Crenças Letais

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Crenรงas Letais

Janos Biro


Índice: 1. Fazer a sua parte..................................................... 1 2. Elevar a razão......................................................... 2 3. Respeitar a nossa cultura........................................ 2 4. Mudar o indivíduo.................................................. 4 5. Acreditar nas autoridades....................................... 6 6. A nossa história representa um avanço................... 7 7. A civilização como produto final da evolução....... 9 8. Nossas religiões têm um valor universal................ 10 9. O trabalho melhora o mundo.................................. 12 10. Precisamos de um Estado melhor......................... 13 11. O mundo está em nossas mãos............................. 15 Nota sobre ecologia e desenvolvimento..................... 17 Como mudar nossas crenças...................................... 17 Referências................................................................. 19 Introdução Este livro foi escrito sob a influência de uma longa discussão acerca de crenças culturais que estariam nos levando à destruição. Essa discussão se iniciou em 2003, quando eu e vários membros do grupo Uma nova cultura começamos a debater sobre as idéias de Daniel Quinn, autor de Ismael e História de B. Quinn falava sobre a influência da cultura na forma com que nós pensamos e agimos. Ouvimos a “voz da cultura” sussurrar idéias em nossos ouvidos de forma tão sutil que quando menos percebemos estamos defendendo crenças culturais como se fossem as verdades mais primordiais de nossa vida. Na verdade essas crenças foram parar em nossa cabeça através da influência invisível da cultura. Nunca paramos para pensar sobre elas, mas se elas são expostas claramente e começamos a prestar atenção, então passamos a percebê-las em todo lugar: nos jornais, revistas, programas de televisão, filmes, músicas, propagandas e tudo o mais. janosbirozero@gmail.com 28/08/2008

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1. Fazer a sua parte Era uma vez uma floresta. Um dia essa floresta começou a pegar fogo, e os animais começaram a fugir. Mas um deles, o pequeno passarinho, decidiu que iria fazer alguma coisa e começou a tentar apagar o fogo sozinho. Ele pegava uma gota de água do rio no seu bico e, sobrevoando o fogo corajosamente, jogava a gota de água no fogo. Quando diziam ao passarinho que sozinho ele não conseguiria apagar o fogo, ele só respondia que isso não importa. O importante é que ele está fazendo a parte dele. A moral dessa fábula é que devemos fazer nossa parte, mesmo que pequena, para a preservação do todo. Por que essa estória esconde uma crença letal? Porque ela dá a entender que nós não temos responsabilidade alguma sobre a causa do que nos aflige, apenas sobre os efeitos. A origem do fogo pouco importa, talvez tenha sido um raio. Mas ninguém se pergunta sobre isso. Não importa o que produz o problema, não importa saber as causas, não importa se os outros vão colocar ainda mais fogo na floresta, só importa fazer a sua parte. Esta é uma falácia central da nossa cultura: atacar os efeitos e ignorar as causas. E esta estória disfarça esta falácia. Estou sugerindo que todos parem de tentar e fujam? Não. Estou sugerindo fazer alguma coisa significativa. Caso não saibam o que fazer, então se ocupem em descobrir primeiro; caso contrário qualquer ação será inútil. As ações significativas não são tão fáceis de propagar quanto as insignificantes. Existem várias que inicialmente parecem boas, mas que já foram assimiladas pelo sistema. Mesmo que você use uma ferramenta já conhecida, use-a de maneira diferente. Os primeiros hackers são exemplos de pessoas que descobriram maneiras novas de usar um sistema conhecido de uma forma que os próprios criadores do sistema não poderiam prever. Não haja sem conhecer nem se conforme com a ignorância. Considere o uso das falhas e brechas do sistema contra ele mesmo e, antes de tudo, aprenda quem é seu verdadeiro inimigo. O que iniciou o fogo na nossa floresta? O que o manteve e o espalhou por todo este tempo? O que é capaz disto? Não podemos culpar um deus, ou a natureza, ou qualquer outra coisa deste tipo. Nem todos os habitantes da floresta juntos podem apagar fogo simplesmente jogando água, se, ao mesmo tempo, não pararem de jogar o combustível que faz o fogo crescer e se espalhar. É preciso descobrir isso antes de sair cegamente “fazendo sua parte”. 2. Elevar a razão Dizem que o grande objetivo do homem é elevar sua razão. Isto significa não se contentar com a irracionalidade que domina o mundo. Ascender para um próximo estágio de consciência, onde sejamos plenos, porque a razão transforma o caos em ordem. Esta crença é letal na medida em que toda solução é sempre dada por uma razão superior àquela que criou o problema. Mas a própria razão nunca é responsabilizada por 2


nada. Ao mesmo tempo outras formas de racionalidade podem ser descartadas como se fossem apenas falta de racionalidade. Há uma tendência em pensar que a razão se perdeu em algum ponto da história. E tudo que é resultado de nossa racionalidade é inevitável. Elevar a razão é o destino inevitável dos seres humanos. O que chamamos de racionalidade parece ser a coisa mais importante do universo, mas isso é apenas a opinião vaidosa do nosso tipo de racionalidade. Não há relação de necessidade entre a evolução e o desenvolvimento de qualquer característica. O aparecimento de racionalidade não estava pré-determinado. Nós classificamos os seres vivos colocando os seres humanos no topo, pois estes são mais racionais. Mas a racionalidade não é a maior conquista da natureza. Elevar o grau de racionalidade nem sempre é preferível, pois não há uma ordem escalar na evolução. Nenhum desenvolvimento natural tende ao infinito, todos eles têm um limite, e esse limite gera o equilíbrio do sistema. A idéia de aperfeiçoamento da razão diz que devemos melhorar nossa racionalidade para alcançarmos um bem superior. Isso quer dizer sermos mais perfeitos naquilo que consideramos mais importante. Como alguém pode considerar que aquilo que é mais importante para nós é mais importante para o universo? Só podemos considerar isso se acreditarmos que conhecemos os objetivos do universo. Como podemos saber qual é a característica mais importante do universo se conhecemos tão pouco sobre ele? Como podemos tornar-nos perfeitos para o universo seguindo apenas o nosso próprio conceito de perfeição? 3. Respeitar a nossa cultura Parece haver uma contradição ao dizer que respeitar a diversidade de culturas inclui respeitar a nossa própria cultura em tudo que ela faz. Se não temos o direito de escolher que cultura deve existir e qual não deve, então é claro que estamos contrariando a nossa própria cultura, pois é exatamente isso que ela faz. Se você diz que uma cultura deve ser respeitada, então como pode concordar com uma cultura que assimila e destrói outras culturas sistematicamente? Não há como respeitar a nossa cultura e admitir que as culturas devam ser respeitadas ao mesmo tempo. Não há como respeitar a colonização da América, as cruzadas e a santa inquisição e dizer que respeitamos também a diversidade. E estas coisas não estão perdidas no “passado negro do homem”, são elementos que fazem parte da estrutura da nossa cultura, que se manifestam sob novas formas, e que nunca deixaram de acontecer. Nós não nos afastamos da barbárie sendo civilizados, nós a transformamos em uma coisa indireta, e por isso mesmo mais abrangente. E por que não destruir a diversidade? Se a própria evolução nos dotou com esse poder, porque não levar isso a cabo? A evolução não promove poder, ela promove diversidade. Saímos de uma única forma de vida e nos tornamos inúmeras espécies diferentes. Parece que nosso modo de vida cria condições em que este processo natural seja invertido, mas eu não posso supor que fazemos isso por motivos biológicos. Uma das razões porque não posso supor isso é que não foi uma adaptação genética ao meio que nos 3


transformou em seres que destroem a diversidade, mas sim uma adaptação cultural, que se baseia no controle da produção de alimentos. A destruição da diversidade é apenas um efeito colateral indesejado dessa recente mudança cultural. Acreditamos que o controle da produção de alimentos melhora a vida de todos os seres humanos. Mas uma vez que fique claro que não existe apenas uma maneira correta dos seres humanos viverem, talvez seja possível rever os fundamentos desta cultura. Isto não está claro porque, apesar dos elementos serem bem conhecidos, as relações entre eles e o que chamamos de “problemas globais” ainda não foram claramente estabelecidas. Não relacionamos os elementos da ecologia com os da economia, por exemplo. Ainda que toda corporação hoje em dia anuncie ser “ecologicamente consciente”, o modelo do crescimento sustentável é falacioso. Preservar, reciclar, reusar e reduzir são medidas paliativas. O desenvolvimento econômico continua baseado no controle da produção alimentos. Estas relações, sendo ignoradas, levam a maioria das pessoas a concluir que o problema está na própria humanidade. Mesmo que houvesse um erro fundamental na natureza humana, como poderíamos percebê-lo, sem conhecer o critério da própria natureza? Quando julgamos o ser humano como fundamentalmente falho, estamos cometendo o mesmo erro daqueles que o consideram fundamentalmente superior. Não é possível julgar o ser humano em si. Respeitar a nossa cultura, a nossa visão de mundo, o nosso modo de vida, é, inevitavelmente, desrespeitar a diversidade cultural e biológica, ver o mundo como propriedade e nosso modo de vida como o único modo de vida aceitável para toda a humanidade. Sob a influência de nossa cultura, as pessoas evitam esse tipo de questionamento, colocando-os sobre uma perspectiva absurda, cuja conclusão só não é ridícula para os niilistas: não há melhor coisa a se fazer do que morrer. Se isto é verdade, então a natureza cometeu um erro, e não o povo que inventou nossa cultura. Se isto é verdade, sabemos qual é o critério de correção da natureza, porque sabemos onde ela falhou, e onde ela deve ser corrigida. É fácil acreditar que sabemos essas coisas, uma vez que nós somos treinados para tomar o lugar da natureza na decisão de como o mundo deve funcionar. Esta visão pode parecer estranha quando enunciada assim, mas o sistema continua a se basear nela, e todas as instituições que coexistem com o sistema a aceitam de uma forma ou de outra. Para um exemplo, leia o terceiro capítulo da bíblia. 4. Mudar o indivíduo Durante nove anos, uma fábrica produziu carros que funcionam muito bem. É claro, não eram todos perfeitos, mas a maioria funcionava bem o bastante, de forma que os defeituosos nunca foram grande problema. Mas acontece que, no último ano, houve uma mudança completa na forma de fazer carros nesta fábrica. Uma mudança que afasta completamente o modo de produção do modo anterior. Os carros passaram a ser criados inteiramente por máquinas. O resultado foi que muito mais carros podiam ser criados, mas a porcentagem de defeito em cada um aumentava na mesma proporção. A cada dia, mais e 4


mais carros eram feitos, e mais e mais carros saiam com defeito, de forma que agora, no fim do décimo ano, a grande maioria dos carros sai com defeito. Estragam-se facilmente; o motor gasta cada vez mais combustível; o pneu fura o tempo todo; as peças saem do lugar; explodem... Perplexo, o dono da fábrica resolve observar cada um deles e determinar o que está dando errado. Ao decidir que o erro está nas peças mal colocadas, muito apertadas ou muito frouxas, resolve consertar cada um deles. Mas, com algumas exceções, seus carros continuam a apresentar defeitos, e o dono tem um grande trabalho em consertar cada um deles separadamente assim que apresentam um novo defeito. Ele então, sabiamente, contrata uma grande equipe de mecânicos para fazer reparos preventivos de tempos em tempos. Isto reduz um pouco a quantidade de carros defeituosos, mas ainda assim a maioria dos carros apresenta defeitos. Ao ouvir dizer que talvez o problema seja a forma com que os carros estão sendo produzidos, e não exatamente o funcionamento de cada um, o dono diz: “É claro que o problema não está na fábrica. Ela é muito melhor agora do que era há um ano atrás, e o fato de que produzimos cem vezes mais carros é a prova inegável disto. O problema está nos carros que sempre apresentaram algum defeito aqui ou lá, e que agora parecem piores apenas porque fazemos muito mais carros em muito menos tempo”. E continua: “Não é a maneira com que construímos os carros, mas sim a maneira com que os carros são usados, e não há nada que possamos fazer quanto a isso, porque carros são assim. Devemos nos conformar e aceitar esses defeitos como parte do funcionamento normal dos carros. Devemos nos manter ainda mais atentos para reparar os carros mais cedo e mais eficientemente. Devemos parar de usar aqueles que apresentam defeitos demais, antes que causem acidentes. Devemos reformar as estradas e conscientizar os usuários...”. Desta forma, cada vez mais aumentam os reparos preventivos, e cada vez mais se gasta com os consertos constantes. Além disso, mais e mais carros defeituosos são deixados por longos períodos na oficina, por não serem seguros, e os carros considerados perigosos demais são destruídos ou colocados num grande monte de ferro-velho que se formou ao redor da cidade. Esta fábula é sobre a maneira com que lidamos com nossos problemas educacionais. Não procuramos defeitos na formação das pessoas, mas no comportamento das pessoas, nas suas opiniões e crenças pessoais. Por que não questionamos as crenças culturais? A razão me parece simples, e capaz de ofender muita gente: é precisamente porque são muito difundidas que são aparentemente mais corretas. Os intelectuais são ótimos para criticar as crenças dos outros, mas não são bons em criticar suas próprias crenças. Crenças culturais não são mais passíveis de serem verdadeiras apenas porque são bem difundidas. A prevenção de nossos problemas não pode ser somente o reparo preventivo de indivíduos. A própria cultura pode estar errada. A cultura é o sistema de valores que é transmitido a todos os novos cidadãos através da escola, da mídia, das artes, das religiões e de tudo o mais. Prevenir não é remediar os efeitos mais cedo, prevenir é evitar que os efeitos aconteçam em tamanha escala. Se todo mundo acreditasse realmente que prevenir 5


é melhor que remediar, não se gastaria tanto dinheiro com prisões, escolas e hospitais. Porque num aspecto essas coisas são exatamente iguais: tentam restringir as ações nocivas dos indivíduos, enquanto os direcionam para ações inofensivas, mas não mudam o fato de que o sistema continua recompensando a ambição e a dissimulação, e que há cada vez mais poder concentrado nas mãos da minoria. O entretenimento e a religião também direcionam as ações e pensamentos dos indivíduos para longe da realidade, sem mudar o sistema. Pode até ser que existam exceções, mas a grande maioria destas instituições não está preocupada com a causa do problema, somente com seus efeitos no indivíduo. É claro que isso pode ser proposital, uma vez que elas ganham muito dinheiro com esse tipo de coisa, exatamente como os mecânicos ganham dinheiro com os carros defeituosos. 5. Acreditar nas autoridades Num lugar muito isolado do resto da civilização morava um velho. Toda a sua família morou ali antes, e todos os dias eles passavam pela perigosa encosta de uma montanha para pegar água do outro lado, porque esse era o único caminho possível. O velho era agora o único sobrevivente de sua família, pois todos os outros foram vítimas da encosta da morte. Mas o velho não pensava em se mudar de lá, ele respeitava a montanha e o lugar onde seus antepassados haviam vivido e morrido. Um dia, quando se dirigia para a encosta, ele encontrou um turista. Com um sorriso singelo no rosto, o velho perguntou onde o turista estava indo. Ele respondeu: “Para o outro lado desta montanha, onde há uma bela formação de rochosa e uma fonte de água cristalina”. O sorriso do velho se alargou, depois seu rosto ficou sério e preocupado, e o velho perguntou com um tom grave: “Existe mesmo um belo lugar atrás dessa montanha, mas o único jeito de chegar lá é pela encosta mais perigosa do mundo! Você está disposto a arriscar sua vida?”. O turista coçou a cabeça e, mostrando o mapa da região, disse que não era preciso arriscar a vida, já que havia uma ponte pelo outro lado da montanha. Ao ouvir isso, o velho se sentiu falando com uma criança ingênua que acredita em contos de fadas. “Meu rapaz, você obviamente foi enganado. Eu vivi nessa montanha minha vida toda, e antes de mim viveram meus pais e meus avós, e eu lhe garanto com absoluta certeza: não existe ponte alguma, tudo que há é a encosta. Se quiser chegar à fonte de água, precisa enfrentar a encosta, não há outro caminho nem nunca houve”. Depois de uma pequena discussão sobre a validade do mapa ou do conhecimento ancestral da região, o jovem turista propôs um desafio. “Já que estamos ambos indo para lá, vamos ver quem chega primeiro. Eu pela ponte ou o senhor pela encosta”. O velho riu do absurdo e aceitou a aposta, dizendo que iria esperar pelo turista quando e se ele chegasse. O velho passou a encosta, o que levou pouco mais de uma hora, e quando chegou à fonte, viu que o turista estava lá, sentado, com o mapa na mão. Ele procurou sinais do helicóptero, ou qualquer coisa parecida, que tenha levado o jovem trapaceiro a chegar primeiro. Não havia nada. “Eu lhe disse que havia uma ponte”, disse o turista. “Não há ponte alguma”, retrucou o velho. “Eu sabia que você ia duvidar, por isso tirei uma foto com a minha 6


Polaroid. Tome, veja por si mesmo”. O velho olhou por um instante e concluiu: “Poderia ser qualquer ponte”. O turista perguntou: “Quando foi a última vez que você passou pelo outro lado da montanha? Me acompanhe para ver a ponte com seus próprios olhos”. Ao que o velho respondeu: “Nunca fomos pelo outro lado porque nunca houve nada lá. Nenhuma ponte pode ser construída por lá, sempre soubemos disso. Minha família passou gerações atravessando a encosta porque jamais houve ponte, e nunca haverá, e por isso somos os mais habilidosos e corajosos alpinistas. Você é só um turista ingênuo com uma máquina fotográfica. Não ache que você pode saber mais que eu sobre a montanha. Fui eu que vivi aqui, não você. Foi a minha família que viveu e morreu aqui, não a sua. Portanto, saiba qual é o seu lugar e respeite o meu”. E tendo dito isto, o velho pegou a água que precisava e voltou, pela encosta da morte, e a única coisa que guardou deste encontro foi que o jovem turista tinha obviamente chegado ali por outros meios, já que logicamente não poderia ter usado uma ponte que não existe. Há uma grande dificuldade em aceitar novos fatos para explicar problemas antigos, principalmente quando se trata de problemas fundamentais. É comum acreditar que problemas antigos só serão resolvidos se nenhum elemento central do que foi tentado até agora for retirado do problema, já que isso significaria um retrocesso. Acho que isto só é necessário ou útil para a permanência inabalável dos mesmos fundamentos num sistema qualquer. Neste ponto, não importa que fundamentos sejam estes, o que importa é que são mantidos com crenças, e não com qualquer coisa que se aproxime de algum conhecimento. Os novos fatos que adquirimos sobre a civilização e a natureza, ainda que resgatados de um passado longínquo, podem mudar nossa forma de ver o mundo, não importa o que as autoridades pensem. 6. A nossa história representa um avanço Aprendemos na escola que nossa civilização apresenta avanços técnicos em relação aos outros modos de vida. Dizem que a pré-história é um período onde os homens passavam a maior parte do seu tempo fugindo de predadores e procurando por comida. Eles não tinham uma verdadeira organização social, mas se dirigiam timidamente à civilidade. Eles não tinham uma verdadeira religião, mas já apresentavam sinais de alguma preocupação com a vida após a morte. Então, num belo dia, eles iniciaram a agricultura, e isso os colocou no caminho certo. Depois de uns 100 mil anos perambulando sem muito que fazer, em apenas 10 mil anos nós fomos capazes de construir a civilização, o grau máximo da organização social humana. Ironicamente, hoje nós trabalhamos muito mais que naquele tempo. Mesmo nas regiões mais desérticas não era preciso se esforçar por mais de 4 horas para preservar sua vida, e as condições para fazê-lo eram muito mais igualitárias. Outro erro é confundir todo e qualquer tipo de plantação com o que chamamos de agricultura. Muitas tribos plantam alimentos, mas não de maneira expansiva, não como maneira de controlar a produção de comida, mas apenas como uma forma de favorecer o crescimento de plantas preferidas. Não é verdade que a escassez de comida levou ao fim do nomadismo. Começamos a nos fixar num só lugar porque encontramos regiões com comida em abundância. Se houvesse falta de comida, a população morreria antes que a 7


primeira colheita fosse feita. Não é verdade que não fazíamos nada. Desenvolvemos coisas que muita gente se esquece que não nasceram conosco. Na verdade, foi preciso muitas gerações de criatividade e imaginação para desenvolvê-las. Coisas como nossa sabedoria ancestral sobre como conviver na natureza. Essas coisas foram desenvolvidas como forma de sobrevivência, e como qualquer característica natural, elas foram testadas por milhares de anos. Não há porque se espantar ao ouvir dizer que nosso modo de vida garantia nossa sobrevivência. Isso acontece não porque éramos pessoas melhores, mas porque somos seres vivos, e todos os seres vivos se organizam da melhor forma possível para sua sobrevivência. O que há para se espantar nisso? O que nos espanta é que nós não vivemos assim, nós queremos uma sociedade melhor, porque sabemos que este modo de vida ameaça nossa continuidade. Será que somos diferentes do resto da natureza? Foi esta a conclusão dos pensadores de nossa cultura: há uma dicotomia entre homem e natureza. Não me cabe agora explicar porque isso é absurdo, mas basta dizer que existe uma situação onde é razoável que uma população se encontre vivendo de forma insustentável. Isto acontece, obviamente, quando esta população está em processo de extinção. Uma objeção clássica é que nossa população está crescendo, logo não estamos sendo extintos, mas, pelo contrário, estamos sendo muito bem sucedidos na natureza. Para mostrar o quanto essa noção é ingênua eu levaria muitas páginas, mas basta se lembrar da fábrica de carros. A cada mês ela produz mais carros, mas a cada mês aumenta a porcentagem de carros defeituosos. A expansão quantitativa é inútil porque ela depende da decadência qualitativa. Uma população bem adaptada sempre apresenta estabilidade, não crescimento. Voltando ao fim do nomadismo, não é verdade que as condições de vida deixavam a desejar. Hoje temos avanço tecnológico, e dependemos dele cada vez mais. Ao mesmo tempo, as patologias psicológicas aumentam em número e em intensidade a cada geração. O tratamento se torna cada vez mais custoso e menos satisfatório. Outros fatores negativos podem ser vistos nas críticas de Fritjoff Capra e Aldous Huxley à saúde em geral. Aumentamos nosso sofrimento. Este sofrimento seria recompensado se estivéssemos realmente melhorando a saúde do maior número de indivíduos. O que acontece é que temos um maior número de indivíduos vivos, mas um número bem menor de indivíduos sãos, quando se considera a saúde no termo mais amplo. Novamente, não estou dizendo que éramos pessoas melhores antes, somente que as condições de vida eram favoráveis à sobrevivência e ao bem estar. Mas se eram favoráveis, porque mudamos? Isto também não é um mistério. As adaptações não partem das menos favoráveis para as mais favoráveis, elas acontecem aleatoriamente, mas somente as mais favoráveis se perpetuam. O que havia antes eram pessoas que viviam num modo de vida que era favorável à sobrevivência e ao bem estar. Este modo de vida sobreviveu por centenas de milhares de anos favorecendo a qualidade de vida, e não a quantidade, enquanto que o nosso funciona ao inverso. E para responder a uma objeção final sobre a possibilidade de colonizar outros planetas para perpetuar este modo de vida, leia o primeiro capítulo de Bilhões e Bilhões de Carl Sagan. Enquanto o 8


problema fundamental da civilização não for resolvido, todas as nossas soluções apenas adiarão uma catástrofe inevitável e perpetuarão apenas o sofrimento. 7. A civilização é o produto final da evolução Quando dizemos que o homem se difere dos outros animais, não parece que estamos falando de uma diferença comum, como todas as espécies têm entre si, mas uma diferença abismal entre a espécie humana e todas as outras espécies. Esta diferença é a racionalidade. A idéia de que esta diferença coloca o homem em posição vantajosa em relação ao resto das espécies implica que a evolução leva as espécies necessariamente rumo a uma racionalidade cada vez maior. Esta idéia é tradicional, trata-se de ver uma divisão hierárquica entre minerais, vegetais, animais e homens. Esta classificação é feita primariamente observando-se um crescente grau de semelhança conosco. Logo, o objetivo da evolução da vida no planeta era criar seres humanos, que são o ápice da criação, e por isso não há mais necessidade de evolução natural. O que é preciso agora é outro tipo de evolução, que aconteça somente no nível da humanidade, rumo à moralidade e a uma sociedade mais justa: é a evolução cultural. Segundo esse dogma, nossa civilização domina o mundo porque é racionalmente superior, ela conseguiu esse lugar por virtude própria. Se há algum problema na sociedade, só pode ser a falta de encaixe das pessoas nesse modelo perfeito ou então a falta de aplicação do modelo em lugares “subdesenvolvidos”. Por exemplo, o problema dos países pobres é que eles não são desenvolvidos o bastante e o problema dos países ricos é que as pessoas ruins os estragam: os maus governantes, os assassinos, os vagabundos, os estrangeiros. Em outras palavras, o segredo da “liberdade” é que todos vivam segundo os mesmos padrões e que não se crie desigualdade em parte alguma. Mas a desigualdade é a causa das pequenas ilhas de prosperidade que temos hoje no mundo. Não há, até hoje, desenvolvimento que não resulte num aumento considerável do consumo, o que leva direta ou indiretamente à exploração de outras populações e à destruição da diversidade. As pessoas podem estar acostumadas a ouvir esse tipo de coisa. Tão acostumadas que deixaram de ouvir o que realmente está sendo dito. Estas citações são tiradas de enciclopédias: “Passos importantes no crescimento da CULTURA incluem (1) desenvolvimento de ferramentas, (2) O começo da criação de animais e cultivo de plantas, (3) o crescimento das cidades, e (4) o desenvolvimento da escrita”. “A CULTURA HUMANA se DESENVOLVEU em três grandes fases. Essas fases foram baseadas em (1) sociedades caçadoras coletoras, (2) sociedades agrícolas, e (3) sociedades industriais”. Você acredita que esses passos sejam necessários para o desenvolvimento de um modo de vida qualquer? Claro que não, esses passos são importantes para um tipo específico de modo de vida: o nosso. Acontece que passamos tantos séculos achando não existiam pessoas vivendo em modos de vida diferentes que passamos a acreditar que só existe um modo de vida possível para a humanidade. Civilização se tornou sinônimo de humanidade. Isso acontece o tempo todo, mas passa despercebido pela maioria das pessoas: “A humanidade gera lixo tóxico”, “A humanidade é responsável pela poluição do 9


ar, da água e pela destruição da camada de ozônio”. Estas são generalizações prejudiciais, porque espalham a crença de que a culpa por tudo que acontece seja da espécie humana. É claro que negar isso, como de fato nego por motivos já apresentados, não significa afirmar que a culpa seja externo á humanidade. As pessoas acham que essas implicações são óbvias porque estão acostumadas a enxergar o problema do ponto de vista dado a eles pela educação convencional: “O erro só pode estar na natureza imutável das coisas, porque sempre foi assim desde que o homem é homem. O máximo que podemos fazer é tentar mudar os indivíduos”. A sensação de ser naturalmente falho só aparece nos povos afetados por nosso modo de vida. Esta sensação pode ter origem na idéia de que nosso modo de vida é perfeito, as pessoas só precisam se adaptar a ele. Em outros modos de vida, por pior que seja a situação, não há sinais desta sensação. Os missionários tiveram que se esforçar muito para fazer os indígenas entenderem que estavam vivendo num estado de perdição natural, que a única solução seria adotar outros costumes. São coisas que estamos não apenas prontos, mas ansiosos para fazer toda vez que aparece uma novidade “ecológica” na televisão ou um novo livro de auto-ajuda nos ensinado segredos de como mudar nossa vida para melhor. O fato de que nos atraímos cada vez mais por essas coisas deveria ser suficiente para atestar sua ineficiência. Qualquer um pode afirmar que tudo tem seu fim. Mas o que é preciso para afirmar que a humanidade ou nossa sociedade representa o fim inevitável do planeta é um conhecimento muito mais profundo sobre o funcionamento do planeta do que nós temos sobre o funcionamento do nosso próprio corpo. Afirmar que nós estamos destruindo o planeta é uma coisa, afirmar que é para isso que nós fomos FEITOS é outra completamente diferente. Seria muito difícil defender essa afirmação, porque não envolve nenhum fato. Além disso, o que deveria ser nossa preocupação principal não é a natureza, ela pode se regenerar. É nossa herança genética que está em perigo. Se nos destruirmos dessa forma, não sobrará nenhum vestígio de nossa passagem terra, o universo continuará como se não tivéssemos existido. Para conseguir fazer aquilo que fomos feitos para fazer, precisamos nos adaptar novamente ao meio. 8. Nossas religiões têm um valor universal Tudo que nós compreendemos por religião nos conecta de alguma forma com um outro mundo, um mundo além deste mundo. Tudo que nós chamamos de religião também nos coloca numa posição bastante especial em relação aos outros seres vivos deste planeta. Somos especiais, não simplesmente por sermos melhores, mas ao contrário, por sermos afligidos por algum tipo de maldição que nos impede de atingir a felicidade agindo simplesmente de acordo com nossas inclinações naturais. Nossas religiões dizem que não estamos vivendo bem sendo simplesmente mundanos. Precisamos ascender a um grau mais alto. Mas será que isto que chamamos de religião é típico de qualquer ser humano? Os povos que chamamos de esquimós tem uma religião bem diferente. Sua principal deusa não é bondosa, mas sim muito vingativa. Ela afunda os barcos que saem 10


para pescar. Mais estranho ainda: ela não é a deusa criadora, pelo contrário, ela é posterior aos próprios esquimós. Ela própria era uma esquimó, que saiu para pescar com seu pai. O pai pegou muitos peixes, mas uma tempestade ameaçou virar o barco por causa do peso, e isso o obrigou a uma decisão: ou ele jogava os peixes de volta no mar, e toda sua família morreria de fome, ou ele jogava sua filha. Ele jogou a filha, mas ela se segurou nas bordas do barco, e ele teve que cortar seus dedos com a faca. Desde então ela persegue os pescadores, e seus dedos cortados se tornaram as baleias. A coisa que talvez mais se aproxime de nossos próprios mitos seria a crença de que algumas pessoas se transformam em aurora boreal depois que morrem. Mas esse privilégio é reservado, por exemplo, aos suicidas. Como podemos compreender os mitos esquimós? Eles vivem num ambiente hostil, que raramente muda. O que eles vêem é um ambiente que está constantemente contra eles, contra o qual eles têm que lutar para sobreviver, e onde não pode haver concessões. Para eles a morte não é uma coisa terrível, é até boa. O sofrimento sim é ruim. Prisioneiros na perpétua tendem a pensar de forma semelhante. Não há um motivo para um deus bondoso aqui, uma vez que os deuses são derivações do ambiente em que as pessoas vivem, e os mitos esquimós demonstram isso. Nosso deus é um deus derivado do culto ao Sol, fonte da vida e da luz. As pinturas rupestres demonstram que o homem primitivo já cultuava o Sol. Existe realmente algo maléfico na escuridão e algo bondoso na luz, ou simplesmente pensamos isso porque temos naturalmente medo do escuro, onde somos mais indefesos contra predadores? Se fôssemos como os morcegos, nosso deus não seria bem diferente? Os povos animistas pensam que ninguém precisa ser salvo. Ninguém está num estado de perdição, todos são seres humanos no melhor sentido da palavra. Não há necessidade de um outro mundo. É neste mundo que as coisas se desenrolam e é neste mundo que os espíritos estão, mas os espíritos não são sobrenaturais, apenas sobrehumanos. Se você acaba com todos os rios você mata o espírito do rio. Se uma pessoa cai no esquecimento, o seu próprio espírito não existe mais. Não podemos usar o termo “religião” para o animismo, uma vez que nós inventamos esse termo tendo por base a salvação. Não havia qualquer conceito de perdição durante 99% de nossa história, e por conseqüência não havia salvação ou religião. O que nos levou a essa invenção e porque o salvacionismo prolifera tanto na civilização? O salvacionismo é essencial para manter um modo de vida trabalhoso e expansivo como o nosso. Ele nos incute a crença de que todos os problemas serão resolvidos sem que tenhamos que lidar diretamente com nossos erros. Eles serão perdoados. Estimula as pessoas a se esforçarem, a colocarem um ideal moral acima das inclinações naturais. Isso é útil numa sociedade que valoriza o trabalho e a produção acima de todas as coisas, o que acontece em diferentes escalas. Deixamos de ser uma comunidade de seres humanos, somos uma sociedade de cidadãos. É importante também que tenhamos legitimidade para nos apropriarmos de animais, plantas e da própria terra. Para nos sentirmos com a liberdade de fazer o que bem entendermos com a natureza. O mundo não é mais sagrado, ele não tem valor intrínseco, foi dado a nós pelo próprio deus, para que sejamos senhores dele. 11


Deus, por sua vez, passa a ser um deus com características humanas. Ele se importa com tudo que os humanos fazem, até mesmo com a maneira com que eles fazem sexo. Para livrá-los do pecado, ele é capaz de inundar o mundo inteiro, preocupando-se muito pouco com o sofrimento de outros animais. O propósito da criação era a humanidade, a criação não estava completa antes de nós. Se uma espécie não for útil para nós, nós podemos exterminá-la. Se uma espécie for útil, nos iremos nos apropriar dela, tirando-a da natureza, domesticando-a, como se fôssemos realmente seus criadores. Os povos animistas também concordam que não precisamos receber leis dos espíritos para saber como nos comportar bem. Sabemos nos virar sozinhos, cada tribo é responsável por seu comportamento. A civilização precisa de leis universais por um motivo especial: nós vivemos em amontoados. Perdemos a sabedoria ancestral, que era diferente para cada pequeno grupo de pessoas. Dependemos do nosso suor para nos alimentar. Esta é nossa maldição. Não há como negar a influência das religiões na criação e na expansão do nosso modo de vida insustentável. Elas precisam ser questionadas se quisermos resolver os problemas de nossa cultura. Infelizmente muitas pessoas consideram as religiões como portadoras da última palavra sobre o que deve e o que não deve ser questionado. Não estou atacando os religiosos, mas os fundamentos das religiões, que são tão insustentáveis quanto o modo de vida que as sustentam, ou que são sustentados por elas. 9. O trabalho melhora o mundo Nosso sistema econômico não é prejudicial somente para a população pobre, ele causa um prejuízo imediato para todos os seres humanos vivendo nele, mesmo que não seja claramente visível. Um bom exemplo está na relação entre alimentação e medicina. Para suprir a expansão econômica, produtos baratos e pouco nutritivos são vendidos através de campanhas publicitárias grandiosas, colocando cada vez menos alimentos saudáveis à disposição do consumidor. As regras da economia beneficiam aqueles que vendem mais, por isso é mais lucrativo investir em propaganda que na qualidade do produto. A produção de alimentos se tornou hoje uma grande indústria, escrava dessas regras insalubres. Para produzir mais, os agricultores são obrigados a meramente reproduzir técnicas dadas por agrônomos, perdendo sua liberdade de produção, se tornando funcionários. Segundo Fritjoff Capra, “Essas técnicas não se baseiam e considerações ecológicas, pois são forçadas, pelas conveniências de mercado, a voltar-se para tal ou tal mercadoria”. Na indústria agropecuária os animais são maltratados e amontoados, recebem alimentação inadequada e mantêm-se vivos à base de antibióticos, passando uma vida de intenso sofrimento. Com as plantas não é muito diferente. São modificadas quimicamente para resistirem a pragas, quando na verdade estão se tornando cada vez menos nutritivas. Tudo 12


isso causa um impacto ambiental para o solo, que se torna infértil; e para os rios, que se poluem devido ao acúmulo exagerado de resíduos. Para piorar, grande parte do custo de nossa alimentação vem do gasto com petróleo. A agroindústria depende da indústria petroquímica, ou seja, se tornou dependente de um recurso não-renovável que causa problemas ambientais e políticos. Com tudo isso, podemos dizer sem receio que a nossa agricultura é hoje o empreendimento mais insustentável do mundo, portanto a maior ameaça à permanência da raça humana neste planeta. Poderia ainda supor-se que pelo menos o lucro dos trabalhadores da terra aumentou. Na realidade o que aconteceu foi o oposto: As dívidas dos agricultores têm crescido juntamente com o preço do petróleo, e está cada vez mais difícil ganhar dinheiro cultivando alimentos em pequena escala. Este tipo de trabalho essencial à nossa existência é o menos seguro de todos os investimentos. Apenas as grandes empresas estão seguras nesse ramo, mas não sem muita manipulação política. O problema da agricultura reflete o problema da medicina. Para começar, grande parte do custo com o tratamento de doenças poderia ser evitado com uma alimentação mais saudável. As empresas controlam desde a formação dos médicos até como irão empregar seus conhecimentos, de acordo com o interesse de algumas empresas que fabricam remédios e equipamentos hospitalares. Esta maneira de tratar a produção de alimentos e a medicina, duas áreas consideradas de importância primordial ao bem estar das pessoas, reaparece de forma semelhante em praticamente todas as formas de trabalho em nossa sociedade. Esses problemas não parecem ter correção isoladamente. Toda vez que aumentamos as verbas ou criamos leis na esperança de corrigi-los, apenas mudamos o foco do problema e acabamos agravando ainda mais o quadro. O suposto motivo para levar adiante o processo de industrialização das fazendas foi a escassez de comida. A promessa era de que a comida produzida em grande escala eliminaria a fome nos países pobres. O que aconteceu foi precisamente o contrário, e diversas empresas enriquecem-se com isso. No entanto continuamos acreditando que a fome seja um problema que possa ser resolvido com o mero avanço da tecnologia e o aumento da produção. No nosso sistema econômico, a tecnologia não garante distribuição igualitária, nem garante que a prioridade seja a subsistência, e sim a exportação e a expansão de mercado. A fome não é um problema de distribuição de alimentos, mas de distribuição de meios de produção. Isto significa o fim do modelo agroindustrial, o que obviamente não é coisa simples de se fazer. O mesmo se repete analogamente em todas as áreas do trabalho humano, pois são todas influenciadas por esses mesmo fatores. De maneira similar, a venda de remédios aumenta espantosamente, enquanto a saúde em geral está em déficit. E ainda assim o discurso principal tem sido gerar mais empregos, gerar mais desenvolvimento, incentivar a expansão urbana. 10. Precisamos de um Estado melhor Assim como os gregos consideravam que qualquer pessoa vivendo fora da polis não poderia ser muito mais que um selvagem; e os cristãos imaginam que um sujeito que 13


discorda da Bíblia não deve ser muito confiável; imaginamos que sem um Estado para dar e fazer cumprir leis é quase impossível viver em sociedade por muito tempo. A descoberta de que o homem viveu pelo menos 100 mil anos sem Estado deveria ter colocado isso abaixo, mas curiosamente ninguém se sentiu compelido a explicar porque o homem sobreviveu tanto tempo sem um Estado, e ainda assim em comunidade. Não há dúvida que havia algo que os regulava, mas as diferenças entre o nosso tipo de lei e os costumes tribais são tantas que não se pode afirmar que uma seja a continuação da outra. Elas são essencialmente diferentes. Como explicar que hoje consideremos tão necessário algo que só existe no nosso modo de vida? Os costumes dos nossos ancestrais não eram sobre punição ou retribuição, eram sobre restituição. Não se tratava do que pode e o que não pode ser feito, mas sobre o que fazer quando ocorre uma situação conflituosa, para restabelecer a convivência da maneira menos danosa. Estes costumes não são formulados através de teorias sobre justiça, são adquiridas através da experiência com conflitos anteriores, passadas de geração a geração através da tradição. Cada tradição tem sua maneira particular de lidar com conflitos de acordo com o que tem se mostrado mais vantajoso para os membros durante as gerações. Isto é sabedoria prática, uma extensão daquela que utilizamos para resolver problemas de convivência entre grupos pequenos de amigos ou familiares. Com o controle e a expansão de territórios, as pessoas foram obrigadas a viverem em grupos muito maiores do estavam acostumadas e naturalmente adaptadas. Enquanto foram sendo assimiladas, as pessoas abandonaram suas tradições e foram se acostumando com uma organização centralizada e um modo de vida de multidão. Essa multidão precisava de um critério comum para decidir o que fazer quando algum conflito ocorria, porque tinham perdido seus referenciais. A urgência de colocar as coisas em ordem levou os líderes a darem leis que nada mais eram que simples proibições seguidas de uma punição para quem desrespeitasse o que foi escrito. Com isso, as autoridades esperavam reduzir o número de conflitos, ou pelo menos fazer com que as pessoas não se revoltassem demais. Obviamente, nem a mais perfeita justiça foi capaz de reduzir ou diminuir os danos resultantes dos conflitos de convivência, simplesmente porque proibições não eliminam a inclinação natural para os conflitos numa sociedade com excesso populacional. Surge a figura do criminoso. Aquele que deve restabelecer a honra ou o respeito através de seu sofrimento ou prejuízo. Isto se tornou possível porque o modo de produção havia se tornado tal que os indivíduos perderam sua importância para o grupo. Num grupo pequeno, cada pessoa faz diferença para sobrevivência de todos. Um grupo que insistisse em duplicar os prejuízos ao invés minimizá-los não sobreviveria muito com um modo de vida sustentável. Numa multidão, é mais fácil matar, prender ou multar os problemáticos do que lidar realmente com o problema, o que pode causar a banalização do crime, a desconfiança mútua, e uma série de outros problemas. Entre pessoas que dependem umas das outras é bem mais difícil encontrar violência, furtos ou qualquer forma de crime. 14


Sem tradições em comum para recorrer, as pessoas precisam de um Estado para determinar o que é certo e o que é errado, e para punir os que erram. Embora as teorias do Estado e das leis tenham mudando muito, as pessoas ainda não dedicaram tempo suficiente para reavaliar profundamente os fundamentos do Estado e das leis inventados há alguns séculos. Ou seja, estes conceitos foram dados por pessoas sabiam muito pouco sobre o passado humano. Elas não sabiam que havia outros modos de vida durante milhares de anos, e ainda assim a instabilidade e a efemeridade de organizações primitivas são as premissas básicas para teorias da formação do Estado. 11. O mundo está em nossas mãos Estamos acostumamos a ouvir o quanto proteger o meio ambiente é nossa responsabilidade, pois somos a única espécie que destrói o planeta. Mas isso implica numa dicotomia entre homem e natureza, e desconsidera os povos não-civilizados, que não destroem o planeta. Por que o meio ambiente precisa ser protegido da ação humana se não é a ação humana que causa a destruição, mas sim a ação civilizada? Os ambientalistas dizem apenas que devemos poluir menos o mundo. Ignoram que seja preciso mudar fundamentalmente nosso modo de vida, pois ele depende da exploração de meios que aumentem indefinidamente a produção. Não explicam como podemos diminuir a poluição e ao mesmo tempo continuar expandindo nossa economia. Se uma empresa pára de poluir o ambiente hoje, ela vai ter que encontrar uma nova forma de baratear seus produtos. Basicamente, nos dizem que devemos ser pessoas melhores, mas não é necessário ter um sistema melhor, só precisamos mudar algumas leis e hábitos. Mesmo quando novas formas de produção são sugeridas, são planejadas com o mesmo raciocínio que trouxe o problema. Por que devemos acreditar que dessa vez vão funcionar? Claro que se as pessoas que tentaram voar tivessem desistido, nunca teriam inventado o avião. Mas isso porque tentaram várias visões diferentes, e não só vários projetos. Se tivessem insistido numa visão que contradiz as leis da aerodinâmica, poderiam fazer infinitos projetos, e não iriam muito longe. Ouroboros é um símbolo de uma ação solução que causa problemas piores. É uma cobra mítica que come o próprio rabo. A princípio, ela tem a impressão que está matando sua fome, mas é uma questão de tempo até que perceba que não é possível matar a fome comendo a si mesma. Efeitos ouroboros geralmente acontecem quando reduzimos o problema a algo menos complexo do que ele realmente é. O que não quer dizer que precisamos conhecer tudo. Ninguém pode se sentar e esperar até que se descubra exatamente qual é a verdade final para então começar a lidar com questões como o racismo, o machismo e a corrupção. Da mesma forma, ninguém pode dizer que a solução seja simplesmente matar todos os humanos, ou evoluir, porque nesse caso a pessoa já saberia que o problema é a própria natureza humana. Esse conhecimento não passa de um dogma, pois não é possível afirmar nada desse tipo. Por outro lado, consideremos que nosso modo de vida contradiz 15


pelo menos uma lei da biodinâmica: a primazia da diversidade. Se há algo que podemos afirmar com segurança sobre a natureza é que ela promove diversidade em todas as instâncias. Se há algo que podemos afirmar sobre nosso modo de vida, é que ele promove a uniformidade. Existem basicamente dois tipos de intervenções que causam efeitos negativos inesperados: 1) Incentivar, intensificar ou adicionar efeitos considerados positivos. 2) Obstruir, eliminar ou reduzir efeitos considerados negativos. Em ambos os casos, as intervenções atingem os efeitos, e não nas causas. Por exemplo, numa cidade onde os administradores estavam preocupados com o número de mendigos nas ruas, o governo providenciou abrigos e comida para eles. Ao saberem disso, os mendigos de outras cidades se mudaram para lá, aumentando o número de mendigos nas ruas. Outro exemplo: O serviço florestal, preocupado com os incêndios nas florestas, investiu pesadamente na prevenção, apagando os focos de fogo o mais rápido possível. Isso fez acumular o potencial de incêndio em forma de galhos secos no chão, o que eventualmente causou um incêndio muito maior, incontrolável, que se espalhava tão rápido que causou um dano irreparável. Muitos exemplos desse tipo de intervenção podem ser encontrados na história da tentativa humana de controlar ou corrigir a natureza. Não podemos compreender sistemas tão complexos quanto os sistemas vivos. Mas mesmo sem saber exatamente o que podemos fazer, há algumas coisas que podemos evitar. Podemos evitar usar a mesma forma de raciocínio insistentemente, ou achar que existem soluções universais para os problemas. A implantação de novas tecnologias tornou possível a Revolução Verde, a grande industrialização da agricultura, que ocorreu quando se temia que o mundo não pudesse produzir alimento suficiente para uma população mundial de 6 bilhões. A população dobra em cada vez menos tempo. Na última vez levou menos de 50 anos. A Revolução Verde foi comemorada, mas tem conseqüências que hoje sabemos serem desastrosas para a saúde humana, para o meio ambiente e para os animais. Não é com uma nova Revolução Verde que vamos parar de morder o nosso próprio rabo, esse tipo de atitude significa apenas uma nova e mais profunda mordida desesperada. Não podemos colocar cegamente nossa fé na ciência e na tecnologia, e por isso devemos desconfiar quando nos oferecem esse tipo de solução. Como reação, podemos ver uma parcela das pessoas alegando que tudo se resolverá quando amarmos de verdade a natureza e os animais. É mais fácil, e mais vantajoso para as empresas, colocar a culpa nas pessoas, e não encarar os motivos históricos, principalmente quando eles remontam à origem da civilização. As pessoas consideram que a poluição não passa de um hábito ruim, que veio com a industrialização, e que pode ser eliminado com alguma educação extra e com tecnologias limpas, sem mudar em nada o sistema que se baseia nela. Em resumo, acreditam no investimento de capital, trabalho e ciência, tratando a natureza como mera fornecedora de recursos e receptora de resíduos.

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Começamos a estabelecer domínio sobre esse planeta muito antes da industrialização, e para dominar algo precisamos saber como ele funciona. Durante muito tempo tivemos a crença que era possível saber como a natureza funciona, em seus mínimos detalhes. Estávamos enganados, mas todo nosso modo de vida está contaminado com essa idéia. Hoje sabemos que a evolução da natureza é imprevisível, e que não podemos determinar como deve ou não se organizar a vida no planeta. A natureza jamais esteve em nossas mãos, a própria tentativa de controlá-la causou os perigos globais que nós enfrentamos hoje. Não podemos ser pessoalmente responsáveis pela proteção e pela destruição da terra ao mesmo tempo. Para protegê-la como querem os ambientalistas precisaríamos controlá-la ainda mais, e causar ainda mais efeitos ouroboros, dos quais a história do ambientalismo está lotada. Eles consideram que o problema está na superfície do nosso modo de vida, não em seu fundamento. Olhando para a história das lutas ambientais, vemos que nos contentamos com vitórias cada vez menos significativas, enquanto os problemas se tornam cada vez maiores. Não podemos esperar que novas leis mudem alguma coisa, as leis mais severas nunca impediram os crimes de continuarem, porque não afetam as causas. Da próxima vez que ouvir dizer que o futuro depende das novas gerações, lembre-se que quem diz isso hoje ouviu isso ontem. Estamos vivendo à custa de um futuro com o qual não queremos lidar, e por isso o jogamos nas mãos das novas gerações, até que um dia não haja mais tempo para fazer qualquer outra coisa senão tentar sobreviver precariamente num planeta onde as condições de existência foram reduzidas à quase nada. Nota sobre ecologia e desenvolvimento Em 1972 o Clube de Roma publicou um relatório chamado “Limits to Growth” (Limites para o crescimento), onde acusava o desenvolvimento acelerado e indefinido de ser fundamentalmente insustentável. Este livro foi criticado tanto pelos países desenvolvidos quanto pelos em desenvolvimento. A Bariloche Foundation, através de pensadores do chamado mundo desenvolvido, respondeu em 1974, com a publicação de “Limits to poverty” (Limites para a pobreza), onde afirma que apenas o desenvolvimento econômico pode resolver os problemas ecológicos. Este livro teve melhor aceitação, por motivos óbvios. Está claro para mim que a partir daí a ecologia começou a se popularizar e a ser assimilada pelo capitalismo. A crença letal tratada aqui foi amplamente espalhada por pessoas que seguiram essa linha de raciocínio. Como mudar nossas crenças Seria muito bom se todos nós fôssemos sempre abertos para analisar uma nova idéia, e para mudar de idéia caso apareça uma idéia melhor. Mas para saber se uma idéia é melhor é preciso aceitá-la como possível, pelo menos como um teste. Para compreender uma idéia é preciso tomá-la para si por certo tempo, para que ela possa ser avaliada como se fosse sua. É preciso ter aquela idéia para então poder descartá-la, caso seja ruim. Negar 17


uma idéia sem colocá-la para funcionar em sua cabeça é como dizer que não gosta de algo que nunca provou. Algumas pessoas se apegam facilmente a uma nova idéia por dois motivos: ou porque no fundo já pensavam desse jeito e só precisavam encontrar alguém que pensasse da mesma forma, ou porque não estavam contentes com sua idéia anterior e estavam prontos para se abrir para qualquer coisa diferente. Melhor que isso seria conseguir se aprofundar numa idéia sem perder a autocrítica. Manter a capacidade de imaginar outros cenários possíveis, onde outras idéias podem ser melhores que nossas idéias atuais. Algumas pessoas se apegam tanto a um cenário que qualquer um que critique suas idéias irá soar como louco, como alguém que está negando a própria realidade. Isso porque, quando nos apegamos a um cenário, ele se torna mais do que possível: ele se torna necessário. Ele se torna nossa realidade imutável. Nossa realidade é sempre formada por cenários possíveis, onde certas idéias funcionam e outras não. Mas o fato de que dependemos de tais cenários não significa que precisamos nos fixar num deles, por mais tempo que tenhamos dedicado a ele, por mais popular que seja entre as pessoas, ou por mais perfeitos que pareçam os argumentos que o defendem, porque qualquer cenário pode ser defendido com retórica ou possuir crenças que o justifiquem. De fato, só uma coisa pode fazer novos cenários ganharem espaço na cabeça das pessoas: O interesse pelo questionamento, em oposição ao fundamentalismo.

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Livros e textos recomendados: Konrad Lorenz A demolição do homem Oito pecados do homem civilizado Daniel Quinn A história de B Além da civilização Pierre Clastres A sociedade contra o Estado John Zerzan Futuro primitivo Jarred Diamond O pior erro da história humana Marshall Sahlis A primeira sociedade da afluência John Gray Cachorros de palha Outras publicações: Crenças letais – 20 páginas. Por uma mudança – 20 páginas. Criticando a civilização – 20 páginas.

Copie e passe para frente à vontade.

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