Jaqueline Gutierres e Mariana Brasil
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Jaqueline Gutierres e Mariana Brasil Orientação: Welington Andrade
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Histórias do livro infantil narradas por adultos que fizeram dele sua profissão
Projeto Experimental Faculdade Cásper Líbero Jornalismo/2012
Jaqueline Gutierres de Souza Mariana Brasil Pinheiro de Oliveira Professor-orientador Prof. Dr. Welington Wagner Andrade Faculdade Cásper Líbero Projeto Experimental Curso: Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo Ano: 2012 Revisão de texto Natália Alexandrino Projeto gráfico Danilo Braga Ilustrações Renan Nunes
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As autoras Jaqueline Gutierres cresceu com os livros e, assim como os perfilados deste aqui, pretende continuar com eles, carregando debaixo do braço, enchendo a estante da casa e fazendo pilhas na cabeceira da cama. Em 2012, termina o curso de jornalismo e, depois de quatro anos em laboratório, está ansiosa para testar a profissão na vida real. Espera que este trabalho já seja um bom começo. Reza a lenda que Mariana Brasil foi introduzida ao mundo da contação de histórias ainda na barriga da mãe. O vício por cheirar lombadas de livros e encartes de revistas chegou a quase arruinar sua vida financeira. Atualmente está terminando o curso de jornalismo, mas pretende fazer outra coisa da vida – preferencialmente, algo lhe permita mais tempo e dinheiro para mais livros. 7
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Agradecimentos Gostaríamos de agradecer, primeiramente, às nossas famílias, pelo suporte que nos dão desde a infância e pelos livros que nos apresentaram quando éramos pequenas. Agradecemos ainda mais por sua colaboração ao longo dos anos de faculdade e, em especial, deste último ano de trabalho intenso. Deixamos também nosso muito obrigada ao orientador, professor Welington Andrade, por todas as reuniões, em que, atenciosamente, nos ajudou a solucionar nossas dúvidas e a encontrar o norte deste projeto. Nossa enorme gratidão às fontes desse livro, Azilde, Bia, Carlo, Cristiano, Edmir, Júlia, Nelson, Tatiana, Valquíria e Yabu, que com boa vontade nos receberam em seus locais de trabalho, nos encontraram para um café ou nos abriram as portas de suas casas. Sem exceção, com sorriso nos rostos, nos cederam seu tempo para falar um pouco sobre suas vidas e sobre algo tão caro a todos eles, os livros infantis. Agradecemos ainda a Cláudia Mesquita e Ruy Jobim Neto, que, com simpatia, conversaram conosco e contribuíram para o trabalho partilhando suas visões sobre o assunto. Deixamos ainda um agradecimento a todos os amigos que nos ajudaram em cada etapa do projeto. Fosse com ideias e colaboração no trabalho, aconselhando pacientemente nos momentos mais difíceis do processo, fosse partilhando a alegria dos resultados de cada entrevista, cada texto escrito, cada exemplar que chegou da gráfica. A todos, o nosso muito obrigada.
Jaqueline e Mariana
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Sumário INTRODUÇÃO �����������������������������������������������������������������������������������������12 RELATOS Tatiana Belinky: Alegria de criança ��������������������������������������������������18 Fábio Yabu: Biógrafo das princesas ��������������������������������������������������28 Nelson Cruz: Prosa de mineiro ����������������������������������������������������������36 Júlia Schwarcz: Na companhia de livros ������������������������������������������44 Bia Reis: Do papel-jornal às novas mídias ����������������������������������������54 Azilde Andreotti: Guardadora de histórias ���������������������������������������64 Edmir Perrotti: Memórias de Emília: �������������������������������������������������74 Valquíria Fagundes: Educação da educadora ����������������������������������84 Cristiano Alcântara: Lições de sala ���������������������������������������������������94 Carlo Carrenho: Caolho no reino dos e-books �������������������������������104 POSFÁCIO ����������������������������������������������������������������������������������������������114 BIBLIOGRAFIA ���������������������������������������������������������������������������������������121
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Introdução
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om todas as glórias e impasses que envolvem o livro infantil, do momento em que é escrito até a chegada à mão do leitor, seu desenvolvimento no Brasil começou a passos lentos, no início do século XX. Percorreu as décadas e chega aos dias de hoje como pauta de muitas discussões destinadas a refletir sobre os desafios de criação, publicação e mediação dos livros. A ideia deste trabalho surgiu da recorrência do tema em debates literários, do alto número de obras que têm chegado às livrarias, e ainda, das grandes seções que lhes são destinadas nesses espaços comerciais. Para justificar nossa afirmação e contextualizar este trabalho, é necessário apresentar um breve histórico da literatura para crianças no Brasil, partindo das primeiras décadas dos anos 1990. O período de 1920 a 1930 foi marcado pelo reflexo dos acontecimentos políticos e econômicos do entre-séculos (1861-1919). Nessa fase de transição, por decorrência da declaração de independência em 1822 e de reformas governamentais, o país caminhava em direção à construção de um sistema de educação nacional. No entanto, a situação não era muito promissora, com o cerceamento do ensino jesuíta e a falta de um outro modelo para substituí-lo. Travado nesse impasse durante quase quatro décadas, o sistema escolar só passou por mudanças efetivas próximo a 1900. Junto ao plano de criar um programa de ensino nacional, surgia a preocupação com uma literatura brasileira e, consequentemente, com as obras infantis. A base do ensino da leitura no país até então eram cartilhas e gramáticas portuguesas e francesas. Já com o novo plano educacional, a estratégia inicial seria produzir livros de leitura – a primeira tentativa de criação de obras literárias nacionais. Ainda assim, pouco se produzia para crianças e os volumes publicados eram assinados por acadêmicos e pesquisadores. Quase nenhum tinha como principal função a de escritor-criador.
Monteiro Lobato, na contramão dos autores da época, deu início à sua obra infantil já nas primeiras décadas do século XX, estabelecendo-se como um divisor de águas da produção nacional do gênero. Tinha propostas inovadoras e sabia unir elementos da tradição novelística com características importantes da, até então, escassa literatura brasileira, como o ruralismo. Atribui-se ao escritor um papel fundamental em prol da valorização da identidade nacional – a que se relaciona também a grande aceitação de sua obra. Em 1920, publicou seu primeiro livro infantil, A menina do narizinho arrebitado. A continuação, identificada como Segundo livro de leitura para uso das escolas primárias teria sido, para a crítica Nelly Novaes Coelho, a inauguração da literatura infantil brasileira. Teve tiragem de cinquenta mil e quinhentos exemplares, dos quais cinquenta mil foram comprados pelo governo de São Paulo e distribuídos em escolas públicas da cidade. Lobato deixou como herança aos autores seguintes uma característica comum a todos os livros infan-
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tis a que se dedicou: a ponte direta entre o fantástico e a realidade, inserindo o mágico no espaço básico do cotidiano familiar. Já em 1926 seus livros infantis estavam sendo traduzidos e lidos em outras nações, o que mostra a universalidade das suas histórias. Os elogios, porém, não duraram. À medida que se sentia descontente com a postura política e social do país, demonstrava isso em suas obras. Assim, os rótulos de subversivo e as críticas aos textos tiveram início na década de 1930, levando mesmo à proibição de seus livros em algumas escolas, em especial nas religiosas.
O primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945) começava com pleno trabalho de reorganização política e econômica após os abalos sofridos no país, decorrentes da quebra da Bolsa de Nova Iorque em 1929. No setor do ensino foi criado o Ministério da Educação e Saúde Pública, e com ele novas diretrizes educacionais passaram a ser discutidas. A literatura infantil foi motivo de preocupação, atribuindo-se a ela uma intencionalidade pedagógica não existente até então. Isso se deu por consequência do aumento da rede escolar e de uma política educacional renovada, que buscava padronizar os graus e tipos de ensino, defendendo que é pelo conhecimento advindo da leitura que o indivíduo se prepara para a vida. Por isso, apenas obras que colaborassem com o aprendizado formal eram consideradas boas. Essa diretriz estendeu-se até meados da década de 1950, e durante esse período a produção literária para crianças teve seu caráter mágico colocado em xeque. Acreditava-se que os contos de fada e histórias maravilhosas em geral adulteravam a realidade e, por isso, seriam perigosos para os pequenos. Nesse contexto, os livros de Lobato perderam ainda mais espaço. A linguagem das obras lançadas na época foi infantilizada, por meio do uso de diminutivos sem justificativa, repetições de clichês e descrições estereotipadas.
As histórias em quadrinhos surgiram como alternativa. Fortaleceram-se na época as publicadas nos jornais e em edições de revistinhas para criança, como O Tico-Tico. Idealizada por Manuel Bonfim e Renato de Castro, a publicação teve como primeiro personagem o Chiquinho, versão brasileira de Buster Brown, do norte-americano Richard Felton Outcault. Também marco do período, o Suplemento Juvenil, de Adolfo Aizen, apostava em séries de HQs já famosas no exterior, como o Flash Gordon, de Alex Raymond. Do mesmo modo que aconteceu com as narrativas fantásticas, os quadrinhos não passaram pelo período livres de questionamento pelos órgãos educacionais. A oposição ao gênero, que se estendeu até a década de 1960, baseou-se na possível descaracterização da criança brasileira pelo contato com grande número de produções estrangeiras. Outros argumentos estavam ligados à preguiça de leitura, visto que o pouco texto e as muitas imagens das obras foram considerados um perigo à aprendizagem.
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Mesmo com um cenário não muito propício, algumas iniciativas de sucesso foram empreendidas por autores nacionais. A obra de Ziraldo, por exemplo, ironizava os heróis norte-americanos. E, em 1960, o mineiro lançou o que seria sua HQ mais sensível à realidade brasileira, A turma do Pererê. O personagem principal, além do apelo nacionalista pela figura escolhida – o saci – posicionava-se de forma crítica ao contexto social do país. Não foi apenas com as HQs que Ziraldo dedicou-se ao universo infantil. Lançou, em 1969, o livro FLICTS, contando a história de uma cor em busca de seu lugar e de sua função no mundo. Ganhou, em 2004, o prêmio Hans Christian Andersen, um dos maiores, senão o maior, título da literatura infantil mundial. Sua criação com mais repercussão no país, no entanto, foi O menino maluquinho (1980), vencedor do Prêmio Jabuti, e que anos depois do lançamento foi adaptado para peças teatrais, quadrinhos e roteiros cinematográficos.
A revista Recreio chegou ao mercado como alternativa aos gibis e aos livros em 1969, publicada pela editora Abril. Em formato maior do que o das HQs, privilegiava as ilustrações que em alguns números ocupavam páginas inteiras. A revista chegava com a proposta de ser interativa, apresentando o slogan “Leia e pinte, recorte e brinque” – traduzido em suas páginas pelos passatempos, peças para as crianças montarem e colunas de curiosidades sobre as histórias contadas em cada edição. Essas narrativas formavam o conteúdo principal da publicação, e além de garantirem o sucesso da revista em um período histórico de preocupação com os rumos da literatura infantil, também lançaram autores que se sagrariam nos anos 1970. Entre eles, a paulistana Ruth Rocha, que publicou a conhecida obra Marcelo martelo marmelo, inicialmente nas páginas da Recreio. A nova regulamentação criada para o sistema educacional mais uma vez seria responsável por mudanças na produção literária para crianças. Nos anos 1960, durante o governo de João Goulart (1961-1964), seria votada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 4.024, de 20/12/1961), em trâmite desde 1948. A norma levantada, já defasada pelo tempo passado entre sua criação e a aprovação, seria reformulada anos mais tarde. Porém, manteria seu ponto central: a democratização do ensino, como um direito de todos e obrigação do governo. A lei definia a leitura como uma habilidade imprescindível para qualquer outro aprendizado formal. A literatura serviria, então, como instrumento para o ensino da língua e de especificidades da gramática. Em função disso, as obras começariam a chegar às livrarias complementadas por fichas ou roteiros de questões, com objetivo de orientar as atividades decorrentes da leitura em sala de aula ou extraclasse. Com a necessidade imediata e sem uma produção nacional forte, as escolas passaram a receber traduções de livros estrangeiros consagrados. No entanto, 16
na década de 1970 acabaram as restrições quanto à temática ou à questão da fantasia nas histórias, assim, a produção de literatura infantil voltou a se fortalecer e passou por mudanças consistentes.
A literatura experimental começou a dar seus primeiros passos em 1950 como uma tendência ligada ao concretismo. Esse movimento inicialmente influenciou alguns poetas brasileiros, e só na década de 1970 teve reflexo na produção infantil. Essa experimentação dava-se, não só por meio da linguagem e da estrutura narrativa, mas do apelo visual do texto. Entre os autores precursores dessa produção inovadora estão Ana Maria Machado, Lygia Bojunga Nunes e o já citado Ziraldo. Os três escritores foram premiados com o Hans Christian Andersen – o primeiro entregue, em 1982, à gaúcha Lygia Bojunga Nunes. A premiação aconteceu dez anos após a produção de sua primeira obra infantil, Os colegas, quando a autora chegava aos quarenta anos de idade, sendo agraciada no ano seguinte com o Jabuti (1973). O diferencial de sua obra está na temática crítica à realidade específica em que viviam seus leitores, focando nos problemas existenciais da criança e questionando valores sociais amplos, com reflexões críticas sobre os preconceitos, as relações sociais, o ensino, a família etc. A obra da autora influenciou a produção de outros escritores ligados ao experimentalismo. Também atenta à realidade a sua volta, a carioca Ana Maria Machado engajou-se na luta de resistência à Ditadura Militar, o que a levou ao exílio voluntário na Europa, em 1969. Lá, escrevia histórias infantis para a revista Recreio. Sua produção literária é comparada por críticos como Marisa Lajolo a de Monteiro Lobato no que tange à percepção do contexto social em que vivem e à valorização da linguagem fantástica. Alguns textos resultaram no livro Bento que bento é o frade, de 1977, parte da coleção de obras da publicação e escrito originalmente como a peça infantil No país dos Prequetés. Ana ganhou o Hans Christian Andersen, em 2000. No ano seguinte, foi premiada pela Academia Brasileira de Letras com o Machado de Assis. A instituição ainda lhe conferiu, em 2003, a ilustre cadeira número um, até então ocupada pelo escritor e jurista Evandro Lins e Silva. Alguns desses escritores experimentalistas estendem suas obras aos dias de hoje, com livros concebidos ainda na última década. Além deles ou influenciados por eles, outros autores despontam com obras relevantes e procuram manter-se no mercado. Esse assunto, porém, já não faz parte do histórico, mas de um retrato do atual circuito dos livros infantis no Brasil apresentado nas próximas páginas. Pretendemos usar os relatos que seguem para formar um mosaico da situação atual, a partir das diferentes visões de personagens envolvidos em algum momento do processo que vai da criação à leitura das obras infantis.
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Tatiana Belinky Alegria de crianรงa
-Alô? - Alô, é da casa do Júlio Gouveia? - É sim, quem fala? - Aqui é o Monteiro Lobato. - Ha-ha-ha, aqui é o Rei João.
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erca de uma hora depois deste diálogo, Tatiana Belinky abriria a porta de sua casa, no Pacaembu, em São Paulo, para a primeira visita do escritor. Foi só nesse momento, ao dar de cara com ele, que acreditou ter sido mesmo Lobato quem telefonara para sua casa. O motivo da ilustre ligação foi um artigo sobre literatura infantil escrito em uma revista pelo marido de Tatiana, Júlio Gouveia. O texto dava destaque para as obras de Lobato, e o autor gostou tanto que decidiu encontrar quem o elogiava. - Eu quero conhecer este Júlio. Eu posso ir aí hoje à noite? - Mas é claro! Empolgada com o acontecimento, Tatiana avisara toda a família, o marido, os dois filhos pequenos, e o irmãozinho de dez anos de idade, Benjamim, que morava na casa ao lado. Quando disse ao garoto quem estava fazendo uma visita, ele não acreditou de início, mas foi conferir e ficou petrificado ao chegar. “Ele parou na porta por uns segundos, até ouvir o escritor chamá-lo. Então, pegou sua mão e não quis soltar mais, até que Lobato conseguiu se desvencilhar e meu irmão disse que nunca mais lavaria a mão. Ele lavou. Não sei se naquela noite, mas no dia seguinte com certeza teve que lavar”, brinca. As lembranças desse encontro ainda estão frescas na memória de Tatiana. Foi uma conversa longa e animada, que levou ao nascimento de uma amizade que ela jamais esperaria cultivar. “Eu nunca imaginei que isso pudesse acontecer, eu não iria procurar Monteiro Lobato, nunca! Eu tinha vergonha, tinha medo.” Mas depois de conhecê-lo, lamenta não ter tido muito tempo: o autor morreria alguns anos após aquele primeiro contato – antes mesmo de ver os trabalhos que Tatiana e Júlio desenvolveriam a partir de suas histórias, cuidando especialmente dos personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo.
Teleteatro
Na década de 1950, quando a televisão ainda era uma novidade, o casal se aventurava pelos palcos dos teatros paulistanos com peças infantis. Tatiana se encarregava do roteiro e Júlio dirigia e atuava. “A
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TV Tupi precisava de um especial infantil, os responsáveis por conseguir um programa novo viram o que fazíamos no Teatro Municipal de São Paulo e nos chamaram para apresentar os mesmos trabalhos, só que em estúdio.” A emissora transmitia uma atração de auditório para crianças, mas eles ainda queriam um teleteatro. Disseram: “façam o que já fazem no palco e não se preocupem, o resto a emissora resolve. Afinal, não sabíamos nada da parte técnica”. O casal concordou, com a única exigência de que não houvesse um contrato. Assim como faziam nos teatros, o acordo deveria ser verbal – ou, nas palavras de Tatiana, acontecer no fio de baba. “O Júlio sabia o que queria e eu também, a gente queria fazer o que achava que sabia, sem ninguém se intrometendo. Dissemos que não se preocupassem, porque se gostassem, nós continuaríamos.” Mesmo contrariada, a emissora aceitou a condição por um período de experiência, “e nós ficamos lá, experimentando por uns doze ou treze anos”. No início, tudo era transmitido ao vivo, e eles atuavam e dirigiram exatamente como fariam em uma peça de teatro. “Mas era na TV, então era até mais perigoso. Só que nós achávamos muito divertido, e, uma vez no ar, íamos embora.” Começaram com um programa curto, de dez minutos, onde encenavam fábulas mundialmente conhecidas. Porém, certa vez, a emissora pediu algo maior, com apelo brasileiro. “Eu olhei para o Júlio, ele olhou para mim, nós nos entendíamos muito bem, e pensamos que nesse caso só podia ser o Lobato. Quem era o brasileiro capaz de inventar histórias mais fantásticas? De escrever direito para criança, sem achar que elas eram bobas? Poucos faziam isso.” Então levaram as adaptações das histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo que já apresentavam nos teatros para a televisão. Depois de alguns anos no ar, emplacaram mais um programa, o Teatro da Juventude – também com histórias encenadas para o público infantil. Seu espaço na grade era de uma hora nas manhãs de domingo, até o momento em que passaram a receber reclamações de mães dos pequenos telespectadores. “Elas diziam que as crianças queriam ver nosso programa e, por isso, resistiam a ir à missa. Não quisemos atrapalhar e transferimos a atração para a tarde. Funcionou”, conta Tatiana. A audiência crescia e depois de um tempo, Júlio, que além de produtor era apresentador, já não podia andar nas ruas sem ser reconhecido. Com modéstia, Tatiana encerra o assunto: “para encurtar a história, ficamos lá, sem contrato por muitos e muitos anos, e até que ficamos conhecidos, né?!”. A escritora ganhou nome como roteirista, ou, em suas palavras: “essa coisa de roteirista acabou pegando”, até que recebeu o convite da Comissão Estadual de Teatro para criar peças infantis. “Virou algo oficial, eu recebi o tal cargo de confiança, e até sai no jornal. O negó-
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cio ficou sério, sério como uma boa brincadeira, que é a coisa mais séria que existe”, afirma a escritora, que depois completa, “brincar é a profissão da criança, é aprender a viver, se não aparecer um adulto para atrapalhar, claro”.
Escritora
Aos noventa e três anos, Tatiana já não recebe os convidados na porta como fez com Lobato – afinal, o tempo, como ela diz, a perdoa em muita coisa na idade em que está, mas em algumas poucas, é implacável. “Eu não saio muito, porque fico cansada, mas quando vem alguém conversar comigo, eu gosto demais.” Sorridente, aguarda visitas na ampla sala de estar, sentada em sua poltrona, onde parece bem à vontade. Tem os cabelos acinzentados encaracolados, não muito curtos, mas que não chegam a cobrir o pescoço. Nos ombros, carrega um xale que, junto do riso acolhedor, são a perfeita descrição da vovó doce do imaginário popular. A representação, porém, em parte, é deixada de lado, quando se nota uma mesa posicionada a sua frente, e sobre ela, um bloco de papel e uma caneta. A partir daí, o que se vê já não é a vovó, mas a escritora e todo o material que precisa para continuar a praticar. Com mais de duzentas e cinquenta obras publicadas, entre traduções, adaptações e livros de sua autoria, Tatiana conta que já foi uma expert das máquinas de escrever, chegou a fazer um longo curso, que segundo ela parecia até uma faculdade sobre o assunto. “Eu tamborilava naquilo, de um jeito que parecia até uma metralhadora. Escrevia tudo e nem olhava para ela, só pensava o texto e colocava no papel.” Já a televisão, por mais que tenha trabalhado próxima às câmeras por anos, não teve muito espaço em sua rotina, “ela chegou tarde para mim, porque eu já tinha os filhos, e quando eles dormiam eu ia direto escrever. meus textos Fazia um barulho danado com aquilo”. Hoje, Tatiana já não usa a máquina, mas garante que o aparelho está bem guardado, “ela tem posto de ouro em casa”. Naturalmente, quem também desfruta de local especial na residência são os livros – uma sala inteira é destinada a eles. A biblioteca já chegou a ter mais de seis mil obras, “mas depois que o Júlio morreu, em 1988, passei a ter menos exemplares, porque doei muito material de teatro, e toda a biblioteca médica dele, que eu dei para um sobrinho que também é psiquiatra”. Além desse desfalque positivo, uma parede inteira de livros se foi – atacada por cupins – fato com que Tatiana brinca: “aqueles intelectuais acabaram com tudo. Comeram até uma enciclopédia. Eu chorei três dias seguidos, mas agora já preenchi tudo de novo”. Tempo não faltou para que a escritora recheasse cada vez mais sua biblioteca: são sessenta anos
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na mesma casa. Das lembranças antigas às frescas, grande parte se passou lá – na mesma residência visitada por Monteiro Lobato. “Eu estou nela há anos, já trabalhei muito aqui. Já criei meus filhos Ricardo e André, meus netos, e até outras crianças que não saíram da minha barriga, filhos dos empregados que passaram por aqui, são todos filhos da casa.” Além dos garotos mais próximos, Tatiana recebe grupos de escolas para conversas e contações de histórias na residência. “Eles vinham mais do que agora porque eu estou, digamos, não muito boa. Na verdade, eu é que ia até eles, não precisava que viessem, pegava meu fusca e ia às escolas, às bibliotecas, a qualquer lugar.” Com a diminuição das visitas, atualmente, a principal companhia em seu dia é Adriane Nordon, que a ajuda em suas tarefas profissionais. “Ela é minha assistente, minha ajudante, minha leitora. Não sei o que faria sem ela, acho que dormiria”, frase que rapidamente é rebatida por Adriane, com a certeza de quem conhece a agitação da escritora, “dormir? Que nada”. Talvez mais do que as possibilidades que o tempo lhe tirou de ir e vir com seu fusquinha, Tatiana sinta as limitações visuais que foram se impondo. “Eu tenho problema de vista e não posso ler. Posso escrever, mas nem o que eu escrevi eu consigo ler”, por isso, depois de grafar no bloco de papel, fica a cargo de Adriane revisar junto da autora, para discutirem modificações e, por fim, a ajudante digita os textos. O que poderia ser um desafio é facilmente executado pela dupla – exemplo disso é que Tatiana lançou dois livros em 2012, O espelho e O espetáculo, ambos editados pela Caramelo, selo da Saraiva. E não pretende parar por aí. “Adriane sabe que eu tenho coisa aqui que nem lembro mais, texto pronto, ilustrado, não ilustrado.” A assistente confirma com um balanço de cabeça.
A menina Tatiana
E como entrou na área de livros para criança? “Como eu entrei? Eu não entrei, eu nasci assim. Desde bem pequena, pequenininha, a literatura infantil esteve junto comigo. Meu pai, Aron, me contava histórias, dizia poesias, me levava ao teatro. Então, eu sempre estive às voltas com ela”. Tatiana nasceu na Rússia, em 1919, mas viveu na Letônia, desde o primeiro ano de idade, onde, ao completar três, já tinha sua própria estante com livros. “Aqueles eram os meus mesmo, e meu pai lia para mim. Então, eu lia sem saber ler, conhecia as histórias de cor. Criança é assim, você conta uma vez e ela não esquece mais, algumas vezes só faz de conta que sim.” Ler seus próprios livros, Tatiana aprendeu com quatro anos e, antes que se possa admirar a proeza, justifica que isso não é nada fora do normal. “Se você não atrapalhar, deixar a criança, ela aprende a ler. Os judeus, homens, bem religiosos, quando o menino faz três anos, eles lhe
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cortam o cabelo e levam para a escola pela primeira vez – alguns ainda no colo. Todos carregam um livro, e os pais pingam uma gota de mel nele, para saberem que ler e estudar é doce.” No Brasil, Tatiana chegou aos dez anos, quando sua família deixou a Europa durante uma dura crise econômica. Nessa idade, já havia lido muitas coisas e falava quatro línguas, russo, inglês, alemão e letão – habilidade da qual também se exime de elogios logo de saída: “isso era normal, todos lá falavam. Até as placas de rua eram em três línguas. Língua só não podia era mostrar de malcriação. Aí tomava bronca”, brinca. O português garante que foi simples aprender, por semelhança com os idiomas que já conhecia, e ressalta o grande facilitador: “ser criança. Eu aprendi brincando, porque criança não tem medo de palavras”. Quando ainda não sabia ler o português com perfeição, Tatiana teve contato com o primeiro texto infantil brasileiro e, é claro, foi de Lobato. “Eu nem sabia quem era ele e, por incrível que pareça, o que me caiu na mão foi um almanaque do laboratório Fontoura com a história do Jeca Tatuzinho.” Era, na verdade, uma peça publicitária da Fontoura Serpe & Cia que o autor havia escrito narrando a história de um caboclo que tinha problemas de saúde. A finalidade era a promoção de produtos da empresa, em especial, do Biotônico. Tatiana conta que adivinhava o português com ajuda das ilustrações e se interessou pelo que viu, mas nunca imaginaria quanto “esse tal de Monteiro Lobato” faria parte de sua vida. Matriculada na escola, Tatiana frequentava o Mackenzie, que tinha uma biblioteca de três andares – local para onde a menina se dirigiu já nos primeiros dias de aula. Escolheu alguns livros, mas a bibliotecária disse que não podia pegar aqueles, e ela se recorda muito bem do diálogo: - Esses aí não são para você. - Por que não? A biblioteca não é da escola? - É, mas esses não são para você. - Mas por que não? - Porque para você é essa estante aqui – disse apontando uma prateleira pequena – você pode tirar, levar para casa e depois devolver. - Mas por que não TODOS? - Porque são impróprios para criança! - Por que impróprios? O que tem de impróprio nos livros da biblioteca da escola? - É porque você não vai entender. Não são para criança. Pega naquela estante e leva para casa. Tatiana seguiu a ordem da bibliotecária, mas já contrariada, não gostou dos livros. “Cheguei a minha casa, dei uma lida, já odiei, e me queixei para o meu pai: ‘olha o que estão fazendo comigo! Deram-me uma estante boba, cheia de coisas bobas’ – e claro, nem todas eram bobas, mas eu
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estava do contra nessa época.” Ela queria tirar o livro que quisesse e não se conforma que existissem títulos impróprios para ela. Seu pai a apoiou e escreveu uma carta para a escola dizendo que a filha estava autorizada a emprestar qualquer exemplar da biblioteca. “Quando receberam ficaram horrorizados: ‘Onde já se viu?! É uma menina pequena!’ Mas, era a autoridade paterna e ninguém discutiu, eu tirava o que queria.” Depois de resolvido, o pai perguntou o que tinha odiado tanto naquelas obras e ela nem sabia dizer. Mas pediu sua opinião sobre o que deveria ler primeiro, e ele respondeu: “tem tanta coisa boa! Por que não tenta as aventuras?”. Tatiana seguiu a dica e ainda hoje se lembra da importância da coleção Terramarear, lançada pela Companhia Editora Nacional, com boas histórias referendadas por escritores e artistas na época. “E foi assim que eu rapidamente me tornei a tal rata de biblioteca”, recorda-se.
Crianças
Se já era implacável na escola, não há de se duvidar que Tatiana desse trabalho para sua mãe em casa. E, por isso, lhe eram atribuídos alguns adjetivos não muito adorados pela maioria das crianças. “Minha mãe, Rosa, ficava brava comigo e dizia que eu era impossível, me chamava de bruxinha, de cobra. Eu pensei que não queria ser uma cobra, mas bruxa eu até gostaria de ser.” Inconformada, a mãe perguntava se ela queria ser como Baba Yaga, a velha feiticeira do folclore russo, que voa em um almofariz – o mesmo que usa para moer ossos humanos em seu pilão. Tatiana respondia que não, mas queria ser como a madrasta da Branca de Neve, poderosa e que se tornava bonita sempre que quisesse. Depois de contar a história em uma entrevista, Tatiana passou a ganhar muitas bruxinhas de presente. Hoje, em sua sala há bonecas das feiticeiras penduradas por todos os lados. “O pessoal achou graça e começou a me mandar, me trazer como lembrança. Tenho ainda um armário cheio delas”, conta entusiasmada. Sua predileção, no entanto, se tornou mais específica quando conheceu a história da personagem Emília, passou adorá-la e defende que a boneca não deixa de ser bruxa também – a define como bruxinha de pano. “Emília é o próprio Lobato. Ele, aliás, contava uma historinha de que quando ficava tipando, teclando, ela estava ao seu lado dando palpites. E um dia quando perguntou quem ela era afinal de contas, a boneca respondeu: ‘eu? Eu sou a independência ou morte!’.” Tatiana adorou e determinou: “é isso que eu quero ser”. Decidida sobre seus anseios, a escritora defende que todas as crianças possam ter a mesma liberdade, sua única ressalva é sobre malcria-
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ção, “isso não pode!”. Com seus filhos, se recorda de um episódio que até virou crônica. Quando os meninos tinham seis e quatro anos, uma empregada da casa disse a eles que certas palavras não deviam ser ditas, então, um dia, Tatiana estava em seu quarto no andar superior da casa, e ouviu uma gritaria vinda da sala. “Eu cheguei e os dois estavam pulando no sofá, gritando ‘Cocô! Xixi! Bunda!’. Eu achei graça, porque criança não tem preconceito, mas eles achavam que estavam sendo terríveis, porque lhes mandaram não dizer aquilo, mas estavam falando. Eles ficaram realizados.” Tatiana faz questão de garantir que a história é real e justifica dizendo que nunca conseguiria inventar coisas que os pequenos falam – não é possível ser tão criativo. A escritora nomeou sua crônica em alusão a um poema de Carlos Drummond de Andrade, como “Sejamos pornográficos”, afinal, era o que seus filhos achavam que estavam sendo. “Cada passo é um passo a mais em que a vida ensina, e é preciso deixar as crianças aprenderem. Pais, professores, adultos em geral, atrapalham muito.” Em seguida, ela se recorda do tempo de escola, em que levavam os pequenos para ver cadáveres: “para quê? Claro, mentir que não há morto também é errado, mas por que mostrar? Criança sabe o que é morte desde a barata morta, não precisa ver um corpo, que coisa horrível!”. Com os livros, Tatiana defende a mesma posição de não interferência: deixar a criança ler é o que a leva a gostar da coisa. Com seus filhos e netos foi assim, estes últimos chegavam a sua casa pedindo livros, ela imita: “Tati-Tati, tem algum novo para a gente?”. A escritora contava histórias, brincava e até fazia artesanato – na época em que os pequenos estavam encantados com dinossauros, ela recortava em papéis figuras parecidas com os animais. “Quando eu era pequena, eu tinha uma fräulein, era nossa governanta alemã, e ela fazia esse tipo de coisas para nós, então, eu acabei aprendendo com ela.”
Palavra de ordem
Quanto às sempre presentes questões das mães que a autora ouve pelas ruas: “eu mando meu filho ler e ele não lê. O que eu faço?”, Tatiana emposta a voz e é dura em seu conselho de que ao invés de mandar, elas deveriam facilitar, expor a criança ao livro. “Dobre o seu dedo indicador e deixe seu filho ler. Ler é um privilégio, não uma obrigação, um castigo.” Ela entende, é claro, que há obras requisitadas pelas escolas e que isso é preciso que a criança leia, mas o que define como “livro de ler”, é para o prazer, é um prêmio. “Quando elas começam a sentir o gosto, não param mais.” E elogia práticas como levar os pequenos a livrarias e
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bibliotecas, estas últimas – enfatiza – embora obrigatórias nas escolas, nem sempre ajudam no contato dos pequenos com as obras, por serem muito burocráticas ou ainda terem posturas como a de seu colégio. Certa vez, a escritora participou de uma mesa de debates com a crítica literária Nelly Novaes Coelho, que na época talvez nem soubesse quem era Tatiana, mas essa tinha uma ideia vaga sobre Nelly. “Ela era a tal que sabia bem o português, de quem os comentários iam para os livros, e isso por quê? Porque ela lia.” No debate, Tatiana foi questionada sobre o porquê de as crianças não gostarem de estudar, e respondeu: “porque elas não querem estudar, elas querem aprender, e aprender nós aprendemos a vida toda, todos os dias”. Nelly comentou que isso nunca lhe havia passado pela cabeça, mas que concordava plenamente. Tatiana não exclui o estudo como aprendizado, nem tira a importância dos livros dedicados a isso, mas defende que os garotos não querem ficar parados, ou “torrando”, em suas palavras. “Eles querem aprender coisas, então não atrapalhe. Deixem escolher o que quiserem, conhecer o mundo, ler a vida.” Ser criança, para Tatiana, não é uma fase da vida com tempo determinado e é com essa ideia que projeta seus livros. “Eu sempre escrevi para criança e nas vezes em que escrevi para adultos era sobre questões infantis, então, meu público é a criança mesmo adulta.” Em sua definição, os adultos que se permitem ser crianças sabem ler os textos infantis e entender que eles ainda lhes servem. Já o inverso não funciona do mesmo modo, nem sempre os escritos que interessam aos grandes têm apelo com o público infantil. Na verdade, para Tatiana, um texto bom para criança ler é o que a deixe curiosa, instigada. Envolvida com o assunto, ela cita um professor francês, Daniel Pennac, que dava aulas de literatura para crianças. Em uma de suas obras, chamada Como um romance, lançada pela editora Rocco e, segundo Tatiana, bem traduzida para o português, o autor conta sua experiência com os livros e a relação dos pequenos com eles. Escreve um decálogo sobre livros e crianças, e alguns dos tópicos Tatiana decorou: “o primeiro diz que ‘Ler não comporta imperativo, assim como dois outros verbos: amar e sonhar’. E no último ele escreve: ‘Se não quiser ler não leia. Se você começou e não gostou, para e pega outro livro’”. A qualidade do que se lê, para Tatiana, é importante, mas não determinante, porque no pior dos casos aprende-se a ler. “Isso é sempre saudável. Você não pode proibir.” Segundo a autora, quando uma criança começa a ler, ninguém a contém ou escolhe por ela, e nem deve fazê-los. “Ela vai desenvolver o pensamento, mesmo com má literatura. A criança tem um pensador muito bom na cabeça.” E se ser criança não tem idade, aos noventa e três anos, o pensador de Tatiana nunca envelheceu.
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F谩bio Yabu Bi贸grafo das princesas
A
s aventuras de Fábio Yabu no mundo dos livros infantis começaram em um dia confuso e difícil, enquanto participava de uma exaustiva reunião com o diretor de arte da Sabesp. Paulista, nascido em Santos há trinta e três anos, ele tem estatura baixa, rosto redondo e olhos um pouco puxados – que fazem jus a seu sobrenome de origem oriental. Na época do encontro, ele passava por uma situação financeira complicada e tentava um trabalho de freelancer junto ao departamento de criação da empresa. O projeto era elaborar um personagem que se ligasse ao tema da preservação da água – principal bem da instituição, que lida com seu fornecimento no estado. A reunião corria havia algumas horas e nenhum dos personagens de Yabu havia agradado ainda. Ele já estava sem paciência, mas com seus modos contidos, resolveu não esbravejar: “eu comecei a ficar meio de saco cheio e pensei, não vou falar nada, mas vou fazer qualquer coisa. E tive uma ideia: uma menina com um polvo na cabeça”. Quando terminou o desenho, Yabu se encantou pelo que acabara de criar. “Eu vi aquela personagem e fiquei fascinado, senti um arrepio. Só que na minha frente estava o diretor de arte e, então, só me restava torcer para ele não gostar”, relembra. A torcida deu certo, outros personagens foram escolhidos e a muito custo, Yabu conseguiu o trabalho de freela. Mais importante, porém, foi o que resultou de sua dor de cabeça naquela reunião: lá, nascia Polvina, sua primeira princesa do mar.
Pesquisa de campo
Não foi logo em seguida, porém, que ele desenvolveu as histórias. A ideia demorou dois anos para chegar ao papel. Durante esse período, Yabu usou conhecimentos de sua breve frequencia a um curso de publicidade, que durou um ano e meio, para fazer estudos sobre o assunto. Ele decidiu analisar o público-alvo das narrativas que estava prestes a criar, formado por meninas entre seis e doze anos de idade. “Eu comprava livros do tipo ‘o desenvolvimento da mente da criança’, ‘como criar as suas filhas’, ‘como educar meninas’.” Além das obras ligadas à formação das leitoras, decidiu fazer pesquisas sobre biologia marinha: “eu ia para a praia do Guarujá toda semana para observar os peixes”. Unindo os resultados das duas pesquisas, ele escreveu o livro. “Mandei a ideia e os conceitos para algumas editoras e enviei uma primeira versão do texto também.” Inicialmente, nenhuma das sete empresas para as quais Yabu enviou seus originais topou publicar. “Até que eu mandei para o Marcelo Duarte, que era meu amigo, e o é até hoje. Ele é dono da Panda Books, que era uma editora bem peque-
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nininha na época. Ele gostou da minha ideia, me deu um monte de dicas, coisas que ele achava que podia melhorar. Nós finalizamos e ele lançou o livro em 2004.” Hoje, com uma filha de um ano e meio, no papel de pai, curiosamente, Yabu não vê muitas possibilidades de aplicação prática das teorias que tanto leu para escrever as obras, quando se trata da educação da pequena Luna. Contando as histórias de Polvina, princesa dos polvos, de Estela, das estrelas-do-mar, e de Tubarina, dos tubarões, Princesas do mar teve os três mil exemplares da primeira tiragem esgotados em seis meses. Com o último volume lançado em 2009, a série atualmente conta com oito títulos – quatro deles para crianças em fase de alfabetização. As aventuras das trinta princesas e príncipes do reino de Salácia não ficaram apenas no mundo dos impressos: a Discovery Kids, canal de TV por assinatura, comprou os direitos de uma adaptação animada da série. O desenho foi feito por uma produtora australiana, e seus cento e quatro episódios rodaram por quase cinquenta países. “Não ajudei na animação, mas eu supervisionei todos os roteiros, escrevi o argumento, que é a ideia básica do conteúdo. Fiz também o character design, a composição dos personagens para a animação, com seus gestos, movimentos. Eu até dirigi as dublagens em um dia na Austrália.” Apesar de muitos pedidos de Yabu, para que fossem mais claros, os nomes das princesas não foram traduzidos para o inglês, porque os australianos gostaram do som exótico que tinham em português.
A última princesa
As Princesas do mar levariam Yabu a um outro estalo criativo, que resultaria na ideia de mais um livro e lhe consumiria outros dois anos em pesquisas. “Eu estava em casa um dia, pensando no próximo volume da série das princesas e, por algum motivo, veio à minha cabeça a frase ‘a última princesa’. Isso ficou lá por vários dias, até que, eu sei lá por qual razão, me lembrei de Isabel.” Com seu pequeno conhecimento sobre história, ele suspeitou que ela tivesse sido a última princesa do Brasil. Em questão de minutos depois dessa referência, Yabu estava na internet, lendo tudo o que encontrava sobre a trajetória de Isabel. Seu palpite, não só estava certo como era incrivelmente promissor. “Ela foi a última princesa em todos os sentidos: foi filha de Dom Pedro II, o último rei, e chegou a ter uma irmã mais nova, mas que morreu, então, se tornou mesmo a princesa derradeira.” Comprovada sua hipótese, o autor partiu para dados curiosos que pudessem render boas narrativas: “eu fui pesquisar um pouco sobre a vida dela e descobri que tinha sido muito amiga do aviador Santos
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Dumont. Isso foi uma revelação mágica para mim, porque, até então, eu a estava imaginando em um mundo super antiquado: Idade Média, as pessoas morrendo de lepra na rua. Mas não, ela viveu na época dos nossos bisavós!”, conta. Eletrizado, Yabu começou com um esboço mental da história, e sua primeira decisão foi que o livro deveria passar o mesmo tom mágico que ele sentiu ao redescobrir a princesa perdida na história do país. “Eu queria construir uma narrativa que contasse a vida dela, a amizade com Santos Dumont. Para que não fosse algo do tipo: 1888, a história da Princesa Isabel”, encena, com voz velada. O grande desafio na hora de escrever foi conseguir as informações, e sua busca por bibliografia foi inicialmente bastante frustrada. Especificamente sobre a misteriosa princesa, encontrou apenas três livros em catálogo, outros tantos volumes fora de impressão há décadas e uma montanha de documentos perdidos. De tanto pesquisar, o autor criou até teorias próprias: “na história não existe nenhum tipo de consenso, mas para mim, Dom Pedro II era uma pessoa tão popular e tão importante que fizeram de tudo para apagá-lo”. Tanto defende tal ideia que a colocou em seu livro: a princesa e sua família sofrem uma maldição, o que fez com que fossem esquecidos na terra em que viveram. “E, na verdade, foi isso mesmo que aconteceu. Quem sabe a fundo quem é a princesa Isabel hoje?” Para fugir do enciclopédico e dar à narrativa toques de fábula, Yabu optou por não mostrar o rosto dos personagens e, assim, preferiu cenas distantes e um pouco esfumaçadas. Também preferiu não dizer logo no início que se trata de uma parte da história brasileira: deixou alguns dados e fotos para o final. “Há muitos trechos mágicos do livro que realmente aconteceram. Então, quando percebem isso bem lá no fim do livro, os leitores enlouquecem.” Não só os pequenos se espantam, para certos leitores que têm referências para adivinhar ao longo da narrativa que a história não é apenas invenção, a surpresa não é menor, e Yabu se orgulha disso. “Teve uma amiga minha que pegou o livro do marido, sem nem saber do que se tratava, lá pelo meio da leitura percebeu que história era aquela. Ela disse que não conseguiu terminar de ler sem ir checando os fatos na internet, porque se interessou pela história por trás da narrativa infantil.” A amiga não é exceção, Yabu tem recebido os mesmos relatos emocionados em vários e-mails de seus leitores. Animado com os resultados, o santista está adaptando o livro para as telonas. Por enquanto, ele aguarda a tramitação do projeto na Ancine (Agência Nacional do Cinema), mas, ansioso, já idealiza atores e estética. “Eu queria muito que fosse parecido com O labirinto do fauno, dirigido por Guillermo del Toro, misturando cenas de época com fan-
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tasia e com seres mágicos. Eu acho que pode funcionar, porque tem muito disso no livro também, o próprio Santos Dumont é um personagem meio mágico, é um pouco chapeleiro maluco, da obra Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll.”
Cidadão do mundo
Além de princesas, a inspiração de Yabu surge de viagens, casos de Raimundo, cidadão do mundo. A obra, que conta a história de um homem muito disperso que, certa vez, ao ir à padaria, acabou chegando a outro estado do país. Um outro título, Apolinário - O homem dicionário, surgiu de uma conversa que teve certa vez que visitou o sítio de seus pais, em Minas Gerais. Ele ressalta que foi um diálogo entre aspas, porque nem ele nem o mineiro com quem tentou uma prosa se entenderam. “Chegou uma hora que ele falou que não estava entendendo nada do que eu falava por causa do meu sotaque. Daí, eu pensei: ‘eu tenho sotaque?’. E eu achava mesmo era que esse senhor tinha um sotaque mega carregado, eu via os erres sendo desenhados no ar”, brinca. Com essa inspiração, o autor cria um personagem pouco compreensivo com os erros de gramática e os diferentes modos de falar, mas que, com o desenrolar da história, aprende uma lição de tolerância. Com mais alguns livros a publicar e um filme sendo negociado, o dia a dia de Yabu é até bem calmo. “A última princesa é uma história a que eu me dediquei muito. Porém, hoje, eu não consigo passar um dia inteiro escrevendo um livro, então eu vou alternando entre os projetos.” O fato de ser pai, também toma tempo de seu dia: “atualmente, com a minha filha é um pouco mais complicado, eu fico com ela de manhã e ela fica com a babá à tarde. Aí, eu trabalho nesse intervalo da tarde e mais um pouquinho à noite. Antes eu até conseguia estender mais, porém já não trabalho de madrugada”.
Começo inusitado
Com a sólida carreira no mercado impresso, Yabu começou seus trabalhos na internet com quadrinhos online. Criou os Combo Rangers aos dezessete anos. A série foi uma das primeiras HQs no Brasil a usar a tecnologia flash, que permite algumas animações. Nela, Yabu fazia um mashup de super sentais japoneses, como Jaspion e Power Rangers, com personagens próprios e paródias de desenhos de heróis. A história foi fazendo sucesso, e com a internet ainda incipiente na época - ninguém havia pensado redes sociais, nem mesmo o Youtube existia - o autor media a boa recepção pelas cartas e e-mails que recebia.
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O quadrinho acabou reconhecido pela mídia especializada, como revistas que falavam de HQs. O período era de transição: a internet começava a surgir como uma possibilidade de entretenimento, “tudo estava no início naquela época, e a mídia dava muita atenção para qualquer coisa que estivesse na rede. Então, quando você tinha coisas inovadoras como quadrinhos animados, automaticamente, eles ficavam populares”. Os Combo Rangers acabaram virando revista em quadrinhos. Houve quinze edições publicadas pela JBC em 2000 e mais dez volumes lançados pela Panini. Com a série de humor, Yabu ganhou o prêmio HQmix. As premiações, porém, não vieram tão cedo, as primeiras edições foram um baque nas expectativas do autor, que teve que aprender muito sobre as publicações, o mercado impresso e a como conquistar os leitores. “Quando eu lancei a revista, pela boa recepção na rede, imaginei que iria vender uns dez mil exemplares e ela vendeu 10% disso. Para mim foi um susto muito grande, foi um choque na minha ingenuidade, mas isso acabou sendo muito bom.” Yabu começou a pesquisar mais sobre seu público-alvo, e a desconstruir preconceitos. “A revista atingia muita gente de periferia porque era bem baratinha, custava menos de dois reais, e para muita gente das áreas pobres era a única opção em quadrinhos.” O contato com os leitores de sua primeira publicação se deu por cartas – correspondências que ele recebe até hoje falando da paixão de infância pelos Combo Rangers. “Começaram a chegar cartinhas escritas à mão em folha de caderno até, e foi muito bacana, muito enobrecedor.” O autor passou a ter contato com realidades que nunca pensara conhecer, um caso é o que mais o impressiona até hoje: “eu cheguei a receber carta de índios, eu jamais tinha imaginado que liam minhas histórias e que por alguma razão iria ter algum contato com eles”. Hoje, quando pensa seus trabalhos, além de todo o estudo sobre o público, Yabu tem uma ideia clara: “aprendi e tenho bem sedimentado em mim que a pessoa da periferia não gosta do mangá da periferia ou do desenho da periferia, ela gosta das mesmas coisas que a criança de classe média, classe média-alta gosta. Se não tem TV a cabo eles têm TV a gato, usam internet pela lan house ou pelo celular, que muitos têm”.
Leitor de quadrinhos
Com um irmão mais novo publicitário, e uma irmã mais velha dentista, Yabu foi o único filho que se ligou aos livros. Não foi, porém, por falta de incentivo que as obras não foram sucesso absoluto na família: seus pais eram professores e, por isso, recebiam muitos exemplares em casa. Na infância, quando tinha entre oito e doze anos, Yabu definiu
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alguns gostos específicos, como as histórias em quadrinhos. “Mesmo com outras obras em casa, eu preferia as revistinhas das bancas de jornal, Turma da Mônica, e tudo o que tivesse da Disney, da Marvel...”. Além das HQs, ele se apaixonou pelos livros da Série Vaga-Lume, da editora Ática, “eu lia todos, absolutamente, todos! Chegou um determinado ponto da minha infância que eu tinha uns cinquenta títulos da série. Eles lançavam e eu comprava tudo o que saia”. Já na adolescência, Yabu começou a ler outros autores e a se interessar por temas específicos – mas sempre guiado pelos quadrinhos. “Eu parti para a literatura adulta por meio de livros do inglês Neil Gaiman, o primeiro foi a HQ Sandman.” A série que chegou a setenta e cinco volumes, conta a história da figura mitológica que lhe dá nome, também conhecida como Morpheus, que guia o mundo dos sonhos. Nessa época, Yabu estava com catorze anos e, inspirado pelos temas sombrios e misteriosos de Gaiman, partiu para as leituras que o autor tinha como referência, assim, conheceu as obras de Edgar Alan Poe e de H. P. Lovecraft. As histórias de suspense, porém, não foram levadas da vida pessoal à profissional com a mesma força das HQs. No caso específico dos mangás, quadrinhos com traços de inspiração japonesa, que são toques característicos dos desenhos do autor, eles não fizeram parte da adolescência de Yabu. “Por incrível que pareça, eu não sou muito ligado a essas histórias. Isso até causa revolta entre os meus leitores quando eu conto.” Sua justificativa é que poucos existiam no Brasil na sua juventude, era, inclusive, um grande evento para os fissurados por histórias em quadrinhos quando um novo chegava. “As pessoas comentavam empolgadas: ‘olha, saiu um mangá!’.” Yabu foi se aproximar definitivamente das histórias japonesas depois de crescido, quando planejava criar os Combo Rangers. “Eu comecei a ler com mais afinco nessa época, buscando algumas referências para os meus quadrinhos.” Por mais que tenha começado a carreira com os desenhos, ele não se considera um bom ilustrador, “meu traço era bem ruim no começo, e hoje eu ainda não considero ótimo. Acho que eu me viro”. Sua predileção, na verdade, é escrever: “eu não sou um grande desenhista. Quando eu comecei, não tinha quem desenhasse para mim, então, resolvi fazer eu mesmo. Porém, acho que a minha veia é mais para contar histórias, é o que eu sempre quis fazer, escrever”. Ele conseguiu e não pretende parar tão cedo: “eu já criei algumas histórias, e estou sempre pensando em novas”.
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Nelson Cruz Prosa de mineiro
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entado em uma cadeira no saguão do hotel, com pilhas dos livros que escreveu e ilustrou sobre a mesa, Nelson Cruz tem um jeito mineiro, calmo e proseador. Enquanto fala sobre suas obras, ele folheia uma por uma como se fossem cartas antigas e queridas, explicando cada ilustração e permitindo silêncio o suficiente entre elas para que seja possível apreciar as pinturas. Nascido em Belo Horizonte, o ilustrador, ganhador de prêmios como o Jabuti, começou a desenhar com cinco anos de idade. “Eu lembro que via os desenhos de livros didáticos e ficava encantado com o fato de ter sido a mão de alguém que criou aquilo. Então, eu procurava reproduzir o que a mão de alguém tinha feito (risos) e dava certo. Assim, eu acabei me apaixonando por essa possibilidade.” Ele começou a ter aulas de pintura dez anos mais tarde, quando uma amiga da mãe, impressionada com seus desenhos, conseguiu para ele uma vaga no ateliê de arte de Esthergilda Menicucci. “Ela me ensinou a linguagem das cores, e eu comecei a aplicá-las aos meus desenhos.” Assim, ele decidiu tornar-se artista plástico, e aos dezenove anos expôs seus trabalhos na galeria da professora: “não tinha um tema único, eu adorava cubismo e as minhas primeiras pinturas tiveram influência disso”. O início do trabalho com desenhos aconteceu em periódicos, como o jornal Diário da Tarde. Foi com a experiência desse emprego que Nelson acredita ter se tornado realmente ilustrador. A rotina era pesada, quase cronometrada: ele chegava às seis da manhã, e até dez ou onze horas, já havia se informado sobre grande parte do conteúdo. “Lia as matérias de política, cultura, economia. Lido, interpretado, tido a ideia, e executado, às nove horas da noite, os diagramadores chegavam para formatar. O jornal precisava estar na gráfica à meia noite, para sair de lá antes das cinco horas da manhã rumo às bancas”. Cansado da rotina corrida do jornal, depois de cinco anos, ele decidiu se aventurar como autor e ilustrador, em 1994. “Eu procurava ao máximo ilustrar as matérias com imagens sem usar texto, porque todo o material já era cheio de texto. Eu optava por uma comunicação imagética. Quando achei que era hora de mudar de direção, comecei a transformar aquela ideia de resumir tudo em uma só imagem, e criar várias delas, como uma sequência, uma narrativa. Ou seja, de fazer livros sem texto.” Nelson saiu do jornal após aprovar um projeto de três obras no formato em que imaginara na editora Paulinas – o que garantiu a ele seis meses de trabalho como freelancer. “Fui autor e ilustrador dos livros. Um se chamava Leonardo, e era a breve história de Leonardo da Vinci; o segundo foi Mateus, sobre um garoto que está brincando na rua quando se depara com um disco voador. O último foi Noel, uma metáfora sobre
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Noé.” Com os projetos aprovados, ele supôs que, naquele período, conseguiria elaborar outras histórias e seguir na área. E conseguiu.
Nelson autor
Conforme escrevia seus livros, a ideia que tinha de si enquanto autor para adultos também se modificava. “Eu conto histórias, seja em imagens ou só com texto. Então, eu levo isso comigo: eu tenho que contar algo que me convença como adulto ou como criança.” Hoje em dia, Nelson confessa que acha muito complicado definir uma classificação etária para suas obras, então, deixa esse trabalho para seu editor. Exemplifica apontando um de seus livros: “este aqui, que se chama A árvore do Brasil, é a historia de uma paisagem. Para que idade é isso? Tem um grau de informação aqui que uma criança domina desde que ela goste de desenhos, já o adulto vai encontrar outras coisas, como informações históricas”. Nelson, no entanto, concede que algumas de suas histórias sejam mesmo difíceis para crianças, por conterem muitas metáforas e referências a poetas ou à literatura brasileira – caso dos livros Leonardo e A máquina do poeta. Nesse caso, o ilustrador acha que a leitura fluiria melhor com um adulto ao lado para contá-la ou explicá-la. “É que às vezes se necessita de um nível de informação que a criança não tem. Por exemplo, esse livro do Leonardo, a gente tem que explicar quem foi ele. A partir desse momento, adulto e criança se encontram. Eu maltrato um pouco a criança, mas chamo o adulto para o livro de imagens.” A transição do jornal para os livros autorais também mudou seu ritmo de vida. Hoje, Nelson produz em casa ao lado da esposa, a também ilustradora, Marilda Castanha, e juntos eles dosam a carga de trabalho. “Todos os dias, às nove horas da manhã, eu e Marilda entramos no ateliê. As crianças, a Cecília, de dez anos e o Nino, de oito, chegam atrás, para fazer o dever de casa. Na parte da manhã nós trabalhamos o que for possível, mas a prioridade é auxiliá-los nas tarefas e prepará-los para ir ao colégio.” Nelson comenta que só depois de os pequenos almoçarem e irem para a escola, que ele e Marilda começam a trabalhar a sério: É o intervalo exato entre duas e seis da tarde – quando eles voltam para casa. Nelson guarda ainda algumas horas da sua madrugada para escrever – atividade que confessa ter dificuldade em executar, principalmente durante a balbúrdia do dia. “Escrever para mim é algo muito complicado, trabalhar as palavras, a narrativa é difícil. Em estilo eu nem penso, porque não me enxergo como escritor, eu me vejo como autor. Escritor para mim é Vinicius de Morais, Carlos Drummond de Andrade, esses caras que você consegue identificar ao ler uma frase.” Ele comenta, porém, que não consegue abdicar da palavra totalmente em suas obras, porque
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há histórias em que não pode contar apenas com a imagem. Com dificuldades ou não, foi com dezoito laudas de escrita que ganhou o prêmio Jabuti, em 2010, pelo livro Os herdeiros do lobo. Quando perguntado sobre quais ilustradores mais inspiram sua arte, Nelson deixa a modéstia de lado e com um sorriso mineiro diz: “vou ser sincero, a ilustradora que me inspira, eu me casei com ela”. Marilda é seu oposto quando o assunto é pintura. A ilustração dela é feita a partir de manchas de cor que, sobrepostas, traduzem a imagem. Foi a admiração por esse estilo artístico que o levou a conhecê-la: Estão casados há vinte anos. A produção da esposa o encanta, porque ele só consegue começar o desenho a partir de traçados e linhas – o que não os torna menos trabalhosos. Todo o processo de pintura de Nelson é feito à mão. “O que eu desenvolvi nesses anos todos de dedicação à arte enquanto profissão eu não conseguiria trocar pelo virtual. Acho que o trabalho final me gratifica artesanalmente: eu gosto de ver minha mão chegando a resultados, aquilo vindo, surgindo do nada, escoando da mão e brotando no papel. Eu ainda tenho esse tipo de paixão.” Os filhos gostam muito de desenhar, mas como leitores ainda preferem as ilustrações da Turma da Mônica, de Mauricio de Sousa, aos trabalhos dos pais. “Ler é um hábito na nossa casa e eles estão se apaixonando aos poucos. Isso é bacana, tem que ser estimulado, ou então, as novas tecnologias capturam a alma dos filhos e eles não voltam nunca mais”, aterroriza Nelson. Ele admite que figuras em movimento, luzes e sons são mais interessantes do que parar para ler, “mas só até que você descobrir o valor do que está dito em uma frase, os mundos que se pode descobrir. Os filmes de hoje são cativantes, envolventes de tal maneira que se não cuidarmos em estabelecer a leitura, os filhos não serão leitores, só lerão na tela do computador – e a qualidade de se ler ali é horrível.”
Livros que vieram da vida
Grande parte das obras de Nelson surge de suas experiências. Por esse motivo, algumas histórias demoraram anos ficando prontas,. Um exemplo é o livro Os herdeiros do lobo, em que o personagem central é inspirado no avô adotivo do ilustrador, um italiano imigrante, chamado Giovanni Ferdinando, que foi parar em Ponte Nova, interior de Minas Gerais, onde naturalizou-se José Fernandes. Nas imagens da obra, Nelson mostra desde a chegada do avô ao Brasil até as aventuras de uma viagem, vagando pelas montanhas da Serra da Mantiqueira. Um de seus livros demorou uma década, A árvore do Brasil. A obra, que ele folheia lentamente, retrata uma selva, com a árvore do título como elemento central de uma série de pinturas que ocupa páginas
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duplas. A cada virada de folha, o tempo salta trinta anos, mostrando as modificações na paisagem. O livro, para Nelson, é emblemático sobre o seu processo de criação. “Eu tive a primeira vontade de criá-lo em 1994, quando vi um trabalho do ilustrador norueguês Jörg Müller. Porém, levei treze anos para encontrar um tema para adaptar aquela paixão que tive pela ilustração dele em uma ideia minha.” A imagem em questão mostrava uma cidade vista de cima, no começo do século, e retratada do mesmo ângulo vinte anos depois. Nelson ficou eletrizado por fazer uma releitura usando paisagem e história brasileiras, porém, por mais que tentasse não encontrava a peça central da ilustração. “Um dia quando ia de Santa Luzia para Belo Horizonte, eu passei em frente a uma árvore imensa na beira da estrada e a história surgiu, assim, em vinte minutos. Era a parte que estava faltando”, conta.
Livros que vieram de livros
Às vezes, um poema, um texto ou mesmo uma frase, lido em algum de seus muitos livros, acaba cobrando uma interpretação própria. “Vinicius de Moraes, Drummond, Augusto dos Anjos... Contos também. Algumas das minhas histórias nascem de certas frases”. Foi o caso do livro Alice no telhado, vindo de um trecho de Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll. “Eu não me lembro agora, mas era uma frase que estava ali na segunda página do livro, e me deu a ideia de criar essa historia.” Já a obra Dirceu e Marília nasceu da paixão de Nelson pela poesia de Tomas Antonio Gongaza. O primeiro contato com os versos do português aconteceu quando o ilustrador tinha entre quinze e dezesseis anos. “Eu fiz esse livro porque a poesia estava na minha mente me cobrando alguma coisa: ‘vai me deixar aqui flutuando na sua cabeça a vida inteira?’.” A obra acabou se desdobrando em uma série, com histórias de amor na inconfidência mineira: além de Dirceu e Marília, foram lançados Chica e João, e Bárbara e Alvarenga, todos editados pela Cosac Naify. As imagens da trilogia nasceram após uma pesquisa de campo que o autor fez em 1999 nas cidades do ciclo do ouro mineiro, a bordo de seu fiel Fusca de dezenove anos – apelidado Pudim, por causa da cor creme. Os ângulos e a luz usados na série foram influenciados por sua paixão por cinema. “Eu sempre gostei de imagens amplas. Eu lembro que, nos anos 1970, eu me encantei pelos filmes de Ingmar Bergman, o que mais me impressionava, além da profundidade do tema que ele trabalhava, eram a luz que procurava dar às cenas e a composição da fotografia.” Nelson estudou aquela fotografia e se inspirou por uma série de detalhes, desde o uso de imagens amplas até as cenas inicial e final. “A história teria que começar com uma grande ilustração e terminar com outra,
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isso eu determinei e segui. A distorção aparece na fotografia porque eu procurei aplicar algumas perspectivas. Então, se eu tinha que relatar uma cena, eu deveria fazer vários estudos de onde é que ela poderia ser melhor desenhada, melhor vista. Às vezes, o mais importante não era a cena em si, mas a ambientação dela”, explica com o livro em mãos. Nelson elaboraria ainda mais livros sobre poetas: entre eles, Carlos Drummond de Andrade recebe respeito e carinho especiais do ilustrador. Um de seus títulos trata do Drummond de 1926 – época em que o poeta vai morar em Itabira, passando por uma crise existencial. Nelson fez uma história baseada no poema A Máquina do Mundo: “eu fiz uma narrativa em que havia um Drummond em conflito, e no texto há uma relação entre as correspondências do poeta com Mário de Andrade. Nessa época ele chegava a falar em suicídio”. O livro tem como base dois poemas: No Meio do Caminho e A Flor e a Náusea. Nelson une a narrativa da ilustração às cartas e aos versos para compor a história. “Essa correspondência é feita com frases que eu retirei de várias cartas, são reais. Eu fiz uma organização dos textos de forma que cheguei aonde queria, que é exatamente aquela vontade do Mário de trazer o Drummond para o ânimo das coisas.” Na parte final, sem diálogos, Nelson leva o poeta a saltar de um precipício, e mergulhar na própria sombra. “Então, aqui eu fantasio: ele entra em um mundo que eu interpreto tendo como referência A Máquina do Mundo, mas sem tentar ilustrar o poema. É a imersão em si mesmo.” Foi também a bordo de Pudim que Nelson fez a pesquisa para seu livro No longe dos Gerais, baseado em Grande sertão: Veredas. “Com meu fusquinha, atravessei as estradas lá do sertão, fui a algumas fazendas por onde Guimarães Rosa passou. Desenhei ao vivo e fotografei a região, as propriedades.” Apontando uma das ilustrações do livro, ele continua: “aqui, por exemplo, é um arraial que se chama Buritizinho, onde, na época em que passei, havia só quatro famílias e uma igreja, que retratei. O Rosa entrou, ajoelhou-se e rezou dentro do local – mas ele não fala isso em seus relatos pessoais, no Diário da Boiada”. Quem certificou Nelson do acontecimento foi Tião Leite, um dos vaqueiros daquela travessia, que tinha dezessete anos de idade no período em que guiou Rosa. Nelson foi também até o Morro da Garça, cenário de O Recado Do Morro, um dos contos de Corpo de baile, de José Guimarães Rosa. A visita do ilustrador foi decidida depois de ouvir de Tião Leite que Rosa dormiu aos pés da montanha porque queria ver as lendárias bolas de fogo que assombram a região. A excursão de Rosa não deu em nada, mas a história de Tião animou Nelson a visitar o lugar. Lá, ele ouviu três relatos de moradores locais que garantiam ter visto as tais bolas de fogo. “Eu dei carona para um garoto que me contou, sem eu perguntar nada, que ele tinha visto. O sobrinho da dona Zoé, proprietária da pensão em que fi-
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quei, também contou que viu. A mulher do prefeito também...” Nelson decidiu participar de uma excursão escolar que ia ao pico da montanha: infelizmente, teve a mesma sorte de Guimarães.
Relacionamento com os leitores
Desde 2010, Nelson tem participado de um projeto do SESI chamado Literatura Viva, visitando diversas escolas da rede para falar sobre arte, ilustração, leitura e livros. Para aproximar os leitores, ele tem algumas estratégias: “eu notei que sempre apareciam perguntas curiosas, a maioria interessada em saber, não sobre meus livros, mas sobre como é o meu dia a dia. Por isso, eu montei uma apresentação, para mostrar para eles que eu moro em uma casa, tenho meu ateliê lá dentro, vivo com dois filhos e uma esposa, que também é ilustradora. Ai, eu mostro três ou quatro fotos da minha casa e eu lá de bermuda, sentado. É aquilo de descer do pedestal que eles nos colocam”. A recepção, segundo ele, é um susto para os dois lados: o do autor e o de seu público-leitor. “Uma situação é elaborar uma história dentro do ateliê, discutir com o editor e apostar que estamos raciocinando corretamente. Outra coisa é o que o leitor entende disso tudo. Então são duas experiências que geram expectativas: eles têm uma expectativa em relação a mim e eu tenho uma em relação a eles.” Para surpreender, Nelson recheia suas apresentações com fotos de aventuras a bordo de Pudim – as imagens fazem grande sucesso com as crianças. Em certos casos, quem é pego de surpresa é o próprio ilustrador. “Eu tive uma experiência singular no Rio de Janeiro, com uma garota de oito anos. Fiz uma oficina com alguns alunos de uma escola pública da favela da Rocinha com o livro do Leonardo da Vinci. Eu perguntei como achavam que seria a Mona Lisa se ela fosse brasileira, e pedi para que desenhassem.” Ao fim, alguns diziam que ela seria dona de casa, seria barriguda e andaria de chinelos. Teve ainda quem a desenhou com uma trouxa de roupa na cabeça, outro na fila do ônibus... Entre tantas interpretações, uma garotinha mostrou para Nelson uma folha com um prato, uma faca e um garfo desenhados no centro. “Eu perguntei para ela onde estava a Mona Lisa. Ela me respondeu: “ela veio, comeu uma feijoada e saiu correndo. O senhor não está vendo?’.” Nelson se divertiu tanto com a brincadeira da menina que, ao final da apresentação, reuniu os desenhos e mostrou, pedindo aplausos – deixou o da garotinha por último. A exposição terminou em gargalhadas. “Eu fiquei muito feliz de ter vivido esse dia. Quando a gente encontra um trabalho bem feito em uma escola é gratificante. É necessário que haja esse tipo de troca, porque autor sem público e sem diálogo não existe.”
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JĂşlia Schwarcz Na companhia de livros
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úlia tem o cabelo cheio, escuro e encaracolado, caindo um pouco acima dos ombros. Os cachos contornam um rosto de semblante calmo, que não diz ter puxado do pai ou da mãe. Mais do que a aparência física, Júlia herdou deles o gosto pela literatura. Luiz e Lilia Schwarcz cuidam de sua própria editora há vinte e seis anos, e é lá que Júlia trabalha como coordenadora do selo infantil Companhia das Letrinhas. A infância da filha e os primeiros anos da Companhia das Letras se passaram juntos, quando Luiz deixou o trabalho na Brasiliense e abriu sua própria editora, aos trinta anos de idade. “Eu fui cercada de livros desde que nasci. Meu pai vivia para a Companhia, a vida dele era aquilo. Então, aos fins de semana ele me levava às livrarias, e ficava sondando se os livros da editora estavam vendendo bem”, recorda Júlia. Envolvidos com o trabalho, os pais procuravam oportunidades para que a filha interagisse também. Ela se lembra de levarem algumas provas de livros e capas, e pedirem sua ajuda para escolher. A mãe traduzia obras e a incentivava colocando o nome da menina nos créditos: “o primeiro, eu devia ter uns oito anos e estar sentada em uma cadeira ao lado dela só olhando, e mesmo assim ela escreveu ‘tradução Lilia e Júlia’”. Certa vez, quando tinha dez anos, a mãe pediu que desse seu parecer sobre o livro Liga-desliga, de Camila Franco e Marcelo Pires, um dos primeiros a sair com o selo infantil. “Eu fui escrever o comentário e antes copiei o texto do livro inteiro, eu achava que precisava copiar tudo!”, Júlia se diverte contando.
Primeiras leituras
Criada em contato com livros, ela acha impossível ter certeza de qual foi o primeiro que leu. Júlia consegue, porém, citar alguns importantes em sua infância, caso de Olga, de Fernando Morais. “Eu e a minha família sempre passávamos as férias no litoral e, uma vez, meu pai levou o livro e disse que leria junto comigo. Eu tinha onze anos, e é uma biografia enorme, densa, mas nós conseguimos terminar.” No caso dos infantis e juvenis, Júlia se recorda de Marcelo martelo marmelo, de Ruth Rocha, das coleções do Pequeno Vampiro, de Angela Sommer-Bodenburg, e das histórias da turma da Berenice e do Gordo, de João Carlos Marinho. Com tantos livros à disposição desde cedo, ela nunca foi uma frequentadora assídua de bibliotecas. Com exceção do acervo de casa, em especial os livros da mãe, com assuntos como história e antropologia. “Ela ainda tem zilhões, então eu acabava consultando em casa mesmo.” Atualmente, quando Júlia sai por livrarias é para escolher obras para as filhas Maria Isabel, de cinco anos, e Alice, de três. “Eu compro para elas e para mim, eu adoro livros infantis. Outro dia, a minha mãe veio em casa
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e eu comecei a mostrar alguns para ela. Fui escolhendo e montei uma pilha para ela ler com as meninas. Depois do quinto livro, uma já estava de ponta cabeça, a outra já estava fazendo sei lá o quê, enquanto eu e minha mãe continuávamos entretidas na leitura”, conta.
Formação
Seja por predileção ou por costume, Júlia se ligou aos livros não só por prazer, mas profissionalmente. O que poderia parecer um caminho óbvio, dado que a família é proprietária de uma editora, não foi uma opção aceita por ela sem resistência. “Eu não me imaginava trabalhando com meus pais. Eu achava que poderia ser a escolha pelo mais fácil, pensava: ‘tudo bem, é uma coisa super legal que eu posso fazer, mas não é exatamente o que eu quero da minha vida’.” Antes de entrar na faculdade, Júlia já havia lido alguns livros da biblioteca da mãe, e optou pelo curso de história. Logo no início percebeu que não se identificava com o trabalho na área, mas ainda assim se graduou. No mesmo período passou a frequentar a editora, como estagiária, para ler os originais de livros que chegavam pelo correio para a Companhia das Letrinhas. “Isso faz uns catorze anos. Eu ficava meio período na editora. Não foi contínuo, mas depois de um tempo, virei assistente.” Ela ficou no cargo de auxiliar por oito anos, depois disso, assumiu o posto de editora do selo infantil – função que já ocupa há quatro anos. “Eu fui me envolvendo cada vez mais, fui gostando e percebi que era este o meu trabalho.” Ela ressalta que, ainda que a editora seja da família, não trabalha diretamente com os pais, e vê isso como algo saudável. “Minha mãe sempre deu aulas e, por isso, nunca pode ficar o tempo todo aqui. E meu pai não trabalha na mesma área que a minha.”
Edição
O início da Companhia das Letrinhas foi acompanhado por Lilia. Na época, ela cuidava da linha de não ficção da editora. “Sempre que minha mãe ia a feiras de livros com meu pai, ela trazia as obras para crianças. É uma coisa de que ela sempre gostou”, comenta Júlia. A criação do selo aconteceu em 1992, quando perceberam que a Companhia já tinha um nome consolidado no mercado e queriam apostar em outro seguimento, publicando livros dedicados aos filhos dos leitores. Hoje, a Letrinhas também está fixada no mercado e, por isso, a quantidade de propostas que recebem é grande. “Vem muita coisa, por isso, todo mundo aqui está lendo o tempo todo”, relata. O trabalho de seleção, do qual Júlia também participa, é diferente para livros nacionais e
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estrangeiros. No caso destes últimos, a maioria das editoras de fora do país conta com agentes literários e equipes responsáveis pela venda de direitos dos livros, o que gera muitas propostas aqui no Brasil. Os títulos já chegam fechados, não podem ser alterados em texto ou projeto gráfico, e a equipe de publicação tem que optar entre traduzir e publicar exatamente como estão ou descartá-los. Por isso, uma das primeiras etapas da triagem é ler a sinopse e checar as ilustrações, avaliando se podem se adequar à linha da editora. As obras nacionais geralmente são pensadas junto com os autores, “às vezes achamos a ideia do projeto legal, mas certos trechos já não vemos como o melhor caminho. Conversamos com o escritor e se ele topa reescrever essas partes nós seguimos com a edição”. Depois que a história está fechada, checam o texto desde a gramática, atentando para erros e pastéis (as letras trocadas quando se digita uma palavra), até a padronização de acordo com o manual de estilo. O trabalho na edição dos livros infantis tem uma etapa a mais do que a maioria das obras para adulto: a ilustração. Nesse processo, Júlia se junta a uma editora de arte e pensa quem seria o ilustrador ideal para cada história, dependendo do que espera de cada uma delas. Além disso, planeja o formato e os custos: “em geral, como eu leio antes, digo o que achei, qual seria o público. Nós ficamos nos perguntando, ‘é para escola? Então, tem que ser mais barato. É para livraria? Então, pode ser capa dura. Quantas páginas vai ter? Se for muito ilustrado, ele vai ficar maior...’”.
Depois de impresso
Com o texto finalizado, ainda é tarefa de Júlia escrever os aparatos do livro – quarta-capa, orelha, releases para o folheto da editora e para o site. Essa etapa já é classificada como parte do cuidado com a publicidade da obra, que passa a ser um ponto importante depois da impressão. “É uma função essencial do trabalho do editor, depois de pronto, pensar a promoção do título. Porque a editora é meio mãe de cada livro, é como um filho que você tem que cuidar.” Para se organizar na rotina movimentada, Júlia faz listinhas de tarefa: “eu escrevo tudo o que ficou pela metade, que ainda está faltando, checo e depois vou riscando”. Ela adotou esse processo depois de infelizes vezes em que o computador repentinamente desligou. “Eu ficava com zilhões de janelas abertas na tela, agora eu anoto em papel. E-mail também é uma coisa que, se eu não respondo na hora, eles se perdem”, comenta. O resultado de todo o processo, da escolha das obras à divulgação, aparece nos números: cinco livros infantis lançados por mês e dois ou três juvenis. No selo adulto, a Companhia edita cerca de trinta livros
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novos no mesmo período. O processo de publicação não acontece em períodos alternados, todas as etapas são simultâneas. “Tem os livros que estamos lendo, os já selecionados, os que estão no meio do processo de revisão, os que já foram para o mercado e a gente precisa lutar por eles quando não estão vendendo bem. São muitos ao mesmo tempo.”
O preconceito
Por mais que esteja crescendo no mercado e aumentando em catálogo, a área de livros infantis ainda sofre desdém. Mesmo dentro da editora, Júlia diz ter enfrentado preconceito nas reuniões com o departamento comercial. “Nós éramos os últimos a falar, quando ninguém mais estava com paciência de ouvir.” Ela confirma que ficava muito brava com isso e, para solucionar, passaram a fazer reuniões separadas. Nem sempre o preconceito é resultado de uma ideia negativa sobre os livros. Em alguns casos, é reflexo de uma noção difundida de que são simplesmente historinhas para criança. “Eu recebo muita proposta com originais que o autor decidiu escrever porque inventou contos de ninar para os filhos. As pessoas acham que é só sentar e escrever uma narrativa qualquer, que seja agradável, mas não é assim.” Os livros para criança requerem o mesmo cuidado com a escrita e a forma que a literatura para adultos. Júlia destaca que a grande diferença entre o livro escrito e a história contada é a existência da norma culta, já que a obra é o primeiro contato dos pequenos com a gramática. “Quando você lê para uma criança, ela ouve e vai se acostumando, aprendendo, assimilando a forma correta de falar, sem erros, ou coloquialidades. Por isso, é superimportante que a história seja elaborada literariamente falando.” Saber criar uma narrativa para crianças levando em conta aspectos literários que lhe confiram qualidade não é algo simples de se realizar. Júlia vê isso no dia a dia da editora: além das histórias para ninar que recebem, vê problemas na produção quando convidam autores de outras áreas para escrever livros para os pequenos. “Nós até tentamos chamar escritores de literatura adulta para criar algo infantil, mas eles têm muita dificuldade, porque é complicado achar o tom, saber qual é a linguagem que as crianças gostam e entendem.”
Infantil e juvenil
A classificação etária das obras, segundo Júlia, já foi um dilema na editora – que contava apenas com a Cia. das Letras como selo intermediário entre a Letrinhas e a Companhia. “A Cia. começava com títulos para leitores de doze ou treze anos, que é uma idade que a Letrinhas ainda
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pega, e ia até os de vinte anos.” Contornando o problema, lançaram em 2012 o selo Editora Seguinte, destinado a adolescentes um pouco mais velhos, de catorze anos para frente, apostando em livros mais comerciais. A Companhia sempre optou por publicar o que Júlia classifica como autores mais literários, “e essas coisas do tipo série de vampiro nós não fazíamos. Mas, bem ou mal, tem muita gente que gosta, e é um faixa do mercado que está gigantesca”. Com a venda dessas obras, a editora pretende financiar títulos cuja demanda é menor. “Nós precisamos desses livros que vendem muito para poder fazer uns mais cabeças, do tipo poesias do Chacal.” As obras para adolescentes são mais longas que as infantis, geralmente com mais de cem páginas. Assim, aumentando o volume de leitura, algumas vezes, Júlia e a equipe recorrem a pareceristas – que analisam criticamente as obras, recomendando ou não a publicação. Além disso, com o novo selo, separam os temas e diminuem a carga de leitura em cada setor: “estamos dividindo os livros entre nós, da Letrinhas, e os que fazem o selo adulto”.
Os temas
A separação por faixa etária leva em conta a quantidade de texto, as recomendações das escolas e as figuras da narrativa. “Às vezes, a idade do jornalista bate com a do leitor. Se a história é de um menino de seis anos, em geral, ele está falando com uma criança de seis anos”, explica. Os temas também influenciam o apelo que o livro terá junto a determinadas idades – com exceção de alguns que viram sucesso com quase todos os públicos. Certos assuntos que fazem as crianças caírem na risada são sucesso de venda. “Temas como cocô, xixi e pum são são batata!”, comenta Júlia rindo. “É impressionante, tem algumas fases em que eles amam falar dessas coisas e morrem de rir.” Entre os livros lançados pela editora estão os de Blandina Franco, Quem soltou o Pum e Soltei o Pum na escola, que contam a história de um cachorrinho chamado Pum. “O menino que é dono do cão fica falando: ‘o meu melhor amigo é o Pum’, ‘Nada me deixa mais feliz do que soltar o Pum’. Aí, ele conta que às vezes não aguenta segurar o Pum, e ele escapa. É muito engraçado, não é chulo, é legal, bonitinho.” Alguns seres típicos da infância que ajudam as crianças a lidarem com o medo, como monstros e dinossauros, além dos contos de fada, também têm apelo entre elas. “Clássicos e coletâneas, como obras dos Irmãos Grimm e de Hans Christian Andersen agradam sempre.” Além do sucesso entre os pequenos, a editora aposta em temas que possam ser escolhidos para o trabalho em sala de aula e, por isso, têm maiores chances de venda.
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Pela importância da adoção nas escolas, há um departamento na Companhia que cuida das relações com os professores, principalmente os de escolas particulares – já que no ensino público é o governo quem compra e distribui os livros. “Temos um mailing enorme de docentes para quem mandamos os folhetinhos e as novidades da editora. Às vezes, sai um livro novo e mandamos para uns cinquenta professores que sabemos que vão gostar, sempre com uma cartinha.”
O boom infantil
Publicações feitas para a demanda das escolas tomaram força após um plano de governo da gestão de Fernando Henrique Cardoso, quando a editora fez uma pequena coleção para entregar. “Tirávamos material dos nossos livros e elaborávamos exemplares para eles, eram mais simples, vinham até grampeados. O projeto chamava-se Literatura em Minha Casa.” Depois disso, mudaram os governantes, mas a ideia se manteve, e hoje, se consolidou com o PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola). O plano, que promove a compra livros para as escolas públicas do país, faz a vendagem chegar a cem mil exemplares – livros infantis sem adoção na escola têm tiragens de três mil cópias, que ainda assim demoram a esgotar, segundo Júlia. Nos últimos dez anos, o mercado de livros infantis cresceu tanto que muitos passaram a reconhecer o período como boom da literatura infantil. “Em 2011, eu respondi a umas trinta entrevistas sobre o tal boom e é inegável a força dos planos de governo nisso.” Atualmente, segundo Júlia, os livros dependem totalmente da adoção escolar mesmo para venda nas livrarias, porque quando não há demanda do governo a tiragem pequena faz com que custem mais caro na impressão, o que eleva o preço nas lojas também. “Isso acontece porque na livraria vende-se super pouco, então, as tiragens são baixas. Se fossem mais altas, proporcionalmente, os livros ficariam muito mais baratos. Mas, como se lê pouco, compram-se poucos livros, o número de exemplares impressos é pequeno e os preços são altos – é uma bola de neve.” Com a institucionalização do PNBE, surgiram planos menores inspirados nele, ligados, por exemplo, a prefeituras. Com isso, os selos infantis dentro das editoras cresceram em faturamento e “aumentaram sua participação na pizza de lucros”. Isso mudou o jeito de se pensar os livros, porque desde o projeto já é levada em conta a possibilidade de serem aceitos em escolas públicas. Além disso, a adoção desse tipo de programa fortaleceu o discurso de que a leitura é importante na formação. “Essa ideia sempre existiu, mas vem sendo reforçada. Os pais passaram a considerar um programa levar as crianças nas livrarias – que até cinco
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anos atrás não tinham esses espaços infantis coloridos, com mesinhas para eles sentarem e folhearem os livros, com contação de histórias... Acabou se tornando um programa de férias.” Com mais abertura do mercado para as obras, novos autores e ilustradores começam a aparecer. Na visão de Júlia, estes últimos foram os que mais se beneficiaram com a valorização da área. “O reconhecimento da importância da parte gráfica para os livros só surgiu há poucos anos. Quando eu comecei a trabalhar aqui, a gente contratava um ilustrador para certo texto, ele só recebia um fixo, não tinha ligação com a vida do livro”, conta. Depois do boom, passou-se a defender que as ilustrações tivessem mais importância na obra, com espaço para contar uma narrativa paralela à escrita e nem sempre atrelada a ela, como uma legenda. O espaço e a liberdade de criação aumentaram a visibilidade dos ilustradores, e com isso muitos deles se tornaram autores também: “o Prêmio Jabuti foi entregue para três ilustradores-autores em 2010. Quando o projeto gráfico é pensado junto com a história é outra coisa”. No geral, quando ilustram obras de outros escritores, eles também têm participação nos direitos autorais do livro, caso a obra consiga um plano de governo. “Antes, eles recebiam quando entregavam as ilustrações prontas e acabou. Então, isso também foi um crescimento, os livros estão mais bonitos graficamente, mais bem acabados e caprichados.”
As compras de governo
Os planos divulgam seus modelos, lançam editais e então as editoras inscrevem seus livros para participarem da seleção. Há vários tipos de projeto, cada um com seu formato. Alguns, por exemplo, selecionam as obras do catálogo da editora. ”No caso do PNBE e da maior parte deles é assim: cada empresa pode inscrever quinze títulos de acordo com o público para o qual o livro se destina e de alguns critérios como local do crédito, do código de barras, do nome do tradutor etc.” Terminado o processo de escolha, que dura meses, tem início a negociação entre o departamento comercial das editoras e os responsáveis pelas compras. Júlia só tem elogios a fazer sobre os planos, “é totalmente positivo para empresas de publicação e para o país. É confiável, escolha é feita sempre de modo muito claro e correto, os livros são de qualidade mesmo, não tem lobby. Quer dizer, algumas editoras tentam fazer umas maracutaias, mas geralmente é um grupo selecionado que escolhe os livros”. Ela exemplifica citando uma equipe do departamento de literatura da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) que participa de seleções, lendo e comentando cada livro em avaliações que ficam disponíveis para as editoras.
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Os pontos mais altos da avaliação, na opinião de Júlia, são a transparência do processo, a valorização da literatura, e o uso de critérios válidos. “Eles falam, por exemplo, que os textos da quarta capa têm que ser dirigidos às crianças, as biografias também. Aquelas coisas mais burocráticas têm que ser facilitadas porque o livro precisa ser lido pela criança do começo ao fim.” A melhoria da qualidade dos livros que chegam à rede de ensino é em si um incentivo à leitura: “quanto mais as crianças tiverem acesso, mais elas vão querer ler. Qualquer uma que entra em contato com um bom livro gosta”. Os pequenos vivem no mundo da imaginação, da ficção, Júlia afirma que essa “é a linguagem deles. Eles aprendem através da fantasia, decodificam as coisas por meio dela e trabalham seus problemas assim”. Ela dá o exemplo de uma menina brincando de bonecas, que inventa histórias para os personagens com fatos que ela está vivendo realmente e os mistura com coisas mágicas. Pela experiência em sua casa, garante que quem convive com crianças sabe que elas querem ouvir histórias o tempo todo: “eu falo para as minhas filhas que elas acham que a mamãe é uma máquina de contar histórias! E ainda exigem que tenham bruxa”, brinca. Ao contrário das narrativas orais, o hábito da leitura não é tão recorrente porque muitas famílias não têm costume de ler. Para Júlia, as crianças “não veem os pais com livros e também não se interessam. Eles fazem tudo por imitação, então se virem os parentes lendo com prazer, vão querer fazer o mesmo, isso cria novos leitores”. E Júlia é a prova viva de que isso pode mesmo dar certo.
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Bia Reis
Do papel-jornal Ă s novas mĂdias
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ma criança devoradora de livros é a definição de Bia Reis para si mesma na infância. Hoje, aos trinta e cinco anos, ela mantém o gosto pela leitura e o ar da meninice. Seus cabelos castanhos escuros que caem sobre a testa em uma franjinha reta quase cobrem as sobrancelhas e não a deixam aparentar mais de vinte anos. O nariz empinado como o de Lúcia, a Narizinho das histórias de Lobato, lhe confere um semblante infantil, que somado a sua fala doce, com voz fina e vibrante, lembram uma mocinha empolgada contando sobre suas férias no primeiro dia de aula. A ligação com os livros, então, continua tão forte quanto na infância – agora, alimentada por literatura para adultos, obras relidas e novidades das prateleiras infanto-juvenis das livrarias. Beatriz dos Reis é jornalista e, por mais que as inclinações devessem leva-la à área literária, essa nunca foi parte da sua rotina diária. Seu trabalho oficial é na seção Vida de O Estado de S. Paulo, onde edita textos ligados a temas como saúde, educação e ciência. Ela não deixou de lado, porém, o gosto pelos livros infantis, e para produzir notícias sobre o assunto apostou em uma plataforma impensada anos atrás: o blog Estante de Letrinhas, que mantém vinculado ao portal do jornal. A produção de conteúdo é como um hobby para ela, mas mesmo sendo prazerosa, exige igual dedicação às funções do dia a dia no periódico. Como uma tarefa extra encaixada em sua rotina, a página só poderia ser mantida por alguém que, além do profissional, tem a literatura infantil como parte de sua vida pessoal. Felizmente, ela é um desses tipos: “eu cresci em uma família apaixonada por livros”. Nascida e criada na cidade de São Paulo, a maioria dos passeios de Bia aos fins de semana na infância terminava em alguma livraria ou loja de discos – geralmente dentro de algum shopping center. “Minha mãe sempre foi uma grande leitora, é até hoje. Já meu pai, além dos livros, era louco por vinis. Então, frequentávamos lugares que vendiam esses objetos”, relembra. Apesar da assiduidade em livrarias, as visitas a bibliotecas não são recordações muito vivas em sua memória, porque não eram usuais. Além do acervo da escola, nenhum outro ficava próximo de sua casa, assim, sua única lembrança de biblioteca é vaga, de uma com muitos quadrinhos a que a mãe a levou, na Vila Mariana. Irmã mais velha de três filhos, Bia não foi a única que se encantou pelos livros, “o do meio não é um leitor enlouquecido, mas gosta muito. Já a menor, é totalmente leitora. Eu me lembro da minha mãe ser chamada na escola, quando ela estava na sexta série, e a professora dizer: ‘Regina, a sua filha Mariana é uma graça, supereducada, uma aluna boa, não atrapalha a explicação, mas ela não presta atenção em aula nenhuma!’ Isso porque minha irmã sentava, abria o livro e ficava ali no cantinho lendo”. Como se a explicação para a atitude de Mariana
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pudesse estar em algo que corre pelo sangue da família, a história se repete com o filho mais velho de Bia, Tom. Ele é sempre aconselhado pela professora a não levar livros para o recreio – comportamento com o qual a jornalista já se diz acostumada. “Ele é muito agitado, tem energia, mas quando engata em uma leitura, fica. Eu acho bom porque quando alguma coisa é do interesse dele, ele foca.”
O blog
A criação de uma página online foi o modo que Bia encontrou para driblar as dificuldades de publicar notícias sobre literatura infantil nos veículos de imprensa. Com ela, conseguiu também um espaço onde não precisa optar entre boas histórias, ou ter tamanho fixo para suas notas. Profissionalmente, ela também aproveitou para se aventurar em um formato ainda não muito difundido nos grupos de mídia mais tradicionais. “Eu acho que estamos em uma transição. Não sabemos até quando, mas temos que nos formar para isso, porque o passaralho, as demissões em massa nas redações, mostra um pouco isso.” Bia escolheu a literatura infantil como tema central da página por ser algo com que, com certeza, não se sentiria incomodada em lidar, “precisava de um trabalho que eu gostasse muito e que não pensasse: ‘ah que saco, tenho que atualizar o blog, tenho que planejar o que vou fazer’”. A ideia, porém, não se concretizou rapidamente. O motivo, segundo Bia, é a resistência que ainda se encontra na redação quando se trata das novas mídias. “É algo muito difícil, principalmente para quem é totalmente do mundo impresso. Eu não sei como isso anda em outros lugares, mas no Estadão os blogs são quase como um trabalho voluntário. Não existe remuneração para eles.” Além desses obstáculos, as alterações no comando do site do jornal fizeram surgir pedidos de modificação no projeto de Bia – sugeriram, no início, que o conteúdo se encaixasse na página do Estadinho, o caderno infantil do periódico. A jornalista, porém, não concordou com a ideia, porque o objetivo era que seu público fosse formado de pais e professores, não de crianças. “Eu não podia trabalhar naquele espaço porque a linguagem é outra, o jeito de abordar é outro.” Já na gestão atual, fez a proposta novamente e foi aceita, no formato que gostaria de fazer: um blog independente no portal do Estadão, que estreou em maio de 2012. Depois de colocá-la no ar, a dificuldade de Bia é produzir conteúdo para alimentar a página, já que desde o começo da carreira de jornalista se dedicou às noticias da cidade, apurando matérias de temas bem distantes aos do blog. “Eu sempre cobri prefeitura, buraco, eleição de Celso Pitta. Então, a literatura infantil era totalmente outro
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mundo para mim.” O período em que mais se aproximou do assunto profissionalmente foi nos seis meses em que trabalhou na revista Crescer, da editora Globo, e, ainda assim, não diretamente com livros para crianças. Depois dessa curta experiência, foi para o Estado de S. Paulo como editora-assistente. Ela garante que não sofreu tanto quanto a maioria diz sofrer ao deixar a reportagem e ir para a edição. Além disso, o blog a deixa próxima da produção de matérias. Por não trabalhar diariamente com o assunto do blog e estar afastada das apurações, Bia tem um desafio maior do que o encontrado por grande parte dos blogueiros. “Muita gente que faz blog no jornal coloca sobras de apuração. Por exemplo, o cara que é repórter do caderno Metrópole apurou, escreveu a matéria e ainda sobrou um trecho legal, aí ele vai lá e coloca no blog. Eu tenho que sair do zero, porque o assunto da página é completamente diferente do que eu costumo trabalhar no impresso.” Além disso, Bia sente as barreiras da falta de conhecimento teórico sobre o tema na hora de produzir os textos, mas garante que está buscando se instruir: “procuro estudar e conhecer autores. É muito diferente ser leitora de ser escritora de um assunto”. Na página, a proposta de Bia é falar de diferentes temas que cercam a literatura e o incentivo à leitura para as crianças, dos lançamentos, eventos que envolvem os livros, à situação das livrarias e bibliotecas. Ela confessa que, por falta de tempo, o conteúdo acaba sendo majoritariamente sobre as novas obras que chegam ao mercado. Porém, garante que tem buscado vivenciar um pouco do circuito cultural nas horas vagas. “Eu fui à Biblioteca Mario de Andrade há uma tempinho e fiquei chocada, eles reformaram, ficou linda de morrer. Achei legal e resolvi levar meu filho mais velho que adora cinema para mostrar os livros mais antigos sobre filmes e não consegui porque a parte de artes é fechada aos fins de semana. Procurei literatura infantil e eram só duas estantes. É a principal biblioteca do estado, como pode? Duas estantes com um monte de livros repetidos!” Já no caso das livrarias, Bia afirma que tem se surpreendido positivamente. Os espaços para os livros infantis, quando era criança, eram pequenos, escondidos nos cantinhos, e hoje são grandes e vistosos. Chamam atenção pelo visual – com estantes coloridas, poltronas confortáveis e alguns lugares para leitura que até parecem brinquedos gigantes. Além disso, recebem eventos para crianças, “contações de histórias, atividades a partir do livro, lançamentos com músicas, comidinhas... tudo o que cerca os livros infantis cresceu, virou algo grande. E o mais legal é que os garotos ficam enlouquecidos nesses eventos”. Relembra que quando era pequena, só existia a Bienal do Livro, onde as crianças conseguiam ter um mínimo contato com os autores – outra
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facilidade na atualidade, é que podem se aproximar mais dos escritores, contando-os pelo site ou blog que grande parte deles mantém. Sem uma longa agenda de contatos na área, Bia está mesmo começando: conversando pela primeira vez com algumas editoras, além de autores e professores. A recepção de grande parte deles quando explica seu projeto é boa. “Eu estou recebendo muitos lançamentos, é de enlouquecer o volume do que é lançado. Claro que há muita porcaria, mas tem livros maravilhosos.” No mundo ideal, Bia conseguiria ler todas as obras que recebe, mas confessa que nem sempre isso é possível dada a escassez de tempo. “É bastante coisa mesmo. Os livros de criança em geral são menores, mas os infanto-juvenis vão ficando maiores e já não dá para sentar e ler de uma vez, é preciso um pouco mais de dedicação e há pouco horário no meu dia para isso”, lamenta. A jornalista relata que encontra tempo para trabalhar o assunto nos pequenos intervalos durante o dia e em alguns horários bem tarde da noite. “Certas vezes eu quero escrever para a manhã seguinte, e só começo depois da meia-noite. É fora do horário de trabalho mesmo.” Ainda assim, se diz feliz com o projeto e satisfeita com a reação dos pais que leem o blog e dos autores que entrevista, sempre elogiando a ideia. “O que é muito bom, porque as pessoas ficam felizes. Falam: ‘ai que legal, finalmente!’, e isso acontece porque realmente não existe foco nessa área.”
Atenção da mídia
A esperança de Bia é que o jornal comece a ver o tema como algo em que vale a pena investir. “Torço para que percebam a importância do assunto e que eu tenha um pouco mais de espaço para trabalhar isso. Há um buraco na mídia quando se trata de livros infantis e não tem quem faça a cobertura. A Folhinha e o Estadinho falam um pouco, mas nada muito direcionado. Na Ilustrada você não vê, no Caderno 2 há muito não se via, no O Globo não tem”, reclama. Mesmo com a dificuldade em emplacar matérias sobre o assunto, a concretização de seu objetivo não parece estar tão longe: já na semana de estreia do blog, Bia foi convidada a escrever sobre o tema aos domingos no caderno cultural. A jornalista atribui a resistência em conseguir aprovar seu blog e a pequena quantidade de conteúdo publicado sobre o assunto ao preconceito que ainda existe contra os livros infantis. “É visto como algo menor: ‘ah, é livrinho para crianças’. Poxa, não é! É literatura e pode ser de qualidade, como é para adulto. Além disso, exige dedicação dos escritores do mesmo jeito e dos ilustradores ainda mais do que em outros gêneros.” Bia percebe o desdenho em diversas situações, mas se espanta ainda mais quando acontece no meio jornalístico – vindo principalmen-
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te dos que não trabalham com cultura. “Eles veem o livrinho infantil como algo sem muita importância, mesmo com a profunda profissionalização do mercado nos últimos tempos.” No Brasil, a qualidade é alta e os livros são como obras de arte, para Bia. Isso é resultado da maturidade do mercado, com muitas editoras investindo no gênero. A jornalista conta que, certa vez, encontrou um texto no acervo do Estadão, da década de 1970, em que o autor comentava a produção de literatura infantil brasileira. Afirmava que no dia que ela amadurecesse os livros não seriam mais escritos por senhoras que, ao invés de visitar entidades assistenciais, imaginavam histórias infantis. “Era muito precário, a dona de casa era quem escrevia mesmo. Hoje não, é gente que estuda, planeja antes. As ilustrações também viraram um nicho maravilhoso para quem trabalha com desenho.” O grande número de obras publicadas também tem seu lado negativo, e gera um desafio comparado por Bia com a dificuldade que encontra na busca de informações: o volume é enorme e por isso é mais difícil separar o bom do ruim. “Nem sempre quando você entra numa livraria o que está exposto é o que eles têm de melhor e isso acontece pelo peso do lado comercial. Mesmo assim, acho bom estar disponível, ter assuntos variados, linguagens diferentes. E, claro, há coisas ruins, como na música, no teatro, nas artes plásticas.” Ao mesmo tempo em que o mercado recebe títulos sem parar, as compras de governo para distribuição nas escolas públicas e a adoção de obras nas particulares influenciam muito a temática do que é produzido. Autores de renome não sofrem tanto, porque algumas editoras preferem apostar na força de seu nome e no apelo de alguns temas polêmicos ao invés de modificar textos, deixando-os mais amenos. Porém, para os iniciantes a negociação é mais difícil. “Eu tenho ouvido de muitos escritores que as escolas exercem uma influência grande no que é publicado, especialmente, por conta da questão do politicamente correto. É muito comum que os escritores mandem seus livros para a editora e que a resposta seja um pedido de alteração em partes x e y, porque sem elas os livros não teriam entrada em escolas.” Além da avaliação do governo, no caso dos colégios privados a censura a alguns temas acontece por parte dos pais, que reclamam sobre os livros serem muito pesados para as crianças e, então, as instituições deixam de ousar e apostar em alguns temas. Bia tem vivido essa experiência na vida pessoal, buscando um colégio onde matricular seus filhos: “todas as escolas vendem a biblioteca como um lugar de prestígio, o que é bom por estarem disseminado o interesse pelo livro infantil, mas eu sinto que alguns assuntos ficam de fora do acervo e isso não é vantajoso para o aprendizado”.
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No papel de mãe
Tomás, cinco anos, e Bernardo, nove anos, são os filhos de Bia... pela experiência que teve até agora com eles, não concorda com a velha história de que criança não gosta de ler. Ainda assim, admite que o gosto precise ser incentivado e aponta que isso não acontece em muitos casos: “depende da criança, se estivermos falando daquela que vive na periferia é uma realidade ruim, infelizmente. Agora, se falarmos da classe média de São Paulo, ela tem muito acesso aos livros. Até porque hoje, como percebi, as escolas são muito empenhadas em formar leitores”. Bernardo está aprendendo as letras e adora que a mãe conte historinhas. Tom já sabe ler, e depois que descobriu o gosto pelo cinema quer os livros que contam as histórias dos filmes. Para Bia, nem todas as obras que interessam ao Tom são ideais para a faixa etária dele, mas ainda assim o deixa experimentar. “Ele está apaixonado pelo Steven Spielberg e, claro, não tem como não estar com a idade dele.” Por gostar do diretor, o menino quis assistir a Tubarão, que narra a aventura de três homens na caça de um animal que vinha atacando os banhistas da cidade em que viviam. Depois de ver o filme, o menino se interessou por ler o livro homônimo, de Peter Benchley, e, não teve dúvidas: entrou no site Estante Virtual e achou um exemplar. “Ele me chamou e eu falei para ele não comprar porque é um livro para adultos, eu disse que devia esperar mais um pouco para ler. E ele me respondeu: ‘não, mamãe, eu vou tentar, vou lendo devagar’. No fim, leu duas páginas e falou que era mesmo muito difícil.” Algumas obras, Bia admite não gostar que eles leiam, “como essas pragas de Diário de um banana, de Jeff Kinney, que eu não acho que seja literatura no sentido estrito da palavra”. Mesmo assim, não proíbe e acredita que com o tempo eles deixem de gostar tanto da historinha, narrada por um garoto não muito popular na escola, que relata suas peripécias em um caderno. “É muito cruel fazer um filtro que impeça a criança de ter contato com aquilo de que ela gosta. Eu acho que aos poucos eles vão afinar seu senso estético e começar a ver esse tipo de livro como algo meio bobo.” Independentemente do conteúdo da leitura, o fato de os filhos se interessarem por livros já deixa Bia realizada. A jornalista se define como uma pessoa muito desmemoriada e liga suas principais lembranças da infância aos livros – quando os lia, ou quando os pais liam para ela. “Eu me recordo que tinha uma história de ciranda de livros ou roda da leitura, que eram reuniões entre pais, que se juntavam levando livros que haviam comprado para emprestar uns aos outros e, assim, colocar os exemplares para circular entre as casas. Eu não me lembro se era tão caro comprar livros ou se o objetivo era mesmo o de se reunir e compartilhar aquele gosto. De qualquer jeito,
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isso foi muito importante para minha formação, então, quando eu vejo meus filhos lendo, fico muito feliz. Foi uma coisa que me deu tanto prazer, eu espero que dê a eles também.” Quando Tom nasceu, a jornalista resgatou seus livros da infância, “fiz uma busca, e encontrei edições antigas, algumas que eram da minha avó, passaram para a minha mãe e ela ainda as guardava”. Bia teve sucesso na procura e, além dos que encontrou, fez questão de comprar alguns títulos que já não tinha e colocar os filhos em contato com eles. De algumas obras consegue se lembrar de cor: Lúcia já vou indo, de Maria Heloisa Penteado; Maria vai com as outras, de Sylvia Orthoff; Dois idiotas sentados cada qual no seu barril, de Ruth Rocha; Bisa Bia bisa Bel, de Ana Maria Machado; A bolsa amarela, de Lygia Bojunga Nunes; toda a Série Vaga-lume da editora Ática... Para preservar os exemplares, Bia fez um acordo com os meninos: “todos os livros são nossos, mas vocês têm que tomar cuidado porque eu quero guardar”. O combinado, segundo Bia, foi necessário porque os filhos não são muito cuidadosos e, mesmo que queira manter as obras por anos, ela não vê sentido em deixá-las trancafiadas em algum lugar. O trato vem funcionando e os garotos têm gostado das histórias que preencheram a infância de Bia. Um livro em especial rendeu mais que uma leitura: Chapeuzinho amarelo, a adaptação da história da chapeuzinho vermelho, escrita por Chico Buarque. Em uma proposta da professora de Bernardo, as mães foram convidadas a ir à sala de aula ler para as crianças. Quando chegou a vez de Bia, ela escolheu Chapeuzinho Amarelo, que fala de uma menina que sente medo de tudo. “O livro começa contando que ela era uma garotinha que tinha medo de dormir, por medo de sonhar, tinha medo de subir na escada, por medo de cair. E o medo de que ela mais tinha medo era o de encontrar um lobo que ela nem sabia se existia.” Ao longo da história, o autor vai brincando com as palavras e começa a repetir: O LOBO, O LOBO, O LOBO, até que o termo acaba virando O BOLO. “No dia da contação, eu desenhei um lobo em uma cartolina e recortei no formato. Assei um bolo e usei o molde de lobo. As crianças entraram total na história: ‘tem gosto de lobo de verdade’, elas diziam. Imagina? Só as crianças para inventarem esse gosto!”, se diverte contando. Para conseguir chegar a tal nível de imaginação, na opinião de Bia, os pequenos se concentram em algo que lhes interessa muito. No dia a dia, pode ser o videogame, por exemplo, ou os livros, como no caso de seu filho Tom. “Eu ouço muito as pessoas dizerem: ‘nossa, ele é tão novinho e já lê tanto’. Ela faz questão de ressaltar que essa predileção não deveria ser motivo de preocupação porque não afasta a possibilidade de outras atividades – e inclusive pode ser complementada por algumas
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que também lidam com a leitura, como livros-brinquedo e livros de imagem. “Eu acho que são todas opções legais e que não se excluem, não deixam de ser contato com livro e só por isso já são boas.” No caso dos e-books, Bia os compara com a veiculação de notícias na internet, “é igual à história do jornal impresso e do jornal na rede: muda o meio, mas a finalidade é a mesma”. Ainda que receba bem esse novo suporte, se diz preocupada em dar um tablet muito cedo aos filhos. “Eu tenho muito pouco contato com e-book, tem criança pequenininha que já mexe nessas coisas melhor que os pais. Além de existirem poucas obras em português, eu tenho medo de apresentar aos meninos por enquanto, mas eu sei que uma hora vou acabar colocando nas mãos deles.” O principal receio de Bia é que os filhos percam a chance de experimentar os livros, como ela fez por longos anos e continua fazendo até hoje. “Acho que eles ainda precisam se apaixonar muito mais pelo papel.”
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Azilde Andreotti Guardadora de hist贸rias
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artilhando espaço com a quadra poliesportiva, o playground colorido e as árvores que quase não permitem ao sol iluminar o solo, a Biblioteca Monteiro Lobato funciona dentro da Praça Rotary, na Vila Buarque, centro de São Paulo. Dentro do prédio de generosas janelas que permitem ver o verde do lado de fora, trabalham funcionários concursados, cuidando da recepção, do acervo, dos empréstimos... um deles é Azilde Andreotti, socióloga formada pela Universidade de São Paulo, responsável pela conservação e organização da Memória da Biblioteca. As funções de Azilde estão ligadas à preservação do acervo, porém, ela faz questão de saber atuar em outras áreas. Hoje, pode, inclusive, dar visitas guiadas com precisão de informações. No primeiro andar, o memorial de Monteiro Lobato, criado em 2011, faz as vezes de museu da casa, reunindo objetos pessoais e primeiras edições de trabalhos do autor. Azilde vai à frente apontando: – Essa foi a escrivaninha dele, era o único objeto que tínhamos no início. Depois foram chegando outros, como a cadeira de balanço, o jogo de xadrez e o aparelho de barbear. Além de peças de roupas que expomos no manequim e trocamos regularmente. – Já aqui, você pode ver, pelo material que usava: o estojo com as tintas a óleo já secas, que ele se dedicava às pinturas. Fazia muitas aquarelas – inclusive, quem entende do assunto diz que ele era bem talentoso. – Nesta parede temos uma cronologia das principais etapas da vida dele: seu nascimento, a vida no Vale do Paraíba, o casamento, a formatura na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, o tempo em que esteve preso pelo Estado Novo. – Aqui estão alguns exemplares de traduções que ele fez e de primeiras edições de seus livros. Além de desenhos de diferentes artistas que ilustraram suas obras: várias Emílias, Viscondes e Sacis. - Algumas fotografias mostram que ele frequentava a Biblioteca. Como esta em que é rodeado por crianças. A mulher ao lado dele é Lenyra Camargo Fraccaroli, que foi diretora daqui desde a fundação, em 1936, até 1960, quando se aposentou. – Esta é uma peça de extremo valor. Quando Lobato morreu, o escultor Victor Brecheret fez uma máscara de gesso e então este busto de bronze, que encerra a mostra. Terminada a explicação que não duraria mais de quinze minutos, Azilde comenta, dirigindo-se a um balcão de madeira com a supefície envidraçada: “o engraçado é que de todo o memorial, talvez de toda a Biblioteca, do que as crianças mais gostam é a costela do Lobato. Em 1945, ele fez uma cirurgia e doou esse pedacinho da sua costela para nós. É o que mais chama atenção no acervo”.
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Patrono
Azilde não acompanha de perto as visitações, mas ressalta que não é apenas no memorial ou no nome da Biblioteca que Monteiro Lobato está presente. “Ele é o personagem maior, a grande estrela daqui.” Percebe-se logo na chegada, no grande salão de entrada onde bonecos encostados nas paredes são versões gigantes dos integrantes do Sítio do Pica-Pau Amarelo: A Tia Nastácia, o Saci, a Cuca... Feitos por artesãos e doados ao longo dos anos, os bonecos desfilam no bloco de carnaval Viscondes da Emília, que sai todos os anos da frente da Biblioteca dando a volta no quarteirão, sempre na sexta-feira da festa. “Os adultos os carregam e as crianças se enfeitam com fantasias de papel crepom, algumas até tocam na bandinha, acompanhadas de um carro de som com cantores. Cada ano tem uma temática diferente, geralmente com um personagem principal do Sítio. É um dia inteiro de festa.” Apesar de conhecerem os personagens, muitas crianças que vão à Biblioteca, principalmente em excursões com as escolas, não sabem quem foi Monteiro Lobato. “Algumas professoras os preparam antes do passeio, mas a maioria só o conhece de nome, por causa do Sítio que passava na televisão”, comenta. Um dos motivos apontados pela socióloga para as referências mínimas dos pequenos é a linguagem das obras, pouco acessível hoje em dia. “Do jeito que as histórias foram escritas originalmente é impossível para eles lerem sozinhos.” Aproximando os pequenos das narrativas de um jeito mais fácil, uma das atividades agendadas para visitas em grupo é a contação de histórias. Além dos livros de Lobato, outros autores fazem sucesso entre os pequenos: “a Ruth Rocha, que tem um estilo bem geral, fala sobre tudo, e a Ana Maria Machado, reconta muitas histórias que eles já conhecem um pouco, então, já ficam interessados de saída”. Ainda no primeiro andar, uma sala reúne parte do acervo infantil e serve como espaço para as rodas de leitura. No centro, um tapete colorido e banquinhos são lugares para as crianças se acomodarem e ouvirem as narrativas escolhidas pelos contadores. “Quem faz isso são funcionárias da Biblioteca que por gosto se especializam.” Azilde conta um caso especial: “uma antiga funcionária, chamada Edna, se aposentou, mas gostava tanto da contação, que cursou letras e se engajou nisso”. Para certas funções, incluindo a de contar histórias, não é necessária a graduação em Letras, como Edna fez, mas alguns cursos rápidos oferecidos aos funcionários. “No geral, não há treinamento, mas para cargos ligados a informática, atendimento ao público e mediação de leitura, que requerem alguns conhecimentos e práticas específicos, há algumas aulas.”
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Mandatos rápidos
Quando fala da educadora Lenyra Camargo Fraccaroli, a socióloga faz questão de ressaltar o tempo que a diretora passou comandando o local: vinte e quatro anos. Que tiveram início na fundação da instituição, ainda como Biblioteca Infantil Municipal – o primeiro acervo púbico destinado a crianças no país. “O projeto era algo bem fora do tom da época, porque ainda existia aquele pensamento conservador de que biblioteca era coisa para adultos, um lugar silencioso, sério.” Porém, o então diretor do departamento municipal de cultura, o escritor Mário de Andrade organizou a criação do acervo, que, no início, funcionava em uma casa próxima, na Rua Major Sertório. Já em 1950, o prédio que ocupa atualmente foi construído para recebê-la e, em 1955, ela foi batizada como Monteiro Lobato. O tempo de gestão de Lenyra é algo impensado atualmente, na opinião de Azilde. “Ela foi a diretora que ficou mais tempo no cargo e isso porque os mandatos na prefeitura não eram curtos e as mudanças não chegavam diretamente à administração da Biblioteca.” Hoje, as atividades andam um pouco lentas no local, o que a socióloga atribui ao fato de 2012 ser um ano eleitoral, “há sempre coisas acontecendo por aqui, eventos, visitas etc. Porém, estamos vivendo uma fase mais amena, acredito que o motivo é o fato de ser um ano de transição. Por isso, ninguém sabe bem o que esperar no próximo mandato”. A diminuição das atividades acontece porque de uma gestão para outra muito se pode alterar. Inclusive os funcionários, por demissão ou ainda por falta de afinidade com o governo. Este último motivo, já afastou a socióloga da Biblioteca mais de uma vez, “a instituição pública muda muito de diretriz por conta das ideias de cada governo e nem sempre é afinada com as nossas. Não que hoje em dia seja também, mas tem alguma oportunidade de trabalho. Em certos mandatos, não há quase nenhuma”.
Acadêmica
Foi na gestão de Luiza Erundina, em 1989, que Azilde começou seu trabalho na Biblioteca. Prestou concurso público e, bem classificada, pode escolher em que secretaria gostaria de atuar, interessando-se pela de cultura. “Eu vim para a Monteiro Lobato porque toda essa história da criação e das mudanças de nome e endereço estava em documentos dispersos. Então, fiz o projeto Memória da Biblioteca e comecei a reunir o material, hoje temos tudo documentado, com fotografias, cartas de Mário de Andrade...”. Paralelamente ao trabalho, Azilde decidiu cursar uma pós-graduação na área de educação e foi se aproximando cada vez mais da carreira acadêmica. “Pedi licença de dois anos do meu cargo, concluí o doutorado na Unicamp e passei a dar aulas na Faculdade Anhanguera, em Jundiaí.”
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Em seguida, tentou concurso em universidades públicas, mas, sem sucesso, retomou sua função na Biblioteca. No retorno, o novo projeto da socióloga foi montar o Acervo Histórico do Livro Escolar. Assim como o material de preservação das obras de Lobato, em parte exposto no memorial, os documentos sobre o livro escolar são procurados, principalmente, por estudantes e pesquisadores da área. Diferentemente da maioria dos exemplares da Biblioteca, estes não podem ser emprestados, mas estão disponíveis para consulta no local e, junto de todo o acervo histórico, somam cerca de nove mil exemplares. “São procurados por quem estuda educação, que pode se sentar, folhear e fotografar. Temos livros de todas as matérias, desde o século XIX, até a década de 1970. Por isso, além de quem trabalha com o tema, recebemos muitos curiosos em busca de sua própria memória escolar – querem encontrar a cartilha que usavam quando estudaram.”
Empréstimos
No caso do acervo que os leitores podem levar para casa, Azilde explica: “a pessoa precisa de um documento com foto e de um comprovante de residência. Então, recebe um cartão que pode ser usado para emprestar livros em qualquer biblioteca pública da cidade”. No caso do público principal a que se destina a Monteiro Lobato, os pequenos, menores de dezesseis anos, precisam ir acompanhados de um responsável ou levar uma autorização assinada. “São muitas crianças que moram na região frequentando nosso espaço. E, ainda que pareça surpreendente, não temos muito problema com eles.” O cuidado dos leitores com o livro é algo de que os funcionários não reclamam. “É muito difícil rasgarem e, quando acontece, a maioria se oferece para doar outro. Nós aceitamos, porque é também uma forma de educar.” O compromisso com os prazos de devolução, porém, não é um dos mais respeitados. “O pessoal atrasa muito, então, vários exemplares ficam suspensos. Certa vez, uma das funcionárias se propôs até a ir à casa de um leitor, porque o endereço era o único dado que tínhamos dele, não havia e-mail, nem telefone.” A obra desaparecida era o livro-brinquedo O mágico de Oz, de L. Frank Baum, editado pela Publifolha. Alguns dias após chegar ao acervo, o exemplar já teria sido locado – prática não muito comum, porque os responsáveis pela mediação costumam ficar com as obras por um tempo, para ler e conseguir ajudar os leitores à procura de certos temas. “Era um livro que devia ser bem caro, nesse caso, alguns até são deixados apenas para consulta, principalmente, livros-brinquedo que são delicados. Mas, de algum modo, esse acabou fichado para empréstimo.”
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Checando a ficha que controla as retiradas, perceberam que o leitor já havia ficado com um livro por duzentos dias. Por isso, a obra já estava dada como perdida, quando foi devolvida. “Esse nos surpreendeu. Mas, no geral, há retorno, mesmo com atraso.” As obras voltam, na opinião de Azilde, pela necessidade que a maioria dos leitores que se cadastra tem de consultar o acervo. “Quem faz matricula geralmente está sempre precisando, então não some.”
Mediação de leitura
Um dos principais trabalhos na Monteiro Lobato é o dos que medeiam o livro para o leitor. Os funcionários que leem as obras e se informam sobre certos autores para auxiliar os frequentadores do local a encontrar o que procuram. “Quando uma criança vem querendo um livro que não sabe o nome ou buscando algum assunto específico sem saber qual obra quer, temos funcionários que a ajudam. Fazem justamente a mediação entre criança e livro, apresentam novas leituras, indicam opções.” Esta não é a área de Azilde, que indica as características necessárias para ocupar o cargo: “para essa função, deve ser uma pessoa que leia bastante, que entenda de literatura, porque é um papel muito importante, muito mais significativo do que simplesmente emprestar livros.” A própria socióloga consulta o acervo quando chegam obras ligadas a história e pede dicas de leituras, principalmente, quando opta pelos infantis. “Eu não cuido da chegada dos livros, por isso, não sei tudo o que vem de novidade. Então, quando estou estressada, desço no acervo de crianças e peço para me sugerirem um livro, de preferência com histórias bem geniais”, enfatiza. O gosto pelas narrativas surpreendentes não é de hoje: a infância de Azilde foi povoada pelos contos de fadas. Hoje, porém, ela reclama um pouco das opções que os pais lhe davam para ler: “fui criada em cima das histórias de moralismo”. Pinóquio, o boneco do nariz que cresce quando ele mente é um dos mais atacados pela socióloga, “eu chegava a ter medo dele. O odeio até hoje”. Escondida dos pais, desde cedo começou a ler obras destinadas a adultos, de autores como Machado de Assis, Aluisio Azevedo e José de Alencar. Já as histórias do patrono da Biblioteca, Monteiro Lobato, passavam longe da casa de Azilde. Seus pais não tinham muito contato com a obra dele: o pai, filho de italianos, e a mãe vinda de Ancona, na Itália, cresceram lendo livros do país europeu. Já na escola, Lobato era mesmo censurado, “eu estudei no Maria Imaculada, no bairro do Paraíso, em São Paulo, que é um colégio católico. As obras dele não entravam lá de jeito nenhum”.
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Os temas
Com exceção de algumas doações aceitas, as obras do acervo são entregues pelo governo. “Quando doados, os livros geralmente chegam muito manuseados. São poucos os que ainda estão em bom estado, então, nem aceitamos.” Em certa época do ano, o volume de tentativas de contribuição é mais alto que o usual: depois do carnaval as pessoas chegam com caixas de livros. “É reflexo do começo de ano, quando encontram um tempo e fazem uma limpa em casa. Separam os livros que não lhes servem mais, que estão velhos, e mandam para cá.” Certas obras interessantes, com possibilidade de restauro, poderiam ser aceitas se a Biblioteca tivesse um setor responsável por isso. Porém, quem cuida desse trabalho é a secretaria de cultura que, com a alta demanda, demora muito para devolver os livros consertados. “Nós já conversamos sobre isso várias vezes. Uma biblioteca enorme como essa deveria ter alguém responsável por isso.” Azilde cita a Associação Brasileira de Encadernação e Restauro (ABER), em São Paulo, onde há cursos básicos de restauração, “seria ótimo se alguém aqui da Biblioteca se interessasse por isso, ou que se criasse essa vaga, mas...”. O acervo disponível conta com quase cinquenta mil obras. Além das infantis, que ficam no primeiro andar – no mesmo espaço das contações de história –, as juvenis são expostas em uma extensa sala no segundo piso. “Separamos, com um pouco de dificuldade, o que é juvenil do infantil, e trazemos para esse lugar, onde também fica literatura para adulto e obras mais técnicas, como enciclopédias.” No mesmo local, são encontrados revistas e jornais assinados pela secretaria e distribuído nas cerca de cinquenta bibliotecas da rede. Uma das salas preferidas de Azilde é a gibiteca. Também no segundo andar, o acervo atrai especialmente os jovens. “Recebemos adultos e crianças interessados, mas os adolescentes são maioria.” Nas prateleiras, encontram-se, além de histórias consagradas dos quadrinhos, como a coleção de Asterix, exemplares de literatura brasileira adaptada, como obras de Machado de Assis e Lima Barreto em tirinhas. “Eu acho muito legal, é super interessante para quem gosta de HQs.”
Informatização
Mais um projeto de preservação histórica é dedicado à literatura infantil brasileira. Livros anuais apresentam uma amostra do que foi produzido no Brasil na época. “É bem representativo e as obras elencadas contam com resenhas feitas por críticos da área. Para isso, as editoras mandam um ou dois exemplares de seus lançamentos e nós os guardamos para o acervo histórico.” A primeira edição de Bibliografia brasileira de literatura infantil e
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juvenil foi planejada pela diretora Lenyra, em 1953. Era ampla, abrangendo a produção de mais de um ano. Ao longo das décadas, nem todos os intervalos foram mapeados e a última edição do compilado saiu em 2006. Os planos para o próximo volume estão um pouco atrasados, porque o formato deixará de ser o do livro impresso para ser virtual. “Além da tendência atual e do alcance, é um meio bem mais barato”, justifica Azilde. Pela praticidade e controle, há um já iniciado projeto de informatização de todo o acervo da Biblioteca. “Hoje, quem quiser saber, por exemplo, se um livro raro da área de preservação histórica está na Biblioteca é preciso vir até aqui. Queremos usar sistemas online para não haver mais essa necessidade de locomoção.” Ainda se adaptando para a internet, o plano de um acervo digital de e-books, está longe de acontecer. Azilde, porém, acredita que seja apenas uma questão de tempo para chegarem à Biblioteca. “Ainda estamos no meio do caminho da informatização, mas, daqui a uns anos, não há como termos apenas os livros em papel.” Por ora, o maior avanço tecnológico é o Telecentro, uma sala com computadores, no segundo andar. Ele funciona desde 2008, quando havia filas para usar os aparelhos, segundo Azilde, a maioria ia mesmo para ler notícias ou fazer buscas. Atualmente, há menos movimento, fato a que a socióloga atribui o aumento do acesso da população aos aparelhos, “hoje, muitos já têm aceso em casa”. Mesmo instalado na Biblioteca infantil, o local não é destinado especialmente às crianças. “Não temos nenhum conteúdo voltado para eles nos computadores, algo ligado à literatura infantil, que incentive a leitura. O que eu acho que, mais cedo ou mais tarde, vai ter que ser pensado.” Atualmente, há cursos de informática, alguns bem básicos, que ensinam como acessar a internet, mandar e receber e-mails ou montar currículos. “são coisas bem simples que muita gente não sabe.”
Convivência
Além das visitas de escolas, a Biblioteca recebe os pequenos acompanhados das famílias e os grupos de crianças moradoras da região, que passam as tardes em centros de convivência enquanto os pais trabalham. As atividades que não se restringem aos livros são escolhidas de acordo com a faixa etária do grupo. Há salas de vídeo, com sessões de cinema, e espaços para brincadeiras, com materiais para recortar e colar... No segundo andar, uma sala é destinada ao PIAR – Projeto de Iniciação Artística. No qual profissionais de certas áreas culturais são contratados pela prefeitura para dar aulas para as crianças. “Há cursos de música e artes plásticas, por exemplo. Alguns alunos vêm até três vezes por semana e ficam umas duas horas aqui.”
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Entre as possibilidades de programação, algumas acontecem dentro do teatro da Biblioteca, com apresentações de bonecos para crianças, por exemplo. Há ainda espetáculos para adultos que acontecem geralmente na parte da noite. “Tem também um grupo de terceira idade da região que ocupa o espaço para atividades todas as terças-feiras à tarde. Isso desde os anos 1990”, comenta. Não se paga entrada para qualquer evento ou atividade realizado no local nem em qualquer biblioteca da rede. “A secretaria da cultura elabora um guia mensal, chama-se Em Cartaz, distribuído em alguns pontos da cidade com a programação de todas as unidades.” Mesmo reconhecendo ser uma iniciativa boa, Azilde não poupa críticas: “tem bastante coisa acontecendo, mas ainda é menos do que deveria e poderia. Na verdade, o número de bibliotecas na cidade é mínimo. Com onze milhões de pessoas, o que são cinquenta e poucas bibliotecas?”.
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Edmir Perrotti Mem贸rias de Em铆lia
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abelos e barba brancos e um par de óculos rajados se destacam logo de cara. Durante a conversa, as mãos deslizam agitadas pela mesa e o olhar se interioriza, passando por um lugar que só ele alcança. Quando retorna dessas profundezas, traz consigo uma resposta clara, direta ao ponto, em sua fala por vezes enigmática. Características marcantes, que só perdem para o sorriso que se abre entre uma lembrança e outra. Todos os momentos risonhos são ligados a uma memória: o dia em que conheceu Emília, a personagem que o inspiraria pelos próximos longos anos. Por um desses felizes acasos que acontecem algumas vezes na vida, o menino Edmir Perrotti passou os olhos pelas páginas de um livro de Monteiro Lobato aos dez anos de idade. Seus pais não eram pessoas letradas e na escola em que estudou só teve contato com livros de aritmética, gramática ou geografia, por isso, seu projeto de leitura não começou em casa ou em uma biblioteca vasculhada por curiosidade. O achado literário aconteceu na casa de um colega, do qual Perrotti não se recorda bem. Aliás, nem do colega e nem do livro. As únicas lembranças que ficaram desse momento foram a de Emília e a do universo fantástico de Lobato. “A vida mudou. Eu percebi que existia um mundo fabuloso que eu não conhecia e que era o que eu queria. Por isso, lia tudo o que tivesse a Emília e a turma do Sítio do Pica-Pau Amarelo, desde os textos mais especificamente literários do Lobato, às obras instrumentais, como Emília no país da gramática ou Geografia da Dona Benta.” Levado por essa empolgação desde a infância, mas sem deixar de lado os anos de prática como professor universitário – Perrotti está na Universidade de São Paulo desde 1983 –, ele liga sua experiência pessoal ao que acredita ser o processo ideal de uma criança ao conhecer a literatura. O primeiro desafio com que se depara é o de aprender a trabalhar com as linguagens, o código escrito e a visualidade. “Eu acho que a história pode ser um importante recurso para ingresso tanto no mundo da visualidade como no da escrita e da intertextualidade”, comenta. Face às dificuldades naturais que uma criança em fase de alfabetização encontra, a imagem tem um papel muito importante. A relação de benefício entre visualidade e texto, porém, não é direta. Perrotti ressalta o valor da imagem em si, não apenas como um auxílio ao que está escrito. “É preciso considerar que crianças pequenas têm dificuldades de conviver com o código escrito, então, a visualidade é uma parceira fundamental, não podemos resumi-la a ser só uma muleta da criança. Seria reduzir a importância da imagem como criadora do imaginário, de mundos possíveis.” Dá sequência alertando para a ilusão de que a ilustração possa ter apenas um lado positivo, “as linguagens se complementam e se articulam, por isso, os desenhos podem tanto
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atrapalhar quanto contribuir, mas isso só se pode julgar caso a caso”. Universal para o professor, porém, é o poder da forma de narrar, tanto de tornar uma obra atraente para a criança como de fazer dela um fiasco. “Os pequenos gostam de humor, de mistério, de livros miraculosos, o que eu quero dizer é que claramente há temáticas que são melhor recebidas. Porém, o assunto muitas vezes é o pretexto, as crianças são pegas por um modo, o modo como você conta, como você narra, a forma como você enfoca a questão. Essas coisas do conteúdo e da forma não são separadas.” O contato com o livro, para Perrotti, deveria ser um processo contrário às regras cotidianas do mundo infantil, como “escove os dentes”, “não mexa nisso” ou “não coloque o dedo no nariz”. O professor se diverte ao exemplificar citando Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, “de repente, Alice entra em um buraco. Nossa! O que vai acontecer agora? Afinal, se ela entra lá vai ser enterrada, vai morrer. E então ocorre uma coisa extraordinária, surge um mundo fantástico, fabuloso e cheio de nonsense”. Ele acredita que as narrativas miraculosas e um universo simbólico afastado dessa zona do proibido deveriam ser a porta de entrada de uma criança ao mundo dos livros.
De leitor a professor
Foram essas histórias do campo maravilhoso que povoaram a infância de Perrotti e lhe causaram uma ânsia ainda maior do que a que tinha pela leitura: já não sentia a necessidade apenas de viver o universo de Lobato, mas de compartilhar sua experiência e conhecer a dos outros leitores. Decidiu, então, dedicar sua carreira à área, “era muita riqueza pra um homem só. Eu queria repartir, mas no meio em que convivia não existiam pessoas para fazer essa troca comigo. Aí, achei que a melhor forma seria me tornando professor”. Passou a dar aulas de línguas portuguesa e francesa, mas percebeu que não seria nas escolas que encontraria seus interlocutores – nem mesmo bibliotecas encontrava por lá, recorda com pesar. “O colégio não tinha nada, nem livro didático quanto mais livros de literatura. Então, eu comecei a sair com sacolas de livros, distribuindo.” O motivo da ausência de obras nas escolas levou o professor à universidade, especificamente ao departamento de biblioteconomia da USP, buscando colegas com quem discutir, não mais as peripécias dos personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo, mas a falta de livros no ambiente educacional. Quando encontrou parceiros de pesquisa, no início da década de 1980, percebeu como eram poucas as pessoas que então se preocupavam com o tema da literatura infantil. Em suas palavras um pouco dramáticas, seriam três ou quatro aventureiros há trinta anos. Hoje, existem polos de
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pesquisa em todo o país que dialogam entre si – UFMG, UFRJ, PUC-RS e Unesp estão entre as mais de dez citadas pelo professor. Ainda assim, Perrotti não se diz contente com a situação. Conta que na USP, a literatura infantil ainda é um campo de estudos marginal, sem prestígio. “Funciona como na venda de livros, as obras infanto-juvenis, depois das didáticas, são o grande mercado no Brasil. Essa importância, evidentemente, não se deve a uma questão meramente econômica, mas à existência de toda uma trama e uma rede que está dando sustentação a esses movimentos de produção e de circulação de leitura.”
Adultocentrismo
Muitos desses impasses, para Perrotti, estão ligados a uma questão social de que a maioria não se dá conta. “Vivemos em um mundo adultocêntrico, que não trata com a mesma seriedade as questões das crianças, como faz com as dos adultos.” O professor se mostra feliz com a chegada da autora Ana Maria Machado à presidência da Academia Brasileira de Letras, mas acredita que essa postura mundial está longe de uma mudança. “Vemos um reconhecimento à área quando um escritor chega aonde ela chegou. Mas isto, infelizmente, não significa que o autor para crianças e para jovens tenha o mesmo estatuto, seja onde for dentro da nossa cultura.” A principal reclamação de Perrotti está na prática literária, que adota os mesmos critérios usados em obras para adultos nos textos para crianças – mesmo que a dimensão comunicacional seja diferente para os dois. O professor comenta que enfrentar um autor difícil de ser lido, quando adulto, dá status de cultura, gera certo reconhecimento. Já na produção para crianças isso não pode acontecer. “A questão da literatura infantil está muito próxima de produções artísticas como o teatro. Se não souberem lidar com a plateia, acabou. Pode até continuar existindo a dramaturgia, mas o teatro sem isso não existe, porque o público está à parte do espetáculo, sem entendê-lo”, compara. O professor admite, porém, que deixar de lado uma postura adultocêntrica não é simples. A explicação é quase óbvia, mas nem sempre pensada: “é uma dificuldade, porque mesmo se você, adulto, conseguir se distanciar do que é, nas coisas que faz, ainda é parte de um panorama cultural que tem a ver com você”. Além disso, os estudos e a tradição na produção de literatura infantil com foco nessa preocupação são relativamente novos. Não se sabe claramente o que são esses objetos de estudo, e os parâmetros de análise também ficam frouxos. “Bem, é o livro infantil arte para as crianças do ponto de vista da literatura? Por que dizer que isso é uma arte para crianças? Eu quando faço um texto infantil realmente deixo de lado esse gesto de escrita? Eu falo de qualquer forma e de qual-
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quer coisa para criança? De qualquer jeito? Não falo? Como é que é isso?” Após uma sugestiva levantada de sobrancelhas e uma pausa para fazer ecoar seus questionamentos, Perrotti retoma enfatizando que um autor de livro infantil não pode ser considerado verdadeiro se diz que não escreveu pensando nas crianças como seu público-alvo, quando na verdade as linhas tradicionais de estudo denunciam que certos temas e abordagens são usados repetidamente. “Vamos ao texto de um autor para saber se é isso mesmo, se ele não escreve pensando em crianças: eu quero saber, por exemplo, como ele trata de certos temas, como o suicídio. Ele acredita que seja um direito? Então como se escreve isso? ‘Olha, a liberdade é de cada um, que tem o direito até de se matar’. E a questão da pornografia, até onde eu exibo essa coisa, essas feridas todas da sociedade? Não exibo?” Evidentemente, livros são produtos marcados por épocas e culturas, mas o ponto de Perrotti é o fato de, no caso do livro infantil, não se ter um interlocutor “que é a minha imagem e a minha semelhança. E então, o que eu faço?”. Até mesmo a questão temporal pode ser um desafio. Não se sabe se as crianças de hoje têm as mesmas referências que Perrotti tinha quando, jovem, lia e se fascinava por Lobato. “Como adulto, você continua lendo Machado de Assis, pode até ser de um jeito diferente do leitor do século XIX, do leitor do século XX, mas continua, porque tem ali alguma coisa que te comunica, que ultrapassa o tempo. No caso da literatura infantil a coisa não é muito evidente.” Depois de uma longa explicação, Perrotti reafirma seu ponto sobre a falta de estudos e a tradição de pensamento na literatura infantil. “Não conhecemos o objeto com que trabalhamos e continuamos aplicando a ele os mesmos critérios de avaliação de outros objetos culturais e daí evidentemente ele fica aquém.” Não é da teoria que surge uma possibilidade de mudança, mas do mercado, com o crescimento das vendas de livros infantis no Brasil, que já se posiciona como um dos maiores filões desse campo. Isso não deixa Perrotti totalmente satisfeito. “O fator econômico é uma parte tão reduzida da questão... o objeto culturalmente é respeitável não só porque tem um mercado importante, mas porque tem sentido e significado relevantes para todos nós e para nosso ‘estar no mundo’, é desse modo que eu pago o efetivo de um objeto cultural.”
O leitor faz o que quiser de sua leitura
Depois de anos estudando o assunto, Perrotti consegue descrever o que o levou a tamanha paixão pela obra lobatiana. “A grande aventura era perceber que eu podia ter um lugar em que era eu quem definia o que tirava dali, mais ninguém, nem o escritor podiam opinar, porque se eu não
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quiser, eu não gosto da Emília ou da Dona Benta. Esse espaço de liberdade sem a coerção do outro, do grupo, é a grande qualidade da palavra escrita.” E é pelo que Perrotti luta em seus projetos educacionais, para que a experiência vivida pelas crianças em suas leituras não tenha seu caráter fantástico e criativo cortado por determinadas atividades escolares vazias, e para que o leitor possa preservar seu direito de estar em um espaço sem coerção. O professor ilustra mais uma vez: “para um leitor, um texto pode servir como uma viagem fantástica no imaginário, quando acaba a leitura ele pode querer mais dessa viagem. Para outro, ‘ah, eu aprendi como amar ao próximo’. O outro aprendeu como a guerra é uma coisa horrível. O outro a como tratar bem dos animais”. Nem contra nem a favor do uso dos livros infantis para o aprendizado da leitura, Perrotti é taxativo: “não me posiciono porque senão eu defino o que o leitor tem que fazer com sua leitura”. Instrumentalizar a literatura para ensinar a ler ou para consolidar algum valor moral não é uma atitude condenada pelo professor, porém, reduzi-la a isso é visto como uma prática negativa. “De que a literatura seja aprendizagem, eu não tenho dúvida. Quer dizer, ótimo que na escola se deem livros para serem lidos, ótimo que nas casas o pai e a mãe façam isso, mas passa a ser ruim quando se toma a leitura para justificar a literatura. Eu não preciso explicar: ‘ah, quem lê melhora isso, quem lê melhora aquilo’.” Isso porque a ação literária vale enquanto tal, não tem que ser ajuizada, porque promove experiências que só a palavra criativa pode permitir e, nesse sentido, “viver essa experiência por meio da palavra, é algo insubstituível”.
Lugar de livros e pessoas
Afastado dessas discussões sem uma possível conclusão, Perrotti prefere continuar sua carreira tratando de ações efetivas. Ao longo de seu trabalho como docente e pesquisador da USP, percebeu a impossibilidade e ineficiência de montar laboratórios-modelo dentro da universidade e partiu para uma experiência real. “A questão essencial que envolve o contato da criança com a literatura infantil é a biblioteca. Não a da imagem que temos na cabeça, apenas de conservação e difusão de obras, mas de um espaço de negociação simbólica.” O trabalho de Perrotti se deu, primeiramente, na organização de um espaço de cultura, leitura e informação, na creche da USP, e depois se estendeu para escolas municipais de ensino fundamental. O projeto se chamava Oficina de Informação e acabou se desdobrando na implantação de bibliotecas. “Queríamos trabalhar a relação entre os saberes, o saber científico, o saber terreno, o saber profissional e o saber local. Vimos a importância dessas unidades em romper o isolamento entre as
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crianças e esses saberes.” A ideia de redes culturais surgiu da criação desses espaços interativos, e culminou nas Bibliotecas Dialógicas – cem delas implantadas em São Bernardo do Campo. Exatamente pela boa experiência prática desses acervos, o Núcleo de Infoeducação, que gerencia o projeto, não funciona no prédio da ECA (Escola de Comunicação e Arte), dentro da Cidade Universitária da USP. É coordenado na comunidade de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, em recinto cedido pelo Hospital Albert Einstein, que dirige um projeto de saúde atrelado a educação e cultura. “Esses espaços são concebidos como Estações do Conhecimento. Hoje convivemos tanto com falta de acesso às informações quanto com um estresse por excesso informacional. A Estação é um local para se aprender a gerenciar essas viagens pelo conhecimento, construir bússolas para elas.” A partir da experiência concreta conquistada nesses espaços, um núcleo de pesquisas se desenvolveu dentro do campus da universidade. O Colabore, ou colaboratório, foi batizado em referência à via de mão dupla que gera, em diálogo com as Estações – estas que lhe servem como fonte de pesquisa. “É um espaço que vai gerando conhecimento a partir dessa metodologia colaborativa. Enfim, é a busca de saberes científicos, mas sempre vinculada às condições concretas, porque percebemos que a apreensão do objeto só é possível em situação real.”
Questões gastronômicas
Cheio de paralelos e alegorias dignas de um bom escritor infantil, Perrotti compara as mudanças na relação entre leitura e tecnologia com o comportamento dos restaurantes ao longo da história. Os estabelecimentos começaram humildes, na cozinha caseira, até que a revolução industrial gerou uma explosão dos fast-foods. Hoje em dia, há uma hiper-valorização dos chefs em oposição ao processo massificante que a cozinha passou ao se industrializar – e um modo não excluiu o outro. O mesmo teria ocorrido com os livros infantis. “Ainda que existam tantos movimentos, não há uma substituição. Quando se produz em série, se perde em qualidade, então como é que nós vamos resolver essa contradição? É evidente que as pessoas precisam comer, que precisamos acabar com a fome no mundo. Essa é a premissa, mas há diferentes jeitos de fazê-lo. É assim com as novas formas de escrever, que possuem coisas fabulosas e possuem limites, é assim com a comida, é assim com todas as coisas.” Perrotti defende que a linguagem digital é mais um modo rico de comunicação e esbraveja contra os crentes nas previsões catastróficas sobre o fim do livro impresso. “É uma nova modalidade que tem características distintas da impressa em papel, tanto do ponto de
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vista de produção quanto da distribuição, da circulação e da recepção.” Em suas palavras, as inovações tecnológicas tapam buracos que se tem na comunicação e alteram relações. Como fizeram com o papel de emissor e receptor na área comunicacional, dinamizando-o e colocando em xeque uma relação linear, em direção única. Com mais um de seus exemplos bem dramatizados, Perrotti explica: “tínhamos um limite que não existe mais. Você está na rua e manda um e-mail para o jornalista lá na redação reclamando para ele... você está escrevendo um texto, a fonte te responde uma pergunta naquela hora, você pega um pedacinho que ela respondeu e completa a matéria. Está tudo ali, instantaneamente. E mais, podendo incorporar outros fatores nesse jogo, como a possibilidade de falar ao mesmo tempo com duas pessoas”. Deixando um pouco de lado a empolgação e ponderando as glórias e deslizes das novas tecnologias, o professor aponta os perigos da radicalização da comunicação quase instantânea. “As mídias contemporâneas te coagem a estar o tempo inteiro plugado. Por exemplo, não há cabimento você não ter respondido um e-mail que te mandaram ontem à meia noite.” Perroti, alerta também para a exclusividade a que se pode deixar envolver, porque “se acaba prisioneiro de um único recurso comunicacional, que tira as possibilidades vindas de outras linguagens e que são próprias e específicas delas”. Relembrando fatos históricos, o professor cita as mudanças que aconteceram ao longo do tempo decorrentes de cada advento. “Os sistemas de difusão vieram cumprir a função de que os sistemas antigos não conseguiam dar conta. Porque, convenhamos, ficar no manuscrito, desenhando cada livro, era extremamente complicado, havia uma limitação da divulgação muito grande.” O professor continua repassando a história da imprensa rapidamente: seu desenvolvimento, a industrialização, a popularização dos jornais e a grande circulação das revistas. “Não são mais produtos como os livros, são coisas realmente para consumo. Então, isso vai ainda mais expandindo a difusão.” O grande lamento dele, porém, é que o aumento do alcance desses produtos impressos não influencie diretamente no nível de conhecimento da sociedade. “Não nos tornamos, mecânica e automaticamente, mais informados, mais relacionados com as questões do saber em um sentido amplo do termo.” Isso porque a questão vai além da acessibilidade da plataforma, como Perrotti enfatiza ter percebido na prática: “pode-se distribuir muitos livros e, mesmo assim, se continuar sem leitores. Ou, pelo menos, não ter uma correlação da mesma quantidade, entre o que se distribui e quantos leem”. Mesmo com todas as contradições desse movimento, ele defende que algumas funções da linguagem não vão mudar independentemen-
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te do meio em que sejam veiculadas. Para ele, a memória é o motivo inicial da linguagem escrita, mas quando surge a imprensa o poder de difusão não substitui a função de registro perene da escrita, apenas agrega outra qualidade a ele. “Até hoje, quando você manda uma mensagem pelo celular, tem que inscrever aquilo na memória do telefone, e quem recebe do outro lado, vê um registro de memória seu. Assim, a função dos primórdios da escrita continua em um gesto contemporâneo, só que redefinido, reconfigurado.” Apesar de derramar elogios aos e-books, Perrotti naturalmente, pelo tempo de convivência, está melhor familiarizado aos impressos. Além de obras teóricas sobre a literatura infantil, tomou para si a função de autor, da qual diz já ter esgotado sua ânsia. Entre seus livros está O bordado encantado, de 1998, obra na qual uma viúva, moradora de um país longínquo, vende pedaços de seda que borda para sustentar sua família. Até que um dia um bordado diferente muda sua vida – de um modo mágico, como Lobato fez com a do autor.
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Valquíria Fagundes Educação da educadora
Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
poema, declamado pelo professor de português em um jantar poético com a turma, deixou Valquíria em prantos. “Eu nunca fui boa na matéria dele, e detestava poesia, porque o referencial que eu tinha até então era ‘batatinha quando nasce’. Mas quando o professor Jânio começou a recitar ‘eu não sou nada, eu nunca serei nada’, eu pensei: como é que esse cara sabe mais de mim do que eu mesma? Foi pra mim que ele escreveu!” Este foi o primeiro contato de Valquíria com a literatura que a mobilizou, “aconteceu de uma forma extremamente visceral”. O cara a que se refere, no caso, é Fernando Pessoa, e o poema, Tabacaria. Ela tinha dezessete anos, e uma história já bem longa para alguém de tão pouca idade. Hoje, pedagoga formada pela PUC, ela se aproximou de vez da literatura e trabalha com mediação de títulos para crianças. Valquíria Fagundes nasceu em São Paulo, e viveu a infância e a adolescência com a família na região norte, em uma casa de apenas um quarto. Negra, com cabelos crespos de tamanho médio, ela tem um sorriso grande, que parece iluminar o rosto quando se abre. Filha do segundo casamento da mãe, teve seis irmãos – três deles já falecidos. Perdeu a mãe aos seis anos, mas pode contar com o pai para suavizar a infância difícil. “Quando a minha mãe faleceu, ele se viu viúvo com quatro filhos para criar, e em momento nenhum ele nos abandonou.” Em uma tentativa de reorganizar a família para que pudesse continuar trabalhando, o jovem viúvo pediu a ajuda da sogra, mas o arranjo não deu certo, por não concordar com o modo como a avó tratava os netos. Assim, os dois meninos mais velhos foram enviados para um internato em Guaratinguetá, no interior paulista. Valquíria e a irmã caçula foram para outro colégio interno, em Santa Teresinha, na capital – as meninas, porém, não se adaptaram. “Meu pai se deu conta de que nem parente nem internato estavam dando conta de cuidar das filhas, e decidiu que íamos ficar em casa mesmo. Então, ele ia trabalhar e nós ficávamos sozinhas, só eu e minha irmã.” Pelo esforço em cuidar dos filhos, o pai de Valquíria passou a ser admirado pelos vizinhos, que começaram a ajudar. “Eles ficavam de olho, diziam: ‘aonde você vai, menina? Você não vai não, seu pai está para chegar!’.” No começo da adolescência, Valquíria passou a frequentar a igreja católica. Fez catequese, crisma, integrou grupos de jovens, e acabou em um específico: relacionado a filosofia da teologia da libertação. Nesse
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momento, a menina que um dia se graduaria pedagoga começou a formar sua visão de educadora e a entender mais sobre cidadania, trabalhando junto a moradores de rua. Ela começou com a distribuição de sopa no centro da cidade e, entre a ida à feira para recolher as sobras e o cozinhar, se aproximou de outros voluntários, entrando em contato com ideias de lutas sociais e discussões sobre os direitos negados àquelas pessoas. A luta externa foi aos poucos modificando o universo interno de Valquíria: “eu não tinha o sonho de ir para universidade, para mim as possibilidades resumiam-se a se casar e ter filhos, porque no meu bairro, entre os meus amigos, não havia outro referencial”.
Do casarão ao Piqueri
Valquíria nunca mais deixaria os trabalhos com grupos desfavorecidos – a experiência seguinte seria com crianças, também na área central de São Paulo. “Foi muito difícil, porque eu era bem jovem, então, aquela realidade me chocava muito. Eu voltava para casa triste, mas ao mesmo tempo foi o que me deu a consciência de quem eu era. Ali, eu me percebi como filha de uma classe trabalhadora.” A coordenação do projeto era feita por uma professora chamada Odete, que, segundo Valquíria, foi uma das principais inspirações para que partisse para a área de educação. “Ela me ensinou muito. Porque, embora os alunos estivessem em uma situação desprivilegiada, ela nunca os tratou como vítimas. Em nenhum momento teve um olhar assistencialista ou paternalista. Ensinava às crianças que elas tinham direitos e deveres.” O trabalho passou a ser não só com os pequenos, mas com toda a família, abarcando temas como o direito à moradia. “A questão da criança era um pingo diante das necessidades que aquelas famílias tinham. Começamos a discutir com elas sobre habitações dignas, coisa que eles não tinham.” Assim, Valquíria foi parar em uma favela do Piqueri, na região oeste da cidade. Lá, decidiram pela criação de abrigos para menores em situação de risco que não podiam ou não queriam voltar para suas famílias. “Até então, os únicos asilos possíveis para essa juventude eram a Febem e os internatos. A ideia era comprar recintos para que eles pudessem reconstituir suas vidas em comunidade, e o espaço acabou surgindo na favela do Piqueri.” A ideia, porém, não foi bem recebida pelos meninos em situação de rua. “Eles tinham uma relação de pertencimento muito maior com os amigos que encontraram na rua, do que dentro de um lugar fechado na favela.” Após várias tentativas frustradas, o barraco acabou vazio e Valquíria saiu da casa da família para morar lá. “Em determinado momento um amigo falou que vivia em frente e me perguntou por
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que eu não ia ocupar o barraco. Como ninguém queria e eu já tinha uma relação de trabalho com a comunidade, eu topei a ideia.” Os parentes não gostaram da decisão: o pai perguntou se ela estava ficando louca e a irmã mais nova se sentiu abandonada. “Meu pai nunca foi autoritário, mas achava maluquice eu deixar a casinha simples para ir morar sozinha em um barraco. Já com minha irmã foi difícil resgatar a relação que tínhamos, porque o abandono era um sentimento forte que ela carregava desde a infância, quando nossa mãe morreu.” Os amigos também não acreditavam, na vizinhança fizeram até aposta. A primeira de que ela não estaria saindo de casa sozinha – teria arrumado um homem para bancá-la. A outra, de que ela voltaria rápido para o abrigo do pai. Não foi o que aconteceu e ela se diverte com a quantidade de perdedores dos bolões. “Eu tinha dezenove anos na época e faz vinte e quatro anos que eu saí e nunca mais voltei para morar”, conta orgulhosa. A relação com o pai se acertou logo, depois da primeira visita que ele fez ao Piqueri. Valquíria imita: “nossa, filha, estou entendendo o porquê de você vir para cá, é uma comunidade, né? Eu imaginava outra coisa, não sei descrever, mas não achava que fosse isso aqui”.
Batalhas políticas
Apesar das dificuldades materiais por que passava morando em um barraco em área de risco, o Piqueri se tornou um marco de solidariedade na vida de Valquíria. Ela passou os primeiros oito meses, dos cinco anos que moraria lá, desempregada, mas nunca passou fome: a comunidade cuidava de si. Por ter ido para lá por escolha própria, Valquíria era tratada de forma diferente pelos vizinhos. “Eles me chamavam de dona porque entendiam que, por mais que eu estivesse ali, não era a mesma condição deles. Eu optei por ir, eles estavam lá porque não tinham outra opção, e isso era uma coisa que nos diferenciava por mais que eu quisesse pertencer ali.” Após uma chuva forte, quando um dos moradores morreu soterrado, a comunidade do bairro decidiu se unir aos movimentos de habitação, e dialogar com o governo, na gestão de Luiza Erundina. Depois de alguns impasses, um projeto saiu do papel: a prefeitura conseguiu um terreno em Parada de Taipas para as famílias, que ajudariam, participando de um mutirão para construir as casas. Mesmo que seu barraco fosse classificado como um dos casos de perigo, Valquíria demorou um bom tempo para colocar seu nome na lista que iria para o sorteio das moradias. “Naquela época eu era muito jovem, e eu tinha escolhido ir morar no Piqueri. Por isso, eu não queria pegar a vaga de uma família inteira, ou de uma mãe com filhos.”
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O nome dela foi colocado na lista de qualquer jeito, pela insistência dos vizinhos. Assim, Valquíria começou a participar do mutirão, que acontecia aos sábados, domingos e feriados: “tivemos que fazer de tudo, começando do zero. Tiramos mato do terreno, matamos cobra, fizemos toda a fundação”. Foi decidido que quem tivesse cinco faltas consecutivas sem justificativa perderia a vaga. Valquíria ficou no mutirão por dez anos – saiu na gestão de Paulo Maluf, quando os recursos pararam de chegar. “Eu já estava desiludida. Decidimos em assembleia que as casas prontas seriam sorteadas, porque não fazia sentido esperar mais tempo por novas verbas. Eu nunca era sorteada, e eu chorava tanto.” Ela decidiu, então, sair da favela, após um temporal que levou seu barraco embora. Nesse dia, por sorte, dormira na casa de um amigo, e quando voltou, viu o que tinha restado de suas coisas, assim, tomou a decisão de partir. “O pouco que eu tinha estava molhado, cheio de barro, todo destruído. Hoje, quando eu assisto a uma catástrofe dessas em que as pessoas aparecem dizendo que perderam tudo, eu sei do que eles estão falando”, lamenta. Valquíria se ligou a outro movimento de moradia e, dessa vez, deu sorte: conseguiu, pelo projeto, o apartamento onde mora desde 1999, no Itaim Paulista.
Escadas desiguais
Foi por pressão de amigos que ela prestou vestibular, porém, não conseguiu ingressar em nenhuma faculdade pública. Quando resolveu desistir, eles a incentivaram a fazer a prova da Pontifícia Universidade Católica, na capital paulista. Ela passou e, com uma vaquinha entre os colegas, conseguiu pagar parte da matrícula do curso de pedagogia. “Até hoje, quando eu subo as escadarias da PUC, fico desacreditada de ter conseguido romper com esse determinismo de que só 1% dos formados em escola pública chega ao ensino superior.” Faltou mais dinheiro e ela passou seis meses sem conseguir pagar a mensalidade. Sem um fiador para conseguir financiamento, Valquíria iria abandonar o curso, quando a presença de mais um professor seria decisiva em sua vida. “Rui César do Espírito Santo. Sem a generosidade dele eu não teria conseguido finalizar a graduação.” Ele foi fiador de Valquíria, em uma época que o salário dela era de seiscentos reais – dinheiro que tentava racionar entre ajudar o pai, manter sua casa, pagar a parcela do financiamento e comprar mantimentos. Em um trabalho para os alunos, Rui pediu para que fizessem uma reflexão, “e eu, que não tinha mais tempo hábil para fazer nada, usei isso como tema, e ainda coloquei uma crítica sobre a injustiça do sistema. Porque embora eu tivesse chegado à universidade, me manter
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nela não era nada fácil. Eu pagava, mas faltava quase para comer”. Dias depois do desabafo, ela estava no trabalho quando recebeu uma ligação da faculdade. Por pedido de Rui, Valquíria obteve um financioamento durante o curso – pagaria os custos depois de se formar.
Capacitando-se mediadora
A educadora passou a estagiar em um departamento da PUC, que tinha um projeto de ajuda na implantação de um centro cultural na favela do Real Parque, na zona sul da cidade. Ela ficou tão interessada que depois de o projeto ser implantado, fez entrevista de emprego no centro empresarial que o iria administrar. Tal atitude era impensável para a Valquíria de alguns anos atrás: “se fosse uns cinco anos antes e me falassem que era um centro empresarial quem cuidaria, eu nunca iria pedir para trabalhar lá. Eu achava que empresário não queria mudar nada na sociedade”. Mais aberta às possibilidades, ela foi conferir e acabou selecionada para a vaga, “eu queria ver para crer. No fim, comprovei que a ideia de que os empresários querem ajudar e transformar as coisas, na verdade, é falsa mesmo”. Distanciado da comunidade de cinco mil famílias e presidido pela dona da construtora Camargo Correia, o projeto era, nas palavras de Valquíria, um grande elefante branco. “O quê a Camargo Correa fez? Negociou com a prefeitura e não com a comunidade. Pegou um espaço do Cingapura, um coletivo habitacional onde poderia ter mais moradias, e implantou o seu projeto de responsabilidade social.” Contratada, ela e a equipe decidiram ir por si mesmos conhecer a comunidade e convenceram a construtora a alugar uma casa dentro da favela – que passaram a chamar de “casulinho”. Lá, começaram a ter contato com os moradores e os jovens, que já eram um grupo fortalecido no local. “Isso foi um diferencial, me surpreendeu muito. Havia um habitante chamado Boca, que reunia os adolescentes para, voluntariamente, ensinar capoeira. Ele era uma referência muito grande, porque usava a dança para aglutinar os jovens e fazê-los refletir sobre seus direitos e reivindicar coisas.” Um exemplo foi a luta por manter a comunidade no local, já que, tendo uma vista privilegiada para residências do bairro do Morumbi, era motivo de desconfiança por parte dos moradores da área nobre. A região vinha de períodos de violência: assim, a iniciativa era de murar a comunidade, distribuindo cartões magnéticos entre os moradores, que controlasse a movimentação. “Na verdade, eles queriam tirar a comunidade de lá, e o projeto foi uma tentativa de minimizar os conflitos. Mas eles não foram tão felizes, nós éramos profissionais mui-
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to bons, comprometidos a fazer aquele ponto de cultura funcionar. E deu certo.” A grande conquista foi uma biblioteca no local. Foram os próprios jovens que se organizaram e conseguiram aprovar o projeto. “Eu fiquei responsável por cuidar dela, e começamos a desenhar a gestão incluindo a participação dos mais novos. Só que eu não tinha experiência nenhuma com biblioteca e pouca relação com livros até então. Eu não era nem uma leitora clássica, lia por obrigação.” Para capacitar os gestores a tomarem conta do acervo, foi contratada a instituição A Cor da Letra, que ensinou Valquíria a ser mediadora de leitura. A biblioteca foi pensada para ser um espaço acolhedor, que não tivesse um ar de sacralidade, intimidador, colocando medo nos jovens. “Foi um sucesso. Mesmo competindo com espaços multimídia e de teatro, ela se tornou o local mais frequentado pelos jovens do Real Parque.” Valquíria descreve um espaço com almofadas jogadas pelo chão, onde havia mediadores capacitados, mas que deixavam as pessoas à vontade para ouvir música ou “simplesmente ficar lá dentro não fazendo nada”. O contrato de Valquíria durou três anos, até que pediram que não desse mais sua opinião para os frequentadores da biblioteca. “Eu pedi para sair. Começamos com uns novecentos livros, todos de literatura. E foi isso, passamos meses sem dinheiro para comprar um dicionário. Porém, quando o ministro Gilberto Gil foi inaugurar o local, a instituição conseguiu trezentos mil reais para fazer o evento. Então, eu comecei a questionar essas coisas, a adentrar a vida da comunidade, a participar das festas... os jovens começaram a refletir sobre a atuação da instituição e a empresa achou que era eu quem os influenciava – porque, claro, eles não poderiam ser questionadores por eles mesmos”, ironiza.
Expandindo horizontes
Valquíria foi convidada a trabalhar como educadora na fundação A Cor da Letra, onde ainda atua. Porém, em 2007 um episódio seria definitivo para mantê-la no projeto: quando percebeu um padrão incômodo em seus trabalhos: nunca conseguiu fazer algo pelo bairro onde morava, estava sempre em outras regiões. Em uma coincidência feliz, uma amiga de reuniões culturais, assumiu a direção da E.M.E.F. Armando Cridey Righetti, situada a alguns quarteirões do apartamento de Valquíria no Itaim Paulista – região com o maior índice de vulnerabilidade social da cidade. Assim que a diretora assumiu, a comunidade começou a pressioná-la por conta da falta de vagas no ensino fundamental. As salas já tinham mais de quarenta alunos e funcionavam em cinco turnos, mas ainda faltavam, no mínimo, cento e cinquenta vagas. Se recusavam a
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fazer as matrículas, porque não havia mais espaço. Porém, em vez de só dizer não, incentivavam que a comunidade se organizasse e buscasse esse direito constitucional na prefeitura. “Sabe o que é uma escola funcionar em cinco turnos? Sai um aluno e a cadeira está quente, entra outro aluno e a cadeira está quente, sai outro aluno... como pensar em qualidade de educação desse jeito?” Os pais das crianças do Itaim Paulista se mobilizaram e denunciaram na TV e na promotoria pública. A campanha deu certo: o Secretário de Educação foi ele mesmo ver a situação da escola. Infelizmente, toda a atenção em cima do colégio deixou os professores muito abalados. A diretora, então, decidiu contratar profissionais para fazer oficinas de capacitação com os professores, a maioria deles extremamente estressada por ter que lidar com exposição pela situação política e com as classes lotadas, onde muitos dos alunos eram indisciplinados. “A Cláudia, diretora, buscava alguém que se sensibilizasse e cuidasse um pouco deles. Era uma coisa pontual, mas quando eu fui para lá, me identifiquei demais com os educadores. Eles estavam em uma situação de abandono muito grande.” Valquíria optou, então, por começar com um exercício simples, pedindo que os docentes se olhassem, vissem as máscaras que se colocam. “Eu queria que eles se desprendessem disso, revelassem suas vulnerabilidades para que não se tornassem armas nas mãos do outro, elas precisam ser compartilhadas em um espaço de solidariedade.” Em 2009, estruturalmente falando, o pior já havia passado. A escola havia sido ampliada, e começou a funcionar em apenas três turnos. Mas os problemas graves de indisciplina persistiam. A diretora estava no cargo há dois anos – um longo período de trabalho, acima da média de uma escola que teve dezesseis diretores em trinta anos de operação –, quando conseguiu recursos junto ao governo para capacitar mediadores de leitura, o pessoal de A Cor da Letra. O trabalho de Valquíria, então, se aproximou dos livros de vez. Ela cumpria o papel de instruir os docentes a como mediar. Alguns alunos também se interessaram, aprenderam a oferecer e mediar leitura para os mais novos. Em um turno diferente do horário de aulas, esses estudantes iam à escola para incentivar a leitura entre os colegas menores. “O trabalho com os alunos mediadores foi de conversamos sobre o que víamos como um livro de qualidade. No caso, são os que proporcionam mais do que só a narrativa, que também contam histórias gráficas.” Valquíria cita exemplos de obras que gosta: Zoom, de Istvan Banay, que é composta apenas por imagens, nas primeiras páginas aparecem apenas alguns detalhes de um objeto que não se consegue identificar, até que cenas inteiras
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aparecem, como um zoom diminuindo. O que Valquíria considera muito interessante, porque permite às crianças ir além das histórias: “teve um livro, eu não me lembro o nome, em que um dos estudantes percebeu uma narrativa que não estava na escrita. Era um gato que passeava em meios às ilustrações e terminava na contracapa. Então, o que o livro contava não acabava no fim do texto”. Atualmente, Valquíria divide seu tempo entre a mediação na escola e o mestrado em educação na Uninove. “Como eu já tenho essa intervenção na escola, quero sistematizar e validar cientificamente o projeto, disseminá-lo e divulgar na rede, para que ele possa ser adaptado para outras escolas.” Ela mesma já colocou em prática, iniciando o trabalho na E.M.E.F. Flavio Rosa, onde “a maioria dos professores comprou a ideia, e agora está tocando o barco sozinha. Isso é um movimento que eu vi na minha formação com a leitura: uma vez mediador, eternamente mediador”.
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Cristiano Alcântara Lições de sala
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aria Bethânia, a cantora baiana de músicas marcantes, interpreta letras e melodias que lhe tocam a alma – ela é sua favorita. De estatura baixa, pele queimada de sol e cabelos escuros cortados rentes, Cristiano Alcântara tem semblante calmo, com um sorriso quase constante, à vontade no canto da boca, que não condiz com as palavras duras que lhe saem da boca quando trata de questões delicadas. Com sandálias de couro e calças bege até as canelas, ele poderia ser uma daquelas figuras que andam relaxadas todos os dias por calçadões, em cidades litorâneas. Próximo às praias, como as da Bahia de Bethânia. A rotina de Cristiano, porém, passa longe do cenário praiano – vive na região central de São Paulo. E, no trabalho alterna dois destinos: a E.M. Vereadora Aracy de Ângelo, em São Bernardo do Campo, onde cumpre a função de coordenador pedagógico, e a E.M.E.F. Duque de Caxias, no bairro da Liberdade, não muito afastada de sua casa, onde dá aulas na Sala de Leitura. Nesse cargo, tenta partilhar seu gosto musical com os estudantes. “Queria que eles aprendessem a ouvi-la, mas no começo, diziam que ela era a minha cantora, depois se referiam a ela como ’aquela’ e, a muito custo, pediram para colocar o ‘disco da Bethânia’”, comenta. Esse processo, que durou mais de oito meses, enfim deu um resultado que o deixa feliz: em um dia das crianças alguns de seus alunos pediram CDs da cantora como presente. O trabalho de mediação de Cristiano não se resume às canções de MPB. Desde que deixou as aulas para cuidar da Sala de Leitura, seu foco tem sido a literatura – arte que também o encanta. “Em cada escola municipal o professor tem direito a prestar concurso, deixar as matérias regulares e ir para a biblioteca, onde recebe as turmas uma vez por semana.” Além das lições, esses espaços continuam funcionando como acervo de livros, onde os alunos podem emprestar exemplares. Vinte aulas por semana formam a carga horária de Cristiano, quinze delas trabalhando com as turmas de estudantes, com idades que variam de seis a catorze anos, e cinco em plantões, para ajudá-los com pesquisas do dever de casa.
Leitura conjunta
A vaga é geralmente preenchida por um docente que já leciona na escola. “Escrevemos a proposta e resolvemos na reunião do conselho, onde votam pais e professores.” Todos os anos, o selecionado é referendado nesse mesmo tipo de encontro – método que não agrada muito Cristiano, porque deixa os estudantes afastados do processo de decisão. “Como eles podem me referendar se não conhecem o meu trabalho lá dentro? Bem ou mal, os alunos estão lá, são eles que sabem o que estamos fazen-
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do.” Ao deixar as salas de aula, ele sente que perdeu algo importante no processo de aprendizado das turmas: a continuidade. Por já não acompanhar o desenvolvimento das classes e encontrá-las apenas uma vez por semana, diz que precisa de artimanhas mais dinâmicas para prender-lhes a atenção. São dezenove turmas, e Cristiano estima que consiga ler durante os quarenta e cinco minutos de aula em apenas cinco delas. “Eles chegam à biblioteca e minha proposta utópica é ler o livro inteiro, mas, claro, a maioria não se concentra. Então, faço uma intervenção curta e depois levanto uma discussão.” Se não consegue apenas ler, o professor procura ocupar o tempo de aula com atividades complementares ao livro. Com algumas turmas, trabalhou a obra A fantástica fábrica de chocolate, de Roald Dahl. Liam cerca de quinze minutos e depois assistiam a trechos do filme que ilustravam a leitura, “algumas salas se aplicavam um pouco, outras não, queriam que eu parasse, colocasse logo o filme”. Contente, talvez aliviado por existirem exceções, fala com a voz vibrante: “uma turma pediu para tirar o filme, porque eles queriam só ouvir a história!”.
O desafio da abordagem
Puxando ganchos em certos assuntos de interesse dos estudantes, Cristiano consegue fazê-los interagir em alguns debates. Imita a reação de um aluno: “ah, professor, mas eu nem bagunço na sua aula”, como um elogio. No geral, em sua percepção, as crianças respondem bem a contos de fada, livros-brinquedo e poesias – estas últimas por gostarem das rimas. Já entre os adolescentes, o tema da sexualidade é de interesse geral, e os esportes sempre têm apelo com os garotos. Por isso, o caderno com notícias de futebol é um sucesso se comparado aos livros das estantes. Uma obra mal mediada pode afastar a criança da leitura. Foi o que aconteceu com os livros do criador da menina Narizinho, que ficam em uma prateleira especialmente dedicada. “Há uns anos, tínhamos uma professora que gostava de Lobato. A priori nada muito contra, mas é um texto complexo, eu mesmo não sei se conseguiria, até porque não sou lá muito fã do homem. Eu acho mais fácil aproximar os alunos da Bethânia do que de Lobato”, provoca. Sua crítica se baseia no apelo que a obra teria entre os alunos: “se descobrirmos que uma turma gosta do Sítio do Pica-Pau Amarelo, ótimo! Agora, a intenção pode ter sido das melhores, mas se não há nenhum diálogo, por que passar a leitura? Só para falar que estão lendo um texto difícil?”. A mesma barreira imposta pelos estudantes nos primeiros contatos com as músicas da cantora baiana apareceu na relação com a obra de Lobato – mas nesse caso, ainda não foi derrubada. “Ah, é o homem que
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a professora gosta. Mas eu não gosto dele”, encena Cristiano, imitando o que ouviu de alguns alunos. Enquanto muitos resistem à leitura complicada que é a turma do Sítio, há jovens que se interessam justamente por livros mais densos. Para eles, há um projeto chamado Círculo de Leitura, no qual o professor trabalha literatura além do horário das aulas regulares. “Com eles, eu consegui ler Dom Casmurro, do Machado de Assis, A hora da estrela, da Clarice Lispector... o combinado é que eles leem um capítulo comigo, e dois em casa, depois discutimos o que entenderam e o que ficou marcado da leitura. Mas é uma realidade diferente do trabalho com a maioria dos estudantes.”
Indicação etária
Cristiano confessa que nunca deu muita atenção às classificações etárias dos livros – o importante, diz ele, é fazer com que se apeguem a qualquer leitura. “É um modo de tornar viável o exercício, porque a realidade é que se você fala para adolescentes que a obra é indicada para crianças, eles não querem ler, se fala que é para adultos, eles não leem porque é muito difícil. Então, não toco nesse ponto.” Conseguiu certa vez trabalhar João Cabral de Melo Neto com uma turma, na qual uma das alunas, com nove anos, declamava o primeiro ato de Morte e vida Severina de cor. Em outra ocasião, os estudantes de uma sala de terceira série gostavam dos poemas de Augusto dos Anjos. “Além de uma literatura difícil, fala de morte, então poderiam dizem que não é adequado, mas se eles gostaram, ué?! A partir disso fizemos versos alexandrinos, estudamos haikai, um poeta foi até a escola e conversou com eles...” Não apenas os livros ditos para adultos, mas as obras direcionadas a crianças pequenas também aparecem nas aulas de Cristiano. A fábrica de grandes palavras, de Agnes de Lestrade, tem indicação para faixa etária de seis anos, e conta a história de um país onde as pessoas pagam para falar, então, compram as palavras, as engolem e depois pronunciam. “O livro permite uma problematização muito legal, em uma passagem, acontece um saldão de palavras usadas, essas que todo mundo já está falando. E os alunos foram entrando na discussão: ‘ah, são gírias, palavrões, né professor?!’. Um chegou a dizer que não tinha entendido um trecho e pediu que eu repetisse a leitura, nem sei dizer quanto isso é raro”. Em outras situações, Cristiano colocou os alunos em contato com as narrativas construídas apenas com imagens. A princípio, não consideravam que fossem livros, mas “quando perceberam a dificuldade de entender o que aquelas imagens querem dizer, aí sim, porque na cabeça deles, para ser livro, tem que ser difícil. E esses apenas com imagens, algumas vezes ficam mais complicados, se tivessem uma linhazinha ex-
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plicando seria mais simples do que terem que problematizar”. O preconceito com as obras infantis não fica apenas entre os adolescentes nas escolas, o professor conta que vive esse estranhamento na pele. “Se eu digo que estou lendo um livro infantil, perguntam: ‘mas por quê? Você dá aula? É para os seus alunos?’ E se falo que não, perguntam o que aconteceu, ‘você não se desenvolveu ainda?’.”
Responsabilidade familiar
Cristiano cresceu em Mogi das Cruzes, e foi lá que entrou pela primeira vez em uma biblioteca, a municipal. Ele se lembra dos muitos empecilhos para conseguir livros emprestados no local: “era super burocrático, você tinha que fazer silêncio, não podia ir à estante sozinho, precisava pedir para a bibliotecária pegar os livros”. Comparou ao filme, que havia assistido há uns dias, O nome da rosa, dirigido por Jean-Jacques Annaud, e, encenando, brinca que via muitas semelhanças: “ninguém chega perto desses livros se eu não autorizar!”. O pouco incentivo à leitura que recebeu dos pais veio de forma indireta: da empresa em que seu pai trabalhava, recebeu de brinde a primeira obra que leu: Raul da ferrugem azul, de Ana Maria Machado. “Eles me mandaram como presente um brinquedo e esse livro. Eu adorei, e acabei me ligando à literatura por curiosidade.” Hoje, faz sua parte de incentivador, não só nas escolas, mas com a família. Solteiro e sem filhos, se diverte levando os sobrinhos para passeios culturais, como o Museu da Língua Portuguesa, e apresentando obras. “Eu viajei ao Canadá e trouxe uma edição do Pequeno príncipe, de Antoine Saint-Exupéry, em francês. Os meninos não conseguem ler, mas eles adoram folhear, sempre que vão em casa pedem para ver a obra.” Por experiência própria, Cristiano não acredita no determinismo de que a base familiar compromete a educação. “Eu ando até com medo de falar da influência da família nas coisas, porque hoje em dia a moda é que tudo é culpa da família e, olha, se fosse mesmo, então esquece a criança, porque não teria solução.” Mesmo assim, reconhece que os alunos com pais participativos, que incentivam a leitura, têm mais facilidade, levam os estudos mais a sério e se interessam mais pelas aulas. Há algum tempo um programa de governo procura incentivar a leitura fora das salas de aulas, o Minha Biblioteca. As crianças matriculadas na escola recebem três livros por ano para que montem um acervo em suas casas. “A seleção é legal, de obras conhecidas, que chamam atenção das crianças, já chegou a vir Harry Potter, da J.K Rowlings.” Infelizmente, grande parte dos livros não é bem recebida, e acaba virando renda para as crianças, que os vendem nos sebos próximos à escola.
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Para todas as obras não terem o mesmo triste fim, Cristiano tenta conversar no colégio sobre a importância de mediá-las antes de entregar aos alunos. “Ao chegarem à escola, os livros vêm separados pelas séries, sempre nominais. Poderíamos trabalhá-los na sala.” A escolha dos títulos não passa pelo crivo dos professores nesse caso, “acredito que seja uma comissão do MEC de leitura, ou as editoras que indicam suas melhores obras. Mas professor não escolhe, pelo menos a mim nunca perguntaram o que eu achava adequadas ou não”, brinca. Já nas Salas de Leitura, os livros são indicados pelos docentes e comprados pela prefeitura.
Processo burocrático
Contraditoriamente, essas indicações acabam sendo um desafio para o projeto da Sala de Leitura por conta da burocracia necessária para a compra. “É óbvio que os meus alunos queriam ler a coleção de Crepúsculo, de Stephenie Meyer, mas as compras são tão demoradas e burocráticas que, se eu fizer a indicação dessas obras hoje, provavelmente vai demorar um ano para chegarem à escola. Ai, não vão ser mais esses livros que eles vão querer, serão os próximos best-sellers.” O meio mais fácil e barato de se comprar livros seria pela internet, via que o governo não permite ser usada para este fim. “No site Submarino, que é o lugar mais em conta, eu conseguiria trinta Crepúsculos pelo mesmo preço que em uma livraria sairiam apenas cinco exemplares.” Porém, não pode usar esse meio, a verba acaba sendo insuficiente para adquirir uma quantidade boa de exemplares e o governo, única alternativa de compra com preços baixos, demora muito para entregar. Há ainda os problemas que não envolvem os livros e as Salas de Leitura e requerem verbas imediatas. “É aquela história de que na escola o cobertor é curto para tanta gente que sente frio. Então, chega uma verba de cinco mil reais, se eu quiser usar mil para comprar trinta livros, a diretora me mata, e diz: ‘eu tenho uma janela para arrumar, outras vinte coisas para consertar’.” Em uma negociação não muito aberta, Cristiano comprou três coleções de Harry Potter pela internet a setenta reais cada uma. Quando cotou nas livrarias, a mais barata saia a trezentos e cinquenta reais, na Cultura. “Eu não entendo como eles querem ter um bom acervo, se não podemos fazer as compras pela internet”, reclama.
Problema estrutural
Os paradidáticos não chegam apenas para o acervo das Salas de Leitura, mas para servir de apoio nas aulas regulares. “Não é muito comum, mas quando chegam, são cerca de vinte exemplares, o que daria para
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usar com uma turma, sem problemas. Mas os professores não aproveitam e eles sempre acabam na biblioteca”, lamenta. Cristiano relembra que certa vez uma coleção sobre sexualidade para a aula de ciências chegou à escola com livros O corpo dos garotos, Primeira vez e O corpo das garotas, todos escritos por Jairo Bouer. “Eu mostrei para os professores, sugeri que trabalhassem em sala, mas ninguém quis usar.” Em sua tese de doutorado, ele tem estudado justamente como tornar um professor leitor. “Antes de começar esse trabalho, eu achava que eles não passavam livros em aula por maldade ou preguiça, mas não é. Eles só não sabem como fazer, não têm ideia. E então, é que fica complicado, porque eu mesmo comento com o professor sobre obras, e ele não sabe do que eu estou falando.” Por esse motivo, se apegam aos didáticos, que têm a obrigação de escolher a cada ano. “Em alguns casos, eu tenho a impressão de que se roubarem o livro didático do professor, ele não consegue mais dar aula”, cutuca Cristiano. E o problema não fica apenas dentro da escola, mas na vivência cultural dos docentes que estão fora do circuito, afastados das novidades. Mesmo na escola Duque de Caxias, localizada na região central da cidade e disputada por professores com anos de experiência na rede de ensino, a frequência em ambientes culturais continua baixa. “São profissionais que têm altos estudos, temos três doutores e cinco mestres, isso é muito além da média. E se eu te falar que metade vai ao Centro Cultural Banco do Brasil, que fica ao lado da escola, ou ao teatro, ao museu, ao cinema regularmente, é muito. Então, se o professor que devia mediar não tem o conhecimento, ele vai mediar o quê? Ninguém dá o que não tem, essa é a grande constatação a que eu cheguei”, desabafa. Pesquisas acadêmicas, que Cristiano acompanha de perto, discutem a formação atual do docente. Se, há décadas, eram as filhas de médicos e advogados que decidiam cursar o magistério, hoje as integrantes de famílias de baixa renda buscam a profissão como uma alternativa a trabalhos pesados com horários extensos – como a função de vendedora. “Antes, o recorte era da mulher que não simplesmente ia ao museu, como ia à Europa ver o Louvre, ao Egito ver as pirâmides. Hoje, se tornar professor já é uma ascensão profissional, porque ao invés de trabalhar oito ou nove horas, vai trabalhar cinco e ganhar mais. Então, em alguns casos, aprendem exatamente aquilo que vão ensinar e mais nada.” Os programas culturais, mesmo em localizações próximas estão fora da rotina da maioria, para exemplificar, Cristiano recorda que foi ao cinema assistir Fausto, dirigido por Alexandr Sokurov, em adaptação à obra homônima de Goethe. “Eu, particularmente não gostei muito do filme e queria conversar sobre isso. Mas se eu pergunto quem assistiu, elas vão me responder com outra pergunta, ‘mas quem é Fausto?’.”
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Como incentivo aos passeios culturais, o professor de escola pública paga meia-entrada. Há um cartão distribuído pela prefeitura que dá alguns auxílios, como nas compras em certas livrarias. Porém, a ajuda não é muito eficaz, e nem mesmo a doação ou o empréstimo de exemplares conseguem incentivar em alguns casos. “Levei uma caixa com quarenta obras para os professores da escola de São Bernardo, a maioria da Clarice Lispector. Falei para lerem que conversaríamos e só depois de meses, uma professora me falou: ‘você acredita que agora eu estou lendo? Meu marido nem acreditou que, uma vez quando nós estávamos no shopping, eu entrei em uma livraria e comprei um livro’. Ela é uma professora e nunca tinha entrado em uma livraria depois da faculdade”. Quando interroga o porquê de estarem tão afastados do circuito cultural, em um meio majoritariamente ocupado por mulheres, ele ouve das mais variadas desculpas, dentre elas, a mais recorrente: os filhos. “Eu brinco que se eu fosse do governo, somente mulheres estéreis poderiam ser professoras, porque as desculpas são: ‘ah, mas eu tenho filhos, isso demanda muito tempo’. Mas me diz, por que não aproveitam e medeiam esses espaços para eles?” Na escola de São Bernardo, uma docente está trabalhando em um projeto sobre Lasar Segall, e Cristiano indicou que fosse visitar o museu dedicado ao artista em São Paulo. “Toda a semana ela é capaz de matar a mãe ou o pai nas desculpas, mas não vai. Ela não consegue se organizar para ir ao museu e foi ela quem escolheu o artista, não fui eu. Se fosse, imagina, ela nem cogitaria ir”, ironiza.
Dias de desespero
Nas aulas do doutorado e às vezes até nos momentos de folga, Cristiano fica pensando soluções. Na prática, acredita que o viável seria uma formação profissional com qualidade muito superior a que se tem hoje. “Vamos, por exemplo, pagar um professor por oito horas. Em quatro delas ele vai lecionar e em outras quatro vai receber formação. Mas até para achar esse formador é difícil”, comenta. Isso porque, atualmente, quem deveria cumprir essa função é o coordenador pedagógico, mas, na Prefeitura de São Paulo, a regra é ser professor da rede para fazer concurso de acesso, ou seja, “eu sou cego, se eu subo um degrau acima, eu continuo cego”. E assim, o sistema segue se repetindo ano a ano sem grandes mudanças. “Uma coisa vai puxando a outra, o salário do professor é baixo, então ele precisa dar aulas em dois períodos. Quando chega a casa, cansado, cai dormindo no livro – isso quando tem um livro onde cair em cima.” No papel de coordenador, Cristiano garante que busca incentivar, mas que não consegue cumprir sua função sozinho: “eu posso até forçar uma atividade, ensinar. Mas se o docente não interiorizar
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que aquilo é importante, eu não vou transformar nada realmente, só fingir que estou fazendo alguma coisa”. E, desanimado, com um quê pessimista, acredita que as coisas ainda possam piorar. Para receber o título de Doutor na área de letras, Cristiano precisa ser graduado no curso. Por isso, voltou à faculdade, em um sistema de formação à distância semipresencial do COC – sua obrigação é de ir à instituição apenas uma vez por semana. Ele logo se explica, afirmando que por ter uma finalidade clara para esse diploma, que o leva a ainda mais estudos, não vê problemas nesse tipo de curso. Porém, exemplifica: “eu não vou ter coragem de dizer para ninguém que dou aulas de inglês, porque eu sei que não terei habilidade para isso. Mas, a maioria das pessoas está lá para conseguir o diploma e dar aulas”. Se a qualidade da formação pudesse impedir profissionais com diploma de lecionar, talvez o problema não fosse tão alarmante. Cristiano, porém, segue enumerando dilemas ainda mais graves, como a falta de professores nas escolas públicas. A formação da maioria dos docentes é tão ruim que os concursos terminam com várias vagas não preenchidas. Assim, para suprir a carência de profissionais, o governo contrata inclusive os que foram reprovados. “Eu sei que você não tem condição, não está habilitado, porque não passou na minha prova, mas eu preciso de alguém, então, vem dar aulas mesmo assim”, encena Cristiano, e depois conclui: “é, literalmente, vem qualquer um”. Em dias mais difíceis, acredita que não há soluções, “eu penso que a escola é um lugar de louco, que Ivan Illich estava certo, vamos fechar todas elas, porque são a pior coisa do planeta”. Em outras ocasiões, cogita que há ainda uma esperança, “mesmo que seja para salvar um ou outro. E, olha que triste, deveria ser para perder um ou outro, mas já partimos da ideia de que está todo mundo perdido”. Respira fundo e completa: “eu fico imaginando para onde isso vai?”.
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Carlo Carrenho Caolho no reino dos e-books
“C
omo em terra de cego quem tem um olho é rei, eu virei especialista em mundo digital no Brasil.” É assim que Carlo Carrenho introduz a explicação sobre sua carreira profissional. Em sua fala rápida, por vezes atropelando as palavras, ele enumera dados, elenca nomes de empresas e abusa dos termos em inglês. O vocabulário é natural no ramo em que atua, ligado à economia e à tecnologia, especificamente, trata do impacto desses no mercado editorial – área em que, no Brasil, os avanços caminham lentamente e, por isso, há poucos entusiastas do assunto. Não foi, porém, com a obstinação de um visionário que Carlo se aproximou do tema, mas por uma sequência de fatos determinantes em seu trabalho. Economista formado pela Universidade de São Paulo, ele conta que sempre esteve muito próximo da literatura e, por isso, quis seguir com ela na profissão, especializando-se no mercado de livros e revistas, no Radcliffe College nos EUA. Em seguida, trabalhou na Ediouro, mediando a chegada do selo Thomas Nelson à editora. Com isso, a relação com empresas estrangeiras do mesmo ramo se estreitou e Carlo ficou responsável pelos contatos internacionais. “Eu estava em diálogo constante com os responsáveis nos Estados Unidos, então tudo o que envolvia o exterior eles acabavam me passando.” Por trás dos óculos sérios, que contrastam com o cabelo um pouco desalinhado, Carlo comenta que foi um “nerdzinho” quando adolescente. “Eu sempre me interessei por tecnologia, como usuário. Cheguei a fazer joguinhos, eu tinha um palm top quando quase ninguém usava, eu gostava de gadgets em geral, as novidades eletrônicas.” Depois de adulto, ainda cultiva a paixão e, profissionalmente, passou a colaborar em novos projetos da editora, ligados à distribuição de conteúdos digitais. Assim, conheceu lugares e pessoas que alguns geeks, fissurados por tecnologia, dariam meses de salário para ver de perto: “fui à Amazon e ao Google. A reuniões com a Barnes & Noble, um dos maiores sites de venda de livros do mundo. Visitei a SmashWords, uma empresa que faz selfpublish digital, oferecendo as ferramentas para quem quer criar seus próprios e-books”.
PublishNews
Além de toda a valiosa agenda de contatos que criou, Carlo começou a frequentar congressos sobre o assunto e define a participação em um deles como o momento de sua entrada definitiva no mundo dos livros digitais. “No evento Primavera dos Livros, em 2010, me ligaram para fazer uma apresentação sobre esse mercado. Eu não tinha nada preparado, claro, e fiquei dois dias me matando, montando a primei-
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ra versão. Eu mostrei e adoraram.” Depois, passou a receber convites para uma série deles e, com a primeira conferência como base, hoje, vai apenas atualizando os dados. Anos antes, em 2001, elaborou o projeto de uma newsletter diária, que chega ao e-mail dos assinantes com conteúdo sobre o mercado editorial – e conta hoje com mais de onze mil assinaturas. Batizado como PublishNews, depois de oito anos, tornou-se também um portal de notícias sobre o tema. Um episódio seria importante para a exposição da página. Foi uma polêmica com a lista de mais vendidos, em 2010. “O livro A privataria tucana, de Amaury Ribeiro Jr., foi tirado da relação de obras da revista VEJA, no período entre Natal e Ano Novo. Porém, ele continuou na nossa lista em segundo lugar. Então, a mídia que cobria isso nos citava para comparar e criticar a revista. Acabamos ficando como referência moral. Isso fez crescer nossa popularidade.” Com o PublishNews se fortalecendo, Carlo deixou a Ediouro e, hoje, presta consultoria, além de dar aulas e coordenar o curso de gestão de produtos de entretenimento, na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, onde vive com a família. A redação do site, porém, é instalada na Vila Madalena, em São Paulo, o que faz com que ele viva na ponte aérea – mais um motivo para diminuir os afazeres da rotina. “Deixei a editora em maio de 2012. Eu acho bem melhor, porque além do tempo, fico mais independente para falar, por exemplo, que eu odeio DRM.” A sigla a que se refere trata do Digital Rights Management, que administra os direitos autorais e restringe a difusão de conteúdo digital – um dos problemas mundiais do e-book, na visão de Carlo.
Contradições digitais
Além do DRM, outros impasses aparecem quando se fala de plataformas novas, ainda não dominadas por grande parte das empresas que se dispõe a trabalhar com elas. Carlo já foi vitima em dois episódios, “estamos nesse momento patético. Uma vez eu comprei um e-book no site da Livraria Cultura e recebi a nota fiscal em papel uma semana depois. Em outro dia, o Ponto Frio chegou a cobrar frete de livro digital”. Não é só pelas ações contraditórias das vendedoras, há problemas práticos que justificam o baixo apelo dos e-books no Brasil. O economista é taxativo: “eles não são lidos porque não existem. O catálogo brasileiro está em onze mil títulos, é muito pequeno”. Somado ao reduzido acervo, o e-readers, ou leitores digitais, disponíveis no mercado nacional são muito ruins. “Os primeiros que chegaram aqui o Cooler, da Gato Sabido, e o Alfa, da Positivo, são coisas pavorosas. Quem leu naquilo virou gato escaldado.” Carlo resume: “se
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faz de tudo para que a pessoa não compre”. Ainda que pareça pessimista, ele, na verdade, acredita que o período seja de transição. “É uma fase pré-Amazon, quando o e-reader deles, o Kindle, se consolidar aqui, vai existir leitor de qualidade. E assim, mais interesse em aumentar o catálogo e, por isso, pode ser mais vendido.” Alguns livros são exemplos de que a recepção pode ser boa, como Steve Jobs – a biografia, escrita por Walter Issacson. “Há títulos de que trinta por cento das vendas já eram dos digitais na primeira semana. Se você consegue ter um bom livro acessível, as pessoas compram”, comenta. O preço da plataforma também pode ser um estímulo. Carlo relembra quanto pagou no primeiro Kindle: trezentos e setenta dólares. “Hoje já se encontram alguns no mercado americano a sessenta dólares, é um meio muito barato”, defende. O valor e a melhora na qualidade a cada nova versão são fatores que o levam a afirmar que os e-readers continuarão tendo espaço no mercado, mesmo com a alta popularidade dos tablets. “Os leitores digitais vão existir sempre, porque há pessoas que leem um volume grande e, então, precisam de uma plataforma só para isso. Eu costumo brincar que quando o iPad foi lançado, era tão melhor que o Kindle, que o Kindle acabava sendo melhor que o iPad. Eu, por exemplo, não consigo ler no tablet, porque eu fico no Twitter, nas redes sociais, vejo filmes, eu não leio. Quando vou ler, gosto de ficar lá quieto no meu canto, por isso, eu prefiro o Kindle nessa situação.” O economista admite, porém, que o apelo dos e-readers é pequeno e, provavelmente, continue sendo no Brasil. Afirma também que para alguém que lê cinco ou seis livros digitais no ano, comprar um aparelho apenas para esse fim não é mesmo uma boa opção. “Acho que por aqui o tablet sempre terá mais espaço.” Ainda assim, do ponto de vista de negócios, vê o e-reader como uma peça fundamental desse novo mercado pouco explorado. “Uma empresa da área, a Kobo, por exemplo, fechou acordo com a Livraria Cultura para colocar algumas prateleiras com e-readers dentro das lojas. A força de marketing de ter um espaço lá dentro, onde os clientes podem ter contato, mesmo que não comprem o leitor digital, é enorme. É importante que esses produtos venham para cá, porque geram a venda do e-book, ainda que não se compre o aparelho e se leia no tablet.”
Bibliotecas de e-books
Nas aulas na FGV, Carlo levanta um fato curioso: o acervo digital da Biblioteca Pública de Nova Iorque ter limite de empréstimos. “Você tenta acessar certo e-book e vê que está escrito assim: esse livro está emprestado
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para tantas pessoas, você precisa esperar na fila para ler.” A reação dos alunos é rir. Bem diferente da resposta dos profissionais da área editorial, que acham perfeitamente normal. “Mas na verdade é um absurdo, porque se é uma cópia digital, que sentido faz você limitar o empréstimo?” Isso acontece porque as editoras ainda não sabem como comercializar os títulos na plataforma e serem remuneradas por isso quando as bibliotecas são compradoras. “Isso é uma maluquice, é preciso parar de vender cada exemplar e trabalhar com licenças.” O economista sugere algo parecido com o modelo do portal Netflix. “É um formato sensacional, porque você não está comprando ou alugando o filme, mas o catálogo, pagando uma taxa mensal, e eles dividem esse dinheiro.” Assim, a ideia é de que o editor trabalhe com uma licença para as bibliotecas terem acesso a seu catálogo. “Há duas formas de remunerar isso, uma é por meio de assinaturas em função do número de títulos, calcular quanto daria por livro e pagar o mínimo para cada autor. Outro modo é colocar todo o acervo à disposição e não ganhar nada por isso na hora, só quando alguém emprestar, então, recebe um ou dois centavos a cada vez que locarem.” Carlo acredita que isso possa ser realizado daqui a alguns anos. Por ora, já se diz feliz por existir a possibilidade de se emprestarem livros digitais – mesmo que ainda não seja no Brasil. “Se pensarmos que ainda estamos em um momento pré-Kindle, que foi lançado em 2007, e que as bibliotecas digitais começaram em 2010, então deve demorar uns três anos para serem adaptadas aqui.” Ele enfatiza ainda que, primeiramente, devem chegar aos espaços privados, o Centro Britânico Brasileiro, por exemplo, “Já que as bibliotecas públicas, infelizmente, têm problemas mais básicos”.
Preconceito
Além de todos os dilemas ainda enfrentados no mercado, os livros digitais não são bem recebidos, na opinião de Carlo, por puro preconceito. “As pessoas falam, porém, nunca viram um e-book, não tiveram contato. Mas ele pode resolver muitas questões de acessibilidade, até financeiras.” Ele conta que esteve em Belém, no Pará, para uma palestra sobre o assunto, e um de seus principais pontos foi a rapidez com que os digitais podem ser entregues, já que as obras costumam chegar à região mais de dez dias depois da compra pela internet. “Eu disse que o e-book permite que eles leiam uma obra na mesma hora em que um paulista ou um carioca. O que não acontece com o impresso.” Outra questão defendida por Carlo é quanto às facilidades para deficientes e idosos. “Quando você mostra um Kindle e explica que é
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possível aumentar a letra, alguns ficam até meio bobos.” A possibilidade de alterar o tamanho da fonte de um texto é um diferencial que faz com que os leitores digitais tenham boa recepção na faixa de cinquenta e sessenta anos: “o pessoal mais velho precisa disso. No Brasil, mais ainda, porque temos um déficit de óculos enorme, e muitos não leem porque dizem que se cansam, mas isso muitas vezes é falta das lentes”. Os aparelhos também podem ajudar no caso dos cegos. “O Kindle, você pode colocá-lo para falar, é uma voz metálica, mas que respeita muito bem o texto. Isso é fantástico para deficientes visuais”, defende. Lamenta, porém, que mesmo com as vantagens, ainda não tenha apelo entre as pessoas que define como “cheiradoras de livros”, que não dão espaço para o digital. “Eu também tenho fetiche pelo objeto livro, mas não se pode confundir a literatura como texto, que pode estar em qualquer plataforma, com o objeto. São coisas diferentes.” Quando essa postura defensiva parte de pais de crianças pequenas, a ideia é clara: não colocar os filhos em contato com os e-books. “Eu não sei qual é o motivo, mas acho que é preciso encorajar, independentemente da plataforma. Primeiro porque ler é bom de qualquer modo, depois porque não acho que o livro digital esteja tomando lugar do impresso.” Carlo incentiva o uso em casa, com a filha Tarsila, de três anos, que já mexe sozinha em um tablet – o antigo iPad do pai. “Ela usa para ver filmes, o aparelho está substituindo a TV para ela, não o livro em papel. Ela entra no Youtube e vai navegando de um filme para outro, até vídeo em russo ela viu”, conta animado.
Planejamento escolar
Crítico à TV por não despertar a imaginação dos pequenos, Carlo também não se diz contente com o trabalho da literatura nas escolas. Ele polemiza: “as crianças adoram livros e, quando entram no colégio, eles transformam o prazer em obrigação e elas saem odiando. E eu entendo, porque qual o cabimento de alguém de quinze anos estudar trovadorismo? No mínimo, a ordem deveria ser invertida: começar no contemporâneo e voltar. Além de dar mais liberdade de escolherem certos livros que vão ler em vez de mandar tanto.” O obstáculo é imposto porque as obras são inapropriadas. Carlo diz que não coloca em xeque a qualidade delas, mas a validade de trabalhá-las com crianças ou adolescentes. “Você não tem cabeça com quinze anos para entender e apreciar Eça de Queirós, por exemplo. Anos mais tarde, a pessoa volta à leitura e gosta.” No caso dele, se traumatizou com José de Alencar: “depois da escola nunca peguei mais nada para ler, mas acho que se lesse Iracema hoje eu até gostaria”.
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As novas plataformas não conseguem resolver essa questão, mas podem ajudar a incentivar a leitura. “O problema passa ao largo do fato de ser digital ou não. Mas, além da acessibilidade, o e-book pode colaborar, principalmente no caso das novas gerações, que crescem fascinadas por tecnologia.” Com o gosto pelas novas mídias, os livros impressos, mesmo com bons acabamentos e cheios de ilustrações, podem não atrair tanto. “Hoje, no mundo adulto já acontece: a leitura de livro perdeu espaço para a de Twitter, de rede social, é tudo disputa de tempo”, defende Carlo. Assim, ter um elemento eletrônico ligado ao livro poderia, em suas palavras, segurar as pontas. “Não vai resolver, mas pode evitar que se torne uma coisa obsoleta. Isso não é a solução, claro, passa por outros fatores.”
Espaço da imaginação
No caso dos livros infantis, uma discussão se estende desde a chegada dos digitais ao mercado, e a repercussão no Brasil foi grande em 2011, após uma mesa de debates na Jornada Literária de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. No encontro, a editora Kate Wilson da inglesa Nosy Crow, discutiu com o escritor argentino Alberto Manguel, “ele foi super desrespeitoso com ela. Tanto é que a charge do jornal Zero Hora do dia seguinte era ela dando um soco no rosto dele”. A confusão aconteceu porque Manguel não concorda com um formato de livro criado pela Nosy Crow para crianças, afirmando que é um desestímulo à leitura. A editora lançou um aplicativo interativo com a história dos três porquinhos. “Eu não vejo nada de negativo naquele formato, na verdade, acho perfeito. Porque existe uma história, uma narrativa muito clara e separada do que é o brinquedo. Há alguns bichinhos e se você apertar, eles falam algo, mas isso não atrapalha a sequência da narrativa.” Como prova, Carlo cita alguns vídeos feitos com crianças, e disponíveis no site da editora, mostrando os pequenos lendo, “eles entendem muito bem o que é a história, leem os quadros de texto”. O economista alerta, porém, para a linha tênue que há entre esse tipo de livro e os games ou filmes – tal linha desaparece quando a narrativa do livro simplesmente fica em segundo plano, valendo mais o jogo, o entretenimento. “É preciso cuidado para não acabar com o mundo da imaginação da criança pré-alfabetizada. Eu não sou pedagogo, mas sei que ele tem um papel importante. Se dermos tudo mastigado, como a TV dá, estragamos esse aspecto educativo do livro.” Para isso, Carlo defende que é necessária atenção para que os aplicativos com intuito de serem livros interativos não se tornem filmes. “Eu não impediria minha filha de ver, mas não é livro, é filme. Não está lendo nem imaginando.”
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Dilema econômico
Carlo garante que sua preocupação é relevante em função dos caminhos que o mercado editorial está tomando quando lida com os aplicativos: aproximando-se da indústria de jogos, pela correspondência técnica e de certos mecanismos, como a música contínua dos jogos. E o medo é mais uma vez o de que se perca a narrativa, e se torne mais um game. “É essencial que a editora cuide do processo de criação, da sequência da história, do conteúdo para o leitor. Mas não, terceirizam tudo e saem aplicativos pavorosos, sem trato editorial.” Ainda que de má qualidade, Carlo acredita que os profissionais dos games, hoje, cheguem antes a um resultado de sucesso do que os editores. “Quem lida com jogos está muito mais perto de fazer um livro interativo, ainda com narrativa. Porque além de uma limitação técnica, que muitos editores não parecem querem superar e preferem pagar para outros fazerem, há uma questão financeira.” Atualmente, a lógica de negócio das editoras não é gastar altas quantias de dinheiro em um único produto, mas pequenos valores em muitas unidades. “Hoje, vinte por cento dos livros pagam os outros oitenta que se erram. E não há condições de se errar oitenta por cento quando, em vez de trezentos livros, se vão lançar dez aplicativos por ano, gastando cem mil dólares em cada um. É uma lógica com que o mercado editorial não tem know hall nenhum em lidar.” Por isso, quase ninguém quer apostar em grandes aplicativos, que poderiam custar vinte mil dólares cada, “para depois vender por menos de dois dólares. Com o mesmo conteúdo se faz um PDF bem feito, sem interatividade, claro, mas sai por mil reais e se vende vinte por cento abaixo do preço do livro impresso. Assim, as editoras fecham a conta no fim do mês.” Pelo receio das empresas de publicação em entrar em um campo desconhecido, Carlo aposta que o futuro do mercado estará nas mãos das indústrias que sabem operar com a lógica de gastar muito dinheiro em um único produto, justamente as dos games e do cinema. “Vai haver uma intersecção cada vez maior, mas meu receio é que se acabe dominado por essas empresas, já que o modelo econômico mudará completamente.” Sua esperança, porém, é que os governos se voltem à produção e o cenário seja mais propício e seguro para o investimento.
Compras públicas
A aproximação do governo com os livros digitais, na opinião de Carlo, é certa. Assim como a das escolas particulares, que já têm sugerido o uso de tablets em algumas aulas. “O primeiro motivo é o peso dos livros. Ninguém aguenta isso. A minha filha, com três anos, já sai de
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casa com a mochila cheia. Aqui no Brasil isso é um problema grande porque os colégios não têm os lockers, armários para os alunos deixarem o material”, reclama. Outra questão para as escolas públicas, mais uma vez, é econômica: “colocar um tablet na mão dos alunos é muito mais barato do que comprar impressos”. Na definição de Carlo, o governo é um ótimo negociador, que paga o mínimo possível por livro. “Nesse valor, eles deixam uma margenzinha para o editor. Por isso, a maior parcela é de papel e tinta, se você tirar isso, deve desabar mais da metade”, calcula. Assim, distribuir tablets, que os alunos mantêm de um ano para o outro, apenas alterando o conteúdo, seria a saída mais econômica. Para a indústria editorial, no entanto, pode não ser grande vantagem. “Eles vão perder em faturamento, mas também terão um custo menor. Enfim, vão ter que se acomodar.” O dia não está longe. No início de 2012, o governo anunciou a compra de seiscentos mil tablets sem conteúdo para distribuição entre professores de escolas públicas, por isso, na previsão de Carlo, quando lançarem o edital explicando como deverá ser feito o material digital, as empresas irão atrás disso. Como um bom economista, comenta: “quando governo pedir, as editoras vão mudar. Afinal, a demanda tem que vir oferta, né?!”.
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Posfรกcio
s dicionários dizem que sim, mas os entrevistados deste livro mostraram que, na prática, o termo criança não define um ser humano em certa fase da vida. Faminta por aprender o português quando chegou ao Brasil, talvez a escritora Tatiana Belinky nunca tenha buscado significados prontos, mas aprendido no dia a dia e, assim, concluiu que ser criança não tem idade – a afirmação que de início pode até parecer vã, se mostrou válida no caso de todos os envolvidos nesse trabalho. A simpatia foi uma característica comum, mesmo que pareça exagero, a verdade é que todos esbanjaram doçura em cada entrevista – há de se ressaltar que, entre os calos, rugas e fios de cabelo branco adquiridos em suas profissões, trabalhar com a fantasia é mesmo algo de fazer os olhos brilharem. E os personagens desse livro são gigantes no tamanho de sua imaginação, usando dela para defender uma forma de cultura tão temporária na visão de muitos, mas duradoura em suas vidas. Uma reclamação geral, porém, pairou sobre o clima de cada encontro: o preconceito, o desdém, a discriminação aos “livrinhos infantis”. O professor universitário Edmir Perrotti dá ao fenômeno um nome específico, adultocentrismo, e alerta não apenas para o desafio de pensar conteúdo para um público-alvo que não é você mesmo. Mas fala como se lamentasse que à medida que crescemos vamos nos esquecendo do que é ser criança, das possibilidades e do prazer, de olhar o mundo e ser surpreendido.
A quebra das expectativas, tão clamada pelo ilustrador Nelson Cruz, é o que parece motivar todos esses personagens a insistir na área. É, inclusive, uma linha comum a muitos títulos que mencionam, em especial, os do campeão de citações: Monteiro Lobato. As obras do autor povoaram o imaginário de Perrotti, levaram Tatiana aos estúdios e marcam o trabalho diário da socióloga Azilde Andreotti. A dúvida de muitos, porém, é se as crianças ainda se interessam por ele. Talvez o mais angustiado com o que tem apelo entre os pequenos seja o professor Cristiano Alcântara. Ele convive com os problemas de leitura do país de perto e tenta de muitos modos aproximar os alunos da leitura – Lobato, de linguagem pouco acessível, com temas distantes da vida nos grandes centros, já foi até descartado. E o professor ainda não sabe onde tudo isso vai parar, não está muito seguro de que exista uma luz no fim do túnel. O economista Carlo Carrenho, que não tem medo de fazer afirmações sobre áreas que não domina, diria: “eu não sou pedagogo, mas...”. E sugeriria a Cristiano que deixe as crianças escolherem o que vão ler. Tatiana Belinky possivelmente concordaria com ele. O professor de certo responderia que se esforça, leva até Harry Potter às escondidas, mas ainda assim, não é o suficiente. A jornalista Bia Reis o aconselharia a ir além, “Porque não assar um bolo?”. Talvez fosse uma boa opção, se lhe concedessem verba para comprar farinha...
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O governo desperta sentimentos opostos: Cristiano o culpa pela esquizofrenia do processo de distribuição de obras. Já Júlia Schwarcz o vê como o grande comprador da Companhia das Letrinhas, desde o primeiro pedido na gestão de Fernando Henrique Cardoso, que guia não só as obras que entregam às escolas, como impacta o preço dos livros da editora no mercado. Já Carlo poderia ressaltar como o governo é mesmo um ótimo negociador e alertar Júlia para o fato de que em breve terá que se adaptar às novas plataformas. Os e-books ainda são um dilema para Bia, que não sabe o momento certo de dar um tablet para os filhos por medo de abandonarem o impresso. Nelson também se preocupa com o impacto das novas mídias na infância dos seus. Essas questões são partilhadas por outros pais mundo afora: segundo a pesquisa da editora norte-americana Scholastic, 41% acreditam que quanto mais contato com a tecnologia, menos as crianças leem. Os livros impressos, porém, ainda têm grande penetração entre os mais novos: de seis a oito anos, 60% afirmam ler livros por diversão, número que cai para 40%, entre quinze e dezessete anos de idade. No Brasil, estudos sobre o impacto dos livros digitais são mínimos, pelo motivo que Carlo comentou em sua entrevista: o número escasso. Isso é traduzido no relatório Retratos da Leitura no Brasil, realizado pelo Instituto Pró-Livro, com a inclusão dos digitais na última pesquisa, de 2011. Os e-books são desconhecidos de quase metade da sociedade brasileira: 45% nunca ouviram falar deles. Entre os que sabem o que são, 82% nunca os usaram. Entre os que já testaram, 45% cursam nível superior, seguidos dos estudantes de ensino médio (37%). Já na questão dos impressos, o relatório de Produção e Venda do Setor Editorial Brasileiro de 2009 mostra mais de cinquenta e dois mil títulos lançados e quase quatrocentos milhões de exemplares impressos. Desse enorme setor, os didáticos representam 47%, enquanto os livros infantis e juvenis, quase 15%. Comparado com o exterior, o mercado editorial brasileiro é o nono maior do mundo em 2012, segundo a pesquisa do Global Map of Publishing Markets (Mapa Global de Mercados Editoriais), com faturamento das editoras estimado em dois milhões de euros. Toda a importância comercial , porém, não deveria ser o motivo absoluto para que se fale dos infantis. Para Perrotti, precisam ser considerados relevantes também por seu valor cultural. Em quarto lugar entre os gêneros mais lidos no país por cinco anos, segundo o Retratos da Leitura, a literatura infantil caiu para a sexta posição em 2011. No entanto, o escritor Monteiro Lobato continua no posto de mais admirado do Brasil. O mercado pode contribuir para que as obras chamem atenção, ainda que não deixe Perrotti totalmente satisfeito. Os espaços nas livrarias são quase como holofotes sobre os livros, e levam as crianças e os mais curiosos para perto. As contações de histórias, tão comuns à biblioteca de Azilde, também invadiram 117
os espaços comerciais e, junto dos lançamentos de títulos, são grandes atrativos à compra. A beleza das obras também é um convite à leitura, e é mérito de artistas como Nelson, hoje, bem melhor tratados pelas editoras – como conta Júlia, e reconhecidos por premiações como o Jabuti. A aproximação de leitores e autores também é maior, e o interesse por saber mais sobre a vida das pessoas por trás das obras mostra isso. Não é apenas a fotografia do autor na orelha do livro, a biografia resumida ou os outros títulos de sua autoria: querem ver Nelson – inclusive de bermudas. Desejam visitar a casa de Tatiana e ouvir dela mesma as histórias que criou. Com exceção da autora, que abre as portas de sua residência, o mais comum é que os autores sejam convidados pelas escolas – proposta, geralmente, aceita por Nelson. Se os autores vão às escolas, é sinal de que os livros estão chegando lá. Enquanto nas públicas as obras são entregues pelas mãos do governo, nas particulares é pelo interesse dos professores e trabalho das editoras, como a de Júlia – que conta com uma equipe para se relacionar com os docentes. Afinal, os colégios compõem uma parcela importante do mercado: em estudo da Abrelivros (Associação Brasileira de Editores de Livros), em 2009, apenas literaturas infantil e juvenil movimentaram mais de noventa milhões de reais, com quase oito milhões de exemplares. Os altos números, porém, não garantem a satisfação dos pequenos ou dos pais, especialmente quando se trata dos livros que chegam às bibliotecas das escolas. Bia é uma dessas pessoas: a censura a alguns temas não tem nada de saudável em sua opinião. Tatiana acenaria com a cabeça em concordância, lembrando suas experiências no Mackenzie. A questão, porém, é mais profunda: se os colégios não compram, as editoras não editam e os autores não têm espaço com certas histórias – Yabu é um exemplo das dificuldades em encontrar quem aposte em seu trabalho: só conseguiu publicar seus livros pela coincidente amizade com um editor. O sucesso de suas histórias mostrou, porém, que o número de negativas não dita o fracasso de uma obra.
Dentro ou fora das escolas, as bibliotecas foram assunto de quase todas as entrevistas – dos que pouco frequentam, como Bia e Júlia, aos que trabalham com elas, como Perrotti e Azilde. Estes dois últimos que, à primeira impressão, parecem atuar de formas quase opostas: uma resguarda a memória do local enquanto o outro tenta transformá-la. Assim, estão, na verdade, defendendo um espaço que já não tem grande apelo com a população, cuidando de sua história e e tornando-a mais atrativa atualmente. Retratos da Leitura mostra que 67% dos pesquisados afirmam saber que existem bibliotecas públicas em suas cidades. Entre eles, 71% dizem que os locais são de fácil acesso, porém, apenas 7% os frequentam, e 17% usam de vez em quando. Mais da metade (55%) dos que afirmam ir a bibliotecas têm até dezessete anos. Em idade escolar, o alto número se relaciona diretamente aos
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acervos a que costumam se dirigir: 64% usam o da escola e 50% vão às bibliotecas públicas. A finalidade do uso desses espaços também está ligada aos colégios, 71% veem como um local de estudo, enquanto apenas 17% como espaço para emprestar literatura. Independentemente do uso que façam, um dado é triste: questionados sobre o que os faria ir mais à biblioteca, 33% afirmam que nada os levaria a frequentá-la. Porém, mantida a esperança de que os 67% restantes já frequentem ou comecem a ir aos locais, um número positivo mostra que os usuários de bibliotecas leem mais. A estimativa brasileira é de 1,85 livros em três meses, já entre os frequentadores de bibliotecas, a média sobe para 3,84 livros no mesmo período. É neste contexto que os espaços se mantêm abertos e se modernizam, e, como contou Carlo, entrando até na era digital – mesmo que as editoras ainda não saibam lidar com seu acervo hi-tech.
As histórias deste livro foram contadas por dez narradores, igualmente personagens de seus relatos. Mesmo com ótimos feitos pessoais, deram espaço para que a literatura fosse protagonista. Defendida a ferro e fogo por todos, foi Perrotti o mais claro: ela não tem que ser justificada por ensinar a ler. No entanto, uma ideia compartilhada é de que se ajudar no aprendizado da leitura, cumpre um belo papel. A má literatura ficou isenta de críticas pelo mesmo motivo. Boa ou ruim, leva ao contato com o texto – problema tão recorrente no país. O apelo da leitura no país foi mapeado, também por Retratos da Leitura, e mostra números não muito positivos: 37% da população afirma gostar um pouco de ler. E, enquanto 25% gosta muito, 30% não gosta e 9% não sabe ler. Além dessa grande parcela de analfabetos, 53% dizem que não leem porque não têm tempo, e 30% porque não se interessam. Quando questionados sobre as dificuldades em ler, 43% dizem não encontrar nenhuma. O exemplo da professora Valquíria, porém, mostra que sempre é possível se aproximar dos livros. O medo de Bia e Nelson no caso dos filhos poderia ser ampliado pelos dados. O ilustrador, porém, comenta estar seguro de que uma característica dos livros, que o fez se apaixonar, pode fazer o mesmo com as crianças. E, de certa forma, sua afirmação traduz um sentimento partilhado por adultos que gostam de boas leituras, e pelas crianças que as encontram pela primeira vez: o prazer de entender o que está dito em uma frase, de se maravilhar com o que encontra em cada linha de um livro. Os personagens apresentados aqui descobriram um gosto na infância e incorporando-o a seus trabalhos. O que os motiva é o grande elo entre todos eles, suas profissões são como uma sequência, um revezamento em que um passa o bastão ao outro, até o livro terminar pronto, na mão de uma criança. E, sem que saibam, cada um cuidando de sua fase do processo, criaram um grande diálogo entre si que este trabalho mostrar. Um mapa não tão mágico, mas nem tão trágico da atual literatura infantil brasileira.
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