Desfilando no escuro

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Desfilando no escuro A estudante de jornalismo e Miss Minas Gerais coloca em foco, durante seu reinado, a Retinose Pigmentar: doença considerada rara pelos médicos, mas não pela modelo Por Janderson Silva Selma Jezkova, personagem interpretada por Björk no filme Dançando no Escuro (2000), amava tanto o teatro que, quando visitou o oftalmologista, quis enganá-lo decorando a ordem das letras do exame de visão, aquele em que tapamos um dos olhos com a mão e falamos as letras que vemos ou não. Tudo para não perder a oportunidade de ir aos ensaios do musical A Noviça Rebelde, em que interpretaria a personagem principal. Selma sofria de uma doença de visão hereditária e que a deixaria cega. Seu medo era de admitir sua condição, porém, ao fazê-lo, ela expõe a fragilidade de uma mãe solteira que sabia que Gene, seu único filho, herdaria sua doença dos olhos. Trabalhava em uma fábrica metalúrgica no período diurno e, às vezes, dobrava, passando a noite na máquina de prensar chapas de metal. Quando era hora de voltar para casa, Selma se guiava pelos trilhos do trem.

Fotos: Ruy Vianna

Dessa maneira, equilibrando-se e cantando pelo caminho escuro, a mulher encontrou uma forma de voltar sozinha para casa. À noite, era quase cega. Sua doença ainda não havia chegado ao ápice, mas sua visão periférica estava totalmente comprometida. A obra cinematográfica não faz uma mensão direta ao nome da doença de Selma Jezkova. Assim como a personagem da ficção, a Miss Minas Gerais 2013, Janaína Barcelos, 26 anos, teve que decorar caminhos. Não o de volta para casa, mas o da passarela, durante o concurso em setembro daquele ano, no Minas Centro, em Belo Horizonte. “Na abertura, as meninas desciam as escadas ao fundo, enquanto eu chegava pela lateral. Muitas reclamaram dizendo que também tinham problemas de visão. Elas não entendiam que o meu era diferente. A pista era escura e os holofotes não facilitavam.”

A estudante de jornalismo da Fumec e segunda colocada no Miss Brasil de 2013 descobriu há três anos que é portadora de Retinose Pigmentar (RP), doença considerada rara pelos médicos. Ela prefere ser firme e não dramatizar sobre sua vida. “Não fico pensando nas limitações que a doença pode causar, mas sim em conscientizar as pessoas sobre a existência do problema.” Durante seu reinado, além de divulgar a RP em entrevistas e discursos, Janaína Barcelos fundou a ONG Instituto Holofotes e lançou um website para abordar o tema (saiba mais sobre esse trabalho na próxima página). A Retinose Pimentar é o nome dado a um grupo de doenças oculares hereditárias que provoca alteração permanente na visão, pelo fato de os cones e bastonetes, células fotorreceptoras responsáveis pela captação da luz, se degenerarem. Pessoas com a doença apresentam uma perda gradual da visão, che-

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Janaína Barcelos fotografada no Mirante do Cruzeiro: modelo diz que irá continuar luta contra Retinose Pigmentar

gando à cegueira ao longo de anos, processo que pode variar de acordo com cada situação. A Retinose Pigmentar está dentro de um grupo de doenças não especificadas que contabiliza 21% das principais causas de cegueira no mundo. Segundo dados do World Health Organization, no mundo, 285 milhões de pessoas são portadores de doenças visuais e 39 milhões delas podem ficar cegas, enquanto 246 milhões são vítimas de baixa visão.

ta igualmente homens e mulheres e tem a ver com o histórico familiar; herança autossômica recessiva, também afetando igualmente homens e mulheres, podendo haver pouco ou nenhum registro familiar e a herança ligada ao cromossomo X, esse atingindo principalmente os homens. Há ainda causas sem correlação familiar e, nestes casos, nem sempre é possível identificar quais dos três tipos de herança causaram a RP. O tipo da qual Janaína Barcelos é portadora está no grupo do tipo recessivo e tem o nome de USH2A.

Causas

Sintomas

Segundo documento do Royal National Institute of Blind People (RNIB), as causas geneticamente herdadas para a RP são três: herança autossômica dominante, que afe-

Nos casos mais comuns de RP, os primeiros sintomas aparecem entre a infância e os 30 anos. O primeiro sintoma é a dificuldade para enxergar em baixa quantidade de luz, ao

anoitecer, por exemplo, ou em um quarto mal iluminado. “Percebi que algo estava errado quando chutei um hidrante ao entardecer”, conta Janaína. É a chamada “cegueira noturna”. Uma pessoa que possui RP demoraria o dobro ou mais de tempo para se adaptar a uma condição de baixa luminosidade. O segundo sintoma é a perda da visão periférica ou campo visual. Isso significa que, quando a visão está voltada para frente, o portador da RP não vê o que está ao lado, acima ou abaixo dele. “Se estou olhando para o que está à minha frente, o que fica ao lado eu não enxergo. Não tenho a visão periferial e, sim, de um ângulo mais fechado. Eu preciso virar a cabeça para enxergar o que está do meu lado, por exemplo. Isso dificul-

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reportagem - desfilando no escuro ta muito as atitudes simples como atravessar a rua ou situações que demandam mais atenção, como na hora de dirigir”, diz Janaína.

Cura Atualmente não há cura ou tratamento conhecido para a RP ou distúrbios associados à retina. Muitos dos genes causadores da retinose estão sendo descobertos e mapeados, e esta é a informação necessária para o entendimento da doença e pode permitir que potenciais tratamentos venham a se tornar realidade. Um deles é a Terapia Gênica, que substitui o gene defeituoso por outro sadio. Esse processo faria com que o gene implantado produzisse células novas, recuperando assim toda a parte prejudicada da retina. Mas, por vezes, o gene ou os genes causadores da RP podem não ser descobertos. Outra possível alternativa está no tratamento com células-tronco. Essas células podem se dividir em outros tipos de células, tendo assim o potencial de encobrir os danos ou substi-

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tuir as células da retina que estão em falta. Além dessas, há também o estudo sobre os “fatores de crescimento”, que são substâncias químicas que sustentam as células, ajudando em seu crescimento e recuperação. Há também pesquisas sobre terapia nutricional com ácidos de vitamina A e ácido docosahexaenóico, mais conhecido como DHA. Segundo o presidente do departamento de Oftalmologia da Associação dos Médicos de Minas, Luiz Carlos Molinari, por ainda estarem na etapa pré-clinica de fase IV, os tratamentos para a Retinose Pigmentar ainda não possuem aplicabilidade prática e, por isso, não podem ser liberados.

Instituto Holofotes Para dar visibilidade necessária à Retinose Pigmentar, Janaína criou o Instituto Holofotes da Retinose Pigmentar. “Se hoje temos no Brasil cerca de 200 milhões de pessoas, cerca de 50 mil delas podem ter a doença e não saber. Isso é muita gente!”, afirma a Miss.

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De acordo com a Rare Disiase Europe, na Europa, uma doença é definida como rara quando afeta menos de 1 por 2 mil habitantes. Esse número também é válido para o Brasil. Já para a National Organization for Rare Disiade, qualquer doença que afete menos de 200 mil norte-americanos é considerada rara. Segundo o site Retina Brasil, o número estimado de pessoas afetadas pela RP nos EUA já chega a 100 mil pessoas. Os dados do hospital brasileiro Albert Einstein apontam que 1 em cada 4 mil pessoas tem a doença. O número de afetados pela Retinose no Brasil ainda não pode ser apresentado, mas, segundo a modelo, estima-se que cerca de 50 mil pessoas podem ter a doença e não sabem. Ao fundar o Instituto Holofotes da Retione Pigmentar, a modelo quis promover a divulgação internacional, buscar por investimentos em pesquisas e estudos científicos, cadastro de portadores, dentre outras finalidades. O endereço do Intituto é institutoholofotes.org.br

Print: institutloholofotes.org.br


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