NARRATIVAS HIPERMIDIÁTICAS E WEB 2.0 NARRATIVES IN HYPERMEDIA AND WEB 2.0 Junia Meirelles Cláudio Gusmão Narrativas, hipermídia, web 2.0, interatividade, conectividade Desde meados do século XX, uma tipologia textual, em particular, tem suscitado reflexões entre os teóricos das novas mídias e os críticos literários: a narrativa. As discussões contemporâneas questionam a narratividade quanto à sua presença e forma no contexto das mídias digitais, numa tentativa de compreender as possibilidades das novas formas de discurso que essas mídias proporcionam. Este artigo busca averiguar as possibilidades de desenvolvimento de narrativas hipermidiáticas com o intuito de refletir sobre possíveis soluções para um melhor resultado, principalmente no que diz respeito a interatividade e conectividade desses projetos. A partir das teorias sobre interatividade de Manovich e Ryan, lançamos um olhar crítico sobre um projeto de narrativa hipermidiática “Prismática”, desenvolvido no Curso de Design Digital da Universidade Anhembi Morumbi(2008). Nossas reflexões apenas sugerem discussões ainda mais profundas sobre a criação de narrativas no ciberespaço e entendemos que olhares críticos são importantes contribuições para o desenvolvimento dessa tipologia textual na rede. Narrative, hypermedia, Web 2.0, interactivity, conectivity Since the mid 20th century, a textual typology particularly, has generated reflections among the New Media´s theoreticals and literary critics: the narrative. The contemporary discussions about narrativity question its presence and form in the context of digital media attempting to understand the possibilities of new forms of discourse that these media provide. This article investigates the possibilities of the development narratives in hypermedia in order to reflect on possible solutions to a better result, mainly to what it concerns to the interactivity and connectivity of these projects. Based on Manovich´s and Ryan´s theories about interactivity, we take a critical look on a narrative in hypermedia project called "Prismática" which was developed by the students of Anhembi Morumbi University in the Course of Digital Design in 2008. Our reflections suggest deeper discussions on the of narratives’ creation in cyberspace so, we believe that a critical look on them may bring significant contribution to the development of this textual typology in the network.
1 Introdução O advento da World Wide Web (WWW) nos anos 1990,possibilitou o surgimento de novas formas de estruturação da informação, como o hipertexto, que atendem ao conceito de construto de conhecimento através da associação de conteúdos disponibilizados na rede. A estrutura da WWW é complexa e múltipla, composta de lexias1 (ou nós) que, dispersas no ciberespaço, possibilitam os mais variados tipos de conexões entre elas. Tais conexões ocorrem em face aos tipos de ligações possíveis, originadas da construção das estruturas informacionais, de acordo com o tipo de projeto desenvolvido e as capacidades de apreensão dos usuários. BARTHES (apud LANDOW,2006),define hipertexto como sendo um texto composto de blocos de palavras (ou imagens), vinculadas eletronicamente por múltiplos caminhos, elos ou trilhas, numa textualidade aberta e perpetuamente inacabada descrita por termos como link, nós (lexias), rede e caminhos. E ainda, segundo ele, Nesse texto ideal, as ligações são muitas e interagem sem que nenhuma delas se sobreponha às demais em importância. Esse texto é uma galáxia de significantes, não uma estrutura de significados; não tem começo; é reversível; obtemos acesso a ele através de diversas entradas, entre as quais nenhuma pode ser autoritariamente declarada como principal; os códigos que ele mobiliza se estendem “até onde a vista alcança”, são indetermináveis (...)2 (BARTHES apud LANDOW, 2006, p.2)
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Roland Barthes descreve lexias como “blocos de significação” e “unidades de leitura”. Lexias são as menores seções de um texto mais amplo, um texto maior. (S/Z 13) 2 “in this text, the networks are many and interact, without any one of them being able to surpass the rest; this text is a galaxy of signifiers, not a structure of signifieds; it has no beginning; it is reversible ;we gain access to it by
A estrutura hipertextual da informação é a base fundamental para a hipermídia e, por meio dela, as informações constituem sentido e proporcionam a construção de conhecimento para os usuários da rede. Essa nova linguagem, a hipermídia, possui características intrínsecas que determinam as possíveis formas de estruturação e “leitura” de seus significantes e significados, tais como: a hipertextualidade, a navegabilidade, a não-linearidade, a interatividade e a conectividade. Retomaremos tais elementos quando abordarmos os processos de design de hipemídias. Existem, no contexto da linguagem de hipermídia, várias formas de desenvolvimento de projetos digitais para WWW. Para efeito de nossas investigações, e por se tratar de uma tipologia textual perene e aplicada a um recente gênero textual, o hipertexto (LANDOW, 2006), interessa-nos, particularmente, a construção de narrativas hipermidiáticas, sua constituição e as possibilidades de conectividade dessas estruturas narrativas com a rede como um todo. Também a rede sofre transformações ao longo do tempo, por isso observamos, nesse começo de século XXI, uma espécie de “segunda etapa” do desenvolvimento da WWW, denominada Web 2.0, na qual ganham primazia aplicativos que oferecem serviços aos usuários e priorizam a colaboração e o compartilhamento da informação. Essa estrutura comunicacional potencializa a circulação de informação pela Web incentivando a formação de redes sociais e estimulando, de forma crescente, o desejo de interatividade do usuário. Narrativas são modos de expressão que têm, desde o início dos tempos, transmitido conhecimento através da oralidade e de seus registros nos mais diversos tipos de mídias de suporte, tais como: pedra, cerâmica, papiro, pergaminho, papel, fitas magnéticas e as novas mídias digitais. Por isso, afirma Ryan3 que ‘a narratividade de um texto está posicionada no nível do significante. Narratividade deveria, então, ser definida em termos semânticos. A definição, por sua vez, deveria ser livre de quaisquer mídias’. No entanto, as condições para a existência das narrativas no ciberespaço diferem das condições impostas pelas outras mídias, essencialmente pelas questões inerentes à própria linguagem de hipermídia. São elas:
Não-linearidade e hipertextualidade: características de uma constituição estrutural da informação de modo a possibilitar ao usuário diversas leituras e interpretações do conteúdo disposto de forma não-linear, o que implica na construção de um hipertexto. Na elaboração de uma narrativa para hipermídia, as lexias devem conter informação suficiente para que, ao encontrar essa lexia durante as diversas trajetórias possíveis, ainda que o interator não tome contato com a totalidade do mundo da história, algum conteúdo constitua um significado e seja memorizado. Judy Malloy enfatiza a utilização dessa estratégia de construção da narrativa: Na web, eu não posso esperar que o usuário leia mais do que três ou quarto telas antes de se mover para outra URL. Portanto, é particularmente importante que, numa hipernarrativa na Web, a informação possa ser memorizada a cada tela (lexia).4 (MALLOY,1998)
Navegabilidade: está diretamente relacionada à mobilidade que o usuário/leitor pode ter durante o contato com o ambiente hipermidiático. A navegação está ligada a um princípio do design de hipermídia denominado potencialidade (MOURA, 2003) que significa a capacidade de desdobramento de um conteúdo (em estado “latente” no hipertexto) que constitui a informação a ser transmitida ao “leitor” através da sua movimentação pela estrutura hipertextual. Assim, a percepção do ambiente hipermidiático só é possível pela navegação. Tal propriedade também está relacionada à interatividade, (outra característica dos ambientes hipermidiáticos) ainda que no nível primário da ação-reação (point and click) ou mesmo num nível secundário onde ocorra o envolvimento do usuário no nível participativo5.
several entrances, none of which can be authoritatively declared to be the main one; the codes it mobilizes extend as far as the eye can reach, they are indeterminable (…) (BARTHES, 2006:2) 3 Disponível em http://gamestudies.org/0101/ryan, 2001. 4
On the web, I can not expect the reader to read more than three or four screens before moving restlessly on to anotherURL. So, it is particularly important in that each screen ("lexia") of a web hipernarrative to be memorable in and of itself.
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Murray, Janet, Capítulo 3, “Hamlet no Holdeck: o futuro da narrativa no cyberespaço”.
Interatividade: são características fundamentais para a constituição de um ambiente hipermidiático contemporâneo, visto que a interatividade é o comportamento essencial para o comprometimento do interator com a hipermídia, seja ela apenas um ambiente que propõe algum tipo de experiência ao interator, ou uma narrativa, no sentido tradicional da sua concepção. Na contemporaneidade, interatividade é um termo que estende seu significado para além das relações entre usuários e sistemas (peças de hipermídia), criando relações sociais entre os usuários.
Conectividade: é uma condição sine qua non para uma peça hipermidiática contemporânea. Nos primeiros tempos da Internet, a conectividade restringia-se à ligação da peça hipermidiática com a WWW, que ampliava sua capacidade comunicativa em virtude dos links entre as inúmeras lexias da rede. Na etapa atual do desenvolvimento das linguagens comunicacionais utilizadas para a construção de sites6 para a WWW, a conectividade estende suas possibilidades para conexões entre os sistemas programáticos que constituem ambientes colaborativos e atraem usuários desejosos de interatividade social.
Por sua importância no contexto das hipermídias contemporâneas, a conectividade e a interatividade, dentre as demais características do design de hipermídia, merecem especial atenção, pois, comparadas as sua aplicações na primeira e na atual fases da WWW, essas duas propriedades foram as que mais se desenvolveram em direção às linguagens de programação, propiciando o surgimento de novos paradigmas de interação na rede. As relações entre conectividade e narrativas hipermidiáticas podem ser vistas, no mínimo, sob dois pontos de vista. O primeiro, diz respeito à conexão entre os elementos da própria narrativa, objeto do projeto de hipermídia, ou seja, as múltiplas relações estabelecidas entre os conteúdos que constituirão, por meio da interpretação do usuário/interator, o enredo da narrativa. Em segundo lugar, a conectividade existente entre a peça hipermidiática e os demais conteúdos disponíveis na rede. Aparentemente, nada teria sido acrescentado a essa visão, se também os sites não tivessem alterado suas estruturas no sentido de possibilitar a dinamização no trânsito de dados através de códigos e linguagens que “conversam entre si”. São essas linguagens de programação que, atualmente, realizam boa parte da conectividade entre os sites e entre os usuários da WWW. Quanto à interatividade, ao nos referimos particularmente às narrativas, parece ser pertinente a colocação de Manovich (2001) quando aponta dois tipos distintos de interatividade: No caso interatividade ramificada, o usuário desempenha um papel ativo ao determinar a ordem na qual os elementos já existentes são acessados. Este é o tipo mais simples de interatividade; tipos mais complexos também são possíveis em estruturas nas quais ambos, elementos e estrutura do 7 objeto como um todo, são modificados ou gerados “on the fly” (em fluxo) em resposta à interação do usuário com um programa. Podemos nos referir a tais implementações como interatividade aberta para distinguí-la da interatividade fechada que utiliza elementos fixos dispostos em uma estrutura ramificada, também fixa. A interatividade aberta pode ser implementada usando-se abordagens variadas, que incluem programações procedimentais e orientadas a objetos, inteligência artificial, vida artificial e redes neurais.8 (MANOVICH, 2001, p.40)
A interatividade fechada à qual o acadêmico se refere pode ser encontrada em projetos de hipermídia nos quais o usuário exerça uma interação do tipo participativa e procedimental,
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Para efeito de nossas reflexões netse artigo, o termo site será compreendido como um “espaço” no ciberespaço que contenha um determinado tipo de informação que atenda a um conceito projetual específico. 7 NT: entendemos a expressão como sendo algo que está em movimento constante, por isso em fluxo constante de troca de informações. 8 “In the case of branching interactivity, the user plays an active role in determining the order in which already generated elements are accessed. Thos is the simplest kind of interactivity; more complex kind are also possible in which both the elements and the structure of the whole objetct are either modified or generated on the fly in response to the user’s interaction with a program”
como, por exemplo o projeto “A Intertextualidade no teatro de Nelson Rogrigues: Vestido e Noiva9”, pois o usuário relaciona-se com o conteúdo sem alterá-lo. Marie-Laure Ryan (2001), propõe uma releitura das teorias de Espen Aarseth, elaborando, a partir delas, estratégias de interação fundamentadas em quatro formas de interatividade sobre a base de dois pares binários: interna/externa e exploratória/ontológica, assim definidas: Interatividade Interna/Externa No modo interno, o usuário se projeta como um membro do mundo ficcional, identificandose com um avatar ou por apreensão do mundo virtual, a partir de uma perspectiva em primeira pessoa. No modo externo, o leitor se situa fora do mundo virtual. Ele representa o papel de um deus que controla o mundo ficcional de cima, ou conceitua sua atividade como a navegação em um banco de dados. Esse binômio revela uma relação analógica do usuário com a peça. Interatividade Exploratória/Ontológica. No modo exploratório, o usuário é livre para moverse pelo banco de dados, mas essa atividade não constrói a história, nem altera o seu enredo. O usuário não tem nenhum impacto sobre o destino do mundo virtual. No modo ontológico, ao contrário, as decisões do usuário direcionam a história do mundo virtual para diferentes bifurcações. Enquanto o binômio Interna/Externa aponta para uma relação analógica do usuário com a peça, a interatividade Exploratória/Ontológica revela a relação digital entre o agente e a peça hipermidiática. Ryan propõe, ainda, uma classificação combinatória desses dois elementos binários, gerando quatro combinações, sendo, cada uma delas, característica de diferentes gêneros e dando suporte a diferentes narrativas: Grupo 1: Interatividade Externa/Exploratória. Nos textos desse grupo – na maioria hipertextos “clássicos”–, interatividade consiste na liberdade de escolher rotas através de um espaço textual. Em hipertextos clássicos, a rede é, em geral, densamente conectada pelo autor para controlar o caminho do usuário através de trechos significantes, lugares apresentados de modo randômico a cada uma ou duas transições, embora o modo randômico seja incompatível com a estrutura lógica da narrativa. Uma vez que será impossível para o autor antever o desenvolvimento de uma narrativa coerente para cada passo da navegação, a ordem de descoberta de cada lexia não pode ser considerada como constituinte de uma sequência narrativa. A única maneira de preservar a coerência da narrativa sob tais condições é considera o texto como uma história dispersa na qual o leitor reagrupa uma lexia de cada vez. Esse tipo de interatividade é externa porque o texto não coloca o leitor como um membro do mundo ficcional. O leitor considera o texto menos como um mundo no qual imergir do que como um banco de dados a ser consultado.10 (RYAN, 2001)
Por sua vez, se o hipertexto for entendido como um quebra-cabeças, a interatividade pode ser considerada exploratória porque a trajetória do usuário/leitor durante sua navegação não interfere nos elementos da narrativa em si, mas apenas na forma como o padrão narrativo global surge na mente desse usuário. O modo externo/exploratório é, então, mais adequado a ficções autorreferenciais do que para mundos narrativos que nos mantêm sob seu encantamento para assegurar o que acontece nele. Ele promove uma postura metaficcional à custa de imersão no mundo ficcional. Isso explica por que tantos hipertextos literários oferecem uma colagem de teoria literária e fragmentos narrativos(idem,ibidem).
Grupo 2 - Interatividade Interna/Exploratória. Em textos dessa categoria, o usuário assume um “corpo virtual” no mundo ficcional, mas seu papel nesse mundo é limitado às suas ações que não influenciam os eventos da narrativa. O usuário tem seu lugar na história, mas não
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TCC do Curso de Design Digital – Universidade Anhembi Morumbi, 2005. Disponível em:<http://www.neo.design.nom.br/encenamidia> 10 “ In classical hypertext, the network is usually too densely connected for the author to control the reader's path over significant stretches. Randomness sets in after one or two transitions. But randomness is incompatible with the logical structure of narrative. Since it would be impossible for the author to foresee a coherent narrative development for each path of navigation, the order of discovery of the lexia cannot be regarded as constitutive of narrative sequence. The only way to preserve narrative coherence under such conditions is to regard the text as a scrambled story which the reader puts back together, one lexia at a time. This type of interactivity is external, because the text does not cast the reader as a member of the fictional world. The reader regards the text less as a world in which to immerse himself than as a database to be searched”.(RYAN, 2001)
será o protagonista. Isso, no entanto, não significa que ela terá um papel passivo. Seu personagem pode ser, por exemplo, um detetive, um viajante, um confidente etc. Esse tipo de interatividade se presta a narrativas tais como: histórias de mistérios; enredos paralelos do tipo “novela”, nos quais há grande quantidade de personagens atuantes em diferentes lugares e o usuário deve se mover por eles; narrativas focadas em relações interpessoais e outras. Grupo 3: Interatividade Externa/Ontológica. Em narrativas desse grupo, o usuário é um deus onipotente diante do sistema. Manipulando os personagens de uma posição externa ao tempo e ao espaço do mundo ficcional, ele especifica suas características, toma decisões por eles, coloca obstáculos em seus caminhos e traça as linhas de seus destinos por meio da alteração dos ambientes da narrativa. Uma vez que o operador do sistema narrativo é externo ao mundo ficcional, ele não tem nenhum interesse em particular e seu prazer está na contemplação do campo de possibilidades que se apresentam e nas interconexões entre os elementos desse mundo. Grupo 4: Interatividade Interna/Ontológica. Se o Holodeck proposto por Murray (1997) fosse verdadeiro, pertenceria a esse grupo. Nesse caso, o usuário seria convocado como personagem que determina seu próprio destino, agindo dentro do tempo e do espaço do mundo ficcional, com total liberdade de ação e obtendo do sistema computacional as reações às suas ações em tempo real. Enquanto isso não for realidade, os videogames de aventura e ação são os produtos que mais se aproximam desse tipo de sistema: Nesse tipo de sistema, a interatividade deve ser intensa, uma vez que vivemos nossas vidas constantemente engajados no mundo que nos cerca. A interação entre o usuário e o mundo ficcional produz uma vida nova e, consequentemente, uma nova história de vida a cada execução (acesso) do sistema. Esse destino é criado, dramaticamente, por ser encenado, ao invés de narrado diegeticamente11.(RYAN, 2001).
Com base nas classificações de Ryan, observamos que muitas das narrativas interativas disponíveis na web se mantém no nível das interações Externa/Exploratória e Interna/Exploratória, o que, em virtude da inalterabilidade de elementos da narrativa, estão, ainda, muito próximas das relações analógicas do usuário/leitor com a narrativa. Se, de fato, essa é a situação atual, se apenas os videogames estão próximos o suficiente de um nível de interatividade que satisfaça a condição de interferência na história, quais possibilidades as narrativas hipermidiáticas encontrarão para propor maior comprometimento do interator? Seria possível um nível de interferência que satisfizesse a condição de interação sem o comprometimento do enredo da narrativa? As linguagens dinâmicas de programação poderiam ser utilizadas para promover condições de maior conectividade, abrindo, assim, a narrativa a um nível de participação maior do interator? Para que essas hipóteses sejam investigadas, é importante que conheçamos alguns atributos das linguagens de programação, denominadas “dinâmicas”.
2 Linguagens de programação “dinâmicas”e Web 2.0 A partir da explosão da “bolha” da World Wide Web por volta dos anos 2003/200412, um termo foi cunhado por Tim O´Reilly13 para a identificação de uma nova fase desse ambiente na Internet: Web 2.0. Na fase seguinte, a inovação do uso da rede viria rapidamente atender ao usuário de maneira pontual e interativa. O usuário assumiria, definitivamente, a importância que sempre lhe foi atribuída nos projetos para mídias digitais, pois, abandonando sua condição de mero receptor de informações, passaria ao papel de emissor das informações. Tal rompimento de paradigma, segundo André Lemos (2006), reconfigura a teoria da comunicação
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“In this type of system interactivity must be intense, since we live our lives by constantly engaging with the world that surrounds us. The interaction between the user and the fictional world produces a new life, and consequently a new life‐story, with every run of the system. This destiny is created dramatically, by being enacted, rather than diegetically, by being narrated”.(RYAN, 2001)
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A “bolha” da Web significou a saturação do uso desse meio para fins comerciais e pessoais. A partir daquele momento, foi necessário o surgimento de outros modelos de negócio que retomassem a dinâmica da rede. O grande passo foi a intensificação das ofertas de serviços aos usuários e os ambientes colaborativos, corporativos ou não. 13 Tim O'Reilly é fundador da editora O´Reilly Media, considerado um dos melhores editores de livros para computação do mundo.
e eleva, definitivamente, o usuário à categoria de interator, isto é, suas criações e opiniões passam a interferir no conteúdo compartilhado através da Internet. Para tanto algumas tecnologias foram cruciais para a emergência desse cenário e para que possibilitasse a atualização dinâmica de conteúdos, tais como: o XML(eXtensible Markup Language), que possibilitou a distribuição de conteúdo via RSS, as API's (Application Program Interface) viabilizando os remixes e mashups,14 permitindo a mistura de conteúdos conteúdos ou mesmo a sua visualização de maneira diferente, e as linguagens de script server-side15 como PHP que possibilitam a integração do XML e das API’s. O XML (eXtensible Markup Language), assim como o HTML, é um tipo de sequência de texto sem formatação, porém o XML possui uma estrutura semântica e permite que essa linguagem não seja apenas utilizada para produzir páginas Web mas também, em diversos tipos de aplicações, inclusive as off-line. Uma vez que o conjunto de dados seja distribuído no formato XML, as aplicações têm acesso a padrões de estrutura e com isso um mesmo arquivo XML distribuirá conteúdo para diversas aplicações que o utilizarão da maneira mais apropriada. Com o advento dos Blogs surgiu os códigos RSS (Really Symple Syndication) ou Feeds (como também são conhecidos) - algo como “Abastecimento” de informações -, ao quais, baseados na estrutura padronizada do XML, possibilitam uma maneira simples de distribuição de conteúdo. Assim, por exemplo, quando o editor do blog publica um novo texto, os usuários assinantes do RSS desse blog podem receber o título, um resumo ou mesmo a íntegra do texto dependendo do tipo de subscrição. Segundo Gottfried Vossen, o formato RSS valoriza dois aspectos: o do criador do conteúdo e o do leitor e assinante, como afirma: “Sob a perspectiva do assinante, os web feeds facilitam o processo de recepção de atualizações ou de avisos de atualizações pelo Blog, por exemplo, quando a fonte atualiza o conteúdo que podem ser de uma única fonte ou múltiplas. Do ponto de vista do provedor ou produtor os Web feeds potencializam sua presença na rede, uma vez que permitem a seus consumidores acessarem conteúdo através de diferentes canais.” (VOSSEN, 2007)
Os web feeds são parte fundamental na produção de mashups, pois fornecem informações estruturadas que podem ser analisadas e reutilizadas por outras aplicações de maneira dinâmica. Outra aspecto importante na produção dos mashups são as API’s públicas (Application Program Interface) que são aplicações, rotinas, bibliotecas ou ferramentas que possibilitam a uma determinada aplicação o acesso ao conteúdo de outra e a partir disso, a geração de uma visualização diferente para os dados, isto é, a criação de uma terceira aplicação, (remix de conteúdo) e a utilização das aplicações de maneira integrada (mashups). O website Flickr (www.flickr.com) , um aplicativo online de gerenciamento e compartilhamento de imagens e vídeos, disponibiliza sua API pública e, através dela, possibilita que terceiros possam criar os remixes e mashups baseados no conteúdo disponibilizado por eles.As API’s são projetadas para receber requisições de um sistema e dar uma resposta apropriada para que o sistema de terceiros possa interpretá-las. No caso do Flickr, a requisição básica para a sua API poderia ser buscar imagens com determinado tamanho ou cor de maneira que pudesse disponibilizá-las dentro do sistema em um formato de galeria de fotos, por exemplo. As linguagens de script server-side como o PHP (Hypertext Preprocessor), possibilitam a requisição de conteúdo às API’s, aos XML’s, aos bancos de dados e montam a interface de maneira dinâmica e em tempo real, exibindo o resultado de suas requisições. Além das tecnologias mencionadas neste artigo, existem outras que, igualmente, possibilitam a distribuição e exibição de conteúdos de forma dinâmica, as quais não serão mencionadas por não atenderem às questões discutidas neste artigo.
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Mash‐ups são softwares, plugins ou websites que mesclam aplicações e/ou conteúdos de dois ou mais websites como uma conexão entre estes obtendo o melhor de cada um deles. 15 Linguagens de script server‐side são aquelas onde os scripts são executados no servidor web (PHP, ASP ou Coldfusion, por exemplo) ao contrário dos scripts Javascript que são executados a partir do computador cliente.
3 Narrativas em tempos de hipermídia Narrativas criadas em ambientes digitais podem assumir diversas configurações, desde uma estrutura navegacional fechada (interatividade fechada) em seu enredo, até histórias que possam ser constituídas a partir da contribuição de interatores (interatividade aberta). Suas estruturas são, via de regra, definidas pelo próprio enredo, e delas resultam diferentes níveis de participação ou interação. Para efeito de análise dessas estruturas, propomo-nos um olhar crítico sobre a narrativa interativa16 “Prismática”, criada a partir do filme “21 gramas”, de Guillermo Arriaga, dirigido por Alejandro González Iñárritu (2003). Sinopse do filme O filme conta a história de um indivíduo que, necessitado de um transplante cardíaco, recebe o coração de um homem, vítima de um atropelamento hediondo que resultou em sua morte e de suas duas filhas. As histórias de três personagens – o motorista, o homem atropelado e aquele que recebeu o transplante - se entrelaçam quando a viúva do doador conhece o transplantado e busca vingar-se do culpado pelo atropelamento de sua família.Ao final, o transplantado, Paul Rivers, morre. O projeto 21 gramas A peça hipermidiática foi desenvolvida a partir da narrativa do filme e de um estudo da linguagem cinematográfica adotada pelo diretor Iñárritu. Um estudo minucioso do roteiro do filme resultou numa releitura interativa sobre a história, utilizando a linguagem do design de hipermídia. O processo de releitura da obra para a construção da estrutura hipertextual se deu em algumas etapas e resultou em três grandes diagramas: um diagrama da decupagem do roteiro do filme, um diagramas das trajetórias dos protagonistas(divididos em três partes) e, finalmente, o diagrama do projeto de hipermídia. A partir da análise desses dados, foi possível fazer as adaptações necessárias ao roteiro para que o core (núcleo) da narrativa fosse mantido quando da sua transposição para o ambiente hipermidiático. Uma vez estudado o enredo e estruturada a informação necessária à compreensão da história, foram criados os demais elementos que compõem o complexo hipermidiático. São eles: mecanismos de navegação, propostas de interação e a linguagem visual a ser adotada para as interfaces dos ambientes exploratórios propostos aos usuários. O design do site resultou em treze interfaces que podem ser navegadas através de links textuais, uma espécie de “mapa do site”, apresentado em forma de interfaces justapostas que se deslocam, permitindo que o usuário escolha por qual delas deseja navegar, e ainda um dispositivo gráfico (prisma) que permite que o usuário mude sua trajetória a qualquer momento durante sua navegação, revisite e resgate informações. Fig.1 – mapa do site – 13 interfaces
Fig 2. – interface - uso da API do Flickr
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Trabalho de conclusão de curso de Graduação em Design Digital da Universidade Anhembi Morumbi ‐ Laureate – São Paulo – SP, 2008, cedido gentilmente pelos alunos autores: Ana Claudia Pátria, Felipe Szulc, Mateus Knelsen, Mileine Ishii, Pamela Cardoso, Renata Martinez, Tânia Taura.
Ao olharmos criticamente a interatividade do projeto, constatamos, para utilizarmos os critérios propostos por Ryan, que ela é do tipo Externa/Exploratória, ou seja, o usuário navega pelos ambientes, explorando as informações e construindo a história em sua mente, sem, no entanto, interferir na estrutura do enredo. Não foram criados finais alternativos para o usuário, uma vez que a narrativa restringiu-se ao enredo do filme. Outro aspecto a ser avaliado é a implementação de informação dinâmica e externa ao site. Essa informação foi buscada em um site colaborativo de imagens (www.flickr.com) através da sua API (aplication program interface) e atende aos critérios de entrada de informação fornecidos pelas palavras (tags) que o usuário arrasta para dentro da “fenda do coração”. Tal ação resulta na mudança da imagem do canto superior esquerdo da interface, trazendo quaisquer imagens que tenham sido classificadas no banco de imagens Flickr com essas mesmas palavras. Nesse caso, observamos o uso de linguagem dinâmica de programação para a apresentação em tempo real de diferentes imagens que alteram a visualidade daquele ambiente. Outro recurso utilizado no site foi a alteração do código XML da página de notícias do site Google, para que pequenos blocos de texto fossem trazidos para compor a textura da interface com informações colhidas e atualizadas em tempo real. Observamos que o uso dessas linguagens dinâmicas teve apenas o objetivo de alimentar visualmente algumas interfaces, o que, ainda que leve o usuário a perceber o contexto de forma diferente, não altera substancialmente o enredo. O projeto também utiliza-se de um banco de dados para o armazenamento de informações inseridas pelos usuários em uma das interfaces, que será visualizada em outro momento e espaço durante sua navegação. Assim, o usuário pode ver as frases escritas por outros visitantes do site. Assim, se, por um lado, o site propõe uma interatividade em nível participativo apenas, por outro lado, há uma grande preocupação em proporcionar uma experiência exploratória envolvente, reflexiva e rica ao usuário.
Considerações finais Estruturar uma narrativa hipermidiática não é tarefa simples, fácil ou que possa ser executada por um só designer. Uma equipe bem estruturada, principalmente com profissionais da área de programação em linguagens dinâmicas permite que soluções interativas mais arrojadas sejam propostas, fortalecendo os aspectos dinâmicos da ação do interator e propiciando, através da sua interferência na narrativa, um sinal de “vida” desta, mesmo que não haja uma mudança substancial no enredo. Com o emprego de algoritmos mais complexos, a própria estrutura hipertextual poderá ser criada a partir da utilização de bancos de dados que manipulem os inputs do interator e retornem a ele novas informações e visualizações. As conexões de narrativas hipermidiáticas com o conteúdo da Web podem contribuir para a construção de um tipo de informação que acrescente, compartilhe e/ou provoque uma ação colaborativa entre interatores, gerando, em torno do núcleo da narrativa, uma atmosfera dinâmica de aquisição de conhecimento e de entretenimento. O interator precisa ser surpreendido com informações inusitadas que lhe exijam um comportamento decisório, e não
apenas ativo, ou mesmo, reativo. Dentro das nossas possibilidades atuais, infelizmente, ainda não podemos alcançar os mundos do Holodeck, esse nível de interatividade ideal requer outras habilidades intelectuais, outros paradigmas de representação gráfica que, poderão até mesmo, gerar outros tipos de discursos narrativos e alterar conceitos daquilo que hoje denominamos hipermídia.
REFERÊNCIAS BILBIOGRÁFICAS Herman,D.;Jahn, M.;Ryan, M.(Eds)(2007). The Routledge Encyclopedia of Narrative Theory. 1st Ed. MALLOY, Judy (1998). Hypernarrative in the Age of the Web, National Endowment for the Arts NEA arts.community. On-line. Disponível em: http://www.judymalloy.net/. Acesso em:13/04/2009. MANOVICH, Lev. (2001) The Language of New Media. Cambridge, London. The MIT Press. Moura, Monica (2003) O Design de Hipermídia. Tese de doutorado. Programa de PósGraduação em Comunicação e Semiótica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,. Murray, Janet H. (1997). Hamlet on the Holodeck. Cambridge: The Mit Press. Lemos, André (2005) Ciber-cultura-remix. in, Seminário “Sentidos e Processos”, São Paulo,Itaú Cultural, agosto. Ryan, M.L(2001).Beyond Myth and Metaphor: The Case of Narrative in Digital Media. In Games Studies. the international journal of computer game research, Vol 1, Julho.