para o Brasil, a associação numa irmandade católica lhe daria condições a um ritual fúnebre com todos os direitos. “As irmandades procuravam ser eficientes na mobilização de seu pessoal, devidamente aparatado, carregando bandeiras, cruzes e velas, além do esquife coletivo da associação” (REIS, 1997, p. 122). Outra questão fundamental da cultura funerária do passado era a escolha do local adequado para a sepultura; era indispensável ser enterrado em solo sagrado e perto de casa. Desta forma, as igrejas eram os lugares onde os corpos eram enterrados e a proximidade com a casa fazia com que aquele morto não fosse esquecido pelos seus. No Brasil oitocentista, ter uma sepultura dentro da igreja era como tornar-se inquilino na Casa de Deus. A proximidade da sepultura com as imagens de santos seria o que garantiria a aproximação espiritual entre a alma e os seres celestiais. Ter uma cova dentro da igreja era também uma forma de os mortos manterem contato mais amiúde com os vivos, lembrando-lhes que rezassem pelas almas dos que se foram. E aqui a proximidade de casa era fundamental, uma vez que facilitaria a permanência do morto na memória da comunidade de vizinhos e parentes. [...] Assim, os mortos vieram a ocupar os mesmos templos que frequentavam em vida, onde haviam recebido o batismo e o matrimônio (REIS, 1997, p. 125).

Porém, para a sociedade médica da época, os enterramentos no interior de aglomerações urbanas proliferavam doenças físicas: os médicos higienistas acreditavam na teoria dos miasmas, “segundo a qual a decomposição dos cadáveres produziria gazes ou eflúvios pestilenciais que atacavam a saúde dos vivos” (REIS, 1997, p. 134). Neste período surgem os cemitérios: espaços localizados fora do perímetro urbano, com boa altitude e bem arejados, cercados de árvores para ajudar na purificação do ar e longe de fontes de água potável.

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No contexto da transferência e/ou enterramento fora do espaço sagrado da Igreja, em 1835, três sócios mostram-se interessados em explorar os enterros na cidade de Salvador. Com o interesse particular de transformar a morte em comércio, uniam-se fervorosamente aos conceitos higienistas da época e reforçavam também que, “mais do que um negócio, o empreendimento era uma forma de contribuírem para o desenvolvimento da Bahia” (REIS, 1997, p. 136). E, deduzindo que estariam trabalhando a favor de tal desenvolvimento, exigiam o monopólio dos enterros de Salvador por trinta anos! No Brasil oitocentista, a criação de cemitérios particulares devastaria com as irmandades religiosas, visto que era com a associação dos seus membros que elas se mantinham. Transferir os enterros de dentro das igrejas faria com que não houvesse mais o interesse em associarse a determinada irmandade, pois já não havia mais a garantia de enterramento em solo sagrado. E, por serem o principal agente da devoção tradicional, as irmandades assumiram papel importante na revolta contra a Cemiterada, nome dado as manifestações. Nesta revolta, aristocratas e negros lutavam pelo direito de manterem seus enterros em solo sagrado: Houve, entretanto, um líder, o Visconde de Pirajá, membro da importante família Pires de Carvalho e Albuquerque. Tinha assento na Assembleia Legislativa, era monarquista da tendência absolutista, adepto do catolicismo tradicional, associado a pelo menos duas ordens terceiras e valorizava a ostentação funerária como parte da ordem social. [...] Seu nome encabeçava uma petição contra o cemitério que circulou em Salvador por dez dias e que recebeu 280 assinaturas, número considerável numa sociedade com alto índice de analfabetismo. Membros de outras importantes famílias também assinaram, mas assinaram, principalmente comerciantes, funcionários públicos, e além deles artesãos e outras pessoas comuns. Esse abaixo-assinado ameaçava com a quebra da ordem social e política caso prevalecessem a “fome do ouro e o monopólio” contra os “interesses gerais” (REIS, 1997, p. 138/139).

Houve grande barulho no ataque aos cemitérios e, tanto homens como mulheres participaram deste ato. É notada a presença de escravos (caracterizados por apresentarem-se de pés descalços) e que formavam, muito fortemente, as irmandades da época. Provavelmente deve ter sido a primeira vez que as mulheres se juntaram aos homens para reivindicar seus direitos a uma boa morte. “Além de contar com homens e mulheres, o movimento foi pluriclassista e multirracial. Tanto o visconde como o escravo tiveram interesses em manter práticas funerárias tradicionais” (REIS, 1997, p. 139). Mas decerto a motivação do visconde não foi a mesma que a do escravo. Ele defendia interesses senhoriais de uma aristocracia que, embora decadente – Pirajá andava endividado na ocasião -, e exatamente por isso, vivia em seus mortos, a glória do passado. A sepultura perpétua

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de sua família no Convento de São Francisco era um símbolo de privilégio e da esperança de que essa vantagem seria estendida ao Além. Já o escravo tinha razões igualitárias para defender a tradição: uma cova na capela da irmandade dignificava sua morte e representava a possibilidade de um melhor lugar no outro mundo, depois de haver ocupado o último lugar neste. Visconde e escravos tinham projetos diferentes para uma mesma rebelião (IDEM, 1997, p. 139).

O processo higienista acerca do fenômeno Morte modificou condutas que durante séculos “regulavam” a cultura espiritual. Sobretudo a epidemia de cólera que triunfou perante uma precariedade sanitária nos anos de 1855-6, os mortos foram expulsos dos espaços públicos a fim de manter a saúde física dos vivos. Já não havia mais convivência pacífica e solidária entre vivos e mortos. A desordem instalada pela epidemia fez ruir comportamentos nas práticas de bem morrer: “havia uma integração entre o teatro da vida e o teatro da morte” (REIS, 1997, p. 141). E o autor complementa esta última citação quando informa que: Vivos e mortos faziam companhia uns aos outros nos velórios em casa, em seguida atravessavam juntos ruas familiares, vivos enterravam os mortos em templos onde estes haviam sido batizados, tinham casado, confessado, assistido a missas e cometido ações menos devotas – onde continuariam a encontrar seus vivos cada vez que estes viessem fazer essas mesmas coisas, até o encontro final sob aquele chão e no alémtúmulo. Tudo isso agora acabara. No cemitério longe de casa e da paróquia as visitas seriam ocasionais, como se vivos e mortos tivesses, de repente, se tornado estranhos. A partir daquela mudança radical de cena, instaurou-se um estranhamento entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, acompanhado de um esfriamento nas relações das pessoas com o sagrado (IDEM, 1997, p. 141).

Tais colocações sobre o cotidiano da morte no Brasil oitocentista nos fazem perceber as mudanças ocorridas no que diz respeito ao modo de morrer e o modo de pensar e sentir a morte. A partir do momento em que há esse distanciamento, o fenômeno já está passando, por o que Bauman (2001) sugere ser um processo de liquidez, que faz com que a morte torne-se impalpável, sendo “abolida” do mundo dos vivos.

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4 A LIQUIDEZ DA MORTE – A RELAÇÃO DOS TEXTOS DE BAUMAN E ARIÈS E AS MODIFICAÇÕES SOFRIDAS PELO FENÔMENO MORTE Nestas últimas palavras, buscou-se relacionar os pensamentos de Bauman e de Ariès aos processos de transformação ocorridos no campo das práticas dos ritos funerários na atual sociedade. Como se pode perceber, essas transformações iniciam a partir da metade do século XIX e seguem acontecendo desde então. Ariès estuda tais transformações na atual sociedade moderna e industrial enquanto Bauman traz a baila as modificações e transformações ocorridas, principalmente, na sociedade pós-moderna. Zygmunt Bauman é um sociólogo polonês, nascido em 1925 e trata do conceito de modernidade líquida. A modernidade líquida se refere à época atual em que vivemos: ela é um conjunto de ações que dão base para a contemporaneidade. É uma época de liquidez, fluidez, incertezas e inseguranças que se fazem presentes, cotidianamente, na vida e nas relações dos indivíduos. É nessa época que todos os referenciais morais aplicados até então dão espaço para uma sociedade do consumo e de artificialidades. No contexto social, o autor retoma a memória e analisa o bem viver em comunidade; esta memória remete a um passado longínquo, a uma utopia do bem viver entre vizinhos e demais membros deste grupo, seguindo regras de bom convívio. E no que tange a cidade, Bauman (2001) a trata como um ajuntamento de pessoas estranhas umas as outras, que não tiveram nenhuma afinidade prévia e que, provavelmente, nunca terão. Os estranhos se encontram numa maneira adequada a estranhos; um encontro de estranhos é diferente de um encontro de parentes, amigos ou conhecidos – parece, por comparação, um “desencontro”. No encontro de estranhos não há uma retomada a partir do ponto em que o último encontro acabou, nem troca de informações sobre as tentativas, atribulações ou alegrias desse intervalo, nem lembranças compartilhadas: nada em que se apoiar ou que sirva de guia para o presente encontro. [...] é um evento sem passado e frequentemente é também um evento sem futuro (BAUMAN, 2001, p. 111).

No sentido de estranhamento, Ariès (2003) nos informa que o fenômeno Morte passou a ser algo estranho principalmente no cotidiano social. As conversas sobre o assunto foram banidas das rodas como se o fenômeno não existisse. Muito diferente de como era tratada9, Segundo REIS (1997, p. 108) “a proteção humana que cercava a hora da morte em nossa antiga cultura funerária era fruto de uma sociedade pouco individualista, em que a vida e a morte privadas ainda não haviam siado reduzidas ao pequeno mundo da família nuclear tipicamente burguesa”.

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atualmente, dadas as transformações ocorridas, o antigo costume de morrer em casa é substituído pela morte no hospital; o cuidado familiar que o moribundo tinha é terceirizado por uma equipe de enfermeiros. O luto, antigamente cumprido rigorosamente, agora é discreto. E tal pensamento corrobora com o pensamento de uma sociedade consumista abordado por Bauman (2001) e nos faz pensar que, na atualidade, a morte (e tudo que a rodeia) passou a ser um serviço prestado por terceiros. Em continuidade, Bauman (2001) informa que os espaços seriam lugares que se atribuem significados, sejam eles de consumo, de vivência, ou outro lugar no qual as pessoas lhe atribuam algum valor. Já os espaços vazios são justamente o contrário: não há nenhum significado atribuído aos mesmos. E o valor atribuído a esses espaços no passado, passa despercebido atualmente. As definições de espaços de vivências e de espaços vazios, aqui apontados por Bauman (2001), nos ajudam a pensar a diferenciação dos espaços de vivos e mortos que passam a existir após o processo higienista ocorrido no Brasil nos anos oitocentos. Segundo Reis (1997, p. 141), Vivos e mortos faziam companhia uns aos outros nos velórios em casa, em seguida atravessavam juntos ruas familiares, vivos enterravam os mortos em templos onde estes haviam sido batizados, tinham casado, confessado, assistido a missas e cometido ações menos devotas – onde continuariam a encontrar seus vivos cada vez que estes viessem fazer essas mesmas coisas, até o encontro final sob aquele chão e no alémtúmulo.

Para Ariès (2003), na atual sociedade contemporânea, as formalidades para enterrar o corpo são cumpridas rapidamente; a modernidade está ameaçando até mesmo a visita ao túmulo. Na sociedade moderna e industrial na qual vivemos, recorre-se cada vez mais à cremação, como se houvesse uma ânsia por fazer desaparecer e esquecer tudo o que pode restar do corpo. Diferente da prática da cremação na cultura oriental, que tem por objetivo encaminhar aquela alma ao encontro de Deus, na cultura ocidental (e muito se deve ao processo de higienização sofrido nos anos oitocentos), este método é utilizado, somente, porque oferece menos riscos ambientais que o sepultamento dos corpos em covas de terra. É a morte tornando-se cada vez mais impalpável, mais líquida. E como o assunto morte passa a ser banido, cada vez mais as pessoas passam a temer a morte, fato que até o início do século não era visto como tabu. O medo da morte é visto por Bauman (2008) como um medo inato, endêmico, do qual não se pode fugir. Esse medo seria, provavelmente, o preço cobrado pela nossa humanidade. Ao longo de Medo Líquido (2008), Bauman trata da questão do medo sob a ótica

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da sociedade pós-moderna: aborda sobre o medo da morte enquanto fator físico e trata também sobre medo e mal, que são sentimentos presentes no cotidiano e que não há como ser previsto. No capítulo intitulado “O pavor da morte”, o autor fala um pouco sobre esse medo que apavora a todos nós: O “medo original”, o medo da morte (um medo inato, endêmico), nós, seres humanos, aparentemente compartilhamos com os animais, graças ao instinto de sobrevivência programado no curso da evolução em todas as espécies (ou pelo menos naquelas que sobreviveram o bastante e, portanto, deixaram registrados traços suficientes de sua existência). Mas somente nós, seres humanos, temos consciência da inevitabilidade da morte e assim também enfrentamos a apavorante tarefa de sobreviver à aquisição desse conhecimento - a tarefa de viver com o pavor da inevitabilidade da morte e apesar dele (BAUMAN, 2008, p. 45).

Bauman (2008) cita três tipos de medo: ameaças ao corpo e à propriedade; ameaças à ordem social e à confiabilidade (da qual depende a sobrevivência, o emprego, renda, seguridade social); e, por fim, os perigos que ameaçam o lugar das pessoas no mundo (hierarquia social, identidade – raça, gênero, étnica e religiosa). Tomando-se como ponto de partida o exposto por Bauman (2008) podemos fazer referência aos comentários de Reis (1997) no que diz respeito à relutância da transferência dos mortos do espaço sagrado para o cemitério, no Brasil oitocentista, onde já havia a ideia do medo e das ameaças de perda de hierarquia social. E nota-se este sentimento no momento em que o Visconde de Pirajá coloca-se contra o processo higienista da época: Ele defendia interesses senhoriais de uma aristocracia que, embora decadente – Pirajá andava endividado na ocasião -, e exatamente por isso, vivia em seus mortos, a glória do passado. A sepultura perpétua de sua família no Convento de São Francisco era um símbolo de privilégio [...]. (REIS, 1997, p. 139).

Bauman (2008) discute ainda o medo também associado à ideia de mal: de acordo com o autor, “o medo e o mal são irmãos siameses. Não se pode encontrar um deles separado do outro. Ou talvez sejam apenas dois nomes de uma só experiência - um deles se referindo ao que se vê e ouve, o outro ao que se sente” (BAUMAN, 2008, p.74). Enfrentamos atualmente males inesperados, produzidos por seres humanos que são tão imprevisíveis quanto qualquer catástrofe natural. Na modernidade líquida não existem sinais claramente definidos, que nos permitam identificar ou separar o bem do mal, e assim identificar amigos e inimigos. O mal pode surgir de qualquer lugar, a qualquer momento. E a

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consequência mais grave disto é não sabermos em quem confiar. Nesse contexto de incertezas e medo, as relações humanas e os vínculos sociais encontram-se extremamente ameaçados.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A produção do artigo teve como objetivo perceber as transformações ocorridas pelo fenômeno Morte no contexto das práticas de ritos funerários presentes nas culturas ocidental e oriental; além disso, objetivou-se perceber o processo de higienização ocorrida pelo fenômeno, principalmente no Brasil dos anos oitocentos. Por meio deste ARTIGO, percebeu-se que a prática de ritos funerários está presente em todas as civilizações desde os mais remotos tempos e que essas práticas podem mudar de acordo com as transformações das sociedades, nas suas diferentes culturas e sistemas de crenças. Muitas dessas modificações se devem ao processo de industrialização e racionalização pelo qual a sociedade está passando, porém, percebemse maiores transformações na cultura ocidental, principalmente com o advento da cremação, muito utilizada na atualidade. Diferentemente da cultura hindu, onde a prática milenar da cremação tem o intuito de despojar a alma do ente falecido do seu corpo e encaminhá-la ao processo reencarnatório, na cultura ocidental tal prática surge como proposta higienista para o fenômeno Morte. Em épocas de pós-modernidade, percebemos claramente as transformações ocorridas no processo de “bem morrer”, mas principalmente, nos processos de “bem viver”. Identificada por um crescente desapego nas relações interpessoais, pelo individualismo exagerado, pela cultura do consumo e por um desinteresse cada vez maior pelos fenômenos sociais, a sociedade pós-moderna transforma diariamente nossos desejos pela busca da felicidade, ressignificando valores e prática que, até então, encontravam-se presentes, cotidianamente, na vida e nas relações das pessoas. Por fim, acreditamos que este artigo possa contribuir no sentido de situar historicamente o fenômeno Morte no contexto social e familiar, de modo a possibilitar a pesquisa com relação às transformações ocorridas no contexto das práticas de ritos funerários, desde os anos oitocentos à sociedade moderno-contemporânea, principalmente no Ocidente.

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REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 2. ed. São Paulo, SP: Mestre Jou, 1982, 1026p. ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente. Tradução: Priscila Viana de Siqueira. Ediouro, 2003, 312p. ______. O homem diante da morte. Tradução: Luiza Ribeiro. Francisco Alves Ed. 1989, 837p. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plinio Dentzien. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed. 2001, 258p. ______. Medo Líquido. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed. 2008, 239p. BAYARD, Jean-Pierre. Sentido oculto dos ritos mortuários – morrer é morrer? São Paulo, SP: Paulus Editora, 1996. 321p. BÍBLIA. Português. A Bíblia Sagrada: contendo o velho e o novo testamento. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, 1988, 1439p. BITTENCOURT, Renata Tonon. Pensando a Morte e a Vida na ótica da Tanatologia e Biodanza. 2007. Disponível em: <http://www. pensamentobiocentrico.com.br/content/bv/2011/pensando-a-morte-e-a-vida.pdf>. Acesso em: 22 jul. 2014. LAMM, Rabi Maurice. A Maneira Judaica de Morrer. 2010. Disponível em: <http://www.chabad.org.br/ciclodavida/Falecimento_luto/ artigos/maneira.html#top>. Acesso em: 01 ago. 2014. RODOLPHO, Adriane Luiza. Rituais, ritos de passagem e de iniciação. Estudos Teológicos, São Leopoldo, v. 44, n. 2, p. 138-146, 2004. REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In: História da vida privada no Brasil: Império. Org. Luiz Felipe de Alencastro. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1997. 524 p. TOMASI, Luciana. Um spa na Índia. 1. ed. Porto Alegre, RS: Editora Libretos, 2007. 144p.

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Cristiane Weber

Sandra Portella Montardo

Ernani Cesar de Freitas

Doutoranda e Mestre em Processos e Manifestações Culturais pela Universidade Feevale. E-mail: crisjornalistars@gmail.com.

Doutora em Comunicação Social pela PUCRS (2004) . Professora do Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais na Universidade Feevale. E-mail: sandramontardo@feevale.br

Pós-doutor em Lingüística Aplicada e estudos de Linguagem (PUC-SP/LAEL, 2011), Doutor em Letras, Área de Concentração em Lingüística Aplicada, na PUCRS (2006), professor do Programa de PósGraduação em Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale. E-mail: ernanic@feevale.br.


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1 INTRODUÇÃO As emissoras de televisão, por muito tempo, necessitaram única e exclusivamente de equipes com repórteres e cinegrafistas nas ruas para os registros mais comuns ou insólitos do dia a dia. Com as novas mídias e seus gadgets1 de alta tecnologia lançados nos últimos anos, qualquer cidadão com acesso à internet está apto a publicar na rede um vídeo de sucesso, que pode ou não ser aproveitado pelos veículos de comunicação. Os principais estão publicados, quase que em sua totalidade, na plataforma Youtube, que quando surgiu em 2005, fundada por ex-funcionários do site de comércio online PayPal, foram necessários apenas dois anos para que o site se tornasse o mais acessado no quesito entretenimento do Reino Unido. Nos dias atuais, os dados estatísticos2 da plataforma já contabilizam mais de um bilhão de horas de vídeos assistidas todos os meses, com carregamento de cem horas de vídeos a cada minuto, disponíveis em sessenta e um países, em cinquenta e sete idiomas diferentes. Tamanha aderência confere ao Youtube a classificação de plataforma multifuncional, na qual vídeos dos mais diferentes gêneros e durações são compartilhados. Alguns, porém, são mais visualizados e comentados que outros. Nesta revolução de publicações, a maioria de demandas pessoais, o Youtube se tornou um vilão e um aliado das mídias ditas tradicionais. Tal rede provocou uma ruptura dos negócios atuais e surge como um novo ambiente de poder midiático (BURGESS; GREEN, 2009). Entre os vídeos mais procurados estão os que mostram brigas em ambiente escolar, reunindo características de atração bastante específicas: juventude e moralidade, que provocam o que os autores classificam como “pânico midiático”. Essa centralização do pânico midiático é exemplificada por histórias de ciberintimidação, com o uso de tecnologias digitais para intimidar pessoas, “especialmente por meio da publicação de vídeos humilhantes ou ofensivos ou do uso de vídeos para documentar e enaltecer atos de violência” (BURGESS; GREEN, 2006, p. 40). Foi em uma postagem deste cunho que, em 16 de março de 2011, sob o título Victim Fights Back In NSW Sydney School | ‘Casey’, um vídeo com pouco mais de quarenta segundos se transformou em um fenômeno da Internet. Neste, o jovem Casey Heynes, então com treze anos, responde às provocações de um colega que o intimidava e aplicou-lhe um golpe (Figura 1) que arremessou o outro ao chão com extrema violência. 1 2

Nota da autora: termo utilizado para falar sobre os smartphones e outros dispositivos portáteis de uso cotidiano e multifuncionais. Dados extraídos da plataforma Youtube, na seção “Estatísticas”.

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Figura 1 - Casey aplica violento golpe no colega Fonte: extraído do portal Youtube em 20 jan. 2015

O vídeo tornou-se um fenômeno em pouco tempo. A partir de julho de 2011, houve um crescimento exponencial na curva de acessos. Milhares de comentários foram publicados no próprio Youtube e outros tantos chegaram a Casey de variadas formas: através de sua página na rede social Facebook, por envio direto de mensagens de vídeo e e-mails. Foi a partir de tamanho sucesso que se iniciou um processo de convergência, permeado por um discurso ideológico e parcial, quando o programa de televisão A Current Affair, da rede australiana ABC, resolveu transformar aquele conteúdo em uma história. A partir das imagens publicadas e já com a compreensão de que aquele era um fragmento de mídia bastante acessado e compartilhado, a produção do programa foi até a personagem principal do vídeo para aprofundar a história, mostrando ao mundo, em uma reportagem de doze minutos (tempo considerável para um programa de televisão), um Casey ingênuo, vítima de bullying e marcado por histórias familiares conturbadas. Se antes da veiculação da reportagem o vídeo já havia sido comentado e amplamente compartilhado, a partir da reportagem do

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programa A Current Affair houve um crescimento ainda maior no número de acessos (Figura 2), alçando o vídeo à categoria de um dos mais acessados na plataforma, conforme gráfico a seguir.

67 Figura 2 - Gráfico demonstra pico de acessos ao vídeo no Youtube em 2011 Fonte: extraído do portal Youtube em 21 jan 2015

Diante dessa perspectiva de crescimento, pode-se questionar: o que faz do vídeo da reportagem um propulsor de acessos de outro vídeo no Youtube? Como ocorre o processo de convergência neste sentido? Que rastros discursivos da reportagem dão suporte a esta convergência e como permitiram que Casey fosse transformado em uma vítima e ao mesmo tempo em um herói para outras vítimas de bullying em todo mundo? Para compreendermos tal atração pelo vídeo e a construção da reportagem do ponto de vista do discurso e da convergência, buscouse apoio na fundamentação teórica da análise do discurso de Maingueneau (2013) e de Charaudeau (2012); e de convergência de Jenkins (2006) e Primo (2007), propondo interfaces teóricas e pontos de contato entre ambas. Este referencial serve de base para compreendermos como tal reportagem se constrói, tendo a investigação sido apoiada na metodologia comparativa. A seguir, se apresenta uma síntese dos aportes teóricos dos autores acima citados, para posterior análise dos dados.


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2 OLHARES TEÓRICOS PARA A CONVERGÊNCIA Talvez um dos modelos mais abarcadores para compreender como acontece um processo de convergência parta das concepções de Jenkins (2009). O autor identificou tal fenômeno proporcionado pelo desenvolvimento tecnológico e pelas atividades da sociedade desenvolvidas nas novas mídias, além de perceber que a convergência atribui a estes veículos um poder de transformação das indústrias midiáticas. Assim, quando a televisão de apropria de um conteúdo do Youtube, delineando uma nova roupagem e um novo conteúdo, temos um processo considerado bastante colaborativo. Do mesmo modo, como complementa Santaella (2009), quando a televisão se apropria de um conteúdo do Youtube, neste processo de resignificação, o meio passa a ter o poder de imprimir ao vídeo outras referências e representações. Neste processo colaborativo de cedência de um vídeo, a convergência se dá, fortemente, pelo uso e pelas relações estabelecidas entre as ideias e os suportes. Afinal, os celulares com câmeras já são bastante instituídos para o consumidor, podendo gravar fotos e vídeos que podem ser compartilhados instantaneamente. Neste aspecto, se em proposições teóricas anteriores a convergência era vista como uma maneira de distribuir um conteúdo de forma diferente, atualmente este fenômeno integra algo mais complexo. Para Primo (2013), o enfoque tecnicista dos debates sobre convergência passou, há algum tempo, a dar lugar aos aspectos culturais que decorrem da aproximação entre audiências e as grandes instituições midiáticas e a circulação de produções entre os diferentes meios de comunicação. Jenkins (2009, p. 30) explica que “a convergência não ocorre por meio de aparelhos, por mais sofisticados que venham a ser. A convergência ocorre dentro dos cérebros de consumidores individuais e em suas interações sociais com outros”. Neste sentido, percebe-se um fenômeno comumente citado pelo autor: de telespectador (ainda que permanentemente opere em caráter interpretativo e responsivo), o telespectador passou a ser um produtor destes conteúdos (JENKINS, 2009). Se antes as televisões tinham a figura do pauteiro3 como a principal na identificação de assuntos relevantes, hoje chegam diariamente a estes espaços o conteúdo Nota da autora: o pauteiro, chamado também de chefe de redação, é a pessoa responsável pela distribuição de pautas (assuntos) que chegam diariamente à redação. Cabe a ele “filtrar” tais informações e distribuí-las a produtores.

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produzido por cidadãos que estão fora das redações. Com a profusão de “pautas” postadas na rede, houve inclusive uma reconfiguração da profissão jornalista. Cada vez mais adaptados com a nova realidade, esses profissionais estão aprendendo a ver o internauta como alguém extremamente participativo e ativo no processo de construção da reportagem. Conforme Santaella (2007, p. 386), [...] sons, palavras e imagens que, antes, só podiam coexistir passam a se coengendrar em estruturas fluídas, cartografias líquidas para a navegação com as quais usuários aprendem a interagir, por meio de ações participativas, como em um jogo.

A autora, a partir dessas concepções, atribui a este usuário a nomenclatura de interator, ou seja, aquele que interage. Se hoje há uma compreensão destes novos métodos de produção, nos primeiros anos de Youtube as percepções foram diferentes, permeadas inclusive por processos de repúdio à nova mídia. Um exemplo disso é citado por Burgess e Green (2009): na véspera do ano novo de 2007, os programas australianos da atualidade Today Night e A Current Affair transmitiram matérias sobre os videoclipes mais populares de 2007, descrevendo o site tanto como um repositório mundial de “momentos incríveis, vergonhosos e, às vezes, muito perigosos” ao redor do mundo como uma plataforma de lançamento para “muitos novos astros”. Porém, apenas algumas semanas depois, percebendo a concorrência de acessos e o interesse dos jovens pela nova mídia, os mesmos programas passaram a destinar tempo considerável com reportagens sobre ciberintimidação no Youtube, acusando-o de ser, na verdade, algo muito danoso – um site mal administrado de comportamentos criminosos, antiéticos e patológicos dedicados à juventude como categoria de risco. No entanto, Burgess e Green (2009) alertam que, ao passo de que repudiam o acesso e a postagem, os próprios veículos de comunicação tratam de valorizar o que é postado e dar a estes vídeos uma nova dimensão. Segundo os autores, [...] é importante considerarmos o quanto esses discursos de pânico moral nos debates públicos podem acabar incentivando práticas ainda mais perigosas, descuidadas ou nocivas, ao passo de que não colaboram em nada para exercer uma influência positiva sobre as normas sociais que agem dentro das redes sociais que usam o Youtube como plataforma (BURGESS; GREEN, 2009, p. 42).

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Quando a apropriação de um conteúdo digital pela televisão acontece, temos o que Jenkins (2009) irá chamar de narrativas transmidiáticas e estratégias transmidiáticas. No primeiro caso, temos em destaque um conteúdo que privilegia a narrativa; no segundo vemos a ubiquidade de informações adicionais, mas não tão ligada a uma sequência narrativa. De acordo com Jenkins (2009), a narrativa transmidiática acontece quando uma história é contada a partir de um fragmento, abordando perspectivas diferentes, complementando a primeira. É o que acontece no processo de convergência do vídeo sobre Casey quando é reconfigurado na televisão, processo que detalharemos posteriormente.

3 ANÁLISE DO DISCURSO MIDIÁTICO: MÍDIUM, CENOGRAFIA E ETHOS Todos os dias, ao nos depararmos com reportagens, programas de entrevistas e outros gêneros televisivos, talvez mal se perceba que por trás de imagens e sons existe uma construção midiática estratégica, formalmente elaborada para atrair telespectadores, em um processo composicional construído para um discurso específico. Até poucos anos, os meios de comunicação como rádio e televisão eram vistos tão somente como aparelhos caseiros diferentes: um se trata de uma pequena caixa com osciladores de estações e o outro, um pouco maior, carrega um seletor de canais e a possibilidade de acompanharmos o que é contado com imagens, inicialmente em escalas de cinza, hoje possíveis em alta resolução. Maingueneau (2013) nos mostra que esta percepção é errônea e ultrapassada. Se antes víamos o texto de comunicação como uma sequência de frases sem sentido, hoje há outra percepção vigente. Conforme Maingueneau (2013, p. 82), Hoje, estamos cada vez mais conscientes de que o mídium não é um simples “meio” de transmissão do discurso, mas que ele impõe coerções sobre seus conteúdos e comanda os usos que deles podemos fazer. O mídium não é um simples meio, um instrumento para transportar uma mensagem estável: uma mudança importante do mídium modifica o conjunto de um gênero de discurso (MAINGUENEAU, 2013, p. 82).

Isso significa que a mensagem do veículo não é um processo linear e fechado. A ideia de que um apresentador esteja em uma bancada de um telejornal e leia a notícia, após buscar exprimi-la de alguma forma e redigida aleatoriamente, na busca de um encontro com um

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destinatário, é ultrapassada. Por trás de tudo isso, existe um dispositivo comunicacional que integra o mídium e condiciona a constituição de um texto. Quando o vídeo de Casey sai da plataforma Youtube e é veiculado na televisão, este também passa por um processo de convergência do discurso. Neste contexto, percebemos mudanças importantes nas programações da televisão. Se na década de 50 as programações eram feitas ao vivo e davam considerável espaço a programas de auditório, hoje são muito mais curtas, com projetos comprados e tornam as escolhas muito mais personalizadas. Assim, a programação tem como objetivo atrair a atenção e a empatia do telespectador. Complementando esta teoria, Charaudeau (2012) vai nos dizer que o discurso é resultado de circunstâncias diversas em que se fala ou se escreve: a identidade daquele que fala e daquele a quem se dirige, a relação de intencionalidade que os liga e as condições físicas da troca, com a maneira pela qual se fala. Para tanto, há um termo que o próprio Charaudeau define como mecânica de construção de sentido, que nomeia, qualifica, argumenta e modaliza. O ato de informar enquadra-se nesta mecânica porque descreve (identifica/qualifica fatos), conta (reporta acontecimentos) e explica (fornece as causas destes fatos e acontecimentos). Quando se trata de transmitir uma notícia, leva-se em conta, de acordo com o autor, a identidade do destinatário (neste caso o telespectador), seus saberes e o efeito de sentido que se quer causar, o que se qualifica como um processo de transação. Segundo esse autor, O ato de informar participa deste processo de transação, fazendo circular entre os parceiros um objeto de saber que, em princípio, um possui e o outro não, estando um deles encarregado de transmitir e o outro de receber, compreender, interpretar, sofrendo ao mesmo tempo uma modificação com relação ao seu estado inicial de conhecimento (CHARAUDEAU, 2012, p. 41).

Associado a esta estratégia, estão a cenografia e todo um processo identitário que se quer construir para o telespectador, termos que embasaremos a seguir.

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4 CENOGRAFIA E ETHOS Para chegarmos a conclusões e interpretações diversas a partir do que é veiculado todos os dias na televisão e nos corpora que avaliaremos a seguir, é preciso compreender que a construção de uma reportagem, tal como quaisquer outros gêneros discursivos, é permeada por aquilo que Maingueneau (2013) irá classificar como cenografia e ethos. A cenografia diz respeito a um enlaçamento paradoxal. De acordo com o autor, todo discurso pretende convencer pela cena de enunciação que o legitima. Associando a palavra cenografia ao termo cenário, podemos imaginar que os elementos de imagem, iluminação, posicionamento do entrevistador, trilha sonora e cortes de edição, entre outros, fazem parte dos elementos de cenografia de uma reportagem. Através desses elementos, esta pode provocar sentimentos de emoção, identificação, repúdio, espanto, entre outros. A voz impressa nas reportagens, tecnicamente chamada de “off”, está diretamente vinculada a todos os elementos que estão sendo mostrados, ou seja, jamais estão desconectados. O autor ressalta que [...] a cenografia não é simplesmente um quadro, um cenário, como se o discurso aparecesse inesperadamente no interior de um espaço já construído e independente dele: é a enunciação que, ao se desenvolver, esforça-se para constituir progressivamente o seu próprio dispositivo de fala (MAINGUENEAU, 2013, p. 97-98).

O autor ressalta que, deste modo, a cenografia é ao mesmo tempo a fonte do discurso e aquilo que ele engendra. Em um processo de dualidade, ela legitima o enunciado que, por sua vez, também deve legitimá-la, estabelecendo que esta cenografia onde nasce a fala é precisamente a cenografia exigida para enunciar como convém, segundo o caso. Quando unimos os efeitos desejados pela cenografia e pelo discurso - estes imbricados - chega-se ao conceito de ethos de Maingueneau (2013), que representa um sujeito situado para além do texto. Por meio da enunciação, revela-se a personalidade do enunciador. Seja ela fiel ou não à verdadeira intenção da personagem a ser exposta, o ethos proposto por uma reportagem é construído pela forma na qual este é exposto através do discurso. Um criminoso, por exemplo, pode ser mostrado como um assassino frio e calculista ou vítima de uma sociedade

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distorcida ou abusos na infância. Da forma como o qual sua história é contada, haverá uma interferência direta e persuasiva na interpretação dos telespectadores. Este ethos será construído, principalmente, pelo conceito de tom, que dá autoridade ao que é dito. Ao assistir a uma reportagem e se manifestar de acordo com que é esperado pela emissora, o telespectador se torna um fiador do que é dito. Neste processo, a própria personagem confere a si um ethos, que pode ser incutido no telespectador. Conforme Maingueneau, O universo de sentido propiciado pelo discurso impõe-se tanto pelo ethos como pelas ideias que transmite; na realidade, estas ideias se apresentam por intermédio de uma maneira de dizer que remete a uma maneira de ser, à participação imaginária em uma experiência vivida (MAINGUENEAU, 2013, p. 108).

São os efeitos buscados pela reportagem, através do tom, da cenografia e do discurso aplicado, proporcionado pela convergência midiática, que analisamos com os corpora propostos neste artigo. 73

5 METODOLOGIA: COMPARANDO AS CONSTRUÇÕES E ESTRATÉGIAS Para chegar às principais diferenças e semelhanças dos dois vídeos, o primeiro, bruto, publicado na plataforma Youtube e a reportagem escolhida, esta pesquisa é operada por metodologias de natureza descritiva, isto é, quando há apenas o registro e descrição dos fatos observados sem interferências do pesquisador nos objetos. A utilização desta abordagem buscou o estabelecimento de relações entre os dois vídeos. De acordo com Prodanov e Freitas (2013, p. 52), esta “observa, registra, analisa e ordena dados, sem manipulá-los, isto é, sem interferência do pesquisador. Procura descobrir a frequência com que um fato ocorre, sua natureza, suas características, causas, relações com outros fatos”. Já o procedimento metodológico utilizado é o comparativo, pois permite a análise de elementos abstratos e gerais entre os vídeos eleitos para a pesquisa.


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Prodanov e Freitas (2013, p. 37) ressaltam que Centrado em estudar semelhanças e diferenças, esse método realiza comparações com o objetivo de verificar semelhanças e explicar divergências. O método comparativo, ao ocupar-se das explicações de fenômenos, permite analisar o dado concreto, deduzindo elementos constantes, abstratos ou gerais nele presentes.

Com a natureza da pesquisa e a metodologia propostas, avaliam-se os corpora a partir desta etapa, comparando o vídeo bruto a partir de uma breve descrição com uma análise mais aprofundada da reportagem.

6 UM CASEY NA INTERNET... Casey Heynes já estava predestinado a ser um sucesso no Youtube. Reunindo elementos de grande aderência de usuários – violência e jovens – o vídeo que tem como principal enunciador um aluno da escola, foi postado na rede com uma sequência de cenas gravadas sob uma mesma perspectiva, sem o recurso de edição ou filtro de imagens, em um tempo exato de quarenta e dois segundos. O vídeo começa com a presença de quatro jovens portando mochilas, o que indica que se tratava do início ou do fim da aula. Não há elementos narrativos significativos, apenas alguns gritos que parecem ser de incentivo ao jovem Richard Gale, que na cena aparece de boné, agredindo Casey (Figura 3) pela primeira vez.

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Figura 3 - Richard passa a agredir Casey Heynes Fonte: extraído do portal Youtube em 21 jan. 2015

A luta segue e Richard passa a agredir Casey outras quatro vezes. O cinegrafista amador, que neste caso é outro aluno da escola, passa a assumir o papel de voz situada para além do texto. As falas que se seguem, inaudíveis, dão conta de um aluno que promove a situação em tom de narração de uma luta esportiva. É possível ouvir a sentença “Go, Richard, Go!”, o que significa “Vai, Richard, Vai!”, em um incentivo à briga dos jovens. Aqui se percebe o conceito de ethos de Mainagueneau (2013), que diz que “por meio da enunciação, revela-se a personalidade do enunciador”. Citando Roland Barthes, Maingueneau (2013) afirma que estes são os traços que o orador deve mostrar ao auditório, sem contar aqui sua sinceridade, para causar boa impressão. Isso significa que o jovem que grava as imagens quer ali incorporar a atitude de Richard,


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demonstrando claramente sua aderência às atitudes daquele que provoca Casey. As demais palavras ditas são poucas, e o que mais se percebe são olhares espantados de quem se aproxima. Quase ao final do vídeo (Figura 4), já são seis pessoas assistindo à luta, quando Casey reage e aplica o golpe final no adversário.

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Figura 4 - Casey aplica um violento golpe em Richard Fonte: extraído do portal Youtube em 23 jan. 2015

A sequência de imagens é permeada por um discurso formado por um processo de cenas validadas, que são apresentadas em concordância a um discurso e necessitam serem apresentadas para a compreensão do contexto. O vídeo está ainda inserido na concepção de dispositivos comunicacionais novos - como o Youtube - e pode ser classificado como o de um produto midiático consumido em forma de gravação.


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Maingueneau (2013, p. 93-94) afirma que “podem-se igualmente distinguir os enunciados “espontâneos” que são concebidos em função de uma gravação (caso do político que fala sabendo estar sendo filmado pela televisão) e aqueles cuja gravação é feita de surpresa”. Esta análise do vídeo permite concluir que este audiovisual possui linguagem de cunho amador, feita a partir do uso de um aparelho celular, sem maiores efeitos ficcionais e possui esta característica de surpresa, pelo menos a Casey, que em nenhum momento demonstra saber que está sendo filmado.

7 ...UMA HISTÓRIA APROFUNDADA A comunidade australiana percebeu a história de Casey com mais nuances e detalhes quando o programa A Current Affair “pinçou” quarenta e dois segundos de um vídeo sem legendas e transformou isso em uma reportagem de 12 minutos. Foi através disso que os telespectadores conheceram um pouco mais da história do garoto de 13 anos que, até então, já era visto como um herói por ter respondido a uma agressão culminada após provocações de bullying por parte de um colega na escola. Optou-se por analisar alguns pontos principais da reportagem, dissecados a seguir. A matéria se inicia com um depoimento de Casey contando como a briga começou (Figura 5). A fala é pausada e em tom tenso, relembrando o momento em que foi provocado. Esse tom já confere ao jovem uma identidade de vítima de uma circunstância de pressão e ameaça. A reportagem usa como cenografia pequenos trechos do vídeo, a fim de legitimar a fala de Casey, ilustrando assim a veracidade de seu discurso. Toda a reportagem é marcada também por um selo superior de exclusividade, demonstrando assim o caráter único daquele depoimento a uma emissora de televisão.

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Figura 5 - Casey conta os detalhes da briga ao entrevistador Fonte: extraído do portal Youtube em 23 jan. 2015

Após detalhar a briga em todos os seus momentos, a reportagem passa a assumir características de documentário ao falar sobre a vida de Casey. Como cenografia para ilustrar supostos anos de abuso vividos pelo garoto, é feito o uso de fotografias de Casey quando criança (Figura 6). Esta cena, permeada por uma narrativa, carrega em si uma trilha sonora instrumental de característica dramática. O objetivo neste ponto é criar uma comoção por parte dos coautores sociais envolvidos na reportagem, neste caso, o público que a assiste.

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79 Figura 6 - Fotos da infância de Casey servem para ilustrar fala sobre histórico de abusos Fonte: extraído do portal Youtube em 23 jan. 2015

Aqui cabe destacar o olhar teórico de Charaudeau (2012), que aborda o efeito de contato da televisão em sua condição de dispositivo, ao utilizar-se desses e outros elementos, pode criar a ilusão de que representa a verdade do mundo tal como ela é. Próximo ou distante, o mundo se torna presente, aumentando o efeito de ubiquidade. Trata-se de um efeito de fascinação que pode fazer com que o telespectador, obcecado pela imagem do drama que lhe é apresentado, elimine o resto do mundo e o reduza à imagem que vê na tela; e ainda um efeito de voyeurismo que pode fazer com que o telespectador tenha a impressão de penetrar em uma intimidade sem que a pessoa olhada o saiba (CHARAUDEAU, 2012). A reportagem segue e constrói um amparo de depoimentos para validar sua parcialidade a respeito da construção da imagem de um herói: através de um compilado de poucos segundos, veiculou pequenos fragmentos de mensagens enviadas a Casey ou de participações de


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programas de televisão onde o assunto foi discutido como principal pauta. Nesse último, especialmente, um grupo de mães qualifica a atitude de Casey como de defesa e não de uma agressão. As mães não só apoiam a atitude do menino como afirmam que, se a situação acontecesse em suas famílias, dariam o mesmo apoio a seus filhos (Figura 7).

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Figura 7 - Depoimentos de mães em programa de debates reforçam apoio a Casey Fonte: extraído do portal Youtube em 23 jan. 2015

Além de utilizar-se de fotos da infância de Casey e de câmeras aproximadas para registrar suas feições durante a entrevista, a reportagem procurou passar aos telespectadores outro ethos associado a Casey: a de um menino dependente da família. Em certo momento, a cenografia utilizada é a de imagens do jovem com a irmã, tocando violão em parceria com ela (Figura 8).


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Figura 8 - Casey toca violão ao lado da irmã Fonte: extraída pela autora do site Youtube em 10 de mai. 2013

Essa cenografia é apoiada em cenas de fala denominadas validadas. De acordo com Maingueneau (2013, p. 102), estas cenas já estão “instaladas na memória coletiva, seja a títulos de modelos que se rejeitam ou de modelos que se valorizam [...] o repertório das cenas disponíveis varia em função do grupo visado pelo discurso”. Isso significa que a abordagem do momento em que Casey está com a irmã só vem a reforçar o apoio à conduta do menino, uma vez que passa a mensagem de que este é um garoto dócil, de boas relações familiares e que foi injustiçado pelo outro garoto em questão, ou seja, aquele que o provocou. Os trechos apontados demonstram como a escolha de cada cena e trecho de depoimento contribui para a construção discursiva de uma identidade, ou como frisa Maingueneau (2013), de um ethos: em todo o período de veiculação, fica clara a intenção de imprimir a Casey a imagem de um menino frágil, vítima de abusos; mas esta uma imagem reforçada para o ponto de virada, quando este também é, para o público, o herói e defensor de oprimidos.

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8 DUAS MÍDIAS, DOIS DISCURSOS Após a análise dos principais trechos da reportagem e tendo como base o vídeo bruto do caso Casey em comparação com a reportagem do programa A Current Affair, é possível perceber que a matéria jornalística, em comparação com o vídeo na internet, reúne elementos que caracterizam o processo de convergência proposto por Jenkins (2009), quando ocorre a narrativa transmidiática e a linguagem televisiva complementa a da rede. Como o próprio autor que passar, ela existe no sentido de que há uma mudança e um impacto social no cérebro dos consumidores midiáticos. Os conceitos de ethos e cenografia de Maingueneau (2013), bem como os efeitos de sentido que se quer passar, levando-se em conta os saberes do que interpreta (neste caso o telespectador) – esta última uma concepção de Charaudeau (2012) – demonstram como as escolhas do editor-chefe do programa são fundamentais para a escolha da imagem que se quer passar a quem está em casa, calmamente sentado assistindo àquela reportagem. Este, confortavelmente interpretante deste conteúdo, talvez não perceba, mas por trás de pouco mais de doze minutos está uma intenção arquitetada e esquematizada para tocar e fazer pensar de forma sistemática tal como quer a emissora. É o que “compra” uma imagem e dela se faz fiador.

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REFERÊNCIAS BURGESS, Jean; GREEN, Joshua. Youtube e a revolução Digital: como o maior fenômeno da cultura participativa transformou a mídia e a sociedade. São Paulo: Aleph, 2009. CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Mídias; tradução Ângela S. M. Corrêa. 2. ed. 1 reim. São Paulo, Contexto, 2012. JENKINS, Henry. Cultura da convergência. Tradução Susana Alexandria. 3. ed. São Paulo (2009). MAINGUENAEU, Dominique. Análise de textos de comunicação. Tradução de Maria Cecília P. de Souza e Silva, Décio Rocha. 6. ed. ampl. São Paulo: Cortez, 2013. PRIMO, Alex. Interações em rede. Porto Alegre, editora Sulina, 2009. PRODANOV, Cleber Cristiano; FREITAS, Ernani de. Metodologia do trabalho científico: métodos e técnicas da pesquisa e do trabalho acadêmico. 2. ed. Novo Hamburgo: Feevale, 2013. SANTAELLA, Lúcia. A ecologia pluralista da comunicação: conectividade, mobilidade, ubiquidade. São Paulo: Paulus, 2010.

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Daiane Pires

É bolsista Fapergs/Capes no mestrado em Processos e Manifestações Culturais - Linha de pesquisa: Linguagens e Processos Comunicacionais -, na Universidade Feevale. Especialista em Jornalismo e Convergência de Mídias e graduada em Jornalismo pela mesma instituição. E-mail: daia.prs@gmail.com.

Saraí Schmidt

Orientadora. Docente nos Programas de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais e Inclusão e Diversidade Cultural da Universidade Feevale.


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1 INTRODUÇÃO A televisão chegou ao Brasil em 1950 e, segundo Laurindo Lalo Leal Filho (2006), não há outro país em que ela tenha tanto poder como o nosso. A TV é, para grande parte da população, a única forma de informação e entretenimento. Muitos pesquisadores, de diferentes áreas, questionam, portanto, o descontrole desse domínio que ela exerce sobre a população, haja vista que é formadora de opiniões. Das telenovelas aos noticiários, os produtos televisivos estão presentes diariamente em nossos lares e misturam imaginação e tecnologia, realidade e ficção, entre outras combinações. Em meio a esse sistema implantado como extensão do rádio, nasce, em 26 de abril de 1965, a Rede Globo. Criada por Roberto Marinho, a emissora possui dezenas de afiliadas pelo País, além de transmissão para o exterior por meio da TV Globo Internacional. Desde a década de 1970, a Globo baseia-se em regras que formam o denominado Padrão Globo de Qualidade, no qual também estão inseridos os preceitos que constroem seu formato jornalístico. Tal modelo serve, inclusive, como inspiração para outras emissoras. Mas apesar de tamanha proeminência, a televisão elaborada por Marinho esbarra esporadicamente em conflitos com sua própria audiência. Porta-voz da ditadura, a Globo inclusive virou refrão de música durante as greves do ABC paulista. Quando os participantes do movimento sintonizavam o canal à noite, por exemplo, viam retratos diferentes daquilo que presenciaram ao longo do dia e, por isso, passaram a cantar “o povo não é bobo, fora Rede Globo”. Aqui demarcamos nosso local de fala. É dessa emissora que tratamos quando trazemos para o debate uma reportagem sobre o protesto realizado em São Paulo no dia 17 de junho de 2013. E é essa matéria que analisamos para discutir de que forma a TV pode atuar como ferramenta para construção da memória. Inicialmente, mergulhamos neste conceito pertencente ao campo da história, desde as perspectivas de Michael Pollak e Maurice Halbwachs. Apresentamos também – brevemente – o pensamento de Pierre Bourdieu acerca da televisão. Mais adiante, especificamos nosso objeto de análise enquanto cruzamos termos da comunicação e da história para demonstrar a utilidade da TV como instrumento construtor da memória. Por fim, articulamos nossas considerações sobre o debate inicial que sugerimos, considerando que nosso esforço é mais no sentido de fazer com que se encontrem os conceitos dos dois campos antes citados do que de nos arraigarmos às teorias puristas de cada uma dessas áreas.

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2 SOBRE MEMÓRIA, HISTÓRIA ORAL E LEAD Desde o seu surgimento, a televisão brasileira atua como ferramenta para produção da memória social do País. O telejornal, nessa esteira, pode ser considerado um dos campos do discurso histórico. Antes de abordarmos as questões que envolvem a TV, seus produtos e o cruzamento deles com a história – como propomos anteriormente – tratamos do conceito de memória. E é especialmente sob a luz do pensamento do sociólogo Michael Pollak que seguimos na escritura deste trabalho. No texto Memória e identidade social (1992), o autor esmiúça a ligação entre os dois termos por meio da história oral – metodologia de pesquisa e fonte da história contemporânea, que consiste em uma entrevista gravada com sujeitos participantes ou testemunhas de determinados acontecimentos. Pollak dá ênfase ao fato de que este método privilegia as versões particulares enquanto que memórias mais coletivas, de acordo com ele, exigem entrevistas em grupo. Segundo o sociólogo, “a priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa” (POLLAK, 1992, p. 2). Por outro lado, Maurice Halbwachs (1990) sustenta a ideia de que a memória agrega as flutuações, transformações e mudanças constantes do coletivismo e, assim, apresenta-se como fenômeno grupal e social. Singular ou plural, a memória, conforme Pollak, é formada por três elementos: acontecimentos, personagens e lugares. Os acontecimentos são divididos em duas categorias. Aqueles vividos pessoalmente e os vividos por tabela. Estes últimos, de acordo com Michael Pollak, estão atrelados à coletividade que o indivíduo pertence. As personagens, por sua vez, são as pessoas envolvidas nos fatos rememorados, ao passo que os lugares versam sobre lembranças que vão desde locais visitados durante a infância de determinado sujeito até estátuas e monumentos aos mortos. Sob essas condições, a memória é seletiva e, como defende o sociólogo austríaco, “nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado” (POLLAK, 1992, p. 4). Fatores relacionados ao espaço-tempo em que as lembranças são relatadas influenciam a estruturação da memória. Ou seja, os dados são organizados a partir de gravações e exclusões constantes e convenientes ao lugar e ao período em que se encontra o indivíduo. Para Pollak há até mesmo conflito e negociação nessa construção e a ênfase é dada, como pontuamos, conforme as circunstâncias em que se localiza a testemunha. Os acontecimentos são memorizados de maneiras distintas em períodos diferentes. Também por isso, o

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sociólogo explica que a escolha das fontes para uma entrevista de história oral, com a finalidade de reconstruir a memória, deve ser feita de forma crítica, considerando-se que “se pretendermos controlar todos os dados, será muito difícil realizar isso na prática” (POLLAK, 1992, p. 9). O controle, argumenta, precisa estar ligado basicamente às distorções e à gestão da memória. Verena Alberti (2008) inclusive salienta a importância de ponderar que um relato resultante de uma entrevista não constitui a história em si. Ele é, segundo a autora, base de estudo e, deste modo, exige análise e interpretação do pesquisador. Michael Pollak, em Memória, esquecimento e silêncio (1989), ressalta que os indivíduos e até mesmo os grupos de entrevistados podem querer reverenciar fatos que os estudiosos pretendem esconder em suas pesquisas. Do mesmo modo, o contrário pode acontecer. Os pesquisadores podem querer extrair de suas fontes memórias que elas não possuem ou preferem omitir. Uma das dificuldades está justamente em ordenar os acontecimentos que balizaram uma existência, haja vista que a memória “nunca poderá ser um mero registro, pois é uma representação afectiva, ou melhor, uma re-presentificação, feita a partir do presente e dentro da tensão tridimensional do tempo”, como lembra Fernando Catroga (2001, p. 46). De modo semelhante à seleção memorial é que trabalham os jornalistas, pois é deles a função de escolher o que ficará impresso nas folhas do jornal, o que será emitido pelas ondas do rádio, o que irá ao ar por meio de imagem e som na televisão, entre outras formas de registro. Em Sobre a televisão (1997), Pierre Bourdieu explica que esses profissionais da comunicação possuem óculos especiais pelos quais percebem certas coisas e não outras. “Eles operam uma seleção e uma construção do que é selecionado” (p. 25). Segundo o autor, o princípio para a preferência é o sensacionalismo. Igualmente à memória, nem tudo fica gravado. Tal como a memória é composta pela tríade apresentada anteriormente – acontecimentos, personagens e lugares –, o texto jornalístico está submetido a, pelo menos, meia dúzia de elementos essenciais. A tradicional fórmula 3Q+COP é basilar para a composição de uma matéria. Dela derivam seis perguntas que precisam ser respondidas pelo jornalista em seu material. São elas: 1) Quê?, 2) Quem?, 3) Quando?, 4) Como?, 5) Onde? e 6) Por quê?. As seis questões integram o chamado lead1 e servem de roteiro para a história a ser contada em uma reportagem. Sobretudo na televisão, essa operação de organização dos dados é que concede ou não relevância a um acontecimento. Considere-se aqui 1

Abertura da matéria. O gancho da reportagem normalmente está no lead. Consultar: PATERNOSTRO, Vera Íris. O texto na TV: manual de telejornalismo. Rio de Janeiro: Campus, 1999.

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também seu impacto social e o interesse da mídia. Como sublinhado por Marcos Napolitano (2008, p. 252). “além de ‘testemunho’ de um determinado momento histórico, a televisão interfere na concepção de tempo histórico e nas formas de fixação da memória social sobre os eventos passados e presentes”. De acordo com o autor, o poder da TV deriva, ainda, da fixação da memória social a partir do momento em que elege as personagens e os acontecimentos que devem ser lembrados ou esquecidos.

3 SOBRE A MEMÓRIA DA TELEVISÃO Antes de seguirmos em direção ao nosso observável, porém, vale ressaltar que a própria televisão tem dificuldades em guardar e sistematizar sua memória. Em sua pesquisa, Marcos Napolitano mostra que Na medida em que os órgãos e arquivos públicos não assumiram a guarda do material televisual como parte de uma política de preservação do patrimônio, a maioria dos arquivos existentes é privada e pertence às próprias emissoras, que, por sua vez, os tratam como desdobramento das suas atividades comerciais. (NAPOLITANO, 2008, p. 247-248).

Os incêndios ocorridos entre as décadas de 1960 e 1970 devastaram grande parte dos acervos da TV Record e da Bandeirantes. Já os órgãos públicos privilegiam os cuidados com a memória patrimonial e artística cinematográfica. Uma das alternativas encontradas pelas emissoras é a criação de almanaques que remontam seus históricos. A Rede Globo, por exemplo, lançou em 2006 o Almanaque da TV Globo. A obra, entretanto, serve mais como um álbum de recordações organizado cronologicamente de 1965 até 2006, em um esforço da equipe do Memória Globo2. Questões como a tentativa de alterar o resultado das eleições para governador do Rio de Janeiro, em 1982, e a tendenciosa edição do debate entre Collor e Lula na véspera da eleição presidencial de 1989, todavia, não aparecem nas 512 páginas da obra. A memória da Rede Globo, destarte, também parece ser seletiva, como descreve o sociólogo e jornalista Laurindo Lalo Leal Filho, no livro A TV sob controle: a resposta da sociedade ao poder da televisão (2006). 2

Formada por historiadores, antropólogos, sociólogos e jornalistas.

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O conteúdo televisual comumente é tomado como absoluto, especialmente no que tange a ditar aquilo que deve ser arquivado na memória dos telespectadores e de que forma. Se uma única entrevista enquadrada pelo método da história oral não dá conta da história em si, cabe salientar que, de outro jeito, as reportagens de TV agem como testemunhos bastante ilustrativos dos fatos. Porém, com personagens e recortes nomeados pelos jornalistas que, como observado por Bourdieu (1997), primam pelo sensacional para surpreender o telespectador. Fatos importantes e banais, pessoas conhecidas ou não. Ambos lutam por um espaço fixo na memória do público. A televisão e outras fontes audiovisuais “são consideradas por alguns, tradicional e erroneamente, testemunhos quase diretos e objetivos da história” (NAPOLITANO, 2008, p. 235-236). Esse instrumento, teoricamente, possibilita atingir todo mundo. Mas mesmo em época de convergência de mídias – em que se experimentam novas linguagens, formatos, modelos e narrativas, como detalha Elaide Martins no texto Telejornalismo na era digital: aspectos da narrativa transmídia na televisão de papel (2012) –, emissoras como a Rede Globo insistem em restringir o acesso aos seus conteúdos, fazendo deles produtos a serem comercializados. A Globo não disponibiliza seus programas para download na Internet e os materiais encontrados em sites que alocam vídeos gratuitamente não passam de fragmentos aleatórios capturados e postados pelo público. “Das grandes TVs ainda em atividade, a Rede Globo é a que possui o melhor, mais organizado e mais inacessível arquivo de imagens televisuais de sua própria fatura e de outras emissoras” (NAPOLITANO, 2008, p. 263-264). Importante frisar as dificuldades no acesso às reportagens da Globo quando o que assumimos como objeto de análise neste texto é uma matéria veiculada pela emissora no dia 18 de junho de 2013. Trata-se de um conteúdo relacionado ao programa matutino Bom dia São Paulo, que aborda o Quinto grande ato dos protestos iniciados no dia 6, contra o aumento da tarifa de ônibus na capital paulista. Ao todo, segundo o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), em 2013, 12 milhões de brasileiros protagonizaram os manifestos denominados como Jornadas de Junho em todo o País. O ato realizado em São Paulo no dia 17 de junho de 2013, portanto, é o tema da reportagem que debatemos a partir de agora.

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4 AS LEMBRANÇAS DE UM PROTESTO No início do vídeo que analisamos, o apresentador Rodrigo Bocardi lê a cabeça3 da matéria: 17 de junho, ontem, um dia que vai ficar marcado na história de São Paulo, na história do Brasil. Milhares de pessoas foram às ruas em 12 capitais e outras em dezenas de outras cidades. Foi a maior mobilização popular desde as passeatas que levaram ao impeachment de Fernando Collor, em 1992. Só em São Paulo foram 65 mil pessoas, segundo o Instituto DataFolha. E tudo começou no dia 6, aqui em São Paulo, contra o aumento da tarifa de ônibus. Desta vez, aqui, foi tudo pacífico, sem tiros, sem quebradeira. A exceção foi um tumulto na sede do governo paulista, onde um portão foi forçado. Os manifestantes forçaram a abertura de um portão no fim da noite de ontem. E é por lá que nós começamos a nossa cobertura. O repórter Roberto Paiva acompanhou os protestos em frente ao Palácio dos Bandeirantes (YOUTUBE, 2013).

Observemos que o jornalista apresenta a reportagem tratando-a como um fato histórico. Ele chama a atenção do telespectador ao datar os acontecimentos e apontar os locais que devem ficar marcados com as manifestações: São Paulo e o Brasil. Bocardi ainda recorre a mobilizações passadas para escorar a expressividade do que ocorreu na noite anterior ao noticiário que agora ancora. Consideremos que esta inferência ao passado está relacionada ao que Halbwachs (1990) afirma ao declarar que a reconstrução de eventos advindos anteriormente se opera a partir de lembranças comuns a uns e outros “porque elas passam incessantemente desses para aqueles e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade” (p. 22). Em um off4de Roberto Paiva, a reportagem segue explicando que um grupo tentou invadir o Palácio e arremessou garrafas e bombas contra policiais. O hino nacional foi cantado e alguns cartazes teriam sido queimados. Em seguida, Rodrigo Bocardi reaparece ao vivo no estúdio e informa que o passo a passo do protesto será exibido. De acordo com ele, os repórteres Jean Raupp, Renata Cafardo, Fábio Turci, Isis Cerchiari e César Galvão são os responsáveis pela cobertura5 da mobilização. No entanto, sua voz em off é que surge na leitura do texto. “Largo da Batata cheio, perto das quatro da tarde. E a multidão começava a se reunir. A entrada da estação Faria Lima do metrô foi cercada É o lead. Dá o gancho da matéria. Consultar: PATERNOSTRO, Vera Íris. O texto na TV: manual de telejornalismo. Rio de Janeiro: Campus, 1999. Quando o locutor lê o texto sem aparecer na tela. Consultar: PATERNOSTRO, Vera Íris. O texto na TV: manual de telejornalismo. Rio de Janeiro: Campus, 1999. 5 Os vários enfoques de um acontecimento importante. Idem. 3 4

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por tapumes, mas não teve confusão na concentração de manifestantes, em Pinheiros” (YOUTUBE, 2013). Mais uma vez, hora e local são assinalados. Na sequência, a sonora6 de um policial informando que o protesto ocorrerá “na paz”. Renata Cafardo aparece no vídeo. Ela conta que são quatro e meia da tarde, os manifestantes começam a chegar e o comércio local está fechado. Um vendedor ambulante confirma a informação em entrevista, ao dizer que voltaria para casa uma hora mais cedo. Assim como na história oral individual para fins de reconstrução da memória, a repórter utiliza uma única fonte para relatar a situação do protesto. Renata reafirma o dado divulgado por Rodrigo Bocardi ao comentar que 65 mil pessoas se reuniram no Largo da Batata e assegura que, mais cedo, líderes no Movimento Passe Livre concederam uma entrevista coletiva para explicar a passividade da movimentação. Uma das supostas líderes declara que o objetivo da luta é a revogação do aumento da tarifa. Um segundo mentor dos protestos enfatiza que as manifestações nas ruas estão garantidas sob direito constitucional. Neste caso, as fontes da matéria não se restringem a uma única pessoa e ganha pluralidade com os dois representantes do Movimento Passe Livre Ressaltamos aqui a eleição dos entrevistados pelos jornalistas, pois eles são as personagens da história que se pretende contar. Trazemos, mais uma vez, o pensamento de Halbwachs já que, segundo ele, “um homem, para evocar seu próprio passado, tem frequentemente necessidade de fazer apelo às lembranças dos outros” (1990, p. 36) e, assim, a escolha das figuras que encabeçam o material jornalístico não é, evidentemente, aleatória. Mesmo porque um “telejornal sempre apresenta definições dos seus participantes, dos seus objetivos e dos modos de comunicar”, como afirma Itania Maria Mota Gomes (2007, p. 25). Para ela, mais do que isso, o telejornal é uma construção social e – assim como a memória – não representa fielmente a realidade. A reportagem, com mais de cinco minutos, continua com as sonoras de um terceiro líder e do Secretário de Segurança Pública. O repórter Fábio Turci, por sua vez, argumenta que a multidão foi dividida em três grupos e acompanha um deles. O trajeto é detalhado e um entrevistado reforça a informação dada pelo repórter, que alega que muitas pessoas foram surpreendidas pelo itinerário dos manifestantes. Jean Raupp é o jornalista que segue a segunda turma. Ele conta que o evento já dura quase duas horas, com sete quilômetros de caminhada pacífica. 6

Termo que se usa para designar uma fala da entrevista. Ibidem.

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Em seguida, Isis Cerchiari apresenta o trajeto do terceiro grupo e informa que o repórter César Galvão acompanhou a movimentação de dentro do helicóptero da emissora. Galvão reafirma a divisão dos manifestantes e a tranquilidade da mobilização. “Muita gente aproveitou para tirar fotos e muitos moradores apoiaram a manifestação. Uma parte deste grupo ainda foi até a Avenida 23 de Maio e bloqueou completamente o sentido Zona sul, perto do Parque Ibirapuera” (YOUTUBE, 2013).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O material acima, extraído do YouTube, confirma as aproximações propostas antes. Assim como a memória – que elenca acontecimentos, personagens e lugares –, a televisão segue seu roteiro de preferências para fixar eventos e pessoas às lembranças de seu público. Os óculos de seleção dos jornalistas operam a fórmula dos 3Q+COP e evidenciam os fatos, sujeitos e locais que lhes convêm em forma de gatilho para despertar rememorações. As imagens, não debatidas aqui, integram outra forma de conservação dos eventos e auxiliam na constituição da memória. O avião que atinge o World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, é um dos exemplos do poder da imagem televisual como ferramenta de construção da memória. Assim, salientamos a necessidade de articular o Jornalismo, a televisão e a recepção televisiva ao analisarmos um programa jornalístico, como sugerido por Itania Gomes (2007). Todavia, evidenciamos nossa fragilidade no atendimento a esta demanda no momento em que esclarecemos que nosso empenho é mais no sentido de aproximar conceitos do campo da história e da comunicação neste escrito, como salientamos antes. Valendo-nos de que as “escolhas são sempre acompanhadas do que consciente ou inconscientemente se deseja esquecer”, como defende Halbwachs (1990), assemelhamos as preferências da televisão à seleção da memória e salientamos o poder da primeira como ferramenta para construção da segunda.

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PATERNOSTRO, Vera Íris. O texto na TV: manual de telejornalismo. Rio de Janeiro: Campus, 1999. POLLAK, Michael. Memória e identidade social. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992. p. 200-212. (1-15). POLLAK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1989. p. 3-15. (1-12). YOUTUBE. Protestos em São Paulo, 17 jun. 2013. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=cJHrDUYqya0>. Acesso em: 11 jan. 2015.

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Cristine Marquetto

Humberto Ivan Keske

Ernani Cesar de Freitas

Mestra em Processos e Manifestações Culturais pela Universidade Feevale, Novo Hamburgo. Graduada em Comunicação Social, habilitação em Relações Públicas, pela UFRGS, Porto Alegre. Email: cristinemarquetto@gmail.com.

Crédito póstumo. Doutor e Mestre em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Especialização em Teorias do Jornalismo e Comunicação de Massa e Graduação em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, pela mesma Universidade.

Pós-doutor em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (PUC-SP/ LAEL). Doutor em Letras - Linguística Aplicada (PUCRS). Professor permanente do PPG em Processos e Manifestações Culturais na Universidade Feevale. E-mail: ernanic@feevale.br


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1 INTRODUÇÃO A maneira como o Estado elabora suas políticas culturais evidencia os conceitos que possui acerca desse tema. O Estado pode conduzir as questões culturais de forma a alcançar resultados convincentes que agreguem aos cidadãos, mas pode também acabar por se anular tomando posições que não mudam efetivamente a realidade da população. A recente iniciativa governamental, o Programa de Cultura do Trabalhador, sancionado em 2012, suscitou o interesse de investigar, sob a ótica das relações do Estado com a cultura, a funcionalidade do principal alicerce deste programa: o vale-cultura. O vale-cultura teve seu decreto de regulamento assinado em agosto de 2013, quando foi colocado à disposição para uso. O ano de 2014 foi marcado pela etapa de cadastramento das empresas que tinham o interesse de participar do programa e do fechamento de convênios com espaços culturais, lojas e estabelecimentos que aceitassem receber o vale-cultura como forma de pagamento. Entendemos, por um lado, que iniciativas como o do vale-cultura são necessárias para a melhoria das condições de vida da população brasileira, e essas iniciativas devem ser incentivadas. Por outro lado, a falta de uma discussão sobre esses benefícios pode levar a dificuldades no resultado esperado pelo governo. Este artigo se dedica a compreender a relação atual do Estado com a cultura e de que forma aplica políticas públicas que façam a diferença na realidade dos sujeitos. O objeto de estudo é o vale-cultura, que faz parte do atual programa de cultura do governo. O objetivo foi analisar o vale-cultura de acordo com as teorias estudadas sobre o tema, focando nas áreas abarcadas por esse benefício e em possíveis encadeamentos referentes à sua aplicabilidade. O procedimento metodológico utilizado consistiu na técnica da análise de conteúdo, com inferência a partir da bibliografia estudada, aplicada a um estudo de caso. Ressaltamos que o benefício do vale-cultura foi criado recentemente e ainda não há elementos suficientes para elaborarmos respostas categóricas. Ainda não há disponíveis os dados empíricos sobre a maneira como o vale-cultura está sendo empregado ou pesquisas de forma geral sobre esse benefício. O vale-cultura pode ser analisado sob vários e diferentes aspectos, como econômicos ou artísticos. Neste artigo, apontamos as prováveis áreas e segmentos culturais que podem ser mais contempladas, visando incitar a discussão. Para tanto, valemo-nos da categorização elaborada por Canclini (2005) em seus “circuitos de desenvolvimento cultural”. Esses circuitos auxiliam a esclarecer o processo de elaboração das políticas públicas de cultura. Foi possível, então, enquadrar o vale-cultura nesses circuitos e

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compreender melhor as possíveis repercussões quando de posse dos cidadãos. Com o auxílio deste e de outros autores, como Coelho (2008), o vale-cultura foi analisado do ponto de vista conceitual e de sua aplicabilidade. Este trabalho foi dividido em cinco seções: primeiramente, apresentamos o objeto de pesquisa, o vale-cultura, resumindo as informações contidas no projeto de lei sancionado e no decreto de regulamento da lei, para melhor compreensão das análises; a segunda seção discorre sobre os conceitos de cultura assumidos neste artigo os quais possibilitam evoluir na questão proposta; a terceira seção contempla a teoria utilizada como referência para completar o objetivo proposto; a quarta seção traz as análises do vale-cultura e alguns pontos importantes para pensar a implementação desse vale na sociedade; a última seção aborda as considerações finais, com algumas das conclusões a que chegamos mediante o processo de elaboração deste trabalho. O intuito é fomentar a discussão sobre o tema para que a implantação do vale-cultura ocorra da melhor forma possível e atinja a todos os cidadãos da forma mais efetiva e culturalmente democrática possível.

2 O VALE-CULTURA O vale-cultura constitui um benefício de iniciativa do Governo Federal para garantir acesso aos mais diversos bens e atividades culturais do país. Trata-se de um cartão magnético, como o vale-transporte ou o vale-alimentação, com o valor de R$ 50,00 mensais, complementar ao salário, que o trabalhador pode usar para entrar em teatros, cinemas, shows, pagar cursos de música, teatro, dança, comprar livros, CDs e DVDs, instrumentos musicais e consumir outros produtos culturais. É importante salientar que o beneficio é cumulativo, ou seja, o valor não expira com o passar do tempo. Conforme publicado em documento oficial do Governo Federal (acessado no portal oficial do governo, www.brasil.gov.br), tem direito a esse benefício o trabalhador que recebe até cinco salários-mínimos. As empresas podem descontar de 1% até 10% do valor do vale dos salários dos beneficiados, de acordo com a quantidade de salários-mínimos que o empregado recebe. O trabalhador também pode optar por não receber o benefício. Caso algum empregado que receba acima dos cinco salários-mínimos, cuja empresa esteja participando desta iniciativa, queira receber o vale-cultura, poderá solicitar à sua empresa. Esta poderá atendê-lo somente depois de ceder o benefício a todos

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os trabalhadores que devem receber por lei. Desses trabalhadores fora dos parâmetros da lei a empresa poderá descontar de 20% a 90% do valor do vale, dependendo da faixa salarial. Os empresários também podem se beneficiar com essa iniciativa. As empresas cadastradas no Programa de Cultura do Trabalhador recebem um incentivo fiscal do governo, podendo deduzir até 1% do valor despendido com o vale-cultura do imposto sobre a renda. Os objetivos principais dessa iniciativa são: fortalecer o mercado consumidor de bens e serviços criativos e contribuir para a formação de cidadãos apreciadores e consumidores de cultura. Essas informações provêm diretamente do portal oficial do Governo Federal, que afirma que o vale-cultura “reforça o conjunto de políticas públicas destinadas a equilibrar a oferta e demanda de bens e serviços criativos, já que historicamente a maior parte dos investimentos públicos converge para as etapas de concepção e produção desses bens, sem o devido esforço de se estimular uma demanda efetiva.” (PORTAL BRASIL, 2014). Trata-se de um projeto que busca a formação de plateia, a formação de público em arte1 e também colocar em contato a população e as manifestações culturais, gerando mais rentabilidade para o setor. Segundo o Ministério da Cultura, em longo prazo, acredita-se chegar a 18 milhões de brasileiros que poderão se beneficiar do vale, representando um aumento de R$ 11,3 bilhões na cadeia produtiva do setor. O Ministério não informa dados atuais relativos a empresas e funcionários cadastrados ou a rendimentos provenientes do programa. Contudo, em nove meses, até abril de 2014, segundo o site oficial Portal Brasil, eram 1.682 empresas inscritas como beneficiárias do programa (ou seja, cadastradas a oferecer o cartão a seus funcionários) e 509.471 funcionários contemplados com o benefício. Antes de entrarmos na teoria utilizada neste artigo, o que segue são alguns conceitos que vêm sendo apresentados sobre cultura e servem de prelúdio para as questões seguintes voltadas para o tema proposto.

“Público em arte” é um termo estabelecido não somente pelos autores utilizados neste artigo, mas amplamente utilizado pelos produtores culturais do Brasil para se referirem à formação de público (demanda) para projetos culturais e eventos de cultura.

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3 CULTURA, AS LENTES PARA VER O MUNDO A primeira definição de cultura teria sido trazida por Tylor, conforme explica Laraia (2011). O conceito abarcava tudo o que o ser humano produzia e cultivava, deixando claro o limite entre a natureza biológica do ser e suas ações e pensamentos que formavam a humanidade. Mostra as possibilidades da realização e do aprendizado em oposição à ideia de aquisição genética. Para Tylor (apud LARAIA, 2011, p. 25), [...] tomado em seu amplo sentido etnográfico é este (a cultura) todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade.

A cultura, mais do que uma herança genética, determina o comportamento do homem e justifica suas realizações; o homem age de acordo com seus padrões culturais e a cultura é o meio de adaptação aos diferentes ambientes. O homem depende desse aprendizado; portanto, cultura compreende um processo acumulativo de aprendizado, em que uma mudança de ambiente resulta em uma mudança de comportamento. O homem é resultado do meio cultural em que foi socializado. Para Laraia (2011), cultura funciona como uma lente através da qual o homem vê o mundo: culturas diferentes, lentes diferentes. Temos propensão a pensar que a nossa cultura é a correta, pois vemos através das nossas lentes, um etnocentrismo que pode gerar discriminação e preconceitos. A coerência de um habitat só pode ser analisada a partir do sistema cultural a que ele pertence. Hall (1997) trata a cultura como um processo em constante transformação e determinante para distinguir um grupo de outro. A cultura é um dos termos mais difíceis de conceituar. Para o autor, [...] usada para se referir a tudo que seja distintivo com respeito ao modo de vida de um povo, comunidade, nação ou grupo social, descrever valores partilhados de um grupo ou da sociedade. A cultura, argumenta-se, não é tanto um conjunto de coisas – romances e pinturas ou programas de TV e quadrinhos – quanto um processo, um conjunto de práticas. Primordialmente, a cultura tem a ver com a produção e intercâmbio de significados – o “dar e receber significados” – entre os membros de uma sociedade ou grupo. Dizer que duas pessoas pertencem a uma mesma cultura é dizer que ela interpretam o mundo de maneira mais ou menos parecida e podem se expressar, seus pensamentos e sentimentos concernentes ao mundo, de forma que seja compreendida por cada um. (HALL, 1997, p. 2).

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Se pensarmos que a cultura se assemelha a um processo de constituir normas e padrões de comportamento similares entre os membros de um grupo ou sociedade e que se diferenciam dos padrões dos outros, Geertz (2011) vem contribuir à questão quando afirma que o homem é extremamente dependente de mecanismos de controle dos programas culturais que servem para ordenar seu comportamento. Cultura é melhor vista não como complexos padrões concretos de comportamento – costumes, usos, tradições, feixes e hábitos – como tem sido o caso até agora, mas como um conjunto de mecanismos de controle – planos, receitas, regras, instruções (que os engenheiros de computação chamam de “programas”) – para governar o comportamento. (GEERTZ, 2011, p. 32).

Esse conceito pode ser deveras rígido e pouco humanista, fazendo o ser humano parecer um robô que recebe ordens e regras de comportamentos e obedece sem questionar. Todavia, Laraia (2011, p. 95) afirma que “temos a capacidade de questionar hábitos e modificá-los”, acrescentando que a mudança mais significativa é a do resultado do contato com o sistema cultural do outro, que ajuda a entender o nosso próprio. Refletindo sobre a questão com outro olhar, o importante, para Coelho (2008), é enfatizar a diferença entre a cultura e o seu contrário, a barbárie. É fazer uma distinção entre o que estimula o desenvolvimento humano individual e, em consequência, o processo social e aquilo que o impede, distorce e aniquila. Esse autor vê a cultura como aquilo que é específico de cada lugar, de cada grupo, e não como a soma de tudo o que é produzido pelo homem. É preciso promover o crescimento da subjetividade do indivíduo e o afastar da barbárie para algo ser denominado “cultural”; assim, “nem tudo, embora dentro de uma mesma cultura, é cultura.” (COELHO, 2008, p. 21). O grande equívoco, conforme Coelho (2008), é quando passamos a reduzir a cultura de uma ação (como ato aberto que se permite ser no sentido de experimentar) para a cultura como um estado. A ação cultural é um processo que possibilita a libertação do ser e cria condições para que as pessoas inventem seus próprios fins; o estado é algo dado como pronto, fechado e lacrado. A cultura está em constante transformação; logo, o caráter ocluso não compete a esse termo. A redução desse conceito é algo visivelmente mais fácil de ser oferecido à população. Coelho (2008) pergunta-se qual Estado moderno aceitaria uma política cultural voltada à ação cultural. Ele mesmo responde: poucos ou nenhum. Entrando nas questões que se referem às políticas culturais, precisamos discutir o que é e o que não é cultura no contexto político e governamental, “daquilo que pode prioritariamente receber a atenção de uma política cultural voltada para o desenvolvimento humano.”

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(COELHO, 2008, p. 26). O vale-cultura faz parte de uma política cultural concebida pelo Estado que não atua da mesma forma na sociedade como outrora. A relação do Estado com a sociedade mudou. Para melhor entendermos a aplicabilidade do vale, é necessário compreender de que forma o Estado se relaciona com a cultura e com a sociedade em tempos modernos.

4 A MERCANTILIZAÇÃO DO ESTADO Conforme Canclini (2005), o Estado é a instância de representação do coletivo, é para quem a cidadania deve reportar-se. Por isso, a cultura, de certa forma, vive através do Estado que representa toda uma população. Contudo, é importante ressaltar que, em tempos modernos e globalizados, o mercado se faz presente em todas as instâncias sociais, sendo parte reguladora da cidadania, do Estado e da cultura. Ao se referir ao mercado, Canclini (2005) coloca sob suspeita o modelo neoliberal como o único sistema possível. Segundo ele, não podemos nos deter a esse modo para gerir o funcionamento das estruturas estatais. O mercado mostrou-se mais eficiente do que a política para organizar a sociedade, submetendo não somente a sociedade, mas a própria política à lógica mercadológica de publicidade, espetáculos e corrupção. Estaríamos todos sendo regidos por leis mercadológicas; seria nesse ponto que se enfraquece a cidadania e os movimentos sociais que buscam o aprimoramento das sociedades. Percebemos, ainda segundo este autor, que o sentido de cidadania pode estar sendo deturpado por ser constantemente usado por segmentos diferentes e opostos da sociedade de formas tão díspares que seu conceito pode ter se fragmentado de modo a se tornar maleável e flexível para atender aos desejos de quem o queira empregar. Nesse movimento, o mercado passar a regular a sociedade por se mostrar mais eficiente, o Estado vem se omitindo, saindo de cena. Cidadania diz respeito à participação equitativa de uma população em referência às instâncias que são de todos, que são estatais. No entanto, se o Estado se omite, para quem o cidadão deve se reportar? No momento em que perde a centralidade do Estado, o mercado define agora as práticas sociais mediante uma ordem de consumo. Para apontar caminhos, Canclini (2005, p. 37) nos diz que “em resposta, precisamos de uma concepção estratégica do Estado e do mercado que articule as diferentes modalidades de cidadania nos velhos e nos novos cenários, mas estruturados completamente.”

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Antigamente, salienta Coelho (2008), a noção de Estado-Nação trazia consigo um único território, uma única língua, uma cultura e uma etnia. Com a desterritorialização – advinda da globalização, o processo de “diluição” da nação fica evidente. O mundo não é mais governado por sistemas políticos tradicionais de Estado, mas por uma estrutura amorfa (para não dizer aberta) de poder, econômico e cultural, que não tem mais analogia significativa com Estado-Nação: é um sistema político descentralizado e desterritorializado, sem mais nenhuma referência necessária a tradições e valores etniconacionais. (COELHO, 2008, p. 75).

Diante disso, as políticas públicas culturais originadas dessa nova fase em que vive o Estado e a sociedade têm visado restaurar a unidade e força que o Estado já teve certa vez. O objetivo, segundo Coelho (2008), é resgatar o sentido da supremacia de uma única cultura, de uma identidade nacional que se encaixa a todos e a todos molda, como pertencentes ao mesmo território, como iguais. As políticas públicas dos governos vêm tratando a cultura como uma coisa única, fixa, concreta, que deve ser preservada a qualquer custo. Mas são essas as características que se encaixam no enquadramento que fazemos do conceito de cultura? Dentre os documentos emitidos pela Unesco, encontra-se a Declaração Universal da Unesco sobre Diversidade Cultural e a Carta dos Direitos Humanos. Neles estão relatados conceitos a respeito da cultura e da identidade que reforçam o seu caráter flexível e mutável: “a identidade cultural de todo indivíduo é dinâmica” (artigo 13 da Declaração Universal Unesco sobre Diversidade Cultural, 8 de maio de 20042). Como nos aponta Coelho (2008), fica evidente que, se as identidades são dinâmicas, não faz nenhum sentido que o Estado busque “preservar” a identidade. Se por “preservar a identidade” entende-se apoiar as tradições e os folclores, o autor deixa claro que esse tipo de manifestação não reflete mais a realidade dos indivíduos, são meras nostalgias de um Estado que costumava ser Nação. Dessa forma, a diversidade cultural seria uma operação desse Estado “único” e soberano, como se proteger a identidade fosse proteger uma única identidade. Devido a essa tendência de o Estado de voltar às políticas culturais para as ações que visam à permanência e revigoração das tradições, Canclini (2005, p. 47) distingue quatro circuitos de desenvolvimento cultural, em que os processos de globalização e regionalização/ nacionalização operam de diferentes maneiras:

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Mencionado no livro de Coelho (2008).

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a) histórico – territorial: conjunto de saberes, costumes e experiências organizadas ao longo de várias épocas relacionando com territórios étnicos, regionais e nacionais e que se manifesta, sobretudo, no patrimônio histórico e na cultura popular tradicional; b) cultura de elites: constituído pela produção simbólica escrita e visual (literatura e artes plásticas), que faz parte do patrimônio pelo qual se define e elabora o próprio de cada nação. Entretanto, convém distingui-lo do circuito anterior por abranger obras representativas das classes altas e médias com maior nível educacional, por não ser conhecido nem dominado pelo conjunto de cada sociedade e que, nas últimas décadas, integrou-se aos mercados e processos de valorização internacionais; c) comunicação de massa: dedicado aos grandes espetáculos de entretenimento (rádio, cinema, televisão, vídeo); d) sistemas restritos de informação e comunicação: destinados a quem toma decisões (satélites, computadores, telefones celulares). Desses quatro circuitos, é importante destacar a participação do Estado de forma divergente em cada um deles. A competência do Estado e de suas políticas culturais, segundo Canclini (2005), diminui à medida que transitamos do primeiro circuito para o último. Com isso, o autor afirma que o Estado tem pouca ou nenhuma influência nos sistemas restritos de comunicação de cunho tecnológico, realizando poucas políticas públicas que intervenham e regulem as interações desse circuito. Por outro lado, toda vez que o governo tem o intuito de agir em questões culturais, volta-se para o patrimônio histórico e tradicional da nação, transformando espaços como museus e galerias em instituições burocráticas e políticas, que muitas vezes não envolvem, nem convidam a própria população, constituinte desse patrimônio, a fazer parte e tomar posse. Outra observação a respeito dos circuitos diz respeito aos jovens. Inversamente ao caminho tomado pelo Estado, os habitantes (de maioria jovem3) regulam seus comportamentos e práticas mais pelos últimos circuitos, distanciando-se de suas raízes e tradições. Vem dessa constatação o impasse com a globalização, responsável por “alienar” os jovens e transformá-los em seres do mundo, não pertencentes a uma só nação, esfacelando esse conceito (não existe mais um único território, uma única língua, uma única etnia). O nível de interação da população com sistemas restritos de comunicação e com os meios de comunicação de massa são muito mais intensos do que as interações com o circuito histórico-territorial ou elitista. 3

Canclini (2005) afirma, por meio de pesquisas, que na América Latina há uma maioria jovem na população dos países que compõem o continente.

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Inversamente, os estudos sobre consumo cultural mostram que quanto mais jovens são os habitantes mais seus comportamentos dependem antes dos últimos circuitos do que dos primeiros. Nas novas gerações as identidades se organizam menos em torno dos símbolos históricoterritoriais, os da memória pátria, do que em torno dos de Hollywood, Televisa ou Benetton. (CLANCLINI, 2005, p. 48).

Que eficácia podem ter as políticas culturais de integração que continuam limitadas à preservação de monumentos e do patrimônio folclórico e às artes cultas que perdem espectadores? Se a sociedade se volta cada vez mais aos últimos circuitos, como serão atingidas pelas ações que se dirigem aos primeiros? Como falar em manter tradições fixas depois de assumirmos o dinamismo da cultura? Para responder a essas questões, realizamos uma análise do vale-cultura, objeto de pesquisa, que faz parte dos projetos propostos pelo Estado dentro das políticas públicas culturais, visando à integração e inclusão do indivíduo no cenário cultural.

5 O VALE-CULTURA E O DESLOCAMENTO DE PRIORIDADES 104

Sobre a proposta do Programa de Cultura do Trabalhador, entendemos que o objetivo dessa iniciativa é aproximar a população das oportunidades culturais que a cidade oferece. Oportunidades estas normalmente voltadas aos primeiros circuitos de desenvolvimento cultural, estabelecidos por Canclini (2005). Utilizando esses circuitos, percebemos que o vale-cultura possui outras prioridades. Se relacionarmos o vale-cultura com o que os autores apresentados mencionaram como sendo o padrão das políticas públicas culturais, observamos que ele, de forma inovadora, não se volta ao primeiro circuito, o histórico - territorial. Os circuitos abarcados pelo beneficio são o “b” e o “c”: o objetivo desse vale é fomentar a circulação das classes baixas em eventos culturais da cultura tida como de elite: artes cênicas, artes plásticas, literatura, música, fornecendo acesso a teatros, espaços culturais, galerias e compra de livros (circuito “b”); ao mesmo tempo, o vale-cultura permite acesso ao cinema e aquisição de CDs, DVDs, jornais, revistas e outras mídias de massa (circuito “c”). Entretanto, não está incluso no projeto do vale a preservação do patrimônio e da tradição - em forma de reformas ou conservação de espaços culturais (circuito “a”), tampouco está incluso acesso ou aquisição de sistemas restritos de comunicação, como celulares e computadores (circuito “d”).


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Há um deslocamento de prioridades do Estado, no caso específico deste programa, na direção dos primeiros circuitos para os últimos. Esse novo foco pode vir a atender e a inserir de forma mais eficaz a população, justamente por se voltar para onde a população se interessa mais, conforme ressaltou Canclini (2005). Retirando o enfoque padrão das políticas públicas na conservação do folclore e tradição e direcionando o olhar para as culturas de elite, principalmente, para as mídias de massa, o projeto do vale-cultura tem maiores chances de envolver a população e de estimular uma demanda efetiva. O intuito é atingir esse indivíduo ligado na esfera global, sem desvinculá-lo da cultura das elites, que compõe o sentido de pertencimento ao seu país, à sua região. Mas cabe aqui outra questão: onde os beneficiados irão empregar os R$ 50,00 oferecidos pelo vale? Será que eles irão se voltar para as artes plásticas, peças e literatura (circuito “b”), ou vão consumir aquilo que já estão habituados a consumir - o cinema, os CDs, DVDs, os shows de música popular (circuito “c”)? Canclini (2011), em Culturas Híbridas, afirma que não podemos tratar o povo como “sem cultura”, como se o governo tivesse a missão de “levar cultura ao povo”. É preciso esclarecer que o povo já é dotado de sua própria cultura, que diverge das culturas de elite, mas não pode ser submissa. Não podemos desconsiderar que esse povo já possui suas preferências culturais. De posse de um fomento ao consumo de cultura, com a possibilidade de prosseguir consumindo aquilo que agrada, mas de forma contínua, podemos imaginar onde será gasta a maior parte dos reais disponibilizados. As classes atingidas pelo vale-cultura provavelmente participam das manifestações culturais partícipes da sua realidade, ou seja, elas compram os CDs das bandas que gostam; consomem revistas específicas para a sua faixa de público; vão a shows de música popular e ao cinema. Os gastos, possivelmente, mantêm-se nas suas zonas já estabelecidas, zonas de conforto, e não em locais onde ainda não possuem identificação (como teatros e espaços culturais). Por que submeter-se a ir ao teatro ou casa de espetáculo, onde o consumo cultural é complexo e o entendimento condicionado à formação cultural (podendo haver, inclusive, hostilização pelo comportamento e pela vestimenta), ao invés de adquirir o novo DVD original da banda favorita, de forma fácil, simples e agradável? Quantos seriam os corajosos a sair da zona de conforto e se proporem a passar por um processo mais difícil e trabalhoso? Quantos iriam romper as barreiras sociais que os impedem de sair de suas comunidades e cruzar a linha que os separa da cultura elitista? Talvez o vale-cultura não tenha, ainda, condições suficientes para fechar o abismo que separa a cultura de elite da cultura do povo. Por meio do diálogo com o que é diferente ou estranho, podem-se considerar novas formas de aprimoramento da subjetividade. Manter-se no mesmo ciclo de experiências não

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prospera o aprofundamento do conhecimento individual, nem a construção do discernimento. Enquanto as classes mais populares (atingidas pelo beneficio do vale-cultura) continuarem estabelecidas em torno somente de suas pré-disposições culturais, a tendência é que a distinção com a cultura de elite nunca deixe de existir e se aprofunde cada vez mais. É no diálogo entre culturas que podem se decompor os arquétipos para o surgimento de uma nova perspectiva social das classes brasileiras. Apenas dispor de bens culturais não garante sua influência e perpetuação simbólica na consciência do sujeito. Não se trata de encher a cidade com museus, galerias e livrarias à disposição de todos, pois cada um chega a esses lugares com capitais e hábitos díspares. O público é diferente, e cada um deles tem uma experiência de vida diferente, que permite leituras diversas das obras. A possibilidade de “ler” a obra de arte está na relação entre emissão e recepção. Talvez o tema central das políticas culturais seja, hoje, como construir sociedades com projetos democráticos compartilhados por todos sem que igualem todos, em que a desagregação se eleve à diversidade, e as desigualdades (entre classes, etnias ou grupos) se reduzam a diferenças. (CANCLINI, 2011, p. 157).

É essa noção que devemos ter antes de estabelecer como expectativa do benefício a formação de plateia. Mesmo que, com o valecultura, as pessoas circulem nos espaços culturais e frequentem espetáculos, isso não garante que interiorizem o que está sendo vivenciado. Apenas colocar à disposição os espetáculos não cria hábitos novos. O que regulariza a prática é o entendimento e a compreensão – que não ocorrem sem conhecimento prévio dos sistemas simbólicos envolvidos nas produções culturais. Esse é um ponto que poderia ser revisto pelo Programa de Cultura do Trabalhador, pois, sem garantias de diálogo, não se garante também o desenvolvimento social e cultural do sujeito. O vale-cultura se apresenta com prioridades diferentes e inovadoras em comparação com o foco costumeiro das políticas públicas de cultura. Entretanto, mesmo aumentando as possibilidades de engajamento social com a proposta, o benefício ainda não se provou eficaz no seu objetivo de formação de plateia e público em arte, seja por possibilitar que os sujeitos continuem dentro de seus círculos de cultura, seja por não fornecer a estrutura necessária para que esses sujeitos encarem o desafio de dialogar com os objetos culturais sem a formação cultural necessária.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ressaltamos, no início deste artigo, que não existe um indivíduo sem cultura, que não seja regido pelas convenções culturais do ambiente no qual ele se insere. Dessa forma, parece-nos incoerente pensar em auxiliar alguém a adquirir algo que já possui, ou seja, “adquirir cultura”. A cultura não está nas coisas; está nas condições sociais nas quais elas são produzidas. É um processo constante de aprimoramento e modificação, reivindicado no contato com o outro e com a sua “lente”, que diverge da nossa. A cultura constitui um reflexo do momento histórico de um grupo ou sociedade, e não a perpetuação de uma única tradição fixa repetida constantemente. Na tentativa de resgatar a centralidade que teve um dia, o Estado geralmente insiste em preservar uma cultura única ao invés de incentivar seu dinamismo, pois a busca por uma única identidade cultural, fixa e imutável consolida o Estado como nação fortificada e bem estabelecida. Dessa forma, as políticas públicas de cultura costumam ser voltadas à preservação de algo que já não reflete a realidade: o sentido único de cultura. Como visto, a cultura e as identidades culturais são dinâmicas. Não se condena a tentativa de proteger a identidade nacional, contanto que preservar essa identidade não seja preservar uma única identidade. Entretanto, o vale-cultura é diferente. Ele não busca a preservação da tradição como tem sido o objetivo das políticas culturais do Estado, na maioria das vezes. Ele se mantém focado na cultura de elite, mas abrange a comunicação de massa – que faz parte da modernidade vigente que constrói os indivíduos e os modifica. Este é um ponto interessante do vale-cultura: aproximar da realidade de seus cidadãos e tentar fornecer a eles as mesmas condições de aquisição desses bens que as classes mais favorecidas possuem. Entendemos que é significativo usar o recurso para adquirir um DVD, um instrumento musical, ou uma revista. O que causa certo desconforto, porém, é pensar que talvez seja somente nesse circuito que vão circular os recursos do vale. A probabilidade dos beneficiados optarem por utilizar o vale no circuito “c” (meios de comunicação de massa) é muito maior do que de romperem a barreira estabelecida e participarem de convenções das quais não fazem parte, circuito “b” (cultura de elite). É preciso entender que a cultura desse segmento é tão forte como qualquer outra e não é fácil introduzir outros padrões – outras lentes – que não os já conhecidos. De acordo com o portal oficial do governo, o vale-cultura se propõe a “reforçar o conjunto de políticas públicas destinadas a equilibrar a oferta e demanda de bens e serviços criativos, já que historicamente a maior parte dos investimentos públicos converge para as etapas de

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concepção e produção desses bens, sem o devido esforço de se estimular uma demanda efetiva” (PORTAL BRASIL, 2014). Formar demanda é formar público consumidor dos produtos culturais. Em um primeiro momento, se pensarmos que o vale-cultura pode possibilitar a compra de um CD ou DVD original, ao invés da compra de um objeto “pirata”, a demanda para esse bem foi, de fato, estabelecida. Essa ideia se aplica aos outros objetos culturais, no sentido de que poder comprar uma revista, mesmo que esta não tenha seus assuntos voltados para as questões culturais, é um fomento à leitura para quem antes não tinha tal incentivo. Dessa forma, em primeiro momento, o vale-cultura cria verdadeiramente uma demanda que antes não recebia tanta atenção das políticas públicas de cultura. Contudo, se nos aprofundarmos na problemática cultural, a formação de público em cultura ou em arte precisa de uma estrutura social que o vale-cultura, a partir das análises, pode não conseguir oferecer. Mesmo nas visões mais otimistas, se pensarmos que a população vai realmente passar a frequentar museus, galerias e teatros (e se inserir em uma cultura diferente, por consequência), de que forma iriam se apropriar do conteúdo apresentado? Como vimos, a livre circulação nesses espaços não garante a fruição artística. Circular sem dialogar com os objetos artísticos e culturais seria como circular em uma praça ou supermercado. Apenas dispor do acesso não garante compreensão, entendimento, tampouco apropriação. Mesmo que os beneficiários utilizassem o vale-cultura para frequentar espaços culturais, isso não os faz “inseridos”. Mais uma vez, o vale-cultura pode representar um passo inicial para um primeiro contato com culturas diferentes, mas não pode, sozinho, condicionar a formação de público em arte sem antes oferecer as condições necessárias para o entendimento das propostas artísticas e culturais. Em realidade, conforme Coelho (2008), as medidas tomadas são isoladas e não constituem de fato uma ação, uma política cultural, por não se voltarem para as questões elementares do acesso ao conteúdo artístico, mas somente para o acesso ao objeto artístico. Chegamos a um ponto da análise social e cultural em que usar apenas “igualdade” não é suficiente para definir a democracia cultural. Não basta dar acesso a todos os cidadãos e pressupor que, com isso, teremos uma sociedade culturalmente evoluída. Os caminhos são outros e certamente mais complexos. Por mais que o vale-cultura seja uma iniciativa importante do governo, devemos considerar o cenário cultural do qual o povo faz parte, no sentido de que a intenção de dialogar com outras propostas artísticas pode não ser da vontade desses sujeitos. A formação de público em arte, para se efetivar, antes do acesso proporcionado pelo vale-cultura, precisa do trabalho de formação cultural dos sujeitos, que pode ser

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alcançado, por exemplo, através da educação. Acreditamos que as políticas públicas seriam mais efetivas se se voltassem para as questões fundamentais da formação cultural dos indivíduos. É preciso que o Estado ofereça meios para que as pessoas interajam com sua própria cultura e também com outras, de forma a se aprimorar como sujeito e como cidadão. Essas seriam as melhores políticas públicas de cultura na situação atual em que se encontram o Estado e a sociedade.

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REFERÊNCIAS BOAL, Augusto. A estética do oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. BRASIL. Lei n. 12.761, de 27 de dezembro de 2012. Brasília, DF, 2012. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/ Lei/L12761.htm>. Acessado em: 23 fev. 2015. ______. Decreto n. 8.084, de 26 de agosto de 2013. Brasília, DF, 2013. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/ Decreto/D8084.htm>. Acesso em: 23 fev. 2015. CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2005. ______. Culturas híbridas. São Paulo: EDUSP, 2011. COELHO, Teixeira. A cultura e seu contrário. São Paulo: Iluminuras, 2008. CONHECENDO O VALE-CULTURA. Disponível em: <www.cultura.gov.br/por-dentro-do-vale-cultura1/-/asset_publisher/cOdwpc5nCipt/ content/para-empresas-recebedoras/10895>. Acesso em: 23 fev. 2015. CRUZEIRO DO SUL. Disponível em: <www.cruzeirodosul.inf.br/materia/575998/vale-cultura-tem-potencial-para-injetar-ate-r-104-mi-pormes-na-economia>. Acesso em: 23 fev. 2015. DIÁRIO COMERCIO INDÚSTRIA E SERVIÇO. Disponível em: <www.dci.com.br/servicos/regras-do-valecultura-ainda-precisam-de-ajustesid348439.html>. Acesso em: 1 ago. 2014. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2011.

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HALL, Stuart. The Work of Representation. In: HALL, Stuart (Org.). Representation: Cultural Representation and Signifying Practices. London: Thousand Oaks, 1997. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. MINISTÉRIO DA CULTURA. Disponível em: <www2.cultura.gov.br/site/2013/02/28/vale-cultura-17/>. Acesso em: 1 ago. 2014. NOTÍCIAS PORTAL BRASIL. Disponível em: <www.brasil.gov.br/cultura/2012/06/vale-cultura-facilita-acesso-dos-trabalhadores-ao-lazer>. Acesso em: 23 fev. 2015. PORTAL BRASIL. Disponível em: <www.brasil.gov.br/sobre/cultura/iniciativas/vale-cultura>. Acesso em: 1 ago. 2014. VALE-CULTURA. Disponível em: <www.cultura.gov.br/valecultura>. Acesso em: 23 fev. 2015.

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O MANIFESTANTE: SOLDADO E HERÓI PÓS-MODERNO REPRESENTADOS NA MODA MASCULINA

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Daniel Keller

Mestrando em Processos e Manifestações Culturais pela Universidade Feevale, é bacharel em moda. Possui pesquisa financiada pela FAPRGS e desenvolve estudos que correlacionam as áreas de Cultura, Gênero e Moda.

Denise Castilhos de Araujo

Doutora em Comunicação Social; professora do Mestrado em Processos e Manifestações Culturais e dos cursos de Comunicação Social e Design; pesquisadora do Grupo de Estudos Cultura e Memória da Comunidade na Universidade Feevale.


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O MANIFESTANTE: SOLDADO E HERÓI PÓS-MODERNO REPRESENTADOS NA MODA MASCULINA

1 INTRODUÇÃO A definição dos papéis sociais das identidades de gênero é permeada pelo processo de construção simbólica. Esta determinação, no entanto, não se dá somente pelo caráter performativo, mas também com relação às questões de representação. O homem, portanto, encarna um habitus, dado através da cultura que estabelece suas dinâmicas e, além disso, as suas percepções e uso de seu próprio corpo. A grande questão que motiva este estudo está em como este habitus do ser masculino tem se modificado na medida em que existem novas dinâmicas sociais vigentes. Demonstra, também, como a representação do manifestante nos editoriais de moda continua a reforçar o imprinting cultural das figuras heroicas masculinas, principalmente, a partir do arquétipo do soldado. Este estudo tem como objetivo entender quais são as relações da figura do manifestante com os padrões de masculinidade e como a base da construção desta representação está também relacionada à figura do soldado – como herói que defende o seu povo. Serão discutidas, portanto, as novas características identitárias emergentes para o gênero masculino, em resposta às mudanças e manifestações da cultura. Para a solução desta questão, se estabelece como hipótese que as identidades masculinas sofrem influência do mito do herói. Assim, a figura do manifestante se baseia nestas estruturas arquetípicas como forma de dar uma nova roupagem à representação do soldado/herói. A interpretação é embasada na Hermenêutica de Profundidade proposta por Thompson (2011). A escolha desta abordagem teórica é justificada pela possibilidade de analisar de forma crítica a ação humana, buscando obter dela uma explicitação de sentidos – de forma global, contextualizada nos universos particular e global. A estrutura deste artigo se apresenta a partir de uma análise sobre as relações entre masculinidade e a importância da imagem do herói na sua representação como homem. Em seguida, é abordado o corpo como plataforma para a moda enquanto ferramenta discursiva. Por fim, são analisadas 2 imagens do material de divulgação da marca “Is not clothing” buscando compreender quais os símbolos aplicados para a retratação do manifestante e como essa imagem se apoia na representação do soldado/herói e seus preceitos de masculinidade.

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2 MASCULINIDADES E O IMAGINÁRIO DO SOLDADO/HERÓI Imaginário poderia ser entendido como uma versão subjetiva das identidades criadas de forma real ou concreta. Apresentando a visão de Maffesolli (2001) sobre a proposta deste conceito, se demonstra o papel das construções mentais em detrimento do que está materialmente estabelecido. O imaginário permanece uma dimensão ambiental, uma matriz, uma atmosfera, aquilo que Walter Benjamin chama de aura. O imaginário é uma força social de ordem espiritual, uma construção mental, que se mantém ambígua, perceptível, mas não quantificável (MAFFESOLLI, 2001, p. 75).

De forma muito adequada, o imaginário consegue traduzir a atmosfera da masculinidade, uma vez que se refere ao coletivo e não somente às identidades – que, na verdade, são mutáveis e inconsistentes. O imaginário é “cimento social [...] une em uma mesma atmosfera” (MAFFESOLLI, 2001, p. 75). Sob esta perspectiva, o masculino não está pautado somente na sua relação com o corpo, mas nas estruturas antropológicas do imaginário. Como afirma Maffesoli (2001, p. 75) “o real é acionado pela eficácia do imaginário, das construções do espírito”. Desta forma, destacam-se as características de ambiguidade (perceptível, mas não qualificável) desta força social de ordem espiritual e romântica que é o imaginário. Essas construções mentais delimitam as representações que seguem os padrões de masculinidade socialmente estabelecidos. Assim, o imaginário sobre masculinidade é uma forma de estabelecer o que é adequado ao conceito ou não. Neste caso, o homem se faz representar por conceitos de força, grandeza e outras imagens simbólicas que foram por ele encarnados através da cultura. A definição dos papéis sociais masculinos é permeada pelo processo de construção simbólica. Esta determinação, no entanto, não se dá somente pelo caráter performativo, mas também com relação às questões de representação. O homem, portanto, encarna um habitus, dado através da cultura que estabelece suas dinâmicas e, além disso, as suas percepções e uso de seu próprio corpo.

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Oliveira (2004) afirma que além das características corporais ligadas aos padrões de masculinidade existe um compromisso social que passa por valores como coragem, bravura, lealdade, probidade, sobriedade e perseverança. Todas estas características remetem à figura do soldado uma vez que: Ao serem convocados, os soldados estariam em ação por uma causa nobre: a defesa da pátria. Isso só seria possível se eles demonstrassem sua devoção ao país por meio de sua virilidade e de atos de coragem. Os ideais medievais de bravura e destemor passavam agora a integrar as características fundamentais do soldado devotado e heroico. Exprimia-se cada vez mais a imbricação entre militarização, nacionalismo e masculinidade (OLIVEIRA, 2004, p. 28).

Com forte influência da sociedade burguesa, estes valores criaram uma estreita relação entre a figura do soldado com o imaginário masculino. O homem que correspondesse às características do soldado, mesmo não o sendo, poderia ser considerado um nobre sob o ideal moderno aplicado sobre os gêneros. As relações entre heroísmo, a figura do soldado e o imaginário sobre o “homem ideal” estão, portanto, intimamente ligadas. A ideia de proteção é aplicada à esta representação, como uma forma de servir ao povo, velando seus convives, os defendendo ou protegendo (OLIVEIRA, 2004). A responsabilidade sobre o coletivo passa a ser intrínseca ao papel social do homem contemporâneo, por vezes, tendo que se sacrificar por uma determinada causa, sempre em busca do bem comum. Com as grandes guerras do século XX, aumentou o interesse por corpos mais sãos. A moda feminina exigia um corpo esbelto e longilíneo e o corpo do homem representava uma corajosa vida de soldado. O treino militar durante a guerra trouxe um acento tônico à forma física. Os homens que voltaram da frente de batalha estavam habituados aos exercícios e à manutenção da musculatura (QUEIROZ, 2009, p. 50).

Ter a aparência de um soldado era, portanto, uma força de obter um ponto de honra (nif), apreendendo à sua identidade todo o imaginário pertencente a este tipo de herói. Esta era uma forma de passar a pertencer ao mundo dos homens (BOURDIEU, 2014). A divisão sexual está inscrita, por um lado, na divisão das atividades produtivas a que nós associamos a ideia de trabalho, assim como, mais amplamente, na divisão do trabalho de manutenção do capital social e do capital simbólico, que atribui aos homens o monopólio de todas as atividades oficiais, públicas, de representação, e em particular de todas as trocas se honra, das trocas de palavras (nos encontros cotidianos e sobretudo nas assembleias), trocas de dons, trocas de mulheres, trocas de desafios e de mortes (cujo limite é a guerra) (BOURDIEU, 2014, p. 71).

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Bourdieu (2014) torna claro o papel da definição de gênero como engrenagem de funcionamento dos “esquemas de percepção, de pensamento e de ação” (BOURDIEU, 2014, p. 21). Especificamente tratando da masculinidade, o autor convoca as relações com a virilidade como fator determinante sobre a visão do que é “ser homem”. Para Morin (2005), existe um imprinting cultural que acaba por estabelecer uma marca aos humanos. Esta marca está estabelecida desde o nascimento, como um processo de formação de um sujeito adequado à determinada cultura. O imprinting cultural determina a desatenção seletiva, que nos faz desconsiderar tudo aquilo que não concorde com as nossas crenças, e o recalque eliminatório, que nos faz recusar toda a informação inadequada às convicções, ou toda objeção vinda de fonte considerada má (MORIN, 2005, p. 30).

O imprinting cultural determina aos homens um inúmero conjunto de modelos arquetípicos que visam a criação de categorias sociais, adequação dos sujeitos a ela e influenciando no grau de aceitação dos mesmos. A moda entra como uma tecnologia social de manutenção e desenvolvimento de imprints, mas que faz o masculino retomar, a todo o momento, as imagens que o estabelecem como tal. Discutir o herói na imagem de moda masculina pode fazer com que mergulhemos no universo dos estereótipos que são arraigados aos homens, e talvez conhecermos um pouco mais desse mar de ideias em que a moda masculina navega, carregando o imprinting que herdamos e as possibilidades de perfurá-lo e quem sabe reconhecermos outras possibilidades (QUEIROZ, 2009).

A moda pode tomar dois caminhos, um da manutenção do imprint, reforçando arquétipos, como também abrir a possibilidade para novos discursos. No entanto, é preciso entender que sendo a moda um fenômeno voltado ao mercado de consumo, é predominante a representação de imagens, mesmo novas, baseadas em discursos antigos e, possivelmente, determinados estereótipos estéticos – que religam a premissas éticas e culturais. Esse fenômeno assume seu caráter comunicacional, mantendo ou alterando estereótipos, sempre apoiado em uma visão positivista do novo em detrimento do antigo, em uma busca pela conformidade com as necessidades materiais ou subjetivas dos sujeitos.

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3 DISCURSO DA MODA: CORPO MASCULINO E IMAGINÁRIO O discurso construído pelo fenômeno de moda está pautado no seu sentido semiótico, textual e contextual, pois existe uma lógica que considera não somente a veste como objeto, mas, também, como elemento portador de sentido. Assim: [O discurso] É também o modo como se concretizam as oposições do nível das estruturas fundamentais os sujeitos, os valores e os objetos apresentados no nível das estruturas narrativas num revestimento semântico mais concreto que se manifesta no nível das estruturas discursivas, que é o que dá para ver num primeiro no texto, assim como nas opções utilizadas para a colocação do sujeito como construtor de um discurso (CASTILHO; MARTINS, 2005, p. 74).

O corpo extrapola a materialidade física e atinge seu estado subjetivo, como afirma Helena Katz (KATZ apud OLIVEIRA; CASTILHO, 2008, p. 69) “corpo é um estado provisório da coleção de informações que o constitui como corpo”. O corpo, como subsistema cultural (VILLAÇA, 2007), é usado pelos sujeitos como uma força de criar valores, adequação e interação com o espaço social - físico ou digital, portanto, torna-se mercadoria. A mercadoria moderna tende a se envolver em um sex-apeal. As mercadorias carregadas de um suplemento erótico são também carregadas de um suplemento mítico: é um erotismo imaginário, isto é, dotado de imagens e de imaginação, que embebe ou aureola esses produtos fabricados (MORIN, 1984, p. 120 apud QUEIROZ, 2009, p. 78).

A moda como mercadoria (corpo, produto e conceito) exerce uma distinção1, que pode produzir um resultado de imagem adequada ou inadequada para determinados sujeitos. De modo a estabelecer uma relação de harmonia, entre a normatividade aplicada sobre os gêneros e o caráter efêmero dos lançamentos cíclicos da moda - de um lado permanência e, em outro, efemeridade. “Difundindo e espalhando o erotismo em todos os setores da vida cotidiana, a cultura de massa dilui o que anteriormente estava concentrado. O erotismo da cultura de massa se esforça para reconciliar a alma e o Eros” (MORIN, 1984, p. 123 apud QUEIROZ, 2009, p. 83). 1

Não somente por aspectos de diferenciação, mas também de identificação, conforme já estão previstas as dinâmicas de disseminação do fenômeno de moda (LIPOVESTKY, 2009).

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O consumo de moda, portanto, se comprova como tecnologia social de marcação do gênero. Neste caso, “o corpo masculino existe apenas como corpo coletivo – um corpo que imita outros corpos em volta dele (MALOSSI, 1993, p. 42 apud QUEIROZ, 2009, p. 82). Retoma-se, assim, o conceito de Bourdieu (2014) no sentido do gênero como um habitus sexuado, uma construção social naturalizada. A nobreza, ou a questão de honra (nif), no sentido do conjunto de aptidões consideradas nobres (coragem física e moral, generosidade, magnanimidade etc), é produto de um trabalho social de identidade social instituída por uma dessas “linhas de demarcação mística” conhecidas e reconhecidas por todos, que o mundo social desenha, inscreve-se em uma natureza biológica e se torna um habitus, uma lei incorporada (BOURDIEU, 2014, p. 75).

O contexto pós-moderno (HALL, 2001) apresenta identidades mutáveis e históricas. Estas identidades, por sua vez, assimilam a efemeridade do seu tempo e a materializam, também, através do consumo. A partir de então, o consumo passa a construir um texto identitário. O século XX vai privilegiar a ideia de corpo como linguagem, informação, meio e mensagem, além de nos trazer – no grande balaio de gatos no qual vivemos -, novamente, o aguçar da ideia de identidade individual a partir do corpo e os extremos da ânsia por torna-lo via de expressão do eu (MESQUITA, 2004, p. 61).

Mesmo que diverso e variável, o contexto pós-moderno também está construído sobre estruturas ambivalentes. O corpo aparentemente livre do sentido natural, tem a liberdade de materializar conceitos identitários, em busca de sua historicidade. No entanto, estes corpos sofrem de uma série de agenciamentos, estabelecidos pela própria indústria de consumo que a convida enganosamente para a liberdade e mutabilidade. O corpo, desta forma, vai assimilando processos sociais e manifestações culturais trazendo ao sujeito novas formas de relação dos sujeitos com o ambiente externo. A mutabilidade da cultura influencia nas formas de lidar com o corpo, estabelece novas estéticas a partir das alterações cíclicas do ethos. O consumo pode ser uma das respostas às novas configurações do corpo. Desde a Primavera Árabe2, por exemplo, em 2011 tem se percebido um crescente movimento de comportamento urbano, principalmente, por parte dos jovens, que valoriza a imagem deste rebelde Para mais informações sobre a Primavera Árabe e seu papel democrático acessar <http://www.pordentrodaafrica.com/o-futuro-da-democracia-no-egito>. Acesso em: 26 de março de 2015. Após a Primavera Árabe, outros movimentos sociais foram registrados pelo mundo, com a Espanha e, inclusive, o Brasil em junho de 2013.

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– inclusive, o colocando como um herói que defende ideologias democráticas ou libertárias. Não somente as marcas, mas a moda de rua, também conhecida como street style, se apropria desta estética como um elemento de estilo - como pode ser percebido na figura 1 que traz uma fotografia obtida em Seul.

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Figura 1 - Moda de rua em Seul (imagem obtidas em março de 2015) Fonte: FUCKING YOUNG (2015)


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Através da imagem, está demonstrado como a moda materializa respostas estéticas às alterações proporcionadas por manifestações da cultura e desempenha um importante papel para a construção dos sujeitos sociais, a partir de novas relações com o seu corpo. Além de possibilitar a interação com novos padrões do que pode ser considerado um herói, aos poucos assimila diferentes formatos de masculinidade. A novidade representada pelo manifestante, na verdade, retomaria um constructo normativo das obrigatoriedades masculinas de força, coragem, proteção e outros também encontrados nas representações dos soldados, mas com uma perspectiva singular e assimilando fenômenos sociais contemporâneos.

4 MANIFESTANTES RETRATADOS: NOVOS HERÓIS Para esta análise serão usados dois exemplos de imagens com enfoque na divulgação de produtos da temporada Primavera/Verão 2016 da marca “Is not clothing” com sede em Londres. As imagens foram retiradas do lookbook4 e divulgado no site “Fucking Young5”. As imagens escolhidas para a análise fazem parte de um conjunto de outras imagens, mas foram selecionadas de modo que melhor pudessem materializar as abordagens tratadas neste estudo. A interpretação Hermenêutica busca entender de quais maneiras se relacionam campo e objeto. Para tanto, é preciso considerar contextos sociais e históricos como uma forma de perceber quais são as relações entre a representação das imagens e ao padrão de masculinidade incorporado pelo imaginário do soldado/herói (que aqui é um exemplo de materialização do padrão masculino normativo). As duas imagens escolhidas do lookbook fazem parte de um conjunto de 17 imagens que compõem o documento. Este material foi desenvolvido para ser distribuído digitalmente, como forma de divulgar os produtos da marca. Os produtos foram desenvolvidos pelo seu 3

Devido às estações diferentes em cada hemisfério e a dinâmica do sistema da moda, esta estação no Brasil se refere ao Verão 2015/16. Lookbook é um termo em inglês que se refere ao material de divulgação usado pelas marcas de moda. O material pode ser digital ou impresso e serve como forma da coleção se fazer ser conhecida pelos seus mais diversos públicos. 5 FUKINGYOUNG. Disponível em: <www.http://fuckingyoung.es/>. Acesso em: mar. 2015. 3 4

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fundador, o artista visual Jam Sutton, são distribuídos em lojas de departamento localizadas em diversos países como Reino Unido, Suíça, Japão, Emirados Árabes, China, Taiwan, Hong Kong e Itália. As imagens escolhidas para a análise estão apresentadas em forma de painel, conforme visto a seguir.

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Figura 2 - Fotografia da marca “This is not Clothing” Fonte: FUCKING YOUNG (2015)


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Segundo o criador da coleção, os produtos foram inspirados em esculturas clássicas e nos protestos modernos. As esculturas, presentes na camiseta branca, trazem traços da arquitetura e ornamentações do Parthenon Grego, como uma forma de brincar com as batalhas mitológicas, percebe-se, pois, a justaposição estética, aplicando aspectos da arte clássica ao contexto contemporâneo. Todas estas referências inspiracionais da coleção também estiveram presentes na construção dos cenários das fotos – como o uso de estátuas e a predominância da cor branca. Complementando a descrição realizada pela marca, os elementos escolhidos para a composição da cena denotam uma abordagem das guerras civis contemporâneas. Os uniformes de proteção são usados, justamente, pelos agressores - enquanto o manifestante faz uso apenas das roupas da marca - objetivamente, dotado de uma aura subjetiva e ideológica que, supostamente, o protegem nesta sua vivência heroica. Para a análise sócio-histórica deve ser considerada a escolha por um modelo jovem, do sexo masculino, pele clara e olhos azuis. As imagens são integralmente obtidas em estúdio fechado. A situação narrada pelas imagens remete aos cenários de manifestações político/ ideológicas que tem acontecido globalmente nos últimos anos. A estética escolhida para a composição da imagem, seus elementos cênicos e a atitude dos personagens ali apresentados possuem uma forte carga subjetiva que reitera o crescimento da representação do manifestante como um mito contemporâneo. Tamanha a presença desta imagem no contexto atual, se percebe uma concordância recorrente para modos de vestir, de postura corpórea, de atitude e organização conforme pode ser visto no exemplo da imagem de manifestantes franceses em Junho de 2013.

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Figura 3 - Manifestantes franceses Fonte: UOL (2015)6

As duas imagens do lookbook (figura 2) materializam a figura do manifestante de certa forma rebelde à alguma causa. O uso do termo rebelde aqui não visa a abordagem sob o modo pejorativo, mas sim que detém um comportamento de alguma forma desviante do proposto pelo sistema. 6

UOL. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/album/album-do-dia/mobile/2013/06/23/imagens-do-dia---23-de-junho-de-2013.htm>. Acesso em: jan. 2015.


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A condição do masculino tratada nas imagens traz à tona uma espécie de construção do herói combatente, aquele que luta por alguma causa - portanto, retoma ideais classicamente masculinos já apresentados nesta análise. O ponto em questão que o diferencia da imagem de soldado herói é que, historicamente, o manifestante está inserido muito mais em uma luta ideológica contra o sistema estabelecido. Ao contrário do soldado, que tem a sua missão diretamente ligada à manutenção dos valores da nação através de manifestações do seu resguardo. O herói contemporâneo, além da forma física, dos atributos de força e coragem, tem como principal ponto de existência a divulgação e vivência de uma ideologia. A ideologia, portanto, passa a ter mais importância após a experiência das grandes guerras e conflitos nos quais os manifestantes “desviantes” tiveram papel protagonista para o alcance dos objetivos. A supremacia do manifestante sobre o soldado clássico está fundamentada na rapidez das mudanças e no cenário pós-moderno que coloca o individual como único ponto de esperança. Na contemporaneidade, o indivíduo apoiado em uma ideologia parece ter mais força que um grande exército - uma vez que consegue engajar mais apoiadores legitimamente comprometidos pela causa, em uma relação bastante paradoxal. Outra etapa da análise refere-se à aos elementos constitutivos, formando a etapa formal discursiva. A qual passa a ser discutida, também, a partir da interpretação da observação da figura 2. As imagens dessa figura representam o modelo sendo atacado, enquanto o mesmo apresenta uma postura fixa, demonstrando apatia e escondendo qualquer demonstração de medo. Sob esta perspectiva, o medo colocaria o homem mais próximo à representação do feminino, portanto, passaria a ser “menos homem” enquanto não desempenha um ato de coragem. O homem “corajoso” vive sob o medo, domina a mulher, mas é guiado por ela (da mãe à esposa) e não fala de sua vida pessoal com seus companheiros. Suas emoções não fazem parte de suas conversas por isso são violentos, pois violentam seus sentimentos. Não assume a falta que sente do pai e isto o levará a ser um pai ausente como foi o seu. Tantas expectativas em “ser homem” pode ser um profundo mistério que se solidificou pelos séculos sem que ao menos se saiba o significado (QUEIROZ, 2009, p. 34).

As estátuas, que arremessam supostamente latas de gás lacrimogêneo, indicam inspiração nas obras clássicas, conforme afirmado pelo próprio criador do conceito (THISISNOTCLOTHING, 2015). Assim, se sugere que o personagem modelo está sofrendo um ataque, ou seja, é vítima de uma estrutura ortodoxa, tradicional, opressora e, possivelmente, antiquada. Este discurso de não adequação é ambíguo, uma

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vez que procura demonstrar negação ao sistema, ao mesmo tempo em que faz uso de características físicas e de intenção que remetem à masculinidade padrão e normativa. O corte do cabelo do modelo é aparado nas laterais, remetendo aos cortes de cabelos usados por soldados militares. Fazer uso de características físicas ajuda de forma direta na construção deste personagem que busca fazer-se passar como um novo herói masculino. O homem poderá se parecer com seu herói, usar o mesmo corte de cabelo, a mesma barba, usar roupas parecidas com as dele. Isso certamente o fará se sentir mais próximo dele, como se pudesse até mesmo adquirir um pouco de sua força. E se um homem não quiser ser ou ter um herói? Mesmo que lhe falte coragem, ele deverá se esforçar para parecer corajoso, deverá se educar para ser um homem (QUEIROZ, 2009, p. 39).

Apesar do modo violento que o modelo se apresenta, reforçado pelo uso dos lenços, a sua projeção em primeiro plano das imagens o coloca como protagonista da cena. O papel principal deste discurso, portanto, é o de nobreza e virtuosidade. Ser homem, no sentido de vir, implica um dever-ser, uma virtus, que se impõe sob a forma do “é evidente por si mesma”, sem discussão. Semelhante à nobreza, a honra – que se inscreveu no corpo sob forma de conjunto de disposições aparentemente naturais, muitas vezes visíveis na maneira peculiar de se manter de pé, de aprumar o corpo, de erguer a cabeça, de uma atitude, uma postura, às quais corresponde uma maneira de pensar e agir, um ethos, uma crença etc. – governa o homem de honra, independentemente de qualquer pressão externa (BOURDIEU, 2014, p. 75).

A nobreza deste herói, portanto, não mais está calcada na busca pela manutenção do sistema nação (burocratizado, tradicional e, por vezes, alienado da realidade) como faziam os soldados. A construção deste novo herói passa por uma busca estabelecida pelos grupos ideológicos, que estão focados em manifestar as suas inquietudes a partir de sua não adequação ao sistema. Sob a perspectiva do herói, Campbell (1997) traz a ação do personagem como um modo de levar benefícios aos seus semelhantes. A luta através de seus dotes físicos e sua capacidade de sobrevivência alimenta o imaginário sobre o soldado no sentido de torna-lo cada vez mais próximo deste herói mítico. Ambos são aqueles que tem a possibilidade de sair do mundo cotidiano e adentrar em uma região nebulosa, de prodígios sobrenaturais. A arquétipo estrutural do mono mito (CAMPBELL, 1997) propõe que o herói, antes de iniciar a sua jornada, precisa estar munido de amuletos que direcionem a sua busca, protejam-no dos males do mundo e que possam fazer com que seja compreendido e o apoiem em sua

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luta. Nesta versão do mito do herói, a campanha coloca a ideologia do rebelde como o “presente” que legitima esta saga. É através desta ideologia que o herói percebe que “existe um poder benigno, em toda parte, que o sustenta em sua passagem sobre humana (IBIDEM, 1997, p. 53)”. Neste caso, o domador de monstros, amparado por seu amuleto ideológico, consegue transpor a sabedoria consigo compartilhada e enfrentar a tirania de seus inimigos. A imagem a seguir ilustra a versão pictográfica dos sumérios para a encenação do herói domando seus inimigos.

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Figura 4 - O domador de monstros Fonte: CAMPBELL (1997, p. 21)


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Na representação da figura 3, se vê o herói, com a face plácida, dominando a figura desajeitada e aparentemente monstruosa dos seus inimigos. Em comum com a figura 2, o herói também está ao centro, figurando o primeiro plano, com as mãos à mostra, sugerindo uma ação – quebrada por um semblante tranquilo, praticamente intocável. A metáfora usada na configuração desta campanha fotográfica, não demonstra, mas insinua que o triunfo, a vitória ou a “aventura última” (CAMPBELL, 1997), deste herói seja a supremacia da sua ideologia. Indicando, que o consumo da marca, possa representar o casamento da “alma-herói triunfante com a Rainha-Deusa do Mundo” (IBIDEM, p. 58, 1997). O detentor da marca ou consumidor, neste caso, se assemelha com o herói/manifestante, uma vez que compartilha do mesmo imaginário, através da carga subjetiva que existe neste produto. A sintonia deste consumidor/herói com a ideologia da marca/produto, pode ser considerada como uma forma de penetração na fonte (CAMPBELL, 1997), por meio da personificação deste aventureiro/herói representado nas imagens. O ato maior, na vivência deste mono mito, é a possibilidade de possuir material ou subjetivamente a carga conceitual presenta na construção desta retórica midiática. O consumo de moda, apoiado na abordagem do herói, é um meio de revelação plena, que explica a existência de cada sujeito consumidor – que materializa suas necessidades subjetivas através de objetos específicos. O desejo na realização e vivência deste mito heroico está estabelecido a partir de um plano profundo, regendo mente e coração, preenchendo todas as lacunas de existência. As características do sujeito pós-moderno, propostas por Hall (2001), tem como consequência a alteração da imagem de um herói. Antes estruturado sobre a figura do soldado, o manifestante surge como alternativa mais palpável com a relação de heroísmo cotidiano, mais autônomo e múltiplo. O espírito individual pode dispor tanto mais de possibilidades de jogo próprio, assim, de autonomia, quanto na própria cultura. Há o jogo dialógico dos pluralismos, multiplicação das brechas e rupturas no interior das determinações culturais, possibilidade de ligar a reflexão com o confronto, possibilidade de expressão de uma ideia, mesmo desviante (MORIN, 2005, p. 23).

É possível perceber a construção de uma nova identidade masculina que, possivelmente, poderá convidar a uma transformação do pensamento contemporâneo sobre o que é ser herói e, consequentemente, o que é ser homem. Comportamentos como estes configuram uma nova possibilidade de hegemonia, e, talvez futuramente, a alteração do padrão dito como naturalizado sobre as questões de gênero.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS (RE-INTERPRETAÇÃO) Com o intuito de finalizar a análise proposta pela Hermenêutica de Profundidade, é necessário reinterpretar os textos (formas simbólicas), etapa esta que remete à interpretação do próprio pesquisador, indicando também, a possibilidade de variabilidade desta etapa. Sob este prisma, se percebe que o homem contemporâneo vivencia uma realidade ambígua de pertencimento e exclusão à medida que demonstra suas (in)capacidades de adequação à masculinidade padrão. A dureza que é imposta a eles deve ser obtida através de demonstrações de coragem, força, racionalidade e inteligência. Tudo isso em busca de um distanciamento das categorias vistas como femininas (BOURDIEU, 2014). Confirmando a hipótese de que as identidades masculinas estão diretamente influenciadas pela figura do herói, o objeto analisado por este estudo comprova a relação entre a identidade pós-moderna (HALL, 2001) masculina é também representada pela figura do manifestante. Dado seu caráter efêmero e de constante renovação, a moda como documento de estudo é uma rica possibilidade de reconhecimento das necessidades latentes e, possivelmente, quase desconhecidas pelos seus contemporâneos. Fluído e volátil, a figura do manifestante é uma resposta ao conflito identitário pós-moderno – mesmo que ela não seja integralmente bem vista pela sociedade. No entanto, esta imagem ambígua (herói x vilão) é também uma característica destas conflituosas e contraditórias estruturas que constroem estas identidades. O manifestante concretizado como herói pode ser, portanto, uma versão de herói sobreposta à do soldado, mas que assume e demonstra o seu desvio à normalidade. Diante da vivência conflituosa, este herói pós-moderno vê no consumo uma oportunidade de realização e preenchimento das suas lacunas existenciais. O mono mito é a chance de reforçar o papel do homem, neste caso, sob um ângulo diferente, substituindo o soldado por uma nova figura mítica que a cultura contemporânea fez emergir. O consumo funcionaria, assim, como um decantador de fatos culturais, percebendo necessidades e as materializando em objetos. A moda, com todo seu caráter subjetivo, incorpora estes valores criando um novo caminho para a identidade de gênero masculino. Como um fenômeno do consumo, a moda não se preocupa em substituir as imagens anteriores e, muito menos, de eternizar esta representação.

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Produzir estes novos padrões de masculinidade é uma tentativa de dar fim aos modelos culturais que já não correspondem às reais necessidades contemporâneas. Assim, todas as mudanças de imaginário e papel social masculinos é também uma resposta às novas contingências históricas – fazendo com que o indesejado hoje, possa ser recomendado no futuro. Apesar de todas as mudanças estabelecidas no contexto atual, ainda é latente a esperança pela existência de um certo heroísmo. A masculinidade em questão aqui continua estando pautada em questões como força, bravura e nobreza. A nova imagem mítica do manifestante socorre à necessidade de um espírito de heroísmo mais próximo da realidade. Esse personagem pós-moderno precisa estar apto a desafiar as estruturas do sistema em prol de um bem comum ideológico, não mais distante e institucional, mas em forma de um cidadão comum - como um herói dentro de cada um dos sujeitos.

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REFERÊNCIAS CAMPBELL, Josheph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix, 1997. CASTILHOS, Kathia; MARTINS, Marcelo M. Discursos da Moda: semiótica, design e corpo. São Paulo: Anhembi Morumbi, 2005. FUCKING YOUNG. Disponível em <www.fuckingyoung.es>. Acesso em: mar. 2015. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. MAFFESOLI, M. O imaginário é uma realidade, in Revista FAMECOS. Porto Alegre: Edipucrs, n. 15, ago./dez. 2001. MESQUITA, Cristiane (Coord.). Moda Contemporânea: quatro ou cinco conexões possíveis. São Paulo: Anhembi Morumbi, 2004. MORIN, Edgar. O método IV: as ideias. Porto Alegre: Editora Sulina, 2005. OLIVEIRA, Pedro Paulo. A construção social da masculinidade. Editora UFMG, 2004 QUEIROZ, Mário. O herói desmascarado: A imagem do homem na moda. São Paulo: Estação das Letras e Cores Editora, 2009. SILVA, Sergio Gomes da. A crise da Masculinidade, in: Psicologia, Ciência e Profissão, 26 (1). João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2006. THISISNOTCLOTHING. Disponível em: <www.thisisnotclothing.com>. Acesso em: jan. 2015. THOMPSON, John B. Ideologa e Cultura Moderna. Petrópolis: Vozes, 2011.

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Nelson Batista Zimmer

Mestrando na Universidade Feevale do Mestrado de Processos e Manifestações Culturais.

Juracy Assmann Saraiva

Pós-doutora em Teoria da Literatura pela Unicamp, professora e pesquisadora da Universidade Feevale, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais dessa mesma instituição, bolsista do CNPq.


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1 INTRODUÇÃO Para quem trabalha com moda, é fundamental conhecer as principais personalidades que criaram as bases dessa indústria, tal qual a conhecemos atualmente. Gabrielle “Coco” Chanel é figura central entre as personalidades da área, cujo estilo se propagou internacionalmente. Segundo Karbo (2010, p. 174), enquanto os costureiros, já na metade do século passado, lutavam indignados contra o roubo de suas criações, Chanel não se importava com isso e até apoiava a cópia, dizendo que somente assim seu estilo seria disseminado. Ela percebeu, muito antes que qualquer outro, a importância da publicidade, ao mesmo tempo em que sabia que suas roupas só poderiam ser perfeitamente executadas em seu ateliê da Rue Cambon e que as mulheres ricas pagariam valores exorbitantes para terem uma peça de fino e requintado acabamento. Esse senso de oportunidade de Coco Chanel fica evidente em suas realizações empresariais, embora sua biografia seja uma lenda inventada por ela própria, e seu passado esteja repleto de acontecimentos que ela confirmava ou contestava, segundo seu humor. Quando morreu, em 11 de janeiro de 1971, aos 87 anos de idade, na solidão de seu luxuoso apartamento no Hotel Ritz, Coco Chanel voltou a ser apenas Gabrielle Bonheur Chanel, a jovem solitária que não se rendeu às adversidades. O legado da estilista, porém, não se esgotou com sua morte, abrangendo, atualmente, a alta costura, roupas, sapatos, joias, acessórios, cosméticos e perfumes. Em 1983, Karl Lagerfeld assumiu a direção criativa da alta costura da Maison Chanel, assim como as seções de prêt-à-porter e acessórios. Das mãos do designer alemão, a marca deu um salto inesperado para o sucesso. De acordo com Moreira (2002, p. 176), na sua primeira coleção, Lagerfeld tratou de desmitificar as bases estilísticas de Coco, lançou novos perfumes, fotografou suas próprias campanhas de publicidade, produziu minissaias – o horror de Coco – e usou cores fortes. Porém, no final da década de 1980, ele se rendeu ao estilo Chanel e, em 1989, apresentou a coleção de alta costura no Teatro da Champs Elysées, sob os acordes de “A sagração da primavera”, de Stravinsky, exibindo uma transmutação dos elementos básicos do estilo Chanel. Lagerfeld revitalizou a marca, que atravessou o século XX, e, na primeira década do século XXI, a Chanel abriu em torno de 40 lojas nas mais elegantes e sofisticadas cidades do mundo. Sob o comando de Françoise Montenay, a Chanel ingressou no novo milênio revigorada e cheia de novidades que começaram com a inauguração, em 2001, da primeira boutique da marca especializada em acessórios e seguiu, em 2002, com uma luxuosa loja em Nova York, especializada em joias e relógios. Foi por meio dessa estratégia que a grife Chanel se tornou mundialmente

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conhecida por seus artigos de extremo luxo e de altíssima qualidade e se constituiu em um império da moda. Consequentemente, o mundo globalizado parece concordar com a declaração de Coco Chanel: “Eu criei um estilo para um mundo inteiro. Vê-se em todas as lojas o estilo Chanel. Não há nada que se assemelhe. Sou escrava do meu estilo. Um estilo não sai da moda; Chanel não sai da moda”.

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Figura 1 - Ícones, as pérolas, o tailleur e as camélias são assinaturas, “vestidas” pela estilista até o final de sua vida Fonte: Nelson Batista Zimmer

A empresa, atualmente, é controlada pela família Wertheimer que possui mais de 200 lojas ao redor do mundo, além de ser dona da Eres, uma marca que vende linhas de moda praia e lingeries, cujos produtos são comercializados nas mais elegantes redes de lojas de departamento do mundo. Os irmãos franceses, Alain e Gerard Wertheimer, possuem, juntos, uma fortuna de US$ 7,5 bilhões e ocupavam o 11º lugar no ranking do site “Business Insider” e a 122ª posição na lista de maiores fortunas na revista “Forbes”, em 2012 (VALOIS, 2012). Entretanto, falar de Chanel não é apenas apontar números e somas vultosas, mas também demonstrar a importância da inovação, do espírito de vanguarda, do luxo, da perfeição, qualidades que todo estilista gostaria de possuir e que fazem a diferença entre o sucesso e


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o fracasso de um negócio, especialmente em um negócio de moda. Como diz Petit (2003, p. 177), “Chanel, ou Coco Chanel, é o símbolo do charme, [...] é mais do que uma famosa grife da Rue Cambon, é um comportamento, um estilo do que é ser elegante e da importância da moda”. Por isso, esse estilo, ou o “espírito de Chanel”, pode ser detectado não só em shoppings e magazines multimarcas de luxo, mas também em lojas de departamentos e mercados populares.

2 GABRIELLE BONHEUR CHANEL E A CRIAÇÃO DA MAISON CHANEL “Aqueles sobre os quais se constroem lendas são suas próprias lendas”, declarou Coco Chanel ao seu amigo Paul Morand, um dos vários escritores a quem ela tentou, sem sucesso, contar a história de sua vida (PICARDIE, 2011, p. 17). E Gabrielle Bonheur Chanel parece ter levado a ideia de construir uma lenda pessoal realmente muito a sério, e essa se desdobrou em inúmeras narrativas. Com Chanel, segundo Karbo (2010, p. 19), os relatos sempre divergem. A autora classifica a estilista como mestra da desinformação, “[...] o que é um modo gentil de dizer que ela mentia compulsivamente sobre seu passado”. Depois, mentia sobre ter mentido, e, após, negava a mentira sobre a mentira. Nos últimos anos de sua vida ela contratou - e demitiu - muitos escritores para redigir suas memórias, dizendo coisas diferentes a cada um deles, de acordo com sua disposição no momento. [...] O que surgiu no lugar de fatos verificáveis é Chanelore (a doutrina de Chanel), uma combinação de verdade, embelezamento, mentiras e lenda. (KARBO, 2010, p. 19).

De acordo com A era Chanel, de Edmonde Charles-Roux, após a morte precoce de sua mãe, Gabrielle foi criada em um colégio interno que deixou aos 20 anos para tentar a carreira de cantora. Seu primeiro sucesso foi a canção “Quiqu´a vu Coco” (“Quem viu Coco”), devido à qual recebeu o apelido de Coco. Aos 25 anos, Gabrielle passou a viver no Castelo de Royallieu, com o rico comerciante de tecidos, Étienne Balsan. Frequentava festas e jantares e foi nesse ambiente aristocrático que conheceu o inglês Arthur Capel, ou Boy, o grande amor de sua vida. Ela, então, rompeu o romance com Etienne para viver em Paris com Capel, que financiou a loja Chanel Modes, inaugurada em 1910, no número 21 da Rue Cambon, onde eram vendidos suéteres, saias e uns poucos vestidos.

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A internacionalização e globalização da marca começaram no início do século XX, a partir do sucesso, nos Estados Unidos, do estilo criado por Mademoiselle e do apoio que ela recebia das revistas especializadas em moda. Em 1915, a Chanel já era conhecida nos dois lados do Atlântico, e a difusão da marca se ampliou nos anos do pós-guerra. A presença de Chanel é comprovada pela Harper´s Bazaar, de Nova York, que publicou seu desenho de uma camisa, comentando que “a mulher que não possui pelo menos um artigo Chanel está decididamente fora de moda” (MOREIRA, 2002, p. 56), e pelos louvores ao estilo Chanel e à sua roupa esportiva, feitos pela revista American Vogue, quando a guerra acabou. No início da década de 1920, Chanel conheceu o grão-duque Dimitri Pavlovitch, primo do Czar Nicolau II, da Casa Real dos Romanov, que fugia da Rússia devido à revolução bolchevique. Tornam-se amantes, e Dimitri apresentou Chanel ao perfumista Ernest Beaux, ex-empregado da corte dos czares, e dessa ligação nasceu o lendário “Chanel nº 5”. Entre os biógrafos de Chanel não há consenso quanto à época do lançamento do perfume, que pode ter ocorrido em 1920, 1921, 1922 ou 1923, mas eles são unânimes quanto ao significado dessa fragrância na constituição do mito Chanel. De acordo com um de seus biógrafos, o maior sucesso da vida de Chanel não foi o pretinho básico ou a invenção da semijoia ou ainda dos conjuntos de bouclé. Seu maior sucesso foi um “[...] cheiro de rose de mai ou jasmim, talvez um pouco de vetiver” (KARBO, 2010, p. 105). Após o término do relacionamento com Dimitri, no outono de 1925, Chanel conheceu, em Monte Carlo, o Duque de Westminster. Através desse novo relacionamento, Chanel introduziu o tweed em sua Maison. Hoje, é um dos carros-chefe da moda feita pela grife. Desejado e amado pelo público feminino, o tweed traduz a elegância e a postura almejadas por executivas de alto padrão, primeiras-damas e jet-setters internacionais. A década de 1930 traz novos desafios para a estilista francesa. Com a crise provocada pela quebra da Bolsa de Nova York, as clientes norte-americanas não puderam mais comprar as criações Chanel, porém a estilista foi convidada a desenhar figurinos para Hollywood. O cinema tornara- se um importante aliado para a divulgação de estilos e criações de moda, e Chanel se beneficiou dessa mídia ao ter suas roupas apresentadas em filmes e adotadas pelas estrelas de cinema, como Greta Garbo, Glória Swanson e Ina Claire, que as usavam em festas e compromissos também fora das telas. Os símbolos do estilo Chanel passaram a ser, então, objeto do desejo das multidões de mulheres que frequentavam salas de projeção em todo mundo.

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De acordo com Karbo (2010, p. 203), nessa época, as casas de moda vendiam os modelos Chanel que eram reproduzidos em massa pelos industriais da Sétima Avenida. Ao visitar Nova York em 1931, Chanel conheceu esse polo de produção de roupas e, durante uma rápida visita à loja de departamentos Klein, viu que suas coleções estavam sendo reproduzidas maciçamente e que esse era o preço a pagar por ter seu estilo adotado não só pelos ricos, mas também pelos menos favorecidos financeiramente: Parecia que havia várias “ruas” – uma rua comum de uma cidade de médio porte, pela qual uma secretária podia caminhar com a sua saia reta e o casaquinho confortável, ambos inspirados em Chanel e custando 20 dólares; a rua principal, onde as mulheres dos executivos almoçavam e compravam na Bonwit Teller as cópias que custavam 150 dólares; e as ruas mais elegantes de todas, a Madison Avenue ou Wilshire Boulevard, onde as mulheres que aplicavam em fundos mútuos, casadas com capitães da indústria, passeavam vestidas com conjuntos de 500 dólares feitos por suas costureiras. (KARBO, 2010, p. 204).

No auge da Grande Depressão, em 1933, Chanel contou com a colaboração de Paul Iribe, ilustrador e designer francês, na criação de uma coleção de joias, patrocinada pela Associação Internacional de Mercadores de Diamantes. As peças, concebidas unicamente com diamantes e platina, atraíram grande público e até hoje são reproduzidas. Além disso, na década de 1930, Coco Chanel renovou seu estilo, suavizou a linha de seus modelos, envolveu suas clientes em vaporosos vestidos de noite confeccionados em chiffon, tule e renda, porém continuou a apostar em seus tailleurs para a moda diurna. Nessa época, Coco fez da camélia um símbolo de seu estilo, representando-a em joias, tecidos e mostrando-a como acessório em cabelos e em cintos, ou como broches. A flor, assim como os colares de pérolas, a bolsa em matelassê a tiracolo, o tweed e o pretinho básico, sintetiza, ainda hoje, o estilo Chanel (MOREIRA, 2002, p. 140-3). Todavia, ainda que buscasse continuar no topo e se mantivesse ativa, investindo em modelos primorosos, Chanel foi destituída de sua hegemonia e substituída por nomes que ganhavam espaço nos veículos impressos, como Mainbocher, Molyneux, Madame Grés e sua inimiga Elsa Schiaparelli (KARBO, 2010, p. 169). Em 1939, após a França ter declarado guerra à Alemanha, ela fechou as portas de sua maison e refugiou-se em Pau, nos Pirineus, mas foi chamada de volta pelos alemães, que ocupavam a capital francesa. Instalada no Ritz, Chanel iniciou um caso com o Barão Hans Günter Von Dincklage, o que lhe gerou problemas. Os amigos a abandonaram e, após a derrota alemã, Chanel foi detida, mas escapou da prisão e da humilhação por ter se envolvido com o inimigo, devido à proteção da aristocracia inglesa. No entanto, teve de abandonar sua carreira, ainda que viesse a retomá-la alguns anos mais tarde (MOREIRA, 2002).

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Em 1947, conforme Moreira (2002, p. 156), Chanel estava em seu exílio na Suíça, quando soube do triunfo, em Paris, do new look de Dior. Após um período de privações e de racionamento, as saias rodadas, a cintura fina e o luxo eram estimulados pela imprensa e voltaram a fazer sucesso entre as mulheres. Chanel, que considerava a silhueta apertada e ouso de espartilhos com barbatanas como um insulto pessoal, decidiu retornar ao mercado da moda e, no dia 5 de fevereiro de 1954, lançou sua nova coleção na Rue Cambon para compradores e repórteres da imprensa europeia e norte-americana. Por estar inspirada no sucesso dos anos 1920 e 1930, com uma modelagem muito diferente da do estilo Dior, a coleção de Chanel foi definida pela imprensa francesa como uma “retrospectiva melancólica”. Entretanto, a revista Vogue americana aclamou sua volta e publicou: “O estilo Chanel, tão específico quanto H²O, significa uma combinação de juventude, conforto, jérsei, pérolas – um luxo invisível” (WALLACH, 1999, p. 166). Em pouco tempo, o ateliê da Chanel atraiu clientes como Marlene Dietrich, Romy Schneider, Jeanne Moreau, Grace Kelly e Jaqueline Kennedy, e Paris se rendeu novamente ao estilo de Coco Chanel. De acordo com a revista Life: “Ela está influenciando tudo. Com 71 anos, está trazendo mais do que um estilo – uma revolução” (MOREIRA, 2002, p. 162-4). Mais uma vez, o apoio de revistas de moda e a adoção do estilo por celebridades e estrelas do cinema garantiam o sucesso e o destaque às criações da Maison Chanel. “Em 1960 Chanel estava de volta ao seu trono, onde milagrosamente reinaria por mais onze anos. Tudo o que se via, o tempo todo, era Chanel. As mulheres americanas estavam sempre fazendo fila para comprar conjuntos Chanel” (KARBO, 2010, p. 205). O regresso de Chanel à alta costura não seria completo sem a sua linha de joias e de acessórios. Moreira (2002, p.167) relata que, sob sua direção, seus estilistas criaram grandes correntes de aros dourados, colares com pedras falsas e brincos em forma de botões feitos com pérolas ou com pedras coloridas engastadas em ouro. O símbolo zodiacal de Coco, o Leão, começou a aparecer nos brincos, botões e broches e, pela primeira vez, em 1925, apareceram as duas letras C entrelaçadas, símbolo criado por Chanel e com o qual ela passou à posteridade. Para Picardie (2011, p. 27), o logo criado por Chanel pode ter sido inspirado nos vitrais da abadia de Aubazine, pois, conforme a autora, “[...] os painéis formam um padrão geométrico, nós e laços estranhamente parecidos com o duplo C do logo da Chanel”.

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3 CONSUMO E GLOBALIZAÇÃO De acordo com Hall (2006), a interdependência global leva ao colapso de identidades e produz a fragmentação de códigos culturais, a multiplicidade de estilos, a ênfase no efêmero, no flutuante, no impermanente, na diferença e no pluralismo. Quanto mais a vida social é mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas, de tempos, lugares, histórias e tradições específicas. Uma marca de origem francesa como a Chanel, por exemplo, pode ser encontrada em países de todo o mundo, sendo objeto de desejo e compartilhada por pessoas de poderes aquisitivos diferenciados. As lojas da marca podem ser encontradas no Japão e nos países árabes. E a marca dos CC entrelaçados é exibida tanto em lojas exclusivas na capital francesa como em bancas do “camelódromo” em Porto Alegre, como aqui registrado. No interior do discurso do consumismo global, conforme Hall (2006), as diferenças e as distinções culturais, que definiam as identidades, ficam reduzidas a uma espécie de língua franca internacional ou de moeda global, devido à “homogeneização cultural” (HALL, 2006). Mulheres de todo o mundo cedem à moda, utilizando estilos de vestir identificados com a roupa ocidental, entre os quais o estilo criado por Gabrielle Chanel e vários dos ícones dessa marca, como as pérolas e camélias. O perfume é outro e, talvez, o mais poderoso artigo da Maison Chanel, que une mulheres de todo o mundo sob uma fórmula rica e enigmática. Em A globalização imaginada, Canclini defende que empresários e políticos interpretam a globalização como a convergência da humanidade rumo a um futuro solidário, enquanto críticos do processo o veem como um meio de homogeneização e de anulação da diversidade cultural. Diante dessa problemática, o autor afirma ser necessário repensar como fazer arte, cultura e comunicação, sem desconhecer que as indústrias de luxo, moda e cinema reforçam mitos e estilos que contribuem para a difusão de identidades e marcas, como ocorreu no cinema, com filmes como Coco antes de Chanel e Igor Stravinsky e Coco Chanel. Essas duas narrativas fílmicas reforçam a grife Chanel, e a marca global também faz despertar o interesse pelos dois títulos. Conforme Canclini (2007), a globalização atua por meio de estruturas institucionais, organismos de toda escala e mercados de bens materiais e simbólicos mais difíceis de identificar e controlar do que no tempo em que as economias, as comunicações e as artes operavam

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sempre dentro de um horizonte nacional. A globalização se apresenta, segundo o autor, como um objeto fugidio e não-trabalhável, e os agentes que a administram também a descrevem por meio de narrações e metáforas. Uns e outros invocam a necessidade de criar uma nova cultura do trabalho, do consumo, do investimento, da publicidade e da gestão dos meios informáticos e de comunicação (CANCLINI, 2007). Ao abordar as consequências da globalização, Canclini afirma que os processos culturais aproximam ou afastam indivíduos e grupos e se refletem sobre o modo como identidades são concebidas, aceitas ou rejeitadas. Todavia, mesmo em espaços onde identidades múltiplas parecem incompatíveis, os negócios e os intercâmbios midiáticos não deixam de aumentar. Assim, para o autor, onde a globalização aparece mais claramente é no mundo audiovisual: música, cinema, televisão e informática vêm sendo reordenados por umas poucas empresas, para serem difundidos em todo o planeta. A globalização, que acirra a concorrência internacional e desestrutura a produção cultural endógena, favorece a expansão de indústrias culturais com capacidade de homogeneizar e ao mesmo tempo contemplar de forma articulada as diversidades setoriais e regionais. Dessa maneira, as peças de entretenimento são produzidas por agentes distantes, também sem nome, como as logomarcas, cuja origem deixa de ter um centro e cujos produtos se espalham e estão disponíveis em locais múltiplos e diversos. Produtos inspirados no estilo Chanel são encontrados em mercados populares como o de Porto Alegre. Sua procedência e local de fabricação são incertos. Semelhante fenômeno pode ocorrer com os originais, que em parte já deixaram a mão de obra francesa para trás. Para Canclini (2007), a globalização pode ser vista como um conjunto de estratégias para realizar a hegemonia de conglomerados industriais, corporações financeiras, majors do cinema, da televisão, da música e da informática, para apropriar-se dos recursos naturais e culturais, do trabalho, do ócio e do dinheiro dos países pobres, subordinando-os à exploração concentrada com que esses atores reordenam o mundo na segunda metade do século XX. Mas a globalização é, também, o horizonte imaginado por sujeitos coletivos e individuais, isto é, por governos e empresas dos países dependentes, por produtores de cinema e televisão, artistas e intelectuais, que desejam inserir seus produtos em mercados mais amplos. O autor defende a ideia segundo a qual a arquitetura da globalização é a de sociedades que se abrem para a importação e exportação de bens materiais, que passam de um país para outro e também para a circulação de mensagens coproduzidas em vários países, expressando, no plano do simbólico, processos de cooperação e intercâmbio. Portanto, a globalização significa, para a maioria, aumentar o intercâmbio

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com os outros mais ou menos próximos, e ela serve para renovar a compreensão sobre suas vidas. Dessa forma Canclini (2007) não dissocia a globalização e a interculturalidade, visto que ambas sustentam a concepção de identidades plurais. A presença da grife Chanel em âmbito planetário é um elucidativo exemplo da disseminação de bens simbólicos por meio de estratégias econômicas e é, também, marca da interculturalidade e da abertura de grupos à adoção de outras e novas identidades.

4 O ESTILO CHANEL, DAS LOJAS DE DEPARTAMENTOS AO “CAMELÓDROMO” Karbo (2010) lembra que, durante quase 100 anos “Coco Chanel tem sido sinônimo de qualquer tipo de roupa que consideremos elegante – e que envolve muita coisa sobre a qual nunca pensamos”. A autora propõe uma experiência: Abra a porta do seu guarda-roupa e você encontrará o espírito de Chanel. Se você tem uma coleção de casaquinhos para vestir junto com seu jeans – a melhor forma de mostrar que você realmente se vestiu para a ocasião, em vez de simplesmente pegar uma roupa qualquer, lixar as unhas e sair de casa – isso é Chanel. Qualquer vestido preto é um descendente direto do modelo curto de seda que Chanel criou em 1926. Uma saia justa ou evasê logo acima do joelho? Chanel. Qualquer coisa de jérsei? Mais uma vez Chanel (KARBO, 2010, p. 11).

Ela lembra, ainda, que Chanel “nos deu bolsos de verdade, a calça boca-de-sino, o twin set, a cintura baixa, o casaquinho com cinto, o vestido curto para a noite, a roupa esportiva – inclusive calças de montaria – e a necessidade de uma profusão de acessórios em todas as ocasiões. Qualquer coisa que tenha linhas simples, deslize pelo corpo, seja fácil de vestir e permita o uso de muitas joias ou semijoias é Chanel” (KARBO, 2010, p. 11). De acordo com Karbo (2010), Chanel clássico é o icônico tailleur de tweed com trama frouxa (provavelmente em bege, azul marinho ou preto, as cores preferidas de Coco), com forro de seda acolchoada, botões dourados e saia simples com comprimento logo abaixo do joelho. “São as falsas joias, grandes e volumosas, os colares de correntes, e as bolsas quadradas de matelassê, tão clássicas que uma ilustração de uma delas poderia ser usada como símbolo internacional de bolsa. [...]. São os longos colares de pérolas, sempre parecendo implicar um risco de estrangulamento, e as camélias” (KARBO, 2010, p. 13).

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Em busca do “espírito de Chanel” e para verificar a globalização e presença de seu estilo, realizou-se uma pesquisa de campo, cujos registros fotográficos são apresentados a seguir. De caráter descritivo, a pesquisa exemplifica as ideias de Hall e Canclini sobre a globalização de empresas e marcas e limitou-se a lojas populares de rua do centro de Porto Alegre, como Renner, Marisa, C&A, além do camelódromo, tendo sido realizada na tarde de 2 de agosto de 2014. Inicialmente, observou-se que no Camelódromo, diversas marcas globais estão expostas, buscando atrair consumidores e criando um ambiente competitivo de logos e estilos:

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Figura 2 - O poder de penetração de grandes marcas e o apelo aos consumidores Fonte: Nelson Batista Zimmer


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Os dois Cs da grife Chanel estão impressos nos mais variados objetos, parecendo não haver limite para a imaginação dos criadores de desejo, que colocam a logomarca até mesmo em capas para celulares, como se verifica no Camelódromo. Também as pérolas e as bijuterias mostram a influência de Chanel, que abusava de adereços e ensinou mulheres do mundo todo a misturar joias verdadeiras e falsas no mesmo look.

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Figura 3 - Capas de celulares ostentam o logo Chanel ao lado do icônico Chanel Nº5 Fonte: Nelson Batista Zimmer


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Figura 4 - Pérolas e bijuterias atestam a influência de Chanel em lojas populares no centro de Porto Alegre Fonte: Nelson Batista Zimmer

As bolsas encontradas nas lojas pesquisadas denotam o estilo de Coco, seja no tamanho, ornamento ou acabamento que recebem. Outras características lembram as icônicas bolsas da Maison como o couro em matelassê, as correntes e os metais. Hoje, no mercado global,


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as bolsas Chanel, especialmente o modelo 2.55, pequena e com a frente em matelassê, inspiram diversas indústrias ao redor do mundo, uma vez que as consumidoras desejam produtos que se assemelhem aos objetos da grife lança modelos com novos acabamentos e materiais diferenciados, inovando sempre e surpreendendo. Até mesmo o tweed, usado nos tailleurs, já serviu de base para uma 2.55. A inspiração em Chanel indica um estilo clássico de se vestir, uma combinação de bom gosto e classe, mensagem que as Lojas Renner e o Camelódromo desejam transmitir às mulheres de Porto Alegre.

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Figura 5 - Bolsas pequenas e práticas com alças em correntes que reproduzem o estilo Chanel Fonte: Nelson Batista Zimmer


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Em sua trajetória, Chanel viu nos marinheiros do litoral francês a deixa perfeita para suas criações. Formas e cores inspiraram Coco, que descobriu, nas listras simples e articuladas, uma maneira de levar mais mobilidade, conforto e classe às mulheres. Azul e branco, junto com o preto e o creme, formam o espectro de cores desejado em todo o mundo e apresentado em roupas de lojas do Camelódromo e da Renner:

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Figura 6 - As listras e cores do estilo Chanel em lojas do Camelódromo e da Renner Fonte: Nelson Batista Zimmer

Outra importante peça que se tornou famosa em todos os grandes mercados consumidores foi a jacket em tweed. O casaco é um dos ícones da marca Chanel, tanto que ganhou, em 2013, uma exposição mundial que passou pela cidade de São Paulo. Denominada The Little Black Jacket, a exposição mostrava personalidades do mundo, artistas e modelos, todo que usavam a peça e posavam para Karl Lagerfeld.


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Figura 7 - Black jacket, ícone da grife, exposta em Malhas Daiane e Renner, no centro de Porto Alegre Fonte: Nelson Batista Zimmer

Ao conhecer o Duque de Westminster, Chanel introduziu o tweed em suas coleções. Este tecido, sob sua etiqueta, tornou-se referência entre as consumidoras atualmente, em especial entre as mulheres que exercem a função de executivas.

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Figura 8 - Similares do tweed encontrados em diversas lojas redes populares do centro de Porto Alegre Fonte: Nelson Batista Zimmer

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O consumismo e a homogeneização da ideia do que é elegante e luxuoso podem ser identificados como elementos que compõem a internacionalização e globalização de marcas da indústria de luxo, como a Chanel. Segundo Hall (2006), as diferenças e as distinções culturais, que definiam as identidades, estão hoje reduzidas a uma espécie de língua franca internacional ou de moeda global, e os meios de comunicação são parte importante desse processo de “homogeneização cultural” (HALL, 2006). A partir da difusão das propostas da moda pela publicidade, mulheres de todo o mundo são impulsionadas e seduzidas a vestir o estilo criado por Gabrielle Chanel e a se valer dos ícones de sua marca, como as pérolas e as camélias. Das joalherias às lojas do “camelódromo”, as roupas, as bolsas, as bijuterias, inspiradas em Coco Chanel, indicam uma padronização do gosto e da ideia do que é belo e luxuoso.

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As ruas do mercado popular de Porto Alegre mostram, de acordo com os autores aqui abordados, o quão globalizada e desejada pode ser uma grife. Se a própria estilista não se importava com cópias e nelas visualizava uma forma de disseminação de seu estilo, o que se verifica hoje é a pulverização dos dois Cs que – legítimos ou não – seduzem as mulheres em bancas e lojas populares, voltadas para as classes de menor poder aquisitivo. O estilo de Gabrielle Chanel faz brilhar a alta-joalheria na exclusiva loja na Montaigne, em Paris, porém esse brilho ultrapassa fronteiras, risca bordas para fora de seus mapas e domina continentes inteiros. Avassalador, o estilo Chanel cria e recria clássicos, produz mercados e aquece-os com artigos que lembram os ensinamentos básicos de moda da estilista. Ela seduz mulheres de todas as partes e é eternizada em seus produtos globais: bolsa 2.55, vestido preto, tailleur, Chanel Nº5 são amostras dos produtos dessa empresa gigante que domina, ao lado de poucas, o cenário mundial de moda. Vestir, calçar, maquiar-se, perfumar-se e adequar-se ao estilo Chanel pode custar milhares de euros, mas eleva, no mundo do consumo, a mulher ao patamar pelo qual mademoiselle tanto trabalhou. O objetivo dela foi alcançado, já que nem só as mais abastadas fazem o nome Chanel circular no minúsculo globo em que mercadorias se espalham na atualidade. A globalização cria esferas impensadas de consumo e de identidades que se constituem por meio dessa prática e, segundo Canclini, o consumo classifica socialmente os indivíduos. Na cidade de Porto Alegre, o estilo de Chanel pode ser encontrado nas mais diferentes lojas populares do centro da cidade. As pérolas, os tecidos similares ao tweed, as bolsas em estilo matelassê, as black jackets, as blusas listradas, as combinações de preto com branco, azul com creme, os vestidos pretos, ajudam a sustentar o mito Chanel e reforçam o desejo de consumo de mulheres que querem se situar na camada dos socialmente incluídos. Quando criou as icônicas peças que carregam sua marca, Coco talvez não tivesse ideia do quão global seria um dia, do quanto suas roupas seriam referência para outras marcas. No entanto, a permanência de Chanel já vinha inscrita em suas criações, voltadas para o conforto, executadas com perfeição e sustentadas por uma elegância refinada, o que lhes garante uma contemporaneidade inabalável.

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REFERÊNCIAS CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. ______. A globalização imaginada. São Paulo: Iluminuras, 2007. CHARLES-ROUX, Edmonde. A era Chanel. São Paulo: Cosac Naify, 2008. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. KARBO, K. O evangelho de Coco Chanel. São Paulo: Seoman, 2010. MOREIRA, Elena. Chanel: Revolucionaria de la moda. Buenos Aires: Longseller, 2002. PICARDIE, Justine. Coco Chanel: A vida e a lenda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. PETIT, F. Marca e seus personagens. São Paulo: Editora Futura, 2003. VALOIS, Carla. Bilionários da Moda. FFW – Fashion Forward, 13 set. 2012. Disponível em: <http://ffw.com.br/noticias/moda/bilionarios-damoda/Bilionários da moda>. Acesso em: 30 jul. 2014. WALLACH, Janet. Chanel, seu estilo e sua vida. São Paulo: Mandarim, 1999.

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A DOCÊNCIA NO ENSINO SUPERIOR: DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE E A EDUCAÇÃO PARA HUMANIZAÇÃO

A DOCÊNCIA NO ENSINO SUPERIOR: DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE E A EDUCAÇÃO PARA HUMANIZAÇÃO 150

Eliane Davila dos Santos

Mestranda em Processos e Manifestações Culturais, Universidade Feevale. E-mail: elianedavila22@gmail.com.

Ernani Cesar de Freitas

Doutor em letras (PUCRS), com Pós-Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (PUC-SP/LAEL); professor permanente do Mestrado em Processos e Manifestações Culturais, Universidade Feevale. E-mail: ernanic@feevale.br.


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A DOCÊNCIA NO ENSINO SUPERIOR: DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE E A EDUCAÇÃO PARA HUMANIZAÇÃO

1 INTRODUÇÃO A sociedade contemporânea proporciona uma vivência constante de transição de paradigmas e as certezas que pautavam nossos pensamentos e ações se modificam constantemente. Nesse sentido, o tema desse estudo dá ênfase às questões sobre docência no ensino superior, delimitado à análise da importância do professor universitário na sociedade contemporânea. Este estudo é justificado pela importância do docente do ensino superior na formação do indivíduo como um todo, evidenciando que a educação vai muito além do transmitir informações. Pensar as ações docentes no ensino superior contribui para diminuir a distância entre a pedagogia e práticas diárias. Além disso, acredita-se que o docente de ensino superior, ao formar pessoas mais críticas, possibilitará que essas possam agir como indivíduos mais reflexivos, capazes de sobressair-se sobre as novas tecnologias e ideologias impostas pela sociedade contemporânea. Esse estudo é de relevância para academia, uma vez que traz elementos importantes para uma discussão acerca de uma educação voltada para a humanização. A questão norteadora surge para que pensemos sobre quais caminhos que a docência de ensino superior está tomando frente à sociedade contemporânea: que tipo de docência se constrói nas universidades do século XXI. Dessa forma, o objetivo do estudo é refletir sobre os desafios da docência no nível superior, inseridos no contexto social contemporâneo. A discussão é estabelecida a partir do filme Sociedade dos Poetas Mortos (1989), que apresenta e diferencia dois modelos de educação, ou seja, o tradicional e o contemporâneo, destacando a importância da ação do professor na formação de indivíduos críticos e reflexivos. Como marco teórico para compor os estudos, utilizam-se as reflexões sobre a docência de ensino superior, apresentadas por Pimenta e Anastasiou (2010), Chauí (1999, 2001); Becker (2012) e como fonte da área da educação, Freire (2001). A metodologia utilizada é de uma pesquisa exploratória, com abordagem qualitativa. Para melhor organização da pesquisa, as seções estão assim dispostas: primeiramente, priorizam-se as questões sobre a problematização educação no ensino superior. Na próxima seção, mencionam-se as questões sobre o docente e os novos caminhos para a educação no ensino superior. Segue-se o estudo com a apresentação das questões metodológicas e, em seguida, com a seção de resultados sobre a reflexão do corpus escolhido para análise, ou seja, o filme Sociedade dos Poetas Mortos (1989).

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2 PROBLEMATIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO NO ENSINO SUPERIOR A educação, conforme Pimenta e Anastasiou (2010), está sendo encarada como um bem de consumo, ou seja, é possível dizer que a educação é um meio para a sobrevivência financeira e social. A educação é uma unanimidade na sociedade contemporânea. Nos momentos que antecedem as eleições para governantes, nos debates e nas propostas dos candidatos de todos os partidos, a educação aparece como prioridade. Também na imprensa e na mídia em geral, os mais diferentes sujeitos sociais se manifestam em sua defesa. (PIMENTA; ANASTASIOU, 2010, p. 95).

A sociedade, de uma forma geral, acredita que a educação seja importante e necessária, porém os discursos que surgem sobre a possibilidade de traduzir a educação como uma oportunidade de desenvolvimento e de igualdade social ficam, em sua maioria, somente na retórica. É nesse ambiente ambíguo de palavras e conceitos que a educação está inserida. As lacunas existentes entre o valor da educação e como ela é representada na prática dificultam o processo de ensino-aprendizagem e a valorização do professor. Esse contexto ilustra o ensino superior como uma atividade complexa e inerente à sociedade humana. Segundo Pimenta e Anastasiou (2010), a educação é um processo natural que ocorre na sociedade pela ação de seus agentes sociais como um todo. [...] a educação está presente em casa, na rua, na igreja, nas mídias em geral e todos nós nos envolvemos com ela, seja para aprender, para ensinar e para aprender e ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para conviver todos os dias misturamos a vida com educação. Com uma ou várias. Não há uma forma única nem um único modelo de educação; a escola não é o único lugar em que ela acontece; o ensino escolar não é a única prática, e o professor profissional não é seu único praticante. (BRANDÃO, 1981, p. 64).

Na busca pela humanização da educação, a reflexão sobre as instituições do ensino superior criam abismos entre a finalidade da instituição enquanto instituição social, e as esperadas pelo Estado Nacional de caráter neoliberal, segundo Pimenta e Anastasiou (2010). No contexto contemporâneo, Chauí (1999) revela que a universidade vem perdendo a característica secular de instituição social e tornando-se uma entidade administrativa, ou seja, atuando como um conjunto de regras e normas desprovidas de conteúdos particulares, formalmente aplicados a todas as manifestações sociais. Dessa forma, a universidade está em posição oposta a de uma instituição social que pensa a sociedade como sua referência.

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Ainda segundo Chauí (1999), esse distanciamento entre a universidade social e a administrativa iniciou com a universidade funcional, dos anos 70 chamada de funcional, onde o prestígio social era atingida pela graduação universitária e por propiciar rápida formação de mão de obra para o mercado. Nos anos 80, surgiu a universidade dos resultados, onde foram agregados dois novos componentes da etapa anterior: a expansão da rede privada de ensino superior e a parceria entre as universidades e as empresas. Nos anos 90, a universidade era chamada de operacional, caracterizando-se como administrativa, deixando de olhar para o mercado e voltando-se para si mesma. Nesse sentido, a universidade passa a consumir em vez de realizar o trabalho de reflexão, conforme Chauí (2001). Nesse contexto, a partir dos anos 90, a formação dos profissionais nessa universidade operacional resume-se à transmissão rápida de conhecimento, habilitação rápida para o mercado de trabalho, levando a universidade somente ao treinamento e adestramento. Nesse sentido, é possível dizer que “não se diferencia a esfera do saber à do conhecimento. Ignora o trabalho do pensamento; administra o conhecimento, reduzindo-o, dividindo-o” (PIMENTA; ANASTASIOU, 2010, p. 170). O método tradicional de ensino configura um campo com característica de trabalho oposta à desejada pela universidade que procura ser uma instituição social. [...] não forma nem cria pensamento, despoja a linguagem de sentido, densidade e mistério, destrói a curiosidade e admiração que levam a descoberta do novo, anula toda a pretensão de transformação histórica como ação consciente dos seres humanos em condições materialmente determinadas. (CHAUÍ, 1999, p. 222).

À luz de Pimenta e Anastasiou (2010), à ação no ensino de graduação, essa ideia de universidade organizacional, se faz presente por meio da força do modelo metodológico tradicional, da manutenção da vida moderna e de um saber escolar tomado como inquestionável, de um processo predominantemente expositivo pelo professor e literalmente passivo por parte do aluno. “As bases são fundamentadas na memorização, e das próprias relações individualistas, competitivas e de não comunicação entre docente e alunos” (PIMENTA; ANASTASIOU, 2010, p. 171). Considerando os apontamentos acerca da atual situação da educação superior, a continuação, apresenta-se a importância do docente para a construção de um novo caminho que considere a educação como um processo de humanização.

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3 O DOCENTE E A CONSTRUÇÃO DE NOVOS CAMINHOS PARA A EDUCAÇÃO NO ENSINO SUPERIOR Frente às questões abordadas na seção anterior, é possível afirmar que é em um campo ambíguo das palavras e dos conceitos que a educação está inserida. Dessa forma, é de grande valia a reflexão sobre os problemas enfrentados pelos docentes de ensino superior e a busca de uma mudança que garanta que [...] “o aluno se aproprie do instrumental científico, técnico, tecnológico, de pensamento, político, social e econômico, de desenvolvimento cultural, para que sejam capazes de pensar e gestar soluções” (PIMENTA; ANASTASIOU, 2010, p. 97). Dentro de uma proposta de mudança, acredita-se que o docente deve trabalhar as informações com a perspectiva de transformá-la em conhecimento, é uma tarefa da educação renovadora. Realizar as análises críticas das informações, relacionando à constituição da sociedade e de seus valores, conforme Pimenta e Anastasiou (2010), é trabalho de professor e não de monitor. Acredita-se que, para se formar os jovens para o mundo do trabalho, as instituições educativas devem ter a tarefa de prepará-los de forma que saibam criar, pensar, propor soluções, conviver em equipes. O que se percebe é que a educação passa por uma série de transformações e a preocupação com a formação desses jovens coloca o docente em um papel de relevância na constituição de uma educação para humanizar. Becker (2012) converge com Pimenta e Anastasiou (2010) quando revela que o professor deve decidir que tipo de aluno ele quer ter, ou seja, um indivíduo dócil, cumpridor de ordens ou um indivíduo pensante, crítico e que se abre ao diálogo com seu entorno social. A sala de aula é um lugar de construção do conhecimento em que os alunos e o professor são atores responsáveis pela construção do saber. A proposta de rompimento do paradigma atual da educação de ensino superior, conforme Pimenta e Anastasiou (2010) denota que a profissão docente apresenta várias marcas históricas como a desvalorização e proletarização do professor, exercício eminentemente feminino, com caráter sagrado que vem do berço e não pode ser negado a ninguém. Veiga (2006) afirma ser possível transformar e construir uma educação superior baseada no equilíbrio entre o conhecimento técnico e a vocação humanística. A docência é trabalho dos professores e as funções desses ultrapassam as tarefas de ministrar aulas. A importância do docente exige a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Formar professores universitários implica compreender o papel

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da docência, propiciando uma profundidade científico-pedagógica, que os capacite para enfrentar a sociedade contemporânea. O professor universitário necessita “enfrentar questões fundamentais da universidade social como instituição social, que implica as ideias de formação, reflexão e crítica.” (VEIGA, 2006, p. 3). O docente do ensino superior, muitas vezes, assume a docência como uma atividade para obtenção de renda, e não como uma profissão de escolha, eles próprios não valorizam uma formação profissional. Isso decorre, na maioria das vezes, pela falta de estrutura de carreira, das condições de trabalho e dos salários baixos, conforme comentam Pimenta e Anastasiou (2010). A centralidade das pesquisas acerca do docente universitário o coloca como sujeito e intelectual, capaz de produzir conhecimento, de participar de decisões, da gestão das escolas e do sistema, contribui para novas possibilidades de reinvenção da universidade. A valorização desse profissional com jornadas de trabalho e salários compatíveis contribuem para um exercício crítico e reflexivo na universidade. No Brasil, as ações do governo, de acordo com Pimenta e Anastasiou (2010), ainda continuam nos discursos, ou seja, na retórica. Ao lado do movimento de valorização do profissional de ensino superior existe uma tentativa de deterioração do profissional docente, mediante uma política de competências, que simplifica os processos formativos à medida que define essa profissão como amplo conjunto de habilidades técnicas a serem adquiridas. Mas ter competência é diferente de ter conhecimento e informação sobre o trabalho, sobre o que faz. Conhecer implica visão de totalidade, consciência ampla das raízes, dos desdobramentos e implicações do que se faz, para além da situação; consciência das origens, dos porquês e das finalidades. Portanto, competência pode significar ação imediata, refinamento individual e ausência do político, diferentemente da valorização dos conhecimentos em situação, mediante o qual o professor constrói conhecimento (PIMENTA; ANASTASIOU, 2010, p. 134).

Pinto (2010) complementa que, quando falamos em competência, classificamos quem tem e quem não tem. Os planos institucionais, que possuem esses princípios, permitem elencar diversas competências básicas a serem adquiridas que, no caso da docência superior, estão em consonância com as políticas educacionais. A competência situa o fracasso ou o sucesso do professor individualmente, ou seja, aquele que é competente e o que não é competente. São ignoradas as condições materiais e afetivas para essa competência, bem como são ignorados os preceitos classificatórios que possibilitam a distinção entre um e outro, competente ou não competente. “Ser competente é sempre o resultado de um olhar que estabelece prioridades ao olhar.” (PINTO, 2010, p. 114).

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Freire (2001) acredita que ensinar é criar alternativas para que o educando possa construir seu conhecimento. Seus ensinamentos nos dizem que o professor e o aluno não estão separados na educação. Para o autor, a visão de educação de libertação é construída pelos próprios sujeitos. Dessa forma, ensinar e aprender tem a ver com esforço crítico do professor em desvelar a compreensão de algo, e o empenho do aluno em ir entrando como sujeito em aprendizagem. O que segue a partir da próxima seção são as questões metodológicas do estudo que dá relevo aos modelos de educação alicerçados em um ambiente tradicional e contemporâneo. O corpus a ser analisado será o filme Sociedade dos Poetas Mortos (1989).

4 METODOLOGIA A metodologia do estudo segue os postulados de Prodanov e Freitas (2013), sendo utilizada a pesquisa exploratória, mediante estudo de caso que aplica a abordagem qualitativa. O texto segue o seguinte movimento metodológico: primeiramente apresenta-se um breve resumo da película para contextualização do leitor. A partir do filme, Sociedade dos Poetas Mortos (1989), prioriza-se a análise do recorte para retratar e diferenciar dois modelos de educação - o tradicional e o contemporâneo – para destacar a importância da ação do professor, enquanto ser preocupado com uma educação humanizadora. Para isso, considera-se o posicionamento apresentado por Pimenta e Anastasiou (2010), Chauí (1999, 2001), Becker (2012) e Freire (2001) sobre a temática da docência no ensino superior, delimitado a importância do professor universitário na sociedade contemporânea. Dessa forma, o estudo do corpus é estruturado a partir das categorias de análise: a docência no ensino superior, delimitado à relevância do professor universitário na sociedade contemporânea. A primeira etapa metodológica vislumbra a contextualização do corpus priorizando informar ao leitor sobre a história apresentada no filme e o ambiente em que se passa essa análise fílmica. A próxima etapa mobiliza-se a categoria da docência universitária, delimitado à importância do professor universitário a partir da análise fílmica e do marco teórico já mencionado. Por último apresenta-se um quadro resumo que contempla os resultados da análise proposta no estudo.

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5 RESULTADOS E ANÁLISE Nessa etapa, apresenta-se a contextualização do filme Sociedade dos Poetas Mortos (1989).

5.1 CONTEXTUALIZAÇÃO DO FILME SOCIEDADE DOS POETAS MORTOS

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Figura 1 - Obra Fílmica Fonte: Youtube1 (2014) 1

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=4PRwJEMTnKE>. Acesso em: 24 nov. 2014.


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Sociedade dos Poetas Mortos é um filme americano de 1989, com direção de Peter Weir. Robin Williams se destaca no papel do professor John Keating. A obra fílmica apresenta dois modelos de educação: o tradicional e o contemporâneo, que revela uma realidade que se passa em uma escola que utiliza a forma de internato, chamado Welton, para alunos do sexo masculino. A escola tem uma educação muito rígida e tradicional, que valorizava a tradição, honra, disciplina e excelência. Pensando além dessa visão tradicional de educação, o professor John Keating defende o ensino com base no próprio processo de vida. O filme possui cenas nas quais o professor utiliza espaços não convencionais para desenvolver suas atividades e encoraja os alunos a subirem nas mesas, arrancarem páginas de seus livros, ou seja, o educador abandona o currículo padronizado pela entidade de ensino e releva aos alunos que podem pensar por si próprios.

5.2 O FILME SOCIEDADE DOS POETAS MORTOS: REFLEXÕES SOBRE A DOCÊNCIA E O PROFESSOR Nessa etapa, a análise faz-se a partir do que foi depreendido no filme com o posicionamento apresentado por Pimenta e Anastasiou (2010), Chauí (1999, 2001), Becker (2012) e Freire (2001) sobre a temática da docência no ensino superior, delimitado a importância do professor universitário na sociedade contemporânea. A tomada do corpus para análise prioriza o encontro de elementos que ajudam a refletir sobre a docência e a atuação do professor no processo de construção de uma escola mais humanizada. Os paradigmas e as considerações apresentadas pelos autores auxiliam a perceber os dilemas em que a educação e o professor estão inseridos na sociedade contemporânea. Na análise do filme Sociedade dos Poetas Mortos (1989), evidencia-se que o modelo de educação apresentado pela academia Welton, onde se passa a narrativa, é aquele marcado pelo modelo de concepções tradicionalistas, que segue uma organização autoritária, individualista e com a centralização do poder na escola. O aluno, nesse meio, é considerado como um objeto a ser moldado. O professor é aquele que transmite apenas o conhecimento ao aluno e não se preocupa em fazer com que o mesmo pense; basta que o aluno siga os princípios da tradição, honra, disciplina e excelência, conforme visualizamos no filme Sociedade dos Poetas Mortos (1989).

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A menção que Chauí (1999) faz à reflexão de que a educação vem perdendo a característica de universidade social pode ser evidenciado na película, uma vez que a academia Welton, apresenta um modelo de docência puramente administrativo, em que o professor dirige o processo de ensino e o aluno atua como simples receptor de conhecimento e obediência ao modelo. Pimenta e Anastasiou (2010) reforçam que a educação deve ser considerada como um processo natural e não rígido. Esse método prejudica, de forma considerável, os alunos que entram em um processo de alienação, aceitando o mundo sem questionar. A ideia de aceitar tudo que é imposto contribui para a formação de sociedade sem pensamento crítico. Na obra fílmica analisada, a academia Welton era uma escola somente para rapazes, em meados de 1959, onde os pais decidiam qual carreira seus filhos deveriam seguir. Após mais de 50 anos, muitas escolas ainda se encontram nessas mesmas condições de ensino tradicional que não levam o aluno a pensar. Pimenta e Anastasiou (2010), juntamente com Becker (2012) afirmam que o professor deve decidir que tipo de cidadão ele quer formar: um indivíduo dócil, cumpridor de ordens ou um indivíduo pensante, crítico e que se abre ao diálogo com seu entorno social. A sala de aula é um lugar de construção do conhecimento em que os alunos e o professor são atores responsáveis pela construção do saber. No filme Sociedade dos Poetas Mortos (1989), segundo Chauí (2001), é possível dizer que a academia Welton, nada mais é do que uma instituição operacional, centrada em si mesmo. Uma instituição fechada, consumista e com uma transmissão rápida de conhecimento. Fica evidente que “não se diferencia a esfera do saber a do conhecimento” (PIMENTA; ANASTASIOU, p. 170). As práticas individuais levam a uma falta de comunicação entre o professor e o aluno e o abismo entre os dois caracteriza a forma do modelo tradicional de ensino. Seguindo na análise, é possível destacar que o modelo contemporâneo defendido na película é apresentado pelo professor John Keating, que foi ex-aluno da academia. A visão de docência, nada conservadora, contribui para a eliminação de estereótipos e vislumbra um novo caminho que considera a educação como uma forma de humanização, conforme Pimenta e Anastasiou (2010). Ao introduzir novas metodologias de ensino, o professor John Keating incentiva os alunos a seguirem seus próprios caminhos. Freire (2001), em seus postulados, acredita que os caminhos da educação devem passar por um processo de libertação. O aluno é sujeito em seu aprendizado. Dessa forma, a educação como humanização pode realmente acontecer. De acordo com Pimenta e Anastasiou (2010), a função do professor é de fundamental importância para que se consiga preparar os jovens para o mercado de trabalho, fazendo-o pensar, criar, propor soluções e conviver em equipes. O professor John Keating, personagem principal

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do filme Sociedade dos Poetas Mortos (1989), defende um modelo de ensino que não é regido, priorizando o professor, mas que mantém o aluno no centro do processo. Ele deseja muito mais que cumprir o compromisso de vencer o conteúdo, uma vez que busca estimular o aluno a pensar por si mesmo. Ele dá condições para que esse aluno possa enfrentar a realidade da sociedade de sua época. A atitude do professor em perceber a importância do outro no processo de ensino e aprendizagem é amparado por Freire (2001), na sociedade contemporânea. A dificuldade do professor John Keating se assemelha ao cenário que se vivencia na sociedade contemporânea. Pimenta e Anastesiou (2010) comentam que as questões de competência do professor, que são defendidas nas universidades, reduzir-lhe-iam ao fracasso ou ao sucesso. São ignoradas as questões materiais e afetivas e a construção do conhecimento. É possível afirmar que, frente às análises do filme Sociedade dos Poetas Mortos (1989) que existem dois modelos de docência: o tradicional, que é valorizado e mantido pela escola do filme e o libertador, incentivado pelo professor Keating. Acredita-se que a escolha do perfil do professor, diante do sistema contemporâneo, pode contribuir, como na história do filme, para a formação de alunos críticos e reflexivos ou na alienação destes. Para que se preparem indivíduos capazes de atuar na sociedade, de maneira a transformá-la, é preciso que os professores sejam protagonizadores no processo de humanização. É necessário que os docentes sejam agentes transformadores, auxiliando no desenvolvimento de cidadãos com senso crítico, éticos e atuantes na sociedade, conforme Pimenta e Anastasiou (2010).

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5.3 APRESENTAÇÃO DE QUADRO RESUMO Podemos depreender, no Quadro 1, que as análises feitas, a partir do filme Sociedade dos Poetas Mortos (1989), apresentam as seguintes informações mediante os recortes que priorizaram temática da docência no ensino superior, delimitado a importância do professor universitário na sociedade contemporânea. Filme sociedade dos Poetas Mortos (1989)

EDUCAÇÃO TRADICIONAL

EDUCAÇÃO CONTEMPORÂNEA

Escola

Rígida e tradicional; valores: tradição, honra, disciplina e excelência;

Flexível; abandona o currículo padronizado; humanizadora.

Perfil do professor

Transmissor de conhecimento; não se preocupa em fazer o aluno pensar; professor dirige o processo de ensino.

Mantém o aluno no centro do processo de construção do saber; protagonista no processo de humanização dos alunos.

Aluno

Um objeto a ser moldado; receptor de conhecimento; aceita o mundo sem questionar;

Sujeito do processo de aprendizagem; ser pensante, crítico e preparado para atuar na sociedade.

Quadro 1 – Quadro resumo Fonte: Elaborado pelos pesquisadores (2014)

O filme Sociedade dos Poetas Mortos (1989) apresenta dois modelos de docência; uma alicerçada em um modelo tradicional e outra fundamentada com um modelo contemporâneo. A escola, na percepção tradicional dá relevo à uma postura rígida, valorizando a tradição, a honra, a disciplina e a excelência; o perfil do professor segue um modelo apenas de transmissor de conhecimento e o aluno aceita o mundo

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sem questionamentos. A escola na visão contemporânea prima por uma educação mais flexível e humanizadora; o professor mantém o aluno no centro do processo de construção do saber, ou seja, o aluno é sujeito do processo de aprendizagem.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Esse estudo tematizou as questões sobre docência no ensino superior, delimitado à análise da importância do professor universitário na sociedade contemporânea. Além disso, a discussão estabelecida a partir do filme Sociedade dos Poetas Mortos (1989) permitiu a reflexão sobre os desafios da docência no nível superior, inseridos no contexto social contemporâneo. A questão norteadora contribuiu para o questionamento sobre quais caminhos a docência de ensino superior está tomando frente à sociedade vigente e que tipo de docência se construiu nas universidades. Acredita-se que o objetivo foi alcançado, uma vez que fica evidente que a docência no ensino superior enfrenta muitos desafios na sociedade contemporânea. A análise do corpus mostrou que existem dois modelos educacionais: o tradicional e o contemporâneo, sendo o primeiro um processo que pode alienar os indivíduos e outro, que pode libertar as pessoas. O estudo do filme Sociedade dos Poetas Mortos (1989) não teve a pretensão de ser exaustivo e conclusivo, pois priorizou as reflexões sobre o sistema de ensino na sociedade do século XXI, considerando que a sociedade contemporânea apresenta muitas semelhanças com a escola tradicional do filme. As condutas sociais, o método de ensino, com fórmulas prontas, direcionam a docência à formação de alunos que não sejam críticos, incapazes de se sobressair sobre as novas tecnologias e às ideologias impostas pela sociedade. Ressalta-se a importância do docente no ensino superior, na construção de uma educação humanizadora e na formação de indivíduos críticos e reflexivos. As contribuições do estudo apontam para a crença de que seja possível transitar de uma docência tradicional para uma docência contemporânea. Uma docência que acompanhe as transformações da sociedade e não que se distancie dela. Essas transformações devem contar com alunos participativos no processo educativo e com professores - como o personagem do filme John Keatin - que estejam dispostos a romperem seus próprios paradigmas.

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Como um todo, esta pesquisa apresenta limitações. O estudo sobre a docência no ensino superior é um assunto complexo que sofre influência cultural, econômica e governamental. A análise fílmica contribuiu com resultados significativos, porém, admite-se ser considerável o avanço dos estudos, envolvendo outras análises fílmicas e pesquisas empíricas nas universidades brasileiras. Nesse sentido, acredita-se que o cenário em que as nossas universidades estão inseridas requer do professor uma atuação transformadora, na qual os docentes estejam dispostos a “quebrarem os velhos paradigmas” na educação. Cada vez mais, ao refletir sobre o tema, acreditase que as mudanças vão muito além de inovar. É preciso reinventar e recriar os métodos para que as práticas pedagógicas reflitam em uma educação humanizadora, e que essa seja a vivência na maioria das universidades brasileiras.

FICHA TÉCNICA Nome Original: Dead Poets Society Versão em Português: Sociedade dos Poetas Mortos Duração: 129 min. Direção: Peter Weir Roteiro: Tom Schulman Música: Maurice Jarre Fotografia: John Seale Gênero: Drama Ano: 1989 Estúdios: Touchstone Pictures

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Elenco Principal: Robin Williams - John Keating Robert Sean Leonard - Neil Perry Ethan Hawke - Todd Anderson Josh Charles - Knox Overstreet Gale Hansen - Charles Dalton Dylan Kussman - Richard Cameon Allelon Ruggiero - Steven Meeks Norman Lloyd - Mr. Nolan James Waterston - Pitts


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REFERÊNCIAS BECKER, Fernando. Educação e construção do conhecimento. 2.ed. Porto Alegre; Penso, 2012. BRANDÃO, Carlos R. A. A educação como cultura. São Paulo: Brasiliense, 1981. CHAUI, Marilena de Souza. A Universidade em ruínas. In: TRINDADE, H (Org). Universidade em ruínas na república dos professores. Petropólis: Vozes; Porto Alegre: CIPEDES, 1999. ______. Escritos sobre a universidade. São Paulo: UNESP; 2001. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 25. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001. SANTOS, Mariangela Santana Guimarães. Saberes da prática na docência do ensino superior: análise de sua produção nos cursos de licenciaturas da UEMA – Teresina, 2010. 225f. Il Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Piauí. Disponível em: <http://www.ufpi.br/subsiteFiles/ppged/arquivos/files/dissertacao/2010/disserta_Mariangeal_Santana.pdf>. Acesso em: 24 nov. 2014. PIMENTA, Selma Garrido; ANASTASIOU, Léa das Graças Camargos. Docência no ensino superior. 4. ed. São Paulo, SP: Cortez, 2010. PINTO, Maria das Graças Gonçalves Pinto. O lugar da prática pedagógica e dos saberes docentes na formação de professores. Acta Scientiarum Education. Maringá, v. 32, n. 1, p.111-117, 21o PRODANOV, Cleber Cristiano; FREITAS, Ernani Cesar de. Metodologia do trabalho científico: métodos e técnicas da pesquisa e do trabalho acadêmico. 2. ed. Novo Hamburgo: Feevale, 2013. Disponível em: <http://docente.ifrn.edu.br/valcinetemacedo/disciplinas/metodologia-dotrabalho-cientifico/e-book-mtc>. Acesso em: 24 nov. 2014. VEIGA, Ilma Passos Alencastro. Docência universitária na educação superior. 2006. Disponível em: <http://www.unochapeco.edu.br/static/ data/portal/downloads/2130.pdf>. Acesso em: 19 nov. 2014.

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WEIR, Peter. A sociedade dos poetas mortos. [filme] Touchstone Pictures ,1989. Disponível em: <http://www.youtube.com/ watch?v=4PRwJEMTnKE>. Acesso em: 24 nov. 2014.

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“CENAS DA VIDA”: MEMÓRIA, TEATRO E ENSINO DE HISTÓRIA

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Thiago Silva

Ator e Diretor Teatral. Mestre em Processos e Manifestações Culturais pela Universidade Feevale. Graduado em História pela mesma Universidade. Acadêmico de Artes Cênicas (Ênfase em Direção Teatral) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e bolsista de Pesquisa em Escrita Dramatúrgica pela mesma Universidade. Professor de História e Teatro. E-mail: thiagocenico@gmail.com.

Cristina Ennes da Silva

Doutora em História pela PUC-RS. Diretora do Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes (ICHLA) da Universidade Feevale. Professora do curso de História e do Mestrado em Processos e Manifestações Culturais da mesma Universidade. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Memória e Cultura da Comunidade e orientadora do presente estudo. E-mail: crisennes@feevale.br.


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1 INTRODUÇÃO Em uma tarde chuvosa de uma segunda-feira aparentemente prosaica, lanço o seguinte questionamento para meus alunos inquietos, estudantes de um sexto ano do Ensino Fundamental: “O que vocês entendem por Cultura?” Primeiramente, eles param e me observam curiosos, tentando apreender o que está por vir. E, como em um enredo fílmico de suspense, olham-se buscando significados para a pergunta e a sua subsequente resposta. Em seguida, rapidamente sem hesitar, os alunos dirigem suas múltiplas respostas, que chegam até mim por todos os lados da sala de aula que passa, então, a ser estremecida pelo debate: “Professor, cultura está nos museus”; “Cultura é ópera, música, filmes, essas coisas”; “Obra de arte é cultura”; “Livros é cultura”; “Quem é inteligente tem cultura, professor tem cultura”; “quem tem dinheiro tem mais cultura”. Dinheiro, fragmentos artísticos específicos, conhecimento científico, mais e menos cultura. Se nos reportarmos a estas repostas, dadas por alunos de 11 a 12 anos de idade e estudantes de uma escola pública no interior do Rio Grande do Sul, veremos que estão incursas nestas considerações acerca do significado do termo Cultura, variáveis de um sentido artístico limítrofe e de um modo de vida circunscrito, ligado quase que exclusivamente ao mundo material. Quando indagados novamente se o modo de viver de seus pais e os seus, através de sua relação com o seu cotidiano histórico, seus momentos de lazer, seus gostos pessoais e sua relação com o meio no qual vivenciam suas práticas culturais era cultura, o resultado negativo foi praticamente unânime entre os alunos. Não obstante, este episódio acontecido nesta aula de História revela uma percepção coletiva restrita do que vem a ser Cultura, absorta em espaços de sociabilidade excludentes e em ações culturais específicas a determinados grupos sociais, apenas. Assim sendo, o presente artigo visa refletir sobre o diálogo entre História, Memória e Teatro no espaço escolar público, como uma maneira de desconstruir conceitos e preconceitos cristalizados acerca da significação cultural e seus arquétipos sócio históricos. A reflexão concentrar-se-á, portanto, em como esta relação interdisciplinar: História, Teatro, Memória; pode contribuir para que os alunos da educação básica apreendam, de maneira mais ampla, a História como um processo aberto e plural, no qual todos os sujeitos são partícipes, independentemente do grupo social ao qual pertence. Para tanto, o estudo direcionará seu olhar para o trabalho desenvolvido no Projeto intitulado “História, Cultura e Identidade”, realizado na Escola Municipal de Ensino Fundamental Waldemar Carlos Jaeger, localizada no município de Sapiranga, Rio Grande do Sul, no segundo semestre de 2011.

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Assim, este artigo descreve o projeto realizado na escola e seus desdobramentos pedagógicos nas diferentes etapas desempenhadas, que aconteceram da seguinte maneira: 1) Mobilização inicial a fim de discutir os conceitos de Cultura, História, Sujeitos e Patrimônio Cultural (Material e Imaterial); 2) Entrevistas na escola com funcionários e professores, a fim de levantar respostas sobre o que estes entendiam por cultura; 3) Cruzamento das respostas dos funcionários com as respostas iniciais dos alunos e posterior discussão sobre o sentido antropológico do termo cultura, a fim de promover uma reflexão sobre as diferentes manifestações culturais, entre elas o Teatro e a Memória; 4) Exposição de imagens para os alunos com diferentes manifestações culturais da humanidade (Teatro, Música, Dança, Pintura, Literatura, Cinema, Artefatos Indígenas, Capoeira, Ritual Hindu, Grafite, Busto de Nefertiti, Templos Maias, Chimarrão, Museus, entre outros) e discussão sobre as distintas configurações culturais e históricas; 5) Apresentação aos alunos da proposta de intervenção na comunidade: “descobrir” as memórias dos moradores da comunidade do entorno escolar acerca do espaço que vivem, a partir de entrevistas pautadas no método da História Oral; 6) Desenvolver as entrevistas (o que será perguntado? Como? Por quê? Onde? O que quero descobrir sobre a cultura local?) coletivamente; 7) Realização das entrevistas com os moradores da comunidade; 8) Discussão das entrevistas e escolha das histórias pessoais que farão parte da peça teatral realizada sobre a cultura, a memória e a identidade da comunidade; 9) Construção coletiva do texto teatral para dramatização; 10) Apresentação da peça teatral realizada para a Escola e a Comunidade do entorno escolar. Neste sentido, o projeto interdisciplinar supracitado buscou discutir junto com os 20 alunos de uma turma de sexto ano do Ensino Fundamental, os sentidos e as significações do que vem a ser o termo Cultura, bem como os processos históricos que estabelecem as práticas culturais de grupos sociais distintos. Deste modo, o objetivo do projeto “História, Cultura e Identidade” foi mostrar aos alunos os diferentes caminhos do conhecimento histórico e os indizíveis sentidos do conceito Cultura, a partir de uma prática docente que valorizasse o componente curricular de História como uma rede de diferentes possibilidades didáticas, valendo-se da História Oral e do Teatro como metodologia para se alcançar um ensino de História mais significativo para o aluno incurso nas séries finais do ensino fundamental.

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2 CULTURA, MEMÓRIA E IDENTIDADE O conceito de Cultura e seus usos nas Artes e nas Ciências Humanas tem se alargado nas últimas décadas, devido à utilização plurisígnica do termo pelas pesquisas acadêmicas recentes. Na História, o crescente interesse pelos estudos históricos voltados para o campo cultural, fez com que a reflexão acerca da cultura em seu sentido histórico e antropológico1, se tornasse um debate constante na historiografia contemporânea. O advento de novos objetos, teorias e abordagens na prática historiográfica da segunda metade do século XX2, instituiu novas possibilidades de configuração no estudo dos grupos humanos e sua trajetória no tempo e no espaço. Peter Burke (2004) observa que, nesta direção, “a preocupação antropológica com o cotidiano e com sociedades em que há relativamente pouca divisão do trabalho encorajou o emprego do termo cultura em sentido amplo” (BURKE, 2004, p. 43). Neste sentido, os historiadores, ao buscarem os discursos, as representações e as práticas culturais das sociedades que estudam, ressaltam as especificidades dos grupos sociais, levando em consideração as relações simbólicas estabelecidas entre os indivíduos partícipes de um contexto histórico específico (CHARTIER, 2002, p. 73). Contudo, a Cultura torna-se sob este emaranhado sócio histórico, um conceito em movimento, apresentando assim diferentes formas de interação com o meio circundante, ampliando suas categorias de conceituação acadêmica e percepção, ora trazendo questões consideradas universais, ora relativizando espaços, temporalidades e interações locais, sendo que: Se a palavra Cultura guarda em si resquícios de uma transição histórica de grande importância, ela também codifica várias questões filosóficas fundamentais. Neste único termo, entram indistintamente em foco questões de liberdade e determinismo, o fazer e o sofrer, mudança e identidade, o dado e o criado (EAGLETON, 2005, p. 11). Segundo Peter Burke (2004) “o conceito amplo de cultura dos antropólogos era, e continua sendo, um atrativo epistemológico [...] A ideia antropológica de “regras” ou “protocolos” culturais também atraiu os historiadores culturais; a idéia de que, como as crianças, eles tinham de aprender como as coisas eram feitas [...]”. BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 57. 2 Sobretudo com as transformações propiciadas pela Escola dos Annales Francesa, a historiografia da segunda metade do século XX enfrenta uma crise de paradigmas que ocasiona rupturas epistemológicas para com os marcos conceituais dominantes até então na História. Neste contexto, emergem novas abordagens e objetos de estudo no ofício do historiador, a partir de um panorama mais cultural das temáticas históricas. Sobre esta questão ver as obras: BURKE, Peter (organizador). A Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992; DOSSE, François. A História em migalhas: dos Annales à Nova História. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 1992. LEE GOFF, Jacques. A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 2001. LE GOFF, J; NORA, P. (Orgs.). História: novos objetos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976. VEYNE, Paul. Como se escreve a História. Lisboa: Edições 70, 1989. 1

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Neste sentido, a Cultura torna-se, no âmago dos grupos sociais, um dispositivo de memória, identidade e pertencimento. Por este viés, a identidade cultural dos sujeitos históricos está intimamente ligada ao grupo social no qual estão inseridos, sendo que os símbolos de significação social partilhados por este grupo interferem na lógica interna de manutenção de sua identidade, determinando assim, o modo de ser, ver e perceber o mundo pelos sujeitos que dele participam (GEERTZ, 1989, p. 23). Diante desta premissa, todo indivíduo está inserido em um dado sistema cultural, sendo que a sua historicidade é arquitetada mediante os discursos e as práticas características de um universo simbólico particular e das relações sociais nele edificadas. Assim sendo, cultura, memória e identidade tornam-se elementos indissociáveis na teia de significação3 social construída pelos processos históricos, pois, como observa o sociólogo Stuart Hall. É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas. Além disso, elas emergem no interior do jogo de modalidades específicas de poder e são, assim, mais o produto da marcação da diferença e da exclusão do que o signo de uma unidade idêntica, naturalmente constituída, de uma “identidade” em seu significado tradicional- isto é, uma mesmidade que tudo inclui, uma identidade sem costuras, inteiriça, sem diferenciação interna (HALL, 2005, p. 109). 170

Deste modo, podemos pensar a construção das identidades sociais ligadas diretamente à esfera cultural, carregadas de um conteúdo social significativo, na relação dual de pertencimento e alteridade4. A identidade, desta forma, pode significar o ponto de encontro do discurso e das práticas que fazem parte da estruturação sócio identitária de um determinado grupo que assume, desta maneira, uma postura tácita em relação aos seus sujeitos, sem ser, necessariamente, arbitrária, pois, como observa Cuche (2002), “A construção da identidade se faz no interior

Valendo-se das observações cunhadas pelo antropólogo americano Clifford Geertz (1989), para quem “o homem é um animal amarrado a teias de significado que ele mesmo teceu”. Para o autor, a cultura é delineada pelos sujeitos já com as primeiras normas de convívio societário, sendo estas normas enlaçam os sujeitos e os grupos aos quais pertencem a teias de significação que se constroem- e se reproduzem- no interior das relações sociais. No entanto, atenta para o fato de que não existem padrões culturais universais, mas simbologias e significados produzidos de acordo com a cultura de cada grupo social. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, RJ: LTC Editora, 1989, p. 15. 4 Segundo Kathryn Woodward (2005), a identidade é sempre construída a partir de uma relação de alteridade, marcada pela diferença. Segundo a autora, “A cultura molda a identidade ao dar sentido à experiência e ao tornar possível optar, entre as várias identidades possíveis, por um modo específico de subjetividade [...]”. WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. SILVA, Tomaz Tadeu. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005, p. 19. 3


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de contextos sociais que determinam a posição dos agentes e por isso mesmo orientam suas representações e suas escolhas” (CUCHE, 2002, p. 182). E, se a identidade materializa-se no cerne de contextos sociais, ela liga-se às representações sociais acerca do vivido pelo diagnóstico produzido pelos grupos que as forjam (CHARTIER, 1990, p. 17). Nesta direção, a memória coletiva insere-se como um elemento fundante da identidade cultural, uma vez que o relembrar torna-se um fator precípuo de pertencimento e é construído a partir de elementos e signos culturais coletivamente partilhados. Sendo assim, a memória coletiva de um grupo social, segundo Maurice Halbwachs (1990), é um fenômeno passível de modificação, apesar de conter elementos que são inalteráveis, sobretudo quando de sua construção histórica5. Todavia, o autor alerta que: Não basta reconstruir pedaço por pedaço um acontecimento passado para obter uma lembrança. É preciso que esta reconstrução funcione a partir de dados ou de noções comuns que estejam em nosso espírito e também no dos outros, porque elas estão sempre passando deste para aquele e vice-versa, o que será possível somente se tiverem feito parte de uma mesma sociedade, de um mesmo grupo. Somente assim podemos compreender que uma lembrança seja ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída (HALBWACHS, 1990, p. 39).

Ou seja, desde os primórdios da História, a memória, enquanto manifestação cultural dos grupos humanos esteve presente como um componente importante na composição da historicidade dos sujeitos. Ela aparece como o antídoto contra o esquecimento das vivências e tradições humanas, bem como um importante elemento na constituição identitária dos grupos sociais. Lee Goff (2003), neste sentido, observa que “a memória, tem a propriedade de conservar certas informações psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas” (LEE GOFF, 2003, p. 419). Por sua vez, Pollack (1992) aponta que “a memória é um fenômeno social construído social e individualmente”. (POLLACK, 1992, p. 5). Sendo assim, a memória é armazenada levando-se em conta a idiossincrasia de cada indivíduo, mas partindo sempre da relação deste com a realidade que o circunda. Sob este prisma, a memória está ligada a historicidade de cada sujeito, através de sua trajetória pessoal no âmago dos grupos sociais que transita e pertence.

Para Halbwachs (1990), existem três tipos de memória social que podem ou não estabelecer elos entre si: a memória individual, a memória coletiva e a memória histórica. Todas elas são, segundo o autor, formas representacionais do passado e edificam-se de acordo com a forma que o indivíduo se relaciona com o tempo e o espaço. Para Halbwachs “cada grupo localmente definido tem sua própria memória e uma representação só dele e de seu tempo”. HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo, SP: Editora Vértice, 1990, p. 130. 5

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Diante desta premissa, é preciso compreender as funções que a memória social passa a exercer na vida em coletividade, tendo um papel de “guardiã” de acontecimentos passados, ao mesmo tempo em que habita também a zona do eu, da percepção individual. Sendo assim, é importante ressaltar que a constituição da memória social é ampla e obedece a mecanismos psíquicos de sistematização referente ao indivíduo e ao universo simbólico em que este está inserido, sem, contudo, distanciar-se significativamente dele. Neste sentido, a construção da memória social encontra-se nos lugares das práticas grupais culturalmente estabelecidas. Os referenciais da memória coletiva são, por assim dizer, constituídos de acontecimentos de enquadramento e solidificação das identidades6 e dos lugares do vivido, inerentes a coletividade na qual a memória é produzida. Assim, em relação a estes “lugares mnemônicos”, Portelli (1997) observa que a memória é um fenômeno social, mesmo que este fenômeno seja marcado sempre por uma trajetória individual, salientando que: A memória pode existir em elaborações socialmente estruturadas, mas apenas os seres humanos são capazes de guardar lembranças. Se considerarmos a memória um processo, e não um depósito de dados poderemos constatar que, à semelhança da linguagem, a memória social, tornando-se concreta apenas quando mentalizada ou verbalizada pelas pessoas. A memória é um processo individual, que ocorre em um meio social dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e compartilhados. (PORTELLI, 1997, p. 16).

Deste modo, a memória coletiva apresenta-se como um fator precípuo na manutenção das identidades culturais. De um lado, os acontecimentos vividos a nível individual e de outro os acontecimentos vividos pelos grupos sociais ao qual o sujeito faz parte. Ambos constroem e legitimam uma identidade cultural complexa. Não sem tensões, esta identidade é evocada pelos lugares de memória, externados nas lembranças trazidas a tona pelos sujeitos. Lembranças estas que, ao ligar-se a uma forma própria de delineação narrativa e cronológica, ligam-se também a uma cultura, um espaço e uma temporalidade específica.

Segundo Stuart Hall, a identidade cultural de um sujeito/grupo é política e socialmente construída, interligando-se dentro de culturas nacionais específicas, sendo que “as culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso- um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos”. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Editora DP&A, 2001, p. 50.

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3 PEQUENOS HISTORIADORES, GRANDES HISTÓRIAS O Ensino de História contemporâneo tem estreitado seus laços com práticas pedagógicas que visam significar, com maior inteligibilidade, a realidade na qual o historiador atua, modificando assim as abordagens de seu ensino e ampliando as possibilidades de sua atuação profissional. Nesta esteira, percebeu-se que, para além de listas dinásticas ou cronológicas, biografias políticas de “grandes homens” e citações decoradas, mas pouco compreendidas, o Ensino de História na Educação Básica, sobretudo na escola pública, deveria constituir-se também como um meio de reflexão da realidade na qual a escola está inserida. Tornou-se, desta forma, uma constante nos debates recentes sobre a História e o seu ensino7, a ênfase em uma didática que explore a criticidade política e cidadã do educando, em relação a si e ao outro, pois compreendeu-se que a História, enquanto componente curricular na Educação Básica Brasileira, não poderia apenas transferir informações cronológicas para o aluno sem ligação com o presente ou reflexão crítica do conteúdo, auferindo, deste modo, uma ausência de significados a si mesma e à importância de sua ação. Deste modo, mesmo que de forma não linear, a prática docente tem se modificado em nosso país, instaurando novos métodos pedagógicos em relação às temáticas históricas. Elza Nadai (2009) observa que este movimento docente de transformação da didática do Ensino de História, se entrelaça na própria mudança da concepção do que vem a ser a História e suas significações, onde Temas até então não privilegiados pela historiografia tornaram-se objetos de reflexão dos profissionais em História, o que enriqueceu o seu campo; o mesmo ocorreu com a metodologia até então influenciada pela objetividade positivista, que passou a receber influências benéficas das demais ciências sociais, imprimindo mudanças substantivas na compreensão do que seja a história. (NADAI, 2009, p. 31).

Neste sentido, o projeto ao qual este estudo vincula-se, insere-se no seio destas novas abordagens em relação ao Ensino de História. Buscou-se, desta forma, construir um projeto de História Oral na escola mencionada, que elencasse variáveis para a reflexão acerca da Cultura local, bem como subsidiassem recursos para a construção de uma montagem teatral posterior, acerca da comunidade pesquisada. De acordo com Paul Várias conferências, congressos e seminários têm sido organizados para debater o assunto. Em âmbito nacional, o GT de Ensino de História e Educação da ANPUH (Associação Nacional de Professores Universitários de História), tem se destacado por promover eventos que discutem a didática da História. Destes eventos resultam produções importantes para este debate, tais como resumos, apresentações de trabalho e artigos científicos com experiências docentes. Sobre o GT, visitar o site do GT de Ensino de História e Educação em: www.anpuh.org.br.

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Thompson8, um projeto de História Oral pode ser perfeitamente aplicável em uma Instituição de Educação Básica, dadas as suas especificidades. O autor observa que este tipo de projeto tem grande importância na escola básica, sobretudo quando se trabalha com a noção de Cultura local, como no caso do presente estudo. Para ele, o desafio da História Oral nasce em concordância ao desafio da própria História enquanto disciplina científica, dando sentido à historicidade de diferentes sujeitos e sua relação com o contexto histórico no qual se está inserido. Através desta premissa, faz-se necessário perceber, na fala do depoente, as formas pelas quais este dizer é delineado e significado, uma vez que o falar torna-se uma ferramenta de expressão cultural no seio da comunidade. Neste caso, trabalhar com um projeto de História Oral em uma comunidade específica, dentro de um dado projeto escolar, exige que se esteja atento aos códigos internos que, juntos a esta fala, exteriorizam a manutenção da identidade deste grupo social que convive, cotidianamente, com os alunos participantes deste emaranhado cultural. Cabe perceber, então, que a população entrevistada, direciona sua fala para a compreensão pessoal do meio em que está incursa. Sobre esta questão, Antonio Torres Montenegro observa que: No ato de ser entrevistada, a população dá continuidade a um ofício que vem desempenhando há muito tempo. O ato de contar casos, experiências, lições que a vida ensinou. As reuniões, neste caso, são o momento de ouvir, de “apreender a idéia”. Mas se aprende também a dizer. A necessidade de adquirir este saber está presente em inúmeras passagens de entrevistados. Desde a perspectiva de se tornar sabido, até contar para os outros, divulgar, ampliar esta sabedoria (MONTENEGRO, 2001, p. 44).

Deste modo, após as discussões iniciais no âmbito da Cultura, da Identidade e da Memória com a turma trabalhada, iniciaram-se considerações importantes com os alunos sobre o que vem a ser a história oral e as implicações de um projeto deste gênero na comunidade do entorno escolar. Pensar junto ao educando as considerações práticas, as dificuldades e os desafios impostos na hora de entrevistar, bem como o que perguntar, tornou-se uma prática constante no decorrer do projeto. O que perguntar? Como perguntar? Onde perguntar? Por que perguntar? Assim sendo, combinou-se com estes que eles mesmos realizariam as entrevistas, após uma reflexão crítica e da elaboração das perguntas em sala de aula. Neste processo, refletiu-se com os educandos sobre o que deveriam estar percebendo ao realizar as entrevistas, 8

THOMPSON, Paul Richard. A Voz do Passado: História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

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logo as perguntas organizaram-se em torno das questões. as As perguntas concentraram-se basicamente nas seguintes dimensões: o que o depoente entendia por Cultura; a relação da sua história de vida com o bairro escolar; a relação da história da comunidade com a história regional (composição do macro e do micro espaço9 como um todo indissociável); e a percepção do entrevistado sobre a ligação da história da comunidade com a ideia de Cultura, sendo que o trabalho com História Oral inseriu-se nas discussões preliminares sobre o que vem a ser a noção histórica e antropológica de Cultura. Por outro lado, refletiu-se sobre a importância da Memória nesta construção discursiva sobre o espaço estudado, uma vez que é através dela que a fala e a significação coletiva sobre o passado é possibilitada. Neste sentido, tornaram-se importantes as contribuições de Halbwachs (1990), sobre as diferentes dimensões da memória, onde os processos mnemônicos coletivos, individuais e históricos adquirem contornos distintos. A memória individual e a coletiva, mais próxima dos grupos sociais, permiti laços de reconstituição pessoais do indivíduo e da comunidade na qual ele está inserido, enquanto a memória histórica representaria o passado sob uma forma resumida, esquemática e cronológica, diante de um consenso geral dos fatos. Todavia, perceber a ligação entre memórias aparentemente distantes, faz-se importante nos caminhos da História Oral, pois como observa Halbwachs: Os fatos históricos podem muitas vezes serem exteriores à nossa vida, porém, mais tarde, quando refletimos sobre eles, entendemos o porquê de muitos acontecimentos [...] Se o mundo de minha infância tal como o reencontro quando me lembro, entra tão naturalmente no contexto que o estudo histórico desse passado próximo me permite reconstituir, é porque já trazia a sua marca (HALBWACHS, 1990, p. 78).

Também se combinou com os alunos que, no ato de entrevistar, seria necessário perceber as emoções internalizadas pelos depoentes, pois, segundo Verena Alberti “é preciso saber ‘ouvir’ ” o que a entrevista tem a dizer tanto no que diz respeito às condições de sua produção quanto no que diz respeito à narrativa do entrevistado” (ALBERTI, 2005, p. 185). No projeto dialógico entre Teatro, Memória e Ensino de A Micro-História italiana refere-se às abordagens historiográficas que valorizam as micro-análises como forma prioritária de explicação sobre um determinado contexto histórico. Contudo, a abordagem micro-histórica não corresponde a um campo epistemológico que desvaloriza o macro-histórico em detrimento de uma especificidade menor, reducionista, mas antes uma forma de estudar, a partir de uma pequena comunidade, por exemplo, as formas históricas relacionais entre o micro e o macro histórico. Algumas obras que versam sobre esta corrente historiográfica são: GINZBURG, Carlo. A Micro História e outros ensaios. Lisboa: DIFEL, 1990; GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998; LEVI, Giovanni. Sobre a Micro-História. In: BURKE, Peter. A Escrita da História: Novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. REVEL, Jacques. Jogos de Escala: a experiência da micro-análise. Rio de Janeiro: FGV, 1998. VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da História: a micro história. Rio de Janeiro: Campus, 2002.

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História descrito neste estudo, fez-se necessário esta mescla relativa à fala e as expressões interpostas pelos entrevistados, uma vez que a culminância do projeto viria a ser uma peça teatral sobre a cultura da comunidade do entorno escolar. Sendo assim, as subjetividades individuais exercem grande importância. Partindo destas considerações, ao realizar as perguntas para os depoentes, foi pensado no perguntar como um fator que viesse trazer à tona a lembrança de acontecimentos próprios daquele ambiente, do espaço em que a escola em questão está influída, entrelaçando-se a um contexto maior, representado pela história regional e nacional. Por este viés, foram desenvolvidas seis perguntas principais para a obtenção de dados que pudessem condizer com a proposta do projeto, concentradas na identidade e na Cultura local, através de perguntas semi-estruturadas que pudessem nos dar dados suficientes para a reflexão posterior e o desenvolvimento da prática cênica (através de uma peça teatral sobre a cultura local). As perguntas, construídas coletivamente, foram as seguintes: O que você entende por Cultura? Há quantos anos você é morador deste bairro? Conte um pouco sobre a sua história de vida no contexto deste bairro. O que você lembra sobre a História do Brasil ou no Rio Grande do Sul (algo que aconteceu de “importante” no país ou no Estado) neste tempo que mora aqui no bairro? 5. Você acha que o bairro possui uma Cultura própria? Por quê? 6. Fale sobre um evento acontecido na história da comunidade que você julgue ter sido importante. 7. Fale sobre um acontecimento de sua vida, neste espaço de tempo, que você julgue ter sido importante. 1. 2. 3. 4.

Desenvolvidas as perguntas, foi necessário escolher os depoentes. Afinal, quem entrevistar? Segundo Thompson (1998), escolher quem entrevistar depende muito do que se quer saber. Quanto mais nítido for o objetivo da entrevista, mais clara ficará a escolha do depoente. Neste sentido, é fundamental que o historiador ou o professor de História deixe igualmente claro para o depoente suas pretensões com o projeto desenvolvido. No caso deste estudo, as reminiscências sobre a Cultura local e o subsequente desenvolvimento de uma peça de teatro com as

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histórias dos moradores na finalização do projeto. Por estes caminhos, refletindo sobre o todo do projeto, escolheu-se 10 depoentes chave para a realização das entrevistas, que contaram suas histórias de vida, relacionado-as ao contexto da comunidade escolar, com a história do Rio Grande do Sul e com a noção de cultura. Por este caminho, os alunos, junto ao professor de História, saíram durante uma semana inteira, na casa dos depoentes, realizando as entrevistas necessárias para a realização do projeto.

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Figura 1 - Morador da comunidade do entorno escolar, entrevistado para o estudo Fonte: Acervo Escola Waldemar Carlos Jaeger, Sapiranga- RS


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Para Halbwachs (1990), imagens são fatores fundamentais para evocar lembranças. São dispositivos de memória. Uma imagem revela elementos fundantes da memória coletiva e mesmo detalhes inerentes somente a história pessoal do sujeito. Por este motivo, combinou-se junto aos alunos que, durante as entrevistas, estar-se-ia pedindo para os depoentes, fotografias e demais objetos que tivessem alguma ligação com a proposta do projeto. No estudo proposto, privilegiou-se o trabalho com as imagens obtidas dos depoentes pelo fato de estarmos ligando a fala proveniente das entrevistas com este material visual, a fim de uma maior compreensão da comunidade em questão, da identidade de seus sujeitos e da cultura local, bem como para a montagem cênica ao final do trabalho realizado. Após o processo de entrevistar a comunidade, transcreveram-se as entrevistas a fim de analisar o material para a construção posterior da peça teatral sobre a cultura da comunidade do entorno escolar. Algumas questões dos depoimentos fizeram-se especialmente curiosas. Sobretudo no que tange a questão cultural, os depoentes não perceberam, em um primeiro momento, o modo de vida existente no bairro, como sendo uma cultura específica, como demonstra a fala de uma das nossas entrevistadas, Roni da Silva. Segundo ela “[...] não sei se é cultura. Depende né? Cada um vive do seu jeito, não sei se é cultura. Não sei se no sentido da escola é, né?10”. Por outro lado, a entrevistada Maria Vargas, tia de uma das alunas, disse que o bairro constitui uma expressão cultural própria. Diz ela: “Eu moro aqui há 30 anos, desde que a COHAB11 deu estas casas, conheço todo mundo. Nossa história, assim, é a história do bairro, então acho que é uma cultura sim12”. Todavia, ao contar suas trajetórias de vida, praticamente todos os entrevistados ligaram-nas a história do bairro, já que os moradores se inseriram no espaço há bastante tempo. Quase todos os depoentes moram no bairro há aproximadamente 30 anos. Sendo assim, as histórias de vida contadas, sempre traziam consigo alguns aspectos da identidade cultural da comunidade, como no depoimento deste morador: “E aí, a gente foi uns dos primeiros a vir pra cá. Não tinha quase ninguém. No início, a gente ficou meio assim né, mas depois se acostumou. Todo domingo de manhã a gente tomava chimarrão e conversava com os vizinhos, sobre tudo o que tava acontecendo [...] Depois foi chegando mais gente, aí meio que parou o chimarrão. Mas, de uns tempos pra cá, voltou de novo [...] É bom se encontra, bota as conversa em dia. A gente tem muito em comum, convive muito13”. Entrevista com Roni da Silva, out. 2011. Companhia de Habitação do Estado do Rio Grande do Sul. 12 Entrevista com Maria Vargas, out. 2011. 13 Entrevista com Ricardo dos Santos, out. 2011. 10 11

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Visto que as trajetórias pessoais dos moradores entrelaçam-se a Cultura da comunidade local, pode-se dizer que as imagens evocadas na fala dos depoentes trabalham, sob noções gerais, a partir da filiação cultural a esta cultura comunitária, pois, como observa Eclea Bosi “É graças ao caráter objetivo, transubjetivo, que as imagens resistem e se transformam em lembranças”. (BOSI, 1998, p. 22). O ato de lembrar, sob este prisma, retira a sua força na memória coletiva partilhada pelo grupo. Tendo em vista que o projeto posto neste estudo visa dar maior inteligibilidade a História como um processo múltiplo, revelando assim os processos culturais sob uma perspectiva plural, a transformação das entrevistas em uma peça teatral, percebeu justamente as trajetórias pessoais coletadas com a especificidade dos sujeitos enquanto seres individuais, mas também como seres pertencentes a um grupo maior, culturalmente definido.

4 COMUNIDADE EM CENA Nas novas abordagens referentes ao Ensino de História, tem-se destacado a importância das práticas pedagógicas que valorizem, de forma direta ou indireta, as comunidades presentes no entorno das instituições escolares. Partindo do pensamento de Weber (1973), podese compreender uma comunidade como um grupo de pessoas com elementos de pertencimento coletivo construtores de uma identidade comum. Neste caso, através de uma lógica interna de manutenção identitária, este grupo constrói, coletivamente, significados que lhe são próprios e peculiares ao espaço no qual estão inseridos socialmente, já que uma Comunidade só existe propriamente quando, sobre a base desse sentimento [a situação comum], a situação está reciprocamente referida- não bastando a ação de todos e de cada um deles frente à mesma circunstância- e na media em que esta referência traduz o sentimento de formar um todo (WEBER, 1973, p. 142).

Neste sentido, a comunidade só existe, enquanto entidade social, na medida em que os indivíduos a ela pertencentes corroboram o sentimento de pertencimento a uma coletividade por meio de ações concretas. Através de ritos, falas, tradições transpassadas a novas gerações, as comunidades dão sentido a existência grupal. E, a partir destes sentidos compartilhados, a comunidade passa a perceber-se

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como uma instituição social legítima, dotada de cultura e identidade, mesmo que sem a percepção teórica inferida neste estudo. Por meio das entrevistas realizadas, pôde-se perceber o sentimento de coletividade presente na comunidade, mesmo nas falas sobre percursos pessoais. Sendo assim, o Teatro surgiu como uma forma de dar visibilidade e produzir intensidade às questões. A interação entre História e Artes Cênicas, seja no âmbito da pesquisa, seja no âmbito da didática, é ainda embrionária no Brasil. Um projeto que leve em consideração este diálogo interdisciplinar é sempre desafiador. Contudo, o diálogo elencado entre Teatro e Ensino de História pode trazer contribuições importantes na aprendizagem dos educandos acerca das temáticas históricas. Sobretudo no ensino básico, ele colabora na discussão sobre o que vem a ser, efetivamente, a História. É um desafio complexo, uma vez que o fazer cênico ultrapassa a quarta parede14 para se ater na realidade social e histórica que está sendo apresentada. E, neste caso, é crucial tratá-la com a maior verossimilhança possível. O Teatro, desta forma, torna-se um elemento didático diferenciado e enérgico. Torna-se nobre, pois traz, com toda a sua carga dramática, a historicidade e a essência da comunidade representada. E, junto à História, possui a altiva função de apresentar aos presentes (público que assiste e alunos envolvidos na dramatização) que todos eles são sujeitos pertencentes a um processo histórico que, mesmo não explícito, faz parte de suas vidas. São cenas que apresentam sonhos, angústias, medos, conquistas. E, a partir destas cenas, a identidade cultural daqueles que são representados no palco. Recuperando a memória social da comunidade, a partir do teatro Imaginamos que a História é a experiência humana, e que esta experiência, por ser contraditória, não tem um sentido único, homogêneo, linear, nem um único significado. Dessa forma, fazer história como conhecimento e como vivência é recuperar a ação dos diferentes grupos que nela atuam, procurando entender porque o processo tomou dado rumo e não outro; significa resgatar as injunções que permitiram a concretização de uma possibilidade e não de outras (KHOURY ; PEIXOTO; VIEIRA, 1998, p. 11).

14 Na linguagem teatral, a quarta parede refere-se a uma “parede imaginária” situada na frente do palco, através da qual o ator não mantém contato direto com o público à sua frente, desenvolvendo a narrativa dramatúrgica dentro de um espaço cênico específico.

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181 Figura 2 - Aluna entrevista moradora da comunidade escolar para o estudo Fonte: Acervo Escola Waldemar Carlos Jaeger, Sapiranga- RS

Diante dessa premissa, após a realização das entrevistas, os alunos do projeto escolheram três histórias de vida que seriam transformadas em uma peça teatral, representando assim, a identidade cultural da comunidade estudada. A escolha das histórias de vida, bem como a escrita do texto teatral (que se deu de forma coletiva com o professor e os alunos) deveria condensar aspectos básicos para atingir ao público que este estudo propõe: contar as histórias de vida relacionando-as com a Cultura, a historicidade e a identidade local e representar, através das cenas, a percepção de que todos os indivíduos são sujeitos históricos e construtores de Cultura, no seu sentido antropológico. Assim sendo, a finalidade desta etapa do projeto foi desenvolver uma peça teatral acessível ao público, que representasse a comunidade do entorno escolar de forma significativa. Desta forma, escreveu-se um texto dividido em oito cenas: a primeira cena representa poetas que, falando poemas aleatórios estabelecem as histórias de vida da comunidade como uma cultura específica, dotada de historicidade, como se pode perceber nestas falas criadas pelos próprios alunos:


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POETA I: Viver é a mais bela das artes. Todo mundo tem uma história que é só sua, cheia de alegrias, tristezas, beijos e abraços. Basta vir ao mundo para aprender que viver pode ser uma obra de arte... POETA II: Gente nasceu para brilhar, para cantar, para ser feliz... Assim como as estrelas, cada um de nós tem luz própria, tem um brilho que é só seu, uma história que é só sua... POETA III: Cada um de nós guarda na memória as lembranças da vida, os medos, os ganhos, os pais e os filhos. Cada um de nós é formado por aquilo que planta e recebe as histórias que plantou...15

As seis cenas seguintes contam as histórias escolhidas para a encenação, mesclando a história e a Cultura da comunidade em questão com as trajetórias pessoais externadas nas entrevistas, como acontece nesta cena: FILHA: Mãe! Mãe! A gente conseguiu! RONI: Nossa minha filha, que alegria é essa?! A gente conseguiu o quê? Espera, não vai me dizer que... FILHA: Sim mãe, a gente conseguiu uma das casas da COHAB a gente também foi contemplada! Finalmente a gente vai largar o aluguel! (Mãe e filha abraçam-se). RONI: Meu Deus minha filha, que bom! Como você ficou sabendo? FILHA: Eles me ligaram! Nem consigo acreditar! RONI: Calma guria, se não vai te dar um ataque! FILHA: É que agora todo o dinheiro que ia para o aluguel, vai ir para nossa própria casa... Um dia, teremos o que é nosso. RONI: Verdade. Agora teremos o nosso lugar, a nossa própria moradia, como a gente sempre quis...16

A cena supracitada mostra o momento de nascimento do bairro em que a comunidade e a escola estão inseridas, a partir da história de vida de duas moradoras. A historicidade dos sujeitos, neste caso, evidencia a identidade cultural do lugar. Na última cena os poetas voltam, com novos poemas para finalizar a peça teatral sob um aspecto de valorização e afirmação da comunidade local: POETA I: Gente foi feita para ser feliz, onde quer que viva, por onde quer que vá... E nós estamos aqui. POETA II: Pois vivendo juntos, somos mais fortes, e minha cultura é aquilo que o outro faz de mim... POETA III: ... E o que eu faço do outro. POETA IV: Porque gente foi feita para caminhar e não viver só... Gente foi feita para escrever sua própria história.17 Trecho da peça teatral “Cenas da Vida”, escrita e encenada a partir das entrevistas realizadas com a comunidade do entorno escolar, para a concretização deste estudo. Trecho da peça teatral “Cenas da Vida”, escrita e encenada a partir das entrevistas realizadas com a comunidade do entorno escolar para a concretização deste estudo. 17 Trecho da peça teatral “Cenas da Vida”, escrita e encenada a partir das entrevistas realizadas com a comunidade do entorno escolar para a concretização deste estudo. 15 16

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Figura 3: Cena da peça teatral “Cenas da Vida” Fonte: Acervo Escola Waldemar Carlos Jaeger, Sapiranga- RS

Cada personagem possui uma identidade que é só sua, viabilizando uma profundidade que evidencia toda a sua historicidade. O texto, os ensaios e o trabalho de interpretação devem inferir esta capacidade dramática. Assim sendo, na peça teatral pensada pelos alunos, cada personagem da peça traz em si um símbolo da cultura local18, relacionando os depoimentos com a construção cênica efetivada. De pequenos 18 Cada aluno que representou um poeta em cena trouxe consigo como elemento cênico, um objeto de algum morador da comunidade. Assim, roupas, fotografias e outros objetos que fizessem menção à historicidade dos moradores foram levados para o palco, com o intuito de desvelar a cultura local.


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historiadores, os alunos transformam-se em atores teatrais comprometidos em serem atores sociais. Após a elaboração do texto teatral, baseado nas entrevistas realizadas e no material visual coletado, ocorreram os ensaios onde os alunos assumiram a identidade das personagens entrevistadas, contando a história da comunidade do entorno escolar a partir das histórias de vida de seus moradores. Posteriormente, os alunos confeccionaram convites que foram entregues, pessoalmente, aos moradores da comunidade, convidando-os a prestigiarem a peça teatral realizada no Auditório da escola. Sendo assim, marcou-se data e horário para a apresentação cênica ocorrida durante as aulas de História. E, entre lágrimas, sorrisos e cenas de suas vidas, os moradores da comunidade escolar, se viram representados no palco por crianças que, como eles, tinham muito que contar.

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Figura 4: Alunos entregam convites na comunidade para a apresentação teatral Fonte: Acervo Escola Waldemar Carlos Jaeger, Sapiranga- RS


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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Compreender a Cultura a partir de um sentido mais amplo, bem como perceber as construções identitárias de grupos aparentemente “desvinculados” da Cultura vista como oficial, implica analisar o sentido antropológico do termo, a fim de desnaturalizar ideias pré-concebidas e preconceitos referentes a modos de vida particulares. Os processos e manifestações culturais que compõe a identidade cultural da comunidade presente no entorno da escola Waldemar Carlos Jaeger, em Sapiranga, interior do Rio Grande do Sul, serviram também como subsídios para a compreensão dos alunos de que, para além de suas considerações iniciais sobre o que vem a ser o sentido da Cultura, esta se faz de forma mais abrangente do que o modo de vida das elites ou de sentidos limítrofes. Neste sentido, a Cultura e os aspectos a ela vinculados, são produtos diretos de construções simbólicas inerentes aos grupos sociais que as forjam. Neste caminho, buscou-se construir um Ensino de História mais significativo para o educando, através da teoria e da prática no âmbito da Memória, do Teatro e da História. Dentro de uma escola pública, dar significado à realidade em que a criança está inserida faz-se mais que necessário: muitas vezes, é um fator decisivo na construção de suas impressões do mundo no qual vive. Transformar as formas de abordagens do ensino de História, trazendo diferentes perspectivas de um mesmo assunto, bem como trabalhar pela ótica da interdisciplinaridade, é de extrema importância neste início de século pós-moderno, onde o tempo, o passado e o futuro parecem abstrações inexistentes. A História não é congelada no tempo e no espaço: pelo contrário, ela é dinâmica em seu processo, e também deve ser em seu ensino. A constância do diálogo atual existente entre a História e outras áreas, como a Antropologia, as Artes e a Filosofia, apenas para citar algumas, mede a importância destes “casamentos” teórico-metodológicos no ensino de História. Por esta lógica, faz-se necessário burlar o abismo existente entre o mundo acadêmico e o mundo da Educação Básica em nosso país, trazendo para o espaço escolar as discussões que a pesquisa histórica acadêmica realiza nas salas universitárias de forma compreensiva, compreensível e significativa para o aluno. Pois, se as cenas da vida pessoal de cada indivíduo são tão importantes, a ponto de derramar lágrimas com uma mera lembrança evocada em uma cena teatral, porque a História, que nos constitui enquanto sujeitos dotados de vida, beleza e historicidade, não haveria de ser?

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REFERÊNCIAS ALBERTI, Verena. Fontes Orais: histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto: 2005. BOSI, Eclea. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a História entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002. CUCHE, D. A noção de Cultura nas Ciências Sociais. Bauru, SP: EDUSC, 2002. EAGLETON, Terry. A Ideia de Cultura. São Paulo, SP: Universidade Estadual Paulista, 2005. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, RJ: LTC Editora, 1989. HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. SILVA, Tomaz Tadeu. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo, SP: Editora Vértice, 1990. LEE GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo: Editora Universidade de Campinas, 2003. MONTENEGRO, Antonio Torres. História Oral e Memória: a cultura popular revisitada. 3. ed. São Paulo, SP: Contexto, 2001. NADAI, Elza. O ensino de História e a “pedagogia do cidadão”. In: O ensino de História e a criação do fato. Jaime Pinsky (Org.). São Paulo: Contexto, 2009.

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POLLACK, Michel. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992, p. 200-212. PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: Algumas reflexões sobre a ética na História Oral. In: Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós Graduados em História e do Departamento de História da PUC/SP. São Paulo, n. 15, Educ., 1997. STANISLAVSKY, Constantin. A Preparação do Ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. THOMPSON, Paul Richard. A Voz do Passado: História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. VIEIRA, M. do P. de A.; PEIXOTO, M. do R. da C.; KHOURY, Y. M. A Pesquisa em História. São Paulo: Ática, 1998. WEBER, Max. Comunidade e Sociedade como estruturas de socialização. In: FERNANDES, Florestan. (Org.). Comunidade e Sociedade: leituras sobre problemas conceituais, metodológicos e de aplicação. São Paulo: USP Editora, 1973. WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu. Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.

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MUSEU E EDUCAÇÃO: O PROJETO DE AÇÃO EDUCATIVA DO MUSEU DA REPÚBLICA

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Daniela Schmitt

Mestranda em Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale. Bolsista PROSUP/CAPES. Museóloga. Email: danielaschmitt.museologa@gmail.com.

Luiz Antônio Gloger Maroneze

Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professor do Curso de Mestrado em Processos e Manifestações Culturais/Feevale. Email: luizmaroneze@feevale.br.


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1 INTRODUÇÃO A ação educativa tem sido objeto de estudo de muitos pesquisadores, seja na área de museus, seja na área da educação. Visto a sua relevância de interlocução entre Museu e Educação, optou-se em abordar sua importância, como ferramenta cultural, para a discussão entre os profissionais de museus e os professores. O trabalho propõe verificar a Educação e o Museu no mundo pós-moderno, ou seja, queremos refletir e interpretar as ações imediatas e não as do passado. Por isso, a escolha do projeto de ação educativa do Museu da República (RJ) intitulado “Educação e trabalho: uma ação de cidadania” realizada no ano de 2014. O mesmo foi contemplado em primeiro lugar pelo Prêmio Ibero-Americano de Educação e Museus. Vamos verificar as possibilidades de ações educativas entre escola e museu. Outro aspecto é colocar em evidência o aluno como autor das atividades, práticas e reflexões. Perceber o indivíduo como construtor do conhecimento é um dos ideais do trabalho e para isso, é preciso que ele se perceba diante do patrimônio cultural. Além disso, evidenciaremos a pesquisa como processo fundamental para a ação educativa. A interação, ainda, entre professor e o profissional de museu deve estar em primeiro plano da ação, pois o museu pode ser explorado como processo não-formal de aprendizagem, e se utilizado de forma proveitosa pode ser um facilitador para o conhecimento dos alunos sobre os diferentes processos e manifestações culturais no contexto histórico-social. Este estudo tem como objetivo uma reflexão sobre as ações museológicas diante da educação. Consideramos que ao estudarmos um projeto de ação educativo que foi premiado no ano 2014 nos indique as possibilidades para adequarmos as estratégias do projeto sugerindo sua replicação nas instituições museológicas da região do Vale do Sinos. Acreditamos no potencial dos museus e queremos que eles façam parte do currículo escolar e das universidades, fazendo dele um espaço de ação, pois trabalhamos com a teoria de que o museu é e deve ser um espaço de saberes e fazeres, de trocas, de pessoas, ou seja, ele vai além do objeto. Precisamos buscar o extrínseco da instituição museal e trabalhar em conjunto com os alunos. Para o desenvolvimento deste trabalho, o procedimento metodológico utilizado foi a pesquisa descritiva, com suporte bibliográfico, com enfoque qualitativo que consistiu-se no estudo da Educação e da ação educativa desenvolvida pelos profissionais de museu em parceria com os professores. Partiremos do pressuposto teórico de Maurice Tardif (2012) e Mario Carretero (1997), bem como de Maria Célia Santos

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(2001). Acreditamos que estes contribuem para o diálogo entre Museu e Educação, além disso, possibilitam uma reflexão das nossas ações enquanto profissionais de museus e professores. A principal razão de se desenvolver um estudo voltado para Museu e Educação é a ausência de ações educativas desse tipo desenvolvidas na região do Vale do Sinos. Por perceber, ainda, a importância do tema para a reflexão nas escolas e nas universidades, que também estão órfãos de iniciativas e parcerias com os museus. Porém, percebemos que esse processo deve partir de ambas as instituições, por meio de realizações de parcerias para futuros projetos educativos. Para apresentar o tema, o estudo foi dividido em dois momentos: teoria e análise. A primeira parte aborda os autores Tardif (2012), Carretero (1997), Jacobucci (2008) e Santos (2001). A partir deles são apresentados os conceitos de educação e museu, ação educativa e espaço não-formal. No segundo momento é analisado o projeto de ação educativa do Museu da República, onde se verifica a importância do primeiro contato do professor com o museu. Verificamos, ainda, que a pesquisa é o meio indispensável para que exista a ação educativa. Desta forma, o estudo não tem o intuito de dar uma fórmula ideal para a interação entre Museu e Educação, mas sim instigar o olhar das instituições de ensino para a possibilidade de utilizar o espaço museal como ferramenta para o ensino.

2 MUSEU E EDUCAÇÃO: NOVOS OLHARES DO ENSINO A ação educativa tem o intuito de fazer com que a comunidade se aproprie do patrimônio cultural, permitindo que as ações do museu sejam voltadas para seu público-alvo e um público em potencial. O trabalho educacional permite que o museu, como instituição cultural, cumpra com seu papel social e com a retroalimentação entre público e museu. Ao estudarmos um processo cultural, adotamos o conceito de cultura do teórico Clifford Geertz, de acordo com o autor, [...] cultura é um padrão, historicamente transmitido, de significados incorporados em símbolos, um sistema de concepções herdadas, expressas em formas simbólicas, por meio das quais os homens se comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atitudes acerca da vida (GEERTZ, 1989, p. 89).

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No âmbito museal, Waldisa Rússio (1984, p. 62), diz que a “cultura é essencialmente fazer e viver, é o resultado do trabalho do homem, seja ele um trabalho intelectual, seja ele um trabalho refletido materialmente na construção concreta”. Podemos dizer que a ação educativa contribui para a troca do conhecimento, bem como para a troca de diferentes culturas. Conforme Maria Célia Teixeira Moura Santos (2001) é preciso repensar a atuação dos profissionais de museus, pois é conciso que possamos compreender a nossa identidade cultural, identificando-a como base para nosso desenvolvimento social. Essa atuação se dá através da educação, por ela buscamos identificar as soluções e estratégias para a ação educativa. De acordo, com Carretero (1997), o professor precisa estabelecer distintas situações didáticas com o intuito de introduzir novos conceitos e colocar em questionamento as ideias espontâneas do aluno. Com isso, ocorre o conflito cognitivo que se dá através da nova informação e a que o indivíduo já possuía, o resultado é a percepção da falta de informação do primeiro momento. Para que aluno cresça, o professor precisa instigar sua curiosidade diante da possibilidade de suas ideias estarem arraigadas. Para isso, é preciso o discernimento do professor como exposto por Tardif (2012). O saber-ensinar está ligado a uma especificidade prática, ou seja, o que podemos chamar de cultura profissional dos professores e professoras. O discernimento, a capacidade de julgar em situações de ação contingentes pode ser colocada como saber-ensinar. [...] uma das missões educativas das faculdades de educação seria a de enriquecer essa capacidade de discernimento, fornecendo aos alunos uma sólida cultura geral que teria justamente como base a descoberta e o reconhecimento do pluralismo dos saberes que caracteriza a cultura contemporânea e a cultura educativa atual (TARDIF, 2012, p. 180).

A ideia exposta no presente artigo é que o museu sirva de instrumento didático para o aluno. Que ele não seja mais identificado como o indivíduo sentado em fileiras e o professor sendo aquele que esta à frente do comando de um pelotão. Os museus podem ser explorados de acordo com a motivação e o meio social do aluno, pois existem museus de diferentes tipologias que podem ser vivenciados e inseridos no currículo escolar, bem como no currículo das universidades. As instituições museológicas servem como ferramenta cultural facilitadora para o entendimento do espaço que estamos inseridos. Porém, é preciso dizer que para isso é necessário que ele também esteja preparado para essas ações.

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Para tornar possível a troca entre educação e museu, o mesmo precisa de um programa de pesquisa eficiente tornando viável a existência de um programa educativo de excelência. Os profissionais de museu devem, ainda, estar em constante diálogo com as instituições de ensino, pois é necessária a análise das dificuldades e motivações dos educadores e educandos. De acordo com Tardif (2012, p. 150-151): [...] uma teoria da atividade educativa nada mais é do que um modelo de ação formalizado, um conjunto sistemático e coerente de representações que nos esforçamos por justificar através das normas do pensamento racional ou científico. Mas os modelos da ação educativa não são necessariamente racionalizados no âmbito de teorias e de ciências; eles também podem provir da cultura cotidiana e do mundo vivido ou então das tradições educativas e pedagógicas próprias a uma sociocultural ou a um grupo profissional tal como o corpo docente. Como mostra a pesquisa etnográfica e antropológica, não há cultura que não forneça aos educadores, enquanto grupo mais ou menos especializado, representações de sua própria ação.

A relevância de estudar tais modelos consiste na ideia de que a prática educativa leva a “atividades guiadas e estruturadas por representações, principalmente por essa representação que chamamos de objetivo ou de fim” (TARDIF, 2012, p. 151). Já Carretero (1997, p. 73) comenta que “talvez convenha afirmar que o ensino da ciência não deve basear-se somente em práticas ou atividades, senão também na reflexão sobre eles”. A ação educativa pode servir para a reflexão e gerar resultados dos trabalhos desenvolvidos durante a atividade, seja ela desenvolvida no interior do museu ou fora dele. É preciso adequar as atividades de acordo com o grupo e tentar ultrapassar as limitações de cada individuo por meio da reflexão, pois a prática e a atividade não são suficientes para a assimilação de conhecimento. Carretero (2012, p. 73) expõe que “não há dúvida que é absolutamente necessário vincular o aluno à realidade concreta sobre a qual versa a ciência, mas sempre e quando se incluam também as atividades de raciocínio e a solução de problemas”. Nas palavras de Tardif (2012), é preciso entender que a prática educativa não é somente uma arte, é uma técnica e uma interação. Devemos buscar e abrir espaço para os distintos tipos de ação que têm na educação. O professor para ensinar deve entender a tradição pedagógica que surge por meio dos hábitos, rotinas e truques da profissão; deve, ainda, ter uma aptidão cultural vinda da cultura dita comum, bem com dos saberes cotidianos que compartilha com seus alunos. Fazendo um paralelo com Tardif, a museóloga Santos (2001) trabalha com a ideia de que a escola é uma instituição que faz parte do patrimônio cultural. Ela é “alimentada por diversos patrimônios culturais, representados pelo conhecimento produzido e acumulado ao longo

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dos anos, resultado da herança cultural construída pelos sujeitos sociais ao longo da vida” (SANTOS, 2001, p. 04). Segundo Santos (2001), a tradição deve ser entendida como um processo de construção e reconstrução. Dessa maneira, “a educação, portanto, alimenta-se da tradição, sendo esta o suporte essencial que lhe dá sentido, fornecendo a base necessária para a construção e reconstrução do conhecimento” (SANTOS, 2001, p. 04). O museu deve ser um espaço que instigue a curiosidade do aluno. Deve, ainda, desmitificar o pré-conceito de que ele é feito de “coisas velhas”, e sim, mostrar que o museu é o resultado de pessoas, de discursos, de saberes e de fazeres. Como é exposto por Santos (2001), o patrimônio cultural é visto como aquilo que se esgota no passado, cabendo ao sujeito contemplá-lo, sem relacioná-lo com o presente. Por esse motivo, na maioria dos casos, “cultura, patrimônio e tradição são produtos dissociados do cotidiano do professor e da vida dos seus alunos” (SANTOS, 2001, p. 5). Porém, é preciso um posicionamento de reflexão das ações. Assim, [...] repensar a tradição e reconstruí-la é missão primordial da escola; o legado cultural deve ser a base, o referencial básico para a apresentação de novos problemas e de novas abordagens, o que só poderá ser conseguido por meio da pesquisa, considerada como princípio educativo (SANTOS, 2001, p. 05).

Desse modo, a pesquisa é o caminho para descobrirmos as redes de significados que dão sentido às evidências culturais, as quais nos informam o modo de vida das pessoas no passado e no presente, passando por um ciclo constante de transformação e reutilização, podemos transmitir conhecimento. Ela nos conduz ao significado da guarda dos bens culturais, e indo mais além, ela é o caminho para a construção do processo identitário. Desta maneira, o museu e seus objetos culturais através da pesquisa tornam-se ferramentas para as ações de aprendizagem. Tardif (2012) ressalta, ainda, que o habitus do professor pode ser ligado ao modo de ensinar. Por exemplo, se o professor possui uma técnica específica de sua profissão pode ser transmitida aos seus alunos, ou se ele possui o hábito de frequentar galerias de arte, museus ou jardins botânicos pode ser o incentivador para a exploração desses espaços não-formais de ensino. O termo “espaço não-formal” tem sido empregado por pesquisadores em Educação, professores de distintas áreas do conhecimento e profissionais que trabalham com publicação científica para descrever lugares possíveis de desenvolver atividades educativas que não sejam

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o espaço escolar (JACOBUCCI, 2008, p. 55). Este está ligado “às Instituições Escolares da Educação Básica e do Ensino Superior, definidas na Lei 9394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. É a escola, com todas as suas dependências: salas de aula, laboratórios, quadras de esportes, biblioteca, pátio, cantina, refeitório” (JACOBUCCI, 2008, p. 56). Deste modo, o espaço não-formal de aprendizagem pode ser desenvolvido em diferentes instituições culturais. Outro aspecto que quero ressaltar, ainda relacionado à necessidade de interação entre as diversas áreas do conhecimento e do reconhecimento a que este está historico-socialmente condicionado, é a necessidade de abertura para o mundo, daqueles que são responsáveis por sua produção, no sentido de transformar a extensão em ação, acreditando que é possível construir conhecimento na troca, na relação entre o ensino formal e o não-formal, no respeito à experiência e à criatividade dos muitos sujeitos sociais que estão fora das academias e que podem nos indicar caminhos e soluções muitas vezes por nós despercebidos, os quais, também, serão enriquecidos a partir das nossas reflexões e do conhecimento por nós produzido (SANTOS, 2001, p. 3).

Santos (2001) considera a educação como um processo, o mesmo é considerado em sua origem latina, “ação de avançar, atividade reflexiva que tem como objetivo alcançar o conhecimento de algo, sequência de estados de um sistema que se transforma” (SANTOS, 2001, p. 02). Desse modo, educação significa reflexão constante, pensamento crítico, criativo e ação transformadora do sujeito e do mundo, bem como atividade social e cultural, histórico-socialmente condicionado. A pesquisa é o meio de estabelecer uma relação eficaz entre educação e cultura, remetendo a apropriação, ressignificação e a criação de novos patrimônios culturais. Destacamos que assim como a educação, o patrimônio cultural é o referencial fundamental para o desenvolvimento das ações museológicas. Entendemos por patrimônio cultural a relação do homem com o meio, ou seja, o real, na sua totalidade: material, imaterial, natural e cultural, em suas dimensões de tempo e de espaço (SANTOS, 2001, p. 06). É necessário salientar que, como processo, a ações museológicas não podem esgotar-se em si mesmas, na mera aplicação da técnica pela técnica. Portanto, para que a Museologia seja aplicada, com o objetivo de atingir, por meio da interpretação e uso do patrimônio cultural, o desenvolvimento social e o exercício da cidadania, é necessário que seja aplicada com competência formal e política, ou seja, é necessário desenvolver a face educativa da Museologia. Assim como na educação, o processo museológico é compreendido como ação que se transforma, que é resultado da ação e da reflexão dos sujeitos sociais, em determinado contexto, passível de ser repensado, modificado e adaptado em

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interação, contribuindo para a construção e reconstrução do mundo. Daí, o sentido de associarmos o termo processo às ações de musealização, compreendido como uma seqüência de estados de um sistema que se transforma por meio do questionamento reconstrutivo, e que, ao transformar-se, transforma o sujeito e o mundo. A utilização do termo processo permite atribuir, portanto, as dimensões social e educativa à Museologia (SANTOS, 2001, p. 08).

Destacamos, por fim, que a ação educativa tem o objetivo de instigar a curiosidade, com o intuito de fazer com que o público observe e seja capaz de interpretar o objeto e o museu, incentivando a criatividade de todos. A partir dos conceitos expostos trabalharemos com a análise de uma ação educativa do Museu da República (RJ) que possui o diálogo constante com a Educação.

3 A AÇÃO EDUCATIVA DO MUSEU DA REPÚBLICA Até o momento podemos verificar que os programas de ação educativa objetivam proporcionar aos alunos uma interligação entre as disciplinas, o cotidiano escolar e ao seu meio social, libertando-se do exclusivismo absolutista exercido pelo material didático, além de proporcionar diferentes visões do mundo. Com isso, a análise tem o intuito de afirmar essas considerações por meio do trabalho desenvolvido no Museu da República que foi premiado pelo Programa Ibermuseus. Acreditamos que o mesmo servirá de referência para os museus da região do Vale do Sinos, por possuírem grande potencial de pesquisa, bem como de espaços para a prática, atividade e reflexão da Educação. O procedimento metodológico utilizado na realização desse trabalho foi a pesquisa descritiva, com suporte bibliográfico, num enfoque qualitativo que consistiu no estudo da Educação e da ação educativa desenvolvida pelos profissionais de museu em parceria com os professores. Como referencial teórico para a Educação, seguimos Carretero (1997) e Tardif (2012) e ao indicarmos o Museu como espaço de Educação o estudo de Santos (2001) contribuiu para o desenvolvimento do trabalho. O Museu da República (MR/Ibram), no Rio de Janeiro (RJ), desenvolveu um projeto intitulado “Educação e trabalho: uma ação de cidadania”, com alunos do Programa de Educação de Jovens e Adultos (Peja) do Centro Integrado de Educação Pública (CIEP) Tancredo Neves – vizinho ao museu no bairro do Catete.

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O projeto foi realizado a partir da exposição “Trabalho, luta e cidadania: 70 anos da CLT”, nas salas de exposição de curta duração do Museu da República desde 15 de novembro de 2013 e permaneceu até 18 de maio de 20141. O objetivo da ação era desenvolver atividades de caráter educativo relacionados ao tema Trabalho, dirigidas a 240 trabalhadores alunos das aulas noturnas. Mesmo depois de um dia de trabalho, os mesmos estavam interessados por informações que poderiam contribuir para seu desenvolvimento pessoal. A maior parte deles eram trabalhadores informais, camelôs, empregados domésticos e taxistas. O Museu da República define-se como um espaço de cidadania e tem como missão preservar, investigar e comunicar os testemunhos vinculados à História da República Brasileira. A instituição museológica foi contemplada com o 1º lugar – Categoria I – no V Prêmio Iberoamericano de Educação e Museus, no ano de 2014, com o projeto acima exposto “Educação e trabalho: uma ação de cidadania”. A premiação, segundo informações do site institucional do Museu da República2, aconteceu durante o VIII Encontro Ibero-Americano de Museus, celebrado no Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa. O Prêmio Ibero-Americano de Educação e Museus é uma iniciativa do Programa Ibermuseus para premiar e apoiar projetos educativos relacionados aos museus, além de reconhecer boas práticas na Ibero-américa. O projeto desenvolvido compreendeu que o educando deve fazer parte desse processo de ensino-aprendizado, não sendo apenas expectador passivo do aprendizado, mas sim, participante. Compreende-se que as ações devem ser desenvolvidas em parceria com o aluno no espaço do museu, este sendo o meio facilitador de comunicação entre o estudante e o professor. Precedendo a visita dos alunos, os professores do Peja/CIEP se encontraram com os educadores do Museu da República, participaram de palestra e fizeram visita programada com o curador da exposição “Trabalho, Luta e Cidadania: 70 anos da CLT”, Marcus Vinicius Rodrigues. Esse primeiro momento mostra a importância da aproximação entre os profissionais do museu e os professores, como foi explanado anteriormente. O diálogo e a troca de experiências entre os profissionais são fundamentais para a visita do aluno. O professor deve antes conhecer bem o que pretende trabalhar com seus alunos retomando o que já sugerimos a partir dos conceitos de Tardif (2012), que é o discernimento do educador. Pode, ainda, ser desenvolvido o habitus do professor de visitar os museus da cidade e região para entender o contexto social e histórico. 1 2

Informações da página do Museu da República. Disponível em: <http://museudarepublica.museus.gov.br/ibram-agenda/educacao-e-trabalho-uma-acao-de-cidadania/>. Disponível em: <http://museudarepublica.museus.gov.br/noticias-e-eventos/>. Acesso em: 2 dez. 2014.

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Em um segundo momento, todos os alunos, no horário noturno, visitaram o museu e suas exposições, e retornaram divididos em turmas, para conhecerem a exposição da CLT. A maioria não conhecia o Museu da República e nenhum outro museu. Podemos perceber a importância do museu abrir suas portas no turno da noite, proporcionando aos alunos um primeiro contato com uma instituição museológica. A atitude mostra seu potencial e sua função social de transformar o indivíduo em personagem do contexto histórico-social, dando a ele a ferramenta para o processo cultural. Além disso, a importância do projeto se dá por ter sido desenvolvido com os alunos da escola vizinha ao museu, com isso ele dialoga com seu entorno e ressignifica suas ações sociais. Como resultado final de todas as ações, o Museu da República cedeu um espaço para os alunos montarem uma exposição sobre a memória do projeto, que foi inaugurada no dia 5 de maio, chamada “Trabalho e Cidadania”. Os alunos e professores ao compreenderem os bens materiais como ponto de partida para o questionamento, fazendo comparações de forma a estabelecer conexões entre o velho e o novo, entre a arte e a ciência, entre uma cultura e outra, fazendo a análise crítica, estimulando a criatividade e a produção do conhecimento afirmam o poder e a importância do museu como espaço de ação voltada para a Educação. O projeto do Museu da República permite que a tradição seja percebida, questionada e reinventada por meio da exploração da interação entre Museu e Educação. Desta forma, quando os espaços são utilizados de forma adequada visam estimular a criatividade e o interesse de todos. Entre as atividades desenvolvidas, destacaram-se as rodas de conversa, nas quais os estudantes contam suas experiências profissionais. Podemos perceber o indivíduo em destaque, pois ele tem a chance de expor sua história. Como desdobramento dessas realidades narradas, outra ação realizada foi o balcão jurídico de atendimento, sob a coordenação de um integrante do Setor de Educação do museu formado em Direito, que esclareceu dúvidas e orientou os alunos quanto à legislação trabalhista. Foram também exibidos filmes e vídeos versando sobre a temática do trabalho, chamado essas de noites culturais. Todas essas atividades e trabalhos de caráter multidisciplinar foram desenvolvidos em conjunto ao Setor de Educação do museu e também em salas de aula pelos alunos do CIEP, dando origem à mostra “Trabalho e Cidadania” inaugurada no dia 5 de maio do mesmo ano. A exposição era vista no Espaço Educação do Museu da República, com entrada franca.

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Sendo assim, o museu ao interagir com outras instituições, com os sujeitos sociais, sendo um espaço extra-muros, possibilita a formação do pluralismo do conhecimento. Torna agentes passivos em agentes de ação, onde os mesmo podem contribuir com sua cultura para a reflexão da instituição, possibilitando a ela reformular-se e adaptar-se a novas possibilidades de ação por meio do seu programa educativo. Porém, não é só o museu que deve abrir suas portas, as escolas e universidades também. É preciso criar estruturas democráticas de participação. Santos, considera que “essa seria uma atitude fundamental no sentido de se qualificar o fazer cultural dos diversos participantes, como patrimônio cultural, buscando a sua apropriação e reapropriação” (SANTOS, 2001, p. 13). As instituições museológicas e as instituições de ensino precisam ousar, como colocado nas palavras de Santos “o que implica, com certeza, a coragem para enfrentar e solucionar problemas, com criatividade e muita determinação.” (SANTOS, 2001, p. 14). Destacamos que a exposição ao ser mostrada de forma clara e lúdica torna-se uma ferramenta indispensável para a compreensão da cidade, da região e do contexto social e histórico. Acreditamos que o projeto “Educação e trabalho: uma ação de cidadania” é uma iniciativa capaz de provocar transformações educativas e igualitárias, ao aproximar o museu do público em potencial (onde a grande maioria não conhecia nenhum museu) tornando-o público ativo e reflexivo. O olhar de cima para baixo fica de lado e a Educação começa a ser trabalhado de forma construtiva e participativa, fazendo do conhecimento um processo de aprendizado conjunto, entre alunos, pesquisadores e professores.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo afirmou a importância de se trabalhar o diálogo entre museu e educação. O trabalho, ainda, mostrou que o melhor caminho para explorarmos a ação educativa no meio museológico é através da pesquisa, como princípio científico e educativo. Percebemos um projeto de ação educativa do Museu da República (RJ) que deu certo e serve como exemplo para outras instituições, podendo ser replicada nos museus da região do Vale do Sinos. Vimos, também, a relevância da inserção do professor junto ao profissional de museu. Esses agentes podem e devem trabalhar em parceria, com o intuito de ampliar o conhecimento de ambos e o fortalecimento dos museus e das escolas.

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Ao compreender o objeto como resultado das relações sociais que pertenceram a um determinado grupo, e fazendo com que o aluno pratique a observação e percepção do objeto, percebemos que é possível encontrar e entender as técnicas utilizadas, traçando diferentes contextos de espaço e tempo, possibilitando, com isso, o aprendizado não-formal e a interação do aluno com o museu. Destacamos o “saber-ensinar”, trabalhado por Tardif (2012), que esta ligada a uma pluralidade de saberes. O pluralismo está ligado à diversidade das diferentes ações abordadas pelo professor. Nesse sentido, o trabalho sugere a ampliação de nossa teia de interação, tornando o museu e a aplicação das ações museológicas mais próximas das escolas e das universidades. O patrimônio cultural deve ser inserido no contexto curricular permitindo que o indivíduo se reconheça e desfrute dos diferentes espaços culturais ampliando sua relação com o mundo. Acreditamos que esse trabalho possa servir de inspiração e reflexão para as diferentes áreas do conhecimento de forma que percebam as diversas possibilidades de interação no espaço museológico. É preciso, portanto, explorar o potencial dos museus e das redes de ensino, e cabe a nós divulgarmos e colocarmos essas ações em prática. 199


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REFERÊNCIAS CARRETERO, Mario. Desenvolvimento cognitivo e currículo. In: ______. Construtivismo e educação; trad. Jussara H. Rodrigues. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. p. 62-74. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. 1. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1989. IBRAM. Museu da República. Disponível em: <http://museudarepublica.museus.gov.br/ibram-agenda/educacao-e-trabalho-uma-acao-decidadania/>. JACOBUCCI, Daniela Franco Carvalho. Contribuições dos espaços não-formais para a formação da cultura científica. EM EXTENSÂO, Uberlândia, v. 7, 2008. P. 55-67. RUSSIO, Waldisa. Texto III. In: ARANTES, Antônio Augusto (Org.). Produzindo o passado, Brasiliense, São Paulo: 1984. SANTOS, Maria Célia T. Moura. Museu e educação: conceitos e métodos. Artigo extraído do texto produzido para aula inaugural – 2001, do Curso de Especialização em Museologia do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, proferida na abertura do Simpósio Internacional “Museu e Educação: conceitos e métodos”, realizado no período de 20 a 25 de agosto. TARDIF, Maurice. Elementos para uma teoria da prática educativa. In: ______. Saberes docentes e formação profissional. 13. ed. Petropólis, RJ: Vozes, 2012. p. 150-182.

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Jamile Cezar de Moraes

Mestra em Processos e Manifestações Culturais (Universidade Feevale). Especialista em Assessoria Linguística e Revisão de Texto (Uniritter). Bacharel em Turismo (Universidade Feevale). Licenciada em Letras Português (Ufrgs). Bolsista Fapergs/Capes. E-mail: jamilecezar@gmail.com.

Luiz Antônio Gloger Maroneze

Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professor do Curso de Mestrado em Processos e Manifestações Culturais/Feevale. E-mail: luizmaroneze@feevale.br.


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1 INTRODUÇÃO As dificuldades atuais do cotidiano, motivadas pela aceleração do tempo, consumo e uso de tecnologias, afetam não apenas as relações humanas, mas também a relação do indivíduo com o lugar onde vive. Nesse sentido, as cidades deixam de ser espaço para sociabilidade, entretenimento e lazer, além de não estabelecerem vínculos ou contribuírem como referência aos residentes. Com isso, o desenvolvimento de práticas que contribuem para reaproximar ou estimular a retomada das relações humanas e com a cidade estão em discussão, na qual se inserem as ações para a valorização das manifestações culturais, no sentido de se tornarem patrimônio cultural. Assim, pretende-se discutir, nesta breve pesquisa, o conceito de itinerário cultural como uma prática de liturgia de recordação que valoriza o patrimônio cultural. Dessa forma, o problema que norteia a pesquisa é “como o itinerário cultural pode ser uma prática de liturgia de recordação que valoriza o patrimônio cultural?”. Para tanto, a pesquisa apresenta alguns exemplos de itinerários e suas abordagens, além de tratar dos conceitos de itinerário cultural, proposto pela Comissão Nacional Portuguesa do Conselho Internacional dos Monumentos e dos Sítios (ICOMOS) (2008); como também o conceito de liturgia de recordação, associado à memória e desenvolvido por Catroga (2001b); e o conceito de turista cidadão, elaborado por Moesch (2005). A proposta se justifica pelo fato de que os residentes percebem cada vez menos as belezas, histórias e qualidades do lugar em que residem, além de perderem os vínculos com a cidade, deixando de exercerem o seu papel de cidadão, o que acaba por afetar a responsabilidade que a sociedade deve ter para com o espaço público. Essa discussão remete à proposta realizada ao longo do mestrado, entretanto, no presente artigo, trata-se de forma mais ampla, com outros exemplos, além do projeto Caminhos da Memória, que ocorre em Caxias do Sul-RS e é um dos objetos da pesquisa da dissertação. Quanto à metodologia, realizou-se uma pesquisa bibliográfica, a fim de retomar os conceitos de itinerário cultural, proposto pelo ICOMOS (2008); de memória e de liturgia de recordação, desenvolvido por Catroga (2001b); além do conceito de turista cidadão, de Moesch (2005). Também se realizou um levantamento de atividades que propõem a valorização do patrimônio cultural, a partir do itinerário cultural, demonstrando uso desse recurso atualizado de entretenimento e lazer, como de conhecimento, idealizado não

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apenas aos turistas, mas principalmente aos residentes, a fim de contribuir para retomar vínculos e referências perdidas ou ignoradas ao longo do tempo.

2 RETOMANDO ALGUNS CONCEITOS Tendo em vista que a presente pesquisa tem como proposição discutir o uso dos itinerários culturais no processo de valorização do patrimônio cultural por meio da memória, inicialmente, será abordado o conceito de itinerários culturais, seguido do conceito de liturgia de recordação, juntamente com o de memória e finalizando com o conceito de turista cidadão. Itinerários culturais é um conceito proposto pelo ICOMOS no ano de 2008, em assembleia realizada no Canadá. Essa categoria foi criada com o intuito de ampliar a discussão em torno do conceito de patrimônio cultural, pensando na atribuição de valores ao território e demonstrando diferentes níveis de abrangência do patrimônio. Nesse sentido, a categoria respeita o valor de cada um dos elementos que o compõe, no sentido de enriquecer a valorização do passado, transmitida pelo percurso e manifestações culturais presentes no itinerário (ICOMOS, 2008). De acordo com a instituição, os itinerários culturais [...] apresentam uma pluralidade de dimensões partilhadas que para lá de sua função primitiva, oferecem um quadro privilegiado para construir uma cultura de paz inspirada não só em elos comuns, mas também no espírito da tolerância, no respeito e na estima da diversidade cultural das diferentes comunidades humanas que contribuíram para a sua existência (ICOMOS, 2008, p. 2).

Dessa forma, eles podem ser de dois tipos, como um trajeto criado pela vontade humana, a fim de atingir uma finalidade; e resultante de um processo evolutivo, composto por características diferentes que coincidem e se direcionam por um mesmo fim. Segundo Cardoso e Castriota (2012, p. 13): O Itinerário constitui em si um bem patrimonial e pode ser palco para diversas expressões e manifestações culturais. Ele promove, mesmo que indiretamente, a valorização dos direitos humanos. Ele deverá manter um sentido de unicidade, ao mesmo tempo em que expõe a polivalência de valores que envolvem o patrimônio cultural.

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Com base nas concepções acima, essa categoria agrega e expõe a dimensão plural e diversificada dos patrimônios culturais, respeitando não só as diferenças temporais, mais também de origem ou a quem se referem. Nesse sentido, ela demonstra uma capacidade de adaptação e de respeito às diferenças que nem sempre podem ser levadas em conta ao desenvolver atividades a um único bem. Do ponto de vista prático, o itinerário é uma ação que propõe uma experiência voltada a tudo que difere da realidade cotidiana contemporânea, busca evocar sensações e sentimentos e proporcionar o contato com a paisagem a qual não se percebe no dia a dia, além de retomar aspectos históricos e referências dos participantes da atividade. Dentre as características, a categoria é multidisciplinar, pode exercer papel integrador, além de estar relacionada com a diversidade cultural. Esses apontamentos podem ser levados em conta a partir da percepção dada pelo ICOMOS (2008, p. 1), já que a atribuição de valores socioculturais, religiosos e políticos, além dos significados especiais e individuais são transmitidos a partir do itinerário, conforme segue: [...] noção alargada de patrimônio sugere novas abordagens de tratamento no interior de um contexto muito mais amplo, a fim de explicar e de salvaguardar as relações significativas diretamente associadas ao seu meio cultural e histórico, assim como ao seu ambiente natural ou criado pelo homem. Neste contexto, a fim de explicar e de salvaguardar as relações significativas directamente associadas ao seu meio cultural e histórico, assim como ao seu ambiente natural ou criado pelo homem.

Para Cardoso e Castriota (2012), os itinerários culturais são instrumentos adequados à realidade contemporânea, que é eficaz no processo de preservação do patrimônio, tendo em vista a globalização, que influencia a sociedade global, padronizando modos de vida, valores e práticas sociais. Para conter essa uniformização, ações voltadas a retomar identidades, tradições e costumes singulares têm ressurgido renovadas, a fim de combater uma generalização sociocultural, como é o itinerário cultural. Nesse sentido, Lucrécia D’Alessio Ferrara (1999) aborda a visão esvaziada da cidade em nossos dias, despida das manifestações culturais criadas e vivenciadas pela sociedade, a qual expressava publicamente suas emoções. Para a autora, esse esvaziamento se dá pela ausência da multidão, da desocupação dos espaços públicos, como as praças e ruas. Hoje, as manifestações são individuais e tem ocorrido de forma íntima através da tecnologia. Com isso, a criação dessa categoria como mecanismo de preservar e valorizar o patrimônio cultural também tenta atrair a população para a ocupação dos espaços públicos novamente, no sentido de serem espaços de sociabilidade, discussão e reflexão do presente e do

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passado. Para tanto, a memória deve se fazer presente, já que é por meio dela que laços e referências podem ser evocadas de modo que as identidades seja identificadas e compreendidas nas suas diferenças e semelhanças, a partir do respeito e da solidariedade. Para tratar da memória, inicialmente, a partir de Halbwachs (2006), ela resulta da percepção atualizada das lembranças que estão em constante mudança, na medida em que o indivíduo se modifica pelas novas experiências, valores e sentimentos. Com isso, na proposta de valorizar bens e manifestações culturais do passado é preciso utilizar a memória a fim de que os indivíduos estabeleçam vínculos e renovem os laços a partir das discussões e reflexões propostas no presente. Os itinerários culturais podem ser considerados um meio em que as memórias são utilizadas como recurso de salvaguarda da paisagem e dos bens culturais. Pois, o percurso pode atrair a atenção dos participantes a fim de que percebam a presença de edificações, praças e monumentos como testemunhas de diferentes períodos vividos pela cidade. Segundo Catroga (2001a), a memória é sempre seletiva, seu registro nunca é imparcial, sendo uma representação afetiva. Com isso, a memória coletiva mantém, ao longo do tempo, apenas as lembranças que estabelecem uma relação afetiva, um sentido e que pertenciam a um grupo o qual o indivíduo estava inserido. Mas também desempenha seu papel social por meio de liturgias próprias voltadas ao reavivamento de lembranças do que não existe mais. Essas liturgias podem ser compreendidas como itinerários, álbuns, caderno de memórias ou festas, organizados por um processo histórico ou motivo gerador. Portanto, o seu conteúdo é inseparável, não só pelas expectativas em relação ao futuro, como dos seus campos de objectivação – linguagem, imagens, relíquias, lugares, escrita, monumentos – e dos ritos que o reproduzem e transmitem, o que mostra que ela nunca se desenvolverá, no interior dos sujeitos, sem suportes materiais, sociais e simbólicos da memória (CATROGA, 2001a, p. 45).

Há uma união entre o processo ritualístico e o conteúdo contemplado, utilizado como suporte para o reavivamento da memória, trazendo à tona o passado e compartilhando sentimentos entre os participantes. Na perspectiva do itinerário cultural, a sua realização em si também transmite a ideia de um ritual, cumprindo etapas, muito semelhante a uma peregrinação religiosa, pois existe a motivação e um percurso pré-estabelecido. O ato de caminhar se torna outro suporte para o ritual, fazendo parte da liturgia de recordação, novamente, retomando o aspecto religioso, espiritual do reavivamento das memórias, ao peregrinar.

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Dentro dessa perspectiva, o historiador acredita que as liturgias de recordação devem “criar sentido e perpetuar o sentimento de pertença de continuidade” (2001a, p. 51). Esses ritos “param o tempo, a fim de se fazer reviver, simbolicamente, o que já passou” (CATROGA, 2001a, p. 55). Conquanto, o autor traz alguns exemplos de práticas com a mesma finalidade. De fato, as reminiscências comuns e as repetições rituais (festas familiares), a conservação de saberes e de símbolos (fotografias e respectivos álbuns, a casa dos pais ou dos avós, as campas e mausoléus, os papéis de farmácia, os odores, as canções, as receitas de cozinha, os nomes), a par da responsabilidade da transmissão e do conteúdo das heranças (espirituais e materiais), são condições necessárias para a criação de um sentimento de pertença, em que cada subjetividade se auto-reconhece filiada em totalidades genealógicas que, vindas do passado, se projectam no futuro (CATROGA, 2001a, p. 50).

A realização de atividades ou a conservação de saberes e símbolos são mecanismos em que a memória é utilizada na atribuição de valor ou sentido diferente do inicial da atividade ou do objeto. Essa valorização que o autor atribui é uma ferramenta útil e interessante para estimular a comunidade conhecer o passado e propor outras práticas de preservação das manifestações e bens culturais. A memória, ao ser utilizada como instrumento para reavivar sentimentos e percepções da cidade, é uma forma de respeitar seu passado, já que o presente é fruto dele e o futuro se constituirá a partir do que se viveu. Para tanto, a valoração dada pela memória e referências identitárias resultam na formação de um patrimônio cultural. O autor acredita que a memória: Em nome de uma história, ou de um património comum (espiritual e/ou material), ela visa inserir os indivíduos em cadeias de filiação identitárias, distinguindo-os e diferenciando-os em relação a outros, e exige-lhes, em nome da identidade do eu – suposta como entidade onipresente em todas as fases da vida –, ou da perenidade do grupo, deveres e lealdades endógenas (CATROGA, 2001a, p. 26).

Embora não seja motivo de discussão na presente pesquisa, mas é interessante à discussão, conforme a abordagem dada pelo historiador, a identidade também é um produto social, a qual exerce influências nos patrimônios culturais, no sentido de definir características e posicionamentos que distinguem um grupo do outro, sobretudo pelos lugares ocupados. Catroga (2001a), assim como Pollak (1992), percebeu uma proximidade entre memória e identidade, e a relação de completude que elas estabelecem, logo, ele aponta que

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[...] a memória, reavivada pelo rito, também tem um papel pragmático e normativo. Em nome de uma história, ou de um patrimônio comum (espiritual e/ou material), ela visa inserir os indivíduos em cadeias de filiação identitária, distinguindo-os e diferenciando-os em relação a outros, e impor, em nome da identidade do eu, ou da perenidade do grupo, deveres e lealdades endógenas (CATROGA, 2001a, p. 49).

Na compreensão de Catroga (2001a), a memória provoca o indivíduo a buscar sua origem, seu passado, que é apresentado pela identidade, para que os grupos se constituam e se estabeleçam, formando a sociedade a partir das diferenças e semelhanças socioculturais. Assim, “a tarefa última destas liturgias é criar coerência e perpetuar o sentimento de pertença e de continuidade, num protesto, de fundo metafísico, contra a finitude da existência. O imaginário da memória liga os indivíduos” (2001a, p. 28). Dentro desse processo de busca pela origem, as cidades já não representam uma única identidade ou formação étnica ou mesmo processo de migração, dessa forma, cada vez mais, os indivíduos se sentem estrangeiros na cidade em que residem. Por conta dessa realidade, os estudos de Moesch (2005), voltados ao turismo, à cidadania e à contemporaneidade, originaram o conceito turista cidadão Embora, os conceitos gerais do turismo tratam de conhecer e visitar lugares diferentes de onde reside, tendo em vista a condição contemporânea da sociedade, a fragmentação das identidades, o crescimento populacional das cidades e os diferentes processos migratórios os quais transformaram os espaços urbanos em lugares complexos e desconhecidos pelos próprios residentes. Para tanto, segundo Gastal e Moesch (2007, p. 19): Olhar a cidade com mais cuidado não é mais uma tarefa exclusiva dos turistas que a percorrem. Mesmo para os moradores das cidades, a sua complexidade coloca, cada vez mais, maiores desafios. Decifrá-los é fundamental para sobreviver e viver nas cidades com qualidade. Em especial, nas maiores cidades.

Por essa razão que a concepção de turista cidadão vem denominar uma prática que precisa ser mais estimulada, com o intuito de tornar o residente em turista na sua própria cidade a partir do estranhamento sentido ao estar em contato com lugares diferentes de onde vive, a fim de conhecer e reconhecer semelhanças e diferenças. Nesse processo, as autoras apontam que na contemporaneidade não há padronização nas cidades, ao contrário, “a cidade será o resultado da rede de processos simbólicos, de comportamentos e culturas, que acontecem no seu interior” (GASTAL; MOESCH, 2007, p. 21).

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Nesse sentido, o papel do cidadão se torna fundamental, na medida em que não apenas usufrui do lugar onde vive, mas se torna responsável, como cidadão deve ter direitos e deveres, o que inclui respeitar a zelar o bairro, a cidade, o estado e o país onde reside, além de saber conviver com o outro. Para as autoras, a comunidade local é muito importante na relação com o turismo, pois é através do que é valorizado pelos residentes que se apontam as potencialidades turísticas. Então, pelo conceito desenvolvido por Moesch é possível afirmar que: O turista cidadão é aquele morador da localidade que vivencia as práticas sociais, no seu tempo rotineiro, dentro de sua cidade, de forma não rotineira, onde é provado em relação à cidade. Turista cidadão é aquele que resgata a cultura da sua cidade, fazendo uso do estranhamento da mesma. Este estranhamento inicia no momento em que o indivíduo descobre, no espaço cotidiano, outras culturas, outras formas étnicas e outras oportunidades de lazer e entretenimento. Quando se encontra na situação de turista cidadão, estre sujeito aprende a utilizar os espaços ambientais, culturais, históricos, comerciais e de entretenimento com uma percepção diferenciada do cotidiano (MOESCH, 2005 apud GASTAL; MOESCH, 2007, p. 65).

A partir dessa perspectiva, acredita-se que atividades como itinerários culturais serão melhores aproveitados pela comunidade local, além de incorporarem reflexões a respeito do seu papel na cidade. Esse tipo de proposta apresenta a cidade, ou uma parte dela, tentado explorar o contato com a paisagem e as lembranças reavivadas pela memória, e ser um momento de entretenimento e lazer, descobrindo lugares e paisagens novas de onde reside. Isso pode significar às autoras que: [...] a valorização e manutenção do meio ambiente, convivendo com a presença do ser humano, o resgate das tradições, dos valores e costumes locais, garantindo, assim, a atratividade turística, e possibilitando a geração de renda, trabalho, novos empreendimentos e, por fim, a melhoria na qualidade de vida (GASTAL; MOESCH, 2007, p. 48).

Na perspectiva do turista cidadão, há a apropriação dos bens culturais tangíveis, mas é preciso avançar na constituição desse tipo de turista, que o cidadão se aproprie das ideias, comportamentos e manifestações que dão movimento a esses bens. Para esse cidadão há o desenvolvimento de um relacionamento diferenciado com os lugares visitados, os quais tendem a ser aqueles que não fazem parte da rotina, ou, ainda que os sejam, mediados por uma proposta de ressignificação.

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Dessa forma, foram apresentados conceitos que visam a preservação do patrimônio cultural de forma atualizada e que tentam atender às exigências socioculturais e econômicas contemporâneas, propondo uma relação mais humanista entre o morador e a cidade, a fim de que as comunidades se sintam pertencentes ao lugar em que vivem, além de se tornarem responsáveis, atuando como cidadãos de direto e de dever.

3 EXEMPLOS DE ITINERÁRIOS CULTURAIS Seguindo a proposta da pesquisa, foram selecionados alguns itinerários culturais como exemplos de atuação, estes seguem sendo apresentados brevemente, onde ocorrem, seu processo histórico e motivações para realização. O primeiro exemplo é o projeto Viva o Centro a Pé, realizado em Porto Alegre-RS, na sequência, o projeto Caminhos da Memória, de Caxias do Sul-RS e ainda o Roteiro Autoguiado do Centro de Florianópolis. O início das atividades do Viva o Centro a Pé ocorreram em 2006, com o intuito de ampliar a atividade do Caminho dos Antiquários. Ele é um passeio cultural, realizado no centro histórico da capital gaúcha. Inicialmente, orientado por professor de história e arquiteto, realizado mensalmente, com a primeira caminhada em 2007, com uma média anual de público de 1.500 pessoas. Na medida em que a atividade foi bem sucedida, novos roteiros foram implementados, uma vez que a temática é variada, entre arquitetura, literatura, artes. Além de também contemplar outros bairros, não se restringindo ao centro (ABREU, 2011). Sua motivação principal é requalificar o centro porto-alegrense, para conscientizar e divulgar valores culturais; integrar sociedade e segurança pública; contribuir para a manutenção e conservação do espaço público; qualificar o ambiente urbano; realizar promoção econômica; revitalização de áreas e imóveis degradados; proporcionar a otimização do transporte e circulação; e implementar e monitorar ações (PREFEITURA DE PORTO ALEGRE, s./d). O projeto Caminhos da Memória se constitui da parceria entre a Moúsai1, a Prefeitura Municipal e a iniciativa privada. Seu início ocorreu em 2008, com a criação do projeto e aprovação pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura para a primeira edição de Associação dos Amigos da Memória e do Patrimônio Cultural de Caxias do Sul, com atuação voltada à preservação e valorização do patrimônio cultural caxiense, por meio de palestras, exposições e publicações de materiais voltados às edificações históricas da cidade.

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2009 a 2010. A realização da atividade é de responsabilidade do arquiteto e urbanista Roberto Filippini, um dos criadores do projeto (CAMINHOS DA MEMÓRIA, 2014). Sua estrutura está baseada em atividades semelhantes que ocorrem em Florianópolis-SC, Rio Grande-RS e Porto Alegre-RS. A versão caxiense inicia no Museu Municipal, com um momento de exposição de conceitos e estilos arquitetônicos e sobre o processo de formação da cidade. A caminhada ocorre na região central da cidade, sob a animação do arquiteto responsável pelo projeto, observando as edificações significativas para a memória da cidade, animador e caminhantes (CAMINHOS DA MEMÓRIA, 2014). O projeto teve duas edições, totalizando aproximadamente 500 participantes. A frequência era quinzenalmente, aos sábados pela manhã. A motivação do projeto se deu a partir da necessidade de discutir a preservação do patrimônio edificado caxiense a fim de manter exemplares significativos pela singularidade arquitetônica e pelas relações estabelecidas com a sociedade (CAMINHOS DA MEMÓRIA, 2014). O último exemplo é o Roteiro Autoguiado do Centro de Florianópolis, desenvolvido em 2012, a partir do modelo de Dijon. Foi elaborado um mapa que orienta os participantes a conhecer 25 lugares, entre edificações, praças e monumentos do centro histórico da capital catarinense. O projeto foi desenvolvido por um turismólogo da CDL a fim de suprir uma demanda que atendesse turistas e residentes para permanecerem mais próximos dos patrimônios culturais locais (FEDERAÇÃO DAS CÂMARAS DE DIRIGENTES LOJISTAS DE SANTA CATARINA, 2012). Em cada local a ser observado há um símbolo (ladrilho com a figura do boi de mamão) que sinaliza os espaços contemplados pelo roteiro. O roteiro pode ser visualizado em celulares com leitores de QR code, para atender aqueles que preferem a versão virtual do mapa. O tempo estimado do percurso é de três horas, no entanto, pode ser adequar ao tempo de cada participante, já que não tem horários fixos nem agenda própria para ocorrer (ROTEIRO AUTOGUIADO, 2012). Esses três exemplos foram dados para apresentar itinerários urbanos que podem atender residentes e turistas, voltados à salvaguarda do patrimônio cultural local, além de propor reflexões a respeito da cidade do presente e a que se espera para o futuro. As atividades são gratuitas, o que também contempla todo e qualquer indivíduo, além de realizar uma atividade física, a caminhada, e proporcionar momentos de sociabilidade e conhecimento com outras pessoas interessadas pela mesma temática.

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4 ANÁLISE DAS ATIVIDADES CULTURAIS A proposta desenvolvida pelo ICOMOS está ligada às reflexões a respeito da preservação do patrimônio cultural, tentando agregar as diferenças, na adequação da realidade contemporânea da sociedade. Nessa perspectiva, os três exemplos de itinerários culturais apresentados atendem a primeira demanda, pois são percursos urbanos, voltados ao centro histórico e que problematizam diferentes momentos de cada cidade, contemplando ideias, valores e pessoas envolvidas em seus respectivos processos. Segundo o ICOMOS (2008, p. 3), essas percepções são retomadas conforme segue: O conceito de Itinerário Cultural revela-nos o conteúdo patrimonial do fenómeno específico de mobilidade e de trocas humanas que se desenvolveu através das vias de comunicação que facilitaram a sua expansão e que foram utilizadas ou deliberadamente postas ao serviço dum objectivo concreto e determinado. Pode tratar-se de um caminho que foi traçado expressamente para atingir esse fim ou de uma via que utilizou, inteiramente ou em parte, caminhos já existentes e que serviram para diversos fins.

Outro fator interessante é a parceria entre poder público, sociedade civil e iniciativa privada, que nos três casos analisados faz com que os diferentes setores participem das ações, não apenas como receptores. Da mesma forma que a gratuidade, ainda que em Florianópolis seja necessário pagar para visitar alguns prédios, ou em Porto Alegre, que apenas uma edificação é contemplada para observação interna, os três projetos são gratuitos, oferecendo, principalmente para a comunidade, a possibilidade de realizar atividade de entretenimento e lazer e ainda repensar a respeito da atuação de cada um na valorização da cidade e do patrimônio cultural, sobretudo em sua relação com a localidade, sendo convidado a olhar de outra forma para edificações e ruas que parecem comuns e despercebidas no dia a dia. Do ponto de vista da memória, as três atividades também se enquadram como liturgia de recordação, o fato de se tratar de um percurso a ser realizado demonstra a necessidade de estar focado naquela ação, seguindo o que é determinado tanto pelos animadores como pelo mapa. A ideia da peregrinação está presente, ainda que não haja um destino final, mas sim vários ao longo do caminho, a proximidade com o caráter religioso da caminhada também evoca sensações e sentimentos, agregando valor à atividade.

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Do ponto de vista da memória, as liturgias de recordação estimulam a comemoração e a celebração por meio da memória coletiva. Ou seja, é a realização de atividades e a instituição de espaços para homenagear momentos, pessoas e situações, capazes de provocar o sentimento de pertencimento ao grupo. O autor acredita que “os poderes fomentaram várias liturgias de recordação, tendo em vista socializar e enraizar a(s) nova(s) memória(s) em construção (ou em processo de refundação)” (CATROGA, 2001b, p. 57). Catroga acredita que “as ideias, valores e imagens que nesta se plasmam (re-presentificação) fragmentam-na em diversos ‘lugares de memória’, maneira de dizer que esses apenas serão suscitadores de recordação quando lhes é atribuído um valor simbólico” (2001b, p. 23). Assim, a relação que uma sociedade estabelece com seus patrimônios só se constitui a partir da compreensão de que esses têm valor simbólico e afetivo para com o grupo, não sendo apenas prédios, pinturas, esculturas, danças, músicas e receitas culinárias, entre outras manifestações, que não dialogam com o indivíduo, permanecendo afastados da realidade do cotidiano de todos. Para o residente, o contato com o patrimônio cultural de sua cidade é uma prática cidadã, mesmo que essa relação esteja carregada de sentimentos e valores. A conscientização da preservação desses bens ou a importância que têm para a manutenção das identidades locais também se torna uma ação para além do entretenimento e do lazer, provocando reflexões a seu respeito, de forma a ampliar o número de envolvidos nessa ação. Um exemplo é o trabalho desenvolvido pela Moúsai, em Caxias do Sul, embora a iniciativa do projeto fosse de aproximar o caxiense ao que resta do passado da cidade, há também o interesse de que os caminhantes atuem, enquanto cidadãos, participando dos debates e das decisões a respeito junto ao poder público. Por consequência, o papel do turista cidadão acaba ganhando mais força, na medida em que a cidade não é mais um espaço totalmente conhecido por seus residentes e a constituição humana se dá por migrações de diferentes regiões e momentos, transformando as identidades existentes e criando outras. Pois, segundo Gastal e Moesch (2007, p. 24), “as cidades, nas suas rotinas, impõem o constante exercício do conviver com a diversidade, o que aceleraria e transformaria a ideia de cidadania”. Na medida em que esses itinerários culturais também são pensados para os residentes, tem-se o princípio da motivação do turista cidadão. No caso de Florianópolis, a orientação é voltada aos turistas, dada a demanda, mas é divulgado ao residente justamente por pensar na necessidade de aproximar a comunidade de suas manifestações e bens culturais, pela perspectiva da identidade e da memória.

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Já em Caxias do Sul, embora a quantidade de participantes seja restrita em até 15 pessoas, a prioridade é o caxiense, sendo divulgada de diferentes formas à população local, motivada pela importância de atrair mais interessados para discutir a questão patrimonial da cidade. No caso porto-alegrense, tendo em vista que o número de participantes por caminhada é muito maior que o de Caxias do Sul, a motivação também é de problematizar o papel do centro da cidade, não apenas as questões histórico-culturais, mas as condições atuais do bairro.

5 CONCLUSÃO A partir da proposta dada, acredita-se que se estabeleceu relação interessante entre os itinerários culturais, a memória e o turista cidadão. Com isso, esses conceitos podem atuar em conjunto na preservação do patrimônio cultural. Os exemplos práticos dados, mesmo que brevemente, respondem bem aos conceitos destacados, pois estimulam a sociedade a modificar o olhar para a cidade, voltando-o para a história e memória. Ao retomar o problema da pesquisa, o questionamento sobre a viabilidade de o itinerário cultural ser uma prática de liturgia de recordação que valoriza o patrimônio cultural, acredita-se que existe uma integração entre os conceitos, embora a ideia de liturgia esteja associada ao rito, conjunto de procedimentos para um determinado fim; no itinerário, esse rito é transferido para o percurso a ser realizado, como também o objetivo final se constituir de pequenos objetivos observados ao longo do caminho. Além disso, a abordagem se dá pelas memórias, na medida em que a ressignificação das lembranças se presta para aproximar o indivíduo do patrimônio cultural. Nessa perspectiva, a identidade também se constitui um elo importante, pois ela aproxima os semelhantes pelo viés do espaço, enquanto que a memória pelo tempo. Assim, os bens e as manifestações culturais são valorizadas ao exercerem um papel significativo na vida dos cidadãos, sendo consideradas patrimônio cultural. Quanto ao turista cidadão, sua importância está presente na ação do cidadão, no caso, partícipe do itinerário. Ao perceber que a cidade em que vive não é plenamente conhecida, ao sofrer o estranhamento, tal qual em um lugar nunca visto, o cidadão pode viver a experiência de turista. Como consequência dessa condição, além de estar motivado a observar a sua cidade com olhos de turista, ele também percebe que exercer a cidadania é respeitar as diferenças, valorizar outras manifestações culturais e cuidar e preservar o local onde reside.

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A preservação e a valorização dos bens culturais somente ocorrerão na medida em que a sociedade compreender o seu papel como representante do passado, participante de um processo histórico e que remete sentimentos, lembranças e valores no presente e para o futuro, uma vez que o indivíduo precisa de referências que sustentem seu posicionamento por isso a necessidade de manter expressões culturais de diferentes momentos, com o intuito de serem essas referências também.

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REFERÊNCIAS ABREU, Carina Vasconcellos. Educação e o Turista Cidadão: viva o centro a pé (Porto Alegre-RS 2006/2011). Dissertação (Mestrado) Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Faculdade em Educação. 2011. Disponível em: <http://repositorio.pucrs.br:8080/ dspace/handle/10923/2819#preview>. Acesso em: jan. 2015. CAMINHOS DA MEMÓRIA. Observações participantes. Jul./nov. 2014. CARDOSO, F. M. P.; CASTRIOTA, L. B. O itinerário enquanto instrumento de preservação do patrimônio cultural: o caso da Estrada Real. Fórum Patrimônio, v. 5, n. 2, jul./dez. 2012. Disponível em: <http://www.forumpatrimonio.com.br/seer/index.php/forum_patrimonio/article/ view/114/101>. Acesso em: nov. 2014. CATROGA, Fernando. Memória e História. In: PESAVENTO, S. J. (Org.). Fronteiras do Milênio. Porto Alegre: Ed. Universidade/Ufrgs, 2001a. _____. Memória, História e Historiografia. 1. ed. Coimbra: Quarteto, 2001b. FEDERAÇÃO DAS CÂMARAS DE DIRIGENTES LOJISTAS DE SANTA CATARINA. Roteiro Autoguiado do Centro Histórico é lançado na CDL de Florianópolis. 2012. Disponível em: <http://www.fcdl-sc.org.br/redirect.php?center=viewArtigo&controle=verArtigo&hdd_idArtigo=1783>. Acesso em: jul. 2014. FERRARA, Lucrécia D’Alessio. Olhar Periférico. Informação, Linguagem e Percepção ambiental. 2. Ed. São Paulo: Edusp, 1999. GASTAL, Susana; MOESCH, Marutschka Martini. Turismo, Políticas Públicas e Cidadania. Coleção ABC do Turismo. São Paulo: Aleph, 2007. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice/Revista dos Tribunais, 2006. ICOMOS. Carta dos Itinerários Culturais. Quebec, 2008.

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PREFEITURA DE PORTO ALEGRE. Viva o Centro. O projeto. S./d. Disponível: <http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/vivaocentro/ default.php?p_secao=133>. Acesso em: jan. 2015. ROTEIRO AUTOGUIADO DO CENTRO HISTÓRICO DE FLORIANÓPOLIS. Disponível em: <http://www.roteiroautoguiado.com.br/>. Acesso em: jul. 2014.

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Natashe Carolina Kich

Bacharel em Turismo (FEEVALE), Especialista em Gestão da Produção Cultural (CASTELLI), Mestranda em Processos e Manifestações Culturais (FEEVALE) e bolsista PROSUP/CAPES. E-mail: natashecarolina@gmail.com.

Luiz Antônio Gloger Maroneze

Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professor do Curso de Mestrado em Processos e Manifestações Culturais/Feevale. Email: luizmaroneze@feevale.br.


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1 INTRODUÇÃO Enquanto manifestações culturais, as festas são momentos extraordinários em todas as sociedades. Podem ter motivações religiosas, cívicas, econômicas entre outras, apresentando sempre uma grande complexidade. São momentos em que ordem sofre uma inversão e as normas são relativizadas. No Brasil, a maioria das festas populares são de origem religiosa. No país são muito comuns os festejos em homenagem aos santos e santas padroeiras, como Nossa Senhora Aparecida, e em datas importantes para o calendário da Igreja Católica, como Dia de Reis ou Dia de Pentecostes. Até o Carnaval está ligado à religião católica, pois, apesar de ser considerada uma festa profana, seu encerramento marca o início do período da Quaresma (os 40 dias que antecipam a Páscoa). Entretanto, há outras manifestações que marcam a cultura popular brasileira e não estão relacionadas à devoção religiosa como, por exemplo, o Boi Bumbá, que é representado durante o célebre Festival Folclórico de Parintins, no Amazonas, e a Oktoberfest, celebração da tradição germânica herdada dos imigrantes, que ocorre na região sul do país. Sobre as festas, Birou (1966) diz que se trata de uma necessidade social em que se atua uma superação das condições normais de vida, um acontecimento que se espera, criando-se assim uma tensão coletiva agradável, na esperança de momentos extraordinários. O autor também coloca que a festa é a expressão de uma coletividade, uma válvula de escape da difícil vida cotidiana. Macedo (1986, p. 184 apud GASTAL; MACHIAVELLI; GUTERRES, 2013, p. 437) destaca que a festa “cimenta o sentimento coletivo”, sendo uma dimensão da vida. De acordo com o autor, as festividades contribuem para promover o sentimento especial de estar junto e configuram o espaço social privilegiado do episódio extraordinário. As festas são uma forma de expressão e afirmação de valores. Nelas está presente o empenho de construção de uma imagem que é a representação da visão ideal do grupo. As festas populares realizam-se para celebrar um acontecimento, que está intimamente ligado às tradições de determinado grupo. A organização destes festejos é feita pela própria comunidade, portanto, o acontecimento está de acordo com os símbolos do lugar, compondo e promovendo a identidade local do mesmo. O presente trabalho fará uma breve explanação sobre as festas populares, levantará fatores e exemplos de como estes eventos podem auxiliar na preservação e manutenção da identidade das comunidades locais em meio ao fenômeno da globalização e da massificação cultural.

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2 MANIFESTAÇÃO POPULAR As festas populares podem ser tratadas como festas tradicionais, porém, nem toda festa popular pode ser considerada como uma festa tradicional. O que determina a tradição de determinado evento é o número de vezes em que foi celebrado em certo contexto, portanto a celebração de uma festa popular por um extenso espaço de tempo é o que a torna tradicional. De acordo com Luciane Bradacz e Airton Negrine (2006) as festas costumam apresentar um envoltório ideológico e simbólico das comunidades que as instituem e comemoram ao mesmo tempo em que destacam crenças, valores, costumes, conhecimentos e outros tantos aspectos culturais envolvidos. Araújo (1973, p. 11 apud MELO 2002) identifica o surgimento das festas na sociedade humana: Dentre as manifestações da vida social nos agrupamentos humanos podemos destacar a festa, cujo aparecimento data das mais remotas eras, certamente quando o homo faber, deixando de ser mero coletor de alimentos, praticante da técnica da subsistência da catança, passou a produzí-los, plantando (...). A festa interrelaciona-se não só com a produção mas também com os meios de trabalho, exploração e distribuição, ela é portanto conseqüência das próprias forças produtivas da sociedade, por outro lado é uma poderosa força de coesão grupal, reforçadora da solidariedade vicinal cujas raízes estão no instinto biológico da ajuda, nos grupos familiares.

As celebrações populares são uma forma de expressão muito significativa da vida em comunidade. De acordo com os autores Alcade e González (1989, p. 114 apud RIBEIRO, 2004, p. 48) podemos diferenciar quatro dimensões que são específicas destes acontecimentos, e de maneira geral, de todo fenômeno festivo: simbólica, sociopolítica, econômica e estética. Segundo os próprios autores, a dimensão mais importante é a simbólica, pois está presente nos fenômenos festivos, definindo e reproduzindo simbolicamente a identidade de uma coletividade ou de um grupo social. De acordo com Paiva e Moura (2001, p. 38 apud RIBEIRO 2004, p. 50), as festas populares no Brasil podem ser classificadas quanto a sua característica e componentes estruturais em: • Religiosos: ministrados por sacerdotes ou por pessoas permitidas pela igreja, como missa, procissão, benção, novena e reza; • Profano-religiosos: providos por leigos com a aprovação do sacerdote homenageando as figuras sacras, de modo alegre e festivo, tais como levantamento de mastro, bailados como congados, folia de reis, Império do Divino, Reinado do Rosário, Pastorinhas, etc. • Festas profanas: possuem caráter de entretenimento.

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Segundo Amaral (2001, apud BRADACZ; NEGRINE 2006), a festa é uma das linguagens favoritas dos brasileiros. Através desses acontecimentos, o povo traduz suas experiências, expectativas e imagens sociais. De acordo com a autora, durante as festas populares o povo tem a oportunidade de resolver, pelo menos simbolicamente, algumas contradições da vida social. A autora coloca ainda que, no decorrer da história do Brasil, os festejos têm uma dimensão de aprendizado da cidadania e apropriação da história pela própria comunidade.

3 FESTAS POPULARES E GLOBALIZAÇÃO Segundo Renato Ortiz (1998), as pessoas que escrevem sobre “mundialização” são, geralmente, otimistas quanto ao futuro ou ligadas a certos interesses (de países, multinacionais, etc.). O uso de metáforas é marcante nessa literatura por conta de o tema estar ainda fora do alcance das Ciências Sociais. A Economia seria aquela que mais teria contribuído acerca dessa nova realidade. Os economistas, por sinal, estabelecem uma importante distinção entre “mundialização” e “globalização”. O primeiro conceito está relacionado ao aumento das atividades econômicas no tocante à extensão geográfica. Já o outro é uma prática mais complexa, voltada ao mercado e às estratégias mundiais – que trabalham como uma junção de peças interdependentes, porém, ao mesmo tempo, interligadas. Ainda de acordo com o autor, a cultura mundializada corresponde às mudanças estruturais dentro da sociedade – que, inclusive, não são feitas prontamente. Esse tipo de cultura também não causaria uma homogenização social, tampouco acabaria com as outras manifestações. Ao contrário, faria uso delas. Stuart Hall (2002, p. 67) cita AntonhyMcGrew (1992), que diz que a “globalização” refere-se aos processos atuantes numa escala global, que cruzam as fronteiras nacionais, agregando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e experiência mais interconectado. Esse processo atuaria no sentido de criar novas dinâmicas identitárias, atuando, por exemplo, nas dinâmicas das festas e suas atualizações. De acordo com Cláudia Steffens de Castro (2008, p. 2), podemos perceber atualmente o ressurgimento das culturas populares com algumas de suas características regionais alteradas para atender um novo mercado de consumo de bens simbólicos em um mundo comandando

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pelos meios de comunicação, de informação. Segundo Castro (2008, p. 2), o que ocorre, na realidade, são processos de interação dos diferentes campos de comunicação dando novos formatos às identidades culturais. Observa-se uma tratativa de conivência entre tradição e modernidade. Osvaldo Meira Trigueiro (2005, pg.04), pesquisador da cultura nordestina, escreve sobre as influências deste fenômeno nas festas populares desta região: Exemplos desses novos procedimentos são as ressignificações das festas populares, do artesanato, da culinária, das cantorias de violas, do cordel e de tantas outras manifestações da cultura tradicional nordestina proporcionadas pelas novas lógicas de consumo do local, alavancadas pela televisão. Ora, se por um lado são hegemônicos os interesses de persuasão cultural dos megagrupos econômicos, por outro os mediadores ativistas culturais locais criam estratégias próprias de permanência nos seus pedaços e, como enfrentamento do novo contexto, descobrem novas formas de comunicação para divulgar os seus produtos culturais [...].

Canclini (2010) escreve que não controlamos os cenários onde são organizados a maior parte da produção e do consumo atual, mas mesmo dentro do processo de globalização, os atores sociais podem constituir novas interconexões entre culturas e redes que promovam as iniciativas sociais. De acordo com Gastal, Machiavelli e Guterres (2013, p. 438), do ponto de vista do turismo as festas tornaram-se importantes como atrativos que provocam a mobilização de turistas e visitantes, além de cooperar com a qualificação da imagem dos lugares que as realizem. Na sociedade globalizada, além dos benefícios econômicos, o turismo pode auxiliar na valorização da cultura local. Para Barreto et. al.(2001), o contato estabelecido entre turistas e residentes do local, entre a cultura do turista e a cultura do morador local, desencadeia um processo de contradições e questionamentos, mas que acaba provocando o fortalecimento da identidade e da cultura dos sujeitos e da sociedade receptora, na maioria das vezes, o fortalecimento do próprio turista, que se redescobre na alteridade. Conservar a identidade cultural relacionada com os componentes da cultura é manter os elementos que constituem o patrimônio cultural imaterial que é transmitido de geração em geração e é constantemente recriado pelos povos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, colaborando para promover o respeito à diversidade cultural e preservar a identidade dos mais diversos povos. Para que as festas populares possam preservar a identidade local, a comunidade deve ser mantida como principal organizadora e celebrante destes eventos.

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4 A FESTA DA COLÔNIA DE GRAMADO Gramado teve sua vocação para o turismo despertada muito cedo. O clima agradável, a hospitalidade da população, a visão dos gestores, as belezas naturais, o artesanato, as malhas, os chocolates e os grandes eventos fizeram da cidade um dos destinos indutores do turismo nacional. Milhares de pessoas visitam a cidade todo ano, muitas vezes em função dos grandes eventos gramadenses. A Festa da Colônia é um evento peculiar, pois entre todos grandes eventos de Gramado, é o único onde as comunidades do interior são as grandes protagonistas. A Festa está alicerçada em três eixos: a manutenção da identidade do agricultor, a preservação dos usos e costumes herdados e o entrosamento que se estabelece com o visitante. Na Festa são celebradas as três etnias formadoras da cidade: portuguesa, italiana e alemã. De acordo com Bradacz e Negrine (2006), o marco inicial da Festa da Colônia de Gramado foi uma festa organizada pelos agricultores no ano de 1984, na Linha Bonita, zona rural do município. Muitas autoridades do poder executivo e legislativo de Gramado compareceram a festividade. Essa festa foi um sucesso e surpreendeu até mesmo seus idealizadores. A ideia principal era proporcionar um momento festivo e de confraternização para os agricultores e seus familiares. Bradacz e Negrini (2006, p. 51) escrevem que: Sabe-se que muitas dessas confraternizações ainda ocorrem no meio rural, com os mesmos objetivos, e se destinam aos agricultores e seus familiares. Todavia, a Festa das Frutas, como foi denominada em 1984, mostrou ao poder público que ali havia culturas que deveriam ser preservadas e prestigiadas, com significados simbólicos próprios e originalidade já pouco vista na atualidade.

A I Festa da Colônia de Gramado ocorreu no período de 05 a 13 de janeiro de 1985, como cenário da XI Festa das Hortênsias, que foi realizada de 15 de dezembro de 1984 a 13 de janeiro de 1985. De acordo com Bradacz e Negrine (2006), autores que serão norteadores da pesquisa, esta foi a primeira vez que os colonos do município comercializaram seus produtos na já tradicional Festa do calendário turístico de Gramado. Cenários que remetiam à colônia foram montados no Pavilhão de Esportes, ao lado do prédio da Prefeitura Municipal. De acordo com Bradacz e Negrine, no local foram construídos nove fornos para assar pães e cucas para serem comercializados durante a festa. Esta foi uma forma de vincular a cultura da colônia com o turismo, já que a Festa das Hortênsias era um atrativo turístico da cidade.

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Ainda de acordo com Bradacz e Negrine (2006), dois fatos contribuíram para que os colonos começassem a divulgar sua cultura no meio urbano. Por um lado havia a necessidade do poder público de inovar a Festa das Hortênsias, que estava perdendo fôlego, e até aquele momento a mesma não tinha contato com os agricultores do município. Por outro lado, houve a valiosa intuição e sensibilidade do prefeito na época, Pedro Henrique Bertolucci, em promover o homem da área rural. As origens da Festa da Colônia, nas pesquisas feitas por Bradacz e Negrine (2006), possuem versões diferentes. Os objetivos primordiais dos colonos eram ampliar a comercialização dos seus produtos e melhorar a renda familiar. Já o poder público colocou a colônia como cenário da festa para ver qual seria a consequência dessa exposição frente à população da cidade. A Segunda Festa da Colônia foi realizada em 1986. Edição, em que o evento tornou-se independente. Na programação da festa estavam inclusas opções gastronômicas, campeonatos de jogo de mora e de bocha de quadra, concurso de cantorias, apresentações musicais, grupos folclóricos, e entrega de troféus dos concursos realizados no decorrer da festa. De acordo com Bradacz e Negrine (2006), a festa foi um sucesso, e passou a ser um novo atrativo da cidade de Gramado, passando a fazer parte do calendário turístico da região. Não existe apenas uma versão sobre a origem da Festa da Colônia. De acordo com as informações obtidas por Bradacz e Negrine (2006), os objetivos dos colonos que participaram a primeira vez do evento buscavam ampliar a comercialização dos seus produtos e aumentar a renda da família. Já o poder público colocou a colônia como cenário da Festa das Hortênsias para ver qual seria a reação da população urbana. Atualmente, os objetivos mais perceptíveis da Festa são a valorização da cultura das comunidades do interior, a visibilidade da produção agrícola do município de maneira que o acontecimento possa fomentar a renda dos colonos, e a integração da comunidade rural com a comunidade local urbana e turistas. A Festa é promovida pela autarquia Gramadotur, que gere todos os grandes eventos da cidade. Os patrocínios são de empresas nacionais, regionais e locais, captados através da Lei de Incentivo à Cultura do Estado. A organização executiva da Festa é feita através de Comissões, e nelas estão presentes representantes da comunidade do interior. Desta forma, a comunidade se faz presente no “pensar” a festa. Durante a festividade, percebemos que a comunidade rural é realmente a protagonista. Além da participação efetiva no evento, atuando em espetáculos, comercializando alimentos e bebidas, vendendo produtos de suas propriedades, os colonos também se fazem presentes como

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participantes e apreciadores do evento. Vestem sua melhor roupa e festejam alegremente a sua cultura, integrando-se com a comunidade urbana da cidade e turistas das mais diversas regiões do país e exterior. A Festa da Colônia de Gramado é um evento que mantém as suas raízes, e consegue atingir seus objetivos mantendo os seus eixos apesar de toda a influência recebida com a globalização e o turismo. O evento não deixou de ser uma festa popular para se tornar um espetáculo para atrair visitantes. A Festa da Colônia é o momento no qual o interior invade a cidade, onde os costumes locais são celebrados e a identidade rural valorizada e preservada. Todos são convidados ilustres dessa festa do interior, turistas e moradores da cidade. E é esse contato entre culturas que torna o evento ainda mais instigante.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS As festas populares são manifestações culturais que possuem uma complexidade simbólica de grande amplitude. São tradições antigas ou recentes que, independentemente de origem – religiosa ou profana – são afetadas hoje pelo processo da globalização cultural. Na história, os sentidos são sempre alterados com o tempo. Hoje, no entanto, os processos são mais complexos por conta das novas mídias e da nova economia. O caso específico da Festa da Colônia, que possui uma tradição relativamente recente, é um interessante exemplo da dinâmica que se estabelece entre tradição e modernidade. Daí o porquê de buscarmos aprofundar estudos sobre a mesma: estender o evento e seu sentido no contexto complexo da crise da modernidade. Nestas festividades, percebe-se a cultura local na culinária, nas danças, nas vestimentas, nas cerimônias. Esses acontecimentos são de suma importância para a valorização da identidade local, além de gerar sentimento de pertencimento ao grupo em contraposição aos “outros”, aos influxos desta cultura mais aberta ao mundo. Com o advento da globalização, alguns estudiosos presumiram que a cultura global massificada iria sobrepor-se às culturas locais, tornando todas homogêneas. Porém, o que tem ocorrido com grande frequência, é a valorização das culturas locais, pela atração que as diferenças causam. Portanto, no mundo globalizado, ocorrendo a valorização do local e da diferença, as festas populares são momentos de afirmação e de preservação da identidade e da cultura da comunidade. O turismo, se bem planejado e acontecendo de forma sustentável, pode

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ser uma opção viável das comunidades melhorar suas condições econômicas durante os eventos e lançar se ou firmarem-se como destinos turísticos, podendo divulgar todos os atrativos da região. Nessas ocasiões ainda podem ser vendidos produtos locais, artesanato, entre outros. Os efeitos da globalização são inevitáveis, estão por todos os lugares. Para Canclini (2010), os estudos mais elucidativos acerca desse processo são aqueles que permitem a compreensão do que podemos ser e fazer com os outros, de que forma enfrentar a heterogeneidade, a diferença e a desigualdade. Para o autor, num mundo onde as confianças locais perdem a exclusividade, estereótipos, mal-entendidos, preconceitos, podem perder espaço com a convivência global, que permite esse contato com o outro. E essa aproximação com o diferente é, na maioria das vezes, motivo de fascínio e curiosidade. O conhecimento das culturas distintas nos possibilita um grande aprendizado e conhecimento. Saber absorver e filtrar os elementos do mundo globalizado, ao mesmo tempo em que se valoriza a própria cultura e identidade, é uma forma de manter vivo o sentido dos eventos que ocorreram por muitas gerações.

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REFERÊNCIAS BIROU, Alain. Vocabulaire Pratique desSciencesSociales, Paris: editionsouvriéres. Edição portuguesa - Dicionário das Ciências Sociais, Lisboa, Dom Quixote, 2. ed., 1976, 1966. BARRETTO, Margarita; BANDUCCI, Álvaro Jr. (Orgs.). Turismo e Identidade Local. Campinas: Papirus, 2001. BRADACZ, Luciane; NEGRINE, Airton. Cultura, Lazer e Turismo: a festa da colônia de Gramado/RS. Edição dos Autores. Porto Alegre: EST Edições, 2006. CANCLINI, Néstor Garcia. A Globalização Imaginada. São Paulo: Iluminuras, 2010. CASTRO, Cláudia Steffens. Educação para o Turismo: preservação da identidade regional e respeito à cultura imaterial. Revista de História e Estudos Culturais, v. 5, n. 4, out./nov./dez. 2008. Disponível em: <http://www.revistafenix.pro.br/PDF17/ARTIGO_07_CLAUDIA_STEFFENS_ DE_CASTRO_FENIX_OUT_NOV_DEZ_2008.pdf>. Acesso em: 29 de jan. de 2015. GASTAL, Susana de Araujo; MACHIAVELLI, Mariana Schwaab; GUTERRES, Liliane Staniscuaski. Festa Temática: da tradição à modernidade. Turismo em Análise, v. 24, n. 2, ago. 2013. p. 432-458. Disponível em: <www.turismoemanalise.org.br/turismoemanalise/article/view/302>. Acesso em: 15 jan. 2015. HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. MELO, José Marques de. As Festas Populares como Processos Comunicacionais: roteiro para o seu inventário, no Brasil, no limiar do século XXI. Disponível em: <http://www2.metodista.br/unesco/PCLA/revista11/projetos%2011-1.htm>. Acesso: 22 de jul. de 2014. ORTIZ, Renato. Mundialização e Cultura. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1998.

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RIBEIRO, Marcelo. Festas Populares e Turismo Cultural – inserir e valorizar ou esquecer? O caso dos moçambiques de Osório, Rio Grande do Sul. Revista Pasos. v. 2 n. 1, 2004, p. 47-56. TRIGUEIRO, Osvaldo Meira. A Espetacularização das Culturas Populares ou Produtos Culturais Folkmidiáticos. Disponível em <http://bocc. ubi.pt/pag/trigueiro-osvaldo-espetacularizacao-culturas-populares.html>. Acesso em: 17 jul. 2014.

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Gislene Feiten Haubrich

Doutoranda e Mestra em Processos e Manifestações Culturais (Feevale). Especialista em Comunicação Estratégica e Branding (UMayor e Feevale). Graduada em Comunicação Social (Feevale). E-mail: gisleneh@gmail.com.

Ernani Cesar de Freitas

Pós-doutor em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (PUC-SP/ LAEL). Doutor em Letras - Linguística Aplicada (PUCRS).Professor permanente do PPG em Processos e Manifestações Culturais na Universidade Feevale. E-mail: ernanic@feevale.br.


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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Um dos marcos mais relevantes para o entendimento da sociedade contemporânea diz respeito à aceitação da subjetividade humana como referência fecunda diante das transformações constantes. As relações estabelecidas entre os sujeitos nos diversos espaços em que circulam mobilizam saberes e sentidos que fundamentam tanto a cultura que os envolve quanto sua identidade. A dialética entre o posto e o percebido posiciona o indivíduo como produto e produtor da sociedade (BERGER; LUCKMANN, 2012). Um ser capaz de transformar a realidade por meio de suas transgressões nos papéis que assume em diferentes contextos. Podem-se incluir, então, as organizações como espaços privilegiados para estudar as práticas socioculturais que aproximam e afastam pessoas diante do trabalho. Os sujeitos advindos da sociedade, por meio de suas ações, constroem e reconstroem as organizações; logo, elas são motrizes de manifestações culturais, por meio da comunicação. Os elementos escolhidos para compor os discursos transmitem interesses e expressam possibilidades de aproximação entre públicos e organização, sendo a base para representação da identidade organizacional, que é interpretada, compreendida e propagada (com adaptações) por seus interlocutores. Dessa forma, além de promover uma cultura própria, com orientações de conduta e de fazer da atividade, as organizações também se adéquam, socializam e acoplam sujeitos, com suas histórias, vivências e crenças individuais, ou seja, com uma cultura própria, que necessita ser acomodada e dialogada com o todo. Por aspectos como esses, percebe-se a relevância da inclusão dos estudos organizacionais, com enfoque comunicacional, para compreender os engendramentos promovidos pelos sujeitos à cultura. Ao longo do tempo, a capacidade de construção de saberes e sentidos foi reduzida à mera reprodução daquilo que é posto pelo ser comunicante. O receptor desse processo era passivo, recebendo instruções e concordando, absolutamente, com elas. Na teoria, muitos estudos já admitem os interlocutores como seres ativos no processo de comunicação. Porém, muitas das organizações na contemporaneidade mantêm práticas comunicativas unilaterais e centralizadas nas mensagens emitidas. Ao ter como base o trabalho, tal reducionismo é inviável, pois interessa compreender como a linguagem no cotidiano do ambiente laboral o transforma, além de modificar o sujeito e também a cultura. Nesse sentido, a proposta de criação de um modelo para estudar essas trocas linguageiras se justifica, pois visa evidenciar os diversos discursos tensionados nas organizações, admitindo-os como fontes profícuas para repensar a comunicação organizacional.

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Visto o interesse em estudar as práticas comunicacionais no trabalho e as possíveis manifestações de sentidos que movimentam a cultura, o artigo tem como objetivo central apresentar o modelo teórico-ergo-discursivo para análise dos discursos organizacionais. Sob a luz desse propósito, o texto partirá de concepções metodológicas para o uso do modelo e passará pela definição das categorias teóricas, ergológicas e discursivas. Na sequência, será conduzida a apresentação do dispositivo de análise e sua operacionalização. Por fim, promove-se uma breve reflexão sobre o uso do modelo, suas limitações e as possibilidades de adaptação a outros estudos.

2 DEFINIÇÃO DE CATEGORIAS ESSENCIAIS: CONCEPÇÕES METODOLÓGICAS E TEÓRICOERGO-DISCURSIVAS A proposta de um modelo de análise é desafiadora a todos os pesquisadores. A adaptação de procedimentos e técnicas à observação de um corpus, conjugada às reflexões teóricas e expectativas de estudo, convoca os investigadores a um denso envolvimento para compreender o(s) objeto(s) de pesquisa. A opção por apresentar, através de artigo, o modelo desenvolvido para um estudo específico, a fim de que os interlocutores possam usá-lo em seus próprios experimentos, é uma atividade de certa forma perigosa dada a necessidade de desprendimento do objeto e do corpus de origem. Exige, ainda, a capacidade de generalização em associação à especificidade solicitada às pesquisas acadêmicas. Cientes desses cuidados considera-se fundamental delinear, desde o princípio, o espectro que envolve a proposta do dispositivo de análise aqui apresentado. Conforme anuncia o objetivo central desta reflexão, trata-se de uma proposta aplicada a discursos organizacionais. A esse objeto é congregada a percepção de que as “organizações são construções discursivas porque o discurso é a real fundação sobre a qual a vida organizacional é construída.” (FAIRHUST; PUTNAM, 2010, p. 105). Perante essa concepção teórica, abre-se a possibilidade de aplicação do modelo às pesquisas aplicadas, ou seja, na relação teoria e contexto, “realidade circunstancial” (GIL, 2008). Embora dados quantitativos possam ser agregados à composição da análise, eles se tornam secundários, visto que o enfoque é qualitativo para abordagem do comportamento humano e considera a existência de “uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, uma interdependência viva.” (CHIZZOTTI, 2010, p. 79).

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Desse modo, recomenda-se a apresentação dos resultados de forma descritiva, ou seja, considerando múltiplas facetas envolvidas pelo objeto, mas sem intervenção junto a ele, ao menos de forma direta. No entanto, defende-se que os resultados, quando considerados pela gestão organizacional, tendem a contribuir tanto com o entendimento da situação instaurada no espaço laboral quanto com a identificação de caminhos para mudanças que venham a ser necessárias. O modelo sustenta, assim, a dimensão de diagnóstico no planejamento comunicacional e estratégico das organizações, principalmente quanto à sua responsabilidade sociocultural como mobilizadora de perspectivas sociais por meio do trabalho. A origem dos dados, diante dos procedimentos mencionados, considera a documentação indireta com o uso de discursos expressos na materialidade verbal escrita, como jornais, atas, relatórios, manuais, planos, dentre outros. Nesse caso, o enfoque da análise é crítico por contrapor os princípios teóricos, apresentados na sequência, a tentativa dos emissores de subjugar a percepção dos seus interlocutores e tornálos passivos no processo de interpretação do ato comunicativo. Os dados advindos das pesquisas de campo, manifestos como documentação direta a partir de entrevistas, observações, etnografia, etc., de outro modo, no confronto teoria-realidade, fundamentam e transformam os aspectos teóricos apresentados, visto que as realidades construídas pelos discursos dos sujeitos representam novos enfoques ou elementos a serem considerados. Nesse caso, além das mudanças na perspectiva do pesquisador, abre-se a possibilidade de que o próprio sujeito, interpelado pela pesquisa, possa questionar os aspectos levantados na coleta de dados e mobilize mudanças na realidade que o cerca. Delimitadas as concepções metodológicas que orientam a escolha do modelo de análise teórico-ergo-discursivo, pode-se conduzir sua categorização perante questões que são de livre seleção do usuário, bem como determinar os conceitos que fundamentam um raciocínio ressignificado do trabalho, que deve estar no centro da reflexão. Embora a pesquisa que tenha originado1 o dispositivo tivesse como categorias teóricas as noções de cultura e de comunicação organizacional, de identidade e de relações de poder, este se mostra como o bloco mais flexível do dispositivo, visto que pode se adequar aos interesses específicos do pesquisador no estudo do ambiente organizacional. A principal característica do conjunto teórico é seu propósito vinculado às questões situacionais, referindo-se à parte final da análise. Diante das especificações apontadas pelos discursos do trabalho, pode-se apresentar inferências acerca do ambiente organizacional em si. Com a apresentação gráfica do dispositivo, na próxima seção do artigo, a operacionalização das ideias ficará mais clara para o leitor. Estudo de dissertação desenvolvido durante o mestrado em Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale. Disponível em: <http://biblioteca.feevale.br/Dissertacao/ DissertacaoGisleneHaubrich.pdf>.

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As concepções ergológicas, catalizadoras do processo analítico, visto a centralidade do trabalho para reflexão e também por comportar uma mudança de paradigma2 perante a noção de atividade, vinculam-se ao nível comunicacional, ou seja, de mobilização de sentidos perante as interações dos sujeitos. “A proposta e (desafio) essencial da Ergologia é pôr em dialética diversos saberes para compreender o mundo do trabalho perante as transformações da sociedade.” (HAUBRICH, 2014, p. 66). Trinquet (2010, p. 95) refere-se à ergologia como “um salto epistemológico no domínio das ciências do homem” que visa “analisar sob quais condições [a atividade] se realiza efetivamente, o que permite organizá-la melhor e, portanto, torná-la mais eficaz e rentável.” A atividade contempla o todo do sujeito investido na gestão de seu fazer laboral. Amplia-se, desse modo, a ideia taylorista/fordista que reduz o trabalho à reprodução das tarefas prescritas. Transgressão, criatividade e inovação são construtos-chave na caracterização da atividade. Assim, percebe-se que, embora concepções relacionadas à Ergologia tenham de nortear a investigação, há certa liberdade na escolha de quais categorias serão exploradas e de que forma. Pode-se optar por olhar a partir das normas e renormalizações (SCHWARTZ; DURRIVE, 2007), dos saberes (DURRIVE, 2011), dos usos de si (SCHWARTZ, 2014) ou ainda perante o percurso metodológico do Dispositivo Dinâmico de Três Pólos (DD3P), dentre outras. A escolha de uma das categorias temáticas ergológicas pode ser uma alternativa interessante para que se compreenda profundamente sua mobilização no ambiente laboral. Do mesmo modo, articular várias delas tende a originar resultados mais generalistas, que auxiliam na compreensão do trabalho para além de uma visão economicista. Salienta-se que essa definição dependerá do interesse específico do pesquisador e implicará as categorias teóricas a serem exploradas. A dimensão discursiva, apesar de apresentada por último, fundamenta todo o processo de análise. Diante da opção pela perspectiva Semiolinguística, elaborada por Charaudeau (2010, 2012), assenta-se o modelo nos níveis por ela propostos, conforme mostra a Figura 1. Parte-se do nível discursivo, movimenta-se ao comunicacional e se manifesta no situacional. Embora, a título de ilustração, os níveis sejam representados de forma isolada, salienta-se que eles são interdependentes uns dos outros. Desse modo, uma vez definido o objetivo do estudo, é fundamental que o pesquisador tenha cuidado na articulação entre as categorias temáticas, a fim de que se produzam resultados relevantes.

Para a Ergologia, a perspectiva economicista do trabalho é posta em segundo plano, sendo evidenciada a ação humana no trabalho, por meio da interpretação das normas, as transgressões e renormalizações. A linguagem passa a ser central nessa análise. Para saber mais, sugere-se a leitura da obra “Ergologia e Trabalho”, organizado por Yves Schwartz e Louis Durrive.

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Figura 1 – Níveis do Modelo Semiolinguístico Fonte: Haubrich (2014, p. 106) 233

De acordo com a representação na Figura 1, a análise teórico-ergo-discursiva está assentada na possibilidade de diálogo entre os níveis propostos pela Semiolinguística de Charaudeau (2012). As categorias teóricas relacionam-se com o nível situacional, que contempla o contexto e a situação na qual o objeto de pesquisa se encontra. O nível comunicacional liga-se às concepções ergológicas do trabalho, visto que é por meio da linguagem que os sujeitos podem transformar (e perceber as transformações) a atividade. A manifestação linguística cotidiana, os discursos, refere-se à materialidade que, em estado bruto, fundamenta os demais conceitos. Assim, as evidências presentes nos discursos podem se afastar ou aproximar das conceituações teóricas. Além dos níveis, a teoria Semiolinguística contribui para o repensar do processo comunicacional com a inclusão de novas variáveis para seu estudo. A base da proposta de Charaudeau (2010, 2012) está na opacidade do ato de linguagem, ou jogo discursivo, estabelecido entre parceiros. Além de abarcar os seres sociais3, os sujeitos comunicante (EUc) e interpretante (TUd), outros dois seres de fala são incluídos no Os seres sociais ocupam a posição de emissores e receptores. Como a proposta do autor visa dar mais autonomia aos sujeitos do ato de linguagem sem privilegiar um ou outro, adota-se a nomenclatura determinada por Charaudeau (2010, 2012).

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processo: os sujeitos enunciador (EUe) e destinatário (TUd). Grosso modo, pode-se explicar a interação entre os sujeitos, nessa perspectiva, do seguinte modo: diante de um acontecimento fixa-se uma situação de comunicação (CHARAUDEAU, 2010), que se refere ao enquadramento do encontro entre os sujeitos. Essa situação é permeada por circunstâncias discursivas (CHARAUDEAU, 2010) e norteada por um contrato de comunicação (CHARAUDEAU, 2012). Desse modo, antes da verbalização do discurso em situação, os seres de fala (EUe e TUd) são acionados para a produção dos enunciados. Essa produção implica aspectos identitários dos interlocutores, finalidades, propósitos e a escolha do dispositivo (componentes do contrato de comunicação) para que se estabeleça a relação. A escolha dessa perspectiva discursiva permite que os diálogos cotidianos sejam compreendidos e analisados como discursos. Assim, evidenciam-se os sentidos e as intenções de cada sujeito ao proferir seus enunciados e atuar na construção da realidade da qual faz parte, no caso, do ambiente organizacional. Além disso, Charaudeau (2010, 2012) percebe ambas as instâncias (produção e recepção) de forma ativa no processo de produção de sentidos. Desse modo, a concepção do ato de linguagem tem relação estreita com a percepção de trabalho enquanto atividade. Como o modelo de análise aqui esclarecido tem enfoque no ato de linguagem organizacional, ante as várias vozes que instituem o ato comunicativo, as seguintes categorias temáticas da Semiolinguística são incluídas no processo analítico: modos de organização discursivos (CHARAUDEAU, 2010), circunstâncias de discurso, contrato de comunicação e suas subcategorias: situação de comunicação, dados externos (identidade, finalidade, propósito e dispositivo) e dados internos (espaços de locução, tematização e relação) (CHARAUDEAU, 2010, 2012). Esclarecer como ocorre a inter-relação entre os níveis e as categorias teóricas, ergológicas e discursivas é a abordagem que dá sequência ao artigo.

3 ARTICULAÇÃO: DESENVOLVIMENTO DO APARATO METODOLÓGICO A proposta de análise teórico-ergo-discursiva pressupõe a articulação de categorias interdisciplinares para o estudo de discursos organizacionais. Mediante a delimitação da origem dos dados e da definição dos aspetos de interesse do pesquisador, pode-se compor o aparato metodológico. Em geral, durante os processos de coleta de dados, admite-se um grande volume de elementos que podem sustentar

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considerações em diversos artigos. É necessário, então, filtrar aqueles que se aproximam do enfoque pretendido pelo pesquisador a cada situação e adequá-los às categorias utilizadas na análise. O Mapa de Associação de Ideias é uma das técnicas eficazes para a organização dos dados oriundos de discursos. Idealizado por Spink (2010), o processo de elaboração dos mapas permite a observação do diálogo entre os dados, em estado bruto, diante da aproximação por temáticas. “O Mapa é uma tabela onde as colunas são definidas tematicamente.” (SPINK, 2010, p. 39). Embora outras técnicas possam ser empregadas, opta-se por essa construção metodológica por sua flexibilidade na disposição dos quadros-síntese com os resultados alcançados. Mesmo que a definição da técnica de organização dos dados fique a cargo do pesquisador, acredita-se que, diante da referência apresentada neste artigo, mais alguns apontamentos possam contribuir para a compreensão do leitor. Vergara (2005) sintetiza a técnica de Mapa de Associação de Ideias por meio de um passo a passo que parte da definição do problema de pesquisa, da revisão de literatura e dos procedimentos para coleta de dados. De posse dos dados, o pesquisador deve proceder sua leitura quantas vezes forem necessárias para, então, definir as categorias de análise que comporão o mapa. “Constrói-se o mapa, valendo-se de uma tabela, cujo número de colunas será determinado em função do número de categorias definidas pelo pesquisador.” (VERGARA, 2005, p. 159). Spink (2010, p. 39) salienta que “a definição das temáticas organizadoras dos conteúdos já é o processo de interpretação.” Diante da disposição dos dados coletados nas colunas que correspondem às temáticas determinadas, procede-se à interpretação e ao confronto dos resultados com as perspectivas teóricas adotadas. A fim de facilitar a visualização do processo de construção da análise, defende-se a criação de um dispositivo que apresente as diversas fases do roteiro proposto. A elaboração dessa representação gráfica da análise é livre. O pesquisador precisa, no entanto, contemplar o diálogo entre os níveis do ato de linguagem (Figura 1) e ressalvar a triangulação de categorias. Esse aspecto é relevante, pois em muitos casos a análise discursiva está ancorada no método de estudo de caso, pois parte de um corpus empírico. Conforme Yin (2001, p. 102), a triangulação permite a dedicação [...] ao problema em potencial da validade do constructo, uma vez que várias fontes de evidências fornecem essencialmente várias avaliações do mesmo fenômeno. Não surpreendentemente, uma análise dos métodos utilizados pelo estudo de caso descobriu que aqueles estudos de caso que utilizam várias fontes de evidências foram mais bem avaliados, em termos de sua qualidade total, do que aqueles que contaram apenas com uma única fonte de informações.

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Considerando esses aspectos, justifica-se a seleção dos níveis da teoria semiolinguística para sustentação do modelo. O nível discursivo está no superior do dispositivo, visto que embasa os demais e perpassa todas as categorias. Esse nível é fundamental para a primeira fase de organização dos dados, ainda em estado bruto, pois os enunciados dos discursos são relacionados às categorias discursivas e ergológicas de modo a evidenciar os sentidos produzidos. Na sequência, no nível comunicacional, são posicionadas as categorias ergológicas e por fim as teóricas. Assim como o nome do bloco temático deve estar vinculado à proposta da pesquisa, as categorias daí emergentes também podem variar. A Figura 2 apresenta uma proposta que orienta a construção do dispositivo.

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Figura 2 – Dispositivo de análise: uma representação Fonte: adaptado de Haubrich (2014)


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A Figura 2 é uma das representações possíveis para o esquema de análise teórico-ergo-discursiva. O pesquisador tem autonomia para construir outras manifestações gráficas para o dispositivo, adequando-as às peculiaridades do objeto ou técnicas de coleta de dados, por exemplo. A triangulação que caracteriza o diálogo entre as categorias teóricas, ergológicas e discursivas orienta a divisão do processo analítico em três etapas. Primeiramente, o pesquisador distribui os enunciados coletados conforme a categorização definida. Propõe-se o entrecruzamento das categorias: na vertical, posiciona-se o nível discursivo, visto o entendimento de que as práticas linguageiras fundamentam as demais; na horizontal, são dispostas as categorias ergológicas e teóricas. Após a leitura e compreensão dos enunciados, é possível posicionálos a partir de sua aproximação com a temática. O Quadro 1 exemplifica essa classificação. Categorias Ergológicas

Categoria Discursiva Contrato de Comunicação (Finalidade)

Uso de Si por Si

Categoria Teórica Relações de poder

Uso de Si pelo Outro

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"[...] graças ao trabalho de muitas pessoas que dedicaram entusiasmo, coragem e disposição." (Visada de Captação)

"Iniciamos um ano muito especial para a Hera, em que completamos 30 anos." (Visada de Informação) [...] "A história da Hera demonstra que desenvolvemos as bases necessárias para novas conquistas: profissionais qualificados [...]" (Visada de Incitação) [...] "A convenção de vendas 2012 marcou o início das comemorações, que seguirão intensamente até o mês de aniversário, em outubro." (Visada de Informação)

"Chegamos aos 30 anos com a certeza de que estamos preparados para o futuro, conquistar novos mercados, ultrapassar barreiras, ser referência mundial." (Visada de Incitação) "Nos preparamos para um ano de muitas celebrações para festejar essa trajetória de sucesso." (Visada de Prescrição)

Quadro 1 - Classificação dos enunciados x categorias teórico-ergo-discursivas Fonte: adaptado de Haubrich (2014)


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A Quadro 1 apresenta a classificação dos enunciados de uma edição específica de editorial de jornal de empresa4. Cada discurso em análise implica uma disposição enunciativa correspondente. Nessa primeira fase de interpretação dos resultados, o pesquisador precisa estar atento à sequência ordenada dos enunciados mencionados no discurso. Da conjunção proveniente de cada coluna do mapa emergem sentidos, cuja síntese implica a segunda fase da análise. Nesse momento, mapas intermediários, denominados “Mapas de Possíveis Interpretativos”, são produzidos, ou seja, a condição bruta dos dados é alterada, mas ainda não manifesta a busca específica do estudo. A visualização dessa etapa da pesquisa pode ser observada perante o exemplo no Quadro 2.

Uso de Si pelo Outro

Categoria Discursiva Contrato de Comunicação (Finalidade)

Categoria teórica Relações de Poder

Uso de Si por Si

Visadas de Captação e Informação

Visadas de Incitação e Prescrição

Visadas de Incitação e Informação

Categoria Discursiva Contrato de Comunicação (Identidade)

Categorias ergológicas

Alto volume de prescrições que incitam transgressões na informalidade

Alto volume de prescrições e normas que determinam como proceder na atividade

Hegemonia discursiva que desconsidera a força do interlocutor. Hierarquia verticalizada.

Quadro 2 – Exemplo de mapa de possíveis interpretativos Fonte: adaptado de Haubrich (2014)

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O estudo realizado para Dissertação de Mestrado teve como corpus oito editorias do jornal da empresa Hera, em sete edições publicadas no período de janeiro de 2012 a junho de 2014.

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Conforme a adaptação representada no Quadro 2, produz-se uma síntese dos principais sentidos construídos mediante o entrecruzamento das categorias de análise. Por exemplo, na segunda linha do Quadro 2, a categoria discursiva em ênfase é o contrato de comunicação (CHARAUDEAU, 2012), perante as finalidades discursivas expressas por visadas comunicativas. A conjunção da categorização dos enunciados aos aspectos teóricos e ergológicos evidencia as visadas mais marcantes do discurso. Do mesmo modo, na terceira linha do Quadro 2, o aspecto evidenciado referese às qualidades identitárias dos sujeitos do ato de comunicação estabelecido por meio dos editoriais do jornal de empresa. A posição de cada sujeito representa intencionalidades específicas para o estabelecimento de uma relação com o outro, o que decorre da inter-relação entre as categorias discursivas/ ergológicas e discursivas/ teóricas. Por fim, a terceira etapa da análise, denominada Mapa de Saberes Investidos, implica o investimento de saberes do pesquisador para a construção de uma síntese geral de sua análise, por meio de palavras-chave. Como exemplo, ao considerar a síntese do Quadro 2, poder-se-ia mencionar a palavra Prescrições como principal sentido emergente do corpus analisado.

4 APLICAÇÃO DA ANÁLISE TEÓRICO-ERGO-DISCURSIVA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES As práticas sociais na contemporaneidade têm evidenciado hiatos paradoxais para avaliação, decisão e preenchimento pelos sujeitos. No ambiente organizacional, esses mesmos hiatos têm implicado transformações nas relações laborais, dentre os quais se podem mencionar, por exemplo: a oficialização da atividade, a constituição dos grupos que aproximam os trabalhadores, a forma como o sujeito se relaciona com seu fazer. Supõe-se que tal conjectura tenha relação com o esgotamento de uma perspectiva economicista das situações. No entanto, os trabalhadores têm buscado alternativas para transgredir as normas que reduzem o trabalho à capacidade de produção de capital. Essa mudança comportamental tem impulsionado as organizações a considerar aspectos simbólicos para estabelecer suas práticas. É fundamental, desse modo, incluir a dimensão linguageira e comunicacional que permeia seu cotidiano. A diversidade abarcada no ambiente organizacional salienta a imposição da realidade acerca de um olhar de permanente atualizado dos processos culturais, que conectam e afastam os sujeitos. Estudar as práticas comunicacionais e os sentidos postos em circulação por meio (e a partir) do trabalho é um desafio para organizações, trabalhadores e pesquisadores. O complexo emaranhado envolvido nesse processo impulsiona uma série de ressignificações para que se possa

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compreender as relações sociais. A perspectiva da atividade de trabalho posiciona o sujeito no centro da produção de manifestações culturais por meio da gestão que faz de si em função da solicitação do meio. Tal qual uma obra de arte ou literária, o trabalho implica a subjetividade, os saberes e as escolhas do trabalhador para se estabelecer. Nesse sentido, normas são constantemente transgredidas e reconstruídas. Defendese então que a linguagem é mediadora desse processo e, como tal, é chave para sua compreensão. A análise teórico-ergo-discursiva intenta o diálogo entre diversas categorias para que as práticas organizacionais possam ser estudadas e transformadas ao passo de atribuir a autoria dos sujeitos em sua constituição. Entre as principais contribuições que o estudo traz, destaca-se o repensar da comunicação organizacional perante a compreensão do ato de linguagem e nos sentidos produzidos no cotidiano. O aparato metodológico aqui desenvolvido pode orientar diversas pesquisas que têm como interesse principal perceber o sujeito como produtor e produto social. Embora o modelo apresente algumas determinações em seu desenvolvimento, avalia-se que os pesquisadores têm autonomia na sua aplicação, podendo adequá-lo a diferente corpus ou mesmo corpora. Assim, espera-se que as reflexões aqui construídas possam inspirar e encorajar outros estudiosos a incluir o trabalho como manifestação das diversas representações que (re)constroem constantemente a cultura.

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SPINK, Mary Jane. Linguagem e produção de sentidos no cotidiano. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010. Disponível em: <http://books.scielo.org/id/w9q43>. Acesso em: 12 ago. 2014. TRINQUET, Pierre. Trabalho e Educação: o método ergológico. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, número especial, ago. 2010, p. 93-113. VERGARA, Silvia Constant. Mapas de Associação de Ideias. In: VERGARA, Silvia. Métodos de pesquisa em Administração. São Paulo: Atlas, 2005. p. 157-170. YIN, Robert K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 2.ed. Porto Alegre: Bookman, 2001.

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