TESTE 01

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CAPA

DADOS BIBLIOGRÁFICOS

REGISTRO NACIONAL

CATALOGRAFIA

TÍTULO DO LIVRO

HOMENAGEM

OU DEDICATÓRIA

Prefácio

FASE 1 - O início de tudo e minha infância ________

Capítulo xxxxxx

Capítulo XXXXX

Capítulo XXXXX

Fotos

FASE 2 - Adolescência ________________________

Capítulo XXXXX

Capítulo XXXXX

Capítulo XXXXX

Fotos

FASE 2 - Adolescência ________________________

Capítulo XXXXX

Capítulo XXXXX

Capítulo XXXXX

Fotos

FASE 2 - Adolescência ________________________

Capítulo XXXXX

Capítulo XXXXX

Capítulo XXXXX

Fotos

Considerações, etc...

CONTINUAÇÃO PREFÁCIO

FASE 1

O início de tudo e minha infância...

1954 - Vassouras/RJ

Nasci na cidade de Vassouras/RJ, embora todos acreditem que tenha sido em Arcos MG, onde nasceram os meus dois irmãos. Meu pai foi o primeiro dos onze filhos que meus avós geraram. Ele começou a trabalhar aos treze anos em uma fábrica de manteiga e foi logo abrindo caminho para dar oportunidade também aos irmãos. Já casado e pai de dois filhos, foi recrutado para trabalhar como mecânico e ser o primeiro empregado registrado de uma empresa mineira, a Construtora Andrade Gutierrez, que iniciava suas atividades numa obra em Rio Vermelho, próximo a Vassouras/RJ. A família foi alojada em um acampamento próximo às obras, onde também foram morar os poucos funcionários que compunham a empresa, quase todos arcoenses, pois os sócios que deram o seu sobrenome “Andrade” à construtora, moravam em uma fazenda em Calciolândia, um distrito próximo de Arcos. Quando minha mãe engravidou novamente, havia planos para que eu viesse a nascer também em Arcos, mas contrariando o ditado que diz que “mineiro não perde o trem”, os meus pais perderam sim o famoso trem noturno “Vera Cruz” que ligava as capitais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, passando por Volta Redonda. Nasci então no hospital de Vassouras onde, apenas cinco meses depois, minha mãe viria a falecer. Foi uma hemorragia incontrolável, causada por complicações uterinas. Segundo contava minha avó, meu pai teria reunido os poucos pertences de minha mãe e queimado atrás da casa, restando apenas uma foto do casamento deles e um relógio de pulso onde ele gravou a data do falecimento dela. E foi com essas lembranças que fui presenteada quando completei quinze anos. A partir daí meu pai mergulhou num silêncio profundo

sobre o passado que envolvia a união dos dois, para o resto de sua vida. E assim, apagou também a curta estória de vida dela, deixando muitas perguntas sem respostas. Passou a ser um assunto proibido pela minha avó que, sempre que era questionada por alguma curiosidade nossa, se esquivava dizendo “esqueçam esse assunto, isso só traz sofrimento para o seu pai e ele não merece sofrer mais, não o incomodem com perguntas sobre coisas que ele quer esquecer”. Porém, a sua breve existência e os detalhes que envolveram a morte dela não se apagaram junto com a fogueira que destruiu as provas da sua existência. Pelo contrário, parece que nunca mais saíram das lembranças que pareciam assombrá-lo sempre que, com o olhar triste e distante, deixava escapar um suspiro. Como era ela? Do que gostava? Que planos tinha para o futuro interrompido tão cedo? Eram muitas perguntas e poucas respostas vagas, sempre acompanhadas de uma advertência.

Meus irmãos e eu ficamos sob os cuidados da família Gutierrez, que também residia em Vassouras, até que nossos avós paternos puderam se preparar para nos acolher em casa. Passamos a ser o centro das atenções de todos, parentes, amigos e vizinhos da provinciana Arcos. Minha avó, tendo perdido três dos onze filhos que tinha gerado, agradecia a Deus todos os dias por lhe enviar esses três netos que traziam alegria para a casa que já estava vazia, onde restava ainda solteira, apenas a caçula Maria José. Além da saudade dos sete outros filhos que já estavam casados e ausentes, vieram também as preocupações e obrigações, aumentadas pelos limites que a idade avançada lhes impunha. As obras da Andrade Gutierrez foram se multiplicando e os acampamentos crescendo e se transformando em pequenas vilas independentes, com comércio, igreja, farmácia, clube e escolas administradas pelas esposas dos funcionários. Com as ruas asfaltadas e i luminadas e as casas de madeira com varandas, jardins e quintais, tinham todo o conforto e segurança para abrigar as famílias por muitos anos, enquanto durassem as obras. Meus tios todos passaram a fazer parte

dessa empresa e moravam nesses acampamentos onde criaram seus filhos. Porém, meu pai optou por nos confiar aos cuidados da sua mãe, com endereço fixo, enquanto continuou morando junto ao trabalho, mudando de cidades e estados por mais de trinta anos, até se aposentar. Sobre a minha mãe pouco soubemos, embora as pessoas com as quais tenha convivido de maneira superficial, a tenham descrito como uma pessoa simples, com estudo primário, tímida e prestativa. Meu pai não se casou de novo e nunca soubemos da existência de nenhum outro relacionamento. Sempre que era questionado sobre a sua vida solitária respondia: “casar e morrer é uma vez só”. Embora tenha cursado apenas o primário, após ter ficado viúvo e longe dos filhos, ele passou a dedicar-se integralmente ao trabalho e, nas suas horas livres, procurava decifrar os catálogos das máquinas importadas, cuja manutenção estava sob sua responsabilidade, aprendendo sozinho o necessário da língua inglesa escrita. Ainda na sua juventude em Arcos, conheceu José Leopoldo através do Clóvis, um amigo de Divinópolis. Esse triângulo nunca se desfez, pois foi através desses dois amigos que meu pai se ingressou na Maçonaria e se converteu ao Espiritismo Kardecista, tornando-se um estudioso e profundo conhecedor da obra de Alan Kardec. José Leopoldo morava em Calciolândia, onde dedicou toda a sua vida à cura espiritual do próximo. Ficou conhecido internacionalmente por esse don e pela sua opção de vida. Calciolândia, uma vila com apenas duas ruas principais, abrigava os funcionários de uma fábrica da Nestlé e os da fazenda da família Andrade. Mas essa vila fervilhava a partir das quatro horas da manhã, quando começavam a chegar os ônibus fretados de vários lugares do país, com pessoas enfermas em busca de ajuda espiritual. Era então servido um desjejum a todos, num salão com mesas e bancos. Atrás do casarão corria um rio dentro de uma mata fechada. Enquanto essas pessoas se alimentavam, José Leopoldo todo vestido de branco, atravessava o rio remando numa canoa ainda sob forte neblina. Na outra margem do rio onde se localizava o

Centro Espírita ele atendia a todos, um por um sem exceção. Aos que não conseguiam atendimento até o meio dia, era servida uma sopa de legumes e carne gratuitamente. No quintal que mais parecia uma chácara, a família criava porcos, galinhas e cultivava uma enorme hortaliça. Seus cinco filhos eram como se fossem meus irmãos. Eu adorava passar finais de semana com eles, pois nunca sentia em nenhum outro lugar a paz que sentia ali.

Viajávamos para outras cidades, todos numa Kombi, quando tinha alguma solenidade da Maçonaria, pois como meu pai não tinha uma esposa, eu era a guardiã da luva branca. As reuniões eram fechadas só para os homens, enquanto as mulheres se confraternizavam em salões à parte. Sempre tive muito orgulho do meu pai ser membro dessa Irmandade, mesmo não tendo acesso a informações detalhadas para defende-lo quando outras crianças me insultavam dizendo que se era secreto era coisa do Diabo. Quando vieram ao Brasil os restos mortais do primeiro “Grão Mestre”, D. Pedro II, participamos das homenagens em Belo Horizonte, onde meu pai foi condecorado com o “Grau 33”, o maior que alguém pode alcançar nessa Irmandade. Em 1981, grávida do meu último filho e morando em Belo Horizonte, levei minhas filhas pequenas a um aniversário na casa de uma vizinha. As crianças brincavam na rua enquanto os adultos conversavam numa sala grande, com poucas cadeiras. Diante do desconforto de algumas pessoas que estavam em pé, ofereci à minha vizinha as minhas cadeiras. Ela aceitou de imediato e logo uma mulher bem nova e ruiva que estava com uma criança pequena se ofereceu para me ajudar. Ao entrarmos em minha casa ela se encantou com os meus móveis antigos e foi andando pelos cômodos, admirando pequenos detalhes, enquanto eu reunia as cadeiras. No meu quarto a encontrei sentada em minha cama, com os olhos fixos numa coleção de porta-retratos antigos, com fotos em preto e branco. Eram lembranças dos meus avós paternos, minhas e dos meus irmãos quando crianças. Mas uma foto em especial lhe desviara a atenção, a do casamento dos

dos meus pais, aquela que eu havia ganhado do meu pai aos quinze anos. Em preto e branco, a cena é realmente mais linda pela simplicidade do vestido de cetim, do véu de filó e do buquê de lírios do campo. Finalmente quando ela resolveu falar, o espanto foi meu.

- O que a foto dela está fazendo aqui?

- Como assim... ela era a minha mãe!

- A Lena? Ela foi minha babá quando eu era criança, em Divinópolis.

- Não é possível...

A partir daí me sentei na cama ao lado dela e nos esquecemos de voltar para a festa. Quando sentiram a nossa falta a festa já estava no fim e nossas filhas entraram barulhentas, nos trazendo de volta daquela viagem no tempo. A mulher que dizia ter sido cuidada pela minha mãe, acabou me confidenciando mais uma estória surpreendente. Um dos meus tios, apesar de casado, teria engravidado simultaneamente, a sua esposa e uma outra mulher solteira. Segundo a sua estória, meu pai sendo o irmão mais velho, ao tomar conhecimento do fato teria oferecido ajuda financeira à mãe da criança e a teria encaminhado, ao final da gravidez, para uma parteira em Divinópolis. Casada com um farmacêutico maçon, sem filhos, a parteira teria se interessado pela criação desse bebê. Meu pai teria passado a visitá-los com freqüência e daí teria conhecido a minha mãe que então se tornara babá da recém-nascida, que passara a fazer parte dessa mesma família. E assim, traçado o destino, algum tempo depois, meus pais teriam se casado ... Meus avós maternos se separaram e se casaram novamente, constituindo assim novas famílias que se espalharam. Conheci apenas os dois irmãos legítimos da minha mãe, gerados no primeiro casamento, a tia Romoalda e o tio Geraldinho. Ela, professora e casada, morava em outra cidade e não tivemos convívio, nem mesmo com seus filhos. Tio Geraldo e tia Aurora, sua esposa, moravam em Arcos e minha avó nos levava para visita-los sempre. Me impressionava a harmonia do casal, de fala mansa e sorridente, conseguiram

transmitir também aos seus filhos essa serenidade. Moravam ao lado do cemitério, numa casa grande que cedia a frente para uma loja, onde comercializavam ferramentas e produtos agrícolas e veterinários. Esse tio também, pouco sabia sobre a irmã que teria sido levada para outra cidade, aos cuidados de uma família, para estudar e trabalhar em atividades domésticas.

1880 - Arcos/MG

Por volta da década de 1880 os recém-casados “Seu” Venâncio e “Dona” Chiquinha arrendaram um pedaço de terra à beira da Estrada Real, nas Minas Gerais. Trabalhavam na lavoura em uma agricultura familiar, engordavam porcos e galinhas e geravam filhos em série. Por muitos anos viveram do que plantavam e produziam de maneira artesanal. Tiveram poucos filhos homens e, tão logo Seu Venâncio começou a perder a visão, tratou de construir um tear de madeira para que Dona Chiquinha e suas filhas pudessem aprender um novo ofício: tecer. Enquanto isso os filhos passaram a criar ovelhas e plantar algodão, garantindo as matérias primas para a produção de tecidos pelas mulheres. A lã e o algodão eram lavados e tingidos com plantas como anil, quaresmeira, urucum, açafrão, cascas de coqueiro e ferrugem de pregos, enxadas e objetos de ferro descartados. Depois passavam por um processo de transformação na carda, um tipo de escova com cerdas de metal, onde se transformavam em fios ao passar pelo fuso da roca. Eram então enrolados em meadas que, colocadas na dobradeira, iam girando e liberando o fio sem embaraçar. Em seguida as mãos ágeis iam desenrolando as meadas e formando bolas de novelos. Esses novelos coloridos eram novamente desenrolados e seus fios transportados sob precisos cálculos para uma grade, a urdideira têxtil, de onde finalmente seriam minuciosamente presos ao tear de madeira, grande e muito pesado, geralmente fixado ao chão. Fio por fio atravessava um pente horizontal feito com ripas de bambu, colhido sob a fase certa da Lua, para não envergar. Nos liços que eram controlados pelos pedais, cruzavam e descruzavam fios pares e ímpares, por onde corriam as navetes com os fios co-

loridos que formariam os desenhos. E assim ia-se tecendo ao longo da trama até o final, no lado extremo do tear onde havia sido amarrada. À medida que a parte tecida avançava, ia-se enrolando o que já estava pronto, para ser retirado inteiro no final. Com esse tecido se faziam mantas e colchas, paletós e casacos de lã, lençóis de algodão, toalhas de banho e mesa, panos de prato, vestidos, calças... Esse trabalho que sustentou toda a família por muitos anos, passou como tradição até as netas. Esse tear foi herdado pela minha avó, que logo se desfez dele e, por questão de saúde, passou a fazer crochê e bordados na máquina de costura.

Viver em Arcos, tanto na infância como na adolescência, foi sem dúvida determinante para a minha formação. A proximidade com a natureza, os seus personagens, a cultura diversificada, nada disso eu voltaria a encontrar com tanta riqueza, nos inúmeros lugares por onde vivi até hoje. Cidade pequena, pessoas simples, uma grande família! Pois de uma forma ou de outra todos que ali nasciam se tornavam parentes, casando entre si.

Uma praça, três avenidas, uma rua que subia e outra que descia. A cidade começava à margem da rodovia que liga Formiga a Iguatama, região banhada pelo rio São Francisco, próximo à sua nascente. Entrando de carro por cima da linha do trem, ou a pé por dentro da estação ferroviária e seguindo por umas das duas avenidas principais, não demorava muito para atravessar a cidade e chegar à rua do Sapo, onde acabava a cidade e começava a estrada para o município de Lagoa da Prata. Do centro da cidade para a direita, atravessando uma pinguela sobre um pequeno riacho, chegávamos à Vila do Sacode Saia, também conhecida como Vila dos Atrevidos. Para a esquerda tinham apenas becos que separavam propriedades que, vistas da rua eram casas geralmente altas, com alpendres cheios de samambaias, sobre sótãos conhecidos como alçapões. Esses becos acabavam em uma área rural, pois os quintais dessas residências se perdiam de vista, além de um pequeno rio que corria paralelo à cidade. Tinha o Beco do Seu Jorge Calácio ao lado da venda, um em-

pório com o mesmo nome do proprietário. Ali encontrávamos de tudo, como as sacas de grãos enfileiradas no assoalho em frente ao balcão de madeira, latas de banha de porco na prateleira dos fundos, lingüiças defumadas, carnes secas, queijos frescos, curados e de cabacinhas, tranças de alho e cebola, panelas e urinóis dependurados no teto, doces fatiados numa vitrine de vidro sobre o balcão, balas de nata, puxentas de abacaxi, balas Chita, de coco queimado, anis, canela e hortelã, separadas num baleiro giratório. Fumo de rolo, rapadura, cachaça, caderno, lápis e o maravilhoso biquinho, um pirulito feito com coco ralado na calda de açúcar, despejada ainda quente sobre uma forma de metal que lhes dava o formato. Essa era também a especialidade da minha tia Rosa, esposa do tio Iraci.

O Beco da Dona Mariana, também chamado de Beco do Seu Ascânio Lima, ao lado da igreja matriz, foi assim batizado em homenagem aos genitores de uma grande família, em todos os sentidos, seja pelo número de descendentes ou pelos serviços prestados à comunidade. A harmonia que eu encontrei nessa família, só me lembro de comparar com a dos meus tios Bill e Mariângela, de quem ainda falarei muito por aqui.

Também a esquina da venda do senhor Alfredo, a Rua do Buracão consumida por uma enorme erosão, a Rua de Lá da Ponte, a Rua de Cima e a Rua de Baixo, a Rua do Brejo... Na esquina de cima da rua onde eu morava com meus avós, terminava a avenida principal de acesso a cidade. O point dessa encruzilhada era o Bar do Vivi. Ele possuía um alto falante possante que era ligado para fazer propagandas de lojas no mês de dezembro, com músicas natalinas. Anunciava pontualmente sobre festas e bailes e, para cada tipo de chamada extraordinária de festa religiosa, casamento ou falecimento, tinha uma música específica. Quando tocava a Ave Maria minha avó já gritava pedindo silêncio para escutar o nome de quem havia morrido, o velório e o horário do enterro. Para a missa do sétimo dia de falecimento a música era a mesma. Mas o pior era domingo às quinze horas quando a

gente era obrigada a ouvir, mesmo sem gostar ou torcer, o jogo de futebol que ele transmitia ao vivo e bem alto. Ele fabricava o melhor picolé da cidade. Tinha de groselha, frutas naturais e o de creme, o campeão! Na primeira lambida não dava para identificar o sabor, todos eram salgados, pois não eram embalados e ficavam expostos ao contato com a salmoura que conservava a consistência do gelo. Aos domingos a tarde, atravessávamos a rua com cadeiras, brinquedos, o crochê da minha avó, a bacia de alho que a Jovelina iria descascar e acampávamos na calçada do outro lado da rua, na sombra da fachada de um açougue fechado. Íamos até o Bar do Vivi, comprávamos vários picolés que vinham derretendo dentro de um caneco feito de lata que minha avó mandava colocar alça e se tornava um utensílio que servia para tudo. Se demorávamos distraídos pelo caminho, chegávamos apenas com os palitos boiando numa mistura derretida com todos os sabores misturados que seria passado de boca em boca. Na rua paralela a da minha casa tinha o Bar do Zé Pires, que fazia o melhor sanduiche de mortadela que já comi. Ao lado, a Loja da Noêmia, a primeira boutique da cidade, que assinava os lançamentos da moda feminina desfilada nos bailes de sábados e tinha como vizinha a Alfaiataria do Batista especializada em ternos e roupas masculinas com cortes especiais de alta costura, além da loja de calçados do senhor Modesto. Não me esqueço de quando começaram a calçar as duas ruas principais com paralelepípedos e fizeram as escavações para o encanamento de água e esgoto. Nas noites de verão a minha avó, a tia Marica sua irmã e outras vizinhas com suas filhas casadas, iam chegando e trazendo cadeiras para a calçada em frente à nossa casa. Tudo à luz da lua ou algum resquício de luz amarelado vindo dos alpendres, pois a iluminação pública se resumia a alguns postes de madeira distantes uns dos outros, que eram acesos manualmente ao entardecer e apagados pela manhã pelo Julião. Esse cigano, percorria toda a rua com uma vara comprida, cutucando algum ponto no alto do poste, onde acendia uma luz fraca e

oscilante. Trabalhava também na escola municipal como porteiro, colocando ordem na criançada que lhe tinha muito respeito pelo seu tamanho e autoridade. Na procissão da Sexta Feira da Paixão, na Semana Santa, ele se vestia também de Centurião.

Alguns anos depois, asfaltaram uma das duas avenidas e colocaram as lâmpadas de mercúrio, que atraíam muitos insetos, principalmente quando antecedia uma chuva. Os homens passaram a se reunir debaixo desses postes de cimento e as mulheres mais novas e solteiras andavam ruidosas, abraçadas ou de mãos dadas para cima e para baixo se exibindo para eles. Mas se eram abordadas por algum corajoso, elas saiam correndo e gargalhando. Nós, embora crianças, percebíamos a intenção entre os casais que se formavam e corríamos em círculos no entorno deles com gritos e provocações. Parecíamos pequenos índios! Enquanto as mães e avós, sentadas na calçada, trocavam receitas de biscoitos, crochês ou remédios caseiros, nós brincávamos descalços, de esconde-esconde dentro dos buracos da rua e, quase sempre alguém escorregava ao pisar em sapos, que eram encontrados às dúzias, ou afundar o pé numa bosta de cavalo ou de vaca, ainda fresca. Fim de noite, cansados voltávamos muito sujos e sentávamos ao lado da mãe ou da avó e deitávamos a cabeça no seu colo e ficávamos contando as estrelas. Diziam que teríamos muitas verrugas, uma para cada estrela catalogada. E as estrelas pareciam se agrupar de maneira diferente, a cada noite, assim como o cavalo de São Jorge nas luas cheias. Nunca era o mesmo. Os mistérios se multiplicavam quando o mais esperado acontecia depois de noites e noites de espera... uma estrela cadente...motivo para muita gritaria e todos falarmos ao mesmo tempo, ignorando as ordens para fazermos silêncio e não atrapalharmos as conversas dos adultos. Muitas vezes, para nos acalmar, contavam estórias ou charadas para decifrarmos. “Com o pão matei a Pilda, com a Pilda matei os sete. Dos sete escolhi o melhor, atirei no que vi e matei o que não vi. Com um braço sagrado assei e comi.

Bebi água não tratada onde passava um morto carregando o vivo. Isso foi coisa que nunca vi.” Traduzindo: na guerra um soldado faminto encontrou um pão envenenado, mas quem o comeu foi a sua cadelinha Pilda. Quando voltou para enterrá-la encontrou seus sete companheiros mortos por terem comido a Pilda pelo instinto de sobrevivência. Conferiu os fuzis dos companheiros mortos e escolheu o melhor. Atirou num pássaro, mas acertou num coelho. Arrancou o braço de uma cruz para poder assá-lo à beira de um rio. Enquanto isso, viu passar um cavalo morto boiando na correnteza e levando sobre o seu corpo um urubu vivo. Exaustos, começávamos a dar sinais de irritação e tudo já era motivo para desentendimento, para ficar “de mal”. Iniciava então o calvário... a hora do banho. Mesmo sabendo que não teríamos a menor chance, sempre tentávamos negociar, argumentando cansaço e sono e que o banho seria tomado no dia seguinte, bem cedo. O banho sempre foi sinônimo de castigo, pois ainda não havia chuveiro. Tínhamos uma bacia de zinco grande e uma de cobre menor. A água era fervida numa chaleira de ferro, no fogão à lenha, dia e noite. O braseiro nunca se apagava e era necessário só colocar mais lenha e completar a água sempre que era usada. Não faltava nunca a água “no ponto” para escaldar o café, para cozinhar o arroz, o feijão ou lavar a louça. À noite era usada também para o escalda-pés, os banhos e os chás. Antes de termos um chuveiro elétrico, tivemos a serpentina, que são canos de água instalados dentro dos fogões a lenha, com terminações nos chuveiros e pias. O problema sempre foi temperar essa água na bacia. Primeiro a gente ajoelhava, lavava as mãos e o rosto e em seguida sentava na bacia com os pés para fora. Quando terminava de lavar o corpo, a gente ficava apenas com os pés dentro da bacia já com a água fria. Daí era só gritar e logo surgia a minha avó por traz da cortina de chita com um balde de água limpa e quente e uma caneca. A água era despejada a partir dos ombros para tirar todo o sabão restante e aquecer o corpo. A toalha era feita no tear com algodão ou de tecido de saco de açúcar, alvejado.

Um rosário de contas de pérolas pendurado na cabeceira da cama, um santinho de papel debaixo do travesseiro onde eu anotava no verso os meus pecados diários para levar ao confessionário e receber as penitências ordenadas pelo velhinho padre Tavares ou pelo enérgico e gago padre Geraldo, antes das missas de domingo.

A cama para onde íamos nos vestir era de molas e o colchão recheado com palhas. O travesseiro era de paina, aromatizado com ramos de alecrim ou camomila. Os cobertores, também chamados de colchas em Minas Gerais, eram de lã e tecidos no tear. Os tecidos dos lençóis acompanhavam os das toalhas, em algodão. Já na cama, depois de tomar o leite quente com açúcar queimado e canela e escovar os dentes com água na caneca...

- A bênção, mãe! era assim que eu chamava pela minha avó. A resposta soava como um sussurro que ia entrando já em algum sonho.

- Deus te abençoe minha filha! Durma com Deus! Nas noites de inverno, proibidas as brincadeiras de rua, tomávamos banho mais cedo e inventávamos brincadeiras nos quartos, onde receberíamos, já vestidos com pijamas de flanela, os netos dos visitantes jogadores de víspora, o atual bingo. Enquanto isso um grupo de quatro casais idosos, falando e rindo alto, ia entrando pela casa, arrastando cadeiras e unindo duas mesas que eram cobertas com uma colcha de tear. Um providenciava a distribuição dos conjuntos de cartelas numeradas, o outro fazia os montinhos de milho para servir de marcador e o feijão que substituía as fichas como moeda de troca no acerto final. Decidido quem “cantaria as pedras”, um silêncio absoluto reinava pela sala. Mas logo começavam as piadinhas, cada pedra cantada ganhava um comentário que provocava risos e tudo virava motivo para desorientar os mais surdos ou que tinham dificuldade de concentração. Lá pelas tantas, principalmente os que estavam perdendo, se irritavam com a euforia dos que estavam ganhando. Daí minha avó sugeria uma pausa para um café. A mesa recebia então um banquete com biscoitos, bolos, rosca,

suspiros, caçarola, pandeiro, sequilhos e café coado antes do início do jogo e mantido no bule em cima da chapa do fogão a lenha, para manter a temperatura. Era servido já adoçado, muito adoçado! Não havia restrições para os diabéticos. Terminado o café, recuperado o bom humor de todos, difícil era aguentar a fumaça dos cigarros de palha e a tosse tanto dos velhos quanto das crianças que vinham para o colo das avós ou se alojavam debaixo das mesas, fazendo cócegas com uma pena de galinha nas pernas das senhoras ou trocando os sapatos daqueles que se livravam deles temporariamente para descansar os calos. Sendo muito mimada pela minha avó, eu ficava sempre sentada no colo dela, marcando a cartela com o milho, sob sua supervisão. Muitas vezes, estabanada como toda criança pequena, eu esbarrava e derrubava os milhos das oito cartelas, quase todas preenchidas já no final da partida e tinham de interromper o jogo e conferir pedra por pedra antes de dar sequência.

Multirões Familiares

Minha avó só teve uma filha, Maria José, a caçula dos seus oito filhos. As suas seis noras moravam fora de Arcos. Ao contrário dessa irmã, a tia Marica, podia contar sempre com as suas filhas Délia, Zizinha, Sebastiana, Vitória e com a Di, que mesmo sendo nora era tratada como filha, por estar longe da sua família. Uma vez por mês minha avó e sua irmã convocavam as filhas e noras para uma sexta feira de mutirão com muitos trabalhos culinários. Mas as primeiras a chegarem para trabalhar nestes mutirões, já às seis horas da manhã, eram a Jovelina e a Alzira, fiéis colaboradoras da minha avó. Apenas um muro fazia a divisa dos terrenos das duas irmãs, onde meu pai mandara abrir uma passagem para facilitar a comunicação entre elas. Apoiada nesse muro foi construída uma varanda comprida, que chamávamos de “coberta”, com um forno à lenha bem no meio. Atrás dele ficavam guardadas as lenhas, escorpiões e ninhos de gatos ou ovos avulsos que alguma galinha descuidada botava ali de vez em quando. Por isso, todas as vezes que iam acender o forno, era feita uma inspeção para saber se não havia nenhuma cria camuflada. Ratos não tinham, por causa dos gatos. O forno era redondo e de tijolos e tinha uma base quadrada com uma altura razoável. Quando não estava em uso, na estação das frutas servia para guardar dúzias de mangas ou cachos de bananas ainda verdes, abafadas para amadurecerem, porém sempre com a chaminé entupida de jornais para que os habitantes noturnos do quintal não comessem as frutas antes de nós. No restante do espaço havia, junto à parede do muro, uma fornalha quadrada e grande, porém baixinha e com um tacho de cobre enorme. Finalmente, do lado direito, finalizando a

coberta havia uma meia parede, para possibilitar a ventilação. Ali tinha uma peça em madeira bem irregular e rústica, parecendo um tronco de árvore onde esculpiram duas cubas, lado a lado, formando duas gamelas onde eram preparadas as massas das quitandas. Era apoiada sobre quatro pés, que lhe davam uma altura que permitia manuseá-la em pé. Ao lado, um pilão redondo e baixo, de um tronco de árvore bem carcomido por fora e bem liso na concha cavada no seu centro. Compunha também um socador chamado de “mão do pilão”, em madeira trabalhada bem lisa para não machucar as mãos. Ele tinha o dobro da circunferência de uma mão fechada, possibilitando o uso das duas mãos ao mesmo tempo, dando suporte ao peso dele. O dia ia clareando e as mulheres chegando em grande alvoroço. As crianças viriam mais tarde, pois ainda estavam dormindo. Na vinda, as mulheres contavam com o auxílio das suas empregadas domésticas, para carregar todo o apetrecho necessário. Em seguida elas voltavam para cuidar dos afazeres das casas, só retornando no final da tarde para ajudar nas finalizações e limpeza geral. Em poucos minutos tudo parecia um formigueiro e cada uma já iniciando a sua tarefa, separava as louças que haviam trazido e colocavam seus nomes em um pedaço de esparadrapo colado nos vasilhames e enrolado nos talheres. Os panos de prato tinham os nomes bordados. Eram louças, gamelas, cestos de ovos colhidos nos seus galinheiros, sacos com farinhas, açúcar, aventais, lenços para segurar os cabelos, latas de leite e banha... pareciam retirantes. Alzira e Jovelina ateavam fogo ao forno e logo que ele alcançava a temperatura ideal, varriam as cinzas do seu interior, com uma vassoura de palhas amarradas a um cabo de madeira. Antes afastavam as brasas com um rastelo de metal, do jardim. As roscas eram as primeiras a serem sovadas, pois tinham um tempo de espera para que o fermento agisse e a massa crescesse para ficar bem macia. O tempo não era marcado no relógio, era colocada uma bolinha da massa dentro de um copo com água e esquecido na janela,

até que várias horas depois alguém gritava: a bolinha subiu! E daí a massa era cortada em tiras, trançadas e finalmente assadas. As crianças faziam mini rosquinhas com formatos de bichos ou de gente e disputavam um espaço nas assadeiras entre as roscas.

Nas duas gamelas grandes amassavam as broas de milho, uma doce e outra salgada. Ficava uma pessoa só para quebrar os ovos, geralmente duas dúzias para essas duas receitas, pois a pessoa que sovava a massa ficava o tempo todo atolada até a metade do braço, até que se chegasse “ao ponto” e começasse a desgrudar da pele, podendo então ser modelada para assar. Depois das mulheres terem tido acesso ao forno e recebido todo aquele calor, elas não podiam mais sair ao vento, à chuva e nem beber nada gelado. A todo momento alguém colhia limões ou laranjas e trazia a jarra cheia de suco, muitas vezes servido direto na boca da outra, pois as mãos estavam sempre ocupadas com as massas. As mais cautelosas pediam café ou água morna para tomar, com medo de se constiparem. Em outras gamelas avulsas, amassavam os pães de queijo, os biscoitos de polvilho e as rosquinhas de nata. Os bolos, quindins e a caçarola italiana, minha favorita, eram assados todos juntos lá no forno da casa da tia Marica. A caçarola e o quindim, à base de muitas gemas, desprezavam as claras que, para alegria da criançada, misturadas com açúcar e raspas de limão, se transformavam nos deliciosos suspiros, espremidos um a um de dentro de um cone de tecido com um buraquinho na ponta. Esses eram os últimos a serem assados, junto com as cocadinhas, pois o forno já estaria menos quente. Em São Paulo chamam essas cocadinhas de queijadinhas, mesmo sendo feitas só à base de coco.

O ponto culminante para mim era o do pandeiro. Jovelina quebrava uma rapadura inteira, jogava no pilão junto com polvilho, canela e cravo e socava com todas as suas forças até reduzir tudo a uma pasta homogênea. Daí colocava os ovos, o leite e a manteiga e eu mal podia esperar o resultado ao sair do forno. Nunca mais comi algo parecido. Provei o

que chamam de brevidade, mas achei seco e sem sabor. O pandeiro tinha a textura de um pão de mel. Talvez o que falta mesmo para dar o ponto, é o carinho da Jovelina... Já com quase doze horas de trabalho o falatório não diminuía. Feita a limpeza, chegava a hora de embalar o que já havia esfriado para começar a partilha. As latas de vinte litros usadas hoje pelos fabricantes para acondicionar tinta, vinham naquela época com banha de porco ou gordura de coco utilizadas para cozinhar. As quitandas eram ali guardadas e duravam mais de trinta dias, sem perder suas propriedades e sabor, empilhadas na despensa da casa. A nossa goiabeira, mesmo sem nenhum trato, costumava dar frutos em quase todas as estações. Mas no final do ano, minha avó ainda precisava encomendar muitas “latas” de goiaba vermelha, vindas de alguma roça próxima. A medida era na tal lata de vinte litros, não era por peso. Colhidas, elas tinham de ser manuseadas logo, pois quando maduras são muito perecíveis. Sentadas com um pano no colo, minha avó, Jovelina e Alzira, em frente a uma bacia cheia de água e várias latas de goiabas maduras, iam fazendo uma seleção de verdes, maduras e “passadas”. As verdes eram guardadas para comermos enquanto amadureciam mais, as maduras eram cortadas em cruz, retiradas as sementes e depois jogadas as cascas na bacia com água, e as “passadas” iam para uma gamela. Com as cascas faziam compotas ou cristalizavam e as consideradas passadas, que eram simplesmente “muito maduras”, eram examinadas para retirar possíveis bichos comuns nessas frutas. Aferventadas no tacho grande, voltavam para uma peneira e eram espremidas com as mãos, separando as sementes do resto. Acesa a fornalha, ela ficava por muitas horas, às vezes um dia inteiro até que se desse o ponto desejado para o doce.Tinham de fazer um revezamento, pois quando a calda que se formava começava a engrossar, não parava mais de “espirrar” doce para todo lado, na parede, nos pés e braços de quem estivesse por perto. E se não mexesse continuadamente a pá, a calda agarrava no fundo do tacho e queimava. Meu avô mandou fazer dezenas

de caixas de madeira com formato de gavetinhas para estocar toda a goiabada e marmelada que eram produzidas todo ano. Forradas as caixas com papel vegetal, o creme grosso era colocado ainda quente para ali esfriar, endurecer e tomar o formato da caixa. Por vinte e quatro horas não podiam ser fechadas para não suar e comprometer a qualidade do doce. Eram distribuídas para os parentes mais próximos ou trocadas por algum outro produto. O restante das caixas era empilhado no quartinho da despensa. A safra do milho verde era uma festa! Meu avô plantava vários pés no nosso quintal mesmo. Quando amadurecia, assávamos no espeto direto na brasa do fogão a lenha e Jovelina cozinhava as espigas em um caldeirão todo dia, para o nosso delírio. Faziam o “mingau”, que é chamado também de curau e o despejavam ainda quente nos pratinhos de sobremesa fazendo sobre eles uma Estrela de Davi com canela em pó. Nem esperávamos esfriar para comer, além de raspar o agarradinho na panela, que era a melhor parte. A pamonha era uma arte! Colhiam folhas de bananeira e as cortavam em quadrados, depois enrolavam em formato de cone e amarravam um dos lados. Feita a mistura, enchiam o cone e amarravam a outra ponta, mergulhando um a um num caldeirão de água fervendo para cozinharem em banho-Maria. Eram recheados com pedaços grandes de queijo Minas salgadinho, que derretiam e contrastavam com o doce da pamonha e a canela que era colocada ao desembrulhá-la. Mas o mutirão de que eu mais gostava de participar era o do sabão preto. Sebo, tutano de boi e muita gordura cozinhavam por cinco dias no tacho de cobre numa fornalha acesa todos os dias a partir das seis horas da manhã e apagada as seis horas da tarde para descansar. Hidratava-se o cozimento com “água de coada”, que Jovelina pronunciava “dicuada”. Um balaio redondo e grande, dependurado e cheio de cinzas, era mantido molhado, regado com água várias vezes ao longo desses cinco dias. Embaixo do balaio uma bacia de zinco acumulava a água escura, acobreada, que era filtrada na cinza. Á medida que aquele cozido ia engrossando no ta-

cho, a água de coada era usada para hidratá-lo. Só no último dia, prestes a “dar o ponto”, colocava -se a soda cáustica. Minha avó colhia então um molho de folhas de louro cultivado no canteiro entre as suas ervas de cheiro, e misturava tudo naquela massa preta, pegajosa, que borbulhava freneticamente, cuspindo gotas quentes nas paredes, nos aventais e braços desprotegidos da Jovelina, que com uma pá de madeira mexia sem parar, para não agarrar no fundo. A pele dela era dura, seca, enrugada e cheia de manchas de queimaduras e cicatrizes, diferente da de minha avó que era muito fina, branca e se feria com frequência nos espinhos das roseiras.

Alzira estendia no espaço cimentado em frente a varanda, uma colcha tecida no tear, com algodão e lã. A criançada se agitava no entorno para assistir a cerimônia do descer do tacho quente, da fornalha para o chão. Com um pedaço de pau travado em cada alça, quatro pessoas o levantam da fornalha ao mesmo tempo e o colocavam ao lado da colcha estendida. Começava então a corrida contra o tempo, pois fora do calor do fogo, a massa engrossava rapidamente e perdia a elasticidade necessária para modelar as bolas. Com uma concha grande na medida certa para moldar cada bola de sabão, a massa ia sendo transferida, rapidamente para a colcha, caindo e se abrindo como se fosse um estrume que a vaca lança ao chão enquanto está pastando. As outras mulheres sentadas no chão, no entorno da colcha, imediatamente começavam a cutucar com os dedos as bordas daquelas borrascas quentes, para desgrudá-las do tecido. Daí a pouco, entre as mãos vermelhas, as traziam para o alto e as envolviam como numa dança ritmada, até que ganhassem a forma de uma esfera já completamente dura e compacta. Era aí que entravam as crianças embrulhando essas bolas mornas em jornais, para serem armazenadas na prateleira da dispensa até serem consumidas durante boa parte do ano para lavar roupas, louças e panelas, banheiro e chão. No quinto dia do cozimento, antes de se colocar a soda cáustica, transferia-se uma parte da massa para outro tacho

menor, numa fogueira improvisada ao lado, onde se finalizava o sabão neutro, aromatizado com folhas de patchouli, que seria destinado para a higiene pessoal, como o banho corporal, lavar as mãos e cabelos. As “raspas” desse tacho, sem a soda, eram então destinadas às crianças que modelavam pequenas bolinhas para serem usadas na limpeza quando fossem brincar de casinha com as bonecas. Minha avó fazia também um doce da casca do limão, em calda. O processo demorava até cinco dias, neutralizando o sumo para não amargar. O doce de abacaxi com mamão era famoso, até por que era impossível definir os seus ingredientes, tudo no ponto certo, pouco doce e puxento. Nunca consegui reproduzir a receita com perfeição. Até o tronco do pé de mamão virava doce na sua criatividade ilimitada. Não era sempre que podíamos degustar essa maravilha, pois isso só era possível quando um pé de mamão estava ameaçado e precisava ser sacrificado. Como esse doce era ralado e esbranquiçado, lembrava muito o cabelo de uma boneca da minha irmã, o que se tornava um instrumento de provocação da minha parte, toda vez que tinha o doce em casa. Não me lembro de como minha avó aprendeu também a fazer vinho de laranja. Mesmo enfrentando sérios problemas com o alcoolismo do meu avô e de três dos seus filhos, ela se aventurou a produzi-lo em pequena escala e não parou mais. Fazia tanto sucesso, que passou a armazená-lo para presentear os parentes, os amigos e vizinhos. Até que algumas garrafas começaram a aparecer com as rolhas violadas e o conteúdo “avinagrado”. Meu avô estava se fartando com a bebida, direto na fonte. Estávamos em 1963 e no aniversário dele, quando todos os filhos e netos se reuniram em Arcos, com um único propósito: pedir ao chefe da família que abandonasse o vício. Emocionado ele prometeu e cumpriu! Mas a partir daí, mergulhou num silêncio absoluto, passando horas sentado no mesmo canto do sofá enrolando o fumo picado na palha, pitando seu cigarro, cochilando e suspirando. Não olhava para a tv, não ligava mais o rádio nem folheava o jornal. Na rua saía apenas para buscar o seu pão e só tomava

banho aos sábados. Minha avó se viu então forçada a abandonar o seu passatempo com a produção de vinho e ocupar o seu tempo voltando a investir no meu enxoval e no da minha irmã, pois embora ainda crianças, ela temia que não vivesse o suficiente para nos ver casar. Minha avó repetia sempre uma expressão que dizia que “os dedos da mão não são iguais”, para justificar alguns dos seus filhos que, segundo ela, haviam saído à imagem do pai e bebiam além da conta.

A dependência química sempre foi tratada com muito preconceito e tabu. As pessoas alcóolatras representavam vergonha e preocupação para seus familiares e prejuízos para os empregadores. Como estudante de psicologia, estagiando em hospitais psiquiátricos, me deparei com pacientes que haviam sido internados e depois abandonados por seus familiares já havia algumas dezenas de anos. Eles passaram a morar nessas instituições, estabelecendo laços com os enfermeiros e outros pacientes, sem ter mais condições de recomeçar a vida e resgatar sua identidade pois, mesmo recuperados, não conseguiam vencer o preconceito ou não tinham mais como encontrar seus familiares. E este assunto continua até hoje ignorado pelos nossos governantes, mesmo diante da constatação de que a dependência pode ser causada não só por drogas ilícitas, álcool, cigarro, mas também pela compulsão por sexo, internet, jogos, chocolate, etc... A Adicção é uma doença pré-existente no gene de algumas pessoas, que precisam apenas de um “gatilho” para que ela se desenvolva, em graus diferenciados, podendo escraviza-las para o resto da vida se não buscarem tratamento psicológico que a mantenha sob controle. Desde criança eu já tinha fortes sintomas de compulsão alimentar. Jabuticabas, uvas, pipocas, amendoins, balas, biscoitos ensacados, chocolates e tudo mais que estivesse à minha volta, em quantidade, eu me via tentada a comer até a última unidade, pois me remetia a um enorme prazer, mesmo sabendo das consequências que isso poderia me trazer de imediato. Talvez por esse motivo eu nunca tenha experimentado um“porre”, nunca te-

nha arriscado uma segunda “dose”. A lembrança de episodios presenciados em família, da euforia causada pelo uso de elementos químicos e dos atos violentos seguidos pela abstinência, me traumatizaram para a vida toda. Quando tratamos com respeito um parente adicto, ajudando-o a melhorar sua autoestima e a ter motivação para se tratar, estamos ajudando a nós mesmos, pois essa doença desenvolve uma co-dependência que leva todos os que estão a sua volta, a adoecerem também.

Sempre tive muita energia, consigo fazer várias coisas ao mesmo tempo, vivencio tudo de maneira intensa, mas sem abrir mão de dormir oito horas por noite. Jamais durmo durante o dia pois acordo irritada e com a sensação de ter desperdiçado o meu tempo. No início dos anos setenta, ainda em Arcos curtia muito o carnaval de salão, sempre criando blocos e fantasias, brincando até o apagar das luzes, tomando de vez em quando apenas uma “cuba libre”, mas sem nunca perder o equilíbrio. No primeiro ano de faculdade, as baladas eram regadas a bebidas fortes, LSD e muita maconha. Quando me apresentaram a maconha, dentro de um Fusca fechado com mais três pessoas fumando, eu vomitei. O olfato é o meu sentido mais aguçado e, de imediato, aquele cheiro não me agradou. Para sempre! Descobri então que a minha animação e alegria eram um dom natural e que eu não precisava fumar, beber ou me drogar para ser aceita ou me destacar em qualquer tribo.

Parentes da minha avó

Tia Marica era a irmã mais próxima e inseparável da minha avó. Iam juntas para as missas e procissões, enterros e casamentos. Só tinham uma divergência: a política. Uma era filiada ao partido da UDN e a outra ao do PSD. Ambas escreviam versos e criavam jingles para os candidatos de seus partidos. No dia das eleições, os dirigentes alugavam grandes terrenos centrais próximos das suas sedes para darem suporte no dia da votação, com muita fartura em comida e bebida. Assavam várias leitoas, vacas, galinhas e serviam tudo de graça para os eleitores que chegavam das roças em ônibus e caminhões fretados. A rua ficava coberta pelos “santinhos” com fotos dos candidatos, faixas estendidas entre os postes e muitos alto falantes instalados por toda parte. Terminadas as eleições tudo voltava ao normal na cidade, sem mágoas pelas divergências entre os partidos. O casarão da tia Marica tinha vários cômodos com enormes janelas e assoalho de tábuas largas e no final do corredor tinha a cozinha, com uma escadaria que descia para o quintal. Uma verdadeira chácara limitada por uma cerca de bambu, já na rua do outro quarteirão abaixo. Do lado direito da cozinha, havia um tanque grande de tijolos e cimento, com um metro e meio de altura, como se fosse uma caixa d’água enorme fixada no chão. Era comum em todas as casas e não possuía tampa. Quando era esvaziado para limpeza, as crianças entravam dentro e ficavam escorregando no limo que se formava nas paredes e no fundo. Ao lado dele ficava a hortaliça, chamada de “horta de couve”, embora tivesse alface, tomatinho cereja, jiló, quiabo, espinafre, cebolinha, salsinha e hortelã. A água que escorria da movimentação dos baldes nesse tanque, regava constantemente esses canteiros. Ao lado, um tanqui-

nho de lavar roupa, tinha uma rampa lateral para esfregar e “bater” a roupa antes de enxaguá-la. Toda a água de sabão que daí escorria, percorria um reguinho ladeado de taioba, uma planta de folhas grandes e decorativas, mas comestíveis e deliciosas. Mais abaixo tinha uma cerca de arame farpado de fora a fora, coberto pelas ramas de um maracujá azedo, que dividia o quintal ao meio. Do lado de baixo dessa cerca, haviam pés de tudo que é fruta que se possa imaginar, muitas bananeiras e até um milharal e um cafezal. Beirando o muro do vizinho, tinha um galinheiro e, mais abaixo, um chiqueiro com alguns porcos e suas crias.

Tio Juca Dias, marido da tia Marica, passava os dias enfiado no porão, debaixo desse casarão. Desse lado que dava acesso ao porão, o terreno tinha apenas um gramado enorme, onde a criançada se exercitava nas cambalhotas ou jogando bola. Era cercado pelo muro que fazia divisa com o terreno dos meus avós. O porão que mais parecia um buraco grande, embora com pouca ventilação e iluminado apenas por uma grande lâmpada ligada a um benjamin dependurado pelo fio elétrico, o ambiente era fresco e úmido por causa do chão batido de terra. O cheiro era de madeira, mofo e coisas velhas guardadas e amontoadas. Ele era corcunda, magrinho, tinha um bigodinho e cabelos bem ralos, lisos e grisalhos. Passava a semana ali, como um tatu em sua toca silenciosa, esculpindo com um enxó os pilões de soca, grandes e pesados. Dizia a lenda que esses pilões precisavam ser perfurados, mas só pelo manuseio diário, para libertar as mulheres da família que estivessem encalhadas, sem esperança de virem a casar. Como geralmente tinham muitas filhas, essas se revezavam incansavelmente nos trabalhos pesados de socar os alimentos, aliviando as mães e diminuindo a mão de obra paga. Aos sábados tio Juca levantava cedo e marchava à cavalo para a sua fazenda, que ficava a uns cinco quilômetros da entrada da cidade, do outro lado da rodovia e depois da fábrica de cimento. A esposa, alguma filha e netos iam numa carroça, puxada por um burro, que era conduzido por um empregado, cortando caminho pela mata.

Verdade que as crianças permaneciam, a maior parte do trajeto, fora da carroça, correndo, gritando, apanhando gabirobas, araticuns e outras frutas do cerrado. Lá o trabalho do meu tio continuava na transformação da mandioca ralada em farinha, dentro de um enorme tacho raso em cima de uma fornalha, mexendo sem parar. Dali ele seguia para o moinho onde fazia o milho virar fubá, vistoriava os tonéis de caldo de cana de açúcar onde estava sendo fermentada a cachaça e daí partia para fazer o que a criançada mais esperava: a rapadura! Tudo se tornava mágico! O barulho da roda d’água gigante em funcionamento, com sua madeira escura e pesada, gasta pelo uso, era uma melodia. O engenho em funcionamento, a prensa moendo a cana e o caldo jorrando dos bagaços espremidos entre as ferragens, corria como um riacho por uma canaleta e caía no tacho, já na fogueira acesa na fornalha. Uma pá de madeira de cabo longo não parava de girar naquele turbilhão verde escuro. Não demorava e uma fumacinha branca anunciava a fervura e o cheiro adocicado do melaço que nos fazia salivar. O primeiro ponto era o do melado, que quando esfriasse seria engarrafado, e comeríamos com mandioca cozida, queijo fresco ou com farinha de milho. Separada a parte do melado, o que sobrava continuava no fogo até engrossar e desagarrar do fundo do tacho. Despejada essa massa sobre formas de metal no formato de tijolos, ali ficavam até endurecer e esfriar, para depois serem embalados em folhas de bananeira ou palhas de milho. No processo para extrair o açúcar do caldo da cana, diferente do melado e da rapadura, ele ia tirando a borra escura que se formava sobre a fervura com uma espumadeira gigante. Quando secava, não dava ponto por causa da água que havia sido adicionada no início. A massa que sobrava era então passada numa peneira de arame grosso, caindo um açúcar escuro e empedrado, o mascavo, que formava alguns torrões. Meu tio passava então um bom tempo retirando um a um, antes de ensacar o açúcar. Para nós eram como balas... deliciosas!

Mário, o filho caçula, foi buscar uma noiva em Sorocaba, no

interior de São Paulo. Moça bonita e tímida, de baixa estatura e de formato roliço. A única irmã veio junto e passou a morar com eles depois da Lua de Mel. Em pouco tempo ela também se casou e a Di, chorava muito sentindo a sua falta e queria ter filhos logo, pois não conhecia quase ninguém na cidade. Moravam numa casa pequena, construída a partir da parede lateral do casarão dos sogros. Parecia uma casinha de boneca, toda em tamanho reduzido, o alpendre, os dois quartinhos, a sala e a cozinha. Para ocupar o tempo e a cabeça, começou a fazer empadas para vender para os bares. Fizeram tanto sucesso que as encomendas para festas e casamentos ocupavam todos os seus dias da semana e mesmo com a primeira gravidez ela não descansou, vindo a ter complicações com eclampse no parto. Logo que viu o resguardo cumprido, voltou a encostar o umbigo no fogão e nunca mais parou, mesmo com a segunda gravidez bem próxima da primeira. Quando anoitecia e Mário chegava do seu trabalho na fábrica de cimento, passava em frente da nossa casa e me gritava para confirmar a minha presença num carteado de baralho depois do jantar. O quarto elemento, que completaria a parceria, geralmente era a Rosângela, sua sobrinha e minha amiga inseparável. Nós duas tínhamos apenas doze anos, mas jogávamos “buraco” tão bem quanto os adultos. Às vinte e duas horas, exceto nos finais de semana que não tínhamos limite de horário, com todos já bocejando parávamos de jogar. O Mário me levava até a porta de casa, mas a Rosângela saía em disparada em direção oposta, até o seu portão que ficava apenas a algumas casas acima. Muitas vezes nos esquecíamos do tempo, na empolgação de vencer a disputa e, quando saíamos no alpendre, lá estava o meu avô aguardando em silêncio a minha saída. Como eles eram muito alegres e brincalhões, falávamos e ríamos baixo por causa da proximidade com a rua, embora o vizinho do lado direito fosse um açougue do seu irmão que era o pai da Rosângela. Era comum policiais fazerem a ronda noturna a pé. Jogar cartas sem apostar dinheiro não era proibido, mas jogar cartas com adolescentes sim. Alguns anos depois a Di

faleceu, ainda bem jovem, com câncer. Rose, sua filha mais velha, teve tempo de aprender o que ela fazia como ninguém: as empadas, herdando assim a sua clientela. Mário já estava bem dependente do álcool e morreu alguns anos depois. Dona Zizinha, filha do tio Juca, fazia pastéis para abastecer os bares e as festas infantis, religiosas e casamentos. Velórios também. Os pastéis eram organizados num tabuleiro de madeira, muito grande, como se fossem fichas em um arquivo, separados em fileiras, diferenciados pelo tipo de recheio. Cobertos com um pano alvejado eram levados em vários turnos pelos filhos até os clientes, que marcavam numa caderneta o crédito para acertar no final do mês. Senhor Altino seu marido, conhecido só como “SeuTino”, era um homem alto, sempre com chapéu preto de abas largas, botas longas, bigode preto que não escondia seus dentes grandes, realçados por um de ouro bem na frente. Homem de pouca conversa, assobiava o tempo todo, talvez com a intenção de se comunicar com os inúmeros passarinhos que ele criava nas dezenas de gaiolas.de palitos de madeira dependuradas por todos os lados. Embora prisioneiros, todos cantavam agitados quando ele passava, mesmo que não fosse para lhes dar comida. Tinha mesmo uma comunicação especial com seus canarinhos prisioneiros. A casa era alta, muito grande e tinha um porão cheio de tranqueiras. A construção tinha o formato de “U”. Na fachada da casa, do lado esquerdo tinha a entrada por uma escada que dava num pequeno alpendre. Daí para a sala e em seguida a copa, terminando com a cozinha. Mas, paralelo à sala e copa, de frente para a rua haviam dois quartos que tinham as janelas na fachada. Um do casal e o outro das duas filhas Maria e Izabel. Quando as duas se casaram, transformaram o quarto delas em um salão de beleza onde trabalhavam juntas. A cozinha tinha um fogão à lenha gigante no centro, uma mesa com vários lugares, duas pias e uma bancada. Saindo para o quintal, do lado oposto viam-se quatro portas dos quartos dos filhos e do único e imenso banheiro dessa residência. No centro desse espaço em “U” não havia nada, era calçado com tijolos e sem

cobertura. Mais ao fundo, tinha um viveiro grande ao lado de uma varanda com um forno a lenha e dois tanques destinados a lavagem de roupas. Do lado oposto, um barracão bem alto onde guardavam ferramentas e todo o material destinado ao pasto, às galinhas, os galões do leite e os apetrechos dos cavalos. Atrás desse barracão tinha uma grande coberta com cocheiras para os animais. O terreno a partir da parte construída, continuava até dar numa estrada asfaltada. Era muito grande! Difícil acreditar que tudo aquilo ainda fazia parte do centro da cidade, com acesso pelo Largo do Vivi, onde duas ruas paralelas se transformavam nas duas avenidas de acesso às principais entradas da cidade. Era só pasto, não tinha nenhuma plantação, só vacas leiteiras, seus bezerros e cavalos. Seu Tino e seus filhos levantavam na madrugada, enchiam vários galões de leite que eram equilibrados no lombo dos cavalos que marchavam pelas ruas e iam parando de casa em casa gritando: “ao leite”. Jovelina pegava uma leiteira, chegava perto do cavalo muito alto e estendia a vasilha. Seu Tino contorcia o corpo para trás, sem largar a mão esquerda do freio, pegava o caneco feito de lata que estava preso no selim e o mergulhava num dos galões dependurados. Ao despejar o leite, ia entornando até completar com os litros que ela desejasse comprar. Girava novamente a tampa de metal pesada e barulhenta, ajeitava o chapéu na cabeça e murmurava alguma coisa que eu nunca entendia. Talvez um “até!” Esporava o cavalo com as botas e partia lentamente, com elegância, chamando o próximo freguês. Quando e quanto pagava cada um, isso não era preocupação para ele que tinha muito serviço pela frente ainda. Cada um que cuidasse da sua contabilidade na caderneta, de acordo com a sua consciência. Dona Sebastiana, mais uma das filhas dessa família, se dedicou a fabricar canudinhos recheados com doce de leite enquanto o seu marido, Zito Leão, dedicou sua vida à política. Moravam em um sobrado, no largo em frente ao Bar do Vivi, ao lado da dona Zizinha. O andar de baixo do prédio foi destinado ao comércio.

Como não possuía quintal, dona Sebastiana passou a usar a estrutura do quintal da casa da sua mãe que estava a apenas alguns metros na rua ao lado. Num tacho de cobre bem grande, dezenas de litros de leite adoçados eram fervidos por muitas horas, condensando até resultar num creme finíssimo, o doce de leite mais saboroso que me lembro de já ter saboreado. Um banquinho ao lado da fornalha servia de estepe para um homenzinho de uns oitenta centímetros de altura.

Adão, um servo fiel, parecia remar sobre o vapor com uma pá de madeira do tamanho dele, para evitar que a fervura derramasse o leite ou que o creme agarrasse no fundo do tacho.

As fôrmas para moldar os canudos eram feitas de bambus finos cortados com sete centímetros. A massa esticada e fina era enrolada em volta de cada um e em seguida eram colocados em banha de porco quente para fritar essa massa. Só depois que esfriava ela se soltava totalmente do bambu. Muitos quebravam as bordas e eram dispensados para que as crianças pudessem recheá-los com a “rapa do tacho”.

Adélia e seu marido, Geraldo Gouveia, tinham residência junto a um comércio atacadista alojado a um galpão, onde armazenavam sacas de grãos que formavam colunas imensas. Nos finais de semana suas filhas Bete, Solange e Rosália convidavam as primas e amigas para brincarmos neste depósito, escalando as sacas de arroz, milho, etc. Montávamos minis cidades, com casas, lojas e áreas de diversão para passear com as bonecas. Todas levávamos lanches e passávamos horas divertidas, com nomes e identidades trocados, com profissões e funções imaginárias, até a chegada dos irmãos que eram barrados, pois não participavam das nossas brincadeiras. Vinham avisar que as mães já estavam chamando para o jantar. Às vezes ensaiávamos peças de teatro ou malabarismos de circo para apresentar no alpendre ou quintal da minha casa, improvisando a lona e as cadeiras. Geraldinho era casado com a Judite e eram pais da Rosângela, com quem fui praticamente criada como irmã e tínhamos apenas alguns meses de diferença no nascimento. Éramos vizinhas e entre as nossas casas tinha o açougue do pai dela.

No final da avenida que dava continuidade à nossa rua, havia o matadouro municipal. Enquanto essas duas vias ainda não eram calçadas os animais eram conduzidos das fazendas próximas até o matadouro, através dessas ruas. Toda terça feira, por volta da hora do almoço, um homem montado a cavalo, gritava pelo caminho alertando a todos que as quatro horas fechassem as portas e recolhessem as crianças e idosos por que passariam com a boiada. Havia sempre o risco de um “estouro da boiada” pois os animais ficavam estressados e pareciam pressentir o seu destino. Os meninos sempre jogavam sal no fogo por que os mais velhos diziam que isso fazia com que a boiada estourasse. Algumas vezes saltavam pelos portõezinhos e entravam nos alpendres das casas onde evacuavam ou destruíam plantas. Ficávamos observando pela fresta da janela para evitar que se assustassem com a nossa presença. Levantavam muita poeira, faziam muito barulho e mugiam o tempo todo, em desespero. No dia seguinte, bem cedo, Rosangela vinha me buscar para assistirmos a matança. O local tinha um cheiro característico e assustador. Todos os animais estavam confinados em cercados de madeira que formavam corredores ligados por porteiras. O pai dela nos posicionava sob a cerca, em lugar seguro, de onde pudéssemos assistir tudo. Uma vara longa com um ferrão na extremidade ia forçando a caminhada dos animais para um caminho estreito e sem volta. Eles resistiam e tentavam voltar, mas não conseguiam. Ao final do corredor havia um degrau onde um por um, caia sobre os joelhos. Nesse momento recebia uma pancada na testa, desferida por uma marreta. Desmaiado, era passada uma corda em seu pescoço que o içava para o alto e, no mesmo instante era iniciada a sangria, no corpo trêmulo. Já no terceiro não era mais possível continuar ali. O cenário estava coberto pelo sangue de cheiro forte e os urros e gemidos dos que aguardavam na fila era estarrecedor...

Tia Di, outra irmã de minha avó, era casada com o tio Chico Batista. Ela morreu de câncer, deixando muitos filhos, alguns já casados. Passados alguns anos tio Chico se casou com a

Lourdes, uma mulher bem mais jovem, com quem logo teve uma filhinha. Enquanto o tio Chico continuou trabalhando como pintor e pedreiro autônomo, a sua nova esposa se dedicou ao que sabia fazer muito bem, para ajudar nas despesas da casa: o melhor pé de moleque da região! Todo final de ano minha avó contratava o cunhado para limpar todo o quintal, tirar as goteiras do telhado, limpar as calhas e pintar toda a casa. As vezes ele cuidava também de exterminar os formigueiros, cupins e outras pragas nas hortaliças e pomar.

Tia Zeca, a mais idosa tia materna da minha avó, era cardíaca e assoviava quando respirava, por que sofria com falta de ar agravada pela asma e mais um monte de coisas que ela estava sempre relatando para a minha avó, nas visitas frequentes que fazíamos a ela. Morava num casarão perto do grupo escolar em que estudei, acompanhada pela sua filha Antônia. Uma beata muito magra, vaidosa, de fala fina e alegre. O acesso ao quintal da sua casa era por uma escada de madeira, larga e com muitos degraus. Tinha uma varanda grande com um quartinho de despejo, onde eram acumulados todos os apetrechos necessários para que as duas pudessem trabalhar. No quintal tinha grandes árvores frutíferas e um gramado com um grande quarador de roupas, que era usado para secar as meadas de fios que elas tingiam numa fornalha ao ar livre. Com o passar dos anos e a saúde da tia Zeca piorando, apenas a Antônia descia para trabalhar no tear, enquanto a tia Zeca ficava permanecia na cozinha, que era mais fresca, sentada em frente da dobradeira, transformando as meadas em novelos. Quase sempre cochilava e perdia o fio da meada, gritando para a Antônia ajudá-la a encontra-lo novamente, pois já não tinha uma boa visão. Às vezes, na saída da escola, os estudantes esmurravam as janelas fechadas e ela não ouvia por estar surda e a filha por estar lá embaixo no quintal, perdendo assim a venda dos picolés de limão que produziam para refrescar a criançada. Tia Dica, a outra tia materna da minha avó, morava em Formiga com dois filhos beatos. Ela tinha um tear enorme no quintal da sua casa e, gozando ainda de boa saúde, trabalhava

sem parar. Era muito criativa, uma das melhores tecelãs da região. De quinze em quinze dias eu ia de trem, com a minha avó, levar sacos cheios de novelos de linha e lã já tingidos, para que ela fizesse as encomendas que minha avó recebia das noras e vizinhas. A casa da tia Dica era cheia de enfeites e folhagens. O piso era encerado com cera vermelha e escovão. Os tapetinhos, espalhados para todos os lados, escorregavam demais e, por algumas vezes, encontramos um dos três com pé, braço ou perna engessados. Mas a filha Maria não abria mão daquela obsessão, assim como dos pelos do seu bigode que ela não se preocupava em esconder. Os gatos se multiplicavam no sofá, na cadeira de balanço, dentro dos cestos de novelos e até dentro do forno de barro onde ela fazia as quitandas e assava leitoas. Eu sempre recusava o café cheio de guloseimas, pois estava ansiosa pelo lanche prometido pela minha avó, a caminho da estação ferroviária, no Ponto Chic, onde o senhor Pontes, gordo, barrigudo, completamente careca e muito sorridente, me servia um enorme sanduiche de mortadela no pão de sal crocante, acompanhado de um copão de limonada bem gelada e docinha!

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